Você está na página 1de 374

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM

ANA PAULA DOS SANTOS DE SÁ

A DESCOLONIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO LITERÁRIA NO BRASIL:


DAS LEIS 10.639/2003 E 11.645/2008 AO PNLD 2015

CAMPINAS,
2019
ANA PAULA DOS SANTOS DE SÁ

A DESCOLONIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO LITERÁRIA NO BRASIL:


DAS LEIS 10.639/2003 E 11.645/2008 AO PNLD 2015

Tese de doutorado apresentada ao Instituto de


Estudos da Linguagem da Universidade Estadual
de Campinas para obtenção do título de Doutora
em Linguística Aplicada, na área de Linguagem e
Educação.

Orientadora: Profa. Dra. Daniela Palma

Este exemplar corresponde à versão


final da Tese defendida pela
aluna Ana Paula dos Santos de Sá
e orientada pela Profa. Dra. Daniela Palma.

CAMPINAS,
2019
Os brancos não sonham tão longe quanto nós.
Dormem muito, mas só sonham consigo mesmos.
Davi Kopenawa

Não digam que fui rebotalho,


que vivi à margem da vida.
Digam que eu procurava trabalho,
mas fui sempre preterida.
Digam ao povo brasileiro
que meu sonho era ser escritora,
mas eu não tinha dinheiro
para pagar uma editora.
Carolina Maria de Jesus
Ao meu irmão José (in memoriam), por
me levar, ainda criança, à biblioteca
municipal e aos sebos em seu horário de
almoço, por me desafiar a ler placas e
letreiros quando voltávamos a pé da
escola para casa.
AGRADECIMENTOS

Agradeço ao CNPq pela bolsa de pesquisa (processo nº 140725/2015-6) que possibilitou o


desenvolvimento do presente estudo.

Agradeço à professora Daniela, pela seriedade acompanhada de leveza, pelo olhar generoso
frente às minhas inquietações e aos meus excessos. Como não poderia deixar de ser, registro
meus agradecimentos à professora Teca, que, além acolher as inseguranças do meu período de
transição da Teoria Literária para a Linguística Aplicada, possibilitou esse encontro, tendo
acertado ao afirmar que eu e a professora Daniela “nos daríamos muito bem”.

Às professoras Márcia Mendonça, Vima Martin e Ana Cláudia Fidelis e ao professor Mário
Medeiros da Silva, por terem contribuído, em diferentes etapas e de diferentes formas, para o
aprimoramento deste estudo. Nossos encontros e nossas trocas foram sempre enriquecedores.

Agradeço uma vez mais à professora Miriam, pois muito do que aprendi na Iniciação
Científica e no Mestrado se reflete nesta tese de Doutorado.

Meus agradecimentos afetuosos à professora Carlinda, pela calorosa e generosa acolhida em


Portugal, por todo o aprendizado e por toda a atenção. Agradeço também à equipe da
Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto (FPCEUP),
bem como ao Serviço de Relações Internacionais da instituição, pelo impecável auxílio
durante todo o processo de intercâmbio.

Às funcionárias e aos funcionários do IEL/UNICAMP, em especial ao Cláudio, ao Miguel e à


Rose, da Secretaria de Pós-Graduação, não apenas por estarem sempre dispostos a me ajudar
em questões relativas ao Mestrado e ao Doutorado, mas especialmente pelo convívio tão
alegre que tivemos durante a minha Graduação.

Sou também muito grata pelos belos (re) encontros que o Doutorado me proporcionou. À
Aline, pelo senso de humor ímpar e pelas doces trocas literárias. À Débora, mulher guerreira,
pela risada gostosa e por ser tão generosa em sua torcida pelas “manas”. À Fabi, pela
agradável companhia em diferentes caminhos, por vezes rumo à rodoviária de Campinas, por
vezes em direção à pousada do dia. À Natasha, pelas partilhas acadêmicas e pessoais, pela
postura agregadora em todos os sentidos. À Nayara, pelas conversas, mas, principalmente,
pelo canal de apoio que construímos ao longo dessa aventura louca que é escrever uma tese e
gostar da sala de aula ao mesmo tempo.
Registro, claro, um “obrigada” que começou a ganhar forma em 2007. À Bruna, à Malu, à
Monica e à Pati, agradeço a amizade sólida de todos esses anos. De “colegas de faculdade”,
nos tornamos, em certa medida, uma família, motivo pelo qual vejo um pouco de vocês em
cada fase que vivi na UNICAMP e em muito do que experimentei fora dela. Foi, e continua
sendo, muito bom crescer ao lado de vocês.

Às amigas que fiz em outra “academia”, e que hoje são também amigas para a vida. À Carol,
pelas ótimas conversas regadas a cookie, por essa terapia chamada “tomar café com as
amigas”; à Ju, pela partilha de ideias, de valores e de planos, e, claro, obrigada pelas
excelentes perfomances no kimax; à Sol, amiga-peregrina incansável, boa de prosa, mas
igualmente ávida ouvinte, sempre pronta a acolher com curiosidade minhas questões
acadêmicas e com muita atenção qualquer dilema pessoal.

Agradeço à Val, minha “amiga de trabalho”, pelo aprendizado diário, por me inspirar, a cada
dia, a ser uma professora melhor.

Agradeço também aos meus sogros, Mariangela e Flávio, por madrugarem comigo nos dias
em que eu tinha aula na UNICAMP.

Ao meu Querido, Alex, pela beleza do “el camino” que estamos trilhando juntos, pelo
companheirismo sem ressalvas, pelos abraços concretos e simbólicos. Melhor do que chegar,
é chegar ao seu lado.
RESUMO

O objetivo desta pesquisa de Doutorado é investigar os significados sociais e os impactos


curriculares das leis federais brasileiras nº 10.639/2003 e nº 11.645/2008  que tornaram
obrigatório o ensino de conteúdos referentes à História e à Cultura indígena brasileira e afro-
brasileira em toda a educação básica , com base na premissa de que políticas dessa natureza
alinham-se a um processo de descolonização do ensino, a saber, em nosso recorte, o processo
de descolonização da educação literária. Em síntese, exploramos tal processo tendo em vista
dois estágios dele constitutivos: o de «transposição política», isto é, momento em que as ações
e os discursivos políticos propagados pelos movimentos sociais passam a ser traduzidos pelas
políticas públicas, formalizando-se; e o de «transposição didática», correspondente ao
movimento de transformação/adaptação didática de saberes inicialmente restritos à academia
e/ou à formação da militância, ou seja, ao deslocamento de um saber de viés acadêmico e/ou
político para a esfera escolar. Para tanto, recorremos, inicialmente, aos pressupostos teóricos
dos Estudos Culturais e das Teorias Pós-coloniais, de modo a analisar os sentidos de uma
perspectiva pós-colonial de ensino. Em seguida, ao admitirmos a formação e a imutabilidade
do cânone literário escolar brasileiro como parte integrante de um projeto educacional de
matriz colonial  projeto o qual se revela guiado pelo eurocentrismo e marcado pela
produção de ausências e de lacunas curriculares , revisamos, brevemente, o papel dos
movimentos sociais na luta por modelos de educação atentos à pluralidade cultural do país e,
assim, contrários ao legado colonial presente na esfera escolar. Finalmente, uma vez
discutidos os embasamentos e as origens das leis supracitadas, voltamo-nos a seus efeitos
práticos no ensino de literatura no Brasil, por meio da análise das dez coleções aprovadas pelo
Plano Nacional do Livro Didático (PNLD) do Ensino Médio em 2015. Visando desenvolver
uma investigação que dê atenção à multiplicidade de estratégias editoriais, nossa metodologia
de pesquisa guia-se pela análise tanto dos movimentos de «adição» dos conteúdos previstos
pelas leis, quanto das eventuais marcas de «revisão/releitura crítica» do cânone literário
escolar por elas impulsionadas. Em linhas gerais, os resultados desta investigação corroboram
as relações estabelecidas entre Educação, Sociedade e Política, e apontam que são bastante
distintos os modos pelos quais os livros didáticos têm introduzido as literaturas preconizadas
pelas leis, bem como o grau de atenção dispensado e o espaço reservado a esse repertório em
cada coleção. Ao encontro de nossa fundamentação teórica, verifica-se em algumas obras a
presença de «opções descoloniais» de ensino, sobretudo no que tange à premissa básica de
reconhecimento positivo da diversidade das culturas e das literaturas de Língua Portuguesa e
ao trabalho didático-pedagógico em torno dos eventuais diálogos entre elas firmados, o que,
em termos práticos, se mostra produtivo à formação de leitores críticos e autônomos.
Contudo, em relação aos textos privilegiados pelos manuais analisados, verifica-se um
predomínio bastante evidente do estudo das literaturas africanas em detrimento da abordagem
de produções artístico-literárias de autores brasileiros negros e indígenas. Trata-se, portanto,
de uma descolonização em curso, e não de um processo finalizado.

Palavras-chave: Ensino de Literatura; Livro Didático; Educação Intercultural; Lei


10.639/2003; Lei 11.645/2008.
ABSTRACT

The goal of this PhD research is to investigate the social meanings and academic impacts of
the Brazilian federal laws 10.639/2003 and 11.645/2008. These laws made the teaching of
History and Cultures of African, Afro-Brazilian and indigenous origin mandatory in all basic
education. The premise is that such policies contribute to the process of decolonization of
education and, in this study, the process of decolonization of literary education. In summary,
we explore such process in view of two constitutive stages: the "political transposition", that
is, the time in which the political actions and ideas defended by social movements are
formalized into public policies; and "educational transposition", corresponding to the
transformation/adaptation of knowledge initially restricted to the academic context and/or to
activists and its application in schools, that means, the relocation of academically or
politically charged knowledge to the school environment. To this end, we initially used the
theoretical bases of Cultural Studies and Post-Colonial Theories, in order to reflect on the
senses of a Post-Colonial teaching perspective. Then, while we admit the formation of the
Brazilian school curriculum as a constitutive part of an educational project with colonial
origin, that is, a project historically guided by Euro-Centrism and marked by the production of
absences and gaps in the curriculum, we also review, briefly, the role of social movements in
the struggle for education models sensitive to the cultural plurality of the country and, thus,
contrary to the colonial legacy present in the school. Finally, once we have discussed the
foundations and origins of the above-mentioned laws, we turn to their practical effects on the
teaching of literature, through the analysis of the ten textbook collections approved by the
national school textbook plan (PNLD) in 2015. In order to develop an investigation that pays
attention to the multiplicity of editorial strategies, our research methodology is guided by the
analysis of both the movements of "addition" of the contents foreseen by the laws, as well as
the possible marks of "Critical Review" of the canon. In general, the results of this research
corroborate the relations established between Education, Society and Politics, and point out
that there are quite distinct modes by which the textbooks have introduced the literatures
recommended by the laws, as well as the degree of attention dispensed and the space reserved
to this repertoire in each collection. Meeting our theoretical foundation, some works present
"decolonial" options of education, especially in relation to the basic premise of positive
recognition of the diversity of the cultures and literatures of the Portuguese Language, as well
as the didactic-educational work on the possible dialogues between them, although there is a
clear predominance of the study of the African literatures not taking in consideration the
black and indigenous artistic and literary productions. It is therefore an ongoing
decolonization process, but not completed one.

Keywords: Teaching Literature; Textbook; Multicultural Education; Law 10.639/2003; Law


11.645/2008.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 15

CAPÍTULO 1. Descolonizar é preciso: significados de uma perspectiva


pós-colonial de educação 26

CAPÍTULO 2. Leis federais brasileiras nº 10.639/2003 e nº 11.645/2008


e as lutas pela descolonização da educação 53
2.1. Precursores sociais e jurídicos da lei nº 10.639/2003 57
2.2. Precursores sociais e jurídicos da lei nº 11.645/2008 78

CAPÍTULO 3. Ensino de Língua Portuguesa e colonialidade de poder:


sobre a (des) colonização da educação literária no Brasil 98
3.1. Educação literária e diversidade cultural segundo os documentos oficiais 99
3.2. O Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) e o PNLD 2015:
contextualização do corpus de pesquisa 108
3.3. Focos e níveis de análise: fundamentações teórico-metodológicas 122
3.3.1. Macroestrutura dos livros didáticos: quadro analítico I 124
3.3.2. Microestrutura dos livros didáticos: quadro analítico II 128

CAPÍTULO 4. Literaturas indígenas brasileiras, afro-brasileira e africanas


nas coleções do PNLD 2015 144
4.1. Análise das coleções 144
4.1.1. Português Linguagens (Saraiva) 147
4.1.2. Novas Palavras (FTD) 172
4.1.3. Português – Contexto, Interlocução e Sentido (Moderna) 191
4.1.4. Língua Portuguesa – Linguagem e Interação (Ática) 208
4.1.5. Português – Linguagens em Conexão (Leya) 227
4.1.6. Ser protagonista – Língua Portuguesa (Edições SM) 247
4.1.7. Língua Portuguesa (Positivo) 266
4.1.8. Viva Português (Ática) 298
4.1.9. Português: Língua e Cultura (Base Editorial) 312
4.1.10. Vozes do Mundo (Saraiva) 324
4.2. Síntese dos dados levantados: convergências e divergências 346

CONSIDERAÇÕES FINAIS 357

REFERÊNCIAS 361
15

INTRODUÇÃO

O debate sobre o reconhecimento da diversidade cultural na esfera escolar vem


ocupando, nas últimas décadas, pautas educacionais de um número significativo de países. Na
coletânea The Routledge international companion to Multicultural Education (2009),
organizada por J. A. Banks, a pluralidade de estudos acerca das ações e dos significados da
“educação multicultural” no mundo ilustra o alcance dessa questão. Reúnem-se no livro
artigos de pesquisadores que pensam essa problemática a partir da Austrália, da Rússia, da
Espanha, da China, dos Estados Unidos, do México, da Índia, de Singapura, entre outros.
Entre a gama de situações e de temas tratados, tem-se, por exemplo, a necessidade de
adequação do sistema educacional japonês à presença de uma crescente comunidade
estrangeira, sobretudo brasileira, a partir da década 1990 (capítulo 11); a afirmação, também
no âmbito do ensino básico, das culturas indígenas Maori na Nova Zelândia (capítulo 21); a
definição e a aplicação das políticas educacionais e linguísticas que regem o debate sobre
“língua materna” na África francófona, com base nas experiências de Burkina Faso, Mali, e
Níger (capítulo 28); os exemplos de estratégias e de planos de acolhimento escolar dos
imigrantes e/ou refugiados em países como Alemanha, França e Inglaterra (capítulos 23, 24,
30 e 34); a busca pela construção de uma nova e complexa historiografia para a África do Sul,
que situe melhor a questão da “raça” nas narrativas históricas do país (capítulo 10); o lugar e
o papel da educação indígena no Peru (capítulo 20); ou, ainda, o funcionamento, na área de
educação, dos ideais de “autonomia” e “não discriminação” previstos pela Constituição
indiana, a qual preconiza o respeito não apenas à pluralidade cultural, de modo amplo, mas
também à veemente pluralidade linguística e religiosa, em particular (capítulo 31). Essa lista
extensa de exemplos é aqui proposital. Com ela, objetivamos explicitar que o nosso recorte
temático transita entre o global e o local1.
Dessarte, a leitura conjugada dos textos compilados por J. A. Banks permite-nos
notar que a contestação do etnocentrismo em prol da defesa de uma educação para a cidadania
mostra-se como ponto comum dessas discussões. E, ao encontro de Gonçalves & Silva

1
Ao encontro da coletânea organizada por Banks, também serve de referência o trabalho de Gonçalves & Silva
(2013), o qual, ao se dedicar à questão da educação multicultural em nível global, apresenta um interessante e
detalhado panorama das “experiências multiculturais em outras sociedades” (GONÇALVES & SILVA, 2003, p.
121). Gomes (2017a), por sua vez, aprofunda o debate sobre o contexto brasileiro a partir de uma abordagem
mais abrangente das políticas públicas para a diversidade instauradas no país (de 2003 a 2016), contribuindo,
assim, para uma melhor compreensão do tema em nível local.
16

(2003), consideramos igualmente adequado associar essas diferentes demandas a uma luta
contra a persistência do colonialismo na contemporaneidade.

Como dissemos, o multiculturalismo nasce no embate de grupos, no interior


de sociedades cujos processos históricos foram marcados pela presença e
confronto de povos culturalmente diferentes. Esses povos, submetidos a um
tipo de poder centralizado, tiveram de viver a contingência de juntos
construírem uma nação moderna. (Bhabha, 1998, cap. III). Não é, portanto,
por acaso que o debate acerca do caráter multicultural dos agrupamentos
humanos tenha surgido, de forma bastante significativa, como um problema,
em sociedades geradas pelo colonialismo europeu.
[...]
Apesar das imensas diferenças que podem existir entre, por exemplo, Brasil,
Canadá,Índia, Estados Unidos e África do Sul, há de se reconhecer que todos
eles estiveram ligados a um poderoso centro de dominação: a Europa
ocidental. Isso talvez explique por que os mo-vimentos multiculturais nesses
e em outros países igualmente colonizados representam uma reação ao
monoculturalismo ou etnocentrismo que, com mais ou menos firmeza,
domina há pelo menos três séculos consecutivos. Como ideologia e prática
institucional, o monoculturalismo não só pretende universalizar os pres-
supostos e os termos de uma única cultura,como nega ser cultura qualquer
expressão que se recuse a moldar-se nos padrões dessa cultu-ra dita “maior”
(Goldberg, 1998). (GONÇALVES & SILVA, 2003, pp. 112-113).

A reivindicação da interculturalidade na educação é, pois, parte integrante de um


debate global, e atual, sobre os currículos e as práticas escolares. Por outro lado, como
antecipamos, e como também ilustra a gama de exemplos anteriormente descritos, o “local”
assume grande peso nesse processo, pois os discursos e as políticas que sustentam ações desse
viés são marcados por particularidades dos contextos sociais nos quais emergem. Em relação
ao Brasil, o cenário não é diferente. O artigo que representa o país na referida coletânea
organizada por Banks, “Achieving quality education for Indigenous peoples and Blacks in
Brazil” (capítulo 39), por exemplo, assinado por Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva e Sonia
Stella Araújo Olivera, anuncia, especificamente, os povos indígenas e a população negra
como as minorias historicamente excluídas de uma educação igualitária e de qualidade no
país, entrave este advindo de nossas heranças coloniais. De fato, não faltam levantamentos e
estatísticas que corroborem a prevalência histórica, ainda que em queda, de negros e pardos
entre os números relativos a trabalho infantil, a analfabetismo e a evasão escolar, por
exemplo. Existe, nesse sentido, uma dimensão mais mensurável do legado colonial na
educação brasileira, o qual, cabe reforçar, caminha de mãos dadas com a desigualdade social.
Sem negar tal aspecto  que é, inclusive, significativamente abordado no Capítulo 2 ,
nosso estudo sobre as relações estabelecidas entre educação e interculturalidade no Brasil visa
17

a compreender, principalmente, a dimensão simbólica, e usualmente menos quantificada,


dessas desigualdades. Isso significa que conjuntamente com a falta de acesso pleno de negros
e de indígenas à educação verifica-se o igual impedimento da afirmação de suas culturas, de
seus saberes e de suas produções artísticas no ambiente escolar. Há, pois, uma espécie de
violência simbólica a ser enfrentada nos currículos e nas práticas de ensino-aprendizagem,
cujo motor parece obedecer, fundamentalmente, ao eurocentrismo. Em nossa percepção, a
análise de livros didáticos pode ajudar no mapeamento desses desafios.
Já no ano de 1987 era realizado em Belo Horizonte (MG) um seminário que reunia
representantes de organizações negras e representantes de entidades governamentais
responsáveis pela produção e distribuição de livros didáticos no Brasil. Centrado no combate
ao racismo e à discriminação em materiais escolares, o “Seminário Educação e Discriminação
dos Negros” contou com diversas conferências e painéis, configurando-se um importante
marco nas lutas pela educação orquestradas pelo movimento negro na década de 19802.
Passados mais de trinta anos, as comunicações proferidas, na ocasião, pelo professor e
militante Luiz Alberto de Oliveira Gonçalves permanecem atuais, principalmente ao se ter em
mente as questões que objetivamos explorar com esta pesquisa de doutorado. Denunciando a
existência de uma “negação do patrimônio cultural do negro” (GONÇALVES, 1988a, p. 60),
Gonçalves frisava que, em relação à esfera escolar, “é preciso que se atente não só para o que
se transmite, mas para o que se impede de transmitir” (p. 61); em suas palavras

[...] os “conteudistas” (como se costuma chamar aqueles que defendem a


Pedagogia Crítico-Social dos Conteúdos) avançam na análise crítica da
escola. Entendem ser esta um espaço político, não apenas da reprodução
ideológica da classe dominante, mas possível de transmitir conteúdos
críticos. Neste sentido, definem, como compromisso político da escola
pública com as camadas populares, garantir a estas a transmissão do “saber
dominante”, “universal” e “crítico”.
Para nós que somos defensores da escola pública gratuita, universal,
comprometida com a transformação da sociedade, tínhamos, em mãos, a
partir dos “conteudistas”, uma proposta defensável, mas não suficiente. [...]
resta saber se o que chamam de “saber dominante”, inclui a cultura negra.
(GONÇALVES, 1988a, p. 60).

