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A Descolonização Da Educação Literária No Brasil
A Descolonização Da Educação Literária No Brasil
CAMPINAS,
2019
ANA PAULA DOS SANTOS DE SÁ
CAMPINAS,
2019
Os brancos não sonham tão longe quanto nós.
Dormem muito, mas só sonham consigo mesmos.
Davi Kopenawa
Agradeço à professora Daniela, pela seriedade acompanhada de leveza, pelo olhar generoso
frente às minhas inquietações e aos meus excessos. Como não poderia deixar de ser, registro
meus agradecimentos à professora Teca, que, além acolher as inseguranças do meu período de
transição da Teoria Literária para a Linguística Aplicada, possibilitou esse encontro, tendo
acertado ao afirmar que eu e a professora Daniela “nos daríamos muito bem”.
Às professoras Márcia Mendonça, Vima Martin e Ana Cláudia Fidelis e ao professor Mário
Medeiros da Silva, por terem contribuído, em diferentes etapas e de diferentes formas, para o
aprimoramento deste estudo. Nossos encontros e nossas trocas foram sempre enriquecedores.
Agradeço uma vez mais à professora Miriam, pois muito do que aprendi na Iniciação
Científica e no Mestrado se reflete nesta tese de Doutorado.
Sou também muito grata pelos belos (re) encontros que o Doutorado me proporcionou. À
Aline, pelo senso de humor ímpar e pelas doces trocas literárias. À Débora, mulher guerreira,
pela risada gostosa e por ser tão generosa em sua torcida pelas “manas”. À Fabi, pela
agradável companhia em diferentes caminhos, por vezes rumo à rodoviária de Campinas, por
vezes em direção à pousada do dia. À Natasha, pelas partilhas acadêmicas e pessoais, pela
postura agregadora em todos os sentidos. À Nayara, pelas conversas, mas, principalmente,
pelo canal de apoio que construímos ao longo dessa aventura louca que é escrever uma tese e
gostar da sala de aula ao mesmo tempo.
Registro, claro, um “obrigada” que começou a ganhar forma em 2007. À Bruna, à Malu, à
Monica e à Pati, agradeço a amizade sólida de todos esses anos. De “colegas de faculdade”,
nos tornamos, em certa medida, uma família, motivo pelo qual vejo um pouco de vocês em
cada fase que vivi na UNICAMP e em muito do que experimentei fora dela. Foi, e continua
sendo, muito bom crescer ao lado de vocês.
Às amigas que fiz em outra “academia”, e que hoje são também amigas para a vida. À Carol,
pelas ótimas conversas regadas a cookie, por essa terapia chamada “tomar café com as
amigas”; à Ju, pela partilha de ideias, de valores e de planos, e, claro, obrigada pelas
excelentes perfomances no kimax; à Sol, amiga-peregrina incansável, boa de prosa, mas
igualmente ávida ouvinte, sempre pronta a acolher com curiosidade minhas questões
acadêmicas e com muita atenção qualquer dilema pessoal.
Agradeço à Val, minha “amiga de trabalho”, pelo aprendizado diário, por me inspirar, a cada
dia, a ser uma professora melhor.
Agradeço também aos meus sogros, Mariangela e Flávio, por madrugarem comigo nos dias
em que eu tinha aula na UNICAMP.
Ao meu Querido, Alex, pela beleza do “el camino” que estamos trilhando juntos, pelo
companheirismo sem ressalvas, pelos abraços concretos e simbólicos. Melhor do que chegar,
é chegar ao seu lado.
RESUMO
The goal of this PhD research is to investigate the social meanings and academic impacts of
the Brazilian federal laws 10.639/2003 and 11.645/2008. These laws made the teaching of
History and Cultures of African, Afro-Brazilian and indigenous origin mandatory in all basic
education. The premise is that such policies contribute to the process of decolonization of
education and, in this study, the process of decolonization of literary education. In summary,
we explore such process in view of two constitutive stages: the "political transposition", that
is, the time in which the political actions and ideas defended by social movements are
formalized into public policies; and "educational transposition", corresponding to the
transformation/adaptation of knowledge initially restricted to the academic context and/or to
activists and its application in schools, that means, the relocation of academically or
politically charged knowledge to the school environment. To this end, we initially used the
theoretical bases of Cultural Studies and Post-Colonial Theories, in order to reflect on the
senses of a Post-Colonial teaching perspective. Then, while we admit the formation of the
Brazilian school curriculum as a constitutive part of an educational project with colonial
origin, that is, a project historically guided by Euro-Centrism and marked by the production of
absences and gaps in the curriculum, we also review, briefly, the role of social movements in
the struggle for education models sensitive to the cultural plurality of the country and, thus,
contrary to the colonial legacy present in the school. Finally, once we have discussed the
foundations and origins of the above-mentioned laws, we turn to their practical effects on the
teaching of literature, through the analysis of the ten textbook collections approved by the
national school textbook plan (PNLD) in 2015. In order to develop an investigation that pays
attention to the multiplicity of editorial strategies, our research methodology is guided by the
analysis of both the movements of "addition" of the contents foreseen by the laws, as well as
the possible marks of "Critical Review" of the canon. In general, the results of this research
corroborate the relations established between Education, Society and Politics, and point out
that there are quite distinct modes by which the textbooks have introduced the literatures
recommended by the laws, as well as the degree of attention dispensed and the space reserved
to this repertoire in each collection. Meeting our theoretical foundation, some works present
"decolonial" options of education, especially in relation to the basic premise of positive
recognition of the diversity of the cultures and literatures of the Portuguese Language, as well
as the didactic-educational work on the possible dialogues between them, although there is a
clear predominance of the study of the African literatures not taking in consideration the
black and indigenous artistic and literary productions. It is therefore an ongoing
decolonization process, but not completed one.
INTRODUÇÃO 15
REFERÊNCIAS 361
15
INTRODUÇÃO
1
Ao encontro da coletânea organizada por Banks, também serve de referência o trabalho de Gonçalves & Silva
(2013), o qual, ao se dedicar à questão da educação multicultural em nível global, apresenta um interessante e
detalhado panorama das “experiências multiculturais em outras sociedades” (GONÇALVES & SILVA, 2003, p.
121). Gomes (2017a), por sua vez, aprofunda o debate sobre o contexto brasileiro a partir de uma abordagem
mais abrangente das políticas públicas para a diversidade instauradas no país (de 2003 a 2016), contribuindo,
assim, para uma melhor compreensão do tema em nível local.
16
(2003), consideramos igualmente adequado associar essas diferentes demandas a uma luta
contra a persistência do colonialismo na contemporaneidade.
3
Disponibilizamos os textos integrais das referidas leis no Capítulo 2, no início das subseções 2.1. e 2.2.,
respectivamente.
4
Não consideramos necessário desenvolver uma discussão sobre os sentidos de “cânone literário”, pois nossa
análise centra-se na questão da imutabilidade do repertório escolar de forma mais ampla, assim como no lugar
ocupado pelo eurocentrismo nessa problemática. Para tanto, entendemos que as respostas por nós procuradas
encontram-se mais na História da Educação no Brasil do que em debates estritamente teóricos sobre o tema.
Ademais, muitos trabalhos já abordarem de forma bastante consistente a relação estabelecida entre o cânone e o
ensino de literatura nas escolas brasileiras, com destaque à tese de doutorado de Fidelis (2008).
5
Percebemos nos levantamentos que realizamos em 2014 que, tanto em relação ao Ensino Fundamental quanto
em relação ao Ensino Médio, as pesquisas interessadas pela questão da diversidade cultural no ensino de
literatura voltavam-se, majoritariamente, à observação de práticas pedagógicas, por meio de estudos etnográficos
mais gerais sobre representação étnico-racial e/ou de análises inclinadas mais ao papel de livros paradidáticos e
menos aos livros didáticos. O estudo sistemático de coleções do PNLD mostrou-se, no que tange aos dois níveis
de ensino, pouco frequente se comparado, portanto, a outros recortes ou caminhos analíticos, como os de viés
étnográfico (envolvendo, por exemplo, observação de aulas, entrevistas com professores e/ou com alunos etc.),
sendo estes, em sua maioria, desvinculados da análise do uso, do papel e/ou do lugar do livro didático no
contexto do ensino multicultural.
19
raciais nos materiais escolares, motivo pelo qual o corpus explorado nesses trabalhos
mostrava-se muitas vezes fragmentário, restrito a alguns capítulos e a poucas coleções6. À
altura, já havíamos aferido a importância de verificar os efeitos globais da introdução das
literaturas afro-brasileira e africanas nos livros didáticos, atentando-nos, por exemplo, a seus
eventuais reflexos na abordagem de autores clássicos, ao espaço editorial a elas reservado etc.
A nossa hipótese era a de que todas as escolhas editoriais tomadas a partir lei mereceriam
atenção, por considerá-las movimentos ideológicos, e não arbitrários, de inclusão-exclusão de
conteúdos escolares. Desse modo, e novamente em consonância com a fala de Alberto de
Oliveira Gonçalves no Seminário ocorrido em 1987, também a ausência dessas produções
artístico-literárias era, a nosso ver, um dado relevante, que deveria ser igualmente explorado,
fator que nos levou a somar, em um segundo momento, a lei nº 11.645/2008 ao nosso recorte
de investigação.
Diferentemente do expressivo interesse pela aplicação da lei 10.639/2003, o qual
constatamos através de nossas pesquisas bibliográficas, o atendimento à alteração legislativa
de 2008, ou seja, ao ensino da história e das culturas indígenas, ainda carecia de atenção por
parte da academia. Naquele ano, observamos em nossas buscas que o termo “11.645/2008”
fazia-se presente apenas a título de citação em resumos de dissertações e teses interessadas
pela lei 10.639/03, não se configurando um objeto de estudo. Não localizamos, portanto, em
2014, trabalhos que debatessem o ensino de literatura indígena em escolas convencionais, isto
é, em escolas não indígenas, salvo o artigo “A Literatura dos Povos Indígenas e a Formação
do Leitor Multicultural” (2013), que desenvolve “uma reflexão sobre como o contato com
esta literatura pelo público formado por crianças e jovens pode promover a formação de
leitores competentes, multiculturais e multiletrados” (THIÉL, 2013, p. 1175)7. Em linhas
gerais, pudemos notar que o indígena era/é ainda encarado, na academia, mais como tema e
personagem e menos como autor literário, embora excelentes trabalhos já tenham sido
publicados propondo tal mudança de enfoque, como Almeida (1999), Graúna (2012; 2003),
Lima (2012), Thiél (2002).
6
Entre os trabalhos afins, destacamos: (i) Ensino Fundamental - Goularte & De Melo (2013); Silva (2005); (ii)
Ensino Médio – Freitas (2009). Após 2014, isto é, fora do recorte temporal do nosso levantamento inicial,
podemos destacar outros estudos, como o de Biazzetto (2012).
7
Após 2014, ano em que realizamos o referido levantamento bibliográfico inicial, é possível encontrar um
número maior de trabalhos que discutem o ensino das produções artístico-literárias indígenas em escolas não
indígenas. A despeito de não termos realizado um levantamento tão sistemático quanto o que julgamos
necessário fazer no início de nossos estudos, destacamos os trabalhos de Santos (2018), de Silva (2017) e de
Thiél (2016).
20
É fato que já nas primeiras leituras que fizemos das coleções do PNLD 2015, a
discrepância entre o número de textos e de autores que atestavam a implementação da lei de
2003 era acentuadamente superior ao daqueles que se associavam à mudança imposta em
2008. Optamos, então, por enfrentar essa lacuna de estudos, ainda que a nossa discussão
venha a permanecer restrita, em grande parte, a um questionamento e à denúncia da ausência
da autoria indígena nos materiais que integram o nosso corpus. Como afirmamos, a não
presença tornou-se um fator a ser levado em conta no decorrer de nossas reflexões, e é com
base nesse aspecto que justificamos o fechamento do nosso recorte de análise.
Em junho de 2016 (terceiro semestre do doutorado), atendendo às exigências do
Programa de Pós-Graduação, cumprimos com o requesito da “Qualificação de Projeto”, cuja
finalidade é debater o projeto de pesquisa em sua fase inicial. De forma muito produtiva e
generosa, a banca composta pelos professores doutores Vima Lia de Rossi Martin (USP) e
Mário Augusto Medeiros da Silva (UNICAMP) deu-nos diversos contributos, entre os quais
dois influenciaram com mais veemência os rumos tomados pela presente pesquisa.
Primeiramente, em consonância com suas indicações, optamos por afastar nossa
fundamentação teórica de um debate sobre o “multiculturalismo”, devido tanto ao excesso de
trabalhos afins quanto das amarras teóricas que esse tema nos impunha, a começar pela
própria “guerra polissêmica” que o atravessa. Em segundo lugar, concordamos com a
necessidade de recuperar a luta e o papel dos movimentos sociais no contexto de conquista
dessas e de outras políticas de recorte étnico e racial, a fim de compreender mais criticamente
os significados das leis nº 10.639/2003 e 11.645/2008. E foi justamente ao ler a história dos
movimentos negro e indígena, sobretudo no que tange a lutas e a posicionamentos
relacionados à educação, que passamos a transpor nosso embasamento teórico para os aportes
dos Estudos Pós-coloniais. Identificamos na história da educação do negro e do indígena no
Brasil elementos que vão ao encontro de movimentos, implícitos ou explícitos, de denúncia e
de resistência ao projeto educacional de matriz colonial (ou eurocêntrico) que fundou e que
ainda orienta a educação no país. É nesse sentido que a ideia de “descolonização da educação
literária” passou a ganhar protagonismo em nosso estudo. Dessarte, interpretamos as leis, no
contexto de ensino de literatura, como políticas que apontam a necessidade de
descolonizarmos os currículos e as práticas didático-pedagógicas. Com a análise do PNLD
2015 nosso intuito é verificar de que modo e em que medida as editoras demonstram fazer a
mesma interpretação.
21
Podemos afirmar que a adoção dessa perspectiva, ou seja, a ideia de admitir o livro
didático como um “objeto complexo” (BUNZEN, 2005, p. 559) trouxe duas implicações
práticas a nossa pesquisa, as quais dialogam, em maior ou menor grau, com o
“posicionamento de cunho epistemológico e metodológico” (ibidem) reivindicado por
Bunzen. Primeiramente, desprendemo-nos de quaisquer modelos pré-concebidos de educação
intercultural a fim de nos abrir ao aprendizado que as escolhas editoriais identificadas nas
coleções analisadas possam nos proporcionar. Em outras palavras, buscamos nos afastar dos
imperativos de uma “vigilância epistemológica” (BUNZEN, 2005, p. 557) responsável,
com frequência, por apontar somente “defeitos” (p. 558) naquilo que foge a determinados
modelos e conceituações científicas/acadêmicas em prol do reconhecimento dos materiais
escolares como fonte de conhecimento, uma vez que “o trabalho do autor do livro didático
[...]” (o qual tem, não raro, experiência na rede básica de ensino) “não consiste apenas em
reproduzir\transpor as teorias acadêmicas, mas em agir sobre elas, modificando-as”
(BUNZEN, 2005, p. 561). É certo que nos norteamos por uma fundamentação teórica
específica e que, previamente, formulamos hipóteses e elencamos expectativas, contudo, em
se tratando da análise de leis educacionais em processo de implantação, negociação e
consolidação, como o são as leis por nós estudadas, entendemos que o levantamento crítico
23
das propostas didático-pedagógicas de um total dez coleções didáticas pode tanto nos abrir a
novas percepções acerca dos significados e dos efeitos da introdução escolar de conteúdos
representativos da diversidade cultural, quanto indicar caminhos produtivos para se atender,
pedagogicamente, aos saberes requeridos pela recente legislação. Não nos interessa, portanto,
a velha dicotomia do “certo” e “errado”, mas o entendimento das rupturas e das
permanências, das similaridades e das discrepâncias etc. que marcam a inserção das literaturas
afro-brasileira, africanas e indígena realizada por diferentes autores e editoras “assumir tal
posicionamento nos fez procurar não a lógica da totalidade, mas ‘da multiplicidade, das
rupturas e do movimento’ como defende a autora [Signorini (1998:103)]”. Nossa pesquisa
encontra-se, então, mais interessada em regularidades locais (e não universais) e nas relações
contigenciais (e não estáticas)” (BUNZEN, 2005, p. 558).
Como segunda implicação da admissão da complexidade do nosso corpus,
destacamos a necessidade de conjugarmos o estudo dessa transposição didática a uma análise
do processo que denominamos de transposição política, concernente, por sua vez, à
transmutação de demandas dos movimentos sociais em leis oficializadas pelo poder público;
ou, neste caso, em leis educacionais de recorte intercultural. Trata-se, assim, de um
“flashback” para recuperarmos a expressão de Bunzen primordial à compreensão dos
significados das mudanças recentemente instauradas nos livros didáticos nacionais. Dados
como os por nós retirados dos anais do “Seminário Educação e Discriminação dos Negros”,
de 1987, ajudam-nos a perceber que a descolonização da educação, como um todo, e da
educação literária, em específico, insere-se num longo processo de lutas e de negociações,
bem como nos alertam quanto ao protagonismo dos movimentos sociais nessas conquistas.
Anteriormente à etapa de transposição didática dos conteúdos relativos às culturas indígenas
brasileiras, afro-brasileira e africanas para as escolas, observamos uma importante produção e
disseminação de conhecimento conduzida pelos próprios membros dos movimentos negro e
indígena, iniciativas estas que podem ser interpretadas como o embrião das políticas públicas
posteriormente aprovadas. Em outras palavras, partimos da premissa de que
QUESTÃO 18
Observe a imagem.
No dia subsequente à prova da UFU, não havia outro assunto pelos corredores.
Ninguém, afinal, tinha ouvido falar sobre “Legião Negra” ou “jornal A raça”, nem nas
escolas, nem nos cursinhos. Esses comentários bastariam para ilustrar o porquê de a lei
10.639/2003 ter tornado obrigatório o ensino da História e da Cultura da população
afrodescendente no Brasil. As lacunas curriculares, nesse caso, ficam bastante evidentes.
Ademais, a atividade por si só exemplifica parte dos efeitos das leis na educação, visto que
não apenas a UFU, mas outros Exames Vestibulares passaram a cobrar conteúdos
relacionados aos negros e aos indígenas. No entanto, a fala (indignada) de uma aluna em
particular expôs outras nuances do ocorrido e mereceu, ainda mais, a minha atenção. Ela disse
algo como: “eu pesquisei depois da prova e verifiquei que o grupo ‘Legião Negra’ tem a ver
com a Revolução Constitucionalista de 1932, em São Paulo... O que eu não entendo é por
qual razão o professor fulano falou tanto sobre a Revolução e não mencionou nada a respeito
desse movimento! Ao invés de repetir todos os anos o que estamos cansados de saber, ele
deveria ensinar o que a gente não sabe”.
“Ensinar o que não se sabe”. Talvez seja esta a síntese do presente capítulo e, por
que não, a síntese do que pretendem as leis 10.639/2003 e 11.645/2008. Com base nos
subsídios fornecidos pelas teorias pós-coloniais, objetivamos, de certo modo, dar
desdobramento a questões similares às levantadas pela minha aluna adolescente. Contudo, ao
contrário dela, propomos um debate mais amplo sobre o projeto e a organização curricular
nacional em detrimento de questionamentos diretos e específicos sobre a ação de um ou de
outro docente. Trata-se, pois, de reconhecermos que a descolonização da educação aponta
para um problema estrutural (que não é, portanto, nem pontual nem eventual), cujos efeitos
podem ser observados não apenas na formação dada aos alunos do ensino básico, mas,
inclusive, nos cursos de licenciatura responsáveis por formar os educadores afinal, o
professor ao qual a minha aluna se referia optou por não ensinar a história do movimento
negro brasileiro ou, tanto quanto seus alunos, ele mesmo nunca teve acesso a essa versão dos
fatos?8
Por que ensinamos, ano após ano, as mesmas histórias e estórias nas escolas? O que,
historicamente, ocultamos e por que o fazemos? A exemplo da versão única da Revolução
Constitucionalista, onde mais o repertório escolar e os materiais didáticos fabricaram lacunas?
8
A respeito da lei 11.645/2008 e suas implicações e possibilidades no que tange à formação de professores, vide
SARTESCHI (2016).
28
***
si, restrito a determinados espaços e tempos, mas engloba um conjunto amplo de processos e
dinâmicas sócio-históricas, que dizem respeito, por sua vez, tanto às sociedades colonizadoras
quanto às colonizadas.
Hall também esclarece que o “pós-colonial” revela-se útil para entender as relações
de poder estabelecidas com o fim dos Impérios, servindo de ferramenta para se pensar, entre
muitos outros aspectos, “a multiplicação em sociedades antes coloniais das desigualdades
associadas às diferenças coloniais” (HALL, 2003 p. 109). Devido a isso, concepções como a
de “entrelugar” (Bhabha), “desconstrução-reconstrução” (Gramsci) ou “dupla inscrição”
(Derrida) são recordadas em seus ensaios, a fim de reforçar, entre outros pontos, a
compreensão da colonização como um “acontecimento de significância global – pelo qual
seria assinalado não o seu caráter universal e totalizante, mas seu caráter deslocado e
diferenciado” (HALL, 2003 p. 123).
Nos Estudos Literários, as teorias pós-coloniais convergem para o reconhecimento
das novas dinâmicas discursivas e simbólicas associadas ao colonialismo. Elas servem, ao
mesmo tempo, à abordagem crítica das obras literárias produzidas antes, durante e, sobretudo,
após esse contexto de dominação, abarcando desde escritos representativos do poder dos
colonizadores até produções dos colonizados dotadas de “certo grau de diferenciação” ou de
“uma total ruptura com os padrões emanados pela metrópole” (BONNICI, 1998, p. 11-12).
Para tanto, esses estudos postulam uma crítica literária igualmente “pós-colonial”, isto é,
“uma abordagem alternativa para compreender o imperalismo e suas influências” (9), que não
sirva somente à leitura dessas obras, mas a uma releitura crítica de um corpus também inscrito
na lógica colonial, e até então incontestado. Na visão de Mata (2008, p. 28), em alusão a esse
repertório, “pode entender-se o pós-colonial no sentido de uma temporalidade que agencia a
30
sua existência após um processo de descolonização – o que não quer dizer, a priori, tempo de
independência real e de liberdade, como prova a literatura que tem revelado e denunciado a
internalização do outro no pós-independência”.
Ao transpormos esse debate para o contexto do ensino-aprendizagem, é possível
concluir que uma perspectiva pós-colonial de educação pauta-se pelo reconhecimento da
persistência de um legado colonial na esfera escolar, assim como pela necessidade de
formulação de teorias e de práticas didático-pedagógicas que contestem os resquícios de tal
dominação simbólica. Em síntese, ela se configura uma visão de ensino orientada por duas
premissas fundamentais: (i) a Educação em países de passado colonial, em geral, e no
Brasil, em particular encontra-se inscrita, ao longo da História, em uma lógica colonial
sendo, portanto, influenciada pelo colonialismo; e (ii) contestar essa lógica requer tanto novos
repertórios escolares quanto novas ferramentas pedagógicas.
No contexto brasileiro, as leis federais nº 10.639/03 e nº 11.645/08, que, devido a
lutas dos movimentos indígena e negro, tornam obrigatório, em toda a educação básica, o
ensino da História e da Cultura indígena e afro-brasileira (com destaque ao lugar das culturas
africanas na formação da sociedade nacional), servem de exemplo dessa contestação de
heranças coloniais na educação, uma vez que elas questionam a violência simbólica e o
silenciamento sofridos pelas culturas historicamente subalternizadas no Brasil, as quais
foram/são alijadas dos currículos escolares. Embora cerca de 50% da população brasileira se
declare negra ou parda, e ainda que os povos indígenas do país se distribuam entre mais de
200 etnias, nota-se nos repertórios e nos manuais escolares uma acentuada ausência de suas
histórias e estórias, que perdem lugar para uma visão eurocêntrica de organização escolar. É,
pois, à luz de medidas como as leis supracitadas, marcadas pela busca de uma revisão e de
uma ampliação do repertório escolar, de modo a torná-lo mais plural, que conduzimos nossas
reflexões.
Em nossa leitura, o principal aspecto a ser desestabilizado por uma educação
descolonial9 é o eurocentrismo, uma perspectiva de mundo e de cultura que mantém a esfera
9
Há nos Estudos Pós-coloniais o uso frequente da expressão “decolonial”/ “decolonialidade” no lugar de
“descolonial”/ “descolonização”. Mota Neto (2018) explica que “por descolonização se indica um processo de
superação do colonialismo, geralmente associado às lutas anticoloniais no contexto de estados concretos, ao
passo que decolonialidade se refere ao processo que busca transcender historicamente a colonialidade, isso é,
subverter o padrão de poder colonial, que permaneceu mesmo após o fim da situação colonial” (p. 3). Todavia,
para os fins deste trabalho, é pouco relevante essa distinção, visto que ao fazermos referência à “descolonização”
estamos negando, do mesmo modo, a superação do colonialismo, não havendo a necessidade de adoção de outro
conceito/termo. Em nossa argumentação, “descolonial” e “decolonial” operam como sinônimos.
31
10
A dissertação de mestrado de Lima (2004), intitulada “Uma proposta pedagógica do movimento negro no
Brasil: pedagogia interétnica de Salvador, uma ação de combate ao racismo” e defendida junto à Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC) , menciona, para além da “Pedagogia Interétnica”, outras duas propostas
pedagógicas formuladas em diálogo com o movimento negro: a Pedagogia Multirracial, no Rio de Janeiro (1986)
e a Pedagogia Multirracial e Popular do NEN, em Santa Catarina (2001). Pesquisa disponível em
<http://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/86988>. Acesso em <07/01/2019>.
32
Pois bem, chegamos à primeira crítica ao livro didático: índios e negros são
quase sempre enfocados no passado. Falar em índios é falar do passado, e
fazê-lo de uma forma secundária: o índio aparece em função do colonizador.
Mas que passado é este?
E aqui a segunda crítica: não se trata de uma história em progresso, que
acumula e que transforma. É uma história estanque, marcada por eventos,
eventos significativos de uma historiografia basicamente européia (Cf.
Telles, 1987).
Vejamos dois exemplos: poucos livros mencionam a questão da origem dos
povos indígenas no continente americano. Para a maioria dos manuais, "a
presença do índio neste continente não é um problematizada, é um fato
consumado" (Pintoe Myazaki, 1985:170). [...]
Como entender, e aqui apresentamos o segundo exemplo, a data de 1492 ou
1500 como uma descoberta? O continente americano havia sido descoberto e
habitado há milhares de anos atrás, quando as primeiras levas de homens
saíram da Eurásia, passando pelo estreito de Bering e adentrando o
continente americano pelo Norte. [...] quando os europeus aqui chegaram, o
continente americano vivia uma dinâmica própria, que foi substancialmente
alterada com sua chegada. Mas não havia um mundo a ser criado ou à espera
de seu descobridor. O conceito de descoberta só faz sentido se o
entendermos dentro da perspectiva da historiografia européia.
Ao desconsiderar a história do continente, os manuais didáticos erram pela
omissão, redução e simplificação ao não considerar como relevante todo o
processo histórico em curso no continente. Chegamos, assim, a uma terceira
crítica à forma como os livros didáticos tratam os índios. Como isto se dá?
Primeiramente pela forma como estas sociedades são tratadas: geralmente
pela negação de traços culturais considerados significativos: falta de escrita,
falta de governo, falta de tecnologia para lidar com metais, nomadismo, etc.
Um segundo modo de operação deste mecanismo de simplificação é a
apresentação isolada e des-contextualizada de documentos históricos que
falam sobre os índios. Assim, cartas, alvarás, relatos de cronistas e viajantes
são fragmentados, recortados e, porque não dizer, adulterados e apresentados
como evidências, como relatos do passado, sem que sejam fornecidos ao
aluno instrumentos para que ele possa filtrar aquelas informações e
reconhecê-las dentro do contexto no qual elas foram geradas. (GRUPIONI,
1995, pp. 487-488).
nacional à escritora negra maranhense Maria Firmina dos Reis (1835-1917), por exemplo,
considerada a primeira romancista brasileira, parece-nos um caso ilustrativo da ideia de “linha
abissal”, de “zona colonial” e/ou de “produção de ausências”, dado que recuperar seu
percurso nas “histórias [/fontes documentais] da literatura brasileira dos séculos XIX e XX
não é tarefa fácil” (MENDES, 2006, p. 43). De forma análoga, a abordagem escolar de dois
escritores afro-brasileiros canônicos do século XIX, Cruz e Sousa (1861-1898) e Machado de
(1839-1908), revela-se igualmente próxima da dita “zona colonial” do ensino11. Hoje, não são
poucos os trabalhos acadêmicos que refutam a ideia de que ambos teriam permanecido parcial
ou completamente alheios a questões raciais e/ou abolicionistas (vide CUTI, 2009; PINTO,
2014; CHALHOUB & PINTO (Orgs.), 2016; DUARTE, 2007; MAGALHÃES JÚNIOR,
1957). Todavia, percebe-se na apresentação que os manuais escolares brasileiros fazem desses
escritores algumas das implicações dos apagamentos históricos que debatemos até então, pois
tanto a introdução de suas biografias quanto a coletânea de seus textos costumam ocultar
produções atreladas a suas atuações e/ou a seus posicionamentos sociais e políticos, em nome
de uma seleção que ecoe somente pontos de contato com as escolas literárias europeias ou,
mais precisamente, com a literatura portuguesa. Durante a triagem dos livros didáticos que
viriam a compor o nosso corpus de análise, etapa em que tivemos acesso às coleções
aprovadas pelas edições de 2012 e de 2015 do Programa Nacional do Livro Didático
(PNLD), notamos que a introdução de Cruz e Sousa, por exemplo, permanece bastante restrita
à máxima “maior escritor do Simbolismo no Brasil”, sendo poucos os livro que apresentam o
autor como um poeta negro. Vê-se, nos saberes escolares, uma naturalização da ausência da
negritude e de discursos políticos de resistência. Também o modo segundo o qual Lima
Barreto (1881-1922) e sua obra são historicamente abordados no Brasil atesta apagamentos.
Na ocasião de lançamento da biografia mais recente do autor, intitulada Lima Barreto – um
triste visionário (2017), a pesquisadora Lilia Moritz Schwarcz relatou, em distintas ocasiões,
o “imenso branqueamento” por ela notado nas fotografias disponíveis no acervo do escritor:
“Ele definia sua cor como ‘azeitona escura’. Na primeira imagem do manicômio, ele aparece
11
No artigo “A abordagem da temática racial no ensino da literatura canônica: Algumas reflexões”, a
pesquisadora Nara Lasevicius Carreira (2018) aprofunda tal debate, com base, inclusive, na análise das mesmas
coleções por nós estudadas, ou seja, os livros didáticos aprovados pelo PNLD 2015.
36
como branco, na segunda como pardo. Em quatro anos, ele mudou de cor. Como isso é
possível? Essa foi uma questão inclusive para a capa do livro”12.
Conforme afirmamos no início deste capítulo, não se trata de ocorrências restritas à
esfera escolar, mas de casos alinhados a lacunas que se fazem presentes na formação dos
próprios educadores, ou seja, na esfera acadêmica. Prova disso está no fato de que as leis
10.639/2003 e 11.645/2008, ao forçarem mudanças também na estruturação dos cursos de
licenciatura de todo o país, evidenciaram, e continuam evidenciando, a mesma negação
historiográfica no que engloba as literaturas africanas, por exemplo. O relato de Natasha
Magno Francisco dos Santos, estudiosa da obra de Mia Couto e criadora do GELCA - Grupo
de Estudos de Culturas e Literaturas Africanas, do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL)
da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) a saber, um grupo fundado e
composto exclusivamente por estudantes de graduação e de pós-graduação , aponta o
desinteresse do Departamento de Teoria Literária da instituição, à época (meados de 2010),
por essas produções. Em suas palavras, “o mais triste foi perceber que não só nenhum
professor pesquisava diretamente sobre esse assunto, mas que muitos não se interessavam
sobre qualquer produção que viesse do continente africano” (SANTOS, 2018, s/p). Após
intensa luta movida pelo grupo, que recorreu, inclusive, às premissas das leis supracitadas
para justificar e embasar suas reivindicações, ocorreu, em 2016 (isto é, passados seis anos do
surgimento do GELCA), a contratação de uma docente especialista em literaturas africanas.
Depreende-se, pois, que, até então, o instituto não contava com professores aptos a ministrar
parte significativa dos conteúdos prescritos pela lei 10.639/2003, devido, fundamentalmente,
à presença de um abismo simbólico responsável por distanciar as literaturas canônicas de
Língua Portuguesa (brasileira e europeia) das produções lusófonas africanas.
Conclui-se, então, que esse tipo de invisibilidade produzida, que visa a atender
(consciente ou inconscientemente) a um projeto epistemológico e educacional de viés
colonial, é orquestrado, em grande medida, na e pela academia em outras palavras, “o que
não existe é, na verdade, activamente produzido como tal, isto é, como uma alternativa não-
credível ao que existe” (DE SOUSA SANTOS, 2002, p. 246). O pesquisador Mário Augusto
Medeiros da Silva (2011), ao discorrer sobre a invisibilidade sofrida especificamente pela
literatura negra e periférica no Brasil, também afirma que “não apenas a produção,
12
Entrevista: “Um Lima Barreto triste, visionário e ambivalente por Lilia Moritz Schwarcz”. Disponível em
<https://oglobo.globo.com/cultura/livros/um-lima-barreto-triste-visionario-ambivalente-por-lilia-moritz-
schwarcz-1-21514225>. Acesso em <17/08/2018>.
37
distribuição e recepção dessa confecção literária é marginal [...]”, mas “também a avaliação
crítica dessa Literatura é marginalizada” (DA SILVA, 2011, p. 213). Uma rápida busca em
bases de dados nacionais pela fortuna crítica de Carolina Maria de Jesus (1914-1977), por
exemplo, escritora negra que gozou de certo reconhecimento na cena intelectual13, torna ainda
mais atual esse argumento, haja vista os estudos sobre a autora terem ganhado força apenas na
última década, possivelmente impulsionados pela lei 10.639/03. Com base nessas
considerações, é pertinente questionar:
Quando uma professora de inglês, branca, inclui uma obra de Toni Morrison
no roteiro do curso, mas fala sobre ela sem fazer nenhuma referência à raça
ou à etnia, o que isso significa? Já ouvi várias mulheres brancas “se
gabarem” de ter mostrado aos alunos que os escritores e escritoras negros
são tão “bons” quanto os do cânone dos homens brancos, mas elas não
chamam a atenção para a questão da raça. É claro que essa pedagogia não
questiona as parcialidades estabelecidas pelos cânones convencionais (ou,
quem sabe, por todos os cânones). É, ao contrário, mais um tipo de
modificação pró-forma. (HOOKS, p. 55, 2017).
consonância com Aníbal Quijano (2005), pensador peruano que relaciona a “colonialidade”
àquilo de “colonial” que permanece mesmo após a descolonização, que transcende o
colonialismo histórico (QUIJANO, 2005), Mignolo propõe que a “colonialidade” seria, afinal,
o lado obscuro da modernidade, responsável por instituir hierarquias em diferentes setores
sociais, entre elas, para além da hierarquia epistêmica, também uma hierarquia estética, que
“administra os sentidos e molda as sensibilidades ao estabelecer as normas do belo e do
sublime, do que é arte e do que não é, do que será incluído e do que será excluído, do que será
premiado e do que será ignorado” (MIGNOLO, 2017, p. 11). Observam-se, pois, “nós
histórico-estruturais” de opressão que desafiam a ideia de diversidade ao definirem o que
deve ser aceito como universal. Urge, então, a busca por “opções descoloniais”, por
“respostas às inclinações opressivas e imperiais dos ideais europeus modernos projetados para
o mundo não europeu, onde são acionados” (MIGNOLO, 2017, p. 2).
Tendo em vista, portanto, o nosso interesse por situar a diversidade cultural como o
“paradigma da transição” “transição” de uma educação colonial para uma educação pós-
colonial , chegamos aqui à discussão do ponto que mais fundamenta esta seção: o
enfrentamento do eurocentrismo na educação. Para que a diversidade seja o horizonte das
mudanças escolares, o repertório e as narrativas eurocêntricas que historicamente dão forma
ao texto escolar precisam ser colocados em xeque. Recuperando o nosso exemplo de abertura
acerca do apagamento do grupo Legião Negra das narrativas sobre a Revolução
Constitucionalista de 1932, ocorrida em São Paulo, não se preconiza a substituição de uma
versão da história por outra, mas sim um movimento de denúncia e de recusa de lacunas e de
inexistências socioculturais. Vê-se, inclusive, nas próprias diretrizes de implementação da lei
10.639/2003 a explicitação dessa perspectiva: “é importante destacar que não se trata de
mudar um foco etnocêntrico marcadamente de raiz europeia por um africano, mas de ampliar
o foco dos currículos escolares para a diversidade cultural, racial, social e econômica
40
Sob esse prisma, enfatizamos o eurocentrismo na educação como uma ideologia que
remete à mediação colonial das relações sociais e de poder que determinam hierarquicamente
os currículos, condicionando-os a uma narrativa única. Os conteúdos e os cânones escolares
são resultado, por conseguinte, dessas dinâmicas, não devendo ser encarados como “coisas”,
como simples “listas” de saberes, mas como parte constituinte de um complexo sistema de
regulação (SILVA, 2017).
No Brasil, o pesquisador da área de educação Tomaz Tadeu Silva tem aprofundado o
debate sobre as relações estabelecidas entre currículo, poder e identidades sociais. Pensando o
currículo como uma forma de representação “representação” entendida mais como a
produção/a validação da “realidade”, e menos como reflexo do “real” , o autor explicita
que:
É simples concluir, a partir dos excertos, que em um país marcado por intensas
desigualdades, as representações dos diferentes grupos sociais, no contexto educacional,
sofrerão das mesmas disparidades. Porém, ao encontro da forma pela qual interpretamos o
papel a ser exercido pelas leis 10.639/2003 e 11.645/2008, as conclusões de Silva (2017)
indicam a possibilidade de confrontação de tal predileção por determinados grupos
socioculturais em detrimento de outros: “é através das narrativas, entre outros processos, que
o poder age para fixar as identidades dos grupos sociais subalternos como ‘outro’. Mas é
também através das narrativas que esses grupos podem afirmar identidades que sejam
diferentes daquelas fixadas pelas narrativas hegemônicas (SAID, 1993: XII)” (SILVA, 2017,
p. 198).
Tomemos como exemplo as potencialidades da introdução das literaturas indígenas
nos livros didáticos de literatura. Para além da positiva ampliação da experiência estética dos
estudantes, elas podem servir como contraponto às narrativas canônicas do “Quinhentismo”
(como veremos posteriormente), escola literária que foi/é responsável por fixar, em grande
medida, a ideia de passividade e animalidade usualmente associada aos povos indígenas.
Sobre tais “narrativas do descobrimento”, cabe igualmente assinalar:
248). Nota-se, inclusive, que esse movimento de adição impõe, necessariamente, movimentos
de desmistificação do cânone literário, pois requer, por exemplo, a contestação do caráter
meramente descritivo de documentos históricos, como as cartas de Pero Vaz de Caminha.
Assim, em consonância com a problemática da contingência da diferença cultural para o
discurso histórico, questão profundamente discutida por Bhabha (2007), entendemos que
***
43
14
Artigos disponível em: <http://www.cadernosdeletras.uff.br/index.php/cadernosdeletras/article/view/494>.
Acesso em 01/02/2019.
44
15
Fonte: <http://site.anpuh.org/index.php/2015-01-20-00-01-55/noticias2/noticias-destaque/item/3140-nota-da-
associacao-nacional-de-historia-sobre-a-base-nacional-comum-curricular-bncc> e
<http://anphlac.fflch.usp.br/noticia_49>. Acesso em <11/06/2017>.
45
ANO
ESCOLAR
BNCC 1 (2015) BNCC 2 (2016)
LILP1MOA001 - “Ler produções literárias
de autores da literatura brasileira
UNIDADE MANTIDA
contemporânea, percebendo a literatura
(EM11LI01I)
como produção historicamente situada e,
ainda assim, atemporal e universal”.
UNIDADE PONTUALMENTE
LILP1MOA002 - “Reconhecer, em ALTERADA
produções literárias de autores da literatura EM11LI0: “Reconhecer, em produções
brasileira, o diálogo com questões literárias de autores da literatura brasileira, o
contemporâneas (principalmente do jovem), diálogo com questões contemporâneas
em uma perspectiva de leitura comparativa (principalmente do jovem), em uma
entre o local e o global, reconhecendo a perspectiva de leitura comparativa entre o
literatura como uma forma de conhecimento local e o global, reconhecendo
de si e do mundo”. compreendendo que a literatura como é uma
forma de conhecimento de si e do mundo”.
LILP1MOA0003: “Interpretar e analisar
1º ANO obras africanas de língua portuguesa, bem
como a literatura indígena, reconhecendo a UNIDADE EXCLUÍDA
literatura como lugar de encontro de
multiculturalidades”.
UNIDADE PONTUALMENTE
ALTERADA
LILP2MOA001 - “Ler produções literárias
de autores da literatura brasileira dos EM12LI01 - “Ler produções literárias de
séculos XX e XIX, em diálogo com obras autores da literatura brasileira dos séculos
contemporâneas, percebendo a literatura XX e XIX, em diálogo com obras
como produção historicamente situada e, contemporâneas, percebendo a literatura
ainda assim, atemporal e universal”. como produção historicamente situada e,
ainda assim, atemporal e universal”.
EM12LI02 - “Compreender a presença do
2º ANO cânone ocidental, principalmente da
literatura portuguesa, no processo de
constituição da literatura brasileira, a
UNIDADE INEXISTENTE
partir da leitura de autores dessas
literaturas, percebendo assimilações e
rupturas, na busca de uma identidade
nacional”.
UNIDADE PONTUALMENTE
LILP3MOA001 - “Ler produções literárias ALTERADA
de autores da literatura brasileira dos EM13LI01 - “Ler produções literárias de
séculos XVIII, XVII e XVI, em diálogo com autores da literatura brasileira dos séculos
obras contemporâneas, percebendo a XVIII, XVII e XVI, em diálogo com obras
literatura como produção historicamente contemporâneas, percebendo a literatura
situada e, ainda assim, atemporal e como produção historicamente situada e,
universal”. ainda assim, atemporal e universal”.
3º ANO EM13LI02 - “Compreender a presença do
cânone ocidental, principalmente da
literatura portuguesa, no processo de
constituição da literatura brasileira, a
UNIDADE INEXISTENTE
partir da leitura de autores dessas
literaturas, percebendo assimilações e
rupturas”.
Tabela 1. Repertórios literários da BNCC 1 e BNCC 2. (BRASIL/MEC, 2015, pp.61-66;
BRASIL/MEC, 2016, p. 528-531).
46
BNCC 3 (2018)
EM13LP47 - Analisar assimilações e rupturas no processo de constituição da literatura
brasileira e ao longo de sua trajetória, por meio da leitura e análise de obras fundamentais do
cânone ocidental, em especial da literatura portuguesa, para perceber a historicidade de
matrizes e procedimentos estéticos.
EM13LP50 - Selecionar obras do repertório artístico-literário contemporâneo à disposição
segundo suas predileções, de modo a constituir um acervo pessoal e dele se apropriar para se
inserir e intervir com autonomia e criticidade no meio cultural.
EM13LP51 - Analisar obras significativas da literatura brasileira e da literatura de outros
países e povos, em especial a portuguesa, a indígena, a africana e a latino-americana, com
base em ferramentas da crítica literária (estrutura da composição, estilo, aspectos discursivos),
considerando o contexto de produção (visões de mundo, diálogos com outros textos, inserções
em movimentos estéticos e culturais etc.) e o modo como elas dialogam com o presente.
Tabela 2. Repertórios literários da versão final da BNCC. (BRASIL/MEC, 2018, pp. 515-516).