Em certa medida, as advertências de 1987 podem servir, hoje, de chave de leitura


para as reflexões que desenvolvemos nos capítulos que seguem, haja vista admitirmos as leis
federais brasileiras nº 10.639/2003 e nº 11.645/2008, que tornaram obrigatório o ensino da
2
No capítulo 2, subseção 2.1., retomamos e discutimos de forma mais detalhada o teor dos debates realizados no
referido seminário.
18

História e da Cultura indígena brasileira e afro-brasileira em toda a educação básica  com


destaque, no segundo caso, ao papel do continente africano na formação da sociedade
nacional 3, também como uma resposta à histórica negação dos saberes e das produções
artístico-culturais das minorias. Não se trata, portanto, de instaurarmos uma “caça” ao cânone
literário escolar, deslegitimando, a priori, suas obras e seus autores, mas de verificar, ao
encontro das afirmações de Gonçalves, o que é “incluído” (e, por conseguinte, excluído)
desse repertório historicamente dominante4. Visamos estudar, assim, de que modo tem
ocorrido, no Brasil, a reivindicação e a introdução de conteúdos que, por séculos, foram
“impedidos” (para fazer uso de outra expressão de Gonçalves) de adentrar a escola, em geral,
e o livro didático, em particular.
Inicialmente, isto é, no contexto de submissão deste projeto ao Programa de Pós-
graduação em Linguística Aplicada, no ano de 2014, nosso objetivo geral era analisar os
reflexos da lei nº 10.639/2003 nos livros didáticos de Língua Portuguesa do Ensino Médio,
com atenção ao eixo literário. A escolha de restringir o corpus aos anos finais de ensino havia
sido motivada pelos resultados dos nossos primeiros levantamentos bibliográficos, realizados
naquele mesmo ano, que apontavam a predominância de análises focadas, em linhas gerais, na
educação literária ofertada no Ensino Fundamental II5. Ademais, lançava-se, na ocasião, um
novo Plano Nacional do Livro Didático (PNLD) do Ensino Médio, o que conferia mais
atualidade ao nosso objeto de pesquisa.
Em relação ao teor das pesquisas sobre livros didáticos e diversidade étnico-racial,
preponderavam, à época, análises focadas na presença de estereótipos ou de preconceitos

3
Disponibilizamos os textos integrais das referidas leis no Capítulo 2, no início das subseções 2.1. e 2.2.,
respectivamente.
4
Não consideramos necessário desenvolver uma discussão sobre os sentidos de “cânone literário”, pois nossa
análise centra-se na questão da imutabilidade do repertório escolar de forma mais ampla, assim como no lugar
ocupado pelo eurocentrismo nessa problemática. Para tanto, entendemos que as respostas por nós procuradas
encontram-se mais na História da Educação no Brasil do que em debates estritamente teóricos sobre o tema.
Ademais, muitos trabalhos já abordarem de forma bastante consistente a relação estabelecida entre o cânone e o
ensino de literatura nas escolas brasileiras, com destaque à tese de doutorado de Fidelis (2008).
5
Percebemos nos levantamentos que realizamos em 2014 que, tanto em relação ao Ensino Fundamental quanto
em relação ao Ensino Médio, as pesquisas interessadas pela questão da diversidade cultural no ensino de
literatura voltavam-se, majoritariamente, à observação de práticas pedagógicas, por meio de estudos etnográficos
mais gerais sobre representação étnico-racial e/ou de análises inclinadas mais ao papel de livros paradidáticos e
menos aos livros didáticos. O estudo sistemático de coleções do PNLD mostrou-se, no que tange aos dois níveis
de ensino, pouco frequente se comparado, portanto, a outros recortes ou caminhos analíticos, como os de viés
étnográfico (envolvendo, por exemplo, observação de aulas, entrevistas com professores e/ou com alunos etc.),
sendo estes, em sua maioria, desvinculados da análise do uso, do papel e/ou do lugar do livro didático no
contexto do ensino multicultural.
19

raciais nos materiais escolares, motivo pelo qual o corpus explorado nesses trabalhos
mostrava-se muitas vezes fragmentário, restrito a alguns capítulos e a poucas coleções6. À
altura, já havíamos aferido a importância de verificar os efeitos globais da introdução das
literaturas afro-brasileira e africanas nos livros didáticos, atentando-nos, por exemplo, a seus
eventuais reflexos na abordagem de autores clássicos, ao espaço editorial a elas reservado etc.
A nossa hipótese era a de que todas as escolhas editoriais tomadas a partir lei mereceriam
atenção, por considerá-las movimentos ideológicos, e não arbitrários, de inclusão-exclusão de
conteúdos escolares. Desse modo, e novamente em consonância com a fala de Alberto de
Oliveira Gonçalves no Seminário ocorrido em 1987, também a ausência dessas produções
artístico-literárias era, a nosso ver, um dado relevante, que deveria ser igualmente explorado,
fator que nos levou a somar, em um segundo momento, a lei nº 11.645/2008 ao nosso recorte
de investigação.
Diferentemente do expressivo interesse pela aplicação da lei 10.639/2003, o qual
constatamos através de nossas pesquisas bibliográficas, o atendimento à alteração legislativa
de 2008, ou seja, ao ensino da história e das culturas indígenas, ainda carecia de atenção por
parte da academia. Naquele ano, observamos em nossas buscas que o termo “11.645/2008”
fazia-se presente apenas a título de citação em resumos de dissertações e teses interessadas
pela lei 10.639/03, não se configurando um objeto de estudo. Não localizamos, portanto, em
2014, trabalhos que debatessem o ensino de literatura indígena em escolas convencionais, isto
é, em escolas não indígenas, salvo o artigo “A Literatura dos Povos Indígenas e a Formação
do Leitor Multicultural” (2013), que desenvolve “uma reflexão sobre como o contato com
esta literatura pelo público formado por crianças e jovens pode promover a formação de
leitores competentes, multiculturais e multiletrados” (THIÉL, 2013, p. 1175)7. Em linhas
gerais, pudemos notar que o indígena era/é ainda encarado, na academia, mais como tema e
personagem e menos como autor literário, embora excelentes trabalhos já tenham sido
publicados propondo tal mudança de enfoque, como Almeida (1999), Graúna (2012; 2003),
Lima (2012), Thiél (2002).
6
Entre os trabalhos afins, destacamos: (i) Ensino Fundamental - Goularte & De Melo (2013); Silva (2005); (ii)
Ensino Médio – Freitas (2009). Após 2014, isto é, fora do recorte temporal do nosso levantamento inicial,
podemos destacar outros estudos, como o de Biazzetto (2012).
7
Após 2014, ano em que realizamos o referido levantamento bibliográfico inicial, é possível encontrar um
número maior de trabalhos que discutem o ensino das produções artístico-literárias indígenas em escolas não
indígenas. A despeito de não termos realizado um levantamento tão sistemático quanto o que julgamos
necessário fazer no início de nossos estudos, destacamos os trabalhos de Santos (2018), de Silva (2017) e de
Thiél (2016).
20

É fato que já nas primeiras leituras que fizemos das coleções do PNLD 2015, a
discrepância entre o número de textos e de autores que atestavam a implementação da lei de
2003 era acentuadamente superior ao daqueles que se associavam à mudança imposta em
2008. Optamos, então, por enfrentar essa lacuna de estudos, ainda que a nossa discussão
venha a permanecer restrita, em grande parte, a um questionamento e à denúncia da ausência
da autoria indígena nos materiais que integram o nosso corpus. Como afirmamos, a não
presença tornou-se um fator a ser levado em conta no decorrer de nossas reflexões, e é com
base nesse aspecto que justificamos o fechamento do nosso recorte de análise.
Em junho de 2016 (terceiro semestre do doutorado), atendendo às exigências do
Programa de Pós-Graduação, cumprimos com o requesito da “Qualificação de Projeto”, cuja
finalidade é debater o projeto de pesquisa em sua fase inicial. De forma muito produtiva e
generosa, a banca composta pelos professores doutores Vima Lia de Rossi Martin (USP) e
Mário Augusto Medeiros da Silva (UNICAMP) deu-nos diversos contributos, entre os quais
dois influenciaram com mais veemência os rumos tomados pela presente pesquisa.
Primeiramente, em consonância com suas indicações, optamos por afastar nossa
fundamentação teórica de um debate sobre o “multiculturalismo”, devido tanto ao excesso de
trabalhos afins quanto das amarras teóricas que esse tema nos impunha, a começar pela
própria “guerra polissêmica” que o atravessa. Em segundo lugar, concordamos com a
necessidade de recuperar a luta e o papel dos movimentos sociais no contexto de conquista
dessas e de outras políticas de recorte étnico e racial, a fim de compreender mais criticamente
os significados das leis nº 10.639/2003 e 11.645/2008. E foi justamente ao ler a história dos
movimentos negro e indígena, sobretudo no que tange a lutas e a posicionamentos
relacionados à educação, que passamos a transpor nosso embasamento teórico para os aportes
dos Estudos Pós-coloniais. Identificamos na história da educação do negro e do indígena no
Brasil elementos que vão ao encontro de movimentos, implícitos ou explícitos, de denúncia e
de resistência ao projeto educacional de matriz colonial (ou eurocêntrico) que fundou e que
ainda orienta a educação no país. É nesse sentido que a ideia de “descolonização da educação
literária” passou a ganhar protagonismo em nosso estudo. Dessarte, interpretamos as leis, no
contexto de ensino de literatura, como políticas que apontam a necessidade de
descolonizarmos os currículos e as práticas didático-pedagógicas. Com a análise do PNLD
2015 nosso intuito é verificar de que modo e em que medida as editoras demonstram fazer a
mesma interpretação.
21

Definimos, pois, uma investigação de viés textual-documental, ancorada em


documentos históricos, em documentos oficiais de educação, em textos legislativos e,
finalmente, em coleções didáticas. E foi ao somarmos, de acordo com nossos levantamentos,
o menor número de pesquisas debruçadas sobre o ensino de leitura/de literatura no Ensino
Médio (se comparado, como dissemos, ao Ensino Fundamental, que é bastante estudado na
área de Educação) à consolidação do livro didático de língua portuguesa como um
privilegiado objeto de pesquisa na área de Linguística Aplicada, que julgamos pertinente
explorar a relação estabelecida entre as leis e o PNLD 2015. Em um país permeado de
desigualdades e marcado, em linhas gerais, por baixos índices de leitura, sabe-se que o livro
didático pode configurar-se o primeiro e/ou o único livro ao qual muitos estudantes têm/terão
acesso. Além disso, a inexistência de consistentes programas de formação continuada de
professores acaba por tornar o manual escolar também uma referência teórica, especialmente
ao se pensar casos como as mudanças legislativas de 2003 e 2008, que impõem conteúdos e
saberes até então inéditos às salas de aula.

Pode-se observar que a apropriação das pesquisas científicas pelos


professores não é discutida. O livro didático é concebido como o único
mediador entre a produção científica e a escola. O professor, que também
deveria atuar como mediador, assume o papel de “aluno” dos livros
didáticos, que estão assumindo a função de livros teóricos, responsáveis pela
formação dos professores. Bräkling destaca o lugar que o livro didático
ocupa na prática docente: “por um lado, constitui-se referência organizadora
do currículo escolar, selecionando conteúdos, determinando sua progressão,
definindo estratégias de trabalho e metodologias de ensino; por outro,
mostra-se como referência teórica fundamental, indispensável e, por vezes,
única, na tematização dos conhecimentos e (in)formação do professor sobre
os aspectos da língua e da linguagem envolvidos em seu trabalho” (p. 212).
(PASSOS, 2004, p. 312).

Ao tocar nesse ponto, damos início, inevitavelmente, a reflexões acerca da questão


da transposição didática, isto é, do processo por meio do qual determinados saberes são
escolarizados. Trata-se de uma reconfiguração de conteúdos que conta, ao menos, com uma
dupla agência: a dos livros didáticos, de um lado, e a do próprio professor, de outro. Numa
primeira leitura, fica evidente que o escopo do nosso trabalho foge à análise do papel e dos
efeitos da prática docente nesse processo de transposição, visto que, para tanto, seria
necessária uma pesquisa de cunho etnográfico, a qual, definitivamente, não integra nosso
plano de estudo. Por outro lado, limitar o nosso olhar apenas à aferição dos repertórios
linguísticos e literários das coleções constitutivas do nosso corpus culminaria na negação da
22

complexidade do livro didático enquanto objeto de análise. Concordamos com Bunzen


quando ele ressalta que reduzir esse tipo de investigação a uma pura “avaliação de conteúdos”
pode resultar na compreensão de apenas uma “de suas diferentes dimensões” (BUNZEN,
2005, p. 558). Ao invés disso, o pesquisador sugere, em diálogo com Latour, ser “necessário
não nos centramos apenas no produto final, mas no processo de construção, no movimento,
nos flashbacks” (ibidem), pois

Se encararmos o LDP desta forma, estaremos automaticamente mais


interessados em compreendê-lo como uma fonte interessante para o estudo
da construção dos saberes escolares do que propriamente um objeto de
estudo utilizado apenas para apontar “defeitos” à luz de uma concepção de
ciência moderna como algo universal, objetiva e preditiva; por isso mesmo,
essencialmente avaliativa. O olhar que normalmente é lançado para
“entender” o LDP é sempre a procura do homogêneo, do fio “uno” e claro.
Defendemos justamente uma visão diferenciada, pois acreditamos que ele se
caracteriza muito mais por uma incompletude e por uma heterogeneidade de
saberes, de crenças e de valores sobre a língua e seu ensino/aprendizagem do
que num saber-fazer homogêneo e sem conflitos. (BUNZEN, 2005, pp. 558-
559).

Podemos afirmar que a adoção dessa perspectiva, ou seja, a ideia de admitir o livro
didático como um “objeto complexo” (BUNZEN, 2005, p. 559) trouxe duas implicações
práticas a nossa pesquisa, as quais dialogam, em maior ou menor grau, com o
“posicionamento de cunho epistemológico e metodológico” (ibidem) reivindicado por
Bunzen. Primeiramente, desprendemo-nos de quaisquer modelos pré-concebidos de educação
intercultural a fim de nos abrir ao aprendizado que as escolhas editoriais identificadas nas
coleções analisadas possam nos proporcionar. Em outras palavras, buscamos nos afastar dos
imperativos de uma “vigilância epistemológica” (BUNZEN, 2005, p. 557)  responsável,
com frequência, por apontar somente “defeitos” (p. 558) naquilo que foge a determinados
modelos e conceituações científicas/acadêmicas  em prol do reconhecimento dos materiais
escolares como fonte de conhecimento, uma vez que “o trabalho do autor do livro didático
[...]” (o qual tem, não raro, experiência na rede básica de ensino) “não consiste apenas em
reproduzir\transpor as teorias acadêmicas, mas em agir sobre elas, modificando-as”
(BUNZEN, 2005, p. 561). É certo que nos norteamos por uma fundamentação teórica
específica e que, previamente, formulamos hipóteses e elencamos expectativas, contudo, em
se tratando da análise de leis educacionais em processo de implantação, negociação e
consolidação, como o são as leis por nós estudadas, entendemos que o levantamento crítico
23

das propostas didático-pedagógicas de um total dez coleções didáticas pode tanto nos abrir a
novas percepções acerca dos significados e dos efeitos da introdução escolar de conteúdos
representativos da diversidade cultural, quanto indicar caminhos produtivos para se atender,
pedagogicamente, aos saberes requeridos pela recente legislação. Não nos interessa, portanto,
a velha dicotomia do “certo” e “errado”, mas o entendimento das rupturas e das
permanências, das similaridades e das discrepâncias etc. que marcam a inserção das literaturas
afro-brasileira, africanas e indígena realizada por diferentes autores e editoras  “assumir tal
posicionamento nos fez procurar não a lógica da totalidade, mas ‘da multiplicidade, das
rupturas e do movimento’ como defende a autora [Signorini (1998:103)]”. Nossa pesquisa
encontra-se, então, mais interessada em regularidades locais (e não universais) e nas relações
contigenciais (e não estáticas)” (BUNZEN, 2005, p. 558).
Como segunda implicação da admissão da complexidade do nosso corpus,
destacamos a necessidade de conjugarmos o estudo dessa transposição didática a uma análise
do processo que denominamos de transposição política, concernente, por sua vez, à
transmutação de demandas dos movimentos sociais em leis oficializadas pelo poder público;
ou, neste caso, em leis educacionais de recorte intercultural. Trata-se, assim, de um
“flashback”  para recuperarmos a expressão de Bunzen  primordial à compreensão dos
significados das mudanças recentemente instauradas nos livros didáticos nacionais. Dados
como os por nós retirados dos anais do “Seminário Educação e Discriminação dos Negros”,
de 1987, ajudam-nos a perceber que a descolonização da educação, como um todo, e da
educação literária, em específico, insere-se num longo processo de lutas e de negociações,
bem como nos alertam quanto ao protagonismo dos movimentos sociais nessas conquistas.
Anteriormente à etapa de transposição didática dos conteúdos relativos às culturas indígenas
brasileiras, afro-brasileira e africanas para as escolas, observamos uma importante produção e
disseminação de conhecimento conduzida pelos próprios membros dos movimentos negro e
indígena, iniciativas estas que podem ser interpretadas como o embrião das políticas públicas
posteriormente aprovadas. Em outras palavras, partimos da premissa de que

Os movimentos sociais são produtores e articulares dos saberes construídos


pelos grupos não hegemônicos e contra-hegemônicos da nossa sociedade.
Atuam como pedagogos nas relações políticas e sociais. Muito do
conhecimento emancipatório produzido pela sociologia, antropologia e
educação no Brasil se deve ao papel desempenhado por esses movimentos,
que indagam o conhecimento científico, fazem emergir novas temáticas,
24

questionam conceitos e dinamizam o conhecimento. (GOMES, 2017b, p.


16).

Por conseguinte, investigar as ações sociais que antecedem a conquista e a


implementação das leis nº 10.639/2003 e 11.645/2008 configura-se, para os fins deste
trabalho, um passo necessário a uma leitura mais aprofundada do nosso corpus. Isso porque o
livro didático, em sua estreita relação com os currículos, não está alheio às relações sociais e
de poder, mas ao contrário, pois “o currículo é o espaço onde se concentram e se desdobram
as lutas em torno dos diferentes significados sobre o social e sobre o político. É por meio do
currículo, concebido como elemento discursivo da política educacional, que os diferentes
grupos sociais, especialmente os dominantes, expressam sua visão de mundo, seu projeto
social, sua ‘verdade’” (SILVA, 2001, p. 11). Em suma, não se pode olhar para dentro dos
livros didáticos sem levar em conta o que ocorre para além de suas margens.
Para desenvolvermos todas as propostas aqui expostas, organizamos este trabalho em
quatro capítulos. No Capítulo 1, intitulado Descolonizar é preciso: significados de uma
perspectiva pós-colonial de educação, tem-se a fundamentação teórica desta pesquisa. Já o
Capítulo 2 - Leis federais brasileiras nº 10.639/2003 e nº 11.645/2008 dedica atenção ao
que chamamos anteriormente de movimento de transposição política, dado que, nele,
revisamos a história da educação do negro e do indígena no Brasil, alinhada às lutas que
deram origem à conquista de ambas as leis (cada qual em uma subseção correspondente, a
saber, subseção 2.1. e 2.2.). O Capítulo 3 - Educação literária e colonialidade de poder:
sobre a (des) colonização do ensino de Língua Portuguesa no Brasil, por sua vez, serve de
introdução ao nosso corpus na medida em que se volta ao teor dos documentos oficiais de
educação no que diz respeito aos discursos sobre diversidade cultural que orientam o ensino
de Português (subseção X), assim como à contextualização dos significados e do contexto do
PNLD 2015; também nesse capítulo detalhamos e justificamos a metodologia e as categorias
adotadas no estudo dos livros didáticos. Finalmente, o processo de transposição didática
ganha especial atenção no capítulo das análises das coleções didáticas, Capítulo 4 –
Literaturas indígenas brasileiras, afro-brasileira e africanas nas coleções do PNLD 2015;
nele, apresentamos as análises propriamente ditas (subseção 4.1.) e uma síntese comparativa
dos dados levantados (subseção 4.2.).
Sintetizados, portanto, os caminhos pelos quais o nosso trabalho ganhou forma e
clareza, reafirmamos sua inscrição na área de Linguística Aplicada (LA) com base, sobretudo,
25

em seu caráter “indisciplinado” (MOITA LOPES, 2013). O trânsito entre diferentes


disciplinas, como Estudos Literários, Sociologia, História, Educação, foi, certamente, o eixo
fundador desta pesquisa. E a partir da inter/transdisciplinaridade, associo os nossos objetivos
gerais a algo que li em 2014, quando, recém mestra em Teoria Literária, buscava fontes que
me explicassem o que seria, afinal, “Linguística Aplicada”. Segundo Moita Lopes, para além
dos estudos mais tradicionais, apoiados em teorias linguísticas e focados no estudo das
línguas, a LA foi/vem se afirmando “uma área transgressora”, não havendo mais margem a
pesquisas pautadas por um “vácuo social” (ibid., p. 22). Sob esse prisma, o autor associa à
área o objetivo de colaborar na “construção de uma agenda anti-hegemônica” (p. 27). É à luz
dessa premissa que o norte do nosso estudo foram os saberes subalternizados, e não os saberes
escolares canônicos de viés de eurocêntrico.
26

CAPÍTULO 1. Descolonizar é preciso: significados de uma perspectiva pós-


colonial de educação

O eurocentrismo é uma questão não de geografia,


mas de epistemologia.
Aníbal Quijano

Na primeira fase de seu Vestibular 2018/2, a Universidade Federal de Uberlândia


(UFU) apresentou uma questão de História relacionada à imprensa e ao movimento negro.
Apesar de este capítulo pretender-se “teórico”, parece-me produtivo iniciá-lo com o relato de
um exemplo “prático” dos contornos daquilo que entendemos por “descolonização do
ensino”. Proponho uma reflexão sobre a reação de alguns dos meus alunos e das minhas
alunas (do Ensino Médio) a esta questão:

QUESTÃO 18
Observe a imagem.

Na década de 1930, um dos mais atuantes grupos do movimento negro


surgiu no Estado de São Paulo, durante a crise constitucionalista. Esse grupo
empenhou-se em campanhas beneficentes, buscando angariar apoio material
e humano entre a comunidade negra, que apoiava o exército paulista. Tinha
como liderança e criador Joaquim Guaraná de Santana que também
contribuiu para a fundação do PRN (partido para negros). Uma de suas
sucursais regionais criou o Jornal A Raça.
Também conhecido como Pérolas Negras, esse movimento se intitulava:
A) Frente Brasileira Negra.
B) Panteras Negras.
C) União dos Homens de Cor.
D) Legião Negra.
(UFU, Processo Seletivo UFU/2018/2 – 2ª Prova Comum, Tipo 1, Questão
18, 2018).
27

No dia subsequente à prova da UFU, não havia outro assunto pelos corredores.
Ninguém, afinal, tinha ouvido falar sobre “Legião Negra” ou “jornal A raça”, nem nas
escolas, nem nos cursinhos. Esses comentários bastariam para ilustrar o porquê de a lei
10.639/2003 ter tornado obrigatório o ensino da História e da Cultura da população
afrodescendente no Brasil. As lacunas curriculares, nesse caso, ficam bastante evidentes.
Ademais, a atividade por si só exemplifica parte dos efeitos das leis na educação, visto que
não apenas a UFU, mas outros Exames Vestibulares passaram a cobrar conteúdos
relacionados aos negros e aos indígenas. No entanto, a fala (indignada) de uma aluna em
particular expôs outras nuances do ocorrido e mereceu, ainda mais, a minha atenção. Ela disse
algo como: “eu pesquisei depois da prova e verifiquei que o grupo ‘Legião Negra’ tem a ver
com a Revolução Constitucionalista de 1932, em São Paulo... O que eu não entendo é por
qual razão o professor fulano falou tanto sobre a Revolução e não mencionou nada a respeito
desse movimento! Ao invés de repetir todos os anos o que estamos cansados de saber, ele
deveria ensinar o que a gente não sabe”.
“Ensinar o que não se sabe”. Talvez seja esta a síntese do presente capítulo e, por
que não, a síntese do que pretendem as leis 10.639/2003 e 11.645/2008. Com base nos
subsídios fornecidos pelas teorias pós-coloniais, objetivamos, de certo modo, dar
desdobramento a questões similares às levantadas pela minha aluna adolescente. Contudo, ao
contrário dela, propomos um debate mais amplo sobre o projeto e a organização curricular
nacional em detrimento de questionamentos diretos e específicos sobre a ação de um ou de
outro docente. Trata-se, pois, de reconhecermos que a descolonização da educação aponta
para um problema estrutural (que não é, portanto, nem pontual nem eventual), cujos efeitos
podem ser observados não apenas na formação dada aos alunos do ensino básico, mas,
inclusive, nos cursos de licenciatura responsáveis por formar os educadores  afinal, o
professor ao qual a minha aluna se referia optou por não ensinar a história do movimento
negro brasileiro ou, tanto quanto seus alunos, ele mesmo nunca teve acesso a essa versão dos
fatos?8
Por que ensinamos, ano após ano, as mesmas histórias e estórias nas escolas? O que,
historicamente, ocultamos e por que o fazemos? A exemplo da versão única da Revolução
Constitucionalista, onde mais o repertório escolar e os materiais didáticos fabricaram lacunas?

8
A respeito da lei 11.645/2008 e suas implicações e possibilidades no que tange à formação de professores, vide
SARTESCHI (2016).
28

A título de exemplificação: qual seria o tamanho da surpresa desses estudantes se as provas de


literatura para ingresso nas grandes universidades passassem a admitir as produções do grupo
literário Quilombhoje, fundado por escritores negros na década de 1980, como parte
integrante da historiografia literária brasileira?
Se ao nos valermos do termo “pós-colonial” pretendemos fazer referência ao que, do
colonialismo, permanece após a conquista da independência política e geográfica  negando,
então, qualquer ideia ingênua de superação total desse violento processo de dominação ,
entendemos que elaborar respostas para tais perguntas demanda explorar o que há de colonial
no projeto educacional brasileiro. Consideramos que pensar a descolonização do currículo e
das práticas escolares impõe, assim, o reconhecimento e o questionamento do legado colonial
em nosso modelo de ensino, ou, em outras palavras, exige que a educação seja encarada como
parte constitutiva do projeto de matriz colonial que marca a história do país. Trata-se de um
processo descolonizador a ser consolidado no plano simbólico, isto é, no plano dos saberes,
dos imaginários e dos discursos, os quais, no contexto escolar, se mostram historicamente
guiados pelo eurocentrismo e, consequentemente, pela negação das culturas subalternizadas.
A seguir, aprofundamos esse debate conceitual.

***

Originária do contexto anglo-saxônico e vinculada a um questionamento do domínio


colonial sofrido por ex-colônias britânicas, a expressão “pós-colonial” passa a designar a
partir de 1970 não mais um “conceito histórico ou diacrónico”, mas um “termo usado pela
crítica, em diversas áreas de estudo, para discutir os efeitos culturais da colonização” (LEITE,
2013, p. 11). Desse modo, o termo “pós-colonialismo” passa a ser entendido, por sua vez,
como o conjunto de estratégias (discursivas e performativas) “que frustram a visão colonial”,
que resistem “às ideologias colonialistas” (ibidem). Sob esse prisma, enfatiza-se, portanto, o
viés ideológico dos processos de colonização, visto que, para além da dominação política,
econômica e geográfica, admite-se a existência de uma dominação simbólica (ou de uma
«colonização do pensamento») a ser, igual e necessariamente, combatida.
Concomitantemente ao crescente interesse da academia pelos Estudos Pós-Coloniais,
são diversas as críticas dirigidas a suas conceituações, entre elas a de que seu prefixo, “pós-”,
sugeriria uma superação histórica e cronológica rígida e, portanto, questionável. Acerca desse
apontamento, Stuart Hall esclarece que, ao contrário, o pós-colonial não se afirma um fato em
29

si, restrito a determinados espaços e tempos, mas engloba um conjunto amplo de processos e
dinâmicas sócio-históricas, que dizem respeito, por sua vez, tanto às sociedades colonizadoras
quanto às colonizadas.

O “pós-colonial” certamente não é uma dessas periodizações baseadas em


“estágios” epocais, em que tudo é revertido ao mesmo tempo, todas as
antigas relações desaparecem definitivamente e outras, inteiramente novas,
vêm substituí-las. Obviamente, o rompimento com o colonialismo foi um
processo longo, prolongado e diferenciado, em que os movimentos recentes
do pós-guerra pela descolonização figuram como um, e apenas um,
“momento” distinto. Neste caso, a “colonização” sinaliza a ocupação e o
controle colonial direto. Já a transição para o “pós-colonial” é caracterizada
pela independência do controle colonial direto, pela formação de novos
Estados-nação [...]. É igualmente significativo o fato de ser caracterizada
pela persistência dos muitos efeitos da colonização e, ao mesmo tempo, por
seu deslocamento do eixo colonizador/colonizado ao ponto de sua
internalização na própria sociedade descolonizada. (HALL, 2003, p. 109).

Hall também esclarece que o “pós-colonial” revela-se útil para entender as relações
de poder estabelecidas com o fim dos Impérios, servindo de ferramenta para se pensar, entre
muitos outros aspectos, “a multiplicação em sociedades antes coloniais das desigualdades
associadas às diferenças coloniais” (HALL, 2003 p. 109). Devido a isso, concepções como a
de “entrelugar” (Bhabha), “desconstrução-reconstrução” (Gramsci) ou “dupla inscrição”
(Derrida) são recordadas em seus ensaios, a fim de reforçar, entre outros pontos, a
compreensão da colonização como um “acontecimento de significância global – pelo qual
seria assinalado não o seu caráter universal e totalizante, mas seu caráter deslocado e
diferenciado” (HALL, 2003 p. 123).
Nos Estudos Literários, as teorias pós-coloniais convergem para o reconhecimento
das novas dinâmicas discursivas e simbólicas associadas ao colonialismo. Elas servem, ao
mesmo tempo, à abordagem crítica das obras literárias produzidas antes, durante e, sobretudo,
após esse contexto de dominação, abarcando desde escritos representativos do poder dos
colonizadores até produções dos colonizados dotadas de “certo grau de diferenciação” ou de
“uma total ruptura com os padrões emanados pela metrópole” (BONNICI, 1998, p. 11-12).
Para tanto, esses estudos postulam uma crítica literária igualmente “pós-colonial”, isto é,
“uma abordagem alternativa para compreender o imperalismo e suas influências” (9), que não
sirva somente à leitura dessas obras, mas a uma releitura crítica de um corpus também inscrito
na lógica colonial, e até então incontestado. Na visão de Mata (2008, p. 28), em alusão a esse
repertório, “pode entender-se o pós-colonial no sentido de uma temporalidade que agencia a
30

sua existência após um processo de descolonização – o que não quer dizer, a priori, tempo de
independência real e de liberdade, como prova a literatura que tem revelado e denunciado a
internalização do outro no pós-independência”.
Ao transpormos esse debate para o contexto do ensino-aprendizagem, é possível
concluir que uma perspectiva pós-colonial de educação pauta-se pelo reconhecimento da
persistência de um legado colonial na esfera escolar, assim como pela necessidade de
formulação de teorias e de práticas didático-pedagógicas que contestem os resquícios de tal
dominação simbólica. Em síntese, ela se configura uma visão de ensino orientada por duas
premissas fundamentais: (i) a Educação  em países de passado colonial, em geral, e no
Brasil, em particular  encontra-se inscrita, ao longo da História, em uma lógica colonial
sendo, portanto, influenciada pelo colonialismo; e (ii) contestar essa lógica requer tanto novos
repertórios escolares quanto novas ferramentas pedagógicas.
No contexto brasileiro, as leis federais nº 10.639/03 e nº 11.645/08, que, devido a
lutas dos movimentos indígena e negro, tornam obrigatório, em toda a educação básica, o
ensino da História e da Cultura indígena e afro-brasileira (com destaque ao lugar das culturas
africanas na formação da sociedade nacional), servem de exemplo dessa contestação de
heranças coloniais na educação, uma vez que elas questionam a violência simbólica e o
silenciamento sofridos pelas culturas historicamente subalternizadas no Brasil, as quais
foram/são alijadas dos currículos escolares. Embora cerca de 50% da população brasileira se
declare negra ou parda, e ainda que os povos indígenas do país se distribuam entre mais de
200 etnias, nota-se nos repertórios e nos manuais escolares uma acentuada ausência de suas
histórias e estórias, que perdem lugar para uma visão eurocêntrica de organização escolar. É,
pois, à luz de medidas como as leis supracitadas, marcadas pela busca de uma revisão e de
uma ampliação do repertório escolar, de modo a torná-lo mais plural, que conduzimos nossas
reflexões.
Em nossa leitura, o principal aspecto a ser desestabilizado por uma educação
descolonial9 é o eurocentrismo, uma perspectiva de mundo e de cultura que mantém a esfera

9
Há nos Estudos Pós-coloniais o uso frequente da expressão “decolonial”/ “decolonialidade” no lugar de
“descolonial”/ “descolonização”. Mota Neto (2018) explica que “por descolonização se indica um processo de
superação do colonialismo, geralmente associado às lutas anticoloniais no contexto de estados concretos, ao
passo que decolonialidade se refere ao processo que busca transcender historicamente a colonialidade, isso é,
subverter o padrão de poder colonial, que permaneceu mesmo após o fim da situação colonial” (p. 3). Todavia,
para os fins deste trabalho, é pouco relevante essa distinção, visto que ao fazermos referência à “descolonização”
estamos negando, do mesmo modo, a superação do colonialismo, não havendo a necessidade de adoção de outro
conceito/termo. Em nossa argumentação, “descolonial” e “decolonial” operam como sinônimos.
31

escolar pressa às amarras do que Semprini (1999, p. 81) denomina de “epistemologia


monocultural”. No Brasil, uma proposta pedagógica formulada e divulgada pelo
Departamento de Ciências Sociais do Núcleo Cultural Afro-Brasileiro (BA) em conjunto com
a Universidade Federal da Bahia (UFBA) ainda na década de 1980, ou seja, num contexto
bastante anterior à aprovação das leis 10.639/03 e 11.645/08, chamava a atenção, justamente,
“[ao] etnocentrismo e [ao] racismo transmitidos pelo processo educacional” (CRUZ, 1987, p.
74), questionando, pois, o monoculturalismo escolar. Entre diretrizes curriculares e
metodológicas, a denominada “Pedagogia Interétnica” (1978)10, resultado de pesquisas
coordenadas pelos sociólogos Roberto Santos e Manoel de Almeida Cruz, apresentava
caminhos para se valorizar as culturas dos “grupos dominados”, no caso, os negros e os
indígenas, em resposta à hegemonia do “grupo dominante” no campo do saber, sob o
argumento de que “o mundo ocidental sempre se colocou no centro do universo, julgando-se
senhor da verdade, atribuindo a si a exclusividade do pensamento e da cultura” (CRUZ, 1987,
p. 76).
Novamente pensando uma articulação com as teorias de viés pós-colonial, é previsto
que esse tipo de resposta “prática” à hegemonia do pensamento europeu/ocidental (não
apenas na ciência, mas também na política, na economia etc.) voltem-se, entre outros
aspectos, à exaltação dos “saberes subalternos” (ou das intituladas “epistemologias/vozes do
Sul”, em oposição a um Norte menos geográfico e mais metafórico, branco e imperial [DE
SOUSA SANTOS & MENESES, 2010]). É nesse sentido que os Estudos Pós-Coloniais,
enquanto aporte teórico, mostram-se como importantes referenciais para a análise de ações
educacionais transgressoras, a exemplo do teor do modelo didático-pedagógico supracitado e
das leis por nós estudadas. A ideia de descolonização epistêmica, tal qual debatida por essa
vertente teórica, faz-se importante à medida que nos serve a uma reflexão mais específica
acerca da filosofia do conhecimento que orienta a validação dos saberes escolares. Em
síntese, nas palavras de Homi Bhabha:

A crítica pós-colonial é testemunha das forças desiguais e irregulares de


representação cultural envolvidas na competição pela autoridade política e

10
A dissertação de mestrado de Lima (2004), intitulada “Uma proposta pedagógica do movimento negro no
Brasil: pedagogia interétnica de Salvador, uma ação de combate ao racismo” e defendida junto à Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC) , menciona, para além da “Pedagogia Interétnica”, outras duas propostas
pedagógicas formuladas em diálogo com o movimento negro: a Pedagogia Multirracial, no Rio de Janeiro (1986)
e a Pedagogia Multirracial e Popular do NEN, em Santa Catarina (2001). Pesquisa disponível em
<http://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/86988>. Acesso em <07/01/2019>.
32

social dentro da ordem do mundo moderno. As perspectivas pós-coloniais


emergem do testemunho colonial dos países do Terceiro Mundo e os
discursos das “minorias” dentro das divisões geopolíticas do Leste e Oeste,
Norte e Sul. Elas intervêm naqueles discursos ideológicos da modernidade
que tentam dar uma “normalidade” hegemônica ao desenvolvimento
irregular e às histórias diferenciadas de nações, raças, comunidades, povos.
[...]. (BHABHA, 2007, p. 239).

Dessarte, o acesso à literatura de matriz ou de inspiração europeia nas escolas figura


um problema a partir do momento em que se torna sinônimo de “normalidade”. O
silenciamento não apenas histórico, mas também literário dos negros e dos indígenas no
Brasil contribuiu e contribui para uma marcação negativa do “Outro”, que se consolida como
inexistente ou desimportante. Nas Ciências Sociais, Boaventura de Sousa Santos vale-se da
ideia de um abismo metafórico para descrever essa impossibilidade de coexistência entre o
imperial e o colonizado. Segundo ele, o pensamento ocidental moderno é um “pensamento
abissal”, o que remete à subsistência, na contemporaneidade, das “linhas cartográficas
‘abissais’ que demarcavam o Velho e o Novo Mundo na era colonial” (DE SOUSA SANTOS,
2007, p. 3), responsável por excluir o “Outro”:

O pensamento moderno ocidental é um pensamento abissal. Consiste num


sistema de distinções visíveis e invisíveis, sendo que as invisíveis
fundamentam as visíveis. As distinções invisíveis são estabelecidas através
de linhas radicais que dividem a realidade social em dois universos distintos:
o universo “deste lado da linha” e o universo “do outro lado da linha”. A
divisão é tal que “o outro lado da linha” desaparece enquanto realidade,
torna-se inexistente, e é mesmo produzido como inexistente. Inexistência
significa não existir sob qualquer forma de ser relevante ou
compreensível. Tudo aquilo que é produzido como inexistente é excluído de
forma radical porque permanece exterior ao universo que a própria
concepção aceite de inclusão considera como sendo o Outro. A característica
fundamental do pensamento abissal é a impossibilidade da copresença dos
dois lados da linha. Este lado da linha só prevalece na medida em que esgota
o campo da realidade relevante. Para além dela há apenas inexistência,
invisibilidade e ausência não-dialéctica. (destaque nosso). (DE SOUSA
SANTOS, 2007, pp. 3-4)

Embora o pesquisador centre sua discussão em torno da constituição e do


funcionamento da ciência (em contraposição aos conhecimentos populares) e do direito (em
especial, do direito internacional) na modernidade, não é difícil articular suas ideias à
produção de inexistência no campo literário. A necessidade de se impor, através de leis, a
introdução curricular de um repertório que se mostrasse representativo da pluralidade cultural
brasileira confirma o “não existir” histórico desses textos, considerados não legítimos frente a
33

um cânone majoritariamente eurocêntrico. Nesse sentido, descolonizar o ensino de literatura


requer explorar quais são os autores e as obras relegados, nos livros didáticos, por exemplo,
ao espaço que Santos denomina de “zona colonial” (hoje, uma zona não mais territorial, mas
metafórica), situada no “outro lado da linha”, que figura, por excelência, como “o universo
das crenças e dos comportamentos incompreensíveis, que de forma alguma podem ser
considerados como conhecimento [...]” (DE SOUSA SANTOS, 2007, p. 8).
Ao encontro de nossos apontamentos, observa-se que pesquisadores da área de
Educação têm buscado se apropriar desses e de outros pensamentos de Boaventura de Sousa
Santos para aprofundar o debate sobre a educação intercultural. No que concerne
especificamente ao contexto educacional brasileiro, merece destaque o livro O movimento
negro educador (2017), de Nilma Lino Gomes, prefaciado, inclusive, pelo pensador
português. Nele, sua autora, ao defender o argumento de que o movimento negro brasileiro
afirma-se “um importante ator político que constrói, sistematiza e articula saberes
emancipatórios” (GOMES, 2017b, p. 24), inspira-se nas teorias de De Sousa Santos e propõe,
por exemplo, uma “pedagogia das ausências e das emergências” (p. 41), que, de forma
simplificada, corresponderia, por um lado, ao reconhecimento da “produção de não
existência” de determinados saberes na esfera escolar  em específico, os saberes dos grupos
não hegemônicos e contra-hegemônicos , e, por outro, ao inconformismo ante a tais lacunas
e às expectativas de que estas sejam superadas através da abertura a um campo de
possibilidades concretas de novos saberes (pp. 40-46). Analogamente a Gomes, Candau
(2016), a partir da conjugação de diferentes conceituações do mesmo autor, sintetiza
justamente que:

A educação intercultural na perspectiva crítica supõe identificar o que foi


produzido como “ausências”, tanto no plano epistemológico como das
práticas sociais e, ao mesmo tempo, reconhecer as “emergências” de
conhecimentos, práticas sociais e perspectivas orientadas à construção de
sociedades equitativas e justas. Esta não é uma capacidade espontânea, que
brota “naturalmente”. Em geral, estamos socializados para reforçar aspectos
que são confluentes com a lógica dominante. (CANDAU, 2016, p. 28).

No Brasil, essas lacunas consequentes da “confluência com a lógica dominante”,


mencionada por Candau, foram e continuam sendo (como nos mostram as origens e os
desdobramentos das leis 10.639/03 e 11.645/08) bastante discutidas, por exemplo, em relação
ao ensino de História. Grupioni (1995), a partir da análise das imagens e das informações
34

sobre as sociedades indígenas contidas em materiais didáticos da disciplina, chama a atenção


para o fato de haver “dificuldades em lidar com a existência de diferenças étnicas e sociais na
sociedade brasileira atual” (p. 487), isto é: segundo o pesquisador, os índios, assim como os
negros, quando recordados pelas narrativas histórias, costumam figurar como personagens
inscritos no passado, e não como sujeitos contemporâneos, o que corrobora, precisamente, a
versão do colonizador.

Pois bem, chegamos à primeira crítica ao livro didático: índios e negros são
quase sempre enfocados no passado. Falar em índios é falar do passado, e
fazê-lo de uma forma secundária: o índio aparece em função do colonizador.
Mas que passado é este?
E aqui a segunda crítica: não se trata de uma história em progresso, que
acumula e que transforma. É uma história estanque, marcada por eventos,
eventos significativos de uma historiografia basicamente européia (Cf.
Telles, 1987).
Vejamos dois exemplos: poucos livros mencionam a questão da origem dos
povos indígenas no continente americano. Para a maioria dos manuais, "a
presença do índio neste continente não é um problematizada, é um fato
consumado" (Pintoe Myazaki, 1985:170). [...]
Como entender, e aqui apresentamos o segundo exemplo, a data de 1492 ou
1500 como uma descoberta? O continente americano havia sido descoberto e
habitado há milhares de anos atrás, quando as primeiras levas de homens
saíram da Eurásia, passando pelo estreito de Bering e adentrando o
continente americano pelo Norte. [...] quando os europeus aqui chegaram, o
continente americano vivia uma dinâmica própria, que foi substancialmente
alterada com sua chegada. Mas não havia um mundo a ser criado ou à espera
de seu descobridor. O conceito de descoberta só faz sentido se o
entendermos dentro da perspectiva da historiografia européia.
Ao desconsiderar a história do continente, os manuais didáticos erram pela
omissão, redução e simplificação ao não considerar como relevante todo o
processo histórico em curso no continente. Chegamos, assim, a uma terceira
crítica à forma como os livros didáticos tratam os índios. Como isto se dá?
Primeiramente pela forma como estas sociedades são tratadas: geralmente
pela negação de traços culturais considerados significativos: falta de escrita,
falta de governo, falta de tecnologia para lidar com metais, nomadismo, etc.
Um segundo modo de operação deste mecanismo de simplificação é a
apresentação isolada e des-contextualizada de documentos históricos que
falam sobre os índios. Assim, cartas, alvarás, relatos de cronistas e viajantes
são fragmentados, recortados e, porque não dizer, adulterados e apresentados
como evidências, como relatos do passado, sem que sejam fornecidos ao
aluno instrumentos para que ele possa filtrar aquelas informações e
reconhecê-las dentro do contexto no qual elas foram geradas. (GRUPIONI,
1995, pp. 487-488).