***
48
Não nos causa admiração, portanto, que determinados grupos sociais afirmem-se
contrários às premissas dessas e de outras leis e projetos atentos à pluralidade cultural na
educação. As “opções descoloniais” no contexto escolar estão longe de alinhar-se a uma
tímida e mínima concessão de espaço nos currículos, pois preconizam uma mudança
49
16
“Procuraremos explorar esta afirmação sustentando que em Freire e Fals Borda a concepção de pedagogia
decolonial: a) requer educadores subversivos; b) parte de uma hipótese de contexto; c) valoriza as memórias
coletivas dos movimentos de resistência; d) está em busca de outras coordenadas epistemológicas; e) afirma-se
como uma utopia política” (MOTA NETO, 2018, p. 9).
50
as potencialidades do saber local e das vivências dos subalternizados. É evidente que Mota
Neto (2018) esmiúça o contexto histórico em que essas pedagogias foram pensadas, e, por
isso, não sugere uma equivocada e precipitada equivalência entre as teorias freireanas e as
teorias pós-coloniais/decoloniais. Trata-se, nesse caso, de tomá-las como inspiração, como
fonte.
Das leituras que realizamos da obra de Paulo Freire, consideramos especialmente
interesses e ilustrativos, entre tantas possibilidades de diálogo, os escritos relacionados à sua
experiência em países africanos de Língua Portuguesa. Em Cartas à Guiné-Bissau: registros
de uma experiência em processo (1978) tem-se o registro pessoal de seu trabalho na
construção de modelos e de políticas de alfabetização, principalmente de adultos, em Guiné-
Bissau, logo após a independência (1976 a 1977). Não sem razão, o tema da colonização
comparece de forma mais explícita e frequente do que em outros textos do autor.
Nos textos que precedem as cartas trocadas pelo autor com a Comissão
Coordenadora dos projetos de alfabetização em Guiné-Bissau, Freire enfatiza o desafio
deixado pela herança colonial no sistema geral de ensino do país, cujo objetivo principal fora
a “desafricanização” e a educação antidemocrática, não universal (FREIRE, 1978, p. 15). Para
superá-las, havia a necessidade de promover, em sua visão, uma “nova prática educativa”,
uma “transformação radical”, fundamentada, necessariamente, em uma “clareza política”,
pois o colonialismo, na condição de ideologia, não poderia ser vencido por meio de escolhas
“neutras”; segundo ele, a conjuntura social negava a possibilidade de qualquer neutralidade:
“sabíamos que iríamos trabalhar não com intelectuais ‘frios’ e ‘objetivos’ ou com
especialistas ‘neutros’, mas com militantes engajados no esforço sério de reconstrução de seu
país” (p. 10). Nesse sentido, ele assinala que também sua comitiva deveria engajar-se, prestar
uma colaboração militante, pois só assim nasceria um projeto educacional pertinente à
realidade social de Guiné-Bissau (p. 11)17.
Ao longo do detalhamento das ações desenvolvidas no país, Paulo Freire faz
referências aos pensamentos Frantz Fanon e Albert Memmi, de um lado, e de Aristides
Pereira e Amílcar Cabral, de outro, sobretudo para ressaltar a necessidade de se instaurar,
naquele momento, um movimento de descolonização do pensamento; de “descolonização das
17
Paulo Freire esclarece que a realidade social de Guiné-Bissau exigia uma articulação entre educação e
trabalho, tendo em vista a reconstrução nacional. Desse modo, o autor dedica-se a diferenciar, em diferentes
passagens do livro, a ideia de trabalho preconizada pelo capitalismo, ancorada na exploração e no lucro, do
conceito de trabalho com finalidade social, este dotado de consciência política e, portanto, favorável ao projeto
educacional pretendido por ele e sua comitiva.
51
Nas cartas que seguem a essa introdução, é na “Carta n° 3 a equipe (5.1.1976)” que
se reitera o necessário vínculo entre “clareza política”, isto é, “permanente vigilância no
sentido da preservação da coerência entre nossa prática e o projeto da nova sociedade”
(FREIRE, 1978, p. 113), e escolha do “conteúdo programático” e da organização curricular
(p. 111-131). Embora Paulo Freire refira-se a um contexto bastante específico, a persistência
da ideologia colonial nos currículos brasileiros permite firmar algumas pontes de reflexão.
Suas proposições e indagações acerca da descolonização stricto sensu da educação de Guiné-
Bissau serve-nos, em certa medida, a esta que pode ser entendida como uma segunda
descolonização a ser empreendida na educação brasileira. É certo que não se trata mais, no
Brasil, da busca por uma “reconstrução do nacional”, como descreve Freire a respeito de
Guiné-Bissau. Por outro lado, a “clareza política” e o “conteúdo programático” que orientam
as leis 10.639/2003 e 11.645/2008 associam-se, ainda hoje, a uma luta contra as heranças do
ensino colonial e do racismo delas consequentes. Por isso, soa bastante contemporânea a
afirmação de Freire de que os estudantes deveriam estudar, na altura, a “sua história, a
história da resistência de seu povo ao invasor, a da luta por sua libertação que lhe devolveu o
52
direito de fazer sua história, e não a história dos reis de Portugal e das intrigas da Corte”.
Passados quase 200 anos da data da nossa Independência, é esta, precisamente, a narrativa
que impera nos materiais didáticos brasileiros.
Outras obras de Paulo Freire abordam, mesmo que implicitamente, a questão da
descolonização do pensamento. Em Pedagogia do oprimido, publicado em 1968, no qual a
figura do “colonizado” dá lugar ao conceito de “oprimido” ainda que pensadores
anticolonialistas, como os supracitados Fanon e Memmi, também sejam acionados , o
debate sobre “invasão cultural”, por exemplo, sobretudo no que concerne à composição
curricular, também parece apontar caminhos para expandirmos a reflexão sobre os princípios
que devem reger a educação de(s)colonial. Todavia, limitamo-nos a Cartas à Guiné Bissau
(1978), pois nosso intuito é apenas assinalar e ilustrar, brevemente, parte dos contributos dos
trabalhos do pesquisador brasileiro às recentes tentativas de definição daquela que vem sendo
entendida como uma educação de viés pós-colonial, bem como ressaltar o caráter político
dessa “nova” (talvez não tão nova) concepção de ensino e de currículo.
A título de fechamento, cabe recuperar a ressalva que bell hooks (2017) faz a
respeito dos evidentes pontos comuns entre tais discussões sobre descolonização simbólica e a
insistência de Freire na “conscientização”. Em suas palavras, “repetidamente, Freire tem de
lembrar os leitores de que ele nunca falou da conscientização como um fim em si, mas sempre
na medida em que ela se soma a uma práxis significativa” (HOOKS, 2017, p. 67); ou seja, é
necessário ter em mente que “mudanças de atitudes” (ou, no âmbito desta pesquisa, mudanças
de práticas educativas) figuram um “importante estágio inicial de transformação”; o começo,
e não o fim, do “processo político descolonizador” (ibidem).
Se Tomaz Tadeu Silva (2001) acerta ao anunciar que “é por meio do currículo,
concebido como elemento discursivo da política educacional, que os diferentes grupos
sociais, especialmente os dominantes, expressam sua visão de mundo, seu projeto social, sua
‘verdade’” (pp. 10-11), as mudanças legislativas de 2003 e 2008, consequentes de ações dos
movimentos sociais, surgem como reivindicadoras de “verdades”, no plural, e dotadas de uma
“clareza política” no que diz respeito à coexistência e à codependência da ausência da
pluralidade cultural e da permanência do condicionamento colonial na educação.
53
***
As lutas contra o racismo passam geralmente por duas formas de ação: uma
discursiva e teórica, compreendendo os discursos produzidos pelos
54
autodidatismo que caracteriza a formação das militâncias quanto nas lutas pelo acesso ao
ensino formal, ações de resistência e de enfrentamento ao colonialismo no campo do saber.
Antes, portanto, de ocupar o Congresso Nacional, propostas de descolonização da educação já
permeavam os discursos e as práticas de negros e de indígenas. No caso destes, trata-se de
respostas, sobretudo, à imposição da violenta educação ora missionária ora integracionista
iniciada já no século XVI; no caso daqueles, observam-se, preponderantemente,
questionamentos às falácias da Abolição de 1888, que não tornou os negros livres do
analfabetismo e da falta de escolaridade.
Embora Munanga identifique no movimento negro a existência de “realizações
concretas mensuráveis” (1996, p. 86), independentemente da mediação do Estado, a
contraposição de ação discursiva e ação prática é apresentada em seu texto no sentido de
discutir qual das duas ações traria mais respostas e resultados efetivos em um cenário de
muitas incertezas e de muitos receios (seu texto data 1996), em um momento em que as
reflexões sobre a abertura política e a possibilidade de diálogo entre militantes e Estado no
Brasil eram ainda pouco maduras. O intervalo entre a data de publicação de seu livro e a
conjuntura que circunda a escrita desta tese de Doutorado justifica, pois, nossa ênfase na
distinção entre ações práticas formais e ações práticas informais.
Em suma, entendemos, portanto, que ambas as leis, na condição, por sua vez, de
ações práticas formais de combate ao racismo e ao preconceito étnico (e, por que não, de
combate à “colonialidade do saber”), são precedidas de ricas ações práticas informais
orquestradas pelos movimentos sociais. Assim, quando Munanga afirma, no excerto
supracitado, que “nada impede os setores privados e organizações não-governamentais de
desenvolver programas e atividades anti-racistas”, ele chama a atenção para um tipo de ação
prática bastante significativa no combate à discriminação racial (e, a nosso ver, também
étnica) nas escolas, razão pela qual nos inspiramos em suas categorizações para elaborarmos o
quadro a seguir:
56
Quadro 1: Esferas, ações e movimentos de transposição que integram as lutas e as políticas contra a
discriminação racial e étnica (categorias adaptadas de MUNANGA, 1996 - categorias de Munanga marcadas
com aspas e nossas adaptações/adições acompanhadas de asterisco [*]).
18
Cabe esclarecer que, para os fins desta pesquisa, o termo “transposição didática” remete apenas ao princípio
geral de reconfiguração e de realocação de saberes para a esfera escolar, não estando associado a nenhuma
conceituação em particular. Tendo em vista o objetivo de analisar os efeitos das leis 10.639/2003 e 11.645/2008
nos livros didáticos de Português, o termo nos serve, sobretudo, como descritor dos processos de
recontextualização e de apropriação pelos quais passam os textos legais para que seus pressupostos e imposições
façam-se presentes nos textos (/materiais) escolares. Dessarte, interessa-nos mais o princípio geral ao qual a
expressão se refere do que seus pormenores conceituais. Para se ter acesso a uma revisão e discussão
aprofundada do conceito, sugerimos o trabalho De Oliveira (2013).
57
19
Os Projetos de Lei de “ações compensatórias”, visando à autonomia social do negro, de autoria de Abdias de
Nascimento, versam não apenas sobre Educação, mas também sobre medidas para a esfera do Trabalho.
Destarte, tais proposições são apontadas, por muitos pesquisadores, como a base de diversas políticas públicas
direcionadas à população negra nas últimas décadas.
20
Tanto no documento anexado por Da Conceição (2011, pp. 100-103) quanto no portal do Senado não é
possível localizar os textos que fundamentam, de forma mais detalhada, o PL do Senado 75/97, de modo
consideramos produtivo dar atenção ao PL anterior e de mesmo teor submetido à Câmara dos Deputados em
1983.
60
página oficial de Abdias Nascimento na internet21, localizamos o texto dessa primeira versão
da proposta, a qual inclui outras medidas educacionais que não apenas a inclusão do ensino de
línguas africanas. Nelas, percebe-se, inclusive, bastante aproximação daquilo que vieram a ser
as orientações regulatórias da lei 10.639/2003, tais como a necessidade de revisão de
materiais didáticos e o incentivo da abordagem do tema por parte das universidades:
[...]
Art. 8º Ministério da Educação e Cultura, bem como as Secretarias Estaduais
e Municipais de Educação, conjuntamente com representantes das entidades
negras e com intelectuais negros comprovadamente engajados no estudo das
matérias, estudarão e implementarão modificações nos currículos escolares e
acadêmicos em todos os níveis (primário, secundário, superior e de pós-
graduação) no sentido de:
I - Incorporar ao conteúdo dos cursos de História Brasileira o ensino das
contribuições positivas dos africanos e seus descendentes à civilização
brasileira, sua resistência contra a escravidão, sua organização e ação (a
nível social, econômica e político) através dos quilombos, sua luta contra o
racismo no período pós-abolição;
II - Incorporar ao conteúdo dos cursos sobre História Geral o ensino das
contribuições positivas das civilizações africanas, particularmente seus
avanços tecnológicos e culturais antes da invasão européia do continente
africano;
III - Incorporar ao conteúdo dos cursos optativos de estudos religiosos o
ensino dos conceitos espirituais, filosóficos e epistemológicos das religiões
de origem africana (candomblé, umbanda, macumba, xangô, tambor de
minas, batuque, etc.);
IV - Eliminar de todos os currículos referências as africano como “um povo
apto para a escravidão”, “submisso” e outras qualificações pejorativas;
V - Eliminar a utilização de cartilhas ou livros escolares que apresentem o
negro de forma preconceituosa ou estereotipada;
VI - Incorporar Material de ensino primário e secundário a apresentação
gráfica da família negra de maneira que a criança negra venha a se ver, a si
mesma e à sua família, retratada de maneira igualmente positiva àquela em
que se vê retratada a criança branca;
VII - Agregar ao ensino das línguas estrangeiras européias, em todos os
níveis em que estas são ensinadas, o ensino de línguas africanas (yoruba ou
Kriwahili) em regime opcional;
VIII - Incentivar e apoiar a criação de Departamentos, Centro ou Instituto de
Estudos e/ou Pesquisas Africanos e Afro-Brasileiros, como parte integral e
normal da estrutura universitária, particularmente nas universidades federais
e estaduais.
§ 1º As modificações de currículo aplicar-se-ão, obrigatoriamente, tanto no
ensino público quanto no ensino particular, em todos os níveis.
(BRASIL. Congresso Nacional - PL 1332/1983, s/p, 1983).
21
Disponível em <http://www.abdias.com.br/atuacao_parlamentar/deputado_lei.htm>. Acesso em
<19/11/2018>.
61
tempo, de modo que a preocupação com a alteração dos currículos, percebida nos documentos
supracitados, não figura como primeira preocupação descolonial do movimento no campo da
educação, mas ao contrário: antes de postular a necessidade de descolonização dos saberes
escolares, era preciso enfrentar as nuances de uma legislação de matriz colonial que, alinhada
à conjuntura socioeconômica desfavorável do pós-abolição, dificultava a integração dos
negros ao sistema escolar; em suma, antes de descolonizar os currículos, era preciso
descolonizar os portões e os muros das escolas.
Não é exagerado afirmar, portanto, que vigorou, especialmente no início do século
XX, uma luta primeira pela descolonização do acesso à educação escolar formal. O estudo de
Marcus Vinicius da Fonseca (2001) sobre “as primeiras práticas educacionais com
características modernas em relação aos negros no Brasil”, centrado no modo pelo qual era
tratada a educação dos negros durante a vigência da Lei do Ventre Livre (1871-1888), chama
a atenção, a nosso ver, a um aspecto produtivo para se refletir também sobre o cenário do
acesso à escola no período pós-abolição: a (conveniente e reincidente) inclusão da educação
do negro no âmbito do direito comum. Seu artigo aponta os “asilos agrícolas”, fundados entre
1869 e 1873 e distribuídos em diferentes estados do país (Piauí, Pará, Pernambuco, entre
outros), como instituições de destaque nesse período, visto que tinham entre seus objetivos
oferecer formação escolar e técnica aos “ingênuos” (filhos de escravas nascidos livres). O
autor esclarece, porém, que tais asilos sofreram um recuo em 1879 devido à necessidade de
contenção de gastos estatais e aos conflitos de interesse envolvendo os ex-senhores dessas
crianças, o que impediu um funcionamento sólido até a Abolição. É, pois, nesse momento,
que surge a tendência de encarar os problemas das crianças descendentes de escravos como
um problema da “infância desamparada” (FONSECA, 2001, p. 22), transferindo-os para o
direito comum, que lhe negava suas particularidades e favorecia a exploração por parte dos
senhores de suas mães. A leitura que Da Silva & Araújo (2005) fazem da “Reforma de
Rivadávia Corrêa”, de 1911, endossa a ideia de que direito comum operou, em diferentes
momentos, como mecanismo sutil de perpetuação da “vantagem competitiva das elites” e de
“preservação do status quo”:
Assim como ter de provar que eram livres, durante a vigência da escravidão,
diversos outros mecanismos foram acionados para dificultar o ingresso e a
permanência de alunos negros na escola, mesmo após o fim da escravidão.
24
É interessante mencionar que a história de uma imprensa tida como “de negros para negros”, em especial da
imprensa negra paulista – haja vista a concentração e a consolidação do movimento negro no estado de São
Paulo –, abrange, usualmente, o período de 1915 e 1963 e que, de modo geral, atribuem-se a esse recorte
temporal três fases: de 1915 a 1923, quando os jornais serviam, sobretudo, à divulgação dos eventos e da vida
social e cultural dos grêmios e das associações responsáveis pelas publicações; de 1924 a 1937, fase de ápice da
imprensa negra, em que os discursos contestatórios tornam-se mais diretos e as reivindicações do movimento
ganham força; e, por fim, após um período de silêncio e inatividade imposto pela ditadura, uma etapa de
reorganização em prol de promover a união dos negros, que vai de 1945 a 1963 (FERRARA, 1985; BASTIDE,
1972). Trata-se de uma classificação que visa apenas destacar os movimentos de publicação mais significativos,
dado que acervos como o “Portal da Imprensa Negra Paulista da Universidade de São Paulo”
<http://biton.uspnet.usp.br/imprensanegra> disponibilizam exemplares de jornais publicados até mesmo em
1903 (como o O Baluarte, de Campinas-SP). Outros acervos digitais da imprensa negra: “Catálogo da
Imprensa Negra (1903-1963)”, da Unesp: <http://www.assis.unesp.br/#!/cedap---centro-de-documentacao-e-
apoio-a-pesquisa/acervo-do-cedap/catalogo-da-imprensa-negra/>; “Arquivo Público do Estado de São Paulo”:
<http://www.arquivoestado.sp.gov.br/site/acervo/repositorio_digital/jornais_revistas->.
25
A respeito dos meios de alfabetização dos negros que atuavam nesses periódicos, Balsalobre (2009a) explica
que José Correia Leite afirma não ter frequentado, de fato, a escola formal, e atribui sua história de aprendizado
a “um autodidatismo” e às “aulas de português que o próprio Jayme de Aguiar [outro redator do periódico] lhe
ministrava” (BALSALOBRE, 2009a, p. 228). Um fato curioso de seu relato, também ressaltado por Balsalobre,
refere-se a sua menção à trajetória do militante Vicente Ferreira, que, apesar de reconhecido como exímio
orador, era também semi-analfabeto, de modo que ele ditava a outros redatores do O Clarim d’Alvorada os
textos a serem assinados com seu nome (p. 229).
64
(i)
Esta antithese completa de tudo o que é orgânica tem como cousa principal o
analphabetismo que predomina em mais de dois terço de tão infeliz raça. (O
Alfinete. Ano I, número 3. Setembro de 1918. apud BALSALOBRE, 2009a,
p. 231).
(ii)
Aos leitores
Digam o que quizerem, mas é uma verdade, estamos convencidos que a
maioria dos nossos homens de cor, pouco ou nada fazem para sahirem do
triste estado de decadencia em que vivem! É lastimável! Nós precisamos
unirmo-nos, porque é da união que nasce a força.
Empunhando o nosso estandarte em pról d’um idéal elevado, como seja: o
combate ao Analphabetismo, essa praga que nos fazem mais escravos, do
26
A pesquisadora desenvolve suas pesquisas na área de Linguística Histórica.
27
No contexto de análise de exemplares da Imprensa Negra, consideramos pertinentes as seguintes observações:
“Antes de passarmos ao exame dessas fontes, gostaríamos de expressar nossa preocupação quanto às formas de
tratar a imprensa negra da época. Embora importante no que se refere à difusão de novas idéias, ela tinha um
espaço de circulação limitado. Não se pode esquecer que ela se veiculava entre os poucos que eram alfabetizados
na população negra brasileira. Ou seja, não se destinava à massa mas àqueles que tinham em seus currículos uma
história, pequena que fosse, de escolarização (Gonçalves, 1997). Entretanto, junto a muitos desses reunia-se
‘gente sem estudo para ouvir as notícias’. ‘Avó, pai sem leitura, comprava o jornal, para que os netos, os filhos
lessem para eles’, conta Antunes Cunha (2000)”. (GONÇALVES; SILVA, 2000, pp. 140-141).
65
que quando o Brazil era uma feitoria; é que não recuamos perante os ataques
e zombarias dos pessimistas e dos que vivem sómente para lançar a
desharmonia no seio da nossa classe. Vamos, meus amigos, um pouco de
bôa vontade, porque combater o Analphabetismo é dever de honra de todo
do brazileiro. (O Alfinete. Ano I, número 8. Março de 1919. apud
BALSALOBRE, 2009b, p. 15).
(iii)
Para nós vencermos essa difficuldade, precisamos trazer os livros didacticos
da nossa terra na dextra e na outra os utensílios do trabalho que representam
os formidaveis progressos do nosso glorioso estado de S. Paulo, expoente
maximo da União. (O Clarim d’Alvorada. Ano I, número 1. Fevereiro de
1928. apud BALSALOBRE, 2009b, p. 16).
(iv)
O negro para o negro
Si há quem pense que o negro ainda não tratou da sua educação, e para tal é
necessário o apoio de gregos e troyanos: nós outros achamos que se torna
preciso antes de qualquer ajuda tratarmos da nossa UNIÃO, para evitarmos
as innumeras divergências que por certo surgirão: isto é o que tem
acontecido até a data presente. (O Clarim d’Alvorada. Ano I, número 6.
Julho de 1928. apud BALSALOBRE, 2009b, p. 27).
(v)
Educação
Educação corresponde a um conjunto de princípios de ordem social, em que
impera a delicadeza, a gentileza, a civilidade. (...)
Assim, saibam as mães dirigir seus filhos: ensinem-lhes o caminho do Bem e
da Justiça: Dêm-lhes exemplos salutares e, estamos certos, amanhan tereis o
homem de côr, a nova geração de que necessitaes!
O exemplo dos Paes é a maior força que afecta o espirito da criança. (O
Clarim d’Alvorada. Ano I, número 5. Junho de 1928. apud
BALSALOBRE, 2009b, p. 27).
sociais, com mais afinco do que o observado em O Alfinete ¾ “com relação à imprensa negra
paulista, ela passou a ser militante com O Clarim d’Alvorada. Antes os jornais existiam para
comunicar assuntos especificamente sociais, como batizado, casamento, falecimento e alguns
trabalhos literários” (LEITE apud CUTI, 1992, p. 19). Finalmente, no que tange ao excerto v,
chama a atenção o papel atribuído à família na educação do negro, ou seja, às ações práticas
informais a serem concretizadas pelos pais. É interessante notar que se apresenta nessa
passagem uma concepção de educação baseada em regras sociais de comportamento
(“gentileza”, “delicadeza” e “civilidade”). Se pensada conjuntamente com a responsabilidade
imputada aos negros no excerto ii, por exemplo (“a maioria dos nossos homens de cor, pouco
ou nada fazem para sahirem do triste estado de decadencia em que vivem! É lastimável!”),
percebe-se que, na primeira metade do século XX, a educação do negro era entendida como
um problema a ser resolvido pelos negros, e não, ainda, pelo Estado, seja pela acentuada
marginalização sofrida pelo grupo, seja pela impossibilidade de se aproximar dos poderes
públicos. No plano discursivo, a segunda fase do movimento negro, iniciada em 1940, começa
a esboçar um tom mais crítico frente ao papel do Estado, ensaiando um posicionamento que
se torna significativo somente a partir da década de 1970, com o início dos debates sobre a
redemocratização do país e, por conseguinte, sobre o papel da educação pública de modo
geral.
Não há quase referência [no início do século XX] quanto à educação como
um dever do Estado e direito das famílias. As entidades invertem a questão.
A educação aparece como uma obrigação da família. A crítica ao descaso do
governo para com a educação dos negros aparece na mesma proporção em
que o protesto racial endurece, ou seja, se radicaliza. (GONÇALVES &
SILVA, 2000, p. 143).
movimento negro tem recordado as diferentes organizações negras também a partir de seu
papel na educação popular, e, portanto, informal, dos militantes. Mencionaremos
especialmente suas organizações escolares, uma vez que “por intermédio dos jornais negros
da época, têm-se informações importantes quanto à existência de escolas mantidas
exclusivamente pelas entidades negras, sem qualquer subvenção do Estado” (GONÇALVES
& SILVA, 2000, p. 141).
Nas décadas de 1920 e de 1930, ganham notoriedade, respectivamente, os cursos
ofertados pelo Centro Cívico Palmares (1926-1929) e pela Frente Negra Brasileira (FNB;
1931-1938). Dotadas de escolas próprias, ambas situadas na cidade de São Paulo (SP), as
entidades ofereciam, para além de cursos de alfabetização, outras disciplinas escolares, como
história e geografia, e, no segundo caso, também aulas de música e de inglês (DOMINGUES,
2008); observa-se, assim, que as iniciativas educacionais mostram-se como um ponto de
continuidade entre a primeira e a segunda entidade. No que tange à década de 1940, têm
especial destaque as atividades do Teatro Experimental do Negro (TEN), fundado por Abdias
Nascimento em 1944, na cidade do Rio de Janeiro. Fazendo uso das dependências da sede da
União Nacional dos Estudantes (UNE), o TEN assumia “o teatro como veículo poderoso de
educação popular” (RODRIGUES apud ROMÃO, 2005, p. 125), conforme explica Ironides
Rodrigues, então responsável pelo “extenso” curso de alfabetização ministrado pelo grupo
teatral. Segundo ele, no TEN, conteúdos de Português, História, Aritmética e Educação Moral
e Cívica eram articulados “a noções de História e Evolução do Teatro Universal”, cujo recorte
abarcava o folclore, bem como “façanhas e lendas” da cultura afro-brasileira (ibidem). Por
fim, cabe assinalar que, a despeito da suma importância das iniciativas das três organizações
(Centro Cívico Palmares, FNB e TEN), elas não se constituem únicas, mas, ao contrário, se
somam a outras ocorrências similares:
28
Embora o foco da nossa discussão seja principalmente o século XX, o trabalho de Cruz (2005) soma a
algumas das ações por nós mencionadas iniciativas datadas também no século XIX: “No que diz respeito ao
esforço específico do grupo em se apropriar dos saberes formais exigidos socialmente, mesmo quando as
políticas públicas não os contemplavam, fica patente a criação de escolas pelos próprios negros. Ainda se dispõe
de poucos registros históricos dessas experiências, embora tenham existido. Alguns trabalhos levantaram
informações sobre o Colégio Perseverança ou Cesarino, primeiro colégio feminino fundado em Campinas, no
ano de 1860, e o Colégio São Benedito, criado em Campinas, em 1902, para alfabetizar os filhos dos homens de
cor da cidade (MACIEL, 1997; BARBOSA, 1997; PEREIRA, 1999); ou aulas públicas oferecidas pela
irmandade de São Benedito até 1821, em São Luís do Maranhão (MORAES, 1995). Outras escolas são apenas
citadas em alguns trabalhos, a exemplo da Escola Primária no Clube Negro Flor de Maio de São Carlos (SP), a
Escola de Ferroviários de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, e a promoção de cursos de alfabetização, de curso
primário regular e de um curso preparatório para o ginásio criado pela Frente Negra Brasileira, em São Paulo
(PINTO, 1993; CUNHA JR. 1996; BARBOSA, 1997). Há também registro de uma escola criada pelo negro
Cosme, no Quilombo da Fazenda Lagoa-Amarela, em Chapadinha, no Estado do Maranhão, para o ensino da
leitura e escrita para os escravos aquilombados (CUNHA, 1999, p. 81)”. (CRUZ, 2005, p. 28).
69
29
Disponível em <https://movimentonegrounificadoba.files.wordpress.com/2013/10/carta-de-princc3adpios-do-
movimento-negro-unificado.doc>. Acesso em <12/12/2018>.
70
(DOMINGUES, 2008, p. 113). Na leitura que Gonçalves & Silva (2000) fazem do documento
de 1982, ganha destaque também a proposta de “mudança radical nos currículos, visando a
eliminação de preconceitos e estereótipos em relação aos negros e à cultura afro-brasileira na
formação de professores com o intuito de comprometê-los no combate ao racismo na sala de
aula” (GONÇALVES & SILVA, 2000, p. 151).
Em revisão bibliográfica pioneira sobre a história da educação do negro, publicada
em 1987, Regina Pahim Pinto apontava que, na época, a reivindicação “mais frequentemente
presente nas manifestações do movimento negro relacionadas à educação” era as
“reformulações do currículo” (PINTO, 1987, p. 30). Partindo do exemplo da proposta
apresentada por Abdias do Nascimento no 2º Festival Mundial de Artes e Culturas Negras,
realizado em Lagos, Nigéria, em 12 de fevereiro de 197730 a qual sugeria que nos países
onde existisse “significativa descendência africana” fossem incluídos nos currículos de todos
os níveis “cursos compulsórios de História Africana, Swahili, História dos Povos Africanos
na Diáspora” (PINTO, 1987, p. 30) , a pesquisadora elenca diversas iniciativas similares
por ela identificadas em diferentes estados brasileiros: a criação, em São Paulo, da Comissão
de Educação de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra, em 1984, que se
voltava, entre outros aspectos, à observância e à reformulação dos currículos e dos livros
didáticos, de modo que seus levantamentos tiveram por resultados a denúncia da necessidade
de se dar novos enfoques ao papel do negro e dos escravos na História do Brasil (PINTO,
1987, p. 30); a enfática sugestão de recuperação da História da África nas escolas,
reincidentemente observada nos encontros nacionais do movimento negro, como no Encontro
Nacional de Uberaba-MG (1984), no I Seminário de Integração (1985), em Botucatu-SP, no II
Encontro Nacional sobre “Realidade do Negro na Educação” (1985), realizado em Porto
Alegre-RS, e também no VI Encontro de Negros do Norte e Nordeste (1986), ocorrido em
Aracaju-SE.
Não bastassem tais ocorrências, Pinto (1987) dá destaque, ainda, àquela que
considera ser a iniciativa de “maior alcance, e que obteve resultados concretos”: a proposta
pedagógica denominada “Pedagogia Interétnica” (1978), formulada pelo Departamento de
Ciências Sociais do Núcleo Cultural Afro-Brasileiro (BA) em conjunto com a Universidade
30
Segundo levantamentos da autora, Abdias do Nascimento denunciava, à época, “o que ele chamava de
bastardização da cultura africana [...]” (PINTO, 1987, p. 29). Ao tecer críticas “àqueles que combatem as
tentativas de auto-afirmação do afro-brasileira”, os posicionamentos de Nascimento apontavam, segundo Pinto,
para a presença do eurocentrismo na educação e para a ausência da África nos currículos (p. 30).
71
Federal da Bahia (UFBA), por meio de pesquisa coordenada pelos sociólogos Roberto Santos
e Manoel de Almeida Cruz31. Com o objetivo de “resgatar os valores afro-brasileiros através
da educação formal” (PINTO, 1987, p. 30), suas diretrizes contavam com menção também à
subalternidade dos saberes e das culturas indígenas, bem como a indicação do ensino de
“Literatura Afro-Brasileira” (ibid., p. 31). Segunda a autora, a iniciativa exerceu influência
nas mudanças curriculares ocorridas em 1985, momento em que a rede estadual da Bahia
incorporou, de forma experimental, a disciplina “Estudos Africanos” aos cursos do 1º e do 2º
graus.
É curioso observar em relação à “Pedagogia Interética” que, embora seus efeitos
prático-pedagógicos tenham sido mais evidentes no contexto de luta do movimento negro, a
questão da educação indígena, para além de compor essa proposta, era recordada também no
que tange à formação dos não índios, o que rememora, de imediato, o teor daquela que viria a
ser, quase vinte anos depois, a lei 11.645/08:
Com base nesta e nas demais ocorrências listadas, entende-se, pois, por que Amilcar
Araujo Pereira (2011) reforça o fato de o texto da “Constituição cidadã” de 1988 refletir
“algumas das reivindicações de diferentes grupos sociais que até então não eram
contemplados na construção dos currículos escolares de História, como se pode observar no
parágrafo 1º do Art. 242 da Constituição, que já determinava que ‘O ensino da História do
Brasil levará em conta as contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do
povo brasileiro’” (PEREIRA, 2011, p. 26). Não é, pois, por acaso que se nota tal alteração na
31
A “Pedagogia Interétnica” também é por nós abordada no primeiro capítulo, sob outro enfoque.
72
nova constituinte, uma vez que conquistas desse tipo nunca advêm de cima para baixo, mas
sim das ruas para o Congresso, não o contrário32.
Ainda no contexto da década de 1980, também em relação às deficiências dos
currículos, as ações discursivas e teóricas vêm acompanhadas de ações práticas informais,
dado que o movimento negro não esperou pela criação e pela aprovação da lei 10.639/2003
para renovar os materiais didáticos. Entendendo que a narrativa única, branca e eurocêntrica,
disseminada nas escolas pode acentuar a discriminação racial, iniciativas foram tomadas no
sentido de produzir e disseminar materiais paradidáticos que valorizassem a cultura e a
história dos negros no Brasil. Um bom exemplo desse tipo de ação deu-se por intermédio da
militante Maria Raimunda (Mundinha) Araujo, presidente do Centro de Cultura Negra do
Maranhão (CNN) do Maranhão, a qual produziu, em parceria com outros militantes
maranhenses, cartilhas “que foram inclusive publicadas, por exemplo, no início da década de
1980, em Belo Horizonte, Minas Gerais” (PEREIRA, 2011, p. 40)33. Em entrevistas
integradas ao acervo do CPDOC/FGV, Mundinha esclarece que inicialmente a distribuição e
a apresentação do material eram acordadas diretamente com as escolas, ficando sujeitas à boa
vontade dos diretores; porém, em um segundo momento, por volta de 1982, o CCN conseguiu
firmar um convênio com a Secretaria de Educação, visando tanto ampliar e facilitar o contato
com as escolas, quanto engajar os professores no projeto (PEREIRA, 2011, p. 40). Ao
descrever seus processos de pesquisa e a respectiva recepção das escolas, seus relatos
ressaltam a importância e os efeitos de romper com as narrativas únicas e de preencher
lacunas históricas nos currículos:
32
Embora tenhamos dado ênfase a exemplos que antecedem a Constituição, a fim de traçar uma linha de
continuidade entre as reivindicações do movimento negro da década de 1980 e o teor do parágrafo 1º do Art. 242
da Carta Magna de 1988, é interessante citar um evento ocorrido em 1991, descrito em outra publicação de Pinto
(1993); trata-se de um fórum realizado no Rio Janeiro, resultado da articulação do IPEAFRO (Instituto de
Pesquisas e Estudos Afro-brasileiros) a diversas secretarias de educação e de cultura, o que teve como norte
“corrigir as distorções existentes no ensino a respeito do tema” (PINTO, 1993, p. 34), dado o contexto favorável
da visão pluralista postulada pela Constituição (1988) e pelo Estatuto da Criança (1990). Em seus anais,
publicados, segundo a autora, em um caderno intitulado “A ÁFRICA na escola brasileira” (1991), eram
reiteradas algumas reivindicações do movimento negro: “necessidade de se integrarem os ‘assuntos africanos e
afro-brasileiros ao currículo escolar’” (PINTO, 1993, p. 34), haja vista tal omissão ser nociva tanto à criança
negra quanto à branca. Ao listar ações concretas de implantação de uma educação denominada “afrocentrada”,
os debates ocorridos no fórum englobaram desde a produção de materiais até a questão da formação do
professor.
33
O artigo de Pereira (2011) disponibiliza, inclusive, imagens desses materiais didáticos.
73
ano comecei a ir para o Arquivo Público para pesquisar, porque achei que
tinha que ter informações sobre o negro no Maranhão nos arquivos. E lá eu
já pesquisei sobre leis abolicionistas, pegava logo os textos: o que foi a Lei
do Ventre Livre? Pegava o texto da Lei Áurea. Porque eu sabia que isso era
desconhecido de todo mundo. Aí a gente já discutia: a Lei dos Sexagenários
será que libertou mesmo? E esses meninos? – era o texto da Lei do Ventre
Livre, que mostrava que, na realidade, a criança não estava liberta. Poxa,
isso causava uma sensação nas escolas. Não era só por você estar dizendo
“no Brasil tem discriminação”, mas era pelo novo que a gente estava
levando, era pelas coisas que nunca antes tinham sido discutidas com os
professores, e o próprio preconceito na sala de aula, o preconceito em todo
local. (MUNDINHA ARAÚJO apud ALBERTI & PEREIRA, 2007, p. 202).
O livro Educação e Discriminação dos Negros (1988), organizado por Regina Lúcia
Couto de Melo e Rita de Cássia Freitas Coelho, apresenta a compilação de textos do encontro
mencionado no excerto anterior, a saber, o “Seminário Educação e Discriminação dos
Negros”, realizado em 1987, em Belo Horizonte. Em seu texto de apresentação, anuncia-se
uma “abertura do pensamento pedagógico aos processos e movimentos sociais” (MELO &
COELHO, 1988, p. 9), bem como a importância de considerar, no contexto de formulação das
políticas públicas, “a prática política dos movimentos negros, as possíveis contribuições desta
à prática educativa, bem como o reconhecimento de parcerias a nível dos movimentos sociais
[...]” (ibidem). Trata-se, em nossa leitura, de um documento que explicita a emergência de um
movimento de transposição política das pautas e das demandas dos negros no Brasil, haja
vista uma das grandes premissas de tal Seminário ser a de que “as ações dos movimentos
sociais impõem mudança qualitativa das funções do Estado, que aponta a necessidade de uma
ampliação da capacidade de identificar as práticas educativas que os movimentos sociais
contêm [...]” (MELO & COELHO, 1988, p. 9-10). Novamente, é possível afirmar que ocorre,
nesse momento, certo reconhecimento das ações práticas informais dos movimentos negros
enquanto produtivas e pertinentes inspirações para a definição de ações práticas formais de
combate ao racismo, a serem postuladas, finalmente, pelo poder público.
Nos anais do evento, o livro didático surge como o principal “veículo de
comunicação” (MELO & COELHO, 1988, p. 11) a ser responsável pela recuperação da
“participação da população afro-brasileira no processo histórico nacional” (ibidem). No painel
“A discriminação nos livros didáticos”, apresentado por Ana Célia da Silva, pesquisadora da
Universidade Federal da Bahia (UFBA), acusa-se, com base na análise de 82 livros, “a grande
ausência” do negro nos materiais, sendo sua rara presença “distorcida, caricaturada e
cristalizada” (SILVA, 1988, p. 92); a essa presença, a autora soma, por sua vez, a
representação distorcida “da mulher, do índio, do pobre e do trabalhador” (p. 92). Nas
conclusões de sua pesquisa, enfatizam-se e justificam-se as lutas pela inserção da “cultura
negra, da História do negro na África e aqui” (p. 96), bem como “o trabalho de pesquisadores
76
Para além de se mostrar bastante alinhado aos debates contemporâneos sobre a lei
10.639/2003, o “Seminário Educação e Discriminação dos Negros” (1987) é um importante
77
exemplo dos inúmeros eventos inspirados pelo contexto sócio-histórico de 1988, ano do
centenário da Abolição e da aprovação da Constituição Federal, ocasião a partir da qual
passam a surgir novas configurações de ações teóricas e de ações práticas informais
envolvendo as lutas dos negros pelo direito à educação, tal como a emergência de discussões
sobre a necessidade de ações afirmativas, em geral, e sobre a importância das cotas raciais,
em particular, articuladas ao trabalho realizado por diferentes organizações em “levar jovens
negros às universidades através da criação dos primeiros ‘pré-vestibulares para negros e
carentes’, que de maneira diferente das ONGs, têm como base o trabalho voluntario realizado
por professores e coordenadores de seus núcleos” (PEREIRA, 2013, p. 315). Trata-se, pois, a
partir da década de 1990, de um deslocamento de foco para a questão do acesso ao ensino
superior35. Salvaguardada a inquestionável relevância desse momento de luta, consideramos
que tal período foge ao escopo da breve revisão historiográfica por nós proposta. Ainda que a
lei 10.639/2003 traga implicações à formação docente, afetando, assim, em maior ou menor
medida, os cursos de licenciatura de muitas universidades, entendemos que são, com relação à
esfera social, os discursos e as ações inscritos no período de 1920 a 1980, por se centrarem
com mais afinco na educação básica, os que mais diretamente fundamentaram o teor da
alteração curricular conquistada em 2003 pelo movimento negro, motivo pelo qual não
abordamos detalhadamente a história, tão recente, da educação do negro após 1990.
Consideramos, portanto, que a historiografia traçada nesta subseção mostra-se
suficiente para se perceber que o movimento negro não permaneceu inerte aos efeitos da
colonização do contexto educacional tantos dos negros quanto dos brancos, e que a lei
10.639/2003 emerge de uma soma crescente de lutas. Desde as importantes ações discursivas
empreendidas pela Imprensa Negra até as ações práticas informais que ganham forma através
das escolas e dos materiais produzidos pela militância negra, observa-se uma rede de
iniciativas que vai sempre ao encontro da descolonização do sistema educacional. A fim de
ampliar e desdobrar a leitura desse quadro, buscamos estabelecer, na seção seguinte, em que
revisamos a atuação do movimento indígena e o seu respectivo papel na aprovação da lei de
2008, breves e pontuais comparações entre as ações orquestradas pelos dois grupos no âmbito
da educação.
35
Para ter acesso a maiores informações sobre o tema, vide o capítulo “Debates atuais”, pp. 394-439, do livro
Histórias do movimento negro no Brasil: depoimentos ao CPDOC (ALBERTI & PEREIRA, 2007).
78
O primeiro contato dos povos indígenas com a educação escolar ocorre no período
colonial, através das missões religiosas do cristianismo, vindas de Portugal. Objetivando
“aniquilar suas culturas e incorporar mão-de-obra indígena à sociedade nacional”
(FERREIRA, 2001, p. 72), elas se fundamentavam na catequese e no ensino obrigatório de
português em detrimento da manutenção das culturas e das línguas nativas. Concernente a
este ponto, é bastante relevante estabelecer, a priori, a distinção entre “educação” e
“escolarização”, recordada por Fontan (2017, p. 64): a educação indígena, “transmitida por
cada povo indígena, por meio da educação tradicional”, é “anterior e insubstituível” à
educação escolar indígena, esta sim inicialmente imposta pelos colonizadores e religiosos, no
século XVI, e posteriormente demandada e reformulada pelo próprio movimento indígena, no
século XX (p. 67). No contexto, portanto, da fase coercitiva de escolarização, marcada por
79
forte violência simbólica, vê-se um ensino movido pelos preceitos da dominação cultural tida
como favorável à dominação territorial almejada.
36
Nas palavras do educador indígena Gersem Baniwa, na educação indígena tradicional “se aprende a viver
bem, ser um bom caçador, um bom pescador, um bom marido, uma boa esposa, um bom filho (...) a fazer roça,
plantar, fazer farinha, canoa, cestarias, cuidar da saúde, a benzer, curar doenças, conhecer plantas medicinais,
aprende geografia das matas, dos rios, cacuri, etc. Os conhecimentos específicos como o dos pajés, estão a
serviço e ao alcance de todos. [...]” (GERSEM apud FONTAN, 2017, p. 64).
84
perseguia os velhos pajés e os sábios indígenas. Outra coisa que sabia era a
necessidade de mudar aos poucos essa escola. Foi com esses objetivos e
sentido que atuei. Foi uma grande aprendizagem e também grande desafio de
transformar as escolas rurais, como eram chamadas as escolas implantadas
nas aldeias com o currículo colonial, integracionista e perseguidor dos
conhecimentos e culturas indígenas, para escolas indígenas autogeridas, com
currículos interculturais e bilíngues. Para isso inicialmente tivemos que
elaborar e aprovar todo o arcabouço legal e normativo educacional do
município, para depois iniciarmos as mudanças curriculares, pedagógicas e
de gestão das escolas indígenas.
Os 4 anos na Secretaria de Educação foram fundamentais para os
compromissos posteriores. Nós mudamos totalmente a diretriz política do
município, que era um município comum, com leis seguindo as diretrizes e
as políticas nacionais, sem nenhuma diferenciação para os povos indígenas,
que representam 90% da população do município. Durante os 4 anos à
frente da Secretaria de Educação do município, conseguimos mudar
todo o arcabouço legal para possibilitar a construção de escolas
diferenciadas. Escolas que não proibissem mais as línguas e que
passassem a valorizar os conhecimentos indígenas. Começou-se a
discutir material didático específico nas línguas indígenas, isso numa
época em que, mesmo na academia, esse tema era muito pouco
discutido. Pouca gente se dedicava a esses temas e não tinha literatura:
nossa missão era uma espécie de aventura. (destaque nosso) (LUCIANO,
2012, p. 128).
Depreendemos desses excertos que as lutas dos indígenas brasileiros por uma
educação diferenciada simbolizam, assim, uma luta pela descolonização do próprio conceito
de escola, um enfrentamento aos projetos e aos modelos educacionais de matriz colonial
historicamente vigentes no país. E, por essa razão, “negar a educação escolar pelo fato de
estar, substancialmente, imbricada em uma ideologia dominante, [romperia] com a
possibilidade de moldá-la para que se compatibilize com o respeito ao modo peculiar de vida
e cultura dos povos indígenas” (FONTAN, 2017, p. 66). Nesse sentido, em diálogo com a
discussão teórica que apresentamos no início deste trabalho, entendemos que
Uma das línguas que mais atuam aqui no Brasil é a língua portuguesa, mas
a gente sabe que a nossa língua também é de grande importância. E a gente
perdeu muitas histórias, muitos casos passados que a gente agora podia ter
e contar para os nossos filhos. Vamos supor, você sabe de uma história que
é Yawaxikunawa. Antes de você morrer, se você não contar para o seu filho,
o seu filho não vai saber nada dessa história. Então a gente quer registrar
um pouquinho dos mitos. [...] Joaquim Maná, professor Kaxinawa, AC.
(BRASIL-MEC/SEF/DPEF, 1998, p. 126).
2006, p. 232); no segundo, no que tange às ditas “injustiças culturais ou simbólicas”, observa-
se, por sua vez, a constituição de “padrões sociais de representação, interpretação e
comunicação”, responsáveis pela “dominação”, pelo “desrespeito” e/ou pelo “ocultamento”
de determinadas culturas (ibidem). Em resposta a elas, consolidam-se diversas formas de
combate, com destaque, respectivamente, às “lutas por redistribuição [econômica]” e às “lutas
por reconhecimento [cultural]” (FRASER, 2006, p. 232). “Em que pese seu mútuo
entrelaçamento”, a autora propõe essas duas categorias de luta visando explorar os dilemas
políticos advindos da luta concomitante contra as diferentes formas de injustiça social, visto
que “os dois tipos de luta estão em tensão; um pode interferir no outro, ou mesmo agir contra
o outro” (p. 233). Serve de exemplo desses embates a questão da “raça”: ao mesmo tempo em
que “estrutura a divisão capitalista do trabalho”, uma vez que “a divisão racial contemporânea
do trabalho remunerado faz parte do legado histórico do colonialismo” (p. 235), ela também
tem “dimensões culturais-valorativas, que a inserem no universo do reconhecimento”
(ibidem). Portanto,
argumentação mais à coexistência e/ou à imbricação das duas vertentes de militância, e menos
à abordagem de casos isolados. No nosso estudo sobre as lutas dos movimentos negro e
indígena pela educação, é precisamente essas intersecções entre a busca por “redistribuição” e
a busca por “reconhecimento” que ganha relevância para a leitura dos fatos e dos discursos
precursores da lei 11.645/2008.
Na seção anterior, verificamos que, no contexto do movimento negro do século XX,
a ideia de descolonização do campo do saber tem início com a luta pela descolonização do
acesso à educação escolar formal, a qual, se interpretada à luz de Fraser (2006), estaria
inserida no âmbito das lutas por redistribuição, dado que o analfabetismo e a falta de
escolaridade serem o principal catalisador da desigualdade econômica experimentada pelos
negros no pós-Abolição. Por outro lado, a partir da segunda metade do século, a crescente
atenção dirigida pela militância negra aos materiais didáticos e aos currículos escolares das
escolas regulares pode ser lida como o início de uma articulação entre lutas por redistribuição
e lutas por reconhecimento, pois, além da pauta da igualdade de acesso e de oportunidades,
passa-se a proclamar a importância da marcação da diversidade cultural nas instituições
escolares, de modo a questionar e a revisar um conjunto de saberes eurocêntricos; em outras
palavras, soma-se aos esforços pela descolonização do acesso, o interesse pela descolonização
de conteúdos, sempre com o intuito de tornar igualitário e democrático o sistema oficial de
ensino. Eis, então, a justificação para a lei 10.639/2003, que, se lida a partir da teoria de
Fraser, corresponderia a uma “política de reconhecimento”39. No caso indígena brasileiro, por
sua vez, os contornos do quadro analítico fraseriano mostra-se um pouco mais complexo, haja
vista a afirmação da diferença na esfera educacional ganhar um significado transformador
mais abrangente neste que naquele grupo. Sabe-se que a principal injustiça econômica
enfrentada historicamente pelos povos originários atrela-se à expropriação de suas terras. No
entanto, mais que uma questão de redistribuição, tal negação se interliga de forma mais
contundente a injustiças culturais, dado que do acesso à terra dependem inúmeras práticas
socioculturais das comunidades indígenas, entre elas, a educação, que estabelece,
tradicionalmente, um forte vínculo com a natureza/a terra (assim como se nota em relação à
39
Foge ao escopo do nosso trabalho explorar de forma pormenorizada as teorias de Nancy Fraser. A quem possa
interessar, sugerimos a leitura do artigo “Relações étnico-raciais e educação: entre a política de satisfação de
necessidades e a política de transfiguração”, em que o pesquisador Valter Silvério (2015) vale-se de modo muito
mais aprofundada das ideias da autora (e de outros pensadores, como Honneth) para discutir a questão do
reconhecimento e da redistribuição a partir das políticas educacionais de recorte racial no Brasil, com destaque,
inclusive, à lei 10.639/2003.
90
medicina indígena, que também depende da floresta e de recursos naturais). Portanto, essa
forte intersecção entre luta por redistribuição e luta por reconhecimento, da qual a questão dos
territórios indígenas é protagonista40, pode servir de explicação, a nosso ver, à dedicação dos
povos indígenas a um modelo diferenciado de educação (com materiais, currículos e práticas
pedagógicas específicas), e não à alteração do sistema de ensino vigente. Suas escolas nunca
fizeram sentido se pensadas nos moldes e, na maioria das vezes, nos territórios dos não índios.
Se para os negros o acesso igualitário à escola formal configurava-se um fator decisivo à
integração social, para os indígenas o problema inicia-se, justamente, na ideia de integração.
E é, pois, a nosso ver, esse menor engajamento indígena nos debates sobre as escolas
tradicionais que talvez explique alguns pormenores dos motes de aprovação da lei 11.645/08.
Apresentado logo após a promulgação da lei 10.639/2003, o projeto que deu origem
à alteração ocorrida em 2008 (PL 433/2003), de autoria da Deputada Mariângela Duarte
(PT/SP), trazia em sua justificação a afirmação de que “a referida lei [10.639] foi criticada
[...] pela comunidade indígena, que não foi contemplada com a previsão de disciplinas para os
alunos conheceram a realidade indígena do país” (BRASIL-DCD, 2003, p. 13940). Além de
justificar a importância da cultura indígena no Brasil, o documento anuncia-se como uma
“manifestação de povos indígenas do Estado do Acre”, sem especificar, porém, quais as etnias
que estariam vinculadas à reivindicação. Trata-se, afinal, de um texto dotado de certas lacunas
explicativas acerca dos agentes e dos fatos sociais envolvidos na ação. Sozinho, ele não
esclarece, portanto, os caminhos que culminaram na proposta.
Visando obter mais detalhes sobre as origens do projeto e sobre a atuação do
movimento indígena frente ao pedido de modificação da lei de 2003, o pesquisador Felipe
Nunes Nobre (2017) recorre a uma pesquisa documental no periódico Porantim, publicado
pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI)41 desde 1978. No período de 2003 a 2008, em
que ocorria no Congresso Federal grande parte das discussões sobre a alteração da lei
40
É importante esclarecer que, devido tanto ao escopo do nosso estudo quanto ao tempo disponível para a
realização da pesquisa, desconsideramos as discussões sobre a educação do negro em áreas rurais, a saber, a
“educação quilombola”. Reconhecemos, no entanto, que, se analisado sob esse viés, a luta do movimento negro
pela educação aproxima-se da luta dos indígenas, visto que a reivindicação comum de um ensino diferenciado e
veementemente dependente da demarcação e da posse de terras. Informações e dados sobre a educação
quilombola podem ser acessados em: <http://portal.mec.gov.br/educacao-quilombola->.
41
Apesar de o nome do Conselho fazer referência à religião, uma vez que sua interligação com frentes
progressistas da Igreja Católica, discutiremos adiante que o CIMI assume um importante papel nas lutas
indígenas, acabando por se afastar de ideários catequéticos.
91
Na leitura de Nobre, “por essa fala entende-se que houve pouca participação
indígena na construção da Lei, e mesmo um sentimento de surpresa com sua publicação”
(NOBRE, 2017, p. 40). Entretanto, sem postularem o desmerecimento do papel
desempenhado pela militância indígena, os dados e os argumentos apresentados pelo
pesquisador sugerem apenas uma diferenciação entre os caminhos percorridos pelas duas leis.
Enquanto é comum encontrar documentos e relatos que celebrem a lei 10.639 como uma
conquista do movimento negro, a começar pela evidente participação de parlamentares negros
e militantes em seu processo burocrático e legal, não houve até o momento uma identificação
equivalente de atores sociais do movimento indígena no contexto específico da aprovação da
lei 11.645. Outros depoimentos de Gersem Baniwa por nós localizado corroboram as ideias
levantadas por Nobre. Ao elencar a falta de material didático como um provável empecilho à
implantação da lei, ele ilustra que, de fato, os indígenas, e também pesquisadores, voltaram-
92
se, ao longo do tempo, quase que exclusivamente à produção de materiais que atendessem
especificamente as escolas indígenas, e não o alunado em geral:
Eis o ponto central do nosso quadro contrastivo dos percursos das duas leis: ainda
que os materiais produzidos pelo movimento negro não tenham sido diretamente aproveitados
ou apropriados pela lei 10.639/2003, nota-se nos documentos oficiais que orientam a
introdução da história e da cultura afro-brasileira na educação básica (BRASIL-
MEC/SECAD, 2006; BRASIL-MEC/SECADI, 2013; BRASIL-MEC/SEPPIR, 2008;
BRASIL-MEC/SEPPIR, 2004) certo diálogo com os conteúdos historicamente recordados
pela militância negra através de cartilhas e manuais independentes. Personagens e momentos
históricos que outrora fundamentaram suas ações práticas informais no campo do saber
ecoam, hoje, nas ações práticas formais adotadas pelo Estado, em especial, na lei
10.639/2003. A fala de Baniwa sobre a falta de mobilização indígena no que tange à
indicação e à definição dos conteúdos a serem ensinados aos não índios indica, por outro lado,
que a lei 11.645/2008 talvez não conte com o mesmo respaldo por parte das ações da
militância indígena, o que nos faz pensar sobre quais seriam os efeitos dessa diferença de
trajetórias. A partir da análise dos materiais didáticos que apresentamos na última seção,
nossa hipótese é de que esse menor engajamento indígena com o sistema oficial de ensino
talvez possa explicar, ao menos parcialmente, a baixa incidência tanto de documentos
regulatórios que direcionem as práticas e os conteúdos esperados pela lei 11.645/2008 (em
oposição aos diversos documentos e estudos que tratam da educação escolar indígena, por
exemplo) quanto para a quase inexistente presença de literaturas indígenas nos livros
94
didáticos do Ensino Médio42. Não se trata de um dado que justifique o descumprimento da lei
por parte das editoras de manuais escolares, mas que, de certo, não pode ser totalmente
desconsiderado.
Com base nesses pontos, julgamos que a realização de pesquisas etnográficas atentas
à recolha e à compilação de uma gama significativa de depoimentos de militantes e
educadores indígenas pode se afirmar um caminho para se elucidar os pormenores do
envolvimento dos indígenas com a conquista e com a posterior implementação da lei43. No
artigo “Educação, literatura e direitos humanos: visões indígenas da lei 11.645/08” (2011), a
pesquisadora Graça Graúna desenvolve um rico trabalho nesse sentido, ao aplicar um
questionário sobre a lei de 2008 a indígenas de diferentes etnias “com o objetivo de enfatizar
a visão indígena em torno do assunto” (GRAÚNA, 2011, p. 231).
Composto por duas perguntas, “1. Quais os desafios e perspectivas para o ensino da
história e da cultura indígenas?” e “2. De que modo a história e a cultura indígena são
referidas no livro didático hoje?” (GRAÚNA, 2011, p. 239), o questionário que fundamenta
as entrevistas de Graúna foi respondido por dezenas de entrevistados, sendo que doze
conjuntos de respostas são disponibilizados no artigo em questão. A leitura dos depoimentos
42
No ano de 2014, o MEC chegou a abrir um edital voltado à “convocação de editores para o processo de
inscrição e seleção de obras de literatura sobre a temática indígena”, ao qual, ao que parece, não foi dado
prosseguimento. No portal do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), encontram-se
disponíveis a notícia de abertura e o respectivo edital do então denominado “Programa Nacional Biblioteca da
Escola (PNBE) indígena”, mas nenhuma informação ou documento que ateste a continuidade do processo ou que
forneça a relação de obras selecionadas. Tendo em vista que o programa visava selecionar acervos literários que
fomentassem “a ruptura de estereótipos sobre histórias, culturas e identidades”, estando aberto a autores
indígenas e não indígenas, tratar-se-ia, afinal, de uma política educacional alinha à lei 11.645/2008. Na ausência
de informações e de investigações sobre o desenrolar do “PNBE indígena”, é possível ter acesso ao trabalho de
Silveira & Bonin (2012), em que se analisam seis obras selecionadas no PNBE 2008 e 2012 à luz da temática
indígena. Já o edital e a notícia que mencionamos podem ser acessados em:
<http://www.fnde.gov.br/index.php/programas/programas-do-livro/consultas/editais-programas-livro/item/5205-
edital-pnbe-ind%C3%ADgena-2015>; <http://portal.mec.gov.br/component/tags/tag/32134>. Acesso em
22/02/2019.
43
Ressaltamos a necessidade de, a nosso ver, pesquisadores interessados pelo tema desenvolverem estudos que
busquem recolher e/ou compilar depoimentos e relatos de membros do movimento indígena acerca,
especificamente, das origens e dos significados da lei 11.645/2008 para as próprias comunidades indígenas.
Trata-se, em nossa leitura, de uma lacuna nos estudos das áreas de Educação e de Ciências Sociais, a qual, se
preenchida, pode vir a enriquecer os debates sobre as leis 10.639/03 e 11.645/08, bem como sobre as lutas por
uma educação multicultural em geral. Por ora, registramos aqui comentários feitos por Graça Graúna,
pesquisadora e escritora indígena, do povo Potiguara, sobre o fato de lei 10.639/03 ter sido aprovada sem haver
nela menção aos povos indígenas: “Quando a Presidência da Republica sancionou, em 2003, a lei 10.639 que
obriga, especificamente, o ensino da história e da cultura africanas, a primeira impressão que se teve foi a
geração de uma espécie de separatismo: negros de um lado, índios de outro. Considerando que a Constituição de
1988 não reconhece plenamente os direitos dos povos indígenas no Brasil, mais uma vez a presença indígena foi
posta à margem, pois a lei 10.639 foi criada para beneficiar um grupo étnico em detrimento de outros. Ao
sancionar essa lei, o governo brasileiro infelizmente abriu espaço para o predomínio da referência do
invasor/colonizador quanto ao ensino da história e da cultura indígenas nas escolas” (GRAÚNA, 2011, p. 237).
95
coletados por Graúna nos permitiu notar o apontamento recorrente, nas falas dos indígenas, de
certos desafios a serem enfrentados pela lei de 2008, tais como: o desconhecimento da
diversidade cultural e étnica dos povos indígenas e os respectivos estereótipos expressos em
livros didáticos; a hegemonia de narrativas e de visões não indígenas, sobretudo no que
concerne à história desses povos, em particular, e à história do Brasil, em geral; a persistência
da imagem do indígena presa ao passado, especialmente ao período colonial, em detrimento
do indígena contemporâneo. Embora figure entre as “soluções” sugeridas pelos entrevistados
a insistente defesa de materiais produzidos pelos próprios indígenas, reconhece-se que, em se
tratando do ensino da História e da Cultura dos povos indígenas em escolas não indígenas,
existem empecilhos específicos às particularidades da lei 11.645/08, como expõem,
respectivamente, por Juvenal Teodoro Payayá, do povo Payayá, e por Nádia Akau, do povo
Tupinambá de Olivença (Ilhéus-BA):
Os relatos presentes nos dois excertos corroboram, em certa medida, parte das
observações que fizemos a respeito do grau de participação do movimento indígena no
processo de implantação da lei 11.645/08, se comparado ao do movimento negro frente à lei
de 2003, merecendo atenção o aspecto reforçado por Payayá no que engloba a
impossibilidade de os indígenas, em particular de os educadores indígenas, arcarem com a
responsabilidade de produzir o material necessário à efetivação do ensino dos conteúdos
determinados pela nova legislação. Contudo, a despeito dos questionamentos e das perguntas
que lançamos ao longo desta subseção, é inconstestável que “a Lei 11.645/08 não foi uma
dádiva concedida a um grupo inerte, pois seu histórico de lutas e mobilizações lhes deu a
96
visibilidade que propiciou a atenção a suas demandas, ainda que a partir da iniciativa de não
indígenas. Nesse sentido, a Lei não deixa de ser, também, uma conquista de sua mobilização”
(NOBRE, 2017, pp. 42-43). Prova disso está, por exemplo, na descrição que Grupioni (1995)
faz do teor de encontros e de manifestações de professores indígenas no final da década de
1980 e no início da década de 1990, que revelam preocupação com o imaginário que engloba
o ensino da cultura indígena nas escolas convencionais, mostrando que os índios não
permaneceram alheios ao tema:
O curioso dessa história é que o que faço hoje aos ensejos da Lei 11.645, ao
falar, divulgar e ensinar sobre as histórias e culturas indígenas para os não
97
índios à época fazia isso aos parentes índios que, por força repressiva de
séculos de colonização, haviam abandonado suas principais tradições e
estavam em reta final de abandono de suas identidades, línguas e modos
próprios de vida. Assim, o meu esforço era falar da importância das nossas
culturas, tradições, línguas e modos de vida, ao mesmo tempo tendo que
desconstruir o discurso e a prática colonial repressiva até então vigente.
(LUCIANO, 2016, p. 16)
Além disso, a política curricular deve ser entendida como expressão de uma
política cultural, na medida em que seleciona conteúdos e práticas de uma
dada cultura para serem trabalhados no interior da instituição escolar. Trata-
se de uma ação de fôlego: envolve crenças, valores e, às vezes, o
rompimento com práticas arraigadas (BRASIL-MEC/SEB, 2006, p. 8).
Qual seria então o lugar do rap, da literatura de cordel, das letras de músicas
e de tantos outros tipos de produção, em prosa ou verso, no ensino da
literatura? Sem dúvida, muitos deles têm importância das mais acentuadas,
seja por transgredir, por denunciar, enfim, por serem significativos dentro de
determinado contexto, mas isso ainda é insuficiente se eles não tiverem
suporte em si mesmos, ou seja, se não revelarem qualidade estética.
Gramsci, em 1934, já estabelecera uma diferença entre valor cultural e valor
estético. Muitas obras de grande valor cultural têm escasso valor estético, até
mesmo porque não se propuseram a isso: é o caso, por exemplo, dos
escritos de José do Patrocínio; outros, mesmo produzidos por artistas não
letrados, mas que dominam o fazer literário − ainda que quase
instintivamente −, certamente deverão ser considerados no universo literário:
Patativa do Assaré, por exemplo, e tantos outros encontrados no nosso rico
cancioneiro popular. Qualquer texto escrito, seja ele popular ou erudito, seja
expressão de grupos majoritários ou de minorias, contenha denúncias ou
reafirme o status quo, deve passar pelo mesmo crivo que se utiliza para os
escritos canônicos: Há ou não intencionalidade artística? A realização
correspondeu à intenção? Quais os recursos utilizados para tal? Qual seu
significado histórico-social? Proporciona ele o estranhamento, o prazer
estético? (destaque nosso) (BRASIL-MEC/SEB, 2006, pp. 56-57).
o que prejudica a qualidade do debate. Na sequência, é feita uma observação quanto à questão
dos “julgamentos”, momento em que se contrapõe o “texto de consumo” ao “texto literário”:
Mas não nos iludamos: sempre haverá, em alguns casos, uma boa margem
de dúvida nos julgamentos, dúvida muitas vezes proveniente dos próprios
critérios de aferição, que são mutáveis, por serem históricos. Mesmo
apresentando dificuldades em casos limítrofes, entretanto, na maioria das
vezes é possível discernir entre um texto literário e um texto de consumo,
dada a recorrência, no último caso, de clichês, de estereótipos, do senso
comum, sem trazer qualquer novo aporte. (BRASIL-MEC/SEB, 2006, p.
57).
Literatura, passaram ao largo dos debates que o ensino de tal disciplina vem
suscitando, além de negar a ela a autonomia e a especificidade que lhe são
devidas. (...) Embora concordemos com o fato de que a Literatura seja um
modo discursivo entre vários (o jornalístico, o científico, o coloquial, etc.), o
discurso literário decorre, diferentemente dos outros, de um modo de
construção que vai além das elaborações lingüísticas usuais, porque de todos
os modos discursivos é o menos pragmático, o que menos visa a aplicações
práticas (BRASIL-MEC/SEB, 2006, p. 49).
44
Os Temas Transversais do Ensino Fundamental divulgados pelo MEC em 1997 foram: Ética, Pluralidade
Cultural, Meio Ambiente, Saúde, Orientação Sexual e Temas Locais. “Apresentação dos Temas Transversais”
(1997): <http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/livro081.pdf>. Acesso em 20/11/2018.
107
A partir do panorama aqui esboçado, indo da leitura dos PCN à leitura das OCEM46,
nota-se que é pouco amadurecido o diálogo estabelecido entre os documentos oficiais
centrados no ensino de Língua Portuguesa no Ensino Médio e os pressupostos de uma
perspectiva multicultural e/ou pós-colonial de educação, além do fato de tais documentos
contrastarem com o teor de parte do material direcionado ao Ensino Fundamental, conforme
45
Apesar dos fragmentos por nós destacados, com os quais buscamos dar evidência a discursos alinhados ao que
viria a ser postulado pelas leis 10.639/03 e 11.645/08, é pertinente mencionar a análise global que Silvério &
Trinidad (2012) fazem do documento, sobretudo no que concerne ao tratamento nele dado à questão racial: “Aos
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) acrescentou-se o tema ‘Pluralidade Cultural’, que abarca uma ampla
discussão sobre diversidade, ainda insistindo no mito da democracia racial, não especifi cando a necessidade de
um melhor tratamento da questão do negro na sociedade brasileira, reproduzindo um discurso de igualdade e
homogeneização da população” (SILVÉRIO & TRINIDAD, 2012, p. 910).
46
Além das publicações oficiais já mencionadas, publicaram-se duas Diretrizes Curriculares Nacionais para o
Ensino Médio (DCNEM), uma em 1998 e outra em 2012. Pesquisas indicam que também nessas publicações não
se abordou o tema da diversidade com muita atenção, havendo apenas uma ampliação do caráter polissêmico do
termo, conforme assinala Moehlecke (2012). Após realizar a leitura do referido trabalho, optamos por encerrar a
nossa análise com as OCEM, tendo em vista, também, seu maior protagonismo no debate escolar e acadêmico.
Trata-se, ainda hoje, do documento de maior referência para o Ensino Médio. Ademais, o fato as DCNEM serem
compostas, fundamental, por tópicos, e não por textos de caráter dissertativo-reflexivo, torna-as menos propícias
às discussões que propomos na presente subseção.
108
se vê na cartilha Pluralidade Cultural (1998). Porém, essa aparente ausência não pode ser
interpretada como uma neutralidade discursiva; ao contrário, é possível observar indícios de
uma postura de resistência frente à diversidade cultural no ensino de literatura nos anos finais,
como ilustra a frequente exaltação do cânone literário vigente.
Dessarte, uma análise atenta do período temporal ao qual pertencem as orientações e
os parâmetros estudados permite concluir que antes da lei 10.639/2003 e, até mesmo,
depois dela, ao se levar em consideração que as OCEM foram publicadas em 200647
pouco se reivindicou uma educação profundamente atenta à pluralidade cultural. Devido a
isso, os pontos problematizados por esta e, posteriormente, pela lei 11.645/08 ganham forma e
espaço somente através de discursos e de textos independentes, alheios aos documentos
basilares da educação optamos por comentar os pontos centrais dos documentos de
implementação e de regulamentação de ambas as leis em diferentes seções deste trabalho,
conforme eles se mostrem pertinentes às discussões.
Diante, portanto, da inexistência de um diálogo explícito e amadurecido entre os
pressupostos fundamentais da educação básica e as medidas de viés multicultural mais
recentes, faz-se preciso repensar/revisar quais são hoje os significados, o lugar e as
implicações do conjunto de políticas educacionais que, atualmente, fazendo uso das palavras
de Semprini, “lança a problemática do lugar e dos direitos das minorias em relação à maioria”
(SEMPRINI, 1999, p. 43) no Brasil. É, então, a essa questão que buscamos responder ao
explorar os impactos das leis 10.639/03 e 11.645/08 no PNLD 2015.
47
Na apresentação da seção dedicada a “Linguagens, Códigos e suas Tecnologias”, menciona-se que a
elaboração das OCEM teve início em 2004, ou seja, um ano após a publicação da lei federal nº 10.639/2003.
Apesar de se tratar de um curto espaço de tempo para o desenvolvimento de uma abordagem aprofundada da
temática destacada pela lei, é válido questionar se não caberia em tal publicação uma introdução ou menção ao
novo conteúdo imposto à educação básica.
109
nos, a partir do livro didático, ao trajeto que articula os documentos legais às práticas
escolares. Para tanto, fechamos a presente revisão das políticas e dos documentos que
orientam o ensino de Língua Portuguesa dando atenção à questão da produção e circulação de
livros didáticos no Brasil, bem como à história do Programa Nacional do Livro Didático
(PNLD), criado em 1985, responsável por selecionar e distribuir os materiais didáticos
adotados pela rede pública de ensino no país até os dias atuais.
Em 1938, institui-se a Comissão Nacional do Livro Didático (CNLD) no país, por
meio do Decreto-Lei nº 1.006, de 30/12/38, o qual estabelecia “as condições de produção,
importação e utilização do livro didático” (BRASIL, 1938, s/p). A despeito de certas
similaridades com o atual PNLD, em relação, por exemplo, ao trabalho a ser exercido pelos
especialistas no processo de avaliação e a algumas questões editoriais, suas diretrizes refletem
o contexto sociopolítico do país ao prescrever a defesa da “unidade nacional” e,
consequentemente, dos valores caros às elites:
CAPÍTULO IV
DAS CAUSAS QUE IMPEDEM A AUTORIZAÇÃO DO LIVRO
DIDÁTICO
Art. 20. Não poderá ser autorizado o uso do livro didático:
48
Para maiores informações, vide a linha histórica traçada pelo MEC:
<https://www.fnde.gov.br/programas/programas-do-livro/livro-didatico/historico>. Acesso em <08/01/2019>.
111
Em crítica ao livro didático publicada em 1987, Joel Rufino dos Santos, com base em
estudos e em exemplos, acusa os materiais escolares de serem veiculadores da ideologia
dominante, e afirma, após comentar as concepções racistas e etnocentristas que os
fundamentam, que o livro “é o que o Brasil pensa que o Brasil é” (DOS SANTOS, 1987, p.
100). Se observarmos as recentes implicações das teorias sociais contemporâneas no ensino
de literatura, tais quais recordadas por Zilberman, somadas ao protagonismo dos movimentos
sociais nas políticas educacionais do início do século, percebemos que, mesmo que a passos
lentos, o Brasil foi sendo convidado, nos últimos anos, a “se pensar” de outra forma no que
engloba suas literaturas. A análise da transposição didática das leis, com base no teor das
coleções aprovadas pelo PNLD 2015, permite verificar, justamente, como as editoras de
livros didáticos têm respondido a esse convite.
***
Nossa escolha pelo PNLD 2015 deu-se por duas razões: por se tratar da edição mais
recente do Programa Nacional do Livro Didático na ocasião do início desta pesquisa de
Doutorado; e por corresponder a um conjunto de coleções produzidas dez anos após a
publicação da primeira lei por nós estudada, o que lhe confere um distanciamento temporal
capaz de revelar com mais clareza o alcance e o desdobramento de tais alterações
curriculares.
Como vimos na seção anterior, o PNLD foi instituído em 1985, com a função de
avaliar, selecionar e distribuir coleções didáticas, por meio de processo seletivo público,
aberto às editoras do país. A cada edição, são selecionadas e resenhadas cerca de dez
coleções, as quais ficam disponíveis para a escolha das secretarias de educação ou dos
professores das escolas públicas. Para auxiliá-los, as resenhas são apresentadas em guias que
visam, entre outros aspectos, discutir os fundamentos teórico-metodológicos esperados para
cada componente curricular e disponibilizar as fichas avaliativas utilizadas durante o
processo. Desde sua criação, o programa foi sofrendo gradativas mudanças, contudo, na
última década, ele tem seguido o padrão de lançar a relação de livros destinados ao ensino
113
médio com um intervalo de três anos em relação às listas do ensino fundamental, ou seja, as
últimas edições do PNLD do ensino médio foram divulgadas, respectivamente, em 2009,
2012, 2015 e em 2018. O nosso corpus corresponde à edição de 2015.
O processo de seleção das obras que compõem o PNLD 2015 ocorreu entre 2013 e
2014, por meio de um edital de convocação das editoras disponibilizado no site do Fundo
Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), em parceria com o Ministério da
Educação (BRASIL-MEC/FNDE, 2013). Nessa edição, foram avaliadas e selecionadas obras
didáticas do Ensino Médio para os componentes curriculares de Língua Portuguesa,
Matemática, História, Geografia, Física, Química, Biologia, Inglês, Espanhol, Sociologia,
Filosofia e Arte. Entre os diversos “princípios e critérios para a avaliação de obras didáticas
destinadas ao Ensino Médio” elencados pelo edital (em seu Anexo III), interessa-nos destacar
o fato de o não atendimento às leis 10.639/03 e 11.645/08, por parte de qualquer área de
conhecimento, surgir como um critério eliminatório do processo seletivo, conjuntamente com
uma eventual falta de articulação dos livros didáticos aos princípios de documentos basilares
da educação, como a LDB-96, ou de documentos concernentes à educação para as relações
étnico-raciais, como o Parecer CNE/CP nº 03 de 10/03/2004 (BRASIL-MEC/CNE, 2004a) e a
Resolução CNE/CP nº 01 de 17/06/2004 (BRASIL-MEC/CNE, 2004b). Por essa razão, ao
definirmos os nossos focos de análise, recuperamos algumas das sugestões feitas tanto pelo
Parecer quanto pela Resolução.
De acordo com o Guia de Apresentação do PNLD 2015 (BRASIL-MEC/SEB, 2014a,
p. 7) publicado após o processo seletivo, avaliaram-se 17 coleções de Língua Portuguesa,
entre as quais foram aprovadas dez, sendo todas integrantes do nosso corpus de análise. No
Guia de Português (BRASIL-MEC/SEB, 2014b), é possível ter acesso a resenhas críticas
dessas obras. Trata-se de textos voltados, fundamentalmente, à instrução dos professores e
dos dirigentes responsáveis por escolher os livros didáticos a serem adotados em suas
instituições, e que seguem, estruturalmente, a mesma divisão: “visão geral” da coleção;
“quadro esquemático” (com “pontos fortes”, “pontos fracos”, “destaque”, “programação do
ensino” e “manual do professor”); uma “descrição da coleção”; “análise da obra”; e, por fim,
comentários sobre seu uso “em sala de aula”. Ao final do documento encontramos ainda dois
anexos: o primeiro correspondente aos critérios de avaliação, já presentes no edital de
convocação, entre os quais aqueles supracitados, que ressaltam a necessidade de observância
114
49
Cabe mencionar que as fichas avaliativas do PNLD 2018 (componente Português) preenchem essas lacunas ao
elencarem, separadamente, perguntas relativas ao diálogo das coletâneas de textos literários com “as culturas
africanas”, “com as culturas afro-brasileiras” e com “as culturas indígenas” (BRASIL-MEC/SEB, 2017, p. 86).
115
Em uma primeira leitura, esses critérios dão margem a boas expectativas no que se
refere à não propagação de ideias preconceituosas, bem como no que diz respeito ao
reconhecimento da diversidade cultural nas coleções selecionadas, sobretudo por meio da
indicação de sejam contemplados “autores e gêneros menos estudados”. Tendo em vista,
porém, que é extensa a linha que separa a teoria da prática, verifica-se no texto introdutório
do Guia de Português uma ressalva quanto à qualidade do atendimento dado pelas coleções
aos critérios de diversidade supracitados:
É com base também nesse tipo de advertência que justificamos o recorte e os fins da
nossa pesquisa. Por essa razão, recuperamos e rediscutimos a consistência dos parâmetros e
dos comentários avaliativos do PNLD 2015 sempre que necessário, sobretudo durante a
análise dos livros. Interessa-nos analisar se, em que medida e de modo os livros didáticos têm
caminhado, de fato, rumo a práticas e a conteúdos representativos da pluralidade cultural.
Para contextualizar brevemente o perfil das coleções aprovadas na edição de 2015,
elaboramos a tabela a seguir, em que destacamos as editoras correspondentes a cada coleção
116
É importante notar que optamos por siglas compostas pelas iniciais dos títulos das
coleções, seguidas do número indicativo de suas posições no ranking de distribuição.
Consideramos relevante assinalar esse dado, pois pode ser interessante ao leitor ter uma
dimensão do alcance da adoção de cada coleção didática no decorrer de nossos apontamentos
sobre tais obras. Visando ampliar a leitura desse aspecto e reconhecendo os inúmeros fatores
que podem influenciar a formação de um ranking, julgamos igualmente pertinente chamar a
atenção para a hegemonia exercida por determinados grupos editoriais nessas listagens, a fim
explorar outras nuances do processo de escolha de obras didáticas realizado pelo governo
federal. Todavia, reconhecemos a impossibilidade de explorarmos, com a devida
profundidade, todos os aspectos geopolíticos e comerciais que circundam o mercado de livros
didáticos no Brasil, motivo pelo qual nos limitamos à recuperação de alguns estudos, a fim de
discutir melhor os contornos e os fundamentos da lista que integra o nosso corpus de
pesquisa.
Em artigo publicado em 2000, Eloisa de Mattos Höfling já compilava números e
estudos que atestavam a participação de um grupo reduzido de editoras no ramo educacional,
com base, sobretudo, nos relatórios publicados pela extinta Fundação de Assistência ao
Estudante (FAE), cujas responsabilidades no que tange ao PNLD passaram a ficar a cargo do
FNDE a partir de 1996. Assim, os levantamentos da autora nos permitem verificar a
reincidência de coleções desde o ano de 1977:
Ao encontro do que se observa no PNLD 2015, nota-se que a editora FTD, por
exemplo, comparece em segundo lugar no ranking de participação das editoras na aquisição
de livros pelo MEC entre o período de 1977 a 1984. Entre 1985 e 1991, ela cai para o quarto
lugar, havendo destaque para o aumento de participação da editora Ática, que sai da quarta
colocação no período anterior rumo ao primeiro lugar da tabela. Em 1994, a FTD volta a
liderar as contratações do MEC, e as editoras que a seguem também correspondem a nomes
presentes no PNLD 2015, sendo elas, na sequência, Scipione, Ática e Saraiva incluímos a
Scipione nessa comparação, pois ela foi comprada pela Ática em 1983, momento em que as
duas passam a correspondem a um só grupo editorial.
Também o levantamento de dados das edições de 1999 e de 2002 do PNLD,
realizado por Batista, Rojo & Zúñiga (2005), acusa um número reduzido de editoras
envolvidas com o programa de modo geral, sendo que, nos dois anos, quatro delas detiveram
40% da oferta de títulos totais do PNLD, corroborando a hegemonia verificada já em décadas
119
anteriores: Ed. do Brasil, FTD, Ática e Scipione com 46,13% em 1999 (BATISTA, ROJO &
ZÚÑIGA, 2005, p. 58), e FTD, IBEP, Ed. do Brasil e Ática, com 48,31% em 2002 (ibid., p.
59). Se nos apoiarmos em informações mais atuais, verificamos que nas estatísticas do PNLD
2013, por exemplo, lideram o número de distribuições de livros de Português para o Ensino
Fundamental as editoras FTD, Ática e Scipione, num total de 28 coleções aprovadas pelo
programa (BRASIL-MEC/FNDE, s/d [b], p. 1). Embora nosso corpus de análise seja restrito
às coleções atribuídas ao Ensino Médio, enquanto que as tabelas de Höfling (2000) e os dados
de Batista (2005) et al., devido ao recorte temporal, fazem alusão aos materiais distribuídos ao
Ensino Fundamental pois o Ensino Médio só passa a ser totalmente contemplado pelo
PNLD a partir de 200550 , é correto afirmar que o ano escolar não modifica
significativamente o ranking editorial. Basta observar a reincidência das mesmas editoras na
edição do programa do qual retiramos nosso corpus, o PNLD 2015 do Ensino Médio.
Na leitura de Höfling (2000), tal concentração editorial implica, entre outros pontos,
uma análise sobre a “descentralização nas esferas de decisão e a alocação os recursos
públicos” (HOFLING, 2000, p. 169); “descentralizar” um programa de governo alinha-se, de
acordo com a autora, a sua democratização, especialmente ao se ter em vista o incisivo papel
de empresas privadas em um programa, a priori, público, como o PNLD (p. 164). Se
considerarmos que seu artigo foi publicado há dezoito anos, é possível somar a seus
questionamentos o atual, e crescente, domínio exercido por grandes grupos empresarias,
nacionais e estrangeiros, marcados pela fusão comercial de várias editoras, um fenômeno que
tem dado novos contornos aos monopólios na esfera educacional. Em 2016, a Leya Educação,
por exemplo, foi vendida para o Grupo Escala51, proprietário, entre outros segmentos, da
Escala Educacional, especializada em livros escolares. Também recentemente, a Kroton,
maior empresa de ensino superior do país, anunciou a compra da Somos Educação (antiga
editora Abril)52, grupo editorial que engloba Ática, Benvirá, Scipione, Saraiva, Anglo, entre
50
Não localizamos levantamentos análogos concernentes aos dados dos PNLDs do Ensino Médio, por isso
recorremos a pesquisas atentas às edições do Ensino Fundamental. Em estudo sobre a produção científica
envolvendo livros escolares no Brasil, abrangendo o período de 1975 a 2003, Batista e Rojo apontam que, de
fato, “O Ensino Fundamental é o objeto privilegiado da atenção dos pesquisadores” (BATISTA & ROJO, 2005,
p. 42).
51
“Editora Leya Educação é vendida para Grupo Escala”. Disponível em
<https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2016/06/1787212-editora-leya-educacao-e-vendida-pra-grupo-
escala.shtml>. Acesso em <11/01/2019>.
52
“Kroton fecha compra da Somos Educação por R$ 4,6 bilhões”. Disponível em:
<https://g1.globo.com/economia/noticia/kroton-fecha-compra-da-somos-educacao-por-r-46-bilhoes.ghtml>.
Acesso em 12/10/2018.
120
outros, além de ter expressado interesse pela compra da vertente brasileira da Santillana53,
empresa espanhola dona da editora de livros didáticos Moderna. Entre compras efetivadas e
em negociação, a “descentralização” defendida por Höfling torna-se cada vez mais distante.
Um aspecto importante concernente à participação reduzida de editoras no PNLD
tem relação, evidentemente, com seus efeitos comerciais e financeiros. Desde o quadro de
1994, disponibilizado pela pesquisadora, até a atualidade, verifica-se que a discrepância no
número de distribuições por editora vem acompanhada de uma desproporção bastante
significativa de investimentos financeiros54. Trata-se de um padrão de alocação de verbas que
torna mais clara a influência dos programas do MEC no mercado editorial. Atualmente, é
possível ter acesso apenas à lista de obras aprovadas, e não mais à de obras excluídas, o que
nos impede de saber se havia/tem havido editoras de menor porte entre os inscritos dos
últimos processos do PNLD. Trabalhos como os de Munakata (1997), que registram a
repercussão negativa, tanto a nível midiático quanto a nível comercial, da lista de obras
excluídas no ano de 1996, por exemplo, talvez expliquem as razões de o MEC manter o sigilo
de tais dados na atualidade. Focando-nos, porém, nos dados efetivamente publicados, o
aspecto a ser destacado é a evidente preponderância de determinadas editoras em detrimento
de outras e os efeitos do respectivo poder financeiro resultante dessa hegemonia.
São elucidativos, nesse sentido, os estudos da pesquisadora Célia Cristina de
Figueiredo Cassiano (2005; 2007; 2014), que, entre outros apontamentos, expõem as práticas
comerciais dos “divulgadores” das obras didáticas nas escolas, com base em relatos tanto de
ex-representantes das editoras quanto dos professores responsáveis por escolher as coleções a
serem utilizadas pelas instituições escolares. Seus levantamentos apontam para certo papel
coercitivo do marketing e da propaganda no processo de escolha dos docentes, visto que a tais
divulgadores cabia a missão de manter presença constante nas escolas, ofertando doações de
materiais didáticos, questionando insistentemente o corpo docente a respeito de suas
preferências e necessidades, criando, portanto, um vínculo com as instituições. Ou seja:
53
“Kroton negocia compra da Santillana Brasil”. Disponível em:
<https://www.valor.com.br/empresas/5458219/kroton-negocia-compra-da-santillana-brasil>. Acesso em
12/10/2018.
54
Os valores corresponentes às edições mais atuais do PNLD podem ser consultados em
<https://www.fnde.gov.br/programas/programas-do-livro/livro-didatico/dados-estatisticos>. Acesso em
12/01/2019.
121
quanto maior o capital da empresa, maior a força de sua publicidade e, consequentemente, sua
influência na decisão a ser tomada pelos professores e dirigentes55.
Se em termos práticos as estratégias de marketing podem figurar como um elemento
importante para se entender a disposição do ranking do PNLD, em termos burocráticos
algumas condições listadas no edital do programa parecem propiciar a baixa rotatividade das
listas. São aceitas não apenas obras inéditas, mas também “reapresentadas”. Apesar de se
tratar de um critério plenamente justificável, uma vez que em um período de quatro anos os
currículos escolares não costumam sofrer grandes mudanças, a possibilidade de se
reapresentar uma coleção que já fora positivamente avaliada pode, talvez, revelar-se um
empecilho à entrada de novos títulos. Sem nos estendermos muito, vale registrar que, das dez
coleções do PNLD 2015, sete já se faziam presentes no PNLD 2012 (BRASIL-MEC/FNDE,
s/d [c], pp. 11-13), sendo elas: PL01, NP02, PCIS03, LPLI04, SPLP06, VP08 e PLC09. No
PNLD 2018, por sua vez, também comparativamente à edição de 2015, vemos novamente
aprovadas as coleções NP02, PCIS03, LPLI04, SPLP06 e PLC0956.