Ao relacionarmos as reflexões de Grupioni (1995) aos debates específicos sobre o


ensino de literatura no Brasil, também o lugar não reservado na historiografia literária
35

nacional à escritora negra maranhense Maria Firmina dos Reis (1835-1917), por exemplo,
considerada a primeira romancista brasileira, parece-nos um caso ilustrativo da ideia de “linha
abissal”, de “zona colonial” e/ou de “produção de ausências”, dado que recuperar seu
percurso nas “histórias [/fontes documentais] da literatura brasileira dos séculos XIX e XX
não é tarefa fácil” (MENDES, 2006, p. 43). De forma análoga, a abordagem escolar de dois
escritores afro-brasileiros canônicos do século XIX, Cruz e Sousa (1861-1898) e Machado de
(1839-1908), revela-se igualmente próxima da dita “zona colonial” do ensino11. Hoje, não são
poucos os trabalhos acadêmicos que refutam a ideia de que ambos teriam permanecido parcial
ou completamente alheios a questões raciais e/ou abolicionistas (vide CUTI, 2009; PINTO,
2014; CHALHOUB & PINTO (Orgs.), 2016; DUARTE, 2007; MAGALHÃES JÚNIOR,
1957). Todavia, percebe-se na apresentação que os manuais escolares brasileiros fazem desses
escritores algumas das implicações dos apagamentos históricos que debatemos até então, pois
tanto a introdução de suas biografias quanto a coletânea de seus textos costumam ocultar
produções atreladas a suas atuações e/ou a seus posicionamentos sociais e políticos, em nome
de uma seleção que ecoe somente pontos de contato com as escolas literárias europeias ou,
mais precisamente, com a literatura portuguesa. Durante a triagem dos livros didáticos que
viriam a compor o nosso corpus de análise, etapa em que tivemos acesso às coleções
aprovadas pelas edições de 2012 e de 2015 do Programa Nacional do Livro Didático
(PNLD), notamos que a introdução de Cruz e Sousa, por exemplo, permanece bastante restrita
à máxima “maior escritor do Simbolismo no Brasil”, sendo poucos os livro que apresentam o
autor como um poeta negro. Vê-se, nos saberes escolares, uma naturalização da ausência da
negritude e de discursos políticos de resistência. Também o modo segundo o qual Lima
Barreto (1881-1922) e sua obra são historicamente abordados no Brasil atesta apagamentos.
Na ocasião de lançamento da biografia mais recente do autor, intitulada Lima Barreto – um
triste visionário (2017), a pesquisadora Lilia Moritz Schwarcz relatou, em distintas ocasiões,
o “imenso branqueamento” por ela notado nas fotografias disponíveis no acervo do escritor:
“Ele definia sua cor como ‘azeitona escura’. Na primeira imagem do manicômio, ele aparece

11
No artigo “A abordagem da temática racial no ensino da literatura canônica: Algumas reflexões”, a
pesquisadora Nara Lasevicius Carreira (2018) aprofunda tal debate, com base, inclusive, na análise das mesmas
coleções por nós estudadas, ou seja, os livros didáticos aprovados pelo PNLD 2015.
36

como branco, na segunda como pardo. Em quatro anos, ele mudou de cor. Como isso é
possível? Essa foi uma questão inclusive para a capa do livro”12.
Conforme afirmamos no início deste capítulo, não se trata de ocorrências restritas à
esfera escolar, mas de casos alinhados a lacunas que se fazem presentes na formação dos
próprios educadores, ou seja, na esfera acadêmica. Prova disso está no fato de que as leis
10.639/2003 e 11.645/2008, ao forçarem mudanças também na estruturação dos cursos de
licenciatura de todo o país, evidenciaram, e continuam evidenciando, a mesma negação
historiográfica no que engloba as literaturas africanas, por exemplo. O relato de Natasha
Magno Francisco dos Santos, estudiosa da obra de Mia Couto e criadora do GELCA - Grupo
de Estudos de Culturas e Literaturas Africanas, do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL)
da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)  a saber, um grupo fundado e
composto exclusivamente por estudantes de graduação e de pós-graduação , aponta o
desinteresse do Departamento de Teoria Literária da instituição, à época (meados de 2010),
por essas produções. Em suas palavras, “o mais triste foi perceber que não só nenhum
professor pesquisava diretamente sobre esse assunto, mas que muitos não se interessavam
sobre qualquer produção que viesse do continente africano” (SANTOS, 2018, s/p). Após
intensa luta movida pelo grupo, que recorreu, inclusive, às premissas das leis supracitadas
para justificar e embasar suas reivindicações, ocorreu, em 2016 (isto é, passados seis anos do
surgimento do GELCA), a contratação de uma docente especialista em literaturas africanas.
Depreende-se, pois, que, até então, o instituto não contava com professores aptos a ministrar
parte significativa dos conteúdos prescritos pela lei 10.639/2003, devido, fundamentalmente,
à presença de um abismo simbólico responsável por distanciar as literaturas canônicas de
Língua Portuguesa (brasileira e europeia) das produções lusófonas africanas.
Conclui-se, então, que esse tipo de invisibilidade produzida, que visa a atender
(consciente ou inconscientemente) a um projeto epistemológico e educacional de viés
colonial, é orquestrado, em grande medida, na e pela academia  em outras palavras, “o que
não existe é, na verdade, activamente produzido como tal, isto é, como uma alternativa não-
credível ao que existe” (DE SOUSA SANTOS, 2002, p. 246). O pesquisador Mário Augusto
Medeiros da Silva (2011), ao discorrer sobre a invisibilidade sofrida especificamente pela
literatura negra e periférica no Brasil, também afirma que “não apenas a produção,
12
Entrevista: “Um Lima Barreto triste, visionário e ambivalente por Lilia Moritz Schwarcz”. Disponível em
<https://oglobo.globo.com/cultura/livros/um-lima-barreto-triste-visionario-ambivalente-por-lilia-moritz-
schwarcz-1-21514225>. Acesso em <17/08/2018>.
37

distribuição e recepção dessa confecção literária é marginal [...]”, mas “também a avaliação
crítica dessa Literatura é marginalizada” (DA SILVA, 2011, p. 213). Uma rápida busca em
bases de dados nacionais pela fortuna crítica de Carolina Maria de Jesus (1914-1977), por
exemplo, escritora negra que gozou de certo reconhecimento na cena intelectual13, torna ainda
mais atual esse argumento, haja vista os estudos sobre a autora terem ganhado força apenas na
última década, possivelmente impulsionados pela lei 10.639/03. Com base nessas
considerações, é pertinente questionar:

A que se deve, então, esse procedimento contumaz da crítica que, no limite,


produz a invisibilidade e a diluição? A que serve a lacuna? Ela é pautada
pela dinâmica das relações sociais racializadas? Neste caso, as ideias de
preconceito racial ou racismo seriam as respostas mais diretas e óbvias; e,
por isso mesmo, as mais combatidas. Supondo não ser este essencialmente o
caso, então seriam considerados obras e autores, de ordinário, ruins? Antes,
para pensar com as categorias de Candido, manifestações literárias que
propriamente Literatura sistematizada? Nesse sentido, esforços isolados,
obras e autores menores e ruins e/ou de estatura reduzida não mereceriam
crítica ou verbetes catalográficos? Mas, para tanto, isso teria de ser
enunciado e discutido pelos profissionais do ramo, exigindo a sofisticação
que o tema requer. Até o momento, sobre este assunto, a crítica literária e a
técnica enciclopedista brasileira têm sido pautadas menos pelo método
científico e mais pelo gosto individual. A análise da lacuna, portanto,
pressupõe uma crítica dos condicionamentos sociais do julgamento. (DA
SILVA, 2011, p. 214).

No desenvolvimento de sua argumentação, Da Silva (2011), em concordância com


alguns pressupostos de Bourdieu acerca do sistema intelectual e das condições e
determinações sociais das produções culturais, enfatiza que “questionar as razões da lacuna
crítica em relação a essas confecções literárias se mostra, portanto, sociologicamente
relevante” (p. 216), reforçando, assim, a possível relação estabelecida entre tais apagamentos
e as dinâmicas raciais constitutivas da história brasileira. Dessarte, percebe-se a partir de suas
conclusões que a invisibilidade e as ausências da história literária da cultura negra refletiriam
a invisibilidade e as ausências da história social e política do negro em um sentido mais
amplo.
13
De acordo com o acervo do jornal O Estado de S. Paulo do ano de 1960 [Disponível em
<https://acervo.estadao.com.br/noticias/acervo,carolina-maria-de-jesus-a-escritora-da-favela,12001,0.htm>.
Acesso em <07/08/2018>], ano do lançamento de sua obra célebre Quarto de Despejo – diário de uma favelada,
a autora, única mulher presente nos rankings em questão, chegou a liderar tanto a lista geral de livros mais
vendidos no Brasil, deixando para trás nomes como o de Jean-Paul Sartre, quanto a nacional, ficando à frente de
Gabriela (1958), de Jorge Amado, por exemplo. Analogamente às biografias de seus alguns de seus
contemporâneos renomados, como o próprio Jorge Amado ou Clarice Lispector, De Jesus foi traduzida para
diversos idiomas.
38

Para sintetizar o teor de nossos apontamentos sobre o lugar da questão racial na


abordagem literária de autores afrodescendentes, aproximamo-nos de indagações feitas por
bell hooks (2017) ao pensar a inclusão de escritoras negras nos Estudos Feministas. No
esforço de instituir um currículo multicultural no Oberlin College (EUA), a pesquisadora
organizou uma série de seminários de discussão de práticas multiculturais de ensino, abertos
tanto aos docentes da instituição quanto a docentes convidados. Decepcionada, ela elenca,
especialmente no contexto dos “Estudos da Mulher”, duas “modificações pró-forma de
currículo” evidenciadas nos relatos de experiência desses professores: de um lado, e com
bastante frequência, certa tendência em tratar “das mulheres de cor somente no finalzinho do
semestre” ou por meio da junção de “tudo o que se refere à raça e às diferenças” numa parte
do curso; de outro, a exemplo do que descrevemos sobre o discurso didático que abarca Cruz
e Sousa, Machado de Assis e Lima Barreto no Brasil, a ausência de uma “consciência de
raça”, a respeito da qual ela questiona:

Quando uma professora de inglês, branca, inclui uma obra de Toni Morrison
no roteiro do curso, mas fala sobre ela sem fazer nenhuma referência à raça
ou à etnia, o que isso significa? Já ouvi várias mulheres brancas “se
gabarem” de ter mostrado aos alunos que os escritores e escritoras negros
são tão “bons” quanto os do cânone dos homens brancos, mas elas não
chamam a atenção para a questão da raça. É claro que essa pedagogia não
questiona as parcialidades estabelecidas pelos cânones convencionais (ou,
quem sabe, por todos os cânones). É, ao contrário, mais um tipo de
modificação pró-forma. (HOOKS, p. 55, 2017).

Os indagamentos de bell hooks, somados aos exemplos das abordagens didático-


pedagógicas dos autores brasileiros supracitados, leva-nos a afirmar, uma vez mais, que a
história literária única, herdada do eurocentrismo, é, afinal, marcada pela naturalização da
branquitude. Não se trata de sugerir, para as obras de autoria negra (ou indígena, ou
feminina...), leituras de viés exclusivamente racial, mas de recordar que elas devem passar
também pela questão da raça (ou da etnia, ou do gênero...). Afinal, a negação da pluralidade
cultural integra as “parcialidades do cânone” mencionadas por hooks, de modo que a
desconsideração de aspectos identitários concernentes aos textos e/ou a seus autores pouco
contribui para o enfrentamento do projeto e da visão colonial.
À luz do pesquisador Walter Mignolo (2004; 2017), associamos essa negação
histórica, tanto das literaturas de grupos subalternizados quanto do componente racial ou
étnico de determinados textos desse repertório, a um processo de “opressão epistêmica”. Em
39

consonância com Aníbal Quijano (2005), pensador peruano que relaciona a “colonialidade”
àquilo de “colonial” que permanece mesmo após a descolonização, que transcende o
colonialismo histórico (QUIJANO, 2005), Mignolo propõe que a “colonialidade” seria, afinal,
o lado obscuro da modernidade, responsável por instituir hierarquias em diferentes setores
sociais, entre elas, para além da hierarquia epistêmica, também uma hierarquia estética, que
“administra os sentidos e molda as sensibilidades ao estabelecer as normas do belo e do
sublime, do que é arte e do que não é, do que será incluído e do que será excluído, do que será
premiado e do que será ignorado” (MIGNOLO, 2017, p. 11). Observam-se, pois, “nós
histórico-estruturais” de opressão que desafiam a ideia de diversidade ao definirem o que
deve ser aceito como universal. Urge, então, a busca por “opções descoloniais”, por
“respostas às inclinações opressivas e imperiais dos ideais europeus modernos projetados para
o mundo não europeu, onde são acionados” (MIGNOLO, 2017, p. 2).

Hoje, a descolonização já não é um projecto de libertação de libertação das


colónias, com vista à formação de Estados-nação independentes, mas sim o
processo de descolonização epistémica e de socialização do conhecimento.
A “diversidade epistêmica” será o horizonte para o qual convergem o
“paradigma da transição” [ou um paradigma de conhecimento prudente para
uma vida decente], proposto por Santos, e “um outro paradigma” que está a
surgir da perspectiva de conhecimentos e racionalidades subalternos
[Mignolo, 2000, 2003]. (MIGNOLO, 2004, p. 668).

Tendo em vista, portanto, o nosso interesse por situar a diversidade cultural como o
“paradigma da transição”  “transição” de uma educação colonial para uma educação pós-
colonial , chegamos aqui à discussão do ponto que mais fundamenta esta seção: o
enfrentamento do eurocentrismo na educação. Para que a diversidade seja o horizonte das
mudanças escolares, o repertório e as narrativas eurocêntricas que historicamente dão forma
ao texto escolar precisam ser colocados em xeque. Recuperando o nosso exemplo de abertura
acerca do apagamento do grupo Legião Negra das narrativas sobre a Revolução
Constitucionalista de 1932, ocorrida em São Paulo, não se preconiza a substituição de uma
versão da história por outra, mas sim um movimento de denúncia e de recusa de lacunas e de
inexistências socioculturais. Vê-se, inclusive, nas próprias diretrizes de implementação da lei
10.639/2003 a explicitação dessa perspectiva: “é importante destacar que não se trata de
mudar um foco etnocêntrico marcadamente de raiz europeia por um africano, mas de ampliar
o foco dos currículos escolares para a diversidade cultural, racial, social e econômica
40

brasileira” (BRASIL-MEC/CNE, 2004a, p. 8). Com base nessas formulações, dialogamos


com Aníbal Quijano (2005) e com Benjamin Abdala Júnior (2012), respectivamente:

[O eurocentrismo] Não se trata, em conseqüência, de uma categoria que


implica toda a história cognoscitiva em toda a Europa, nem na Europa
Ocidental em particular. Em outras palavras, não se refere a todos os modos
de conhecer de todos os europeus e em todas as épocas, mas a uma
específica racionalidade ou perspectiva de conhecimento que se torna
mundialmente hegemônica colonizando e sobrepondo-se a todas as demais,
prévias ou diferentes, e a seus respectivos saberes concretos, tanto na Europa
como no resto do mundo. (QUIJANO, 2005, p. 126).

Falar de eurocentrismo não significa discutir a qualidade e a relevância dos


saberes de origem européia, mas simplesmente a pretensão de que os
mesmos tendem a ser sempre universais e superiores em relação aos saberes
criados pelos grupos humanos espalhados pelo planeta. Olhares de alguma
forma associados ao mito eurocêntrico estão em toda parte, de forma
evidente ou implícita, realizando uma classificação de culturas e espaços.
(ABDALA JUNIOR, 2012, p. 12).

Sob esse prisma, enfatizamos o eurocentrismo na educação como uma ideologia que
remete à mediação colonial das relações sociais e de poder que determinam hierarquicamente
os currículos, condicionando-os a uma narrativa única. Os conteúdos e os cânones escolares
são resultado, por conseguinte, dessas dinâmicas, não devendo ser encarados como “coisas”,
como simples “listas” de saberes, mas como parte constituinte de um complexo sistema de
regulação (SILVA, 2017).
No Brasil, o pesquisador da área de educação Tomaz Tadeu Silva tem aprofundado o
debate sobre as relações estabelecidas entre currículo, poder e identidades sociais. Pensando o
currículo como uma forma de representação  “representação” entendida mais como a
produção/a validação da “realidade”, e menos como reflexo do “real” , o autor explicita
que:

As narrativas contidas no currículo trazem embutidas noções sobre as quais


grupos sociais podem representar a si e aos outros e quais grupos sociais
podem apenas ser representados ou até mesmo serem totalmente excluídos
de qualquer de qualquer representação. (SILVA, 2017, p. 190).
[...]
É no currículo que o nexo entre representação e poder se realiza, se efetiva.
As imagens, as narrativas, as estórias, as categorias, as concepções, as
culturas dos diferentes grupos sociais – e sobre diferentes grupos sociais –
estão representados no currículo de acordo com as relações de poder entre
esses grupos sociais. Essas representações, por sua vez, criam e reforçam
relações de poder entre eles. As representações são tanto o efeito, o produto
41

e o resultado de relações de poder e identidades sociais quanto seus


determinantes. (p. 194).

É simples concluir, a partir dos excertos, que em um país marcado por intensas
desigualdades, as representações dos diferentes grupos sociais, no contexto educacional,
sofrerão das mesmas disparidades. Porém, ao encontro da forma pela qual interpretamos o
papel a ser exercido pelas leis 10.639/2003 e 11.645/2008, as conclusões de Silva (2017)
indicam a possibilidade de confrontação de tal predileção por determinados grupos
socioculturais em detrimento de outros: “é através das narrativas, entre outros processos, que
o poder age para fixar as identidades dos grupos sociais subalternos como ‘outro’. Mas é
também através das narrativas que esses grupos podem afirmar identidades que sejam
diferentes daquelas fixadas pelas narrativas hegemônicas (SAID, 1993: XII)” (SILVA, 2017,
p. 198).
Tomemos como exemplo as potencialidades da introdução das literaturas indígenas
nos livros didáticos de literatura. Para além da positiva ampliação da experiência estética dos
estudantes, elas podem servir como contraponto às narrativas canônicas do “Quinhentismo”
(como veremos posteriormente), escola literária que foi/é responsável por fixar, em grande
medida, a ideia de passividade e animalidade usualmente associada aos povos indígenas.
Sobre tais “narrativas do descobrimento”, cabe igualmente assinalar:

Uma mostra da política de racismo e discriminação que atravessam a


maioria dos livros didáticos são as descrições e qualitativos com os quais se
nomeiam invasões coloniais e espoliações de recursos naturais de numerosos
povos do Terceiro Mundo. Basta uma repassada pelos livros didáticos para
nos fazer ver de que forma [esses] fenômenos [...] aparecem nomeados como
atos de descobrimento, aventuras humanas, feitos heroicos, desejos de
civilizar seres primitivos ou bárbaros, de fazê-los participar da verdadeira
religião etc. [...] A preponderância de visões e/ou silenciamentos da
realidade que recorrem a estratégias como as mencionadas contribuem para
configurar mentalidades etnocêntricas [...]. (SANTOMÉ, 2017, pp. 164-
165).

Portanto, a adição dessas “novas” literaturas/narrativas, a exemplo das indígenas,


tem a ver, também, com uma nova afirmação de identidades, que pressupõe o deslocamento
das minorias da condição de objetos da representação para a condição de sujeitos que
enunciam, ou, nas palavras de Bhabha (2007), a “passagem do cultural como objeto
epistemológico à cultura como lugar enunciativo, promulgador”, de modo que “objetificados
possam ser transformados em sujeitos da sua história e da sua experiência” (BHABHA, 2007,
42

248). Nota-se, inclusive, que esse movimento de adição impõe, necessariamente, movimentos
de desmistificação do cânone literário, pois requer, por exemplo, a contestação do caráter
meramente descritivo de documentos históricos, como as cartas de Pero Vaz de Caminha.
Assim, em consonância com a problemática da contingência da diferença cultural para o
discurso histórico, questão profundamente discutida por Bhabha (2007), entendemos que

Reconstituir o discurso da diferença cultural exige não apenas uma mudança


de conteúdos e símbolos culturais; uma substituição dentro da mesma
moldura temporal de representação nunca é adequada. Isto demanda uma
revisão radical de temporalidade social na qual histórias emergentes possam
ser escritas; demanda também a rearticulação do “signo” no qual se possam
inscrever identidades culturais. E a contingência como tempo significante de
estratégias contra-hegemônica não é uma celebração da “falta” ou do
“excesso”, ou uma série autoperpetuadora de ontologias negativas. Esse
“indeterminismo” é a marca do espaço conflituoso mas produtivo, no qual
arbitrariedade do signo de significação cultural emerge no interior das
fronteiras regulares do discurso social. (BHABHA, 2007, p. 240).

Em diversas passagens de sua obra, Bhabha associa tal “rearticulação do signo” a um


retorno da agência subalterna, capaz de inverter a passividade histórica e de erodir as grandes
narrativas (BHABHA, 2007, p. 270). A descrição que o autor faz do “desafio ao sincronismo
na ordenação social dos símbolos” serve-nos a uma reflexão sobre o poder simbólico do
cânone escolar, pelo fato de ele ocupar, no contexto das nossas reflexões, o lugar dos
“símbolos de autoridade” a serem reordenados e renegociados (pp. 266-268). Nesse sentido,
em termos pedagógicos, para além da introdução de textos de autores indígenas, negros e
africanos nos livros didáticos, entendemos que a implementação das leis envolve formas de
ler “descoloniais”, ou seja: estratégias (pós-coloniais) de releitura/de reinterpretação de textos
clássicos, que atuem “no interior das fronteiras regulares do discurso social”, mencionadas
por Bhabha, a fim de desnudar, por fim, “os efeitos da colonização na produção literária”
(BONNICI, 2012, posição 691). Isso significa dar visibilidade a eventuais paradigmas e
ideologias coloniais que se façam presentes nesses textos, mas que ainda não tenham sido
devidamente discutidos e destacados pela leitura escolar; significa corrigir eventuais
deformações ou ocultações da história dos grupos marginalizados, corrigir aquilo que
Santomé (2017) denomina de “atitude de tergiversação”, “o caso mais perverso de tratamento
curricular, já que se trata de construir uma história na medida certa para enquadrar e tornar
naturais as situações de opressão” (SANTOMÉ, 2017, p. 169).

***
43

Exploraremos com mais atenção as potencialidades de tais “opções descoloniais” de


ensino de literatura no decorrer da análise dos livros didáticos. Por ora, recentes
acontecimentos políticos envolvendo a educação no Brasil, como a formulação da Base
Nacional Comum Curricular (BNCC), dão-nos a dimensão dos possíveis embates
(pedagógicos e políticos) estabelecidos entre teoria e prática quando nos propomos a repensar
o cânone literário e a influência histórica do eurocentrismo na esfera escolar, especialmente
ao se ter em mente as variantes “poder”, “relações sociais” e “identidades” que orientam esse
processo.
Em artigo publicado na revista Cadernos de Letras da UFF, sob o título “Por que
(não) ensinar o cânone escolar: a(s) literatura(s) nas versões preliminares da BNCC” (2017)14,
objetivamos descrever e analisar os movimentos de inclusão e de exclusão das literaturas
indígenas brasileiras, afro-brasileira e africanas ocorridos durante a fase de elaboração da
Base Curricular do Ensino Médio. Destacamos, a seguir, os pontos considerados mais
interessantes à presente discussão, bem como alguns dados complementares.
A primeira versão do documento, divulgada pelo Ministério da Educação (MEC) no
mês de Outubro de 2015, respondia à obrigatoriedade de ensino desses conteúdos, mas, de
forma inédita, apontava para o apagamento curricular de relevantes dados e referências da
história e das culturas europeias. No componente Língua Portuguesa, havia a recomendação
da leitura e da análise de “obras africanas de língua portuguesa”, da “literatura indígena”
(BRASIL/MEC, 2015, p. 61), e de “produções literárias de autores da literatura brasileira
contemporânea” e “produções literárias de autores da literatura brasileira dos séculos XVI a
XX” (pp. 63-65), sem nenhuma menção à literatura portuguesa, em nenhuma das séries
escolares do Ensino Médio. Se tomarmos como referência, porém, a discussão teórica que
desenvolvemos no decorrer deste capítulo, não é difícil perceber que, ao sugerir a substituição
de um repertório cultural por outro, a BNCC ancorava-se, ao menos inicialmente, em uma
premissa equivocada de diversidade. Por conseguinte, houve uma significativa repercussão
acadêmica e midiática de tais propostas, não apenas no que concerne à área de Letras, mas
também à de História, na qual a mesma perspectiva de apagamento das culturas europeias
fazia-se presente.

14
Artigos disponível em: <http://www.cadernosdeletras.uff.br/index.php/cadernosdeletras/article/view/494>.
Acesso em 01/02/2019.
44

Na ocasião, a Associação Nacional de História (ANPUH) e a Associação Nacional


de Pesquisadores e Professores de História das Américas (ANPHLAC) chegaram a divulgar
notas oficiais com a finalidade de frisar, entre outros pontos, que “é preciso reconhecer a
diversidade de perspectivas como uma marca que caracteriza os campos de pesquisa da
História e seu ensino”, e que contemplar as conexões e os confrontos que envolvem os
espaços europeu e americano “não é incompatível com uma perspectiva crítica ao
eurocentrismo”15.
De encontro às reações supracitadas, e frustrando, assim, as expectativas de correção
advindas do posicionamento dos especialistas das áreas de Letras e de História 
expectativas estas que previam a coexistência de produções europeias e não europeias , a
segunda versão preliminar da BNCC, disponibilizada pelo MEC em Maio de 2016,
surpreendia a muitos educadores, acadêmicos e militantes dos movimentos sociais ao excluir,
do componente Língua Portuguesa, a indicação de obras e de autores africanos e indígenas.
Em seu lugar, retornava a literatura portuguesa, anteriormente ausente, com direito a uma
ênfase à leitura do “cânone ocidental”.
A título de contraste, disponibilizamos na Tabela 1 a relação de unidades
curriculares (com suas respectivas siglas de identificação nos documentos originais) que
integravam a versão 1 (BRASIL/MEC, 2015) e a versão 2 (BRASIL/MEC, 2016) da BNCC,
para tornar mais evidentes esses movimentos de inclusão-exclusão de conteúdos. Listamos a
seguir somente as unidades indicativas de repertório (nacionalidade ou etnia dos autores,
períodos e movimentos literários), desconsiderando as indicativas de trabalho com gêneros
literários ou com aspectos textuais. Também não damos atenção a sugestões ou a indicações
de repertório que se façam presentes nos paratextos da BNCC (textos introdutórios etc.), por
entendermos que são as unidades curriculares, na condição de conteúdo mínimo obrigatório,
as responsáveis por modificar e interferir, substancialmente, na estrutura curricular.