A discussão sobre os aspectos editoriais e comerciais interligados ao PNLD que
desenvolvemos até aqui tem por objetivo ilustrar alguns dos fatores extraoficiais que parecem
exercer influência no conjunto final de obras aprovadas pelo programa. Acreditamos que tal
debate permite compreender melhor a origem e o perfil das coleções de 2015. Nesse mesmo
sentido, verificamos na pré-análise do nosso corpus que não apenas as editoras, mas, por
vezes, também o perfil dos autores funciona como um dado favorável a uma percepção mais
ampla sobre os materiais. Observamos, no caso, certa relação entre alguns traços dos livros
didáticos e a formação/ o vínculo institucional de parte de seus autores. Por exemplo: a obra
aparentemente mais inovadora no que tange à introdução do conteúdo das leis conta, entre
seus autores, com uma especialista em Literaturas Africanas a saber a coleção LP07. O fato
de o edital do PNLD não exigir uma formação específica, mas somente um diploma de
graduação ou de pós-graduação, torna diverso o currículo dos profissionais que assinam as
coleções, os quais se inclinam a um percurso acadêmico mais próximo ora da Linguística ora
55
Com base nas constatações de Cassiano (2005; 2007; 2014), apontamos a importância de se desenvolver novas
pesquisas etnográficas nas escolas, que busquem observar se e até que ponto sobra espaço para a diversidade
cultural enquanto critério seletivo no momento de aferição das coleções do PNLD nas escolas. Ou, dito de outro
modo, que critérios escapam à força publicitária exercida pelos divulgadores no ambiente escolar.
56
Novamente, seria interessante, a nosso ver, que mais pesquisadores da área realizassem estudos atentos a esse
aspecto. O acesso à relação de obras reprovadas pelo PNLD, por exemplo, permitiria compreender melhor quais
são as editoras e os livros que têm perdido lugar para a reincidente aprovação dos mesmos títulos, bem como
quais são os critérios que, de fato, justificam essas exclusões.
122
Estudos Literários, ou que, ainda, se formam em Letras, mas consolidam suas trajetórias
profissionais na esfera da educação, como professores do ensino básico. Tendo em mente,
então, o nosso dado indiciário sobre a influência dos currículos dos autores na composição
das coleções, fazemos menção a seus perfis ao iniciar a análise de cada título, de modo a
explorar essa possível relação.
57
O termo “análise linguística” passa a ser adotado pelos estudiosos da didática do ensino de português na
década de 1980, servindo de referência a um ensino mais reflexivo de gramática. Optamos por utilizar as duas
nomenclaturas pois a abordagem dos conhecimentos linguísticos varia de coleção para coleção.
58
Vale destacar duas Monografias de Conclusão de Curso (Licenciatura em Letras), orientadas pela
coordenadora do Grupo de Pesquisa MELP: “Análise linguística em LDs do Ensino Médio: estudo comparativo
das edições de 2006 e 2015 do PNLD-EM” (2016), de Natália Franzoni Oliveira; “Análise Linguística em Livros
Didáticos de 9º ano: atividades em foco” (2015), de Cora Conte.
123
literatura. Para defini-los, recorremos tanto aos dados obtidos em nossa pré-análise do PNLD
2015, a qual tornou evidente a necessidade de um registro padronizado de determinadas
ocorrências, quanto à metodologia de análise de manuais escolares de Português desenvolvida
pela pesquisadora portuguesa Maria de Lourdes da Trindade Dionísio e apresentada em seu
livro A construção escolar de comunidades de leitores – leituras do manual de Português
(2000). Assim, fazemos referência ao trabalho da autora na medida em que seu método tenha
inspirado e/ou tenha sido transposto ao nosso quadro metodológico. Embora suas propostas
não foquem a relação entre leitura e interculturalidade, mas sim as atividades de leitura dos
livros didáticos em uma perspectiva mais ampla, a transposição de suas ideias ao escopo da
nossa pesquisa mostrou-se pertinente e produtiva. Para tanto, ao selecionar e ao
eventualmente reinterpretar suas categorias, tivemos sempre em vista o objetivo de elaborar
quadros analíticos e de levantar ocorrências que favorecessem a investigação do cumprimento
das leis 10.639/2003 e 11.645/2008, ou seja, que auxiliem na investigação do processo de
introdução de textos não canônicos em livros historicamente compostos pelo cânone escolar,
e não de quaisquer ocorrências de leitura literária.
De modo geral, estabelecemos dois níveis de análise: o da macroestrutura e o da
microestrutura das coleções didáticas. Em ambos os casos, desenvolve-se um estudo de
caráter mais qualitativo que quantitativo59.
O primeiro nível, o da macroestrutura, envolve o estudo do Manual do Professor e
das escolhas editoriais concernentes à localização e à distribuição dos conteúdos impostos
pelas leis 10.639/2003 e 11.645/2008. As perguntas às quais buscamos responder com o
levantamento desses dados são: (i) quais são as diretrizes presentes e os objetivos anunciados
no Manual do Professor, sobretudo no que se refere à questão da diversidade cultural?; e (ii)
qual é o lugar e a abrangência das literaturas afro-brasileira, africanas e indígenas dentro das
obras, e em que medida esse projeto editorial fornece indícios sobre o modo pelo qual as leis
são interpretadas por cada coleção?
O segundo nível, o da microestrutura, volta-se, especificamente, ao estudo da
composição das seções/dos capítulos relacionados (completa ou parcialmente) aos conteúdos
59
A principal justificativa para essa distinção entre “macro” e “micro” está no fato de a maioria das pesquisas
por nós encontradas se restringir a categorizações de viés micro, ignorando, muitas vezes, estratégias editoriais
importantes para a compreensão das ideologias e dos fundamentos didático-pedagógicos dos livros didáticos. Foi
frequente em nosso levantamento bibliográfico a presença de estudos que, interessados na abordagem conferida
às literaturas e/ou temáticas negra, indígena e africana, limitavam-se à análise de atividades e de elementos
iconográficos, isto é, a aspectos do nível micro.
124
das leis, com foco preponderante nas instruções e nas atividades de leitura. A questão
levantada, então, é: como ocorre, afinal, a mediação de leitura do repertório postulado pelas
leis?
Apresentamos a seguir quadros-síntese das categorias analíticas que embasam o
estudo de cada um dos níveis de análise, assim como detalhamos e justificamos seus
fundamentos teórico-metodológicos.
60
Para a análise do Manual do Professor, adotamos duas das ramificações categóricas delineada por Dionísio
(2000) em seu Quadro 1 (“Categorias de análise dos ‘textos de abertura’”, p. 138), no caso, as subcategorias
“critérios de seleção de textos” e “objetivos das coleções”. Em seu estudo, essas ramificações atrelam-se a
aspectos daquilo que a autora denomina de “textos de abertura”, correspondente aos textos por meio dos quais é
possível notar “a forma como o autor perspectiva o uso que do seu manual deve ser feito” (ibid., p. 132). No
nosso trabalho, porém, tratamos os “textos de abertura” como sinônimo de “Manual do Professor”, posto que
associamos essa categoria a todas as orientações e respostas fornecidas aos docentes, sem exceção, daí a
pertinência de substituição de um termo por outro.
126
Objetivos das coleções, que podem ser de natureza técnica, ou seja, atrelados à
aquisição de saberes e de capacidades escolares de viés técnico-conteudístico61, e/ou
voltados à promoção/ao desenvolvimento de atitudes, estando associados, neste caso,
à “dimensão formadora da personalidade, a este papel socializador, bem como as
referências às atitudes e aos valores que se promovem, pela leitura, a par de atitude
crítica e do desenvolvimento afectivo e estético” (DIONÍSIO, 2000, p. 135). Esta
ramificação, em especial, favorece, a nosso ver, o levantamento de objetivos que
relacionem o cumprimento das leis 10.639/03 e 11.645/08 a uma formação para a
cidadania, pois atrelamos a essa subcategoria quaisquer objetivos que postulem
reflexões e atividades favoráveis à promoção de posturas (/“atitudes”) de combate ao
preconceito e à discriminação sofrida por negros e indígenas. Com base nas discussões
que apresentamos nos capítulos anteriores, entendemos que, para além de ampliar o
repertório sociocultural dos estudantes, as leis surgem também, e fundamentalmente,
com o intuito de discutir, a partir da literatura, atitudes e valores alinhados ao
reconhecimento crítico e positivo da pluralidade cultural. Daí a necessidade de
verificar se o trabalho com as literaturas afro-brasileira, africanas e indígenas proposto
pelas coleções busca articular objetivos que visem ao desenvolvimento de capacidades
e de conhecimentos técnicos a objetivos que visem suscitar novas atitudes frente à
temática.
nível macro sempre que tal relação se faça produtiva à apresentação da metodologia de
pesquisa.
62
Dionísio (2000) vale-se preponderantemente do termo “solicitações”, contudo, optamos pela expressão
“solicitações interpretativas” porque, além de mais esclarecedora, ela remete à expressão “solicitação de acções
interpretativas” (p. 180) empregada pela autora no início da apresentação de tal categoria.
63
No modelo de Dionísio (2000), tanto os “enquadradores” quanto as “solicitações” apresentam vários
desdobramentos analíticos. Para os fins do nosso estudo, recorremos a uma reinterpretação bastante resumida e
simplificada de sua proposta, motivo pelo qual suprimidos diversas subcategorias delineadas pela pesquisadora.
129
64
Os poemas em questão são: “Revolta” (1975), de Aguinaldo Fonseca; “Antievasão”, de Ovídio Martins
(1975); “Receita de um herói” (1996), de Reinaldo Ferreira; “Rumo” (1963), de Alda Lara; “Descoberta” (sem
data), de Conceição Lima; “Ilha nua”, Alda do Espírito Santo (sem data); “Antologia poética” (sem data), de
Helder Proença.
65
“Receita de um herói” (1996), de Reinaldo Ferreira.
130
apresentação dos capítulos e eventuais paratextos que atendem, de algum modo, aos
conteúdos das leis66. Embora esses textos não sejam imediatamente acompanhados de
atividades, notamos que eles interferem de forma significativa no direcionamento das leituras
dos textos que integram tais seções. O exemplo seguinte, retirado da mesma coleção,
evidencia, inclusive, um diálogo entre o que é anunciado na introdução do capítulo de
literaturas africanas (a qual transcrevemos, abaixo, quase que em sua totalidade) e o que
observamos no enquadrador discursivo do exemplo (i), anteriormente citado. A ideia de que
as literaturas africanas devam ser lidas fundamentalmente como literaturas de resistência faz-
se presente, portanto, desde a abertura do capítulo:
66
Na obra de Dionísio (2000), muitos dos textos introdutórios das coleções e de seus capítulos, bem como o
próprio manual do professor, são analisados a partir da categoria “textos de abertura” (DIONÍSIO, 2000, p. 131).
Contudo, para os fins do nosso estudo, a distinção entre “textos de abertura” e “enquadradores discursivos”
mostrou-se desnecessária. E tendo em vista as categorias às quais visamos dar maior evidência, o Manual do
Professor também acabou por figurar, por sua vez, uma subcategoria à parte dentro do nosso quadro analítico.
131
67
Em seu Quadro 3 (DIONÍSIO, 2000, p. 157), a autora propõe quatro tipos de «enquadradores»:
“interpessoais”, “paratextuais”, “extratextuais” e “textuais”. Desconsideramos na nossa análise o primeiro e o
segundo tipo, pois, contrariamente às finalidades do trabalho de Dionísio, ambos se mostram pouco relevantes
para a nossa pesquisa, haja vista a baixa frequência, nas coleções do Ensino Médio, de enunciados como
“Esperamos que tenhas gostado do texto que acabaste de ler” (ibid., p. 154), bem como o nosso baixo interesse
por detalhes relacionados à editoração (/papel dos paratextos). Portanto, abordaremos esses pontos conforme
eles se mostrem significativos para o entendimento dos livros didáticos, e não a partir de categorias
privilegiadas.
68
Cabe mencionar que a autora faz uma distinção entre enquadradores extratextuais em posição inicial (antes da
atividade), que teriam a função de “facilitar a compreensão do texto em estudo” (DIONÍSIO, 2000, p. 267), e
enquadradores extratextuais em posição final (após a atividade), que “só podem ser vistos como
preferencialmente servindo o alargamento de conhecimentos dos alunos” (ibid., p. 268). Trata-se, porém, de uma
distinção pouco relevante a nossa análise de dados.
132
69
Dionísio (2000) divide os «enquadradores textuais» em três tipos: citação, paráfrase e interpretativos. Para o
último, isto é para os “enquadradores textuais interpretativos”, propõe ainda cinco subcategorias: “citação”,
“identificação”, “inferência”, “síntese” e “juízo de valor”. Em nosso trabalho, decidimos aplicar seu modelo de
uma forma mais simplificada, sem nos atentar a nenhum desses desdobramentos na etapa de levantamento de
dados. Basta-nos identificar, inicialmente, quando um enquadrador é do tipo textual, independentemente de suas
especificidades.
70
Atividade referente a um trecho do romance As mulheres de meu pai (2007), de José Eduardo Agualusa.
71
“A sua não consideração como categoria de análise resultou (...) do facto de na testagem das categorias se ter
verificado que, neste caso dos ‘enquadradores’, não era significativo o número de enunciados que marcassem as
relações entre diferentes textos” (DIONÍSIO, 2000, p. 271).
133
Couto e Guimarães Rosa, por exemplo); e/ou relacionados uns aos outros (leitura
comparada entre um escritor de Angola e um escritor de Moçambique); e/ou, ainda, à
própria fortuna dos autores e/ou dos temas trabalhados, como em um exercício
proposto pela coleção Vozes do Mundo (2013), da editora Saraiva, no qual o
enquadrador discursivo fornece algumas definições de “cultura” formuladas pelo
intelectual Edward Said72 a fim de direcionar a atividade de leitura do texto “Poema
do futuro cidadão”, de José Craveirinha (vide ABREU-TARDELLI; ODA; CAMPOS
& TOLEDO, 2013 [Vol. 3], p. 217). Vale ressaltar, por fim, que se trata de uma
categoria micro bastante favorável ao estudo dos casos em que a macroestrutura é
caracterizada por uma localização e distribuição articulada, uma vez que a
intertextualidade afirma-se, a priori, o eixo fundador das duas ocorrências.
Reiteramos no início da seção que, para além dos enquadrados discursivos, quais
sejam, extratextuais, textuais e intertextuais, o quadro analítico da microestrutura dos livros
didáticos conta também com as solicitações interpretativas. Em relação a esse ponto, optamos
por uma releitura ainda mais contundente das subcategorias de Dionísio. Em seu Quadro 6
(DIONÍSIO, 2000, p. 189), a pesquisadora sugere serem sete os tipos de “operações de
leitura” comumente requeridas pelas solicitações: “identificação”, “inferência”, “síntese”,
“juízo de valor”, “justificação”, “mobilização” e “classificação”73. Ao considerarmos, no
entanto, o nosso objetivo de pensar a relação entre ensino de literatura/leitura e diversidade
cultural, assim como os embasamentos teóricos da nossa pesquisa tese, propomos um modelo
que dê evidência a apenas duas categorias de solicitações por nós formuladas, cada qual
associada, de forma implícita, a determinados tipos de “operações de leitura” elencados por
Dionísio. São elas: solicitações analíticas e solicitações cursivas.
As solicitações analíticas atrelam-se a ações de leitura de viés objetivo, circunscritas
nos limites delineados pelos textos, e envolvem, usualmente, operações de identificação,
72
Na coleção, Edward Said é apresentado como um “escritor indiano”, sendo que, na verdade, ele é palestino.
73
Em Quadro anterior (Quadro 5 – “Categorias de análise das ‘solicitações’ quanto ao ‘estatuto’ e ‘orientação’”,
p. 186), Dionísio chama igual atenção para os tipos de relações a ser estabelecidas entre os enquadradores e as
solicitações: tipo “independente” e tipo “dependente”. Para o tipo “dependente”, propõe ainda uma distinção
entre dependência “convergente” e “divergente”. Embora bastante interessantes, essas classificações mostraram-
se pouco produtivas para a nossa análise. Novamente, tais questões são abordadas apenas na medida em que se
façam necessárias para o desenvolvimento da abordagem qualitativa dos dados.
134
1. Na foto que abre este capítulo, vemos um jogo de capoeira. O que você
sabe a respeito da capoeira?
2. Além da capoeira, que outros elementos da cultura africana presentes no
Brasil você saberia apontar?
(...)
4. O eu lírico [do poema Sou Negro, de Solano Trindade] destaca também
uma contribuição cultural do escravo africano. Qual? (...) (SARMENTO &
TUFANO, 2010 [Vol. 3], p. 206).
74
Das operações listadas por Dionísio (2000), entendemos que cinco podem fundamentar, implicitamente, as
solicitações analíticas: as operações de identificação (de passagens/de aspectos explicitamente presentes nos
textos); de classificação (“acto inclusão de um objecto numa dada categoria [neste caso, linguística ou textual]”
[p. 189]); as de inferência (“preenchimento dos espaços em branco, a formulação de conclusões” [...], impregnar
“de sentido o que só parcialmente é dado pela superfície do texto” [ibid., p. 186]); as operações de síntese
(recapitulação pessoal de passagens/de informações do texto); e, finalmente, as de justificação (“solicitar
evidência para um produto antes apresentado [...]”, em geral, pelos enquadradores discursivos, ou solicitar que o
aluno explique “o processo pelo qual chegou a um determinado sentido” [p. 188]).
75
À luz de Dionísio (2000), identificamos como operações de leitura típicas da subcategoria solicitação cursiva
o juízo de valor (resposta de cunho mais pessoal; formulação de juízos críticos que podem envolver “resposta
emocional e/ou estética do leitor” [p. 187]”) e a mobilização (“solicitação da activação” de “conhecimentos
prévios (...)”, “(...) do repertório cognitivo relativo à língua, aos textos, ao mundo” [188]).
135
proposto aos estudantes que identifiquem uma informação presente no poema lido. Além
disso, a título de síntese, o enquadrador de 4 é também do tipo textual, pois conduz o leitor
novamente ao texto-fonte, e não a informações exteriores ao texto de Solano Trindade nem a
dados concernentes a outros textos com os quais o poema poderia estabelecer, eventualmente,
uma relação de intertextualidade.
É necessário esclarecer que ao propormos que as solicitações cursivas atendessem a
uma subcategoria de análise escolha esta que demandou significativas reinterpretações do
quadro analítico de Dionísio (2000) , visamos dar destaque à atual discussão sobre o lugar e
o papel da leitura subjetiva/cursiva no ensino de literatura. A partir dessa ramificação
categórica, defendemos, à luz de teorias contemporâneas sobre o “sujeito leitor” no contexto
escolar76, a importância de se conjugar a usual “leitura [escolar] analítica” (baseada em
conhecimentos, competências, capacidades etc.) à leitura do tipo “cursiva” (ROUXEL,
2012a), ou “subjetiva”, esta mais “pessoal”, “flexível” e “autônoma”, uma leitura que
“autoriza o fenômeno da identificação e convida a uma apropriação singular das obras.
Favorecendo outra relação com o texto, significa um desejo de levar em conta os leitores
reais” (ibid., p. 276). Portanto, longe de sugerir a renúncia “ao estudo da obra em sua
dimensão formal e objetivável” (ROUXEL, 2012a, p. 281), tais reflexões baseiam-se na
premissa de que a leitura com fins analíticos “não pode conduzir à exclusão de toda expressão
singular da subjetividade do leitor” (ROUXEL, 2012a, p. 278), dado que
Nessa leitura crítica [ou analítica], o leitor está principalmente atento aos
elementos relacionados a uma literariedade construída por meio do
conhecimento de códigos específicos da literatura (gênero, intertextualidade
etc.). Porém, em uma atitude de leitura ‘normal’ [...] minha atenção não está
focalizada exclusivamente nesses traços estéticos, nesses índices da
referência literária, o que não significa que sejam ignorados por mim, que os
apague artificialmente de meu espírito; estão, entretanto, associados a outros
elementos que remetem a minha personalidade global: meus conhecimentos
literários e minhas leituras anteriores, sem dúvida, mas também minha
experiência de mundo, minhas recordações pessoais, minha história própria.
(LANGLADE, 2013, p. 32).
76
Tem-se como marco recente dessa corrente de pesquisa o Colóquio “Le sujet lecteur” (2004), realizado na
cidade de Rennes, na França, evento que consolida a articulação de propostas teórico-metodológicas voltadas à
contextualização e à aplicação dos conceitos de “sujeito leitor” e de “leitura subjetiva” ao contexto escolar. Entre
seus pesquisadores, destacam-se Annie Rouxel, Gérard Langlade, Vincent Jouve, Jean-Louis Dufays e Michèle
Petit.
136
77
Tradução minha do original em espanhol: “supone siempre una dialéctica entre la estrategia del autor y la
respuesta del Lector Modelo”.
137
Uma vez apresentados, portanto, os pormenores dos quadros analíticos dos níveis
macro e micro das coleções didáticas, disponibilizamos uma síntese de todas as categorias que
embasam a nossa investigação:
***
78
No fechamento da seção anterior, ao discutirmos as particularidades das participações dos movimentos negro
e indígena na conquista das duas leis, levantamos algumas hipóteses acerca da ausência de documentos
regulatórios e de diretrizes para a implantação da lei 11.645/2008. Observamos que o ativismo do movimento
negro foi mais contundente que o do indígena no que tange à demanda por modificações no sistema regular de
ensino, de modo que há mais clareza sobre o que a militância negra espera da lei 10.639/03, em termos de
currículo e de propostas pedagógicas, e menos sobre os conteúdos que podem vir a embasar a implantação da lei
de 2008. Historicamente, no campo da educação, os povos originários dedicaram-se quase que exclusivamente à
formalização da educação escolar indígena e menos aos problemas relativos às escolas convencionais. Esse
aspecto pode explicar, parcialmente, a discrepância no número de documentos legais que regem as duas leis.
139
construção da nação brasileira, aos elos culturais e históricos entre diferentes grupos étnico-
raciais, às alianças sociais” (CNE/CP nº 3/2004 apud BRASIL-MEC/SECADI, 2013, p. 88),
levantamos a hipótese de que a presença de enquadradores discursivos do tipo extratextual,
que forneçam informações acerca do contexto sócio-histórico dessas literaturas, e do tipo
intertextual, que relacionem as produções textuais de Brasil e África e/ou literatura nacional
canônica e literaturas indígenas, possa ser especialmente produtiva para o cumprimento das
diretrizes legais. Igualmente, como vimos em relação ao eventual papel a ser exercido por
enquadradores intertextuais, nas fichas avaliativas do PNLD 2015 há um indicativo de que
essa aproximação mostra-se didaticamente desejável, à medida que se pergunta: “[As
atividades] abordam a literatura brasileira em diálogo com outras literaturas de língua
portuguesa?” (BRASIL-MEC/SEB, 2014b, p. 96).
A nosso ver, esse destaque ao potencial pedagógico de operações de leitura de cunho
inter e extratextual aproxima-se dos fundamentos do “método comparativo” e da “abordagem
prospectiva” que Vima Martin (2016) tem postulado para o ensino das literaturas africanas e
afro-brasileiras no Ensino Médio, “na esteira do proposto por Benjamin Abdala Jr.”:
79
Esse segundo bloco de indicações de escritores, retirado do segundo documento oficial analisado, também
rememora Cuti e a Solano Trindade, juntamente à observação de que todos os autores citados podem vir a
integrar saraus de poesia que contem com textos de “Cecília Meireles, Vinícius de Morais, Carlos Drumond de
Andrade, Manoel Bandeira, entre tantos poetas e escritores brasileiros” (MEC/SECAD, 2006, p. 171). Vale
destacar que tais recomendações são feitas à Educação Infantil, mas que, apesar disso, as julgamos igualmente
ou até mesmo mais pertinentes ao Ensino Médio.
80
Indicações feitas ao Ensino Fundamental, mas consideradas, por nós, adequadas ao Ensino Médio.
143
81
Trabalhos sobre “literatura negra” e/ou “afro-brasileira”: DUARTE (2015), DA SILVA (2011) e BERND
(1988); sobre “literaturas africanas”: LEITE (2013) e ABDALA JUNIOR (2007); sobre “literatura indígena”:
THIÉL (2012; 2013) e GRAÚNA (2003); literaturas indígenas brasileiras, afro-brasileira e africanas e práticas
pedagógicas: DUARTE (2014), AMÂNCIO et al (2008), ABDALA JUNIOR (2003), DA SILVA & GRUPIONI
(1995); outros: RISERIO (1993).
145
nos leva a perguntar: quem os livros de Português escolhem para o cumprimento das leis e
como suas produções artístico-literárias são apresentadas. Para avaliar o como, buscamos dar
especial destaque a dados, a aspectos e a propostas didático-pedagógicas do PNLD 2015 que
se mostrem alinhados e/ou contrários à consolidação de uma educação literária de viés pós-
colonial, tal qual debatida nas seções iniciais deste trabalho.
A escolha de apresentar as análises isoladamente, uma a uma, é justificada pela
necessidade de manter um diálogo entre os níveis macro e micro das coleções, isto é, de
estabelecer relações entre a composição do projeto editorial e do Manual do Professor e as
respectivas chaves e atividades de leitura sugeridas aos alunos. Contudo, na subseção 4.2.,
que encerra este capítulo, chamamos a atenção para as principais similaridades e
discrepâncias identificadas entre as coleções analisadas. Outrossim, a despeito de não se tratar
de uma análise de viés longitudinal82, consideramos pertinente ao entendimento daquilo que
repetidas vezes chamamos de “cânone literário escolar” ou “modelo clássico de ensino”
recorrer, breve e pontualmente, a comparações com livros didáticos mais antigos, que
permitam atestar e elucidar o teor das mudanças e das inovações desencadeadas pelas leis. Em
virtude disso, algumas passagens de Português Linguagens (2013), de William Roberto
Cereja e Thereza Cochar Magalhães, são comparadas a trechos de suas edições anteriores, a
saber, a edição de 1994 e de 2003. Essa escolha se deu com base no lugar historicamente
ocupado por esses autores no mercado editorial de livro didático. Suas obras fazem-se
presentes em grande parte das listas até hoje aprovadas pelo PNLD, tanto no nível
Fundamental quanto no nível Médio. Enfatizamos que, com essas leituras, objetivamos
apenas assinalar alguns contrastes mais evidentes dos efeitos das leis na produção de
materiais escolares, sem nos desviar do nosso corpus, o qual, por sua vez, corresponde a obras
publicadas entre os anos de 2013 e 2014, ou seja, a um distanciamento temporal de dez anos
da data de aprovação da lei 10.639/2003.
82
Traçar paralelos entre diferentes edições de um mesmo livro didático parece ser, a nosso ver, uma produtiva
possibilidade de pesquisa. Nesse sentido, por fugir ao escopo do nosso trabalho, registramos aqui tal lacuna
analítica, a fim de incentivar outros investigadores a abordar, de forma sistemática, a questão da descolonização
dos livros didáticos a partir de um estudo longitudinal.
147
SIGLA: PL01
83
Temas como “meio ambiente”, “ética e corrupção”, “consumismo”, “valorização do idoso”, entre outros.
84
Texto “Filme propõe um olhar amoroso mas não idealizado” (O Estado de S. Paulo, 5/4/2012).
85
Textos: “Cota valida teses racistas”, de José Roberto Ferreira Militão (foi secretário-geral do Conselho da
Comunidade Negra no governo do Estado de São Paulo e atuou na Comissão de Assuntos Antidiscriminatórios
da OAB/SP) e “Cotas enriquecem universidades”, de Hédio Silva Jr. (foi secretário do governo do Estado de São
Paulo e, na ocasião, diretor acadêmico da Faculdade Zumbi dos Palmares e do Centro de Estudos das Relações
de Trabalho e Desigualdades).
150
Também na leitura dos textos opinativos sobre as cotas raciais não se propõe que o
professor conduza os estudantes a reflexões extratextuais ou interdisciplinares acerca das
cotas. Por outro lado, ao observamos os exemplos a seguir, é possível notar que o gênero
debate, somado ao caráter opinativo dos textos-fonte e ao objetivo de exercitar a estratégia/a
produção de contra-argumentação, atribui um tom mais crítico à análise textual, justamente
por demandar um olhar, por vezes, mais aprofundado às nuances dos argumentos presentes
em cada texto:
Ao todo, são lançadas treze perguntas aos estudantes. O gabarito do material limita-
se a fornecer ao professor a resposta esperada, não havendo nenhuma sugestão de
desdobramento da discussão. Somente nas atividades finais, item 7, dá-se espaço às
impressões pessoais dos alunos sobre a argumentação de cada autor:
86
Os dois filósofos são Aristóteles e Immanuel Kant; o historiador é Sérgio Buarque de Holanda.
152
Por se tratar de um capítulo introdutório e, por isso, bastante aberto à fruição estética,
é igualmente interessante o fato de quatro das sete perguntas que integram a mediação de
leitura do poema “Grito Negro” corresponderam a solicitações cursivas, ou seja, a indagações
87
Na edição de 2003 de Português Linguagens, aprovada pelo PNLEM, a subseção “O que é literatura?”
(CEREJA & MAGALHÃES, 2003, p. 31) contava apenas com textos do cânone escolar, assinados por Carlos
Drummond de Andrade (pp. 31-32), Fernando Pessoa (p. 33) e Vinícius de Morais (p. 33). Na reconfiguração
proposta pela edição de 2013, em que a subseção torna-se um capítulo, é possível afirmar que o poema de José
Craveirinha acaba por assumir um lugar de destaque, haja vista figurar como texto principal de uma das
atividades de leitura do capítulo. Ainda que Carlos Drummond de Andrade, Fernando Pessoa e Vinícius de
Morais deixem de compor o capítulo introdutório da edição do PNLD 2015, suas obras dão lugar a textos
literários de Moacyr Scliar (CEREJA & MAGALHÃES, 2013 [Vol. 1], p. 16), Casimiro de Abreu (p. 23) e
Antônio Cacaso (ibidem). Assim, o cânone escolar não é apagado em nome da inclusão de um escritor
moçambicano, é apenas atualizado. Nesse sentido, entendemos que tais mudanças mostram-se alinhadas com a
ideia de descolonização da educação literária e reforçam os efeitos da lei 10.639/08 nos livros didáticos.
154
atentas às possíveis leituras subjetivas dos alunos. Selecionamos alguns exemplos que
ilustram a coexistência de solicitações do tipo analítica e do tipo cursiva no referido capítulo:
Você vai ler a seguir três fragmentos da Carta de Pero Vaz de Caminha e
dois trabalhos de artistas que dialogam com a Carta: uma tira de Nilson e
um cartum de Marcos Müller.
[...]
TEXTO IV
TEXTO V
158
[...]
5. Aponte semelhanças entre os textos lidos e os versos de Camões a seguir,
quanto ao ponto de vista do colonizador português sobre os motivos da
colonização.
E também as memórias gloriosas
Daqueles reis que foram dilatando
A Fé, o Império, e as terras viciosas
De África e de Ásia andaram devastando,
[Resposta: Tanto na Carta de Caminha quanto nesse fragmento de Os
lusíadas, de Camões, os interesses econômicos e políticos do imperialismo
português são justificados com o argumento da necessidade de levar o
cristianismo às ‘terras viciosas’ (não cristãs).]
6. Compare o texto IV ao texto III. Que semelhanças há entre eles?
[Resposta: Ambos os textos abordam o tema da expansão e do império
português (motivada por interesses econômico, político e militar),
justificada pela necessidade de expandir a fé cristã.]
7. No texto III, Caminha diz ao rei: “Mas o melhor fruto que nela se pode
fazer, me parece salvar essa gente”. Comparando o texto de Caminha ao
cartum de Marcos Müller, é possível perceber pontos de vista diferentes
sobre a conquista e a colonização do Brasil.
a) De acordo com o ponto de vista do conquistador europeu, o objetivo de
“salvar” os índios foi alcançado no transcorrer do tempo? Por quê?
[Resposta: Sim, pois os portugueses catequizaram os índios e procuraram
implantar sua civilização no Brasil.]
b) Do ponto de vista do cartunista, o que resultou da relação do conquistador
com os índios? Por quê? [Resposta: O contato com o conquistador europeu e
a posterior colonização do Brasil levaram os índios, historicamente, à
marginalização e à indiferença social. Isso porque os índios foram
espoliados de seus bens e de sua cultura pelos conquistadores.] (CEREJA &
MAGALHÃES, 2013 [Vol. 1], pp. 201-202).
(textos IV e V), a coleção conduz a mediação da leitura das Cartas de Caminha para a
contemporaneidade e, em certa medida, para uma interpretação de cunho pós-colonial. É
igualmente relevante citar que se fazem ressalvas quanto à pertença da literatura produzida no
período colonial; esclarece-se que “embora a literatura brasileira tenha nascido no período
colonial, é difícil precisar o momento em que passou a se configurar como uma produção
cultural independente dos vínculos lusitanos [...]. Por essas razões, alguns historiadores da
literatura preferem chamar a literatura aqui produzida até o final do século XVII de
manifestações literárias ou ecos da literatura no Brasil colonial” (CEREJA &
MAGALHÃES, 2013 [Vol. 1], p. 198-199).
Antes de dar início à análise do Indianismo e do Condoreirismo, consideramos
bastante válido tecer alguns comentários relativos às edições anteriores de Português
Linguagens. Nas coleções homônimas publicadas por seus autores em 1994 e em 2003, sendo
esta, inclusive, uma das obras aprovadas pelo Programa Nacional do Livro Didático para o
Ensino Médio (PNLEM) 2005, identificamos a manutenção parcial da atividade de leitura
supracitada. Nas três edições (1994, 2003 e 2013), os textos I, II e III, referentes a trechos da
Carta de Caminha, mantêm-se os mesmos, bem como grande parte das perguntas sobre eles
levantadas. São, pois, as charges que sofrem substituições. As charges que disponibilizamos
anteriormente, que integram PL01, não são as mesmas que encontramos nas edições
precedentes:
(i)
(ii)
160
desloca o olhar do aluno também para a perspectiva do colonizado, rompendo, portanto, com
o modelo clássico de ensino88.
Concernente, por fim, ao Romantismo, a coleção descreve uma literatura de
“conotação de movimento anticolonialista e antilusitano, ou seja, de rejeição à literatura
produzida na época colonial” (CEREJA & MAGALHÃES, 2013 [Vol. 2], p. 53).
Especificamente sobre o Indianismo, analisa-se, na poesia, o canto IV de “I-Juca-Pirama”, por
meio, sobretudo, de enquadradores textuais e de solicitações analíticas de identificação, de
síntese e de inferência. Na prosa, é feita a usual apresentação da obra de José de Alencar,
seguida, porém, de uma abordagem inovadora desenvolvida a partir da subseção “literatura
comparada”, sob o título “Diálogo entre a poesia africana contemporânea e a prosa romântica
brasileira”. Afastando-se da questão indígena, PL01 centra-se na afirmação de identidade no
Brasil e em Angola, tendo por base a leitura dialógica de um fragmento de Iracema (1865), de
Alencar, e do poema “Carta de um contratado” (1961), de Antônio Jacinto. Inicialmente,
fazem-se perguntas interpretativas sobre cada um dos textos (a maioria delas, nos dois casos,
do tipo solicitações analíticas de identificação e de inferência), sendo especialmente
interessante para a nossa análise duas delas: a que questiona o papel de José de Alencar nessa
busca identitária, e a que concretiza a leitura comparada:
[...]
2. José de Alencar foi um dos principais escritores brasileiros empenhados
no projeto romântico de construir uma identidade nacional. Por meio da
literatura, o escritor pretendia libertar a cultura brasileira do domínio da
cultura portuguesa. De que modo o escritor põe em prática esse projeto, no
texto, considerando-se os aspectos da língua e do espaço? [Resposta:
Empregando palavras indígenas e destacando elementos da fauna e da flora
88
Verificamos uma ocorrência similar envolvendo o estudo do Condoreirismo nas edições de 1990 e de 2010 de
coleções assinadas por Douglas Tufano, sendo a segunda constitutiva da lista de obras aprovadas pelo PNLD
2013. Apesar de a edição mais recente ser também assinada por Leila Lauar Sarmento, e não apenas por Tufano,
algumas similaridades de repertório e de enquadramento de leitura acabam por justificar o registro da
discrepância por nós levantada. Nos dois casos, o capítulo da produção romântica encerra-se com uma proposta
de discussão, sendo que em Estudos de Língua e Literatura (1990) o recorte temático escolhido é “Os negros no
Brasil, ontem e hoje” (TUFANO, 1990 [Vol. 2], pp. 58-60), a partir do qual se solicita a produção textual de
uma dissertação sobre o “relacionamento atual entre brancos e negros no Brasil” (ibid., p. 61). Em Português –
Literatura, Gramática e Produção de Texto (2013), por sua vez, o “negro” enquanto tema é substituído pela
autoria negra, dado que no fechamento do trabalho com a poesia romântica tem-se a seção “Poesia negra –
ontem e hoje” (SARMENTO & TUFANO, 2013, pp. 124-125). No lugar de textos sobre a condição da
população negra no Brasil “ontem e hoje”, a edição mais recente do livro de Tufano disponibiliza produções
literários de poetas afrodescendentes mais antigos e mais recentes, como Luís Gama e Solano Trindade. Tendo
em vista que é possível notar algumas permanências na edição de 2010 se comparada à edição da década de
1990, tal exemplo configura-se, certamente, uma interessante e significativa ruptura.
162
452). Portanto, em PL01, o uso do Indianismo como ponte para uma releitura da imagem e de
estereótipos indígenas fica ao critério de escolha do professor.
A pergunta 5, por sua vez, parte de uma aproximação entre Brasil e Angola para
chegar a uma indicação de comparação mais ampla, que inclua também Moçambique. A
referência a este país justifica-se pelo conteúdo do Box “Oratura na África”, localizado na
página anterior às atividades. Tendo como gancho a problemática do analfabetismo presente
no poema de Antônio Jacinto, PL01 expõe no Box a importância da oralidade nas culturas
africanas: “Moçambique e Angola foram colônias de Portugal até a década de 1970. Até essa
data, esses países eram dependentes da metrópole também culturalmente e viviam um grave
problema de analfabetismo. Isso não quer dizer, porém, que neles não havia uma intensa vida
cultural e literária. Havia, sim, e tal era a importância dessa produção transmitida oralmente,
que se costuma chamá-la de oratura [...]” (CEREJA & MAGALHÃES, 2013 [Vol. 2], p.
132). Observa-se, então, que se, por um lado, as culturas indígenas brasileiras parecem ficar
em segundo plano, por outro, PL01 faz uso da clássica apresentação do Indianismo para
promover uma leitura mais abrangente sobre a afirmação das identidades e sobre o “protesto
contra o colonialismo” experimentado nas literaturas escritas no Brasil e em outros países
colonizados por Portugal.
No Condoreirismo, a única atividade de leitura baseia-se num fragmento do canônico
“O navio negreiro” (1868), de Castro Alves, ainda que o poeta Sousândrade também seja
apresentado. Para análise do poema, observam-se solicitações analíticas contendo operações
de identificação por estrofe. O que mais chama a atenção no capítulo é o Box intitulado
“Brasil: país da diversidade e da desigualdade”, no qual se afirma:
iniciada por Castro Alves (ironicamente um branco) deveria ser levada adiante” reitera a falsa
ideia de passividade dos negros frente ao colonialismo. À luz dos documentos estudados na
seção anterior, sabe-se que PL01 poderia ter recorrido, nesse contexto, a algum dos nomes de
abolicionistas negros indicados pelos textos regulatórios das leis, como Luís Gama ou Cruz e
Sousa, contemporâneos de Castro Alves, ou até mesmo Zumbi, personagem histórica anterior
ao poeta, que serve de contestação à afirmação de que a luta teria sido iniciada com o
representante do Condoreirismo. Em suma, faz-se uma ponte a figura do negro no século XIX
e na atualidade, mas por meio de um discurso que dá margem à propagação de estereótipos e
de lacunas históricas sobre o movimento negro.
6. Você diria que o texto apresenta um fundo filosófico? Por quê? [Resposta:
Espera-se que os alunos percebam que sim, pois ele promove uma reflexão
sobre questões metafísicas, como vida e morte, passagem do tempo, razão
de existir, vida depois da morte, etc.] (CEREJA & MAGALHÃES, 2013
[Vol. 3], p. 384).
africana foi/é “cultivada muitas vezes por portugueses ou por filhos de portugueses que
viviam na África”, quando desprovida de aprofundamento, é passível de instituir uma
condição de dependência de Portugal, por exemplo. Nem no Caderno do Aluno nem no
Manual do Professor essa discussão é retomada.
Em relação às atividades, nota-se que, seguindo a tendência dos demais capítulos de
literatura do século XX, predominam no capítulo de literaturas africanas produtivas
solicitações analíticas, não sendo, porém, o texto literário um simples pretexto para a
aprendizagem de conhecimentos linguísticos e/ou literários, mas sim uma fonte para
exercícios reflexivos da interpretação. Atendendo ao mesmo padrão de exercícios verificado
nas seções de literatura contemporânea que precedem tal seção, não se dá muito espaço a
solicitações cursivas, uma vez que mesmo nas perguntas em que se assinala a expectativa de
uma “resposta pessoal” espera-se, ao fim, uma leitura mais objetiva que subjetiva. Aqui,
cabem algumas considerações sobre a forma pela qual esse tipo de exercício é elaborado.
Atentemo-nos ao exemplo:
4. A parte 3 [do poema de Onésimo Silveira] descreve como será esse tempo
imaginário.
a) Dê uma interpretação coerente a estes versos: ‘As crianças nascerão sem
metas nos olhos’, ‘As crianças serão crianças!’. [Resposta pessoal. Sugestão:
Com a liberdade conquistada, as crianças não terão com que se preocupar,
isto é, serão apenas amadas pelos adultos] (CEREJA & MAGALHÃES,
2013 [Vol. 3], p. 385).
4. Já quase no final do conto [de Mia Couto], o avô desce do barco e pisa “os
interditos territórios”. Nesse momento, o neto consegue ver os panos na
margem, inclusive o pano vermelho de seu avô, que começa a mudar de cor.
a) Interprete a mudança de cor do pano do avô. [Professor: sugerimos abrir
a discussão com a classe, pois pode haver mais de uma interpretação.
Sugestão: ele representa a morte do avô.] (ibid., p. 384).
obras de países africanos, pois todas as perguntas e respostas envolvendo “resposta pessoal”
convergem para um gabarito muito similar aos que observamos nas solicitações analíticas. É
certo que as leituras subjetivas possam, ou talvez devam, ser direcionadas a um consenso
analítico; é igualmente correto considerar que o indicativo de “resposta pessoal” no Manual
Professor não seja suficiente para determinar se uma solicitação é ou não do tipo cursiva. A
questão 6 sobre o conto de Mia Couto que analisamos anteriormente (“Você diria que o texto
apresenta um fundo filosófico? Por quê?”) comprova essa premissa, pois recorre à operação
de mobilização de conhecimentos prévios (no caso, sobre filosofia), abrindo um leque de
respostas possíveis, consequentes das diferentes experiências dos leitores, mas sem assinalar a
expectativa de “resposta pessoal”. No entanto, em todas essas ocorrências, nota-se o risco de
solicitações de potencial cursivo funcionarem apenas como leituras interpretativas
convencionais, dada a ausência de instruções detalhadas no Manual do Professor.
Partindo, então, para o teor das solicitações analíticas, julgamos as atividades a
seguir especialmente interessantes à questão da descolonização do discurso escolar e do
pensamento:
90
Por fim, no que tange à diversidade das literaturas de língua portuguesa no mundo, cabe registrar que a
coleção aborda, no capítulo “As variedades linguísticas” (Vol. 1), um poema (sem título) de Xanana Gusmão,
poeta do Timor Leste (Oceania) (CEREJA & MAGALHÃES, 2013 [Vol. 1], p. 81).
91
Os outros recortes temáticos da atividade são: “Nordeste no Cinema” e “O romance de 30 na visão de Antonio
Candido”.
170
SIGLA: NP02
92
Publicado em Literatura e Sociedade (USP), v. 9, 2006.
174
bem como a quebra do referido elitismo, com base, justamente, na ausência de escritores
como Ferréz no rol de autores ofertados nas escolas; escritores estes como os citados pelo
autor de Capão pecado na complementação de sua resposta sobre Madame Bovary, não
apresentada pelo material:
93
A entrevista à qual NP02 faz referência pode ser lida integralmente em:
<https://www1.folha.uol.com.br/fsp/folhatee/fm0606200515.htm>. Acesso em 04/03/2019. O trecho por nós
citado não constava no material, mas é, a nosso ver, imprescendível ao entedimento da experiência literária de
Ferréz.
94
Demais autoras listadas: Nísia Floresta (1810-1885); Maria Benedita Bormann (1852-1917); Narcisa Amália
(1852-1924); Júlia Lopes de Almeida (1862-1934).
176
95
Disponível em < http://www.letras.ufmg.br/literafro/autoras/29-critica-de-autores-feminios/317-maria-
firmina-dos-reis-e-os-primordios-da-ficcao-afro-brasileira-critica>. Acesso em 30/09/2018.
177
que, no próprio Caderno do Aluno, por meio de seus enquadradores textuais e das respostas
das atividades, chama a atenção para o tom fantasioso e para os interesses políticos e
econômicos subjacentes ao teor das cartas do Descobrimento, NP02 descreve, sem nenhuma
ressalva ou complemento, a “Carta de Caminha” aos alunos como “a certidão de nascimento
do Brasil”, por exemplo.
Como última análise do capítulo do Quinhentismo, comentamos as leituras
comparadas que, em NP02, englobam o contexto da colonização. Nas atividades finais da
seção, propõe-se a leitura conjunta da “Carta de Caminha” e do poema “Carta de Pero Vaz”
(1932), de Murilo Mendes (ibid., p. 103), cujos exercícios de interpretação obedecem, uma
vez mais, à lógica de “estudo interno da Literatura”, e, ao contrário das atividades anteriores,
não contam com sugestões de procedimento mais aprofundadas no Manual do Professor.
Observam-se, então, solicitações analíticas pouco reflexivas, visto que não se requer dos
estudantes uma interpretação que extrapole os conteúdos intratextuais do texto. Ilustram com
clareza esse aspecto as atividades 4 e 5, que transcrevemos a seguir. Se analisarmos as
respostas dadas ao Professor, percebemos que a mediação de leitura em NP02 acaba por ser
superficial e desprovida de uma efetiva articulação entre as ideias dos dois autores no que se
refere às narrativas coloniais:
SUGESTÃO DE ATIVIDADES
Atividade interdisciplinar com História: pesquisa sobre os movimentos
negros atuais no Brasil. Há na internet muitos sites e farta documentação
181
Essa última ilustração daquilo que classificamos como “quebra coesiva” em NP02,
visto que, contrariamente ao Manual do Professor, nada é apresentado sobre a literatura
negra/afro-brasileira no Caderno do Aluno, leva-nos a repensar os sentidos da categoria
localização e distribuição tangencial, que empregamos na análise do nível da macroestrutura
das coleções. Até aqui, tal categoria fez referência apenas à localização periférica dessas
literaturas quando presentes no Caderno do Aluno. Todavia, restringir o efetivo cumprimento
das leis às orientações específicas e extras elencadas no Manual do Professor parece-nos,
também, uma forma de tangenciamento, uma vez que não se alteram nem a clássica
disposição de conteúdos nem o clássico repertório dos livros didáticos de literatura96. Em uma
primeira leitura, concentrar os conteúdos das leis em tarefas “extraclasses” sugeridas apenas
no Manual do Professor pode acabar por consolidar um novo tipo de marginalização, e não
uma efetiva introdução, das produções indígenas, afro-brasileira e africanas no contexto
escolar.
Especificamente na subseção do Indianismo, uma atividade de leitura comparada
entre o poema “O canto do piaga” (1846), de Gonçalves Dias, e um texto da FUNAI
intitulado “O deslocamento da população” inova ao tratar, já no Caderno do Aluno, a questão
indígena para além de seu papel no Romantismo. Assim, questionam-se, no exercício, os
imaginários e os estereótipos da literatura romântica, de modo que os objetivos e sugestões de
leitura descritos no Manual do Professor alinham-se, de forma explícita, à realização de uma
leitura mais reflexiva: “2. Refletir sobre a situação dos indígenas brasileiros e a perda da
96
Essa restrição de conteúdos que atendam à diversidade cultural apenas ao Manual do Professor leva-nos a
concluir que seria interessante conjugar, futuramente, o nosso estudo documental a pesquisas etnográficas que
verificassem em que medida os docentes colocam em prática as sugestões extraclasse feitas pelos livros
didáticos. Reiteramos essa lacuna no sentido de motivar novas pesquisas. Na impossibilidade de realizarmos um
estudo de campo, deixamos algumas perguntas que, no momento, carecem de dados e de respostas: de que modo
e com que frequência as sugestões pedagógicas de recorte multicultural são trabalhadas pelos professores,
quando restritas ao Manual do Professor e acompanhadas do indicativo “extraclasse”?
182
identidade cultural”97; “3. Refletir sobre a idealização dos indígenas praticada por Gonçalves
Dias e pelos autores indianistas românticos”; “provocar uma discussão sobre a problemática
indígena” (AMARAL; FERREIRA; LEITE; ANTÔNIO, 2013 [Vol. 2 – Apêndice: “Caderno
do Professor”], p. 36). A seguir, transcrevemos a referida atividade:
No que tange a essa atividade, não identificamos a quebra coesiva à qual fizemos
menção anteriormente, pois, neste caso, a respectiva “sugestão de atividade interdisciplinar [e
extraclasse]” do Manual do Professor funciona como uma continuidade do conteúdo presente
no Caderno do Aluno. Inclusive, sugere-se no material que “em parceria com professores de
outros componentes curriculares (História, Geografia, Matemática, Artes), realizar pesquisa
sobre a situação dos indígenas brasileiros (contingente populacional, gráficos, distribuição
territorial, mapas, situação cultural, social e jurídica, tradições, reservas indígenas, ações
97
Os significados do que seria uma “perda de identidade” não ficam muito claros na coleção.
183
governamentais etc.). O trabalho pode ser ilustrado com fragmentos de poemas indianistas”
(AMARAL; FERREIRA; LEITE; ANTÔNIO, 2013 [Vol. 2 – Apêndice: “Caderno do
Professor”], p. 36).
Reestruturando o cânone I: literaturas africanas e literatura negra/afro-brasileira em
NP02
africanas uma espécie de apêndice dessas produções. No Manual do Professor, essa impressão
é confirmada, de certa forma, pela descrição dos objetivos da leitura de abertura do capítulo:
“1. Introduzir os alunos no estudo da produção literária portuguesa contemporânea [...]”
(AMARAL; FERREIRA; LEITE; ANTÔNIO, 2013 [Vol. 3 – Apêndice: “Caderno do
Professor”], p. 55).
Além disso, a escassez de repertório de matriz africana é acompanhada da escassez
de enquadradores discursivos extratextuais. Destoando de parte dos livros didáticos que
compõem nosso corpus, bem como do padrão editorial de outros textos introdutórios
presentes na própria coleção, NP02 não oferece enquadradores extratextuais que façam a
mediação entre as leituras a serem realizadas pelos estudantes e contexto cultural e social dos
autores e das obras de países africanos. Nos enquadradores que abrem o capítulo, dão-se
apenas informações bastante breves, como “[essas literaturas] desenvolveram-se a partir da
década de 1940 e vêm adquirindo maturidade ao longo desse período e em seguida ao
processo de descolonização, com a Revolução dos Cravos, em 1974” (AMARAL;
FERREIRA; LEITE; ANTÔNIO, 2013 [Vol. 3], p. 155). Ademais, só se faz referência a
todos os países africanos de língua oficial portuguesa, por exemplo, no Box que encerra e
resume o capítulo, por meio de um discurso bastante vago em termos de fundamentação
teórico-literária:
98
Fonte do fragmento: ROSA, João Guimarães. Um diálogo de Günter Lorenz e Guimarães Rosa. Arte em
Revista, São Paulo: Kairós, ano 1, n. 2, p. 8, maio/ago. 1979. Entrevista concedida a Günter Lorenz.
186
99
Obras dadas como exemplo de tal tendência: O cus de Judas (1979) e Não entres tão depressa nessa noite
escura (2000), de António Lobo Antunes; A costa dos murmúrios (1988) e O vento assobiando nas gruas
(2002), de Lídia Jorge; Partes de África (1992), de Helder Macedo.
188
2013 [Vol. 1], p. 198). Embora não se configure uma atividade de leitura comparada
propriamente dita, a atividade em questão é a que mais se aproxima da abordagem
comparativista.
ABAURRE, Maria Luiza M.; ABAURRE, Maria Bernadete M.; PONTARA, Marcela.
Português – Contexto, Interlocução e Sentido (Livro do Professor), 2ª ed., Volumes 1, 2 e
3, São Paulo: Moderna, 2013.
SIGLA: PCIS03
micro, em que conjugamos a análise dos textos e das atividades do Caderno do Aluno às
respostas e orientações disponibilizadas ao professor.
(ii) Chamar a atenção dos alunos para o fato de alguns índios terem sido
representados com cocares e mantos de penas coloridas. Geralmente, esse
tipo de adorno é utilizado na prática de rituais, não no momento da caçada.
100
A quem possa interessar, o mapa em questão pode ser facilmente encontrado nos sites de busca da internet.
195
2. Releia.
“E imprimir-se-á facilmente neles todos e qualquer cunho que lhes quiserem
dar, uma vez que Nosso Senhor lhes deu bons corpos e bons rostos, como a
homens bons.”
a) O trecho destacado revela os princípios que nortearam a colonização
portuguesa. Explique por quê. (ABAURRE; ABAURRE; PONTARA, 2013
[Vol. 1], p. 116). [Resposta: O trecho destacado deixa claro que, na visão do
escrivão português, é muito natural impor os valores da civilização
europeia aos povos nativos encontrados na terra nova. Foi exatamente isso
que aconteceu no Brasil: índios foram submetidos aos valores culturais e
religiosos da metrópole, tendo sua cultura, comportamento e religião
desconsiderados pelos colonizadores] (destaque nosso) (ABAURRE;
ABAURRE; PONTARA, 2013 [Vol. 1 – Apêndice: “Guia de Recursos”], p.
74).
[...]
3. Que elementos do texto indicam a visão de um homem europeu que
desconsidera a cultura indígena?
É possível explicar o processo de aculturação dos índios a partir dessa
visão de mundo do colonizador? Por quê? (ABAURRE; ABAURRE;
PONTARA, 2013 [Vol. 1], p. 117).
196
101
O questionamento de narrativas e de imaginários faz-se presente em diferentes capítulos de PCI03. No
Volume 1, no capítulo “Discurso e Texto” do eixo gramática, por exemplo, discute-se a produção social de
“imagens de mulher”, a partir de uma reflexão sobre “as marcas ideológicas” presentes em três letras de música:
“Ai que saudades da Amélia”, de Ataulfo Alves, “Emília”, de Vassourinha e “Dandara”, de Ivan Lins
(ABAURRE; ABAURRE; PONTARA, [Vol. 1], 2013, p. 275). No Volume 3, no capítulo destinado ao
Modernismo, contrapõe-se, com base em textos de Euclides da Cunha e de Olavo Bilac, diferentes versões sobre
a Guerra de Canudos (ABAURRE; ABAURRE; PONTARA, [Vol. 3], 2013, p. 17), e solicita-se aos alunos que
pensem sobre acontecimentos históricos mais recentes que tenham sido alvos de diferentes interpretações; no
Manual do Professor, recordam-se as versões sobre a ditadura militar como uma resposta possível.
197
ensino-aprendizagem, a proposta tal qual descrita pela coleção corrobora a ideia de ruptura
com a narrativa colonial única, pois visa contrapor diferentes visões sobre o processo de
colonização. Outrossim, a atividade também se configura um produtivo exemplo de como
equacionar a leitura literária ao trabalho com gêneros textuais específicos, haja vista o
consistente gancho coesivo que liga a literatura do período colonial a exercícios abrangendo,
inicialmente, o gênero relato de viagem e, posteriormente, o gênero debate.
Nos capítulos dedicados ao Romantismo no Brasil (unidade 1, do volume 2),
encontramos outros exemplos interessantes de contestação da histórica única sobre a
colonização. No que engloba o Indianismo, verificam-se novas ressalvas quanto aos históricos
imaginários e estereótipos que circundam a visão que os brancos têm sobre as culturas
indígenas. Tal ideia da existência de múltiplas visões e imagens faz-se presente, em menor ou
maior medida, em muitos exercícios. Destacamos dois exemplos, retirados da análise de um
excerto de Iracema (1865), de José de Alencar:
[...]
1. Qual é a missão de Martim ao voltar?
[...]
b) Ao tratar da conversão dos indígenas, Alencar consegue abandonar sua
visão de homem branco civilizado? Explique. (ABAURRE; ABAURRE;
PONTARA, 2013 [Vol. 2], p. 96). [Resposta: Não. Alencar apresenta a
colonização e a catequização dos povos indígenas, isto é, o processo de
aculturação, de modo natural. Ele sugere a necessidade de “salvar” os
índios pela religião, já que essa “terra selvagem” teria uma cruz plantada
por um sacerdote da religião do chefe branco. (ABAURRE; ABAURRE;
PONTARA, 2013 [Vol. 2 – Apêndice: “Guia de Recursos”], p. 73).
[...]
5. Alencar apresenta uma visão positiva em relação à conversão de Poti. O
texto de Darcy Ribeiro [excerto de O povo brasileiro (1995) disponibilizado
aos alunos] leva à reavaliação dessa visão. Que “releitura” podemos fazer da
cena final de Iracema? (ABAURRE; ABAURRE; PONTARA, 2013 [Vol.
2], p. 97). [Resposta: Darcy Ribeiro apresenta uma visão negativa dessa
conversão. Segundo o antropólogo, a cristandade traz para o índio o mundo
do pecado e do sofrimento, negando todos os seus costumes, ou
condenando-os como inadequados aos valores cristãos. Nesse cenário,
“todo futuro possível seria a negação mais horrível do passado, uma vida
digna de ser vivida por gente verdadeira”.] (ABAURRE; ABAURRE;
PONTARA, 2013 [Vol. 2 – Apêndice: “Guia de Recursos”], p. 73).
premissa que se torna válido o emprego de um enquadrador discursivo extratextual atento aos
dados biográficos de José Alencar (homem, branco, civilizado); ainda que a ficção não
assuma um compromisso com a realidade (ao contrário), o fato de a produção indianista estar
inscrita entre uma pequena elite de escritores não índios, os quais intentavam idealizar
símbolos nacionais, abre a possibilidade de pensarmos tais textos também à luz do contexto
de escrita vivenciado pelos agentes de tal discurso. O exercício 5, ao recorrer a um texto de
Darcy Ribeiro e, por conseguinte, a um enquadrador discursivo intertextual, reforça e
consolida, assim, a existência de leituras “menos românticas”, distintas àquela que é
desenvolvida por Alencar.
Ao encontro da configuração do capítulo do Quinhentismo, a abordagem do romance
indianista em PCIS03 é encerrada com atividade de reorganização das reflexões e das ideias
até então debatidas neste caso, por meio da seção “Interações”. Propõe-se, então, que os
alunos pesquisem imagens e notícias sobre a situação atual dos índios brasileiros, a fim de
escrever um texto dissertativo-argumentativo sobre o tema. (ABAURRE; ABAURRE;
PONTARA, 2013 [Vol. 2], p. 98). Ao professor, sugere-se que eventuais dados sobre o
problema da demarcação de terras na atualidade sejam relacionados a heranças do processo de
colonização do país, e que se estabeleça uma ponte entre as imagens do passado e do presente
para tanto, além de rememorar todos os autores e textos do capítulo, apresenta-se um
excerto das cartas de Américo Vespúcio e da música “Índios”, de Renato Russo. Vale lembrar
que vimos na coleção NP02 uma proposta similar de comparação entre as nuances da questão
indígena no passado e no presente, também no capítulo do Romantismo.
A seção dedicada em PCIS03 ao Condoreirismo segue a mesma proposta de
encerramento: pensar, após a leitura da obra de Castro Alves, a arte de cunho social no
passado e no presente. O exercício central consiste em discutir oralmente em sala de aula as
relações estabelecidas entre um excerto do poema “Olá! Negro”, de Jorge de Lima, e um
cartum da Laerte sobre o genocídio negro. Nas instruções dadas ao professor, frisa-se o debate
sobre o racismo e recomenda-se: “Para acrescentar outros elementos à discussão, seria
interessante trazer algumas letras de rap, como as dos Racionais MC’s ou Emicida, que
abordem, em uma outra linguagem, a questão racial. Além dessas indicações, no site
<http:/poeticasemporgues.blogspot.com>, é possível encontrar poemas de escritores africanos
que tematizam a vida e a história do negro e da cultura afro-brasileira” (ABAURRE;
ABAURRE; PONTARA, 2013 [Vol. 2], p. 69). Conclui-se, pois, que embora a coleção não
201
traga textos de autoria negra, a atividade abre caminho a essas produções e alinha-se, em certa
medida, ao esperado pela lei 10.639/2003, sobretudo ao dar evidenciar ao problema racial.
Verificamos, todavia, que o blog indicado encontra-se fora do ar (último acesso em
19/01/2019), o que torna falha a referência feita a escritores africanos. Trata-se,
inquestionavelmente, de um exercício crítico e favorável a uma formação cidadã, e, portanto,
necessário, mas no qual impera, ainda, um falar sobre o negro e a negritude, e não o falar do
negro.
102
Orientações fornecidas ao professor: “A atividade leva o aluno a identificar, nos três textos da seção, as
personagens que servem de veiculação da crítica social dos autores: Raimundo (o mulato), os índios e
portugueses, e um marginalizado urbano” (ABAURRE; ABAURRE; PONTARA, [Vol. 3], 2013, p. 26).
202
de que PCIS03 restringe-se, nesse caso, a uma breve referência ao livro (no capítulo 5,
volume 3), sem a apresentação de nenhum excerto do romance103.
Embora fuga ao escopo da literatura afro-brasileira, é interessante citar a presença de
uma atividade de leitura baseada no poema “Ainda assim, eu me levanto” (1978), da escritora
norte-americana Maya Angelou. Tendo em vista que PCIS03 difere-se de outras coleções à
medida que dá espaço a escritores de distintas nacionalidades, escapando, muitas vezes, ao
cânone luso-brasileiro, a escolha da obra de uma importante ativista do movimento negro
estadunidense chama a nossa atenção. Situado no fechamento do capítulo “Literatura é
gênero I: o épico e o lírico” (capítulo 3, volume 1), o exercício conjuga perguntas sobre as
características do gênero a questões relativas ao tema do preconceito racial, tal qual presente
no texto. Em uma delas, indica-se ao professor que aceite tanto respostas baseadas no texto
quanto no conhecimento de mundo dos alunos a respeito da escravidão e da discriminação:
103
No âmbito da literatura periférica/marginal, merece destaque a presença de um excerto de Capão pecado
(2000), do escritor Ferréz, situado na seção de encerramento do capítulo sobre a segunda geração do
Modernismo (capítulo 5, volume 3). Intitulada “Interações: a consciência do subdesenvolvimento brasileiro”, a
atividade propõe a escrita de um artigo de opinião baseado na imagem de um menino de rua e no trecho do
romance de Ferréz. Entre outras possibilidades de diálogo listadas aos alunos, menciona-se, então, o livro
Cidade de Deus (1997), do escritor afrodescendente Paulo Lins (ABAURRE; ABAURRE; PONTARA, [Vol. 3],
2013, p. 110).
203
cumprimento de parte dos objetivos da lei 10.639/03, sobretudo daqueles que tratam
diretamente do combate ao preconceito racial.
A seção especial “Literatura Africana”, última do eixo literatura do terceiro volume
de PCIS03, totaliza 31 páginas de conteúdos, subdivididos em “A poesia africana de língua
portuguesa” e “A narrativa africana de língua portuguesa”. Conforme já explicamos em
relação à estrutura de outros capítulos, a coleção dedica-se, também na abordagem das
literaturas africanas, à apresentação de muitos excertos e de enquadradores discursivos em
detrimento de atividades de leitura propriamente ditas. De modo geral, os capítulos da coleção
compõem-se de textos literários dispostos intercaladamente a textos explicativos (/de
enquadradores de leitura) e de um único “texto para a análise” alocado ao final das
subseções. Por conseguinte, dos 26 excertos literários disponibilizados aos alunos, apenas
dois são de fato analisados por meio de exercícios de interpretação no caso, excertos do
poema “Mamã Negra”, de Viriato da Cruz (Angola), e uma passagem do romance O planalto
e a estepe (2009), de Pepetela (Angola). Ao todo, a seção introduz a obra de 10 escritores
africanos, sendo duas delas mulheres: Conceição Lima (São Tomé e Príncipe) e Noémia de
Sousa (Moçambique).
A lista completa do repertório de matriz africana que integra PCIS03 é por nós
detalhada na Tabela 7 (página 201), de modo que optamos por comentar pontos centrais da
organização do capítulo, bem como exemplos que sejam representativos do modo pelo qual a
coleção trabalha com as tais produções artístico-literárias.
Os textos introdutórios e de mediação de conteúdo configuram-se, em sua maioria,
enquadradores discursos extratextuais, fornecendo informações sobre as biografias dos
autores e da história dos países africanos de língua portuguesa. Questões como a do papel da
oralidade e da “oratura” nas culturas africanas, da formação da identidade nacional e local em
meio a um histórico de dominação colonial e de guerras, das belezas naturais e das tradições,
entre outras, dão forma à seção. Há também uma seleção volumosa de elementos
iconográficos, os quais trazem imagens tanto dos autores quanto dos países, indo desde
fotografias de ritos locais a registros do cotidiano, da natureza e da arquitetura dos países
lusófonos em África.
Especificamente no que tange às atividades de análise dos dois excertos supracitados,
nota-se que se mantém o padrão adotado por PCIS03 nos demais capítulos, ou seja, há o
predomínio de enquadradores discursivos textuais, seguidos de solicitações analíticas,
204
3. Olga, a irmã mais velha de Julio, é quem primeiro o alerta para uma grave
questão africana: a do racismo. Como isso ocorre no trecho transcrito?
Podemos afirmar que a menina, neste trecho, representa a voz daqueles
que reproduzem o discurso segregacionista, alimentando o preconceito
em países colonizados, como foi o caso de Angola? Justifique.
(ABAURRE; ABAURRE; PONTARA, 2013 [Vol. 3], p. 203).
[Resposta: Julio relata que, um dia, a irmã disse-lhe que ele não devia
brincar com os meninos das redondezas porque eles eram negros e ele e
sua família, brancos. Ao ser questionada pelo irmão sobre os motivos
para ter que se afastar dos amigos, Olga responde que os pais não viam
aquela amizade como algo adequado. Julio ainda se pergunta se, de
fato, essa era a opinião dos pais ou apenas uma intromissão da irmã
que, por ser mais velha, se achava no direito de controlar a vida dos
irmãos menores.
Em parte, sim. Espera-se que os alunos percebem que, no trecho, Julio
afirma que a irmã era racista desde pequena. Acrescenta, ainda, a
suposição de que, por ter ouvido declarações racistas dos colonos
205
Observamos, nestas e nas demais perguntam, que se espera que os alunos recorram,
em maior ou menor grau, aos diversos enquadradores discursivos extratextuais dispersos no
decorrer da apresentação dessas literaturas no Caderno do Aluno, sobretudo no que diz
respeito à dominação e à violência colonial. As inferências demandadas pelas questões
levantadas articulam-se, de certo modo, ao extenso conteúdo descritivo-explicativo trazido
previamente por PCIS03. A última pergunta sobre o poema de Viriato Cruz evidencia com
bastante clareza esse movimento:
5. Considerando o que você viu, nesta seção especial, sobre a poesia africana
e seus temas, como esse texto se relaciona com a produção literária de
autores desse país? (ABAURRE; ABAURRE; PONTARA, 2013 [Vol. 3], p.
189). [Resposta: O poema transcrito reflete a necessidade dos poetas
angolanos (apresentada na teoria referente a essa seção), a partir de 1951,
de fazer uma poesia que fizesse a denúncia do passado de sofrimento desse
povo e combatesse, dessa forma, a alienação social. Além disso, o tom final
do poema reforça uma característica importante da poesia africana e da
poesia angolana, em especial: a necessidade, também, de despertar a
consciência de seu povo e levá-lo a lutar, com esperança, para concretizar o
sonho de reconquistar a própria identidade e, dessa forma, consolidar-se
como uma nação livre, autônoma e independente] (ABAURRE;
ABAURRE; PONTARA, 2013 [Vol. 3 – Apêndice: “Guia de Recursos”], p.
87).
Se, à primeira vista, o contraste entre o alto número de textos e o baixo número de
atividades de leitura suscita reflexões sobre as implicações didático-pedagógicas de se
ofertarem excertos sem que com eles sejam requeridos exercícios de interpretação, os
exemplos por nós frisados indicam que tais textos ilustrativos integram a reflexão teórica
desenvolvida pela coleção, a qual é posteriormente rememorada/cobrada dos alunos. É certo
que tanto a leitura quanto o aproveitamento dos 26 excertos fornecidos por PCIS03 ficam a
cargo da mediação do professor, porém, comparativamente aos demais livros didáticos por
nós analisados, a presente coleção destaca-se por fornecer um vasto panorama das literaturas
de matriz africana, principalmente ao se ter em vista que todos os países de língua portuguesa
206
são representados. PCIS03 figura, nesse ponto, a coleção do PNLD 2015 com uma das
coletâneas mais vastas e variadas.
Por fim, novamente em relação às produções afro-brasileiras, cabe ressaltar que não
há, em PCIS03, textos de autores afrodescendentes para além do breve excerto de Carolina
Maria de Jesus anteriormente mencionado.
FARACO, Carlos Emílio; MOURA, Francisco Marto de; MARUXO JR., José
Hamilton. Língua Portuguesa – Linguagem e Interação (Livro do Professor), 2ª ed.,
Volumes 1, 2 e 3, São Paulo: Editora Ática, 2014.
SIGLA: LPLI04
2014b, p. 40), embora o não investimento “na formação de leitor de imagens” (ibidem)
mereça ressalvas. Todavia, se comparada a outras coleções, LPLI04 destaca-se, a nosso ver,
também por certo protagonismo dado ao eixo da escrita, eixo usualmente menos explorado
pelos livros didáticos. Não sem razão, consta no Manual do Professor que “as unidades, em
linhas gerais, têm por objetivo levar à construção de um projeto coletivo de leitura e escrita”
(destaque nosso) (FARACO; MOURA; MARUXO JR., 2014 [Vol. 1 – Apêndice: “Manual do
Professor”], p. 366).
No que tange a aspectos ligados, direta ou indiretamente, ao cumprimento das leis
10.639/03 e 11.645/08, o Guia acusa a falta de “leitura comparada entre os estilos de época
abordados” (BRASIL-MEC/SEB, 2014b, p. 41), registrando a necessidade de este trabalho
ser exercido/complementado pelo professor e afirmando como desejável, neste caso, a
promoção de um diálogo entre “obras da literatura brasileira, portuguesa e africana” (p. 43).
Em relação a questões de diversidade cultural, a resenha considera que “a diversidade
sociocultural brasileira não é tema privilegiado nos textos e nas atividades de leitura” e toma
como exemplo a seguinte ocorrência: “quando o texto favorece a discussão da variação
linguística, são propostas atividades que contemplam, por exemplo, as diferenças entre o
português falado no Brasil, em Portugal ou em países africanos, e o registro (formal ou
informal) usado em variadas situações de interação” (p. 40). Ou seja: se no eixo literatura a
ausência de diálogo entre os países de língua portuguesa é tida como um ponto fraco, no eixo
de conhecimentos linguísticos critica-se, justamente, a presença desse diálogo, no sentido em
que ele parece tomar o lugar do debate da variação linguística existente no Brasil.
Finalmente, são três os autores da coleção: Carlos Emílio Faraco, Francisco Marto de
Moura e José Hamilton Maruxo Júnior, todos com formação atrelada à Universidade de São
Paulo: os dois primeiros licenciados em Letras e o último Doutor em Letras pela instituição,
segundo informações presentes na folha de abertura dos três volumes do manual. Contudo, o
dado biográfico reiterado pelos autores na carta de apresentação do Manual do Professor
corresponde a suas experiências na educação básica, tanto no nível fundamental quanto no
médio, da rede pública e particular. Moura e Maruxo Jr. também têm experiência no ensino
superior, sendo o último, inclusive, pesquisador do CENPEC (Centro de Estudos e Pesquisas
em Educação, Cultura e Ação comunitária).
210
dar espaço de destaque precisamente a este. Nas demais coleções que integram nosso corpus,
ou é dado espaço à legislação educacional como um todo e/ou a leis que a alteram. Trata-se de
uma ocorrência bastante peculiar a LPLI04.
106
Texto: “História da província de Sanata Cruz”.
214
Os exemplos acima transcritos atestam que a coleção fornece subsídios para que o
professor promova uma leitura crítica/reflexiva das narrativas coloniais, que questione a
hegemonia desses discursos. A título de complementação, há ainda, ao final do Manual do
Professor, a proposta de um projeto interdisciplinar extraclasse baseado no levantamento de
relatos de preconceitos dos quais os alunos suponham terem sido vítimas, para que, a partir de
tais registros, sejam realizadas pesquisas sobre os tipos de discriminação relatados, as quais,
por sua vez, devem ser socializadas com toda a comunidade escolar (FARACO; MOURA;
MARUXO JR., 2014 [Vol. 1], p. 432). Verifica-se, pois, um efetivo alinhamento aos objetivos
voltados à preconização de atitudes mais éticas e cidadãs, conforme anunciado no Manual do
Professor.
As produções artístico-literárias indianistas e condoreiras encontram-se distribuídas
na primeira unidade (Unidade 1 – “... como um romance [I]”) do segundo volume de LPLI04.
Os exercícios iniciais envolvendo textos desse período baseiam-se em trechos do romance
Iracema (1865), de José de Alencar, que integra, junto de excertos da obra de Joaquim
Manuel de Macedo, Visconde de Taunay e Manuel Antônio de Almeida, uma coletânea
introdutória da prosa romântica. Para a apresentação da poesia, a coleção recorre a fragmentos
de Gonçalves Dias enquanto representativos da valorização “do nativo” e “da natureza”. Nos
dois casos, predominam enquadradores discursos textuais e solicitações analíticas,
direcionados a operações de localização, identificação, justificação e inferência, que não
extrapolam para reflexões acerca da idealização dos indígenas e/ou dos pontos de contato com
os discursos coloniais. Este aspecto é mencionado apenas ao professor, estando previsto,
portanto, na mediação a ser exercida pelo docente em sala de aula: “Professor, [...] faça
também uma síntese da origem do indianismo, comparando-a com a volta ao passado na
literatura europeia” (FARACO; MOURA; MARUXO JR., 2014 [Vol. 2], p. 30); “Professor,
[...] mais importante que responder a questões pontuais do texto, é os alunos perceberem a
215
idealização a que Gonçalves Dias submete a figura do indígena e compreender o motivo dessa
idealização” (FARACO; MOURA; MARUXO JR., 2014 [Vol. 2], p. 56). No Caderno do
Aluno, a coleção discorre, brevemente, sobre o mito do “bom selvagem” para situar a escolha
do índio como símbolo nacional do contexto do Romantismo (ibid., p.55), o que dialoga com
as sugestões didático-pedagógicas feitas ao professor.
A análise do Condoreirismo, descrito na coleção como exemplar da dita “literatura
engajada”, dá-se a partir da leitura de um fragmento de “O navio negreiro” (1880), de Castro
Alves, para a qual são elaborados exercícios também atentos a elementos intratextuais e
linguísticos, com exceção da pergunta 19: “Onde fica Serra Leoa? Localize o país no mapa-
múndi. Por que o autor e referiu a esse lugar? [Resposta: Fica na África, ao lado do Atlântico
(ocidental). Referiu-se a esse lugar porque muitos negros escravizados vinham desse país]”
(FARACO; MOURA; MARUXO JR., 2014 [Vol. 2], p. 66). Trata-se, a nosso ver, de uma
proposta interessante visto que muitos alunos não pensam a África como um continente;
explorar sua geografia mostra-se, assim, um exercício produtivo à desmistificação de seu
território.
Em linhas gerais, é possível depreender que LPLI04, ao menos nos capítulos
relacionados ao Romantismo, caracteriza-se por investir mais no Manual do Professor que no
Caderno do Aluno no que tange à promoção de leituras mais críticas sobre o passado colonial
na literatura. A despeito, portanto, da qualidade das informações e dos direcionamentos
disponibilizados ao docente, as atividades listadas aos alunos parecem limitar-se, com
frequência, a operações basilares de identificação, justificação, etc., mesmo ao se ter vista
que, por vezes, os textos da subseção de literatura são ainda retomados nas subseções de
gramática/ análise linguística, a fim de consolidar a “articulação dos eixos” pretendida pela
coleção. Trata-se de uma nova ocorrência daquilo que denominamos de “quebra coesiva” ao
analisar a coleção NP02, isto é, de um descompasso entre o teor da versão do aluno e o teor
da versão do professor. No desenrolar da nossa pesquisa, buscamos expandir nossas reflexões
a respeito das possíveis implicações de tal discrepância.
7. Você já sabe que há quatro personagens na história lida. Por que, em sua
opinião, apenas a mãe do menino tem o nome explícito, e as outras
personagens são apenas designadas pelo que “fazem”? [Instrução: Professor,
nas Orientações Específicas do Manual do Professor, há informações a
respeito de Moçambique. Seria interessante que os alunos conhecessem um
107
Vale lembrar que, conforme informamos no início da análise, o Guia do PNDL 2015 critica o fato de a
coleção discutir a questão da variação linguística apenas em relação às variantes observadas entre os países
lusófonos, deixando em segundo plano o debate das variações regionais existentes no Brasil.
217
pouco a história desse país quando forem resolver esta questão. Dê a eles a
oportunidade de formular hipóteses interpretativas. Uma hipótese
interpretativa dos autores deste livro didático, baseada na estrutura do
conto e na relação de poder entre as personagens protagonista e
antagonista, seria a seguinte: o menino e o pai opõem-se um ao outro e
representam dois momentos distintos da vida em Moçambique – o passado,
marcado pelo fazer físico (o trabalho de mecânico) e o futuro, marcado pelo
fazer intelectual (o trabalho poético). Essa relação complexa é mediada pela
mãe, personagem entre o passado e o futuro (o presente). Talvez, por isso,
seja a única personagem nomeada no conto]. (destaque nosso) (FARACO;
MOURA; MARUXO JR., 2014 [Vol. 1], p. 30).
Nota-se, pois, que é solicitado aos alunos que pesquisem “as origens da literatura
portuguesa e de todas as outras literaturas de língua portuguesa, de países como Angola e
218
Moçambique” (FARACO; MOURA; MARUXO JR., 2014 [Vol. 1], p. 44). Ademais, ao se ter
em mente as premissas que fundamentam as atividades precedentes, é possível concluir que a
proposta se insere em um debate mais amplo sobre a recolha e a compilação de “histórias da
tradição” realizadas por alguns escritores, tal qual o faz, segundo LPLI04, Ana Maria
Machado. Contudo, o direcionamento inicial dado pelo enquadrador discursivo extratextual
do item 2, que anuncia Portugal como “fonte primordial” da literatura dos demais países
lusófonos, pode acabar por conduzir a pesquisa, a nosso ver, a uma reafirmação de Portugal
como origem das culturas dos países colonizados e não à descoberta de suas especificidades.
Sabe-se, inclusive, que muitas literaturas africanas buscaram/buscam referências e inspirações
também na literatura brasileira. Apesar de tal exercício vir acompanhado de um pertinente
mapa em que os países de língua portuguesa são colocados em evidência, ponto que
interpretamos como sendo bastante positivo, faltam instruções detalhadas ao professor a
respeito dos meios e dos fins do levantamento. Na ausência de um enquadrador discurso mais
claro e detalhado, consideramos grave tal lacuna.
O roteiro da segunda pesquisa sugerida na seção fixa “Para ir mais longe” mostra-se
bem mais objetivo. Após indicar a leitura de obras de Luís Câmara Cascudo e de Sílvo
Romero, e de propor que os estudantes entrevistem “pessoas mais velhas”, o item 3 anuncia
que: “3. Boa parte de nossas histórias orais de origem africana vem de Angola, país africano
que, como Moçambique, também foi colonizado por Portugal. Reúna-se com seus colegas e
pesquisem essas histórias” (FARACO; MOURA; MARUXO JR., 2014 [Vol. 1], p. 71). Como
referência, mencionam-se as obras de Agostinho Neto e Pepetela, e também o livro Contos e
lendas da África (1997), de Yves Pinguilly; em seguida, os alunos são orientados a
escolherem alguns contos africanos e a pensarem as “relações entre a tradição oral angolana e
brasileira” (ibidem). Ao professor, por sua vez, registra-se: “Professor, antes de orientar a
questão 3, comente que a oratura veicula o saber tradicional de uma comunidade ou de um
povo, mobilizando esse patrimônio. A importância dessa manifestação cultural nos países
africanos é tão forte que levou o etnólogo e escritor Hampaté Bâ a afirmar que ‘em África,
cada velho que morre é uma biblioteca que desaparece’” (FARACO; MOURA; MARUXO
JR., 2014 [Vol. 1], p. 71). Na lateral direita da página, observa-se a fotografia de um “griot”,
contador de histórias africanas, rodeado por crianças.
Uma vez introduzido por tais atividades do Volume 1, o estudo de textos de autores
africanos vai sendo ampliado nos volumes seguintes. Se, como vimos, a obra de Mia Couto
219
figura como pretexto para o trabalho com o gênero conto, a do angolano José Luandino Vieira
surge como texto-fonte do capítulo “Suspense na narrativa” (Unidade 1 – “... como um
romance (I)”, Capítulo 3), do segundo volume, configurando-se, assim, um modelo de
narrativa de suspense. Apresentado na íntegra, mas trabalhado em três etapas (respeitando a
divisão definida pelo próprio autor), o conto “O fato completo de Lucas Matesso” (1975) é
explorado em seus aspectos linguísticos e literários, com atenção especial aos recursos
empregados, portanto, na construção do suspense (por exemplo, a verossimilhança e os tipos
de discursos [direto, indireto, etc.]). Nesse sentido, é válido assinalar que, a exemplo da forma
pela qual foi discutido o conto de Mia Couto, o texto de José Luandino Vieira é igualmente
usado para contrapor as diferenças linguísticas (em especial ao nível da sintaxe) estabelecidas
entre o português brasileiro e o português angolano (FARACO; MOURA; MARUXO JR.,
2014 [Vol. 2], p. 105).
Outro padrão editorial verificado refere-se à iconografia da coleção, uma vez que se
disponibilizam a fotografia de Luandino Vieira e um mapa mundial em que Angola aparece
em destaque, tais quais as imagens presentes no capítulo sobre o texto de Mia Couto.
Outrossim, ao encontro do que verificamos nos demais capítulos da coleção, é válido citar que
o presente capítulo fornece imagens tanto das zonas rurais quanto das zonas urbanas de
Angola, o que se mostra em consonância com uma apresentação não estereotipada do país.
Finalmente, na seção “Para ir mais longe”, uma das pesquisas de encerramento sugerida por
LPLI04 baseia-se ao levantamento de pratos da culinária brasileira e de outros países de
língua portuguesa, visando à produção de um “livro de culinária lusófona” (FARACO;
MOURA; MARUXO JR., 2014 [Vol. 2], p. 107).
Especificamente a respeito do teor das perguntas que embasam o exercício de
interpretação do conto de Luandino Vieira, quatro nos chamam a atenção devido ao fato de
exigirem relações extratextuais com história e com a cultura dos países africanos:
menos importante, o fato de o escritor português Valter Hugo Mãe integrar a listagem, haja
vista que, a despeito de ter nascido e morado em Angola até os oito anos de idade, momento
em que se muda para Portugal, o autor assume-se, publicamente, como escritor português.
Percebemos até aqui que a coleção não explora, com empenho, a possibilidade de
estabelecer leituras comparadas, como já aponta, negativamente, a resenha do PNLD 2015.
No entanto, localizamos dois indícios de sugestão de atividades afins: como complementação
da análise do conto de Luandino Vieira que discutimos anteriormente, o Manual do Professor
indica, a depender da “disponibilidade de tempo”, que se compare este texto ao conto “A hora
e a vez de Augusto Matraga”, de Guimarães Rosa, a fim de observar “a construção da
coragem contra determinado mal” nas duas narrativas (FARACO; MOURA; MARUXO JR.,
2014 [Vol. 2], p. 412); já no Volume 3, repete-se uma proposta também presente em outras
coleções que integram o nosso corpus: relacionar o poema “Vou-me embora para Pasárgada”,
de Manuel Bandeira, ao poema “Antievasão”, do cabo-verdiano Ovídio Martins (FARACO;
MOURA; MARUXO JR., 2014 [Vol. 3], p. 110). Esta se configura a única atividade
efetivamente intertextual que encontramos em LPLI04 “23. Leia o poema a seguir, do
escritor cabo-verdiano Ovídio Martins (1928-1999), e procure as semelhanças e diferenças em
relação ao poema de Bandeira” (ibidem). Por fim, encerrando o repertório concernente a
países africanos presente na coleção, há, ainda, um excerto de O vendedor de passados
(2004), do angolano José Eduardo Agualusa, que, por corresponder a um romance epistolar, é
tomado como exemplo final do gênero “correspondência formal”, que tematiza o capítulo em
questão (FARACO; MOURA; MARUXO JR., 2014 [Vol. 3], p. 288).
No que se refere à literatura negra/afro-brasileira, LPLI04 apresenta fragmentos de O
quarto de despejo (1960), de Carolina Maria de Jesus, no primeiro volume (Unidade 2 –
“Viagens”, Capítulo 8: “Diário Pessoal”), e um excerto de Cidade de Deus (1997), de Paulo
Lins, no segundo volume (Unidade 2 – “...como um romance [II]”, Capítulo 4: “Romance
[III]”). A abordagem dada ao texto de Lins é similar às abordagens dos contos de Mia Couto e
de José Luandino Vieira, pois o fragmento de seu livro serve, majoritariamente, de texto-fonte
(/pretexto) para reflexões sobre o gênero romance. Por conseguinte, para além de perguntas
sobre elementos fundamentais para a compreensão da narrativa (contexto, construção dos
personagens, estratégias discursivas, etc.), exploram-se com veemência seus aspectos
linguísticos. O diário de Carolina Maria de Jesus, por sua vez, ainda que presente no capítulo
relacionado ao estudo de tal gênero textual, não abre o capítulo, visto que compõe o debate
222
sobre “Literatura e memoralismo” proposto pela subseção “Literatura: teoria e história”. Por
conseguinte, a análise de sua obra é mais centrada na análise literária que linguística;
questiona-se, por exemplo, a presença recorrente da “fome”, o sentido de se manter os desvios
ortográficos da autora, etc.
Para finalizar nossos apontamentos, julgamos importante dar evidência à recorrência
de solicitações cursivas nas análises elaboradas por LPLI04. Ao detalharmos a nossa
metodologia de pesquisa, explicamos que as solicitações cursivas, por postularem o
reconhecimento das subjetividades no ato de ler, pode se mostrar produtiva à introdução de
repertórios representativos da pluralidade cultural. Embora a coleção não formule solicitações
que toquem diretamente em possíveis imaginários estereotipados e/ou preconceitos que os
estudantes possam ter em relação ao continente africano e a suas culturas, consideramos
interessante a frequência com que suas atividades de leitura buscam aproveitar as
experiências pessoais dos alunos no processo de compreensão dos textos lidos. Os exemplos a
seguir correspondem, respectivamente, a questões sobre o conto de Mia Couto e o conto de
José Luandino Vieira:
Outra ocorrência que nos chama a atenção em LPLI04 é a das solicitações cursivas
que integram a leitura de textos opinativos sobre cotas raciais, devido, sobretudo, às críticas
que fizemos anteriormente à coleção PL01, a qual fornece, inclusive, o mesmo repertório
108
Há, ainda, uma (e única) solicitação cursiva acerca do poema “Canção do tamoio - Natalícia”, de Gonçalves
Dias: “5. Seu pai ou algum familiar já se dirigiu a você exortando-se a ser corajoso diante das adversidades da
vida? Quer contar como foi? [Professor, trabalhe apenas depoimentos espontâneos]” (FARACO; MOURA;
MARUXO JR., [Vol. 2], p. 57).