15
Fonte: <http://site.anpuh.org/index.php/2015-01-20-00-01-55/noticias2/noticias-destaque/item/3140-nota-da-
associacao-nacional-de-historia-sobre-a-base-nacional-comum-curricular-bncc> e
<http://anphlac.fflch.usp.br/noticia_49>. Acesso em <11/06/2017>.
45

ANO
ESCOLAR
BNCC 1 (2015) BNCC 2 (2016)
LILP1MOA001 - “Ler produções literárias
de autores da literatura brasileira
UNIDADE MANTIDA
contemporânea, percebendo a literatura
(EM11LI01I)
como produção historicamente situada e,
ainda assim, atemporal e universal”.
UNIDADE PONTUALMENTE
LILP1MOA002 - “Reconhecer, em ALTERADA
produções literárias de autores da literatura EM11LI0: “Reconhecer, em produções
brasileira, o diálogo com questões literárias de autores da literatura brasileira, o
contemporâneas (principalmente do jovem), diálogo com questões contemporâneas
em uma perspectiva de leitura comparativa (principalmente do jovem), em uma
entre o local e o global, reconhecendo a perspectiva de leitura comparativa entre o
literatura como uma forma de conhecimento local e o global, reconhecendo
de si e do mundo”. compreendendo que a literatura como é uma
forma de conhecimento de si e do mundo”.
LILP1MOA0003: “Interpretar e analisar
1º ANO obras africanas de língua portuguesa, bem
como a literatura indígena, reconhecendo a UNIDADE EXCLUÍDA
literatura como lugar de encontro de
multiculturalidades”.
UNIDADE PONTUALMENTE
ALTERADA
LILP2MOA001 - “Ler produções literárias
de autores da literatura brasileira dos EM12LI01 - “Ler produções literárias de
séculos XX e XIX, em diálogo com obras autores da literatura brasileira dos séculos
contemporâneas, percebendo a literatura XX e XIX, em diálogo com obras
como produção historicamente situada e, contemporâneas, percebendo a literatura
ainda assim, atemporal e universal”. como produção historicamente situada e,
ainda assim, atemporal e universal”.
EM12LI02 - “Compreender a presença do
2º ANO cânone ocidental, principalmente da
literatura portuguesa, no processo de
constituição da literatura brasileira, a
UNIDADE INEXISTENTE
partir da leitura de autores dessas
literaturas, percebendo assimilações e
rupturas, na busca de uma identidade
nacional”.
UNIDADE PONTUALMENTE
LILP3MOA001 - “Ler produções literárias ALTERADA
de autores da literatura brasileira dos EM13LI01 - “Ler produções literárias de
séculos XVIII, XVII e XVI, em diálogo com autores da literatura brasileira dos séculos
obras contemporâneas, percebendo a XVIII, XVII e XVI, em diálogo com obras
literatura como produção historicamente contemporâneas, percebendo a literatura
situada e, ainda assim, atemporal e como produção historicamente situada e,
universal”. ainda assim, atemporal e universal”.
3º ANO EM13LI02 - “Compreender a presença do
cânone ocidental, principalmente da
literatura portuguesa, no processo de
constituição da literatura brasileira, a
UNIDADE INEXISTENTE
partir da leitura de autores dessas
literaturas, percebendo assimilações e
rupturas”.
Tabela 1. Repertórios literários da BNCC 1 e BNCC 2. (BRASIL/MEC, 2015, pp.61-66;
BRASIL/MEC, 2016, p. 528-531).
46

Em síntese, observa-se na BNCC a lógica de substituição de um repertório escolar


por outro, sob a pena, em sua segunda versão, do apagamento das produções artístico-
literárias das minorias. Assim, na versão revisada, a existência de uma pluralidade de
literaturas escritas em português é, novamente, desconsiderada.
Recordando o vínculo estabelecido entre currículo e relações sociais e de poder,
tentamos levantar hipóteses, no artigo supracitado (DE SÁ, 2017), acerca de quais poderiam
ter sido os agentes e os acontecimentos influenciadores de tais mudanças, haja vista o
resultado da consulta pública e o teor dos diversos fóruns e reuniões de discussão da BNCC 1
serem anunciados, repetidas vezes, pelo MEC, como importantes referências para o
fechamento da versão reconfigurada. Se, de um lado, vimos, como mencionado
anteriormente, manifestações de associações acadêmicas e de educadores em prol de uma
Base Curricular que articulasse saberes europeus a saberes não europeus, de outro, havia o
crescimento de grupos conservadores que acusavam de “ideológicos” muitos dos conteúdos
oriundos e/ou relacionados, de alguma forma, às minorias. Assim sendo, questionamos, a
partir da exposição das leis e das ideias defendidas por movimentos afins, em que medida as
pressões exercidas por esses grupos, geralmente de cunho religioso, podem ou não ter
influenciado a retirada das literaturas africanas e indígenas da BNCC, uma vez que o ano de
2016 no Brasil havia sido marcado por uma conjuntura política favorável a percepções
conservadoras de educação. A iminência do impeachment sofrido pela presidenta Dilma
Rousseff, bem como a controversa Reforma do Ensino Médio imposta, imediatamente após
sua destituição, pelo presidente interino Michel Temer, ilustram o cenário de instabilidade e
polarizações políticas a partir do qual ocorreram os debates sobre a Base Curricular.
Entre a publicação do referido artigo e a fase final da presente pesquisa de
Doutorado, divulgou-se, em Abril de 2018, a terceira e última versão da BNCC do Ensino
Médio, já em diálogo com a recém-aprovada Reforma Curricular. Bastante distinta às demais
em termos estruturais, ela estabelece (sem divisão por ano escolar) o seguinte repertório para
o campo artístico-literário do Ensino Médio:
47

BNCC 3 (2018)
EM13LP47 - Analisar assimilações e rupturas no processo de constituição da literatura
brasileira e ao longo de sua trajetória, por meio da leitura e análise de obras fundamentais do
cânone ocidental, em especial da literatura portuguesa, para perceber a historicidade de
matrizes e procedimentos estéticos.
EM13LP50 - Selecionar obras do repertório artístico-literário contemporâneo à disposição
segundo suas predileções, de modo a constituir um acervo pessoal e dele se apropriar para se
inserir e intervir com autonomia e criticidade no meio cultural.
EM13LP51 - Analisar obras significativas da literatura brasileira e da literatura de outros
países e povos, em especial a portuguesa, a indígena, a africana e a latino-americana, com
base em ferramentas da crítica literária (estrutura da composição, estilo, aspectos discursivos),
considerando o contexto de produção (visões de mundo, diálogos com outros textos, inserções
em movimentos estéticos e culturais etc.) e o modo como elas dialogam com o presente.
Tabela 2. Repertórios literários da versão final da BNCC. (BRASIL/MEC, 2018, pp. 515-516).

Numa aparente tentativa de articular o repertório da versão 1 (BRASIL/MEC, 2015)


ao da versão 2 (BRASIL/MEC, 2016), verifica-se no documento final uma coexistência de
indicação de leitura do “cânone ocidental” (EM13LP47) e “da literatura de outros países e
povos” (EM13LP51), a saber, não apenas as produções indígenas e africanas, mas também a
“latino-americana”. Decerto, esse conjunto vai ao encontro de uma perspectiva multicultural
de ensino  ainda que, caiba assinalar, o documento falhe em não rememorar a vertente
negra/afro-brasileira, tratando-a, ao que parece, como sinônimo de “literaturas africanas” ,
porém suscita reflexões a respeito dos fundamentos e dos desdobramentos dessa adição
inesperada das literaturas latino-americanas aos currículos mínimos. Acrescentar produções
tão diversas e de língua estrangeira, sem se ter alcançado, ainda, uma implementação
satisfatória das leis 10.639/2003 e 11.645/2008, levanta dúvidas quanto à factibilidade da
proposta. É preciso ter atenção, portanto, aos debates e às medidas que sustentarão a
definitiva aprovação e o início da aplicação da BNCC na educação. À primeira vista, esse
excesso de conteúdos, se desprovido de políticas educacionais específicas, como é o caso do
recorte latino-americano, expõe o risco de se instaurar, na educação literária, práticas guiadas,
por exemplo, pela trivialização, isto é, por abordagens de aspectos superficiais dessas
literaturas e culturais (SANTOMÉ, 2017, p. 168), ou pela estruturação souvenir, ou seja, por
uma disposição que restringe a abordagem de culturas diferentes a breves e marginais
menções, sem incluí-las nem articulá-las, de fato, aos saberes escolares (ibidem). Tratar-se-ia,
precisamente, de estratégias contrárias ao que reivindicam leis de recorte multicultural.

***
48

Ao abordar brevemente os movimentos de inclusão e de exclusão de conteúdos


ocorridos durante a elaboração de uma base curricular no Brasil, buscamos mostrar a
complexidade de se colocar em prática o rompimento com os clássicos epistemológicos e
escolares. É longo o caminho para se chegar a escolhas e a práticas pedagógicas que rompam
com a pretensa hierarquia de culturas instaurada desde o período colonial no Brasil. Segundo
bell hooks, nas “revoluções culturais” que envolvem a reivindicação da diversidade cultural
no campo do saber, “há períodos de caos e confusão, épocas em que graves enganos são
cometidos” (HOOKS, p. 49, 2017), os quais, porém, não podem dar margem ao medo de
errar, e reforçam a necessidade de uma autoavaliação constante. É sob esse prisma que
discutimos a formulação da BNCC.
Na condição de documento político, a BNCC também expõe o papel das relações
sociais e de poder que interferem nessas escolhas. Não por acaso, as leis 10.639/2003 e
11.645/2008 afirmam-se uma medida de combate ao racismo e ao preconceito, visto que a
articulação da história e das produções artístico-literárias das minorias aos conteúdos
canônicos coloca em xeque muitas narrativas de dominação. Falar de currículo numa
perspectiva multicultural significa, nesse sentido, falar de narrativas e de representações. É
por essa razão que elegemos as teorias pós-coloniais como uma importante ferramenta para se
pensar caminhos para a efetivação de uma educação intercultural. Em diálogo, uma vez mais,
com Tomaz Tadeu Silva (2017), entendemos que:

Reconhecer o currículo como narrativa e reconhecer o currículo como


constituído de múltiplas narrativas significa colocar a possibilidade de
desconstruí-las como narrativas preferidas, como narrativas dominantes.
Significa poder romper a trama que liga as narrativas dominantes, as formas
dominantes de contar histórias, à produção de identidades e subjetividades
sociais hegemônicas. As narrativas do currículo devem ser desconstruídas
como estruturas que fecham possibilidades alternativas de leitura, que
fecham as possibilidades de construção de identidades alternativas. Mas as
narrativas podem também ser vistas como textos abertos, como histórias que
podem ser invertidas, subvertidas, parodiadas, para contar histórias
diferentes, plurais, múltiplas, histórias que se abram para a produção de
identidades e subjetividades contra-hegemônicas, de oposição. (SILVA,
2017, p. 199).

Não nos causa admiração, portanto, que determinados grupos sociais afirmem-se
contrários às premissas dessas e de outras leis e projetos atentos à pluralidade cultural na
educação. As “opções descoloniais” no contexto escolar estão longe de alinhar-se a uma
tímida e mínima concessão de espaço nos currículos, pois preconizam uma mudança
49

substancial, que desconstrua o “currículo turístico” (SANTOMÉ, 2017, p. 168), caracterizado


pela associação das minorias a um lugar e a um papel marginal, esporádico e estereotipado de
rememoração. No lugar do “Dia do Índio”, propõe-se o saber e a autoria indígenas atrelados à
totalidade do calendário escolar. No lugar da hegemonia das narrativas europeias sobre
escravidão, a articulação de história e estórias de resistência negra.
Para encerrarmos esta subseção teórica, julgamos relevante mencionar alguns
trabalhos que analisam o mesmo assunto (e, posteriormente, determo-nos a um deles, em
particular). Na busca por fontes bibliográficas secundárias, encontramos pesquisas
desenvolvidas nas áreas de Educação e de História. Além do já citado interesse de
determinados pesquisadores, como Gomes (2017b) e Candau (2016), pela obra de Boaventura
de Sousa Santos, verificamos a apropriação das teorias pós-coloniais em estudos focados, por
exemplo, na descolonização dos livros didáticos da educação do campo (DE OLIVEIRA,
2017); em discussões sobre o enfrentamento da “colonialidade pedagógica” no Brasil
(OLIVEIRA & SOUZA, 2017); e, ainda no escopo da pedagogia, na relação entre os
pressupostos pós-coloniais e a educação popular (MOTA NETO, 2018). Destacaremos este
último devido ao modo pelo qual introduz um aspecto importante para o fechamento de nossa
fundamentação: o lugar do pensamento de Paulo Freire numa perspectiva descolonizadora de
educação.
Em “Por uma Pedagogia Decolonial na América Latina: Convergências entre a
Educação Popular e a Investigação-Ação Participativa” (2018), João Colares da Mota Neto
expõe que a ideia de uma “pedagogia decolonial” dialoga, na visão de muitos pesquisadores,
com a concepção de “pedagogia crítica” de Freire, desenvolvida em 1960. Entre os pontos de
convergência assinalados pelo pesquisador16, a “valorização das memórias coletivas dos
movimentos de resistência” e a “busca de outras coordenadas epistemológicas”, postuladas,
segundo Mota Neto, não apenas por Paulo Freire, mas também pelo colombiano Orlando Fals
Borda, ecoam algumas dos argumentos que intentamos desenvolver nesta subseção. Resgatar
“memórias” corresponde à descoberta de outras narrativas históricas, que não as imperialistas;
buscar epistemologias, por sua vez, envolve a recusa do colonialismo intelectual (MOTA
NETO, 2018, pp. 11-13), tendo em vista que a dita “educação popular” chama a atenção para

16
“Procuraremos explorar esta afirmação sustentando que em Freire e Fals Borda a concepção de pedagogia
decolonial: a) requer educadores subversivos; b) parte de uma hipótese de contexto; c) valoriza as memórias
coletivas dos movimentos de resistência; d) está em busca de outras coordenadas epistemológicas; e) afirma-se
como uma utopia política” (MOTA NETO, 2018, p. 9).
50

as potencialidades do saber local e das vivências dos subalternizados. É evidente que Mota
Neto (2018) esmiúça o contexto histórico em que essas pedagogias foram pensadas, e, por
isso, não sugere uma equivocada e precipitada equivalência entre as teorias freireanas e as
teorias pós-coloniais/decoloniais. Trata-se, nesse caso, de tomá-las como inspiração, como
fonte.
Das leituras que realizamos da obra de Paulo Freire, consideramos especialmente
interesses e ilustrativos, entre tantas possibilidades de diálogo, os escritos relacionados à sua
experiência em países africanos de Língua Portuguesa. Em Cartas à Guiné-Bissau: registros
de uma experiência em processo (1978) tem-se o registro pessoal de seu trabalho na
construção de modelos e de políticas de alfabetização, principalmente de adultos, em Guiné-
Bissau, logo após a independência (1976 a 1977). Não sem razão, o tema da colonização
comparece de forma mais explícita e frequente do que em outros textos do autor.
Nos textos que precedem as cartas trocadas pelo autor com a Comissão
Coordenadora dos projetos de alfabetização em Guiné-Bissau, Freire enfatiza o desafio
deixado pela herança colonial no sistema geral de ensino do país, cujo objetivo principal fora
a “desafricanização” e a educação antidemocrática, não universal (FREIRE, 1978, p. 15). Para
superá-las, havia a necessidade de promover, em sua visão, uma “nova prática educativa”,
uma “transformação radical”, fundamentada, necessariamente, em uma “clareza política”,
pois o colonialismo, na condição de ideologia, não poderia ser vencido por meio de escolhas
“neutras”; segundo ele, a conjuntura social negava a possibilidade de qualquer neutralidade:
“sabíamos que iríamos trabalhar não com intelectuais ‘frios’ e ‘objetivos’ ou com
especialistas ‘neutros’, mas com militantes engajados no esforço sério de reconstrução de seu
país” (p. 10). Nesse sentido, ele assinala que também sua comitiva deveria engajar-se, prestar
uma colaboração militante, pois só assim nasceria um projeto educacional pertinente à
realidade social de Guiné-Bissau (p. 11)17.
Ao longo do detalhamento das ações desenvolvidas no país, Paulo Freire faz
referências aos pensamentos Frantz Fanon e Albert Memmi, de um lado, e de Aristides
Pereira e Amílcar Cabral, de outro, sobretudo para ressaltar a necessidade de se instaurar,
naquele momento, um movimento de descolonização do pensamento; de “descolonização das
17
Paulo Freire esclarece que a realidade social de Guiné-Bissau exigia uma articulação entre educação e
trabalho, tendo em vista a reconstrução nacional. Desse modo, o autor dedica-se a diferenciar, em diferentes
passagens do livro, a ideia de trabalho preconizada pelo capitalismo, ancorada na exploração e no lucro, do
conceito de trabalho com finalidade social, este dotado de consciência política e, portanto, favorável ao projeto
educacional pretendido por ele e sua comitiva.
51

mentes”, nas palavras de Pereira, e de “africanização das mentalidades”, nas palavras de


Cabral (FREIRE, 1978, p. 16). É daí que urge o que educador brasileiro chama de “esforço
interestrutural” na educação, a ser empregado ao nível tanto da infraestrutura quanto da
ideologia (ibidem). Ademais, ao encontro do recorte desta pesquisa de Doutorado, o
comentário sobre os textos a serem utilizados no processo de alfabetização pós-independência
é marcado pelo questionamento das narrativas únicas:

Neste sentido, a reformulação dos programas de Geografia, de História e de


língua portuguesa, ao lado da substituição dos textos de leitura, carregados
de ideologia colonialista, era um imperativo. Fazia-se necessário que os
estudantes guineenses estudassem, prioritariamente, sua geografia e não a de
Portugal, que estudassem seus braços de mar, seu clima e não o Rio Tejo.
Era preciso que os estudantes guineenses estudassem, prioritariamente, sua
história, a história da resistência de seu povo ao invasor, a da luta por sua
libertação que lhe devolveu o direito de fazer sua história, e não a história
dos reis de Portugal e das intrigas da Corte. Era preciso que os estudantes
guineenses fossem chamados não a “exercícios de moldagem em barro, do
poeta cego de um olho e coroado de louros”* [*IV Centenário da Publicação
d’Os Lusíadas – Comissão das Comemorações na Guiné. Os Lusíadas e a
Guiné, Bissau, 1972], mas a participar do esforço de reconstrução nacional.
Era preciso, por isso mesmo, começar a pensar em caminhos através dos
quais fosse possível provocar, mesmo timidamente, no início, as primeiras
intimidades entre os estudantes liceanos de Bissau e a atividade produtiva.
(FREIRE, 1978, p. 20)

Nas cartas que seguem a essa introdução, é na “Carta n° 3 a equipe (5.1.1976)” que
se reitera o necessário vínculo entre “clareza política”, isto é, “permanente vigilância no
sentido da preservação da coerência entre nossa prática e o projeto da nova sociedade”
(FREIRE, 1978, p. 113), e escolha do “conteúdo programático” e da organização curricular
(p. 111-131). Embora Paulo Freire refira-se a um contexto bastante específico, a persistência
da ideologia colonial nos currículos brasileiros permite firmar algumas pontes de reflexão.
Suas proposições e indagações acerca da descolonização stricto sensu da educação de Guiné-
Bissau serve-nos, em certa medida, a esta que pode ser entendida como uma segunda
descolonização a ser empreendida na educação brasileira. É certo que não se trata mais, no
Brasil, da busca por uma “reconstrução do nacional”, como descreve Freire a respeito de
Guiné-Bissau. Por outro lado, a “clareza política” e o “conteúdo programático” que orientam
as leis 10.639/2003 e 11.645/2008 associam-se, ainda hoje, a uma luta contra as heranças do
ensino colonial e do racismo delas consequentes. Por isso, soa bastante contemporânea a
afirmação de Freire de que os estudantes deveriam estudar, na altura, a “sua história, a
história da resistência de seu povo ao invasor, a da luta por sua libertação que lhe devolveu o
52

direito de fazer sua história, e não a história dos reis de Portugal e das intrigas da Corte”.
Passados quase 200 anos da data da nossa Independência, é esta, precisamente, a narrativa
que impera nos materiais didáticos brasileiros.
Outras obras de Paulo Freire abordam, mesmo que implicitamente, a questão da
descolonização do pensamento. Em Pedagogia do oprimido, publicado em 1968, no qual a
figura do “colonizado” dá lugar ao conceito de “oprimido”  ainda que pensadores
anticolonialistas, como os supracitados Fanon e Memmi, também sejam acionados , o
debate sobre “invasão cultural”, por exemplo, sobretudo no que concerne à composição
curricular, também parece apontar caminhos para expandirmos a reflexão sobre os princípios
que devem reger a educação de(s)colonial. Todavia, limitamo-nos a Cartas à Guiné Bissau
(1978), pois nosso intuito é apenas assinalar e ilustrar, brevemente, parte dos contributos dos
trabalhos do pesquisador brasileiro às recentes tentativas de definição daquela que vem sendo
entendida como uma educação de viés pós-colonial, bem como ressaltar o caráter político
dessa “nova” (talvez não tão nova) concepção de ensino e de currículo.
A título de fechamento, cabe recuperar a ressalva que bell hooks (2017) faz a
respeito dos evidentes pontos comuns entre tais discussões sobre descolonização simbólica e a
insistência de Freire na “conscientização”. Em suas palavras, “repetidamente, Freire tem de
lembrar os leitores de que ele nunca falou da conscientização como um fim em si, mas sempre
na medida em que ela se soma a uma práxis significativa” (HOOKS, 2017, p. 67); ou seja, é
necessário ter em mente que “mudanças de atitudes” (ou, no âmbito desta pesquisa, mudanças
de práticas educativas) figuram um “importante estágio inicial de transformação”; o começo,
e não o fim, do “processo político descolonizador” (ibidem).
Se Tomaz Tadeu Silva (2001) acerta ao anunciar que “é por meio do currículo,
concebido como elemento discursivo da política educacional, que os diferentes grupos
sociais, especialmente os dominantes, expressam sua visão de mundo, seu projeto social, sua
‘verdade’” (pp. 10-11), as mudanças legislativas de 2003 e 2008, consequentes de ações dos
movimentos sociais, surgem como reivindicadoras de “verdades”, no plural, e dotadas de uma
“clareza política” no que diz respeito à coexistência e à codependência da ausência da
pluralidade cultural e da permanência do condicionamento colonial na educação.
53

CAPÍTULO 2. Leis federais brasileiras nº 10.639/2003 e nº 11.645/2008 e as


lutas pela descolonização da educação

No capítulo anterior, abordamos a problemática das ausências e dos apagamentos de


saberes subalternos no âmbito escolar, sob o prisma das teorias pós-coloniais. Tendo por base
tais premissas, as leis por nós estudadas são interpretadas como uma resposta a essas lacunas
históricas. Nesse sentido, a introdução das literaturas e das culturas indígenas, afro-brasileira
e africanas nos currículos brasileiros pode ser associada, em nossa leitura, à contestação da
hierarquia dos saberes escolares, ordenação esta desencadeada pelo eurocentrismo e
desencadeadora de posturas e de imaginários preconceituosos e estereotipados.
Visando tanto compreender melhor o papel de leis desse teor no processo de
descolonização da educação quanto ilustrar o modo pelo qual as culturas negras e indígenas
foram historicamente alijadas do projeto educacional brasileiro, atentamo-nos a seguir aos
eventos e aos agentes precursores das duas medidas. Trata-se, afinal, de pensar as leis
10.639/2003 e 11.645/2008 para além dos muros das escolas, tornando mais evidentes os elos
que ligam Educação, Política e Sociedade, e, por conseguinte, o protagonismo dos
movimentos sociais nesses contextos de mudanças. Ao encontro de Gonçalves & Silva (2003)
entendemos que o “multiculturalismo não surgiu como um movimento no campo da
educação” (GONÇALVES & SILVA, 2003, p. 111), pois antes de entrar na esfera
educacional “expressões do multiculturalismo se fazem presentes nas artes, nos movimentos
sociais, em políticas” (p. 109). Sob esse prisma, podemos admitir que a pluralidade cultural
(ou o “multiculturalismo” na condição de ideologia que a reivindica e a reconhece) “invadiu”
a educação, “invadiu porque minorias, não em números, mas em poder e influência, há muito
reivindicavam o cumprimento dos princípios de igualdade e eqüidade, relativos às
constituições de todos os países democráticos” (GONÇALVES & SILVA, 2003, p. 111). É
esta “invasão” que objetivamos investigar nesta seção.

***

Em Estratégias e políticas de combate à discriminação racial (1996), Kabengele


Munanga dá destaque a duas formas de ação que atravessam as lutas antirracistas: a ação
discursiva e teórica e a ação prática. Em suas palavras,

As lutas contra o racismo passam geralmente por duas formas de ação: uma
discursiva e teórica, compreendendo os discursos produzidos pelos
54

estudiosos engajados, militantes e políticos preocupados com as


desigualdades raciais; outra prática, traduzida em leis, organizações e
programas de intervenção cujas orientações são definidas pelos governos e
poderes políticos constituídos. Mas nada impede os setores privados e
organizações não-governamentais de desenvolver programas e atividades
anti-racistas. (destaque nosso). (MUNANGA, 1996, p. 79).

Ao entendermos, afinal, as leis nº 10.639/03 e nº 11.645/08 como medidas


constitutivas das lutas de combate ao preconceito e à discriminação racial e étnica no Brasil, a
breve revisão da história da educação do negro e do indígena que objetivamos apresentar
nesta seção atenta-se, justamente, aos pontos de contato estabelecidos entre os dois campos de
luta elencados por Munanga, isto é: o campo da militância, em que, a priori, preponderam
ações discursivas e teóricas, e o campo do poder público, no qual se efetivam, sobretudo,
ações práticas.
Consideramos importante destacar, em concordância com as ideias de Munanga, que
tais classificações não se mostram nem lineares nem excludentes, mas “de difícil aplicação”,
haja a vista “a complexidade do próprio fenômeno do racismo e a variabilidade de suas
manifestações no tempo e no espaço” (MUNANGA, 1996, p. 79). Trata-se de uma
observação especialmente cara ao nosso recorte de pesquisa, uma vez que, no contexto das
lutas e das políticas antirracistas de viés educacional, as ações práticas assumem grande
importância não apenas a partir da intervenção do Estado ¾ ao serem, para fazer uso das
palavras de Munanga, “traduzidas em leis e em programas” ¾, mas igualmente na esfera
social, por meio de iniciativas às quais podemos denominar de “ações práticas informais”,
promovidas pelos movimentos sociais no intuito de educar e empoderar seus militantes e/ou
de modificar o modelo escolar convencional. Veremos no desenrolar deste capítulo que
mesmo antes da aprovação das leis 10.639/03 e 11.645/08, negros e indígenas já se
dedicavam, por exemplo, à produção independente de cartilhas e de folhetos didáticos que
dessem visibilidade a suas histórias, estórias e culturas, de modo a combater as ausências
identificadas nos materiais oficiais; ou seja, parafraseando os apontamentos de Nilma Lino
Gomes (2017b) sobre o movimento negro, percebe-se que “a lentidão da política educacional
brasileira em responder adequadamente a essa demanda histórica” motivou, e tem motivado,
os movimentos negro e indígena a construírem, “com os seus próprios recursos e
articulações”, projetos educativos de valorização de suas culturas (GOMES, 2017b, p. 49).
Resumidamente, ao estudarmos as trajetórias desses grupos, identificamos, tanto no
55

autodidatismo que caracteriza a formação das militâncias quanto nas lutas pelo acesso ao
ensino formal, ações de resistência e de enfrentamento ao colonialismo no campo do saber.
Antes, portanto, de ocupar o Congresso Nacional, propostas de descolonização da educação já
permeavam os discursos e as práticas de negros e de indígenas. No caso destes, trata-se de
respostas, sobretudo, à imposição da violenta educação ora missionária ora integracionista
iniciada já no século XVI; no caso daqueles, observam-se, preponderantemente,
questionamentos às falácias da Abolição de 1888, que não tornou os negros livres do
analfabetismo e da falta de escolaridade.
Embora Munanga identifique no movimento negro a existência de “realizações
concretas mensuráveis” (1996, p. 86), independentemente da mediação do Estado, a
contraposição de ação discursiva e ação prática é apresentada em seu texto no sentido de
discutir qual das duas ações traria mais respostas e resultados efetivos em um cenário de
muitas incertezas e de muitos receios (seu texto data 1996), em um momento em que as
reflexões sobre a abertura política e a possibilidade de diálogo entre militantes e Estado no
Brasil eram ainda pouco maduras. O intervalo entre a data de publicação de seu livro e a
conjuntura que circunda a escrita desta tese de Doutorado justifica, pois, nossa ênfase na
distinção entre ações práticas formais e ações práticas informais.
Em suma, entendemos, portanto, que ambas as leis, na condição, por sua vez, de
ações práticas formais de combate ao racismo e ao preconceito étnico (e, por que não, de
combate à “colonialidade do saber”), são precedidas de ricas ações práticas informais
orquestradas pelos movimentos sociais. Assim, quando Munanga afirma, no excerto
supracitado, que “nada impede os setores privados e organizações não-governamentais de
desenvolver programas e atividades anti-racistas”, ele chama a atenção para um tipo de ação
prática bastante significativa no combate à discriminação racial (e, a nosso ver, também
étnica) nas escolas, razão pela qual nos inspiramos em suas categorizações para elaborarmos o
quadro a seguir:
56

Quadro 1: Esferas, ações e movimentos de transposição que integram as lutas e as políticas contra a
discriminação racial e étnica (categorias adaptadas de MUNANGA, 1996 - categorias de Munanga marcadas
com aspas e nossas adaptações/adições acompanhadas de asterisco [*]).

Para além de reiterarmos a ocorrência de ações práticas informais na esfera social,


ou seja, das ações que ficam a cargo da sociedade civil e não dos governantes, julgamos
interessante nomear os dois movimentos de transposição que integram a conquista e a
respectiva implementação de políticas de recorte multicultural, como as leis por nós
estudadas. O primeiro diz respeito a uma transposição política, isto é, à forma pela qual as
ações e os discursivos políticos propagados socialmente pelos movimentos negro e indígena
são incorporados/“traduzidos” pelas políticas públicas, formalizando-se; o segundo, à
transposição didática de conteúdos e de bem simbólicos inicialmente restritos à academia e à
formação e ao empoderamento da militância, ou seja, ao processo de transformação de um
saber de viés político e acadêmico em saber escolar18. Em certa medida, nosso quadro
possibilita uma melhor apreensão daquilo que Gomes (2017b) descreve como sendo uma
“efetiva passagem da fase da denúncia para o momento de cobrança de intervenção do Estado
e construção de políticas públicas de igualdade racial [e étnica]” (p. 50).

18
Cabe esclarecer que, para os fins desta pesquisa, o termo “transposição didática” remete apenas ao princípio
geral de reconfiguração e de realocação de saberes para a esfera escolar, não estando associado a nenhuma
conceituação em particular. Tendo em vista o objetivo de analisar os efeitos das leis 10.639/2003 e 11.645/2008
nos livros didáticos de Português, o termo nos serve, sobretudo, como descritor dos processos de
recontextualização e de apropriação pelos quais passam os textos legais para que seus pressupostos e imposições
façam-se presentes nos textos (/materiais) escolares. Dessarte, interessa-nos mais o princípio geral ao qual a
expressão se refere do que seus pormenores conceituais. Para se ter acesso a uma revisão e discussão
aprofundada do conceito, sugerimos o trabalho De Oliveira (2013).
57

A seguir, atentamo-nos às nuances da etapa de transposição política. Os contornos


da transposição didática, por sua vez, são abordados com mais atenção nos capítulos
subsequentes, em especial no decorrer da análise dos livros didáticos.

2.1. Precursores sociais e jurídicos da lei nº 10.639/2003

LEI Nº 10.639, DE 9 DE JANEIRO DE 2003.


Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as
diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da
Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-
Brasileira", e dá outras providências.
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso
Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:
Art. 1º A Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar
acrescida dos seguintes arts. 26-A, 79-A e 79-B:
"Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e
particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-
Brasileira.
§ 1º O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o
estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a
cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional,
resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e
política pertinentes à História do Brasil.
§ 2º Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão
ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de
Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras.
§ 3º (VETADO)"
"Art. 79-A. (VETADO)"
"Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como ‘Dia
Nacional da Consciência Negra’."
Art. 2º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Brasília, 9 de janeiro de 2003; 182º da Independência e 115º da
República.
LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA
Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque
Este texto não substitui o publicado no D.O.U. de 10.1.2003.
(BRASIL, 2003, s/p).

A lei 10.639, de 9 de Janeiro de 2003, tem como proposição originária o Projeto de


Lei (PL) 259/1999, de autoria de Esther Grossi (PT/RS) e Ben-hur Ferreira (PT/MS). De
início, é interessante notar no texto de justificativa do PL certo diálogo entre as questões que
discutimos no decorrer de nossa fundamentação teórica e as premissas atreladas à nova
legislação, uma vez que é dado destaque, inclusive, ao papel desempenhado pelos livros
didáticos:
58

Este projeto de lei, originalmente de autoria do Deputado Humberto Costa,


procura criar condições para implantação de um currículo na rede oficial de
ensino que inclua o ensino de História da Cultura afro-brasileira, visando a
restauração da verdadeira contribuição do povo negro no desenvolvimento
do país, ressalvando o fato de que a sociedade dominante discrimina e
inferioriza o povo negro em relação ao chamado SABER UNIVERSAL.
É urgente e necessário desmistificar o eurocentrismo, neste momento em
que se quer repensar um novo modelo de sociedade em que todos não somos
apenas brancos, como que [sic] fazer crer o livro didático imposto aos
estudantes nas escolas. Podemos captar, compreender os mecanismos de
funcionamento que excluem a verdadeira história do povo negro,
discriminado e excluído nas escolas e nos livros, alertando os
responsáveis pela produção de livros didáticos, bem como professores e
alunos vítimas destas distorções e omissões nas instituições de ensino.
[...]
O que se vê, porém, é que o sistema oficial de ensino, cada vez mais,
apresenta·se como um dos principais veículos de sustentação do racismo,
distorcendo o passado cultural e histórico do povo negro.
[...]
A discriminação racial nas escolas públicas manifesta-se no momento em
que os agentes pedagógicos não reconhecem direito à diferença e acabam
mutilando a panicularidade cultural de um importante segmento da
população brasileira, que é discriminado nas salas de aula, nos locais de
trabalho e na rua, não apenas por aquilo que é dito; mas, acima de tudo,
pelo que é silenciado.
O Brasil é, fundamentalmente, um país de formação pluriétnica e
multicultural. Mas o povo negro ocupa posições subalternas em relação à
classe dominante, que considera a cultura afro-brasileira inferior e primitiva,
sob a ótica e os parâmetros da cultura branca, que exclui dos currículos
escolares e dos livros didáticos a verdadeira contribuição do povo negro na
história, no desenvolvimento e na cultura do país.
Sala das Sessões, em 11 de março de 1999. (destaque nosso) (“Projeto de
Lei (PL) 259/1999” apud DA CONCEIÇÃO, 2011, pp. 108-110).

Em relação ao processo de aprovação da lei 10.639/2003, é correto afirmar que o PL


259/1999 foi o último, mas não o único projeto com tal recorte. Sabe-se atualmente que
muitos parlamentares, para além do Deputado Humberto Costa (PT/PE), mencionado na
justificativa do supracitado Projeto de Lei, apresentaram propostas afins no decorrer nas
décadas de 1980 e 1990. A menção exclusiva a esse parlamentar no excerto acima se deve,
porém, ao fato de a justificativa do PL final basear-se, quase que totalmente, no texto que
fundamentou tanto o PL 948/93, apresentado por Costa à Assembleia Estadual de
Pernambuco, quanto o PL 859/95, por ele submetido, posteriormente, à Câmara dos
Deputados, ambos voltados à obrigatoriedade das disciplinas de História e de Cultura Afro-
brasileira (vide “Anexo B” e “Anexo F” em DA CONCEIÇÃO, 2011, pp. 91-94 e pp. 104-
106).
59

Na Dissertação de Mestrado em História Social intitulada “Das reivindicações à lei:


caminhos da lei 10.639/03”, defendida em 2011 na Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (PUC-SP), o pesquisador Manoel Vitorino da Conceição, no intuito de registrar os
movimentos precursores da lei, compila, ao lado dos projetos de Humberto Costa e de Esther
Grossi & Ben-hur Ferreira, outras proposições de mesmo recorte e de mesma importância,
apresentadas, inclusive, por integrantes do movimento negro que passaram pelo Congresso
Nacional. São elas: PL 678/88, de Paulo Paim (PT/RS), com foco nas disciplinas de “História
Geral da África e História do Negro no Brasil”, em toda a rede pública e privada; PL do
Senado 18/95, de Benedita da Silva (PT/RJ), centrada na reivindicação da “História e Cultura
da África” na educação básica e superior; e PL do Senado 75/97, de Abdias do Nascimento
(PDT/RJ), que dispõe sobre “medidas de ações compensatórias”, entre as quais a inclusão, em
regime opcional, das línguas Yoruba e Kiswahili na relação dos idiomas estrangeiros a serem
ofertados nas escolas (“Projeto de Lei (PL) 75/97” apud DA CONCEIÇÃO, 2011, p. 100). A
título de síntese, destacamos os pontos principais de tais proposições: na justificação da
proposta do Deputado Paulo Paim, chama-se a atenção para o fato de haver “vasta literatura
sobre a educação no Brasil, que demonstra insofismavelmente as inúmeras informações
distorcidas veiculadas pelos currículos escolares” (“Projeto de Lei (PL) 678/88” apud DA
CONCEIÇÃO, 2011, p. 95); o texto da Senadora Benedita da Silva, por sua vez, inicia-se
com a recordação de que a sociedade brasileira é composta por três etnias, isto é, a
portuguesa, a africana e a indígena, para então se centrar na descrição da presença da cultura
africana no Brasil, mencionando suas influências e seus contributos na esfera musical,
gastronômica, religiosa etc. (“Projeto de Lei (PL)” 18/95 apud DA CONCEIÇÃO, 2011, pp.
97-99); por fim, o documento referente ao PL 75/97 do então Senador Abdias Nascimento é,
dos três, o que contém a justificação mais breve, mas seu conteúdo remete a um projeto de
“ações compensatórias” (PL 1332/1983)19 por ele apresentado na Câmara dos Deputados em
1983 e arquivado em 1989, sem ter chegado a votação final para aprovação ou rejeição20. Na

19
Os Projetos de Lei de “ações compensatórias”, visando à autonomia social do negro, de autoria de Abdias de
Nascimento, versam não apenas sobre Educação, mas também sobre medidas para a esfera do Trabalho.
Destarte, tais proposições são apontadas, por muitos pesquisadores, como a base de diversas políticas públicas
direcionadas à população negra nas últimas décadas.
20
Tanto no documento anexado por Da Conceição (2011, pp. 100-103) quanto no portal do Senado não é
possível localizar os textos que fundamentam, de forma mais detalhada, o PL do Senado 75/97, de modo
consideramos produtivo dar atenção ao PL anterior e de mesmo teor submetido à Câmara dos Deputados em
1983.
60

página oficial de Abdias Nascimento na internet21, localizamos o texto dessa primeira versão
da proposta, a qual inclui outras medidas educacionais que não apenas a inclusão do ensino de
línguas africanas. Nelas, percebe-se, inclusive, bastante aproximação daquilo que vieram a ser
as orientações regulatórias da lei 10.639/2003, tais como a necessidade de revisão de
materiais didáticos e o incentivo da abordagem do tema por parte das universidades:

[...]
Art. 8º Ministério da Educação e Cultura, bem como as Secretarias Estaduais
e Municipais de Educação, conjuntamente com representantes das entidades
negras e com intelectuais negros comprovadamente engajados no estudo das
matérias, estudarão e implementarão modificações nos currículos escolares e
acadêmicos em todos os níveis (primário, secundário, superior e de pós-
graduação) no sentido de:
I - Incorporar ao conteúdo dos cursos de História Brasileira o ensino das
contribuições positivas dos africanos e seus descendentes à civilização
brasileira, sua resistência contra a escravidão, sua organização e ação (a
nível social, econômica e político) através dos quilombos, sua luta contra o
racismo no período pós-abolição;
II - Incorporar ao conteúdo dos cursos sobre História Geral o ensino das
contribuições positivas das civilizações africanas, particularmente seus
avanços tecnológicos e culturais antes da invasão européia do continente
africano;
III - Incorporar ao conteúdo dos cursos optativos de estudos religiosos o
ensino dos conceitos espirituais, filosóficos e epistemológicos das religiões
de origem africana (candomblé, umbanda, macumba, xangô, tambor de
minas, batuque, etc.);
IV - Eliminar de todos os currículos referências as africano como “um povo
apto para a escravidão”, “submisso” e outras qualificações pejorativas;
V - Eliminar a utilização de cartilhas ou livros escolares que apresentem o
negro de forma preconceituosa ou estereotipada;
VI - Incorporar Material de ensino primário e secundário a apresentação
gráfica da família negra de maneira que a criança negra venha a se ver, a si
mesma e à sua família, retratada de maneira igualmente positiva àquela em
que se vê retratada a criança branca;
VII - Agregar ao ensino das línguas estrangeiras européias, em todos os
níveis em que estas são ensinadas, o ensino de línguas africanas (yoruba ou
Kriwahili) em regime opcional;
VIII - Incentivar e apoiar a criação de Departamentos, Centro ou Instituto de
Estudos e/ou Pesquisas Africanos e Afro-Brasileiros, como parte integral e
normal da estrutura universitária, particularmente nas universidades federais
e estaduais.
§ 1º As modificações de currículo aplicar-se-ão, obrigatoriamente, tanto no
ensino público quanto no ensino particular, em todos os níveis.
(BRASIL. Congresso Nacional - PL 1332/1983, s/p, 1983).

21
Disponível em <http://www.abdias.com.br/atuacao_parlamentar/deputado_lei.htm>. Acesso em
<19/11/2018>.
61

Os projetos aqui elencados (PL 1332/1983; PL 678/88; PL 948/93; PL do Senado


18/95; o PL 859/95; PL do Senado 75/97; PL 259/1999), sobretudo este de Abdias
Nascimento, ilustram que a luta pela inclusão de temáticas relacionadas ao continente
africano e à cultura afro-brasileira na educação básica vem de longa data no âmbito
legislativo. Ocorre, porém, que, embora tenham ganhado maior protagonismo na
historiografia da lei 10.639/2003, eles foram acompanhados de importantes medidas de
alcance local. Regina Pahim Pinto (1987) lista em seu estudo, por exemplo, três propostas
aprovadas na mesma época: a inclusão da disciplina “Estudos Africanos” para os cursos de 1º
e 2º graus do estado da Bahia, em 1985 (parecer 089/85); a aprovação, em 1986, da
introdução das disciplinas “História da África, Dança Afro-Brasileira, Literatura Afro-
Brasileira, Música Afro-Brasileira e Capoeira” na rede municipal de Salvador (BA); e a
implementação de um projeto municipal sobre cultura negra no Rio Janeiro (RJ), em 1985
(PINTO, 1987). Especificamente em relação à primeira medida, Cristina Maria Sena Almeida
(1988), da Secretaria de Educação do Estado da Bahia na ocasião, em conferência realizada
em 1987, na cidade de Belo Horizonte (MG), justifica que “era de se esperar que a Bahia, por
ser o Estado da Federação que possui o maior contingente de negros, não apenas fosse
pioneiro na implantação da disciplina mas se constituísse um exemplo a ser seguido pelos
demais Estados interessados em fazê-lo” (ALMEIDA, 1988, p. 74). Cabe mencionar que, na
mesma conferência, a ausência de livros e de matérias didáticos adequados à temática é
apontada como um dos desafios enfrentados na implantação da disciplina (ALMEIDA, 1988,
p. 85)22.
Se já se revelam, portanto, significativas e longevas as ações educacionais
antirracistas preconizadas pela esfera jurídica, mostra-se ainda maior o recorte temporal que
engloba as ações discursivas e as ações práticas informais advindas da esfera social e com as
quais esses discursos políticos estabeleceram diálogo. A exemplo dos diferentes momentos e
objetivos que marcaram as ações do movimento negro no século XX23, também os debates
sobre o papel e os contornos da educação do negro revelam especificidades no decorrer do
22
Neste texto, a secretária apresenta detalhadamente o processo de conquista e de implantação da disciplina de
“Estudos Africanos” nas escolas estaduais da Bahia.
23
Amauri Mendes Pereira (2008) elenca três períodos pós-resistência abolicionista envolvendo o movimento
negro brasileiro, com destaque a seus centros de mobilização, Rio de Janeiro e, principalmente, São Paulo: as
décadas de 1920 e 1930, marcadas pela Imprensa Negra e pelo advento da Frente Negra Brasileira (FNB; 1931-
1938); os anos 40 a 70, com a formação do Teatro Experimental Negro (TEN; 1944), liderado por Abdias
Nascimento, e do Teatro Popular Brasileiro (TPB; 1950), de Solano Trindade; e, por fim, o final dos anos 70,
início dos 80, com a fundação, em 1978, do MNU.
62

tempo, de modo que a preocupação com a alteração dos currículos, percebida nos documentos
supracitados, não figura como primeira preocupação descolonial do movimento no campo da
educação, mas ao contrário: antes de postular a necessidade de descolonização dos saberes
escolares, era preciso enfrentar as nuances de uma legislação de matriz colonial que, alinhada
à conjuntura socioeconômica desfavorável do pós-abolição, dificultava a integração dos
negros ao sistema escolar; em suma, antes de descolonizar os currículos, era preciso
descolonizar os portões e os muros das escolas.
Não é exagerado afirmar, portanto, que vigorou, especialmente no início do século
XX, uma luta primeira pela descolonização do acesso à educação escolar formal. O estudo de
Marcus Vinicius da Fonseca (2001) sobre “as primeiras práticas educacionais com
características modernas em relação aos negros no Brasil”, centrado no modo pelo qual era
tratada a educação dos negros durante a vigência da Lei do Ventre Livre (1871-1888), chama
a atenção, a nosso ver, a um aspecto produtivo para se refletir também sobre o cenário do
acesso à escola no período pós-abolição: a (conveniente e reincidente) inclusão da educação
do negro no âmbito do direito comum. Seu artigo aponta os “asilos agrícolas”, fundados entre
1869 e 1873 e distribuídos em diferentes estados do país (Piauí, Pará, Pernambuco, entre
outros), como instituições de destaque nesse período, visto que tinham entre seus objetivos
oferecer formação escolar e técnica aos “ingênuos” (filhos de escravas nascidos livres). O
autor esclarece, porém, que tais asilos sofreram um recuo em 1879 devido à necessidade de
contenção de gastos estatais e aos conflitos de interesse envolvendo os ex-senhores dessas
crianças, o que impediu um funcionamento sólido até a Abolição. É, pois, nesse momento,
que surge a tendência de encarar os problemas das crianças descendentes de escravos como
um problema da “infância desamparada” (FONSECA, 2001, p. 22), transferindo-os para o
direito comum, que lhe negava suas particularidades e favorecia a exploração por parte dos
senhores de suas mães. A leitura que Da Silva & Araújo (2005) fazem da “Reforma de
Rivadávia Corrêa”, de 1911, endossa a ideia de que direito comum operou, em diferentes
momentos, como mecanismo sutil de perpetuação da “vantagem competitiva das elites” e de
“preservação do status quo”:

A Reforma de Rivadávia Corrêa, através do Decreto nª 8.659, de 1911,


concedeu autonomia aos diretores, agora eleitos pela congregação de
professores, além do estabelecimento de taxas e exames para a admissão no
ensino fundamental e superior. A liberdade e a autonomia designada aos
estabelecimentos de ensino representou um retrocesso na evolução do
sistema, pois o caráter oficial do ensino foi suprimido. Esses mecanismos
63

não devem ser interpretados isoladamente; inter-relacionados com o


contexto sócio-econômico vigente também se articularam para a interdição
da população negra – e de outros segmentos sociais menos privilegiados.
(DA SILVA & ARAÚJO, 2005, pp. 70-71).