223
textual que LPLI04109. Na primeira coleção por nós analisada, o tema das cotas comparece no
Manual do Professor como um tema favorável à educação para a cidadania. Se, de um lado,
observamos que as reflexões desenvolvidas ampliam, de fato, o olhar do estudante no que
engloba a temática das ações afirmativas, de outro, verificamos que a condução das atividades
de interpretação acaba por se voltar, na prática, mais a um uso dos textos como pretextos para
o estudo de estratégias de argumentação e de gêneros argumentativos. Desse modo, as
opiniões e as vivências dos estudantes são exploradas desde que seja mantida certa articulação
(de concordância ou de discordância) com os textos lidos. Em LPLI04, por sua vez, o uso de
tais textos para o estudo do gênero “discurso político” não é marcado pelo apagamento das
impressões pessoais dos alunos, mas ao contrário: conforme vemos nos excertos citados a
seguir, a coleção parte, precisamente, das opiniões dos alunos para então solicitar uma relação
com os argumentos presentes nos textos lidos:
109
Ambas as coleções contrapõem, em suas atividades de análise, os seguintes textos: “Cota valida teses
racistas”, de José Roberto Ferreira Militão (foi secretário-geral do Conselho da Comunidade Negra no governo
do Estado de São Paulo e atuou na Comissão de Assuntos Antidiscriminatórios da OAB/SP) e “Cotas
enriquecem universidades”, de Hédio Silva Jr. (foi secretário do governo do Estado de São Paulo e, na ocasião,
diretor acadêmico da Faculdade Zumbi dos Palmares e do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e
Desigualdades).
224
Essa breve comparação entre PL01 e LPLI04 não visa contestar a qualidade dos
exercícios da primeira coleção, pois, como já afirmamos, eles favorecem, de fato, uma
reflexão crítica sobre o tema. O nosso objetivo com tal contraposição é esclarecer qual é o
lugar a ser ocupado por solicitações cursivas na condução de temas sensíveis a questões
raciais, dado que as leis 10.639/03 e 11.645/08 têm também a finalidade de combater o
preconceito e a discriminação. Para tanto, faz-se necessário, a nosso ver, reconhecer os
estudantes como sujeitos, dando mais espaço a suas experiências de vida e de leitura.
A título de fechamento, enfatizamos um ponto ao qual damos mais atenção na síntese
das conclusões às quais chegamos com nossas análises: o uso das literaturas preconizadas
pelas leis para o estudo de gêneros textuais diversos, ou seja, o deslocamento desse repertório
para outros eixos de aprendizagem que não o eixo literatura. Em uma primeira leitura, esse
uso nos remete a duas indagações: (i) em que medida a escolha desses textos como textos-
modelo de gêneros como romance e conto mostra-se positiva a uma revisão do cânone
escolar, ou, em outras palavras, quais são os efeitos da predileção por Mia Couto e Luandino
Vieira para a introdução dos estudos sobre gêneros narrativos em detrimento da seleção de
autores clássicos ou dotados de certo prestígio dentro da literatura brasileira contemporânea,
por exemplo?110; (ii) por outro lado, que efeitos tem, para a análise literária, essa articulação
dos eixos de conhecimentos linguísticos e de literatura no que diz respeito, por exemplo, à
apreciação estética e à observação dos pormenores socio-históricos que atravessam as
narrativas estudadas? Trata-se de questões que buscamos retomar e debater ao concluirmos a
análise do nosso corpus de pesquisa111.
SETTE, Maria das Graças Leão; TRAVALHA, Márcia Antônia; BARROS, Maria do
Rozário Starling de. Português – Linguagens em Conexão (Livro do Professor), Volumes
1, 2 e 3, São Paulo: Leya, 2013.
SIGLA: PLC05
Segundo a resenha presente no Guia de Português do PNLD 2015, PLC05 tem como
ponto forte a “boa articulação entre os diferentes eixos de ensino”, bem como a qualidade de
seu material impresso (BRASIL-MEC/SEB, 2014b, p. 61). Destaca-se, ainda, positiva e
repetidamente, a “abrangência de imagens” no que diz respeito ao trabalho de leitura
(ibidem), aspecto que também nos chama a atenção, principalmente por se tratar de uma das
poucas coleções a apresentar a imagem de uma obra artística de um artista afrodescendente,
ocorrência que comentamos na subseção reservada ao estudo da microestrutura da coleção. Já
o ponto fraco assinalado pelo guia refere-se tanto a certa tradicionalidade no ensino de
gramática quanto a “pouca diversidade de gêneros orais” (ibidem).
Em relação à descrição estrutural da obra, interpretamos como adequada e produtiva
a presença de pré-textos (verbais e não verbais) antes dos textos de leitura, visto que, em
concordância com a resenha, notamos que eles “aguçam a curiosidade do aluno e ativam seu
conhecimento prévio” (BRASIL-MEC/SEB, 2014b, p. 62), aproximando-se da perspectiva de
leitura subjetiva/cursiva por nós rememorada e, por que não, preconizada. Igualmente ao
encontro do Guia, consideramos que PLC05 “permite uma boa interlocução com o professor”
(ibidem), um ponto que enfatizamos em diferentes momentos da nossa análise. Por outro lado,
temos algumas ressalvas concernentes a gama de críticas positivas dirigidas, pelo Guia, ao
eixo literário; de acordo com a resenha do PNLD,
uma predileção por atividades que exploram a “materialidade do texto na apreensão de efeitos
de sentidos” em detrimento, por vezes, de um trabalho mais minucioso com questões
extratextuais. Ademais, o “diálogo” entre a literatura brasileira e “outras literaturas”, embora
presente, não culmina, em muitos casos, em perguntas intertextuais aprofundadas,
prevalecendo uma aproximação no nível das temáticas das narrativas, e não exercícios mais
pormenorizados e/ou reflexivos de leitura comparada. E, de fato, é evidente o maior interesse
de se articular a literatura brasileira à portuguesa, e não às africanas ou à afro-brasileira
ainda que, seja importante antecipar, PLC05 disponibilize um rico repertório de textos de
escritores negros.
Estruturalmente, cada volume da coleção compõe-se de três grandes seções:
“Literatura e leitura de imagens”, “Gramática e estudo da língua” e “Produção de textos orais
e escritos” (esta última com o número fixo de oito capítulos por volume). Do total de 101
capítulos, 42 atendem ao eixo literatura e 36 ao eixo conhecimentos linguísticos, sendo que é
no terceiro volume da obra que se verifica o contraste mais acentuado de distribuição de
conteúdos: são 16 capítulos de literatura para cinco capítulos de gramática
coincidentemente (ou não), isso ocorre no volume em que as literaturas indígenas, afro-
brasileira e africanas ganham mais espaço.
Por fim, no tangente à autoria, trata-se de um livro didático escrito por três mulheres:
Maria das Graças Leão Sette, Márcia Antônia Travalha e Maria do Rozário Starling de
Barros, todas com graduação em Letras por instituições do estado de Minas Gerais PUC-
MG, UFMG e Fafi-BH, respectivamente , e professoras da rede básica de ensino da mesma
região. Maria do Rozário Starling de Barros é também formada em Jornalismo e mestra em
Linguística, ambas pela UFMG.
pelas leis 10.639/03 e 11.645/08, verificamos menções a essas questões na medida em que
determinados exercícios e/ou capítulos foram se mostrando próximos/favoráveis à temática
encontramos, no caso, alusões específicas à lei de 2003 e às respectivas literaturas por ela
postulada. Por conseguinte, as orientações complementares relativas a cada atividade e/ou a
cada capítulo, as quais são por nós comentadas no decorrer do estudo da microestrutura de
PLC05, respondem mais ao nosso foco de pesquisa do que os conteúdos gerais presentes na
subseção fixa “Assessoria Pedagógica”. Sobre esta, destacamos alguns pontos que servem de
reflexão sobre o modo pelo qual o eixo literatura é entendido pela coleção, desconsiderando
os fundamentos didático-metodológicos que embasam outros eixos (como o eixo leitura ou o
eixo escrita, por exemplo).
Ao tratar de sua “concepção de estudos linguístico-literários”, as autoras afirmam
que fizeram “também um retorno à tradição ibérica com o objetivo de levar os alunos a
compreender a influência da literatura portuguesa em nossa produção literária” (SETTE;
TRAVALHA; BARROS, 2013 [Vol 1 – Apêndice: “Assessoria Pedagógica”], p. 16), e
completam com a informação de que também são objeto de compreensão e de fruição textos
“de países lusófonos”, bem como “de autores que tratam da questão de gênero, de preconceito
racial, da realidade da periferia das grandes cidades” (ibidem). De fato, comentamos durante a
análise da microestrutura, que PLC05 se revela, a nosso ver, um livro que transita entre um
modelo mais clássico de ensino de literatura haja vista a coleção ser veementemente presa
a autores canônicos e a uma historiografia clássica e certos movimentos de ruptura com
esse modelo uma vez que introduz, de forma muito crítica e variada, a literatura feminina
ou a literatura afro-brasileira, por exemplo. Não sem razão, nota-se, entre os muitos objetivos
técnicos associados pela coleção ao trabalho com a leitura literária (tais como, “reconhecer o
caráter metalinguístico dos textos literários” ou “identificar e compreender as formas
composicionais e temáticas de textos de diferentes épocas” [(ibid., p. 17)]), um objetivo
claramente voltado à promoção de novas atitudes, o qual dialoga, por sua vez, com as
questões sociais anteriormente enfatizadas por PLC05: “[levar os alunos] a compreender a
representação da terra, da mulher, do negro, do índio, do imigrante, do povo brasileiro; enfim,
da vida social e política na literatura brasileira, em diferentes momentos” (SETTE;
TRAVALHA; BARROS, 2013 [Vol 1 – Apêndice: “Assessoria Pedagógica”], p. 17).
Também o contato com textos de autores “de países africanos falantes de Língua Portuguesa”
aparece como um objetivo a ser alcançado no eixo literatura (ibidem). Finalmente, em
230
consonância com essas finalidades, anuncia-se como critério de seleção dos textos da coleção
a atenção a temáticas concernentes a preocupações contemporâneas, entre elas o “respeito ao
outro e a tolerância” e os “direitos humanos”, “com o objetivo de promover a reflexão para a
formação de valores de cidadania” (ibid., p. 9).
Os conteúdos referentes às leis 10.639/03 e 11.645/08 são articulados a mais de um
capítulo do eixo literatura, principalmente no que tange a textos de autores afrodescendentes.
Todavia, o maior volume de textos de autoria afrodescendente e africana situa-se no capítulo
“Vozes poéticas femininas, afrodescendentes e africanas contemporâneas” (Volume 3), o que
nos faz classificar a localização e distribuição de conteúdos de PLC05 também como restrita.
Ademais, vale registrar a ressalva de que a localização articulada não vem acompanhada de
um número relevante de propostas de leitura comparada envolvendo, por exemplo, Brasil e
África, a despeito de o dialogismo e de a intertextualidade fazerem-se presentes entre os
fundamentos teórico-metodológicos da coleção (SETTE; TRAVALHA; BARROS, 2013 [Vol
1 – Apêndice: “Assessoria Pedagógica”], p. 6 e p. 8).
112
No apêndice intitulado “Assessoria Pedagógica”, esclarece-se ao professor que tais epígrafes são entendidas
pela coleção como “pequenos textos que despertem a curiosidade do aluno e dão apoio temático e motivação
para o estudo do capítulo”, possibilitando “uma breve reflexão a respeito do conteúdo que será estudado”
(SETTE; TRAVALHA; BARROS, 2013 [Vol 1 – Apêndice: “Assessoria Pedagógica”], p. 32). Daí, a nosso ver,
a relevância de uma epígrafe que direcione os alunos a uma leitura de viés pós-colonial.
231
Embora PLC05 não retome essa diretriz no decorrer da apresentação do gabarito dos
exercícios, consideramos pertinente analisar o capítulo dedicado às produções literárias do
Quinhentismo em conjunto com a discussão desenvolvida no capítulo precedente, intitulado
“Visões do batismo do Brasil – leitura de imagens”. Comum a todo o eixo literatura, a seção
de “leitura de imagens” propõe, neste caso, uma leitura comparada das obras A primeira
missa no Brasil (1861), de Victor Meirelles, da tela homônima assinada por Candido Portinari
em 1948, e, por fim, também do cartum homônimo do artista contemporâneo Nani (SETTE;
TRAVALHA; BARROS, 2013 [Vol 1], pp. 132-137)113.
113
As telas de Meirelles e de Portinari são facilmente encontradas em sites de busca na internet, razão pela qual
disponibilizamos apenas o cartum de Nani.
232
(A primeira missa, de Nani. Apud: Nani não erra uma!. In: Revista Palavra, Belo Horizonte: Gaia, ano 1,
n, 12, ab. 2000, p. 120)
[2. Em que elas [tela de Meirelles e tela de Portinari] são diferentes?] [...]
Leve os alunos a inferir que Victor Meirelles destaca a realidade histórica
construída pela “história oficial”, mostrando índios e europeus como
espectadores da cerimônia religiosa. O pintor do século XIX é fiel às
descrições da carta de Pero Vaz de Caminha [...]. Já Portinari rompe com
essa construção histórica. O pintor do século XX nega a “romantização” de
harmonia entre europeus e indígenas e retrata a cerimônia apenas com
europeus. [...].(SETTE; TRAVALHA; BARROS, 2013 [Vol 1– Apêndice:
“Assessoria Pedagógica], p. 73).
233
(i) Na bagagem
Você acha que a poesia de denúncia social de Castro Alves
influenciou a poética contemporânea? Que poetas afro-brasileiros
dialogam com sua poesia?
Em sua opinião, os problemas apontados em “O navio negreiro”
ainda persistem em nossa sociedade? Que outras temáticas sociais
poderiam ser abordadas nos dias de hoje?
Para ajudar a refletir a respeito dessas questões, leia um poema de Adão
Ventura, poeta afrodescendente contemporâneo. (SETTE; TRAVALHA;
BARROS, 2013 [Vol 2], p. 45).
(ii) Na bagagem
Apesar de vários escritores afrodescendentes terem escrito textos
de reconhecido valor estético e social desde o Brasil Colônia, por
que você acha que ainda pouco se conhece sobre a literatura afro-
brasileira?
Você já ouviu falar em Luís Gama, Domingos Caldas Barbosa,
Henrique Dias, José da Natividade Saldanha, Antônio Gonçalves
Teixeira Souza, Maria Firmina dos Reis? Será que esses poetas
tiveram visibilidade merecida?
Leia a seguir um poema “Minha mãe”, de Luís Gama, importante poeta do
Romantismo brasileiro. [Instrução dada ao Professor: Seria interessante
consultar um professor de História a respeito da Revolta dos Malês e da
revolta da Sabinada, que contaram com a participação de Luiza Mahin, mãe
235
115
Listam-se dois sites (site da SEPPIR e o “Portal Planalto”); três artigos acadêmicos relacionados à temática
da desigualdade racial e da literatura afro-brasileira; e também a lei 12.288/10, que institui o Estatuto da
Igualdade Racial.
236
é encerrado com leitura de um fragmento de Cidade de Deus (1997), de Paulo Lins (SETTE;
TRAVALHA; BARROS, 2013 [Vol 2], p. 115). Contudo, observa-se que a literatura afro-
brasileira faz-se presente, especialmente, nos capítulos 12 (“Prosa contemporânea (I) – O
cenário urbano e o realismo fantástico”) e 16 (“Vozes poéticas femininas, afrodescendentes e
africanas contemporâneas”) do terceiros volume da coleção, motivo pelo qual eles são mais
discutidos nesta subseção.
O capítulo 12 não faz distinção entre as origens das literaturas de língua portuguesa,
visto que parte de seus objetivos técnicos é dar conhecer, de um lado, “o cenário urbano
brasileiro [...], a solidão urbana, a violência e a desigualdade social”, e, de outro, “alguns
prosadores importantes do realismo fantástico no Brasil, em Portugal e em Moçambique”
(SETTE; TRAVALHA; BARROS, 2013 [Vol 3 – Apêndice: “Assessoria Pedagógica”], p.
80). Assim, escritores como Rubem Braga, Ferréz e Conceição Evaristo são escolhidos para
ilustrar o primeiro caso, enquanto que nomes como José Saramago e Mia Couto teriam em
comum o fato de se aproximarem, em alguma medida, do realismo fantástico. Interessa-nos
comentar, no que abarca o cumprimento da lei 10.639/03, a presença de Mia Couto e de
Conceição Evaristo nesse capítulo, ainda que, como já observado acerca da coleção PCIS03,
reconheçamos a presença da obra de Ferréz como um dado importante, uma vez que, na
condição de literatura marginal/periférica, ela também desestabiliza o cânone escolar.
A escritora negra Conceição Evaristo é apresentada em um quadro situado após a
análise de excertos de Capão pecado (2000), de Ferréz, no qual se encontram uma fotografia
da autora, bem como sua breve biografia (SETTE; TRAVALHA; BARROS, 2013 [Vol 3], p.
207). Em seguida a esse panorama (pp. 207-209), desenvolve-se uma atividade de leitura de
um trecho do romance Ponciá Vicêncio (2003), composta por questões de múltipla escolha
retiradas e adaptadas do Exame Vestibular 2010 da Universidade Estadual de Londrina
(UEL), um fato que nos chama a atenção para os efeitos que essas provas podem ter nos livros
didáticos, os quais recorrem, com frequência, aos conteúdos cobrados nesses exames.
Adiante, discutimos ocorrências envolvendo exercícios de outros vestibulares utilizados por
PLC05.
A despeito de o romance de Evaristo ser explorado a partir de questões objetivas, e
não discursivas, cujo gabarito se restringe à indicação da alternativa correta, a coleção sugere
que o professor consulte a “Assessoria Pedagógica”, no apêndice do Manual. Nela, propõe-se
uma “atividade complementar” similar àquela presente nas diretrizes sobre o Condoreirismo,
238
havendo, portanto, nova menção à lei 10.639/03. Desta vez, indica-se um debate a respeito
“dos países africanos e de sua riqueza cultural; da herança dessa cultura e do papel dos
afrodescendentes na construção de nosso país; da importância de se cumprir a lei nº
10.639/03, de 9 de janeiro de 2003, que trata da introdução no currículo escolar da ‘História e
Cultura Afro-Brasileira’” (SETTE; TRAVALHA; BARROS, 2013 [Vol 3 – Apêndice:
“Assessoria Pedagógica”], p. 80). Ressaltando a possibilidade de se recorrer à assessoria dos
professores de História e de Geografia, prescreve-se que seja discutida igualmente a situação
histórica dos afrodescendentes no Brasil, e que se acesse o texto integral e original da lei
(ibidem) também neste caso a coleção fornece uma breve referência bibliográfica sobre o
tema.
O conto “A carteira do crocodilo”, de Mia Couto, é introduzido aos alunos por meio
de solicitações cursivas e de um enquadrador extratextual que responde à segunda pergunta
lançada: “Você conhece a Literatura em prosa de algum escritor africano de língua
portuguesa? Qual(is)? O realismo fantástico também faria parte do contexto literário desse
continente? Um dos grandes escritores lusófonos que também abraçam o realismo mágico é o
moçambicano Mia Couto” (SETTE; TRAVALHA; BARROS, 2013 [Vol 3], p. 212). É
interessante observar que a segunda questão cursiva dá margem à exposição das ideias
prévias que os estudantes possam ter sobre as literaturas de matriz africana, antes de se
direcionar a leitura do texto a um diálogo com as características do realismo fantástico. No
entanto, com exceção de uma atividade que questiona diretamente a relação entre o texto e a
escola literária, predominam exercícios em torno de aspectos linguísticos (neologismos,
sentidos de palavras e expressões) e de estratégias narrativas (voz narrativa e composição do
narrador) que dão forma ao conto, embora haja uma atividade totalmente voltada a operações
interpretativas de inferência, as quais se revelam reflexivas e, assim, produtivas à formação de
leitores literários.
A título de ilustração, optamos por transcrever a seguir a atividade que faz alusão ao
realismo fantástico (i), visando evidenciar as nuances do direcionamento de leitura que
norteia o capítulo; transcrevemos também o primeiro exercício proposto pela coleção (ii), por
se constituir um exemplo que foge ao padrão de pergunta verificado em PLC05, pois nele a
solicitação analítica é precedida por um extenso enquadrador discursivo extratextual que
fornece aos alunos informações sobre a história de Moçambique e não por um breve
enquadrador textual, tal qual ocorre na maioria das atividades de leitura do presente livro ;
239
(iii) 2. b) Comente com os alunos que, por meio da narração desses eventos
surpreendentes, o conto estimula a reflexão, assim como denuncia as práticas
e as relações políticas em Moçambique. Seria interessante contar com a
ajuda do professor de História para melhor contextualizar historicamente a
240
Em nossa leitura, os três excertos indicam que, ao mesmo tempo em que PLC05
escapa ao lugar comum de vincular, de forma estrita, as literaturas africanas a um tipo de
literatura “política” ou “engajada” (muito embora elas atendam, obviamente, também a essa
vertente de escrita ficcional), a coleção não desconsidera, para isso, informações socio-
históricas produtivas à leitura de grande parte dessas narrativas. Tendo em vista que muitas
das coleções do PNLD 2015 adotam apenas a primeira perspectiva (literatura
“política”/”engajada” ou, ainda, “memorialística”), este é um dado contrastivo relevante para
a nossa análise.
Antes de nos voltarmos ao capítulo 16, dois pontos dos capítulos precedentes
merecem ser citados. Primeiramente, chamam-nos a atenção os exercícios finais do capítulo
12, baseados num texto opinativo de Mia Couto (“Plastificar a cidade?”) sobre a questão da
preservação de palmeiras em Maputo, e novamente retirados e adaptados de um Exame
Vestibular, especialmente da prova de ingresso de 2012 do Instituto Federal do Tocantins
(IFTO) (SETTE; TRAVALHA; BARROS, 2013 [Vol 3], pp. 220-221). Em segundo lugar, e
não menos importante, destaca-se a repetição dos títulos de Ferréz, de Conceição Evaristo e
de Mia Couto entre as obras indicadas para o desenvolvimento de uma atividade de produção
textual concernente ao gênero “ficha de leitura”, em que é recomendada a leitura integral do
livro escolhido (ibid., p. 238) os demais autores trabalhados no capítulo completam a lista,
tais como Rubem Braga e José Saramago.
Sob o título “Vozes poéticas femininas, afrodescendentes e africanas
contemporâneas”, o segundo capítulo a recuperar autores negros atenta-se, exclusivamente, a
um repertório literário historicamente esquecido pelos livros didáticos. Nesse sentido, PLC05
soma a voz feminina às “vozes” previstas pela lei 10.639/03. Trata-se, em nossa interpretação,
de um enfrentamento do legado colonial no que tange, igualmente, à persistência do
patriarcalismo nos processos de validação e de ordenação dos saberes. Nesse primeiro recorte
(“vozes poéticas femininas”), a obra de Conceição Evaristo reaparece ao lado de Adélia
Prado, Alice Ruiz e Hilda Hilst, bem como serve de introdução à análise de fragmentos de
“vozes afrodescendentes” (ou seja, ao segundo recorte temático do capítulo), sendo estas a
voz de Esmeralda Ribeiro (poema “Trocar de máscara”), de Solano Trindade (“Canto aos
Palmares”) e de José Carlos Limeira (poema “Diariamente”). Acerca dos três, lança-se uma
241
pergunta comum: “Quais são as temáticas desses versos?” (SETTE; TRAVALHA; BARROS,
2013 [Vol 3], p. 280). Para além das respostas detalhadas, registra-se ao professor que “se
achar conveniente, discuta o alto índice de homicídios cometido contra jovens negros e as
medidas que devem ser tomadas para garantir a segurança e os direitos desses jovens”
(SETTE; TRAVALHA; BARROS, 2013 [Vol 3 – Apêndice: “Assessoria Pedagógica”], p.
92). Também uma breve explicação sobre os sentidos de “literatura negra” e “literatura afro-
brasileira” é fornecida:
Panorama
Como você pôde perceber nos versos de Conceição Evaristo, Esmeralda
Ribeiro, Solano Trindade e José Carlos Limeira, os sujeitos poéticos de seus
textos tematizam elementos da trajetória afrodescendente no Brasil. Por
meio do discurso poéticos, esses poetas buscam o resgate da memória,
denunciam a escravidão e suas consequências, relatam a resistência de seu
242
(1976), no qual Rubem Valentim discorre sobre o “peso da Bahia” em sua arte (SETTE;
TRAVALHA; BARROS, 2013 [Vol 3], p. 281). Ao professor, sugere-se “realizar esta
atividade com o professor de Artes, que pode realizar um mural com reproduções de obras de
outros artistas plásticos afrodescendentes brasileiros” (ibid., p. 280). Já sobre o poema de
Miriam Alves, cujo título rememora a mãe de Luís Gama, repete-se, inicialmente, a diretriz já
presente no Volume 2, isto é, explorar, em conjunto com o docente de História, tanto a
personagem histórica em questão, quanto as revoltas das quais elas participou (“Revolta dos
Malês”, por exemplo), com o adendo de que se pesquise, inclusivamente, “a existência de
outros movimentos ocorridos no Brasil contra o regime escravocrata” (SETTE; TRAVALHA;
BARROS, 2013 [Vol 3 – Apêndice: “Assessoria Pedagógica”], p. 93). Por fim, acrescenta-se
a sugestão de que seja realçada junto aos alunos “sua própria luta como mulher negra, para
defender seu ideal [o ideal da luta dos afrodescendentes]. Uma mulher que também busca, na
verdade dos fatos, na realidade do dia a dia, o seu caminho (luta) como escritora: uma luta
que deve ser travada por si mesma, por mais ninguém” (ibid., p. 91).
No terceiro e último recorte do capítulo, “vozes poéticas africanas”, tem-se um
repertório constituído pelo poema “Grito negro” (1964), do moçambicano José Craveirinha,
pelo poema “Chão”, do angolano Ondjaki, e, repetindo o equívoco que vimos em LPLI04 em
relação à inclusão de Valter Hugo Mãe na seção de literaturas africanas, PLC05 disponibiliza
também o poema “O que é que eu quero para a minha vida?”, do português Gonçalo M.
Tavares, escritor que, assim como Mãe, nega em diversas entrevistas sua identificação como
escritor africano, mesmo tendo nascido em Angola. Trata-se, pois, de uma questão a ser
examinada no que concerne aos materiais didáticos: em que medida o local de nascimento dos
escritores figura como critério de seleção de produções artístico-literárias de matriz africana?
Entre as coleções que analisamos até aqui, em duas verificamos essa ocorrência, com a
diferença que PLC05, tanto na apresentação do autor quanto na análise dos textos, fornece
alguns vestígios sobre a relação literária de Gonçalo M. Tavares com Portugal: além de se
referir a ele como “poeta angolano/português”, a coleção contrapõe sua literatura às de
Craveirinha e Ondjaki justamente no que se refere à “temática” africana, sem, contudo,
problematizar devidamente a questão da identidade literária do escritor, como verificamos nos
excertos:
Uma vez analisados os três textos, o capítulo se encerra, novamente, com questões
adaptadas de Exames Vestibulares da prova da UFBA/2011 e da prova da
UFBA/UFRB/2008, respectivamente , as quais colocam os alunos em contato com outros
textos da literatura negra/afro-brasileira: os poemas “Em maio”, de Oswaldo de Camargo, e
“Passado histórico”, de Sônia Fátima, ambos retirados dos Cadernos Negros. Nestas e nas
demais análises textuais elaboradas por PLC05, identificamos um padrão: atividades basilares
de interpretação, mas de grande potencial crítico se consideradas à luz das orientações dadas
ao professor. Os exercícios sobre os poemas de Camargo e de Fátima são, inclusive, do tipo
“múltipla escolha”, mas se pensados no contexto maior da gama de informações sobre a
literatura negra/afro-brasileira acessível ao professor, mostram-se mais produtivos. Essa
predileção pelas diretrizes fornecidas ao docente em detrimento da elaboração de questões
mais complexas e de enquadradores discursivos mais detalhados, é um dado peculiar e
interessante de PLC05, passível de ser retomado em nossas considerações gerais sobre o
PNLD 2015, na medida em que ele chama a atenção para o fato de que um repertório
inovador pode não vir acompanhado, necessariamente, de estratégias didático-pedagógicas
inovadoras. Em outras palavras, o Caderno do Aluno (em todos os capítulos) atende a um
lugar comum de estruturação e de organização dos livros didáticos, apresentando atividades
textuais que, à primeira vista, podem ser lidas como pouco críticas; nesse sentido, a
introdução de textos de autoria feminina e afrodescendente, somada (necessariamente) ao teor
245
do Manual do Professor, funciona como o grande (ou talvez o único) fator desviante de
PLC05 frente ao cânone.
Como últimos apontamentos, é preciso mencionar que há no Manual do Professor,
também no terceiro volume, uma atividade de “leitura complementar” sobre a prosa
contemporânea em países lusófonos, em que se faz referência, no caso específico dos
prosadores africanos, aos escritores angolanos Luandino Vieira, Pepetela e José Eduardo
Agualusa; a Germano Almeida (Cabo Verde) e a Abdulai Sila (Guiné Bissau) (SETTE;
TRAVALHA; BARROS, 2013 [Vol 3 – Apêndice: “Assessoria Pedagógica”], p. 85). Nas
instruções, esclarece-se que muitos desses autores refletem em sua escrita certa “tensão”
decorrente das duas realidades por eles vivenciadas, a da “sociedade colonial portuguesa” e a
da “sociedade africana”; mesmo com tal ressalva, o Manual cita a “’diversidade’ da literatura
lusófona africana” (ibid., p. 86).
Ressaltamos, finalmente, que a obra disponibiliza diversos Boxes com referências
extras aos alunos e aos docentes, indo desde a indicação de entrevistas com escritores negros
e africanos até a relação de trabalhos acadêmicos, passando também pela sugestão de vídeos
do Youtube contendo a recitação de poemas pertencentes a essas literaturas.
sobre a demarcação das terras indígenas a poema de João Cabral de Melo Neto (SETTE;
TRAVALHA; BARROS, 2013 [Vol 1], p. 67); e, no capítulo “origem da língua portuguesa”,
também no primeiro volume, outra questão da mesma edição do exame acerca das línguas
indígenas (ibid., p. 291).
SIGLA: SPLP06
Na resenha do PNLD 2015, tem-se como ponto forte da coleção o fato de suas
atividades oferecerem “múltiplas formas de abordagem dos textos” (BRASIL-MEC/SEB,
2014b, p. 71), e como ponto fraco a falta de propostas de circulação dos textos produzidos
pelos alunos (ibidem). Entre os destaques, menciona-se a promoção de articulação entre os
eixos, sobretudo entre o eixo da literatura e o dos conhecimentos linguísticos (BRASIL-
MEC/SEB, 2014b, p. 71). Em concordância com a resenha feita pelo MEC, também notamos
que os Boxes, seções fixas e links contribuem significativamente para este tipo de diálogo. Em
linhas gerais, o Guia de Português descreve e dá evidência às diversas vertentes de atividades
de leitura que atravessam todos os eixos de ensino. Atendendo a um modelo mais clássico de
livros didático, “a coleção propõe para o ensino da literatura o seu estudo cronológico, por
meio de textos e autores representativos de ‘estéticas literárias’ de diferentes épocas,
tendência caracterizada por contextualização de época e utilização de textos exemplares de
autores representativos dos movimentos” (ibid., p. 74). Percebe-se todavia, que, ao encontro
do que afirma a resenha, ocorre por vezes “uma quebra dessa tendência” em SPLP06, através
de propostas de leituras comparadas de textos “afastados no tempo” (ibidem). Isso significa
que, tal como ilustra a nossa análise, as relações intertextuais neste material obedecem mais a
um critério de diferença temporal que de diversidade cultural; não por acaso, os diálogos entre
as literaturas brasileira e africanas não são explorados pela coleção. Por fim, frisamos,
conjuntamente com o Guia, que “além de informações sobre quem é o autor, outras
informações preparam e apoiam o leitor para compreender o contexto de circulação dos
textos” (BRASIL-MEC/SEB, 2014b, p. 76), o que nos faz reconhecer os variados e extensos
enquadradores discursivos (tanto do tipo textual quanto do tipo extratextual) do Caderno do
Aluno como elementos de grande importância e impacto no direcionamento de leitura.
Assim como vimos em algumas coleções, o eixo literário é predominante em
SPLP06: dos 110 capítulos totais, 50% é reservado à literatura, sendo o restante distribuído,
com baixa margem de diferença, entre o eixo linguístico e o eixo escrita. Por outro lado,
contrariamente à maioria do corpus, a presente coleção conta com um único “editor
248
Para além das análises textuais do capítulo, destaca-se o papel exercido por algumas
seções e Boxes fixos do eixo literatura, bem como as orientações complementares presentes
no Manual do Professor. No Box informativo “Ação e cidadania”, afirma-se que “o
Quinhentismo marcou o início de uma relação entre nativos e europeus muito desvantajosa
para os indígenas”, sendo citados como exemplos dessas desvantagens a escravidão indígena,
as doenças trazidas pelos brancos, a luta pela posse de terras e a dominação cultural
(RAMOS, 2014 [Vol 1], p.116) vale registrar que integra o presente Box uma imagem do
movimento indígena em frente ao Congresso Nacional. Já no Box de atividade “O que você
pensa disto?” (ibid., p. 123), os alunos são convidados a refletir e a debater sobre os direitos e
sobre a identidade cultural dos povos indígenas117; transcrevemos abaixo as perguntas
lançadas a respeito do tema e a respectiva orientação dada ao professor:
117
Outro exemplo interessante dos conteúdos trazidos pelo Box “O que você pensa disto?” encontra-se no
Capítulo 11, “O Barroco em Portugal”, em que, a partir do estudo dos sermões do Padre Vieira, se pergunta: “é
possível observar essa relação entre os campos religioso e político atualmente? Em caso positivo, que exemplos
você poderia citar?” (RAMOS, 2014 [Vol 1], p.141).
252
Por fim, é pertinente assinalar que estes e os outros exemplos que apresentamos vão
ao encontro de alguns dos objetivos de capítulo introduzidos ao professor, tais como
“perceber que a linguagem utilizada demonstra um ponto de vista determinado pelo contexto”
e “relacionar os preconceitos veiculados por seus textos [Gândavo] à visão de mundo
eurocêntrica da época” (RAMOS, 2014 [Vol 1 – Apêndice: “Manual do Professor”], p. 437).
E dando continuidade, ainda, a essa abordagem, verifica-se entre as “sugestões didáticas e
ampliação de repertório” a indicação, no Manual do Professor, do exercício de produção
textual de “uma carta do Descobrimento” do ponto de vista dos indígenas (ibidem), assim
como de uma pesquisa extraclasse sobre os povos indígenas no passado e no presente. Como
leitura complementar, o professor encontra um excerto da introdução da antologia Cronistas
do descobrimento (1999), organizada por Antonio Carlos Olivieri e Marco Antonio Villa, que
discorre sobre a relação desses textos com o sentimento nativista e nacionalista na literatura
brasileira (ibid., p. 453).
Ainda que dotada menor aprofundamento se comparada ao capítulo do
Quinhentismo, a unidade reservada ao Romantismo (Unidade 1, do Volume 2, composta por
dez capítulos) mantém, em certa medida, o debate sobre o lugar ocupado pelo eurocentrismo
na literatura brasileira. Em relação ao Indianismo em José de Alencar, por exemplo, há no
Caderno do Aluno a afirmação de que, a despeito de Alencar refutar algumas perspectivas
negativas sobre os povos indígenas e de contribuir, assim, com a modificações de
determinados preconceitos, sua literatura corresponde também a uma “abordagem
etnocêntrica, já que a valorização do povo nativo não ocorreu por suas qualidades próprias,
mas sim por aquilo que os fazia parecidos com o que o europeu considerava belo e bom”
(RAMOS, 2014 [Vol 2], p. 39). Selecionamos uma solicitação analítica de justificação e de
inferência que trabalha esse aspecto:
Na mesma página em que se localiza tal atividade, ganha evidência novamente o Box
“Ação e cidadania”, iniciado com a retomada da ideia de que “no Romantismo, a construção
de uma identidade nacional afinada com a visão do indígena era uma herança inventada” e
encerrado com uma referência à criação e ao papel da FUNAI – Fundação Nacional do Índio
(RAMOS, 2014 [Vol 1], p. 41).
Diferentemente do que vimos em outras coleções, o estudo da poesia romântica não
é, em SPLP06, pensado, por sua vez, nos termos de uma possível idealização desses povos.
De acordo com o texto de abertura do capítulo “Gonçalves Dias: inovações na poesia”, sua
“representação do indígena e de sua cultura é verossímil”, “apesar do exagero”, visto que, de
encontro a José Alencar, Dias centra-se em “valores e sentimentos” e não “na personalidade
do herói e seus feitos” (RAMOS, 2014 [Vol 2], p. 54). Trata-se de um enquadrador
discursivo adequado aos fragmentos e às solicitações analíticas que integram as análises
textuais da produção do poeta, os quais buscam, a nosso ver, conduzir os alunos à exploração
desse recorte temático (“valores e sentimentos”, construção e relações de personagens etc.)
exemplos de solicitações analíticas concernentes ao estudo dos poemas “I-Jura Pirama –
Parte VIII” e “Olhos verdes”, respectivamente: “2. O pai evoca infortúnios a serem vividos
por seu filho. Explique, com outras palavras, quais são os castigos mencionados ao longo do
poema” (RAMOS, 2014 [Vol 2], p. 56); “2. Qual é a concepção de amor apresentada no
poema?” (ibid., p. 57). Por essa razão, comentamos apenas um exercício em especial, que nos
chama a atenção devido ao modo pelo qual ele direciona a leitura de uma crítica feita por
Antonio Candido a Gonçalves Dias:
(Angola); Alexandre Dáskalos (Angola); Mia Couto (Moçambique); José Eduardo Agualusa
(Angola); Pepetela (Angola); Rui Knopfli (Moçambique/Portugal); Amílcar Cabral (Guiné
Bissau) ; um pequeno excerto de uma entrevista com o moçambicano José Craveirinha;
uma letra de música interpretada pela cabo-verdiana Cesária Évora (apresentada no Box
“Repertório”); e duas obras do artista plástico moçambicano Malangatana Valente
Ngwenya118, uma situada na folha de abertura do capítulo [tela Onde estão meus pais, meus
irmãos e todos os outros]119 e a outra [desenho A cela]120 compondo uma atividade de leitura
comparada com o poema “Drama na cela disciplinar”, de António Cardoso (vide referências
completas do repertório de SPLP06 na Tabela 10 [página 264]). Com exceção da letra de
música, da entrevista, da tela de Ngwenya que abre a unidade, e, finalmente, dos poemas de
Dáskalos e Cabral (cujos fragmentos são bastante breves), os excertos restantes são
acompanhados de atividades, das quais comentamos algumas no decorrer de nossa análise.
De início, a coleção adverte os estudantes de que
118
Encontramos uma página pessoal (de M.Virgínia Costa) que reúne 345 imagens de Malangatana:
<https://br.pinterest.com/mvirginiacosta/malangatana-1936-2011/> e também um vasto acervo das obras do
artista disponibilizado pela Fundação Mário Soares <http://casacomum.org/cc/parceiros?inst=6>. Acesso em:
31/01/2019.
119
Imagem disponível em <http://casacomum.org/cc/visualizador?pasta=07210.361.000>. Acesso em:
13/02/2019.
120
Imagem disponível em <http://casacomum.org/cc/visualizador?pasta=07210.216.000>. Acesso em:
13/02/2019.
257
121
A coleção traça, no desenrolar do capítulo, uma breve historiografia das literaturas africanas lusófonas. Sobre
os “sistemas literários africanos”, assinala-se, brevemente, o surgimento dessas literaturas por volto do ano de
1940, decorrente da expansão do ensino e da imprensa; a prevalência de textos “de forte marca ideológica” entre
1940 e 1970; e, por fim, certa abertura a obras com “temáticas mais existenciais” a partir dessa data (RAMOS,
2014 [Vol 3], p. 183). Ademais, explica-se que se as “literaturas ultramarina e colonial [...] retratavam a África
pela ótica do colonizador português”, a “literatura neoafricana rompe com essa tradição [...]” (ibidem).
258
122
No artigo “Rui Knopfli: o país de quem - Para a análise de uma moçambicanidade literária”, a pesquisadora
Sônia Quental explica que Knopfli afirma-se ora um escritor português, ora um escritor moçambicano. Texto
disponível em: <http://web.letras.up.pt/primeiraprova/knopfli.htm>. Acesso em: 31/01/2019.
123
Ao todo a coleção apresenta três fragmento da obra Que é literatura? (1947), de Sartre. E cabe esclarecer que
se trata, novamente, de uma proposta pertencente à seção fixa “Ferramenta de leitura”, por nós já comentada na
análise do capítulo do Quinhentismo.
260
5. Segundo Jean-Paul Sarte, a literatura deve fazer com que o leitor “assuma
sua inteira responsabilidade” diante do mundo desvendado pelo escritor.
Como isso acontece na leitura do poema de Rui Knopfli? (RAMOS, 2014
[Vol 3], p. 189). [Resposta: O poema propõe ao leitor uma reflexão sobre a
identidade africana e sobre como ela pode persistir mesmo em expressões
marcadas pela influência europeia e escritas em uma língua europeia (no
caso, o português). São questões que dizem respeito à realidade social de
que o escritor, como muitos de seus leitores, faz parte. Aliás, nesse poema, o
eu lírico assume uma posição clara: sua voz toma partido da África e dos
africanos]. (RAMOS, 2014 [Vol 3 – Apêndice: “Manual do Professor”], p.
478).
africanas de língua portuguesa (2006), organizado por Tania Macedo e Rita Chaves, e o
documento Atlântico negro – na rota dos orixás (1998), dirigido por Renato Barbieri.
Conforme afirmamos na análise da macroestrutura, a localização dos conteúdos que
atendem às leis não é somente do tipo restrita, mas também do tipo articulada. No capítulo
introdutório do eixo literário (Unidade 1 – “Ao encontro da literatura”, Capítulo 2:
“Literatura: gêneros e modos de leitura”), o poema “Amor adiado” do moçambicano Hélder
Muteia surge como texto exemplar do gênero lírico (RAMOS, 2014 [Vol 1], p. 33), ao lado
um trecho de Odisseia, de Homero, o qual, por sua vez, ilustra o gênero épico. No mesmo
volume, na seção “Entre textos” da unidade do Classicismo, um poema sem título do
angolano Arlindo Barbeitos (“a sul do sonho...”) integra a proposta de leitura comparada
composta, inclusive, por fragmentos de Olavo Bilac, Fernando Pessoa e Vinicius de Moraes.
Segundo a coleção, todos têm em comum a abordagem do “expansionismo do Império
português, celebrado em Os Lusíadas” (RAMOS, 2014 [Vol 1], p. 108). Fechando os
movimentos de articulação das literaturas e/ou de autores africanos a outros capítulos do livro
didático, uma entrevista de Mia Couto sobre as diferenças do português do Brasil e de
Moçambique dá forma a uma questão sobre variação linguística no capítulo “Uma língua,
muitas línguas”, do eixo conhecimentos linguísticos (ibid., p. 201).
Finalmente, verificamos que SPLP06 não investe, em linhas gerais, na introdução da
literatura negra/afro-brasileira. Tem-se apenas um fragmento de Cidade de Deus (1997), de
Paulo Lins, o qual é apresentado como exemplo de texto contemporâneo que dialoga, “mesmo
que indiretamente”, com o Naturalismo (RAMOS, 2014 [Vol 2], p. 134)124. Por outro lado,
embora a abordagem de autores negros pertencentes ao cânone não integre o nosso recorte de
pesquisa125, notamos que os Boxes fixos de SPLP06, discutidos em determinadas passagens
da nossa análise, são usados frequentemente para vincular, de modo enfático, escritores
afrodescendentes à questão racial, estratégia nem sempre observada nos livros didáticos. No
Box “O que você pensa disto?”, alocado no capítulo acerca do Simbolismo, por exemplo, a
124
Ademais, no debate da literatura contemporânea (Capítulo 19, Volume 3), há a indicação do livro Literatura
Marginal: talentos da escrita periférica (2005), acompanhado de um excerto do textos introdutório assinado por
Ferréz (RAMOS, 2014 [Vol 3], p. 171).