É compreensível, assim, que relatos acerca da necessidade de autodidatismo por


parte de alguns redatores da Imprensa Negra da primeira metade do século XX24 atestem os
efeitos nocivos da ausência de uma legislação educacional que se atentasse às especificidades
das crianças e das famílias negras após a Abolição. José Correia Leite, nascido em 1900,
redator do jornal O Clarim d’Alvorada, em entrevista dada a Cuti (1992), explica, por
exemplo, que era impedido de ter acesso à escola pelo fato de a presença dos pais constituir-
se, na época, um pré-requisito obrigatório de matrícula; ocorre, porém, que sua mãe, “negra,
doméstica, muito lutadora” (LEITE apud CUTI, 1992, p. 23), não podia mantê-lo nem se
responsabilizar por ele nos termos definidos pelas escolas25. Percebemos, pois, que, após a
Abolição, as instituições escolares regulamentavam a entrada dos negros à luz de regras,
burocráticas e/ou de conduta, formuladas com base na estrutura familiar das elites brancas. A
pesquisa de Barros (2005), a respeito do processo de escolarização da população negra em
São Paulo, lista outros empecilhos afins:

Assim como ter de provar que eram livres, durante a vigência da escravidão,
diversos outros mecanismos foram acionados para dificultar o ingresso e a
permanência de alunos negros na escola, mesmo após o fim da escravidão.
24
É interessante mencionar que a história de uma imprensa tida como “de negros para negros”, em especial da
imprensa negra paulista – haja vista a concentração e a consolidação do movimento negro no estado de São
Paulo –, abrange, usualmente, o período de 1915 e 1963 e que, de modo geral, atribuem-se a esse recorte
temporal três fases: de 1915 a 1923, quando os jornais serviam, sobretudo, à divulgação dos eventos e da vida
social e cultural dos grêmios e das associações responsáveis pelas publicações; de 1924 a 1937, fase de ápice da
imprensa negra, em que os discursos contestatórios tornam-se mais diretos e as reivindicações do movimento
ganham força; e, por fim, após um período de silêncio e inatividade imposto pela ditadura, uma etapa de
reorganização em prol de promover a união dos negros, que vai de 1945 a 1963 (FERRARA, 1985; BASTIDE,
1972). Trata-se de uma classificação que visa apenas destacar os movimentos de publicação mais significativos,
dado que acervos como o “Portal da Imprensa Negra Paulista da Universidade de São Paulo”
<http://biton.uspnet.usp.br/imprensanegra> disponibilizam exemplares de jornais publicados até mesmo em
1903 (como o O Baluarte, de Campinas-SP). Outros acervos digitais da imprensa negra: “Catálogo da
Imprensa Negra (1903-1963)”, da Unesp: <http://www.assis.unesp.br/#!/cedap---centro-de-documentacao-e-
apoio-a-pesquisa/acervo-do-cedap/catalogo-da-imprensa-negra/>; “Arquivo Público do Estado de São Paulo”:
<http://www.arquivoestado.sp.gov.br/site/acervo/repositorio_digital/jornais_revistas->.
25
A respeito dos meios de alfabetização dos negros que atuavam nesses periódicos, Balsalobre (2009a) explica
que José Correia Leite afirma não ter frequentado, de fato, a escola formal, e atribui sua história de aprendizado
a “um autodidatismo” e às “aulas de português que o próprio Jayme de Aguiar [outro redator do periódico] lhe
ministrava” (BALSALOBRE, 2009a, p. 228). Um fato curioso de seu relato, também ressaltado por Balsalobre,
refere-se a sua menção à trajetória do militante Vicente Ferreira, que, apesar de reconhecido como exímio
orador, era também semi-analfabeto, de modo que ele ditava a outros redatores do O Clarim d’Alvorada os
textos a serem assinados com seu nome (p. 229).
64

Depoimentos mostram que falta de “vestimentas adequadas”, ausência de


um adulto responsável para realizar a matrícula, dificuldades para adquirir
material escolar e merenda, por exemplo, eram empecilhos enfrentados por
alunos dessa origem para acessar a escola. Ou seja, as dificuldades
enfrentadas por alunos negros, presentes durante o século XIX,
permaneceram nas primeiras décadas do século XX; no mesmo período em
que aconteciam os debates acerca da importância da disseminação da
educação popular. (BARROS, 2005, p. 85).

É de se esperar, portanto, que a Imprensa Negra, devido ao seu protagonismo


naquele que é entendido como o primeiro estágio do movimento negro brasileiro do século
XX ¾ a saber, as décadas de 1920 e de 1930 (PEREIRA, 2008) ¾, discuta e denuncie, com
recorrência, essas dificuldades. Regina Pahim Pinto (1987) esclarece que sempre houve certo
“valor atribuído à educação por esses órgãos de comunicação, seja pelas próprias
características que se revestiram – alguns desses eram chamados jornais culturais – seja
devido aos apelos que eles dirigiam à comunidade negra para instruir-se e elevar o seu nível
cultural” (PINTO, 1987, p. 11). São ilustrativos, nesse sentido, os excertos compilados nos
trabalhos da pesquisadora Sabrina Balsalobre (2009a; 2009b) sobre a Imprensa Negra, os
quais, entre outros aspectos (sobretudo linguísticos)26, se voltam ao caráter instrutivo dos
periódicos paulistas. Destacamos alguns exemplos27:

(i)
Esta antithese completa de tudo o que é orgânica tem como cousa principal o
analphabetismo que predomina em mais de dois terço de tão infeliz raça. (O
Alfinete. Ano I, número 3. Setembro de 1918. apud BALSALOBRE, 2009a,
p. 231).

(ii)
Aos leitores
Digam o que quizerem, mas é uma verdade, estamos convencidos que a
maioria dos nossos homens de cor, pouco ou nada fazem para sahirem do
triste estado de decadencia em que vivem! É lastimável! Nós precisamos
unirmo-nos, porque é da união que nasce a força.
Empunhando o nosso estandarte em pról d’um idéal elevado, como seja: o
combate ao Analphabetismo, essa praga que nos fazem mais escravos, do

26
A pesquisadora desenvolve suas pesquisas na área de Linguística Histórica.
27
No contexto de análise de exemplares da Imprensa Negra, consideramos pertinentes as seguintes observações:
“Antes de passarmos ao exame dessas fontes, gostaríamos de expressar nossa preocupação quanto às formas de
tratar a imprensa negra da época. Embora importante no que se refere à difusão de novas idéias, ela tinha um
espaço de circulação limitado. Não se pode esquecer que ela se veiculava entre os poucos que eram alfabetizados
na população negra brasileira. Ou seja, não se destinava à massa mas àqueles que tinham em seus currículos uma
história, pequena que fosse, de escolarização (Gonçalves, 1997). Entretanto, junto a muitos desses reunia-se
‘gente sem estudo para ouvir as notícias’. ‘Avó, pai sem leitura, comprava o jornal, para que os netos, os filhos
lessem para eles’, conta Antunes Cunha (2000)”. (GONÇALVES; SILVA, 2000, pp. 140-141).
65

que quando o Brazil era uma feitoria; é que não recuamos perante os ataques
e zombarias dos pessimistas e dos que vivem sómente para lançar a
desharmonia no seio da nossa classe. Vamos, meus amigos, um pouco de
bôa vontade, porque combater o Analphabetismo é dever de honra de todo
do brazileiro. (O Alfinete. Ano I, número 8. Março de 1919. apud
BALSALOBRE, 2009b, p. 15).

(iii)
Para nós vencermos essa difficuldade, precisamos trazer os livros didacticos
da nossa terra na dextra e na outra os utensílios do trabalho que representam
os formidaveis progressos do nosso glorioso estado de S. Paulo, expoente
maximo da União. (O Clarim d’Alvorada. Ano I, número 1. Fevereiro de
1928. apud BALSALOBRE, 2009b, p. 16).

(iv)
O negro para o negro
Si há quem pense que o negro ainda não tratou da sua educação, e para tal é
necessário o apoio de gregos e troyanos: nós outros achamos que se torna
preciso antes de qualquer ajuda tratarmos da nossa UNIÃO, para evitarmos
as innumeras divergências que por certo surgirão: isto é o que tem
acontecido até a data presente. (O Clarim d’Alvorada. Ano I, número 6.
Julho de 1928. apud BALSALOBRE, 2009b, p. 27).

(v)
Educação
Educação corresponde a um conjunto de princípios de ordem social, em que
impera a delicadeza, a gentileza, a civilidade. (...)
Assim, saibam as mães dirigir seus filhos: ensinem-lhes o caminho do Bem e
da Justiça: Dêm-lhes exemplos salutares e, estamos certos, amanhan tereis o
homem de côr, a nova geração de que necessitaes!
O exemplo dos Paes é a maior força que afecta o espirito da criança. (O
Clarim d’Alvorada. Ano I, número 5. Junho de 1928. apud
BALSALOBRE, 2009b, p. 27).

Os excertos i e ii, do periódico O Alfinete - Orgam Litterario, Critico e Recreativo


Dedicado aos Homens de Cor (1918-1919; 1921), vão de encontro ao caráter recreativo
usualmente atribuído aos jornais da primeira fase da imprensa negra. É certo que grande parte
de seu conteúdo voltava-se à vida social dos negros, porém, conforme ilustra o corpus de
Balsalobre, é igualmente perceptível, ainda segundo autora, a repetida denúncia do
analfabetismo feita pelo O Alfinete, com destaque a suas edições iniciais, para além das
frequentes publicações de poemas e de textos literários. Já nos trechos iii, iv e v, retirados de
O Clarim d’Alvorada (1924-1932), persiste o discurso atento à educação (no iii, por exemplo,
observa-se até mesmo uma menção aos livros didáticos “da nossa terra”), mas agora em um
contexto marcado pela postura assumidamente militante da imprensa, no sentido de
conscientizar os leitores e de proclamar a “união” dos negros no enfrentamento dos problemas
66

sociais, com mais afinco do que o observado em O Alfinete ¾ “com relação à imprensa negra
paulista, ela passou a ser militante com O Clarim d’Alvorada. Antes os jornais existiam para
comunicar assuntos especificamente sociais, como batizado, casamento, falecimento e alguns
trabalhos literários” (LEITE apud CUTI, 1992, p. 19). Finalmente, no que tange ao excerto v,
chama a atenção o papel atribuído à família na educação do negro, ou seja, às ações práticas
informais a serem concretizadas pelos pais. É interessante notar que se apresenta nessa
passagem uma concepção de educação baseada em regras sociais de comportamento
(“gentileza”, “delicadeza” e “civilidade”). Se pensada conjuntamente com a responsabilidade
imputada aos negros no excerto ii, por exemplo (“a maioria dos nossos homens de cor, pouco
ou nada fazem para sahirem do triste estado de decadencia em que vivem! É lastimável!”),
percebe-se que, na primeira metade do século XX, a educação do negro era entendida como
um problema a ser resolvido pelos negros, e não, ainda, pelo Estado, seja pela acentuada
marginalização sofrida pelo grupo, seja pela impossibilidade de se aproximar dos poderes
públicos. No plano discursivo, a segunda fase do movimento negro, iniciada em 1940, começa
a esboçar um tom mais crítico frente ao papel do Estado, ensaiando um posicionamento que
se torna significativo somente a partir da década de 1970, com o início dos debates sobre a
redemocratização do país e, por conseguinte, sobre o papel da educação pública de modo
geral.

Não há quase referência [no início do século XX] quanto à educação como
um dever do Estado e direito das famílias. As entidades invertem a questão.
A educação aparece como uma obrigação da família. A crítica ao descaso do
governo para com a educação dos negros aparece na mesma proporção em
que o protesto racial endurece, ou seja, se radicaliza. (GONÇALVES &
SILVA, 2000, p. 143).

Dessarte, e ao encontro das conclusões de Luiz Alberto Oliveira Gonçalves e


Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva (2000), esses jornais nos levam a supor que “o abandono
a que foi relegada a população negra motivou os movimentos negros, do início do século, a
chamar para si a tarefa de educar e escolarizar as suas crianças, os seus jovens e, de um modo
geral, os adultos” (GONÇALVES & SILVA, 2000, pp. 142-143), uma hipótese reforçada
pelas ações práticas informais que discutimos a seguir.
Em suma, a Imprensa Negra confirma, portanto, a existência de muitas ações
discursivas nas lutas antirracistas no Brasil, para as quais a educação (ou a sua negação)
afirma-se um tema de relevância. Concernente, por sua vez, às ações práticas, a história do
67

movimento negro tem recordado as diferentes organizações negras também a partir de seu
papel na educação popular, e, portanto, informal, dos militantes. Mencionaremos
especialmente suas organizações escolares, uma vez que “por intermédio dos jornais negros
da época, têm-se informações importantes quanto à existência de escolas mantidas
exclusivamente pelas entidades negras, sem qualquer subvenção do Estado” (GONÇALVES
& SILVA, 2000, p. 141).
Nas décadas de 1920 e de 1930, ganham notoriedade, respectivamente, os cursos
ofertados pelo Centro Cívico Palmares (1926-1929) e pela Frente Negra Brasileira (FNB;
1931-1938). Dotadas de escolas próprias, ambas situadas na cidade de São Paulo (SP), as
entidades ofereciam, para além de cursos de alfabetização, outras disciplinas escolares, como
história e geografia, e, no segundo caso, também aulas de música e de inglês (DOMINGUES,
2008); observa-se, assim, que as iniciativas educacionais mostram-se como um ponto de
continuidade entre a primeira e a segunda entidade. No que tange à década de 1940, têm
especial destaque as atividades do Teatro Experimental do Negro (TEN), fundado por Abdias
Nascimento em 1944, na cidade do Rio de Janeiro. Fazendo uso das dependências da sede da
União Nacional dos Estudantes (UNE), o TEN assumia “o teatro como veículo poderoso de
educação popular” (RODRIGUES apud ROMÃO, 2005, p. 125), conforme explica Ironides
Rodrigues, então responsável pelo “extenso” curso de alfabetização ministrado pelo grupo
teatral. Segundo ele, no TEN, conteúdos de Português, História, Aritmética e Educação Moral
e Cívica eram articulados “a noções de História e Evolução do Teatro Universal”, cujo recorte
abarcava o folclore, bem como “façanhas e lendas” da cultura afro-brasileira (ibidem). Por
fim, cabe assinalar que, a despeito da suma importância das iniciativas das três organizações
(Centro Cívico Palmares, FNB e TEN), elas não se constituem únicas, mas, ao contrário, se
somam a outras ocorrências similares:

Independentemente da eficácia dessas convocações, vale assinalar que a


FNB não era a única organização do meio negro paulista que mantinha
projetos educacionais na década de 1930. O Clube Recreativo 28 de
Setembro, da cidade de Jundiaí, por exemplo, mantinha em suas
dependências uma escola, chamada “Cruz e Souza” (A Voz da Raça, 15 dez.
1934, p. 2; abr. 1937, p. 2). Por sua vez, o Centro Cívico José do Patrocínio,
da cidade de São Carlos, criou “escolas de alfabetização e de instrução
profissional”. Nessa mesma cidade, o Grêmio Recreativo Flor de Maio
também abriu uma escola, oferecendo cursos que correspondiam ao primeiro
ciclo do ensino fundamental (antigo primário). Escarafunchando as atas da
agremiação, Márcio Aguiar verificou que o início das aulas estava
convocado para o dia primeiro de outubro de 1934. Dois anos depois, uma
68

ata registrava um ofício da Prefeitura, comunicando ao Flor de Maio a


nomeação de “um professor para o curso noturno que reiniciaria as aulas
após o término das férias” (Aguiar, 1998, p. 55). (DOMINGUES, 2008, p.
530).28

Como vimos, tais ações práticas informais de escolarização continuam a assumir


importante papel social até a década de 1980  quando há um significativo alargamento da
“educação comunitária” entre as organizações do movimento negro (GONÇALVES &
SILVA, 2000) , têm em comum o fato de configurarem-se respostas aos empecilhos
impostos aos negros pelo sistema de ensino formal. Nesse sentido, elas são, muitas vezes,
acompanhadas por discursos que questionam as escolas convencionais, os quais, por sua vez,
também se tornam mais intensos do período supracitado. Tomando a FNB como exemplo,
Domingues (2008) explica que teve início já entre as suas lideranças a exposição de um
posicionamento crítico, ainda que embrionário, em relação às posturas e aos conteúdos
verificados na rede oficial de ensino. Somados à denúncia de atitudes discriminatórias por
parte dos docentes quando em contato com estudantes negros, emergem, na FNB,
questionamentos concernentes também aos saberes escolares oficiais. A despeito de essas
críticas haverem sido formuladas em 1930, elas nos remetem, com certa facilidade, a algumas
das motivações e a alguns dos princípios que viriam a fundamentar a lei 10.639/2003:

Outro tipo de crítica dirigia-se aos conteúdos didáticos. Na opinião de


José Bueno Feliciano, “o sentimentalismo envenenado” das escolas, “com as
suas referências mais ou menos tolas ao ‘pretinho Benedito’, com os seus
elogios de raposas ao heroísmo de Henrique Dias, têm dado ao negro a
impressão de que os seus antepassados foram uns desgraçados e de que os
jovens negros só por isso têm de ser sempre uns vencidos”. Para alterar essa
situação, Bueno Feliciano desafiava os “caluniadores” a “consultar os
documentos” históricos (A Voz da Raça, 24 jun. 1933, p. 4). Em diversos

28
Embora o foco da nossa discussão seja principalmente o século XX, o trabalho de Cruz (2005) soma a
algumas das ações por nós mencionadas iniciativas datadas também no século XIX: “No que diz respeito ao
esforço específico do grupo em se apropriar dos saberes formais exigidos socialmente, mesmo quando as
políticas públicas não os contemplavam, fica patente a criação de escolas pelos próprios negros. Ainda se dispõe
de poucos registros históricos dessas experiências, embora tenham existido. Alguns trabalhos levantaram
informações sobre o Colégio Perseverança ou Cesarino, primeiro colégio feminino fundado em Campinas, no
ano de 1860, e o Colégio São Benedito, criado em Campinas, em 1902, para alfabetizar os filhos dos homens de
cor da cidade (MACIEL, 1997; BARBOSA, 1997; PEREIRA, 1999); ou aulas públicas oferecidas pela
irmandade de São Benedito até 1821, em São Luís do Maranhão (MORAES, 1995). Outras escolas são apenas
citadas em alguns trabalhos, a exemplo da Escola Primária no Clube Negro Flor de Maio de São Carlos (SP), a
Escola de Ferroviários de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, e a promoção de cursos de alfabetização, de curso
primário regular e de um curso preparatório para o ginásio criado pela Frente Negra Brasileira, em São Paulo
(PINTO, 1993; CUNHA JR. 1996; BARBOSA, 1997). Há também registro de uma escola criada pelo negro
Cosme, no Quilombo da Fazenda Lagoa-Amarela, em Chapadinha, no Estado do Maranhão, para o ensino da
leitura e escrita para os escravos aquilombados (CUNHA, 1999, p. 81)”. (CRUZ, 2005, p. 28).
69

momentos, as lideranças frentenegrinas reprovaram a maneira enviesada


e/ou preconceituosa com que os autores de livros enfocavam a história do
negro e de sua participação na formação do Brasil. Alertavam para as
repercussões negativas que tal modelo de história poderia “exercer no aluno
negro, ao transmitirem uma imagem de fracasso, uma imagem que
contribuía para diminuí-lo e não para elevá-lo, como deveria ser a função da
escola” (Pinto, 1993, p. 252).
É interessante notar que a reprovação não ficou somente no plano da
denúncia retórica. As lideranças frentenegrinas procuraram esboçar – ainda
que por um prisma mítico e esquemático – uma nova abordagem para a
história do negro. Alguns fatos da história do Brasil Colônia (como a
“heróica” expulsão dos holandeses do Nordeste brasileiro e a “epopéia” do
Quilombo dos Palmares) eram freqüentemente rememorados; a intenção era
comprovar a participação decisiva do elemento negro no berço da
“civilização” brasileira. No período do Império, o episódio mais lembrado
era a Guerra do Paraguai. E, para transmitir credibilidade, as lideranças
frentenegrinas costumavam apoiar-se nos estudos dos especialistas da
matéria:
Assinala o eminente historiador Rocha Pombo – Na Guerra do
Paraguai, o mais notável dos nossos conflitos externos, o elemento
negro – figurou com mais de dois terços das nossas forças, tanto
navais como de terra. Tanto na ordem interna como externa, afirma o
inesquecível historiador – o negro tem sido o braço poderoso da
nação. (A Voz da Raça, set. 1936, p. 4).
Por essa perspectiva, a história do Brasil confundia-se com os feitos do
negro. Esse foi o “esteio da independência”; o elemento humano central para
a implantação da “primeira República”. Enfim, a “raça negra” foi a
executora dessa “epopéia gigantesca” chamada Brasil (A Voz da Raça, maio
1936, p. 1). (negrito nosso) (DOMINGUES, 2008, p. 528).