125
Nossa análise permitiu perceber que seria bastante interessante e produtivo desenvolver pesquisas que
observem em que medida escritores negros inscritos no cânone são ou não relacionados à questão racial pelos
livros didáticos de literatura. No caso de Cruz e Sousa, por exemplo, é comum que sua obra seja explorada
apenas no que tange à discussão da escola literária Simbolismo, havendo um total apagamento de suas produções
abolicionistas. Há livros em que a afrodescendêcia do escritor nem é mencionada. Com base nisso, reforçamos a
noss sugestão de que estudos afins sejam desenvolvidos.
262
informação de que Cruz e Sousa não teve seu talento reconhecido em sua época
“principalmente devido ao racismo que vigorava na sociedade do século XIX” dá início a um
debate sobre cotas raciais nas universidades (RAMOS, 2014 [Vol 2], p. 169)126.
126
No encerramento do capítulo em que se discute a obra de Lima Barreto, por sua vez, além de um Box sobre “a
questão racial na ficção de Lima Barreto”, a seção “Ferramenta de leitura” vale-se do texto “Memória coletiva e
sincretismo científico: as teorias raciais do século XIX”, do sociólogo Renato Ortiz, para promover uma reflexão
sobre “a questão das raças na literatura pré-modernista”; com base nele, propõe-se a leitura de um excerto de
Canaã (1902), de Graça Aranha (RAMOS, 2014 [Vol 2], pp. 34-35).
263
SIGLA: LP07
Para tanto, buscou-se uma mudança de foco no que tange à apreensão dos
tradicionais conteúdos de literatura tal como dispostos em grande parte dos
materiais didáticos brasileiros disponíveis e em circulação na atualidade.
Expandindo os repertórios já oferecidos, são incluídos, nos três volumes e
em diferentes seções, diversos autores e textos afro-brasileiros e africanos,
preferencialmente em diálogo com o conjunto de autores e textos já
canônicos nos currículos escolares. Com isso, objetiva-se indicar caminhos
para uma prática pedagógica simultaneamente crítica e propositiva, calcada
na percepção plural e dinâmica da história da literatura. (HERNANDES;
MARTIN, 2013 [Vol 1 – Apêndice: “Manual do Professor”], p. 13).
128
Imagem disponível em: https://br.pinterest.com/pin/516225176016506829/?lp=true Acesso em: 17/02/2019.
129
As telas apresentadas pela coleção são: Mulher mameluca (1641); Mulher negra (1641); e Mulher tapuia
(1641). (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 3], p. 268). Todas são facilmente encontradas na internet.
271
escritos por autores de todos os países de língua portuguesa (HERNANDES; MARTIN, 2013
[Vol 1], p. 272). Além disso, também as atividades de leitura do capítulo (HERNANDES;
MARTIN, 2013 [Vol 1], pp. 271-275) servem de exemplo dessa extrapolação do olhar do
europeu: das cinco atividades propostas (uma na seção “Leitura” e as demais na seção
“Atividades”), três partem de fragmentos de escritores africanos (a relação completa do
repertório literário da coleção encontra-se na Tabela 11 [páginas 295-297]), sendo as demais
baseadas, respectivamente, num fragmento do romance Caderno de memórias coloniais
(2010), de Isabela Figueiredo, escritora portuguesa nascida em Moçambique que, no romance,
também discute os conflitos da sociedade colonial, e numa charge crítica à histórica
estereotipia dos indígenas (vide adiante).
Antes de dar início às leituras, LP07 informa que os textos literários produzidos
pelos colonizados passam a abordar com mais veemência as especificidades das culturas
nacionais no século XIX, no caso do Brasil, e nas primeiras décadas do século XX, no caso
dos países africanos de língua portuguesa. Já no que concerne ao teor das análises textuais,
verificamos como ponto comum um diálogo entre os exercícios e a temática do capítulo, isto
é, a colonização, inclusivamente nas questões de viés mais linguístico que literário, as quais
se voltam, com frequência, também a aspectos dos contextos sócio-históricos de cada país.
Selecionamos alguns exemplos:
(i) [Sobre o texto “Eu e o Outro – O invasor ou em poucas três linhas uma
maneira de pensar o texto”, proferido pelo angolano Manuel Rui durante o
encontro “Perfil da Literatura Negra” (1985), no Brasil]
1. Segundo Manuel Rui, como era a realidade vivida pelos africanos antes da
chegada do colonizador europeu? (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 1],
p. 271). [Resposta: Era uma realidade de harmonia, pois “estava tudo em
seu lugar”. Os mais velhos contavam histórias, texto oral que era “falado
ouvido visto”, e esse procedimento contribuía para a manutenção da
harmonia entre os homens e entre os homens e a natureza] (HERNANDES;
MARTIN, 2013 [Vol 1 – Apêndice: “Manual do Professor”], p. 82).
[...]
4. Por que a escrita do colonizador – que pode ser entendida como metáfora
da cultura europeia – é considerada uma arma tão poderosa como o canhão?
(HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 1], p. 271). [Resposta: Porque a
escrita (cultura) do colonizador disparou contra o texto oral (cultura) do
colonizado. Isso significou tentar destruir a identidade, os valores, o modo
de vida do colonizado] (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 1 – Apêndice:
“Manual do Professor”], p. 82).
escolar”), em que se sugere a realização de uma “pesquisa toponímica” sobre “as motivações
naturais e culturais” que deram origem aos nomes de espaços (fazendas, rios, praias, ruas,
etc.) da região em que os alunos moram (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 1], p. 312)130.
Mais que um bom gancho coesivo, o excerto (iii), em especial a letra “c”, somado ao estudo
de topônimos, elucida os vínculos existentes entre linguagem e poder, ponto caro ao estudo
crítico dos textos quinhentistas.
Mantendo o padrão de abrir os capítulos por meio de leituras imagéticas, LP07 inicia
a seção do Quinhentismo com um mapa “que mostra a distribuição atual dos povos indígenas
no Brasil” (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 1], p. 280). Em seguida, a coleção segue
com a discussão do respectivo contexto histórico, enfatizando, entre outros aspectos, a visão
eurocêntrica de tais textos dirigidos ao público leitor europeu, bem como faz menção aos
principais autores do período (Caminha, Gândavo, Hans Staden). Contudo, escapando ao
modelo clássico de ensino, a usual ênfase nos escritos dos cronistas dá lugar, por exemplo, a
atividades de leitura comparada em detrimento de análises isoladas do cânone131: um trecho
da carta de Pero Vaz de Caminha é lido comparativamente ao poema “Erro de português”, de
Oswald Andrade, e o texto visual “Duas viagens ao Brasil” (1557), de Hans Staden, a uma
paródia feita pelo ilustrador brasileiro Guazelli132 (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 1],
pp. 284-285).
A questão indígena é debatida de forma aprofundada em ambos os capítulos. No
capítulo 17 (“O projeto colonial português”), como dissemos, tem-se a análise de uma charge
relativa ao modo pelo qual os indígenas são eventualmente vistos nos dias atuais:
130
Para tanto, propõe-se a realização de entrevistas com moradores, a análise de dados, a elaboração de
relatórios contendo as informações coletadas e, por fim, a apresentação oral do relatório (HERNANDES;
MARTIN, 2013 [Vol 1], pp. 310-315).
131
Devido ao vasto repertório literário que compõe cada um dos capítulos de LP07, buscamos destacar as
passagens que julgamos mais significativas ao escopo da nossa pesquisa, de modo que nem todas as atividades
são por nós comentadas. Todavia, consideramos interessante mencionar que a coleção trata da temática da
colonização também a partir da leitura de um fragmento do romance Desmundo, da cearense Ana Miranda. Nos
demais livros didáticos do nosso corpus, tal obra, quando rememorada, costuma fazer-se presente através da
referência ao filme homônimo, e não de uma proposta de análise textual do romance.
132
Imagem disponível em: <http://grafar.blogspot.com/2008/04/datas-descobrimento-do-brasil.html>. Acesso
em 17/02/2019.
274
No capítulo 18 (“Quinhentismo”), por sua vez, LP07 retira do Enem uma atividade
sobre “o uso de novas tecnologias de informação e comunicação” feito pela tribo Sapucaí
(HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 1], p. 292), questão que chama a atenção para a
possibilidade de se conciliar a informática à conservação das línguas indígenas e, portanto, de
suas identidades (p. 293). Trata-se de exercícios que, em nossa leitura, vão ao encontro, em
maior ou menor medida, das propostas de encerramento dos dois capítulos, pertencentes à
subseção fixa “Ampliação” (sendo esta destinada “à complementação e aprofundamento do
conteúdo” [HERNANDES; MARTIN, 2013 (Vol 1 – Apêndice: “Manual do Professor”), p.
17]), relevando a qualidade dos ganchos coesivos construídos pela coleção. No fechamento do
capítulo 17 (“O projeto colonial português”), logo após a leitura da charge, o espaço
“Ampliação” reserva-se, então, à discussão do tema da diversidade cultural brasileira, por
meio de um texto crítico de Kabengele Munanga e Nilma Lino Gomes133 e de letras de
canções brasileiras que tocam a temática da miscigenação134 (HERNANDES; MARTIN, 2013
[Vol 1], pp. 276-279). Já no encerramento do estudo do Quinhentismo, o tema debatido é “a
133
Fragmento retirado da obra O negro no Brasil hoje. São Paulo: Global, 2006, p. 17.
134
Letras disponibilizadas: “Chegança”, de Antonio Nóbrega; “África”, de Sandra Peres, Arnaldo Antunes e
Paulo Tatit; “Etnia”, de Chico Science & Nação Zumbi; e “Racismo é burrice”, de Gabriel o pensador.
275
condição indígena hoje”, para o qual se dispõem três textos, um que discorre sobre a questão
de modo mais abrangente e dois que tratam da produção audiovisual indígena em particular
(ibid., pp. 294-297), momento em que se retoma, portanto, a temática do uso das novas
tecnologias tal qual feito pelos povos indígenas na atualidade. Elegemos como pontos fortes
desses debates finais tanto a predileção por solicitações cursivas para se conduzir as reflexões
junto aos alunos quanto as diretrizes dadas ao professor:
heranças do Brasil colonial nas letras de canção; representações dos indígenas na mídia;
representações dos afrodescendentes na mídia; a literatura afrodescendente; o racismo
no Brasil” (destaque nosso) (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 1 – Apêndice: “Manual
do Professor”], p. 84)137. Reconhecida a relevância do projeto, fazemos somente uma
ressalva: assim como a literatura afrodescendente comparece como um tema possível,
julgamos que a literatura indígena poderia ser inserida em tal listagem.
O estudo do Romantismo (Unidades 1 e 2 do Volume 2) também articula as
produções portuguesas e brasileiras às literaturas africanas e, neste caso, à literatura indígena.
Composta por quatro capítulos, a abordagem de tal escola literária inicia-se com uma
contextualização histórica bastante atenta, entre outros fatores, ao desenvolvimento e ao papel
da imprensa na divulgação da literatura romântica. A usual apresentação dos marcos
históricos europeus e das características estilísticas do período tais como, o papel da
Revolução Francesa e da Revolução Industrial, o sentimento nacionalista, a idealização do
herói e do amor etc. é acrescida (e, assim, inovada) de uma breve descrição do contexto de
surgimento da imprensa e do gênero romance “na África e na Ásia colonizada por Portugal”
(HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 2], p. 23), em que se listam nomes fundadores dessa
escrita em diversas ex-colônias portuguesas situadas nesses continentes. Introduz-se, então,
uma pequena biografia e comentários sobre a obra do escritor angolano Pepetela, apresentado
pela coleção como “um dos mais importantes romancistas contemporâneos em língua
portuguesa” (ibid., p. 25). Em seguida, na subseção “Atividades”, propõe-se, para além da
análise de fragmentos do clássico Os sofrimentos do jovem Werther (1774), de Goethe, a
leitura de um trecho de Yaka (1984), do autor africano. Sobre esta atividade, chama-nos a
atenção seu enquadrador discursivo extratextual. Nele, recordam-se as diferenças entre os
processos de independência do Brasil e de Angola e reitera-se que Pepetela “desenvolve um
projeto literário voltado para a reconstrução da história de seu país” (HERNANDES;
MARTIN, 2013 [Vol 2], p. 28). Dessarte, analogamente ao que vimos no capítulo que
antecede o estudo do Quinhentismo, a introdução ao Romantismo afasta o aluno de uma
percepção eurocêntrica das produções artístico-literárias do período da escola a ser
137
A ideia do projeto é produzir, em grupos, um painel com colagens e imagens sobre alguns dos temas listados.
Para tal, são fornecidas algumas referências bibliográficas e fontes de pesquisa.
278
1. O poema a seguir foi escrito pelo angolano José da Silva Maia Ferreira,
que viveu no Brasil de 1834 a 1845, quando teve a oportunidade de entrar
em contato com a poesia dos românticos brasileiros e estudá-la. O texto
consta do primeiro livro de poesia publicado em território africano dominado
por Portugal. Trata-se de Espontaneidades da minha alma: às senhoras
africanas (Luanda, 1849). Leia-o e, na sequência, responda às questões
propostas. (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 2], p. 83).
a) O poema À minha terra estabelece um interessante diálogo com Canção
do exílio, de Gonçalves Dias. Aponte os elementos temáticos e formais que
permitem ao leitor associar um poema ao outro. (HERNANDES; MARTIN,
2013 [Vol 2], p. 84). [Resposta: Do ponto de vista temático, observa-se no
poema de Maia Ferreira a mesma intencionalidade presente no poema de
138
LP07 também aborda neste primeiro capítulo do Romantismo a “presença feminina nos jornais brasileiros do
século XIX” (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 2], p. 21) e a “escrita de autoria feminina” no Romantismo
(ibid., p. 29). Ao encontro desse recorte, a subseção de encerramento “Ampliação” tem como tema “Direitos das
mulheres” (ibid., p. 32), em que encontramos solicitações cursivas similares às que integram a proposta de
fechamento do Quinhentismo, tais como , “Que razões lvariam alguns homens a acreditar que são ‘donos’ de
suas mulheres e que podem ser violentos com elas?” e “Você conhece alguma mulher que violência domésticaou
outro tipo qualquer de violência?” (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 2], p. 35). Ademais, no capítulo 6
(“Romantismo brasileiro: prosa”), a coleção reserva uma subseção a “um pouco da história das mulheres
escritoras no Brasil” (ibid., p. 133).
279
A despeito de a segunda geração romântica não compor nosso foco analítico, cabe
registrar que LP07 propõe, de forma análoga, um exercício de leitura comparada abarcando os
poemas “Namoro a cavalo”, de Álvares de Azevedo, e “Namoro”, do angolano Viriato Cruz
(HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 2], pp. 93-95). Também o poema “Realidade, sonho
horrível”, do caboverdiano Eugênio Tavares, é inserido como um exemplo de produção
africana de inspiração ultrarromântica (ibid., p. 90).
Para o Condoreirismo, a coleção soma aos autores mais clássicos, a saber, Castro
Alves e Sousândrade, o escritor afrodescendente e abolicionista Luiz Gama, escolha esta
pouco frequente entre os livros didáticos por nós analisados. Menciona-se no presente
capítulo, seu “tom satírico” e o fato o autor assumir a voz “diferenciada” do “negro-autor” em
sua obra única, Primeiras trovas burlescas de Getulino (1859) (HERNANDES; MARTIN,
2013 [Vol 2], pp. 99-100). Além de uma minibiografia, disponibilizam-se dois fragmentos de
280
139
Também no capítulo 21 do primeiro volume, intitulado “Barroco”, há uma breve subseção sobre o tema
“resistência à escravidão no Brasil Colonial” (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 1], p. 335), que trata
especialmente do Quilombo dos Palmares e da cultura negra (discutem-se/apresentam-se canções e danças da
capoeira, por exemplo).
281
como frentes literárias distintas. Após a leitura do “O adeus de Teresa”, frisa-se aos alunos
que “outro ponto interessante que aparece na tematização do amor em Castro Alves é que, em
sua poesia, o amor não tem cor ou raça. Diferentemente do ocorrido na literatura até o
Romantismo [...], Castro Alves trata o amor da mesma forma, aconteça ele entre brancos e
negros ou entre um casal de negros” (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 2], p. 98). No
mais, verificam-se exercícios parecidos aos de outras coleções, abrangendo a leitura de “O
Navio Negreiro”, de um lado, e o estudo de possíveis intertextualidades com Castro Alves, de
outro, como com a letra da canção “Todo camburão tem um pouco de navio negreiro”, do
grupo O Rappa (ibid., p. 104), ou com a obra artística de J. M. Rugendas (p. 106).
Inquestionavelmente, a subseção de encerramento “Ampliação” surge, uma vez mais,
como espaço bastante produtivo ao cumprimento da lei 10.639/03, haja vista ela se dedicar à
temática “Afirmação da identidade afro-brasileira nos Cadernos Negros” (HERNANDES;
MARTIN, 2013 [Vol 2], p. 108). Nesse sentido, depreendemos que, em síntese, LP07 parte do
Condoreirismo, escola conhecida mais pelo “falar sobre os negros”, para a literatura “dos
negros”, escrita por afrodescendentes. Transcrevemos parte dos enquadradores discursivos da
subseção, o primeiro pertencente ao Caderno do Aluno e o segundo referente a orientações
dadas ao professor:
Neste capítulo, você pôde refletir sobre a produção poética de Castro Alves,
que se empenhou na luta pela libertação dos escravos, concretizada em 1888.
Entretanto, a condição subalterna dos negros no Brasil não foi
substancialmente alterada com o fim da escravidão. Por isso, diversos grupos
continuam lutando pela emancipação dos afrodescendentes e, de modo mais
amplo, por um Brasil sem preconceito racial. Essa luta também se deu no
âmbito da Literatura, por meio de publicações escritas por e para os
afrodescendentes. Entre elas, destacam-se os Cadernos Negros.
(HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 2], p. 108).
Mais que a breve história dos Cadernos Negros e do grupo paulistano Quilombhoje,
completam a atividade fragmentos literários de Conceição Evaristo (poema “Vozes-
282
[...]
d) O poema faz referências claras à história do Brasil, sugerindo que os
negros sempre estiveram à margem dos processos históricos, sofrendo
claramente as suas consequências. À luz dessa perspectiva, interprete o
verso: “um dia fui abolição que me lancei de supetão no espanto”.
(HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 2], p. 111). [Resposta: O verso
refere-se ao modo como foi conduzida a abolição dos escravos no Brasil. O
eu lírico, que assume a sua afrodescendência, coloca-se no lugar de seus
antepassados que, depois da abolição, ficaram sem lugar social, pois não
houve políticas públicas para sua integração no universo do trabalho
assalariado. Como se sabe, esse fato está na base da exclusão social dos
afrodescendentes, que se perpetua até hoje.] (HERNANDES; MARTIN,
2013 [Vol 2 – Apêndice: “Manual do Professor”], p. 45).
[...]
g) Você sabe o significado de “quebranto”? Confira o sentido da palavra no
dicionário e, depois, elabora uma hipótese para explicar por que o termo foi
escolhido para dar título ao poema. [Resposta: O significado de “quebranto”
é “mau-olhado”, ou seja, um suposto efeito malévolo que a atitude ou o
olhar de algumas pessoas produzem em outras. O poema intitula-se
“Quebranto” exatamente porque aborda o efeito negativo que a perspectiva
hegemônica de desvalorização do negro exerce sobre o eu lírico, fazendo
com que ele interiorize o preconceito veiculado socialmente.
Chame a atenção dos alunos para a questão da interiorização do
preconceito, mecanismo perverso capaz de atingir, desde muito cedo, todos
aqueles que são alvo de discriminação. No caso do preconceito racial,
pode-se pensar nas crianças negras que dificilmente se veem representadas
de modo positivo na televisão, no cinema ou na literatura. Por serem
invisibilizadas ou ainda representadas de modo negativo, acabam por
introjetar um sentimento de inferioridade em relação às pessoas brancas. A
introjeção do preconceito pode ser percebida, de modo mais aparente, na
busca feminina por determinados padrões de beleza socialmente valorizados
- como os cabelos lisos e loiros, por exemplo.] (HERNANDES; MARTIN,
2013 [Vol 2 – Apêndice: “Manual do Professor”], p. 45).
É importante apontar que estes e os demais excertos que recortamos de LP07 expõem
a relevância que os enquadradores discursivos adquirem na coleção, dado que, em nossa
percepção, se nota um contínuo e cuidadoso trabalho de direcionamento de leitura, realizado
por meio dos textos (/dos enquadradores) que antecedem as solicitações analíticas e daqueles
que fazem a contextualização e mediação dos conteúdos de cada capítulo. O enquadrador
284
discursivo que abre a atividade de análise textual da obra de Daniel Munduruku reforça essa
impressão; destacamos o enquadrador e algumas solicitações analíticas:
140
As demais escritoras brasileiras citadas são: Nísia Floresta, Maria Benedita Câmara Bormann, Francisca Júlia
da Silva, Narcisa Amália de Campos e Prisciliana Duarte de Almeida (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 2],
p. 134).
286
Em PL07, a articulação dos conteúdos das leis 10.639/03 e 11.645/08 faz-se presente
em muitos capítulos, de modo que não é possível comentarmos toda essa gama de
ocorrências. A título de exemplificação, elencamos a seguir algumas propostas de leitura
comparada que atestam a existência dessas literaturas, sobretudo das de matriz africana, em
todos os volumes da coleção:
Volume 1
Capítulo 2 – “Literatura e Sociedade”: leitura comparada do poema “Agosto de 1964”,
de Ferreira Gullar; da canção “Comida”, do grupo Titãs; e do poema “Reza, Maria”,
do moçambicano José Craveirinha (páginas 32-34).
Volume 2
Capítulo 13 – “Realismo e Naturalismo no Brasil”: leitura comparada dos romances O
Cortiço (1890), de Aluísio Azevedo, e Kufemba (1973) do moçambicano João Salva-
Rey (página 236).
Volume 3:
Capítulo 2 – “Vanguardas europeias e Modernismo Português”: leitura comparada dos
poemas de Álvaro de Campos (1935 - poema sem título) e “Carta de um contratado”
(1952) do angolano António Jacinto (páginas 65-66).
141
Autores analisados na seção: Graciliano Ramos, Manuel Lopes e Ovídio Martins.
142
Um ponto bastante inovador de LP07 é a atenção dada, também no referido capítulo, ao “diálogo cultural
entre brasileiros e africanos nas páginas da revista catarinense Sul”, que “abriu espaço para que jovens escritores
africanos pudessem se manisfestar a salvo da vigilância colonial portuguesa”” (HERNANDES; MARTIN, 2013
[Vol 3 – Apêndice: “Manual do Professor”], p. 233).
288
textos (Brasil, Portugal, países africanos em língua portuguesa), as duas seções, ao abordarem
o continente africano, tratam, especialmente, das literaturas africanas produzidas em Angola,
Moçambique e Cabo Verde143. A explicação para tal enfoque é registrada no capítulo 9 do
primeiro volume (“Literatura em Processo”), em que, ao introduzir e conceituar as literaturas
em língua portuguesa, LP07 afirma se tratar dos países “onde há um maior número de
escritores com obras publicadas e divulgadas para além de suas fronteiras” (HERNANDES;
MARTIN, 2013 [Vol 1], p. 127). Deve-se considerar, portanto, que, anteriormente aos
capítulos do terceiro volume, alguns esclarecimentos acerca dessa matriz literária são feitos
ao aluno144, entre os quais frisamos o enquadrador de leitura responsável por enfatizar a
diversidade e as especificidades literárias do continente africano:
143
A despeito de serem exploradas somente as literaturas desses países, LP07 lista nomes de autores de Guiné-
Bissau e de São Tomé e Príncipe, tanto no capítulo sobre a poesia quanto no capítulo sobre a prosa.
144
Outrossim, no capítulo 9 do primeiro volume, LP07 comenta conceitualmente, em maior ou menor medida,
aspectos relacionados às distintas “fases literárias” pelas quais passaram essas literaturas, tais como, o papel da
oralidade, a produção literária “nativista” do período colonial, o lugar dos movimentos de “negritude” e de
“africanidade” no fazer literário do século XX e, finalmente, o surgimento de um maior “empenho estético”,
bem como de “mulheres escritoras” no século XXI (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 1], pp. 127-131).
Apesar de se configurarem subsídios de grande importância, preferimos dar mais evidência aos capítulos que
priorizam análises textuais e não tanto aos debates de viés expositivo-explicativo. Por essa razão, os capítulos 16
e 17 do terceiro volume são mais explorados.
289
145
Tela “Vivências” (1987). Disponível em: <https://programadefestas.wordpress.com/2008/05/21/malangatana-
vivencias-galeria-valbom/>. Acesso em 19/02/2019.
291
[...]
De caráter militante, o grupo tinha por objetivo inserir atrizes, atores,
diretores e autores negros nas artes cênicas brasileira,s visando reabilitar a
herança cultural, a identidade e a valorização social do afrodescendente,
Participaram do TEN atores como Grande Otelo, Ruth de Souza e Lea
Garcia.
O TEN patrocinou a Convenção Nacional do Negro, a qual propôs à
Assembleia Nacional Constituinte de 1946 a inclusão de políticas públicas
para a população afrodescendente. Além disso, foi um polo de cultura
bastante importante, e também responsável pela publicação de um jornal
intitulado Quilombo, de caráter antirracista, que focalizou o panorama
político e cultural brasileiro da época. (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol
3], p. 302).
Finalmente, como última crítica positiva ao papel desempenhado pela subseção fixa
“Ampliação”, encontramos no encerramento do supracitado “A literatura brasileira e a
formação das literaturas de língua portuguesa” (Capítulo 10, Volume 3) quatro poemas de
escritores negros a saber, Solano Trindade, Oswaldo Camargo, Márcio Barbosa e Míriam
Alves e três letras de canção que tematizam, em alguma medida, a africanidade e a
negritude (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 1], pp. 240-244). Intitulada “Representações
do negro na poesia e na música brasileira”, a proposta de leitura, interpretação e recitação
alerta e questiona os alunos sobre a representação artística da identidade e da realidade dos
negros e de seus descendentes (ibid., p. 244)146.
Visando compor um quadro amplo sobre LP07, cabe frisar que todos os volumes
trazem, no Manual do Professor, referências bibliográficas complementares tanto de viés
teórico quanto de obras literárias, concernentes, em especial, ao sistema literário africano, e
que, em linhas gerais, o material destaca-se por trazer nomes das literaturas africanas que
extrapolam o lugar comum, isto é, a coleção não permanece restrita a autores
internacionalmente aclamados, como Mia Couto ou Pepetela, mas, ao contrário, insere em seu
repertório escritores menos divulgados no Brasil, como Corsino Fontes e João Tala.
Vimos que P07 promove uma releitura crítica das representações dos indígenas na
literatura (Quinhentismo e Romantismo) e da condição experimentada por esses povos na
atualidade, bem como insere textos de Daniel Munduruku na unidade reservada ao
Romantismo. É certo, porém, que o atendimento aos conteúdos da lei 11.645/08 dá-se com
menor frequência e profundidade se comparado à forma como a lei 10.639/03 é rememorada
pelo material. Contudo, para além das ocorrências já discutidas, podemos destacar uma
146
Como já afirmando, não inserimos em nosso enfoque analítico o estudo do modo pelo qual as coleções
abordam autores canônicos, contudo, é interessante observar que LP07 não ignora a questão racial ao introduzir
autores como Machado de Assis (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 2], p. 244) e Cruz e Sousa
(HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 2], p. 330). Sobre o primeiro, há, inclusive, um grande Box intitulado
“Machado de Assis afrodescendente” (ibid., p. 248), recorte inexistente nas outras coleções do nosso corpus de
pesquisa.
293
147
Excerto disponível em (p. 344): <http://etnolinguistica.wdfiles.com/local--files/hist%3Ap339-356/p339-
356_Franchetto_O_aparecimento_dos_caraiba.pdf>. Acesso em: 21/02/2019.
O livro “CUNHA, Manuela Carneiro da (Org.). 1992. História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das
Letras, Secretaria Municipal de Cultura, FAPESP”, do qual daz parte tal capítulo, encontra-se disponível
integralmente em: <http://www.etnolinguistica.org/historia>. Acesso em: 21/02/2019.
294
presença de uma entrevista com Daniel Munduruku na coletânea que direciona a produção do
gênero “debate” (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 2], p. 164) na entrevista
Munduruku discorre sobre “a influência da TV no universo indígena”, haja vista o tema do
debate a ser desenvolvido pelos alunos: “Televisão: é possível conciliar educação e
entretenimento?” ; e a análise de notícias sobre a questão indígena no capítulo dedicado ao
gênero “notícia” (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 2], p. 288). Também a lei de 2003
inspira atividades de mesmo teor, tais como: uso de anúncios e de propagandas angolanas
como texto-fonte para o estudo da variação linguística (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol
1], p. 298) e para o estudo da utilização de pronomes (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol
2], p. 276); análise do cartaz do “Seminário de Patrimônio Imaterial e Cultura Afro-brasileira”
no capítulo reservado ao gênero “seminário” (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 3], p. 91).
Destaca-se como uma atividade particularmente interessante do eixo de gramática de
LP07, e, neste caso, inexistente em outros livros do PNLD 2015, a proposta de análise da capa
de uma cartilha elaborada para o ensino de língua indígena macuxi, falada pelos índios
macuxi, de Roraima (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 1], p. 45), voltada à discussão das
diferenças entre “culturas escritas e culturas orais” (ibid., p. 44). A partir dela, os alunos são
convidados a apontar semelhanças e diferenças estabelecidas entre as “duas imagens que
representam situações de transmissão de conhecimento” que ilustram a capa (ibid., p. 45),
uma representando o ensino oral tradicional (em frente a uma fogueira) e a outra o ensino
escolar convencional (em frente a uma lousa).
Outro aspecto interessante está no fato de tal exercício ser antecedido pela análise de
uma afirmação de Tierno Bokar, que viveu no Mali, sobre a relação entre o saber e a escrita.
No breve excerto, Bokar faz menção ao baobá, tida como a “árvore da palavra” no continente
africano (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 1], p. 45). Pensando os fins das leis de 2003 e
2008, parece-nos bastante pertinente abordar, conjuntamente, a questão das culturas orais no
contexto africano e no contexto indígena.
Com base nessas ocorrências, concluímos que a coleção traz atividades diversas e
inovadoras no que concerne ao cumprimento da lei 11.645/08.
CAMPOS, Elizabeth; CARDOSO, Paula Marques; ANDRADE, Silvia Letícia de. Viva
Português (Livro do Professor), 2ª ed., Volumes 1, 2 e 3, São Paulo: Editora Ática, 2014.
SIGLA: VP08
De acordo com a resenha do PNLD 2015, VP08 destaca-se pelo fato de fazer
presente o ensino de leitura em toda a coleção, e tem como ponto forte a “articulação entre
todos os eixos e investimento na observação, análise e reflexão sobre fatos linguísticos e
literários” (BRASIL-MEC/SEB, 2014b, p. 79). Acerca de seu ponto fraco, concordamos com
a apreciação feita pelo Guia no sentido em que também identificamos na obra certa
“simplificação e esquematização de informações, principalmente na apresentação de autores
de cada escola literária” (ibidem), o que nos faz associar essa característica de VP08 à baixa
ocorrência de propostas ou de repertórios inovadores para o ensino de literatura. A resenha
assinala ainda que o livro “dá prioridade à experiência de leitura do texto literário” (ibid., 79),
apontamento sobre o qual registramos uma ressalva: embora, em linhas gerais, as experiências
de leitura sejam de fato consideradas, essa “prioridade” não foi por nós observada no trabalho
desenvolvido com as literaturas africanas, como expomos na subseção correspondente.
Discrepância similar nota-se em relação à possibilidade de leitura comparada entre as
produções brasileiras e africanas; se, de um lado, o Guia acerta ao apontar que se colocam em
diálogo “textos contemporâneos e textos de outros momentos históricos” (ibid., p. 80), de
outro, não se verifica a mesma estratégia de análise textual envolvendo a pluralidade
sociocultural, isto é, os sistemáticos literários do Brasil e dos países africanos de língua
portuguesa não são comparados, a despeito de a intertextualidade ser frequentemente
explorada por VP08.
Estruturalmente, trata-se de um livro didático dividido por Unidades Temáticas, cada
qual subdivida pelos eixos “língua e produção de texto” (orientado pelos gêneros textuais) e
“literatura”, assim denominados/definidos pelo material. Não há, portanto, uma desproporção
entre o número de capítulos dedicados a um ou a outro eixo; as unidades seguem o mesmo
formato, ainda que possa haver variação quanto ao número de páginas reservados a cada eixo
de ensino-aprendizagem, a depender da unidade temática apenas o Modernismo conta com
mais de um capítulo em uma única unidade (Unidade 2, Volume 3). A título de ilustração,
299
GONSALES, Fernando. Aventuras na História. São Paulo: Abril, maio 2006. (CAMPOS;
CARDOSO; ANDRADE, 2014 [Vol 1], p. 205).
302
[...]
5. Leia o trecho a seguir, retirado do livro Casa-grande & senzala, do
sociólogo brasileiro Gilberto Freyre (19000-1987).
O ambiente em que começou a vida brasileira foi de grande intoxicação
sexual. O europeu saltava em terra escorregando em índia nua. Os próprios padres
da Companhia precisavam descer com cuidado, se não atolavam o pé em carne.
(FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala. Disponível em:
<www.tvcultura.com.br/aloescola/estudosbrasileiros/casagrande/index.htm>. Acesso em: 16 out. 2012).
Com exceção desses excertos, não localizamos na coleção uma presença significativa
nem de enquadradores discursivos nem de solicitações analíticas que possam indicar
movimentos de releitura crítica ou estratégias inovadoras na abordagem dos textos
quinhentistas. Há no livro afirmações como “esta é, certamente, uma visão eurocêntrica do
mundo” ou “para nós, brasileiros, a produção de Caminha representa uma autêntica certidão
de nascimento” (CAMPOS; CARDOSO; ANDRADE, 2014 [Vol 1], p. 214), as quais não são
acompanhadas, porém, de reflexões mais aprofundadas sobre, por exemplo, os sentidos do
eurocentrismo, a violência física e simbólica sofrida pelos indígenas e/ou as nuances do
caráter ideológico desses escritos (como a justificação da dominação). Também nas
“atividades complementares” elencadas aos docentes, a coleção recorre à abordagem clássica
do Quinhentismo, haja vista o fato de VP08 disponibilizar como “atividade extra” a análise
textual de um fragmento dos relatos de viagem de Hans Staden (CAMPOS; CARDOSO;
ANDRADE, 2014 [Vol 1 – Apêndice: “Manual do Professor”], pp. 385-386).
Se, de um lado, o capítulo parece atender apenas parcialmente ao seu objetivo
específico de levar o aluno a compreender com o auxílio das disciplinas de História,
Geografia e Sociologia , que esses “relatos são marcados pela visão pessoal do relator; tal
visão está impregnada pela cultura de uma época, por um lado, e pelas experiências pessoais,
por outro, as quais podem impedir a identificação da pluralidade possível de interpretações de
148
A imagem pode ser facilmente encontrada por meio de sites de busca na internet.
304
um mesmo evento” (ibid., p. 377), de outro, chama-nos a atenção a proposta de debate que
encerra a unidade, esta sim bastante alinhada ao referido objetivo e a um olhar mais crítico ao
colonialismo (ainda que, cabe enfatizar, faltem orientações mais detalhadas no Manual do
Professor):
viés linguístico e narrativo) que marcam a primeira fase romântica, assim como Castro Alves,
que parece servir apenas ao preenchimento do espaço reservado à terceira fase. Selecionamos
alguns exemplos para deixar mais claro o padrão das solicitações analíticas requeridas no
Caderno do Aluno:
características que legitimam cada fase do Romantismo. Não é feito, assim, nenhum gancho
com as literaturas afro-brasileira ou indígenas. A proposta de aproximação do Condoreirismo
à discussão/ à denúncia de problemas contemporâneos orienta-se, na coleção, pela sugestão de
debate/levantamento dos “problemas sociais brasileiros de nossa época” e das dificuldades
enfrentadas pelos jovens/juventude (CAMPOS; CARDOSO; ANDRADE, 2014 [Vol 2], p.
116), sem menção específica a um recorte racial ou étnico. Nesse sentido, o projeto de maior
diálogo com os pressupostos da lei 10.639/03 fica a cargo de uma atividade complementar e
interdisciplinar (com História e Sociologia) sobre as “rotas de navios negreiros”:
149
Essas atividades integram, em VP08, os “quadros de interdisciplinariedade” ” (CAMPOS; CARDOSO;
ANDRADE, 2014 [Vol 2 – “Manual do Professor”], p. 358), que, apesar de não serem explicitamente
apresentados como “complementares”, se situam no Apêndice do Manual do Professor e demandam, na maioria
das propostas, a participação de professores de outras disciplinas, ou seja, requerem uma organização a nível de
execução de projeto e não de aula convencional. Não se trata, assim, de atividades imprescindíveis ao
cumprimento dos conteúdos presentes no Caderno do Aluno, mas “adicionais”, razão pela qual a destacamos
como sendo “extraclasse”, interpretando-as como opcionais.
150
Há, para o Romantismo, outras duas propostas de atividades complementares: uma relacionada à análise de
letras de “música sertaneja raiz” (no caso, de “Brasil poeira”, de Almir Sater e Renato Teixeira) e outra
envolvendo a produção de um podcast com base na discussão dos “problemas sociais brasileiros de nossa época”
(CAMPOS; CARDOSO; ANDRADE, 2014 [Vol 2 – “Manual do Professor”], pp. 370).
308
O excerto do romance Antes de nascer o mundo (2009), de Mia Couto, é o texto que
abre a discussão do romance enquanto gênero textual (Unidade 1 – “A vida que se recria”,
subseção “Língua e produção de texto – O romance”, Volume 2). Nesse sentido, a análise
textual de VP08 inclina-se mais ao estudo da “forma” (significados de expressões e de frases;
tipos de discurso e construção da voz narrativa; recursos estilísticos) que do “conteúdo”
(enredo, personagens), conforme anunciam as próprias categorias de análise
empregadas/anunciadas pela coleção (CAMPOS; CARDOSO; ANDRADE, 2014 [Vol 2], p.
14). Por se encontrar, portanto, no eixo de escrita e de conhecimentos linguísticos, e não no
eixo literário, nada é dito acerca das especificidades e/ou do contexto de produção das
literaturas africanas151. Por outro lado, notamos aqui a repetição de uma estratégia já vista em
outras coleções do nosso corpus: ao ser escolhida como produção exemplar do gênero
romance, a obra de Mia Couto passa a ocupar um lugar historicamente reservado a textos
canônicos, o que, embora não traga contribuições substanciais para a introdução das
literaturas de matriz africana, pode figurar outro meio de desestabilização do cânone. (vide
observação feita na nota de rodapé nº 104 e o parágrafo ao qual a nota se refere).
Indo além do Caderno do Aluno, Mia Couto comparece como “atividade
complementar” do Manual do Professor no Volume 1. Neste caso, a análise do texto do
escritor moçambicano visa complementar o estudo introdutório dos diferentes gêneros
literários (“Unidade de Abertura”, seção “Literatura: arte com palavras”, Volume 1). Tem-se,
então, um fragmento do romance Terra sonâmbula (1992) a partir do qual são elaborados
exercícios interpretativos que permitam refletir acerca da presença de características dos
poemas épicos em romances modernos (CAMPOS; CARDOSO; ANDRADE, 2014 [Vol 1 –
Apêndice: “Manual do Professor”], p. 380) para tanto, a coleção busca chamar a atenção
para a construção e as marcas de heroísmo presentes na narrativa e nas personagens.
É na última unidade da coleção (Unidade 6 – “Temas e cenas”) mais precisamente
na subseção “Autores da prosa contemporânea em língua portuguesa”, a qual, por sua vez,
aparece como subitem da seção “Literatura – Literatura brasileira contemporânea (prosa)” ,
que Mia Couto surge como um representante das literaturas africanas, ao lado, como
151
Ademais, a atividade complementar e interdisciplinar associada ao romance de Mia Couto afasta-se ainda
mais de uma eventual análise literária, pois se solicita que, conjuntamente com o professor de Educação Física,
os alunos empreguem seus conhecimentos sobre “recurso estilístico” (aprendidos, justamente, através da leitura
do texto de Mia Couto) na análise “do estilo de jogo de dois jogadores conhecidos da turma” (CAMPOS;
CARDOSO; ANDRADE, 2014 [Vol 2 – “Manual do Professor”], p. 359).
309
dissemos, do angolano José Luandino Vieira (vide referências dos textos de matriz africana
utilizados por VP08 na Tabela 12 [página 312]).
Cabe esclarecer inicialmente que tal subseção é composta apenas por minibiografias
e por excertos dos autores escolhidos, sem que seja proposta nenhuma análise textual. Apesar
de termos classificado como tangencial a distribuição das produções africanas, é preciso
mencionar também que essas literaturas e a literatura contemporânea de Portugal recebem a
mesma atenção e o mesmo espaço em VP08: ao todo, elencam-se, além de Mia Couto e de
Luandino Vieira, dois autores portugueses (José Saramago e António Lobo Antunes) e doze
autores brasileiros (Cristovão Tezza, Ricardo Ramos, Moacyr Scliar, Luiz Alfredo Garcia-
Roza, Fernando Bonassi, Rubem Braga, Fernando Sabino, Marina Colasanti, Patrícia Melo,
Dalton Trevisan, Milton Hatoum e Ignácio de Loyola Brandão) (CAMPOS; CARDOSO;
ANDRADE, 2014 [Vol 3], pp. 303-320). Nesse sentido, depreende-se que a coleção opta por
privilegiar a prosa brasileira, motivo pelo qual relega os países africanos de língua portuguesa
e Portugal a segundo plano. Entretanto, independentemente de tal brevidade e superficialidade
não ser exclusiva à introdução das literaturas africanas, julgamos tangencial o modo como
esse recorte é trabalhado, seja pela limitação do repertório (visto que este é formado por
apenas dois autores), seja pela ausência de exercícios de leitura. Na apresentação de Mia
Couto, para além de dados biográficos basilares, ressalta-se que “tal qual Guimarães Rosa,
Couto preocupa-se em usar uma linguagem que caracteriza suas personagens” e que “fazem
parte de sua temática os dramas pessoais de quem vive em Moçambique após a
independência” (CAMPOS; CARDOSO; ANDRADE, 2014 [Vol 3], p. 318); sobre José
Luandino Vieira, afirma-se que “sua literatura sempre serviu na luta pela independência do
país africano, o que o levou a ser preso inúmeras vezes”, bem como que o autor “apresenta a
língua portuguesa cortada, atravessada pelo quimbundo, a língua do dia a dia angolano”
(ibid., p. 319). Por fim, todas as atividades e orientações complementares relativas à Unidade
em questão voltam-se à produção de textos dissertativos, não sendo recuperadas, no Manual
do Professor, as literaturas africanas.
Em relação à literatura negra/afro-brasileira, levantamos apenas um texto afim, da
escritora afrodescendente Elisa Lucinda152. Seu poema “Só de sacanagem” comparece ao lado
152
Novamente no que tange à presença de repertórios tidos como “periféricos”, registramos que há no Volume 1
uma proposta de análise textual da letra de rap “Um pião de vida loka”, de Trilha sonora do gueto (T$G)
(CAMPOS; CARDOSO; ANDRADE, 2014 [Vol 1], p. 99), a qual integra a discussão sobre as diferenças entre
linguagem oral e linguagem escrita.
310
de charges sobre a desigualdade social no Brasil (de Laerte e de Jean Galvão) e de uma carta
aberta (assinada por Gabriel Perissé) dirigida ao Ministro de Educação. Juntos, esses textos
introduzem a questão dos “problemas da realidade social e cultural brasileira”, a fim de
aproximar os alunos das produções artístico-literárias do Pré-Modernismo, escola literária que
dá título à seção. Outrossim, o contato inicial com esses textos fundamenta solicitações
cursivas do tipo “Que tema brasileiro você escolheria para escrever uma carta aberta?” e
“Você conhece algum poema que retrate um problema brasileiro?” (CAMPOS; CARDOSO;
ANDRADE, 2014 [Vol 2], p. 284) neste caso, não dá diretrizes sobre como os docentes
podem mediar/conduzir as respectivas respostas. Por conseguinte, esse repertório é
interpretado a partir de suas temáticas comuns, e não em suas especificidades (isto é, Lucinda
não é introduzida como uma autora negra nem vinculada à literatura afro-brasileira)153.
153
A título de registro, tem-se uma atividade interdisciplinar (com Filosofia, Geografia e História) e
complementar, presente no Manual do Professor e inspirada no Pré-Modernismo, na qual se sugere que, a partir
dele, seja debatida “a situação econômica, política e social do Brasil do final do século XIX”, com destaque às
“grandes transformações provocadas pela abolição da escravatura e pela República recém-proclamada”
(CAMPOS; CARDOSO; ANDRADE, 2014 [Vol 2 – “Manual do Professor”], p. 367).
311
SIGLA: PLC09
“gramática”), nota-se que o eixo literário ocupa um espaço menor que o eixo linguístico e que
o estudo dos gêneros: ao todo, são onze unidades de literatura para dezessete de gênero e
dezenove de gramática.
Trata-se de um material didático de autor único: Carlos Alberto Faraco, professor de
Língua Portuguesa no Ensino Médio e na Universidade Federal do Paraná (UFPR),
Especialista em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Mestre
e Doutor em Linguística, pela UNICAMP e pela Universidade de Salford (Grã-Bretanha),
respectivamente.
154
Letra disponível em <https://www.letras.mus.br/toquinho/87219/>. Acesso em 05/02/2019.
316
fala-se sobre a atual repercussão dessas literaturas e também das mudanças de enfoque
nela observadas com o decorrer do tempo.
Objetivando traçar uma mínima historiografia literária, a coleção divide o
“desenvolvimento” dessas literaturas em três períodos: (i) o da escrita de pessoas de
ascendência europeia que escreviam a partir do olhar do colonizador; (ii) o do “despertar de
uma consciência literária efetivamente africana”, ocorrido por volta de 1920, em que
escritores de ascendência africana assumem seu pertencimento à África; (iii) “a fase literária
posterior à independência”, em que essas produções passam a apresentar “crescente
diversificação” (FARACO, 2013 [Vol 3], p. 142). Este último apontamento é interessante
porque ele vai de encontro à usual inscrição dessas literaturas no rol das literaturas
“engajadas” ou “históricas”. PLC09, ao invés de chamar a atenção para uma vertente das
produções de matriz africana, elenca sua pluralidade; cita-se, entre muitos exemplos, a
existência de escritos mais intimistas ou atentos a temas universais, assim como de textos que
“se aproximam da diversidade das tradições locais” ou dos “dramas humanos” (miséria,
violência) consequentes das guerras anticoloniais e de guerras civis (ibidem).
No que diz respeito ao teor dos exercícios de leitura, dissemos anteriormente que a
reiteração, em PLC09, da importância da “apreciação” e do “contato” com o texto literário,
culmina, em grande parte do eixo literário, em um número reduzido de atividades sistemáticas
de interpretação. Entretanto, no caso específico das literaturas africanas, percebemos um
movimento contrário, haja vista quase todos os fragmentos serem seguidos por solicitações
interpretativas. Em síntese, predomina nas duas seções o trabalho com operações de leitura
pautadas na interpretação de passagens ou de escolhas lexicais específicas, na observação e
justificação de recursos estilísticos, bem como na identificação dos temas centrais das
narrativas ou de figuras de linguagem, quase sempre precedidas por enquadradores
discursivos textuais. Figuram exceções uma questão sobre o poema “No mesmo lado da
canoa”, da poetisa Alda Espírito Santo, de São Tomé e Princípe, devido a seu enquadrador
discursivo extratextual, e um pergunta focada na intertextualidade estabelecida entre um
romance de Luandino Vieira (Angola) e um poema Vasco Cabral (Guiné Bissau), a qual
conta, por conseguinte, com um enquadrador discursivo intertextual:
muitas vezes, eram vistos com desconfiança pelos seus compatriotas pobres,
sofridos e analfabetos. Apesar disso, a poeta insiste que está do mesmo lado
da canoa de seus irmãos e irmãs - na suas vidas e lutas cotidianas, nos seus
ritos religiosos (“no ritmo frenético dum batuque de encomendação”). O
poema conclui, então, com um convite do eu poético. Qual?
Nota: observe que o contratado, tema do poema de Agostinho Neto,
reaparece no texto de Luandino Vieira e neste poema de Alda Espírito Santo.
(FARACO, 2013 [Vol 3], p. 153). [Resposta: O poema se encerra com o
convite para que todos se unam (“unir nossas mãos milenárias/ ... para nos
situarmos todos do mesmo lado da canoa/ ... onde se juntam os nossos
braços/ e nos sentamos todos lado a lado/ ...”)] (FARACO, 2013 [Vol 3 –
Apêndice: “Manual do Professor”], p. 306).
155
“500 anos de desenconstros”, entrevista disponível em:
<https://istoe.com.br/32803_500+ANOS+DE+DESENCONTROS/>. Acesso em 06/02/2019.
156
“Quem é o dono da pureza do ar e do resplendor da água?” (título dado pela coleção), carta disponível em:
<http://www.culturabrasil.org/seattle1.htm>. Acesso em 06/02/2019.
322
SIGLA: VM10
De acordo com a resenha feita pelo PNLD 2015, o trabalho com “o funcionamento
discursivo” dos gêneros textuais configura-se um ponto forte de VM10 (BRASIL-MEC/SEB,
2014b, p. 65). Em nossa percepção, também o trabalho realizado com os variados elementos
iconográficos que integram a coleção, com destaque ao estudo de quadros e da arte urbana
(grafites), deve ser apontado como bastante rico e produtivo. Por outro lado, o Guia de
Português aponta “o excesso de fragmentação que limita a fruição de poemas” como um
ponto fraco, e dá destaque ao trabalho constante desenvolvido com o eixo da leitura (ibid.,
66).
Concordamos com a resenha em relação ao modo “tímido” com que a
“heterogeneidade sociocultural brasileira” comparece na coleção (BRASIL-MEC/SEB,
2014b, p. 68). Há, por sua vez, como também consta na análise realizada pelo PNLD 2015,
uma variedade de gêneros e de tipos textuais, os quais se inscrevem em diferentes esferas e
apresentam distintas materialidades (musical, pictórica); porém, no eixo literário, por
exemplo, notamos, em linhas gerais, poucos movimentos inclinados à extrapolação do cânone
literário, ainda que as literaturas africanas, em especial, sejam trabalhadas em uma unidade
exclusiva. No entanto, interessa-nos principalmente a ressalva que o Guia registra acerca da
compreensão histórico-cultural que marca os capítulos de literatura de VM10. De fato,
notamos que o livro oferece informações pormenorizadas sobre o contexto socio-histórico de
cada escola literária, com a particularidade de recorrer, como assinala a resenha, a “teorias
críticas contemporâneas” (ibidem); trata-se, evidentemente, de um aspecto positivo, mas que
vem acompanhado de uma menor atenção às “especificidades do literário” e a “atividades que
levam o aprendiz à fruição estética e à apreciação crítica da produção literária” (BRASIL-
MEC/SEB, 2014b, pp. 68-69) tarefa que, segundo o Guia, fica a cargo do docente.
Durante a nossa análise, percebemos, nesse sentido, a escassez de solicitações
cursivas, isto é, os alunos quase nunca são interpelados sobre suas impressões pessoais e
sobre suas experiências de leitura. Em síntese, consideramos que VM10 se restringe, em
325
questiona-se certa “artificialidade” que estaria hoje presente na educação literária (aulas
muito expositivas e cheias de “regras”), para então ressaltar “o papel humanizador da
literatura”, afirmando-a como “um exercício de liberdade” (ibid., 406), sem negar, no entanto,
o importante papel de mediação a ser exercido pelo docente (ibid., p. 407). Trata-se, porém, a
nosso ver, de premissas que não se refletem consistentemente no Caderno do Aluno, haja
vista VM10 quase não propor solicitações cursivas que deem efetivo espaço a esse “exercício
de liberdade”, conforme mostram os levantamentos por nós registrados na análise de sua
microestrutura. É importante citar que figura no Quadro “As habilidades leitoras
desenvolvidas nesta coleção” (ABREU-TARDELLI; ODA; CAMPOS; TOLEDO, 2013 [Vol.
3 – Apêndice: “Manual do Professor”], pp. 410-411) a capacidade e a habilidade de
“elaboração de opiniões a partir de temas e/ou ideias contidas em um texto”, as quais se
atrelam, justamente, à ideia de “compreensão subjetiva” (ibid., p. 411). Verificamos, assim,
que a parte fixa do Manual do Professor chama a atenção para a mediação da leitura subjetiva
no referido Quadro, sugere-se, inclusive, que “o professor pode abrir espaço para uma
breve discussão depois da leitura individual de um texto literário”, de modo a não inserir essas
leituras numa “rotina monótona” (ibid., p. 411) , mas não busca retomá-la ou concretizá-la
por meio das análises textuais que dão forma ao material.
No mais, o Manual do Professor dedica-se a muitas conceituações teórico-
pedagógicas, em torno, por exemplo, dos conceitos de “texto”, “texto literário”, “dimensão
discursiva do texto literário”, “letramento literário”, sem tocar, em nenhuma delas, no debate
sobre o lugar a ser ocupado pela diversidade cultural na coleção. Ademais, nem as leis
10.639/03 e 11.645/08 nem os conteúdos por elas postulados são citados pela coleção.
Também não encontramos nenhum objetivo que se mostrasse mais inclinado à promoção de
atitudes concernentes a uma educação para a cidadania; embora muitos interessantes e,
evidentemente, necessárias, as capacidades e habilidades listadas por VM10 parecem alinhar-
se, de modo geral, a objetivos mais técnicos (ou seja, sem relação com o combate de
preconceitos e estereótipos nem com a percepção do viés ideológico dos textos lidos etc.).
Ainda que o cânone não seja exaltado, fazem-se ressalvas do tipo “não necessariamente os
textos supostamente mais interessantes para os alunos permitem as aprendizagens mais
significativas ou as melhores leituras” (ABREU-TARDELLI; ODA; CAMPOS; TOLEDO,
2013 [Vol. 3 – Apêndice: “Manual do Professor”], p. 406), e “merece uma reflexão mais
apurada, por parte do professor a escolha de textos considerados ‘mais fáceis’ para a leitura
327
dos alunos, sob o risco de excluí-los do contato com textos de maior qualidade literária”
(ibid., p. 408).
Por fim, é perceptível na análise da microestrutura de VM10 que seus paratextos
exercem um relevante papel informativo e/ou complementar. No eixo literário, ganha
destaque no decorrer do nosso estudo o Box “+Mais”, que busca “ampliar a exploração de
alguns conteúdos relacionados com o período estudado” (ibid., p. 422).
“Chicará de chá”, de Francisco Rodrigues – fachada museu Tate Modern (Londre, Inglaterra). ”
(ABREU-TARDELLI; ODA; CAMPOS; TOLEDO, 2013 [Vol. 1], p.
108)159.
159
No Volume 3, na abertura do capítulo “Argumentar”, pertencente ao eixo de produção escrita, VM10 traz
outro grafite de representação contemporânea do indígena (entre a tradição e a modernidade), assinado, desta
vez, pelo artista Crânio (ABREU-TARDELLI; ODA; CAMPOS; TOLEDO, 2013 [Vol. 3], p. 365). Na imagem,
um indígena encontra-se em frente a uma placa que aponta três direções distintas para se chegar à Amazônia.
Imagem disponível em (na ordem, a sétima imagem disponibilizada pela site - indo da esquerda para a direita, de
cima para baixo): <http://www.merije.com.br/blog/diario/brasil-street-art-cranio-1/>. Acesso em 10/02/2019.
331
160
Entre o repertório de leitura extra disponibilizado ao docente, tem-se, por sua vez, fragmentos dos textos “O
percurso da indianidade na literatura brasileira”, de Luzia Aparecida Santos, sobre as diferenças das
representações do indígena feitas por Caminha e por José de Alencar (ABREU-TARDELLI; ODA; CAMPOS;
TOLEDO, 2013 [Vol. – Apêndice: “Manual do Professor”], p. 443), e de “O Brasil e seus nomes”, de José
Murilo de Carvalho, acerca do “ambiente encontrado pelos primeiros cronistas que escreveram sobre o Brasil”
(ibid., p. 444).
161
Algumas narrativas e obras artísticas quinhentistas são recuperadas pela coleção no capítulo “Relatar”, que
integra o eixo de produção de texto do segundo volume (ABREU-TARDELLI; ODA; CAMPOS; TOLEDO,
2013 [Vol. 2] p. 419). A elas somam-se alguns relatos pessoais de viagem a países africanos.
162
Além disso, na introdução do Condoreirismo, no contexto de justificação da mudança de foco dos escritos
românticos, informa-se que “uma polêmica em torno de José de Alencar ilustra os novos rumos que a produção
artística e literária iria tomar. Em 1871, o escritor regionalista Franklin Távora começa a questionar o excesso de
idealismo das obras de Alencar. Sua alegação era a de que o pouco contato do escritor com as várias realidades
que mostrava em seus romances resultava em retratos que ignoravam uma nova sociedade brasileira em
formação. Para Távora, Alencar escrevia sobre um mundo que não conhecia, pois era um homem de gabinete.”
(ABREU-TARDELLI; ODA; CAMPOS; TOLEDO, 2013 [Vol. 2], p. 92).
332
5. “O sentimento que ele pôs nos olhos e no rosto, não o sei eu. Porém a
virgem lançou de si o arco e a uiraçaba, e correu para o guerreiro, sentida da
mágoa que causara. A mão que rápida ferira, estancou mais rápida e
compassiva o sangue que goteja. Depois Iracema quebrou a flecha homicida:
deu a haste ao desconhecido, guardando consigo a ponta farpada.”
Há nesse trecho um traço de idealização da figura indígena. Qual é ele?
(ABREU-TARDELLI; ODA; CAMPOS; TOLEDO, 2013 [Vol. 2], p. 46).163
É certo, pois, que a idealização dos indígenas é um aspecto questionado por VM10.
Entretanto, não se nota, de modo geral, propostas muito inovadoras na coleção, que visem,
por exemplo, atualizar a discussão sobre a representação/a representatividade dos povos
indígenas no Brasil. Em meio a extensos enquadradores discursivos e à variedade de
elementos iconográficos usualmente presentes nesta coleção, bem como ao predomínio de
atividades interpretativas mais basilares sobre a obra de José de Alencar e de Gonçalves Dias,
VM10 opta por explorar, por exemplo, o “falar sobre o índio” também em produções literárias
de outros períodos, a partir da seção de encerramento “vozes em rede”, em que são expostos e
comentados, para a promoção de um exercício de leitura comparada, fragmentos literários de
três obras: de O Uraguai (1769), de Basílio da Gama; Maíra (1976), de Darcy Ribeiro; Nove
noites (2002), de Bernardo Carvalho (ABREU-TARDELLI; ODA; CAMPOS; TOLEDO,
2013 [Vol. 2], pp. 80-81). Concluímos, assim, que predomina no livro um enfoque no “falar
sobre”, sem espaço, ainda, à voz/ à autoria do indígena na contemporaneidade. Ademais,
considerando que as sugestões complementares do Manual do Professor centram-se em um
aprofundamento do estudo do Romantismo enquanto escola literária, isto é, no estudo
conceitual de seus fundamentos e de suas características dominantes e comuns, entendemos
que VM10 vale-se pouco do Indianismo extrapolar o cânone, ainda que, cabe reforçar,
existam atividades crítico-reflexivas nos referidos capítulos.
A despeito do rico embasamento histórico sobre a escravidão e sobre seus reflexos
na/para a arte, o trabalho em torno do Condoreirismo segue, em certa medida, o mesmo
padrão, salvo ocorrências pontuais de atualização do debate sobre o legado colonial, a
começar pelo Box “Vozes em rede” acerca do tema “Trabalho escravo ontem e hoje”. Nele,
163
O nosso exemplar do Volume 2 de VM10 contém um defeito de fabricação, de modo que não temos acesso às
páginas 49 a 80 do Manual do Professor. Por essa razão, não registramos as expectativa de respostas
concernentes a essas atividades.
333
[...]
2. As duas imagens mostram uma realidade que persiste desde os tempos
coloniais. Qual é essa realidade? (ABREU-TARDELLI; ODA; CAMPOS;
TOLEDO, 2013 [Vol. 2], p. 93). [Resposta: Permanece a condição de
mando e violência dos senhores de terras oprimindo aqueles que ali
trabalham]. (ABREU-TARDELLI; ODA; CAMPOS; TOLEDO, 2013 [Vol.
2 – Apêndice: “Manual do Professor”], p. 82).
164
Texto disponível em: <http://www.jornaldepoesia.jor.br/polvra01.html>. Acesso em: 10/02/2019.
334
Julgamos relevante esse conteúdo uma vez que o gênero “histórias em quadrinhos”
costuma ocupar um lugar privilegiado em diferentes eixos dos livros didáticos de Língua
Portuguesa, razão pela qual se mostra necessário dar atenção, também, à descolonização desse
repertório. Entendemos, assim, que a inserção de quadrinistas negros em materiais didáticos
deve fazer parte dos caminhos de implementação da lei 10.639/03. Por outro lado,
recuperamos um ponto que tem sido constante em nossa análise: os efeitos, no que tange aos
pressupostos da lei, do uso de produções de artistas e de escritores negros apenas como
pretexto para o trabalho com determinado tipo/gênero textual e/ou com aspectos linguísticos
no caso supracitado, exploram-se, sobretudo, os “recursos” empregados por D’Salete em
sua obra, os sentidos de determinados quadrinhos etc. , uso este totalmente desvinculado de
uma introdução da produção afro-brasileira. A mesma indagação é pertinente à introdução do
poema “Adonde”, do escritor negro e periférico Fuzzil, no estudo sobre variação linguística
(ABREU-TARDELLI; ODA; CAMPOS; TOLEDO, 2013 [Vol. 1], p. 200): de um lado, vê-se
que VM10 elenca questões que buscam conduzir os alunos a uma leitura crítico-reflexiva da
“linguagem informal” presente no poema, porém, de outro, continua sendo baixo o trabalho
336
com esses textos no eixo de literatura. Dessarte, assim como em outras coleções, o único
excerto literário escrito por um autor negro e trabalhado no eixo literário de VM10
corresponde a um trecho de Cidade de Deus (1997), de Paulo Lins, que é lido
comparativamente a fragmentos de Inocência (1872), de Visconde de Taunay, e de A
bagaceira (1928), de José Américo de Almeida, aos quais é identificado como ponto comum
o retrato das diferentes naturezas e realidades locais do país, em diferentes épocas (ABREU-
TARDELLI; ODA; CAMPOS; TOLEDO, 2013 [Vol. 3], pp. 125-126). Percebe-se que a
coleção investe em análises comparativas, mas tendo como norte a dimensão temporal dos
textos comparados, e não a questão da interculturalidade, ou seja, da pluralidade de perfis de
escritores e de temáticas.
Abordadas com mais atenção, as literaturas de matriz africana são trabalhadas em
uma unidade específica do terceiro volume (Unidade 6 – “Literaturas africanas em língua
portuguesa”), totalizando dois capítulos: “Capítulo 18: identidade e afirmação cultural” e
“Capítulo 19: Prosa e poesia africana em língua portuguesa”. A exemplo da recorrência de
análises de imagens que caracteriza VM10, a unidade é aberta com uma imagem da tela Final
judgement (1961)165, do moçambicano Malangatana Valente Ngwenya, a qual é
acompanhada, por sua vez, de uma breve apresentação da biografia do artista. Segundo a
coleção, “sua vida e obra representam bem todo histórico de luta e resistência que dominou
grande parte dos países africanos durante o século XX” (ABREU-TARDELLI; ODA;
CAMPOS; TOLEDO, 2013 [Vol. 3], p. 199). Transcrevemos as questões lançadas, tendo em
vista se tratar da atividade de abertura da unidade, ou seja, das primeiras reflexões colocadas
aos alunos:
165
Imagem disponível em: <http://casacomum.org/cc/visualizador?pasta=07210.346.000>. Acesso em
13/02/2019.
337
Essas primeiras chaves de leitura indicam que VM10 inclina-se a uma ênfase no
passado e na violência colonial. Contudo, no desenrolar da unidade, notamos que esta não se
configura a única perspectiva de leitura proposta pela coleção. Se autores reconhecidos por
sua escrita de viés político, como José Craveirinha, não escapam de exercícios que explorem
esse aspecto, o mesmo não ocorre em relação a Mia Couto, por exemplo, cujo romance Um
rio chamado tempo, uma casa chamada terra (2002) dá margem, em VM10, a questões
voltadas estritamente à interpretação de partes e do todo da narrativa (ABREU-TARDELLI;
ODA; CAMPOS; TOLEDO, 2013 [Vol. 3], p. 201), sem se estabelecerem ganchos com
aspectos políticos ou históricos, sejam eles de Moçambique ou do continente africano.
Também As mulheres de meu pai (2007), do angolano José Eduardo Agualusa, segue esse
padrão, com exceção de uma pergunta que solicita uma comparação entre as mudanças
sofridas pelas personagens femininas e as mudanças vivenciadas “na sociedade de países
africanos como Angola” (ibid., p. 213), para a qual, cabe registrar, é fornecido um gabarito
pouco detalhado/aprofundado:
tempo. O que de fato deve chamar a atenção é a coexistência, ainda nos dias
de hoje, desses dois tipos de mulher: a submissa e a que busca sua
emancipação.]. (ABREU-TARDELLI; ODA; CAMPOS; TOLEDO, 2013
[Vol. 3 – Apêndice: “Manual do Professor”], p. 491).
166
Imagem disponível em: <http://casacomum.org/cc/visualizador?pasta=07210.346.000>. Acesso em:
13/02/2019.
339
literatura local e global”) (ABREU-TARDELLI; ODA; CAMPOS; TOLEDO, 2013 [Vol. 3],
p. 203). Com base nessa gama de conteúdos e de informações, identificamos, portanto, uma
quebra coesiva entre os textos de subsídio e de fundamentação que integram o Caderno do
Aluno e a superficialidade que caracteriza parte do gabarito das análises propostas.
O capítulo 19, como dissemos, dedica-se à leitura de excertos representativos da
prosa e da poesia de matriz africana, tendo em vista que o estudo dessas produções permite
“compreender parte de nossa própria cultura e o alcance de referências comuns entre Brasil e
África” (ABREU-TARDELLI; ODA; CAMPOS; TOLEDO, 2013 [Vol. 3], p. 207). Embora o
diálogo histórico e literário entre Brasil e África lusófona seja repetidas vezes reiterado pela
coleção ressaltam-se não apenas os pontos de contato entre a formação de seus sistemas
literários, mas também a influência de autores modernistas brasileiros na escrita de autores
africanos (ibid., p. 200; p. 208), ou, ainda, a importância da obra de Jorge Amado em África,
segundo declarações feitas por Mia Couto (ibid., p. 208) , é necessário frisar que essa
informação não se concretiza, no Caderno do Aluno, em atividades de leitura comparada.
Apenas no apêndice do Manual do Professor, na parte de sugestões complementares e
interdisciplinares, sugere-se um levantamento, com posterior socialização de resultados, a
respeito das “relações culturais estabelecidas entre Brasil e esses países em outros campos do
saber” (ABREU-TARDELLI; ODA; CAMPOS; TOLEDO, 2013 [Vol. 3 – Apêndice:
“Manual do Professor”], p. 459)167. Para tanto, propõe-se que os alunos sejam divididos em
grupos focados, inicialmente, na história e na literatura de Angola, de Moçambique ou de
Cabo Verde168, para então selecionar escritores brasileiros que estabeleçam contato com os
autores africanos pesquisados, tendo como “tema central de aproximação a representação da
identidade do ser africano e do ser brasileiro” (ibidem)169. Entre as abordagens possíveis,
elenca-se a “recepção da literatura brasileira pelos escritores engajados na luta contra o
167
Além dessa atividade, há no Manual do Professor um exercício complementar de leitura comparada da letra
da canção “Guerreiro menino”, de Gonzaguinha, e o poema “Um homem nunca chora”, de José Craveirinha
(ABREU-TARDELLI; ODA; CAMPOS; TOLEDO, 2013 [Vol. 3 – Apêndice: “Manual do Professor”], p. 460).
Solicita-se, apenas, que os alunos apontem três semelhanças.
168
Para esta etapa, a coleção sugere Luandino Vieira, Pepetela e José Agualusa (para o grupo de Angola); Mia
Couto, José Craveirinha e Rui Knopli (para o grupo de Moçambique) e Eugénio Tavares, Germano Almeida e
Jorge Barbosa (para o grupo de Cabo Verde) (ABREU-TARDELLI; ODA; CAMPOS; TOLEDO, 2013 [Vol. 3 –
Apêndice: “Manual do Professor”], p. 459).
169
Os autores sugeridos para cada país são: Graciliano Ramos, Jorge Amado e Chico Buarque de Holanda (para
Angola); Guimarães Rosa e Carlos Drummond de Andrade (para Moçambique); Manuel Bandeira e Oswald de
Andrade (para Cabo Verde) (ABREU-TARDELLI; ODA; CAMPOS; TOLEDO, 2013 [Vol. 3 – Apêndice:
“Manual do Professor”], p. 459).
341
170
A apresentação de José Agualusa é a única que não conta com um excerto literário do autor; no lugar, tem-se
uma declaração do angolano acerca das culturas crioulas, aspecto que VM10 discute a partir de sua obra
(ABREU-TARDELLI; ODA; CAMPOS; TOLEDO, 2013 [Vol. 3], p. 211).
342
6. Leia o que diz o escritor indiano Edward Said ao analisar os modos como
a cultura contemporânea se forma.
[...] a invocação do passado constitui uma das estratégias mais comuns nas
interpretações do presente. O que inspira tais apelos não é apenas a
divergência quanto ao que ocorreu no passado e o que teria esse passado,
mas também a incerteza se o passado é de fato passado, morto e
enterrado, ou se persiste, mesmo que talvez de outras formas.
Apud SECCO, Carmen Lúcia Tindó. Travessias e rotas: das literaturas africanas de língua portuguesa
(das profecias libertárias Às distopias contemporâneas). Disponível em:
<http://leguaemeia.uefs.br?1/1_091_travessia.pdf>. Acesso em: 23 jan. 2013.
Destacamos essa proposta por duas razões: não é comum que grandes nomes dos
Estudos Pós-coloniais, como Edward Said, sejam debatidos ou apresentados aos alunos, e,
diferentemente de muitos dos gabaritos de VM10 que analisamos nesta subseção, a
expectativa de resposta mostra-se detalhada e à altura de um exercício de retomada de
conteúdos. Já sobre o estudo das produções cabo-verdianas, cabe registrar que nem Cabo
Verde nem São Tomé e Príncipe são trabalhados no Caderno do Aluno, mas que o primeiro é
discutido na parte de “sugestões complementares” do Manual do Professor. VM10 justifica a
ausência de autores desse país sob o argumento de que tal literatura “possui, em comparação
com outras produções escritas africanas de expressão portuguesa, aspectos bastante
singulares” (ABREU-TARDELLI; ODA; CAMPOS; TOLEDO, 2013 [Vol. 3 – Apêndice:
“Manual do Professor”], p. 458). A partir de explicações relacionadas à miséria sofrida no
pós-guerra e ao isolamento experimentado pelos habitantes do arquipélago, enfatiza-se o
papel das “metáforas marítimas” nessa literatura e propõe-se a leitura do poema “Poema”, de
171
Na coleção, Edward Said é apresentado como um “escritor indiano”, sendo que, na verdade, ele é palestino.
343
Arménio Vieira, seguida de questões que discutem, justamente, a figura da “ilha” nessa
narrativa (ibid., p. 459)172.
Finalmente, para além dos limites da unidade reservada exclusivamente às literaturas
africanas, localizamos um poema de Agostinho Neto (“A voz do sangue”) em um dos
capítulos de introdução do eixo literário (Capítulo 2 – “Um pacto com o leitor”), na condição
de texto ilustrativo dos vínculos entre “literatura e sociedade” e das “funções da literatura”
(ABREU-TARDELLI; ODA; CAMPOS; TOLEDO, 2013 [Vol. 1], p. 33). Destacado por seu
viés de denúncia e pela reflexão e pela emoção que o texto pode causar no leitor; com base
nele, afirma-se que “a literatura propõe ao leitor experimentar outras realidades e modos de
vida muitas vezes diferentes daqueles aos quais o leitor está habituado” (ibidem).
Considerando que o segundo autor a integrar esse conjunto de exemplos é William
Shakespeare, parece-nos que VM10 busca, na unidade de abertura, revisar o cânone literário,
ao apresentar lado a lado as literaturas de matriz europeia e africana. Outro dado importante é
a inserção de uma tela de Malangatana Valente Ngwenya, Perturbação na floresta (1987)173,
também nos capítulos em que se discute o que é literatura, a título de ilustração do debate
sobre a relação entre literatura e contexto (ABREU-TARDELLI; ODA; CAMPOS;
TOLEDO, 2013 [Vol. 1], p. 23). Reforçando nossa impressão inicial de que o trabalho com
imagens em VM10 é bastante vasto, o Manual do Professor lista nomes de outros artistas
plásticos africanos que podem ser introduzidos aos alunos em sala de aula, são eles: Fernando
Caterça Valentim e António Gonga (angolanos) este que, inclusive ilustra a página 207
(Volume 3) da unidade sobre literaturas africanas174 e Roberto Chichorro (moçambicano)
(ABREU-TARDELLI; ODA; CAMPOS; TOLEDO, 2013 [Vol. 3 – Apêndice: “Manual do
Professor”], p. 457). Equacionando produções da literatura e das artes plásticas, é correto
concluir que VM10 conta com um dos mais variados repertórios de matriz africana do nosso
172
São também disponibilizadas, no apêndice do Manual do Professor, atividades complementares sobre uma
entrevista dada por Mia Couto, na qual o autor fala da literatura moçambicana, e sobre um excerto de Mayombe
(1979), de Pepetela, que é articulado a um fragmento de Antonio Candido acerca das relações entre literatura e
contexto social (ABREU-TARDELLI; ODA; CAMPOS; TOLEDO, 2013 [Vol. 3 – Apêndice: “Manual do
Professor”], pp. 460-461).
173
Imagem disponível em: <http://casacomum.org/cc/visualizador?pasta=07210.372.000>. Acesso em
13/02/2019.
174
Por se tratar de uma tela meramente ilustrativa, sem atividades, não comentamos em detalhes sua presença na
coleção. Trata-se da obra O arremesso, disponível em: <http://artafrica.letras.ulisboa.pt/en/artist/244.html>.
Acesso em: 13/02/2019.
344
corpus, muito embora sejam reincidentes textos de autoria de Mia Couto e de José
Craveirinha, ambos moçambicanos.
Número de produções
artístico-literárias
Literatura
Literaturas Literaturas relacionadas às leis
COLEÇÃO negra/afro-
Africanas indígenas (textos literários, letras
brasileira
de canção e imagens de
artes plásticas).
menção é feita à alteração por ela sofrida em 2008, em nenhum dos livros analisados (Tabela
15); por conseguinte, as literaturas africanas fazem-se presentes em todas as obras, em
detrimento das literaturas indígenas, que são estudadas em apenas 30% dos materiais (Tabela
16) e, na maioria dos casos, restritas a um ou dois excertos de textos de Daniel Munduruku. O
estudo da literatura negra/afro-brasileira também merece ressalvas: embora nosso quadro
indique que 70% das obras contam com textos de autores afrodescendentes em seus
repertórios (Tabela 16), a variedade de textos é baixa; com exceção de PLC05 e de LP07,
que desenvolvem um trabalho consistente e variado com essa literatura, as demais coleções
restringem-se, em média, a um ou dois excertos de autores negros não canônicos. Cabe
assinalar, nesse sentido, que tal cenário pode ser reflexo, também e em alguma medida, das
fichas avaliativas do PNLD 2015, por nós discutidas na seção 3.2., as quais, embora incluam
o cumprimento das leis 10.639/03 e 11.645/08 entre seus critérios de seleção, reforçam em
seu questionário avaliativo apenas o atendimento à introdução das literaturas africanas, sem
lançar perguntas relativas à presença das literaturas indígenas e afro-brasileira.
No que diz respeito, especificamente, à primeira coluna da Tabela 15, chama-nos a
atenção o fato de 70% das coleções optarem por uma localização e distribuição de conteúdos
do tipo articulada, e não somente restrita. Isso significa que, em maior ou menor grau, as
literaturas africanas, principalmente, podem ser encontradas em capítulos historicamente
reservados ao cânone escolar, sem serem abordadas de forma isolada, em um capítulo
exclusivo175. Contudo, essa “articulação” não deve ser lida como sinônimo de uma abordagem
comparativista envolvendo as produções artístico-literárias africanas e brasileiras176 (vide
Tabela 17, adiante); as coleções PLC05 e VP08 servem de “exceções à regra” no sentido em
que articulam as literaturas africanas ao capítulo de introdução do eixo literário e a um
capítulo do eixo de produção escrita, no primeiro caso, e a um capítulo temático sobre
“cenário urbano e realismo fantástico”, no segundo, sem estabelecer, para tanto,
aproximações com a literatura brasileira. Por outro lado, é válido atrelar a localização e
distribuição do tipo restrito à ausência de análises textuais comparativas; PCIS03 e PLC09,
175
No decorrer de nossa análise ficou evidente que eventuais capítulos exclusivos costumam atender somente às
literaturas africanas, de modo que a presença das literaturas indígenas e afro-brasileira ocorre nos livros
didáticos de forma necessariamente articulada, isto é, relacionada a algum conteúdo canônico. Portanto, a
classificação da macroestrutura da coleção como sendo “articulada”, “restrita” ou “tangencial” tem como
parâmetro determinante a localização que as literaturas africanas assumem dentro da coleção.
176
Interessa-nos aqui as aproximações entre Brasil e África. Por conseguinte, não consideramos em nossos
apontamentos finais eventuais propostas comparativas abrangendo Portugal e África, ainda que elas tenham sido
descritas/mencionadas no decorrer de nossas análises.
348
escola, diversos autores da poesia negra/afro-brasileira (cabe citar que NP02, apesar de não
apresentar escritores negros nesse capítulo, propõe uma pesquisa complementar sobre o
movimento negro e a poesia negra).
Por fim, é importante retomar aquilo que, em alguns momentos das análises,
denominamos de «quebra coesiva», isto é, a um descompasso entre o enquadramento de
leitura dado pela coleção no Caderno do Aluno e o teor das orientações específicas ou das
propostas complementares fornecidas ao Professor177. No caso do estudo do Quinhentismo em
PLC05 e do Romantismo em PL01 e em LPLI04 essa discrepância mostra-se muito evidente.
Não observamos um gancho coesivo sólido entre a forma como se conduzem os alunos e as
instruções que são dadas ao docente. De forma simplificada, é como se, por vezes, o Manual
do Professor contasse com uma perspectiva inclinada ao pós-colonialismo enquanto que o
Caderno do Aluno parece estar preso a um modelo mais clássico de ensino. É certo que a
prática e a mediação docente são indispensáveis e centrais no tipo de uso e no lugar a ser
ocupado pelo livro didático na prática pedagógica, porém, ainda sim, entendemos ser
relevante articular o tom didático-pedagógico do Manual do Professor com o tom que
constitui o Caderno do Aluno. Ademais, não raro, acusamos como ocorrências de «quebra
coesiva» a inscrição de propostas alinhadas aos conteúdos das leis 10.639/03 e 11.645/08 no
rol das “atividades complementares”, e não entre as propostas principais dos livros didáticos
(isto é, entre as propostas que dão forma ao Caderno do Aluno). Apesar de esse tipo de
ocorrência não se mostrar muito frequente ou determinante aos resultados por nós obtidos, ela
demanda atenção em futuros estudos sobre o lugar da diversidade cultural nos materiais
escolares, dado seu potencial de se configurar, talvez, um novo viés de tangenciamento de
repertórios multiculturais.
Além dos dados mais diretamente ligados ao nosso foco analítico, é necessário
discutir alguns pontos de convergência e de divergência de determinadas ocorrências que, por
vezes, escaparam ou extrapolaram as nossas categorizações, e que, por conseguinte, ampliam
177
As razões que, eventualmente, poderiam explicar a ocorrência de tais “quebras coesivas” escapam ao alcance
do nosso estudo, pois elas podem (ou devem) envolver decisões editoriais conhecidas apenas pelos próprios
editores e/ou autores. Sabe-se, por exemplo, que, por vezes, as editoras contratam profissionais para a elaboração
de atividades ou de seções específicas da obra, uma prática que dá margem à participação de um número
significativo de autores em um único livro (os quais, devido à compra-venda de direitos autorais, nem sempre
têm seus nomes estampados nas capas dos materiais). Esses e outros pontos elencados no decorrer de nossas
análises evidenciam a necessidade e a importância de se realizarem pesquisas etnográficas focadas nas nuances
dos processos de produção de livros didáticos, que sejam, entre outras possibilidades, compostas de entrevistas
com editores e autores.
353
o debate sobre a aplicação das leis 10.639/03 e 11.645/08 nos livros didáticos. Optamos por
apresentá-los em tópicos:
superficiais, sobretudo nos casos em que o texto literário serve apenas de pretexto para
perguntas pouco reflexivas que visam somente validar as características do gênero a
ser trabalhado ou ressaltar, descontextualizadamente, seus aspectos linguísticos (na
análise de LP01 e de NP02, por exemplo, destacamos algumas ocorrências desse
tipo). Ao encontro do que defendemos em um artigo publicado durante o Doutorado
(vide DE SÁ, 2016), não se trata de questionar a pertinência de se usar o texto literário
para estudos de viés linguístico, mas de observar de que modo isso é feito. Em suma, a
análise linguística, quando crítico-reflexiva, se somada (e não sobreposta) a propostas
de análise literária dos textos de autoria indígena, afro-brasileira e africana (dado que
as leis enfatizam, de fato, o ensino de literatura, o qual não pode ser deixado de lado),
só tem a corroborar a ideia de descolonização da educação.
para abrir o livro didático às culturas indígenas, desde que, com isso, as literaturas
indígenas não percam o lugar que ainda nem conquistaram.
Para encerrar nossa síntese, reforçamos nossas apreciações sobre a presença e/ou
ausência de enquadradores discursivos extratextuais e de solicitações interpretativas
cursivas178. Em pontuais momentos das nossas análises, classificamos como negativa a
eventual escassez dos primeiros, por entendermos que o atendimento efetivo às leis demanda,
também, a recuperação de aspectos relativos aos contextos sociais, históricos e culturais das
produções indígenas, afro-brasileira e africanas. Isso porque, a nosso ver, análises textuais
totalmente descoladas de tal chave de leitura podem até trazer contributos à formação de
leitores, na medida em que servem ao exercício de determinadas habilidades e competências,
mas, no que concerne ao cumprimento de leis de recorte multicultural, o fazem sem responder
aos pressupostos de uma formação cidadã anti-discriminatória e descolonizadora, o que pode,
178
A título de registro, cabe reconhecer que a subcategoria “enquadrador intertextual” mostrou-se pouco
revelante durante o levantamento e a análise de dados, mas, ainda sim, optamos por não excluí-la de nosso
quadro analítico tendo em vista a possibilidade de ela ser produtiva a outros estudos.
356
inclusive, reafirmar o viés eurocêntrico dos currículos. Entre as obras aprovadas pelo PNLD
2015, registramos nas análises das coleções SPLP06 e LP07 algumas ocorrências que
ilustram com clareza o papel e os sentidos dos enquadradores discursivos extratextuais e,
recuperando a ideia de “quebra coesiva”, PCIS03 constitui-se, por exemplo, uma coleção que
opta por incluir enquadradores extratextuais mais no Manual do Professor e menos no
Caderno do Aluno.
Já em relação às solicitações cursivas as quais ocupam, em nossa percepção, um
lugar central tanto no questionamento de imaginários e de preconceitos que os alunos possam
ter frente a certos povos e culturas, quanto na promoção de uma postura ativa diante da leitura
do texto literário , percebemos que as coleções reservam, no geral, pouco espaço a esse tipo
de exercício interpretativo ou, no caso de investirem nele, limitam-se a dar o indicativo de
“resposta pessoal” no Manual do Professor, enfraquecendo, pois, a mediação de leitura de
perguntas de cunho mais subjetivo. Nas análises de LPLI04 e de SPLP06, por exemplo,
levantamos interessantes solicitações cursivas, ainda que especificamente no trabalho com as
literaturas indígenas brasileiras, afro-brasileira e africanas elas não se façam tão presentes;
PLC05 e LP07 destacaram-se, por sua vez, pela presença um pouco mais sistemática de
questões voltadas às apreciações e experiências pessoais dos alunos sobre determinados temas
e textos, mas principalmente sobre temas. Em suma, esses dados indiciários sobre o
reconhecimento e/ou a desconsideração da leitura subjetiva em livros didáticos, se lidos
conjuntamente, indicam que a relação entre “formação do leitor multicultural” e “leitura
subjetiva” merece ser mais bem pensada e explorada.
357
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ademais, muitas das propostas por nós encontradas nos livros didáticos atestam que,
para além de expandir os currículos, essas literaturas oferecem novas percepções sobre as
literaturas brasileira e portuguesa, abrindo caminho a exercícios mais dialógicos, os quais são,
muitas vezes, mais desafiadores. Desse modo, elas corroboram a nossa premissa inicial de que
um ensino multicultural não pressupõe a substituição do cânone literário, mas sua abertura.
Outrossim, não bastassem tais contributos ao exercício de múltiplas habilidades e
competências de leitura, esse deslocamento de um currículo eurocêntrico para um currículo
multicultural vai ao encontro de diretrizes e de debates internacionais sobre os direitos das
crianças e dos jovens, como nos explica, uma vez mais, Thiél:
Traçando, por fim, uma avaliação geral dos levantamentos feitos neste estudo, é
correto afirmar que as coleções do PNLD 2015 apontam avanços no cumprimento da lei
10.639/08 e alguns passos, ainda que bastante tímidos, em direção à aplicação da lei
11.645/08. A diversidade de estratégias editoriais adotadas pelos livros que integram o nosso
corpus é um sinal de que o cânone literário escolar tem sido, em alguma medida e de certa
forma, repensado. Ao depreendermos que processos de descolonização situados no plano
simbólico são tão ou mais lentos que os processos de independência geográfica e política,
bem como que eles são atravessados por constantes negociações e renegociações, por
incessantes movimentos de tentativa e erro, os livros didáticos (alguns mais, outros menos)
parecem estar no caminho certo. É notório, contudo, que a consolidação do ensino-
aprendizagem das produções artístico-literárias indígenas (e não da temática indígena) em
escolas convencionais requer mais estudos, medidas e diretrizes que elucidem e viabilizem o
atendimento à alteração legal de 2008 no que engloba, em particular, a educação literária.
Notamos por meio tanto na análise da transposição política quanto no estudo da transposição
didática, que a construção de uma ponte entre as culturas dos povos originários e a cultura
escolar convencional ainda demanda muitos esforços e muitas reflexões. Esta se configura,
portanto, a maior lacuna para a qual nossa pesquisa chama a atenção.
A título de fechamento, e reafirmando os elos estabelecidos entre Educação,
Sociedade e Política que tanto ecoamos no desenrolar desta pesquisa, não podemos nos
esquivar de registrar que no momento de conclusão deste trabalho muitas políticas e similares
e/ou transversais a leis como a 10.639/03 e a 11.645/08 encontram-se ameaçadas. Diversos
órgãos, secretarias e programas, como a Fundação Nacional do índio (FUNAI), a Secretaria
Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) e o próprio PNLD, vêm
passando por reconfigurações que, talvez, os afastem de alguns ou de muitos dos pressupostos
por nós debatidos. Com base nessa conjuntura, propomos duas leituras possíveis para o teor
do nosso estudo: para o caso de futuras revogações ou do enfraquecimento de políticas afins,
que ele sirva de documento-arquivo dos produtivos fundamentos e resultados de leis de
recorte multicultural que chegaram a ser efetivamente implantadas no país, revelando-se,
360
assim, uma espécie de contra-argumento a eventuais retrocessos; para o caso de tais políticas
serem mantidas, mesmo que com menor atenção ou que marcadas por um hiato, que nosso
estudo alerte quanto à constante necessidade de aperfeiçoamento de sua transposição
didática, de modo a fazer valer todos os esforços empreendidos pelos movimentos sociais no
contexto de sua transposição política.
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