A ênfase dada aos saberes da disciplina de História é recorrente nos discursos do


movimento negro do século XX, e ganha força entre 1970 e 1980. Pereira (2011) recorda, por
exemplo, a “Carta de Princípios” (1978) do Movimento Negro Unificado (MNU), escrita logo
após a criação da entidade, documento em que se reivindica “entre outras coisas, a
reavaliação do papel do negro na história do Brasil e a valorização da cultura negra”
(PEREIRA, 2011, p. 26). Observa-se na carta o reconhecimento da existência de uma espécie
de “colonização, descaracterização, esmagamento e comercialização” da cultura negra (MNU,
1978, s/p)29, bem como a necessidade de se lutar pela “reavaliação da cultura negra e combate
sistemático à sua comercialização, folclorização e distorção” (ibidem). Em “Programa de
Ação” publicado em 1982, a “luta pela introdução da História da África e do Negro no Brasil
nos currículos escolares” surge, inclusive, como uma das demandas “mínimas” do MNU

29
Disponível em <https://movimentonegrounificadoba.files.wordpress.com/2013/10/carta-de-princc3adpios-do-
movimento-negro-unificado.doc>. Acesso em <12/12/2018>.
70

(DOMINGUES, 2008, p. 113). Na leitura que Gonçalves & Silva (2000) fazem do documento
de 1982, ganha destaque também a proposta de “mudança radical nos currículos, visando a
eliminação de preconceitos e estereótipos em relação aos negros e à cultura afro-brasileira na
formação de professores com o intuito de comprometê-los no combate ao racismo na sala de
aula” (GONÇALVES & SILVA, 2000, p. 151).
Em revisão bibliográfica pioneira sobre a história da educação do negro, publicada
em 1987, Regina Pahim Pinto apontava que, na época, a reivindicação “mais frequentemente
presente nas manifestações do movimento negro relacionadas à educação” era as
“reformulações do currículo” (PINTO, 1987, p. 30). Partindo do exemplo da proposta
apresentada por Abdias do Nascimento no 2º Festival Mundial de Artes e Culturas Negras,
realizado em Lagos, Nigéria, em 12 de fevereiro de 197730  a qual sugeria que nos países
onde existisse “significativa descendência africana” fossem incluídos nos currículos de todos
os níveis “cursos compulsórios de História Africana, Swahili, História dos Povos Africanos
na Diáspora” (PINTO, 1987, p. 30) , a pesquisadora elenca diversas iniciativas similares
por ela identificadas em diferentes estados brasileiros: a criação, em São Paulo, da Comissão
de Educação de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra, em 1984, que se
voltava, entre outros aspectos, à observância e à reformulação dos currículos e dos livros
didáticos, de modo que seus levantamentos tiveram por resultados a denúncia da necessidade
de se dar novos enfoques ao papel do negro e dos escravos na História do Brasil (PINTO,
1987, p. 30); a enfática sugestão de recuperação da História da África nas escolas,
reincidentemente observada nos encontros nacionais do movimento negro, como no Encontro
Nacional de Uberaba-MG (1984), no I Seminário de Integração (1985), em Botucatu-SP, no II
Encontro Nacional sobre “Realidade do Negro na Educação” (1985), realizado em Porto
Alegre-RS, e também no VI Encontro de Negros do Norte e Nordeste (1986), ocorrido em
Aracaju-SE.
Não bastassem tais ocorrências, Pinto (1987) dá destaque, ainda, àquela que
considera ser a iniciativa de “maior alcance, e que obteve resultados concretos”: a proposta
pedagógica denominada “Pedagogia Interétnica” (1978), formulada pelo Departamento de
Ciências Sociais do Núcleo Cultural Afro-Brasileiro (BA) em conjunto com a Universidade

30
Segundo levantamentos da autora, Abdias do Nascimento denunciava, à época, “o que ele chamava de
bastardização da cultura africana [...]” (PINTO, 1987, p. 29). Ao tecer críticas “àqueles que combatem as
tentativas de auto-afirmação do afro-brasileira”, os posicionamentos de Nascimento apontavam, segundo Pinto,
para a presença do eurocentrismo na educação e para a ausência da África nos currículos (p. 30).
71

Federal da Bahia (UFBA), por meio de pesquisa coordenada pelos sociólogos Roberto Santos
e Manoel de Almeida Cruz31. Com o objetivo de “resgatar os valores afro-brasileiros através
da educação formal” (PINTO, 1987, p. 30), suas diretrizes contavam com menção também à
subalternidade dos saberes e das culturas indígenas, bem como a indicação do ensino de
“Literatura Afro-Brasileira” (ibid., p. 31). Segunda a autora, a iniciativa exerceu influência
nas mudanças curriculares ocorridas em 1985, momento em que a rede estadual da Bahia
incorporou, de forma experimental, a disciplina “Estudos Africanos” aos cursos do 1º e do 2º
graus.
É curioso observar em relação à “Pedagogia Interética” que, embora seus efeitos
prático-pedagógicos tenham sido mais evidentes no contexto de luta do movimento negro, a
questão da educação indígena, para além de compor essa proposta, era recordada também no
que tange à formação dos não índios, o que rememora, de imediato, o teor daquela que viria a
ser, quase vinte anos depois, a lei 11.645/08:

A pedagogia interétnica entende que paralelamente à educação do índio deve


haver, também, a educação do não índio, devido à existência do preconceito
anti-índio e do etnocentrismo no interior da sociedade envolvente. Os
integrantes desta sociedade têm uma visão estereotipada do índio
concebendo-o como preguiçoso, feroz, bárbaro e traiçoeiro. Sem falar na
visão romântica da literatura de Gonçalves Dias e de José de Alencar.
Assim, o sistema educacional da sociedade envolvente deve introduzir nos
seus currículos matérias fundamentadas nos valores da cultura indígena,
além de efetuar campanhas de informação ao público sobre a real situação
sócio-cultural e existencial do índio. As recomendações da pedagogia
interétnica poderiam melhorar as relações entre a sociedade nacional e a
sociedade indígena, reduzindo desta forma, o etnocentrismo e o preconceito
contra o índio (CRUZ, 1987, p. 75)

Com base nesta e nas demais ocorrências listadas, entende-se, pois, por que Amilcar
Araujo Pereira (2011) reforça o fato de o texto da “Constituição cidadã” de 1988 refletir
“algumas das reivindicações de diferentes grupos sociais que até então não eram
contemplados na construção dos currículos escolares de História, como se pode observar no
parágrafo 1º do Art. 242 da Constituição, que já determinava que ‘O ensino da História do
Brasil levará em conta as contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do
povo brasileiro’” (PEREIRA, 2011, p. 26). Não é, pois, por acaso que se nota tal alteração na

31
A “Pedagogia Interétnica” também é por nós abordada no primeiro capítulo, sob outro enfoque.
72

nova constituinte, uma vez que conquistas desse tipo nunca advêm de cima para baixo, mas
sim das ruas para o Congresso, não o contrário32.
Ainda no contexto da década de 1980, também em relação às deficiências dos
currículos, as ações discursivas e teóricas vêm acompanhadas de ações práticas informais,
dado que o movimento negro não esperou pela criação e pela aprovação da lei 10.639/2003
para renovar os materiais didáticos. Entendendo que a narrativa única, branca e eurocêntrica,
disseminada nas escolas pode acentuar a discriminação racial, iniciativas foram tomadas no
sentido de produzir e disseminar materiais paradidáticos que valorizassem a cultura e a
história dos negros no Brasil. Um bom exemplo desse tipo de ação deu-se por intermédio da
militante Maria Raimunda (Mundinha) Araujo, presidente do Centro de Cultura Negra do
Maranhão (CNN) do Maranhão, a qual produziu, em parceria com outros militantes
maranhenses, cartilhas “que foram inclusive publicadas, por exemplo, no início da década de
1980, em Belo Horizonte, Minas Gerais” (PEREIRA, 2011, p. 40)33. Em entrevistas
integradas ao acervo do CPDOC/FGV, Mundinha esclarece que inicialmente a distribuição e
a apresentação do material eram acordadas diretamente com as escolas, ficando sujeitas à boa
vontade dos diretores; porém, em um segundo momento, por volta de 1982, o CCN conseguiu
firmar um convênio com a Secretaria de Educação, visando tanto ampliar e facilitar o contato
com as escolas, quanto engajar os professores no projeto (PEREIRA, 2011, p. 40). Ao
descrever seus processos de pesquisa e a respectiva recepção das escolas, seus relatos
ressaltam a importância e os efeitos de romper com as narrativas únicas e de preencher
lacunas históricas nos currículos:

Já em maio de 1980, fizemos a primeira Semana do Negro e, desde a


primeira, a gente se voltou para fazer palestras nas escolas. Nesse mesmo

32
Embora tenhamos dado ênfase a exemplos que antecedem a Constituição, a fim de traçar uma linha de
continuidade entre as reivindicações do movimento negro da década de 1980 e o teor do parágrafo 1º do Art. 242
da Carta Magna de 1988, é interessante citar um evento ocorrido em 1991, descrito em outra publicação de Pinto
(1993); trata-se de um fórum realizado no Rio Janeiro, resultado da articulação do IPEAFRO (Instituto de
Pesquisas e Estudos Afro-brasileiros) a diversas secretarias de educação e de cultura, o que teve como norte
“corrigir as distorções existentes no ensino a respeito do tema” (PINTO, 1993, p. 34), dado o contexto favorável
da visão pluralista postulada pela Constituição (1988) e pelo Estatuto da Criança (1990). Em seus anais,
publicados, segundo a autora, em um caderno intitulado “A ÁFRICA na escola brasileira” (1991), eram
reiteradas algumas reivindicações do movimento negro: “necessidade de se integrarem os ‘assuntos africanos e
afro-brasileiros ao currículo escolar’” (PINTO, 1993, p. 34), haja vista tal omissão ser nociva tanto à criança
negra quanto à branca. Ao listar ações concretas de implantação de uma educação denominada “afrocentrada”,
os debates ocorridos no fórum englobaram desde a produção de materiais até a questão da formação do
professor.
33
O artigo de Pereira (2011) disponibiliza, inclusive, imagens desses materiais didáticos.
73

ano comecei a ir para o Arquivo Público para pesquisar, porque achei que
tinha que ter informações sobre o negro no Maranhão nos arquivos. E lá eu
já pesquisei sobre leis abolicionistas, pegava logo os textos: o que foi a Lei
do Ventre Livre? Pegava o texto da Lei Áurea. Porque eu sabia que isso era
desconhecido de todo mundo. Aí a gente já discutia: a Lei dos Sexagenários
será que libertou mesmo? E esses meninos? – era o texto da Lei do Ventre
Livre, que mostrava que, na realidade, a criança não estava liberta. Poxa,
isso causava uma sensação nas escolas. Não era só por você estar dizendo
“no Brasil tem discriminação”, mas era pelo novo que a gente estava
levando, era pelas coisas que nunca antes tinham sido discutidas com os
professores, e o próprio preconceito na sala de aula, o preconceito em todo
local. (MUNDINHA ARAÚJO apud ALBERTI & PEREIRA, 2007, p. 202).

Outrossim, Pereira (2011) afirma, a exemplo do que vimos em relação às escolas


mantidas pelo movimento negro, que a produção de cartilhas como a do CCN do Maranhão
também “foi uma prática recorrente nas organizações negras de norte a sul do Brasil” (p. 42),
a respeito da qual ele argumenta e fornece exemplos:

E essas cartilhas circulavam nos diferentes estados, em função das redes de


relações estabelecidas pelos militantes de todo o país, principalmente na
década de 1980. E essas publicações tinham o objetivo, primeiro, de
apresentar aspectos pouquíssimos conhecidos da história do Brasil,
especialmente as histórias dos negros no Brasil. Os próprios títulos são
bastante sugestivos nesse sentido. O Caderno de descolonização da nossa
história: Zumbi, João Cândido e os dias de hoje, publicado por Amauri
Mendes Pereira e Yedo Ferreira, militantes negros no Rio de Janeiro, e a
cartilha citada do CCN do Maranhão Esta história eu não conhecia, ambos
de 1980, são dois exemplos emblemáticos do que se quer dizer aqui. O
primeiro traz relatos históricos baseados nos livros Palmares, a guerra dos
escravos, de Décio Freitas, e A Revolta da Chibata, de Edmar Morel, e na
apresentação da cartilha os autores dizem o seguinte: “Juntamos os dois
relatos históricos a alguns dos resultados de reflexões nossas sobre a história
do Brasil, e resolvemos editá-los com o objetivo principal de alargar o
máximo possível o conhecimento destes fatos históricos tão significativos,
até onde, dificilmente, chegam os livros.” Já a cartilha do CCN, aliando a
informação sobre a história dos negros no Brasil a uma tentativa de aumento
da autoestima por parte das crianças negras, adotava a seguinte estratégia:
uma mãe contava histórias “positivas” dos negros, como as dos quilombos,
por exemplo, para explicar o processo da abolição da escravatura ao menino
negro que acabara de brigar na escola com um menino branco, que havia
dito a seguinte frase após a briga: “Negrinho! Culpada disso é a princesa
Isabel!”. (PEREIRA, 2011, p. 42)

Decerto, os discursos e as ações do movimento negro na década de 1980


reaproximam-nos do marco temporal das ações parlamentares que são tidas como precursoras
da lei 10.639/03, as quais, como vimos na abertura da seção, dão início ao pedido formal de
inclusão da História e da Cultura indígena e afro-brasileira nos currículos (a saber, os
74

anteriormente citados PL 1332/1983, de Abdias Nascimento e PL 678/88, de Paulo Paim).


Concomitante a essas respostas iniciais do Congresso frente às lutas históricas da população
negra, ocorre no mesmo período, em decorrência do contexto político do país, outras
movimentações por parte do poder público que assinalam certa possibilidade de aproximação
entre as ações práticas informais de combate ao racismo empreendidas pelo movimento negro
e as ações práticas formais a serem instituídas pelo governo. Tomamos como exemplo, uma
vez mais, os fatos recuperados por Gonçalves & Silva:

Não podemos esquecer que, ainda em 1982, houve mudanças significativas


nos governos estaduais e nas capitais do país. Em algumas administrações
desses estados, foram organizados grupos de assessoria para assuntos da
comunidade negra. Neste período, secretarias de educação e secretarias de
cultura passaram a contar com assessores que, entre outras coisas, buscavam
interferir nos currículos escolares, nos livros didáticos e assim por diante.
Foram os casos das Secretarias do Estado da Educação de São Paulo e da
Bahia, e da Secretaria de Cultura do Município do Rio de Janeiro. Nas
administrações subseqüentes, essas assessorias foram criadas em outros
estados da Federação, como Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Distrito
Federal e outros. Como praticamente em todos os casos supracitados, os
assessores eram recrutados na própria comunidade negra,
[...].(GONÇALVES; SILVA, 2000, p. 151).34

No desenvolvimento de suas análises, os autores chamam a atenção para a


movimentação das entidades negras em relação, especificamente, às políticas nacionais de
avaliação e distribuição de livros didáticos. A essa altura, era já significativa a discussão
sobre o racismo presente em materiais escolares, visto que a denúncia da “ideologia escolar
dominante” (GONÇALVES; SILVA, 2000, p. 155)  das quais foram alvo não apenas os
livros, mas também os currículos, a formação dos professores etc. (ibidem) , assumiu um
lugar importante na luta do movimento negro pela democratização do ensino nos anos 80. Foi
então que a abertura ao debate com as organizações públicas permitiu, de forma inédita, um
contato direto com os responsáveis pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), que
até hoje regula a adoção de livros didáticos pelas escolas públicas:

Em 1987, entidades negras de Brasília pressionaram a Fundação de


Assistência ao Estudante (FAE) para que fossem adotadas medidas eficazes
de combate ao racismo no livro didático. A FAE, por intermédio da Diretoria
34
Embora tenha sido positiva a possibilidade de diálogo com as Secretarias de Educação, os autores fazem uma
ressalva quanto à efetivação de tais parcerias; eles explicam que houve resistência em relação às assessorias
fornecidas por militantes negros às Secretarias nesse período, o que limitou a atuação e o alcance do trabalho dos
assessores.
75

do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), convidou representantes


de organizações negras de todo país para participar de um evento no qual se
fez um balanço dos problemas de discriminação que afetam o livro didático.
Do evento participaram todos os técnicos das Secretarias Estaduais de
Educação envolvidos no PNLD. Na ocasião, militantes, técnicos e
pesquisadores avaliaram a importância da medida, uma vez que a FAE fazia
circular nos sistemas de ensino em torno de 60 milhões de livros didáticos.
(GONÇALVES; SILVA, 2000, p. 153).

O livro Educação e Discriminação dos Negros (1988), organizado por Regina Lúcia
Couto de Melo e Rita de Cássia Freitas Coelho, apresenta a compilação de textos do encontro
mencionado no excerto anterior, a saber, o “Seminário Educação e Discriminação dos
Negros”, realizado em 1987, em Belo Horizonte. Em seu texto de apresentação, anuncia-se
uma “abertura do pensamento pedagógico aos processos e movimentos sociais” (MELO &
COELHO, 1988, p. 9), bem como a importância de considerar, no contexto de formulação das
políticas públicas, “a prática política dos movimentos negros, as possíveis contribuições desta
à prática educativa, bem como o reconhecimento de parcerias a nível dos movimentos sociais
[...]” (ibidem). Trata-se, em nossa leitura, de um documento que explicita a emergência de um
movimento de transposição política das pautas e das demandas dos negros no Brasil, haja
vista uma das grandes premissas de tal Seminário ser a de que “as ações dos movimentos
sociais impõem mudança qualitativa das funções do Estado, que aponta a necessidade de uma
ampliação da capacidade de identificar as práticas educativas que os movimentos sociais
contêm [...]” (MELO & COELHO, 1988, p. 9-10). Novamente, é possível afirmar que ocorre,
nesse momento, certo reconhecimento das ações práticas informais dos movimentos negros
enquanto produtivas e pertinentes inspirações para a definição de ações práticas formais de
combate ao racismo, a serem postuladas, finalmente, pelo poder público.
Nos anais do evento, o livro didático surge como o principal “veículo de
comunicação” (MELO & COELHO, 1988, p. 11) a ser responsável pela recuperação da
“participação da população afro-brasileira no processo histórico nacional” (ibidem). No painel
“A discriminação nos livros didáticos”, apresentado por Ana Célia da Silva, pesquisadora da
Universidade Federal da Bahia (UFBA), acusa-se, com base na análise de 82 livros, “a grande
ausência” do negro nos materiais, sendo sua rara presença “distorcida, caricaturada e
cristalizada” (SILVA, 1988, p. 92); a essa presença, a autora soma, por sua vez, a
representação distorcida “da mulher, do índio, do pobre e do trabalhador” (p. 92). Nas
conclusões de sua pesquisa, enfatizam-se e justificam-se as lutas pela inserção da “cultura
negra, da História do negro na África e aqui” (p. 96), bem como “o trabalho de pesquisadores
76

que desvendam a ideologia do dominador, propõem a reavaliação dos livros e currículos e a


eliminação dos textos didáticos de todos os seus ismos” (ibid., p. 96). Também os
“Encaminhamentos Propostos” pelo Seminário dão destaque ao papel dos livros didáticos, ao
sugerir debates entre editores e movimentos negros.
É bastante interessante notar que, contrastivamente a outros momentos do
movimento negro, a discussão da educação do negro surge inscrita nos debates sobre
cidadania e direitos, e que, portanto, ela passa a ser entendida como um problema de
responsabilidade do Estado, e não dos negros, conforme evidencia, inclusive, uma das falas
da conferência de encerramento do referido Seminário:

Os negros são também consumidores de livros didáticos, não se podendo


esquecer que, embora a compra destes se faça via Estado, é a população
negra importante consumidora e se constitui em significativa parcela de
contribuintes na sociedade. Neste sentido, entendem os movimentos negros
ter o direito de exigir um produto que não os discrimine, sobretudo quando
este é adquirido com recursos públicos. (GONÇALVES, 1988b, p. 122).

Em comunicação precedente, intitulada “A discriminação racial na escola”, o


professor e militante Luiz Alberto de Oliveira Gonçalves aponta “a negação do patrimônio
cultural do negro” (GONÇALVES, 1988a, p. 60) como uma das manifestações da
discriminação racial nas escolas, à qual, segundo o conferencista, estão atrelados tanto o
problema da “transmissão de conteúdos” quanto o da própria “produção de conhecimento”
(GONÇALVES, 1988a, p. 61). Aproximando, portanto, escola e sociedade, e rememorando,
de certa forma, a questão da produção de lacunas no campo do saber (esta já discutida em
nosso capítulo introdutório), ele explica:

Uma questão crucial para a população negra brasileira é a sua visibilidade na


sociedade. Estar esporadicamente, na escola, através da folclorização da
cultura negra, é compactuar, a meu ver, com o mecanismo societário
repressivo que torna a população negra invisível, sob a capa do mito da
democracia racial.
Em uma análise sobre as manifestações da discriminação racial, na escola, é
preciso que se atente não só para o que se transmite, mas para o que se
impede de transmitir. A escola é um espaço de relações sociais, mais do que
de transmissão cultural. Entendida enquanto espaço de relações, aí, sim, é
possível pensar-se na construção de um “novo saber”, e, ainda, perceber o
que impede a sua constituição. (GONÇALVES, 1988a, p. 61)

Para além de se mostrar bastante alinhado aos debates contemporâneos sobre a lei
10.639/2003, o “Seminário Educação e Discriminação dos Negros” (1987) é um importante
77

exemplo dos inúmeros eventos inspirados pelo contexto sócio-histórico de 1988, ano do
centenário da Abolição e da aprovação da Constituição Federal, ocasião a partir da qual
passam a surgir novas configurações de ações teóricas e de ações práticas informais
envolvendo as lutas dos negros pelo direito à educação, tal como a emergência de discussões
sobre a necessidade de ações afirmativas, em geral, e sobre a importância das cotas raciais,
em particular, articuladas ao trabalho realizado por diferentes organizações em “levar jovens
negros às universidades através da criação dos primeiros ‘pré-vestibulares para negros e
carentes’, que de maneira diferente das ONGs, têm como base o trabalho voluntario realizado
por professores e coordenadores de seus núcleos” (PEREIRA, 2013, p. 315). Trata-se, pois, a
partir da década de 1990, de um deslocamento de foco para a questão do acesso ao ensino
superior35. Salvaguardada a inquestionável relevância desse momento de luta, consideramos
que tal período foge ao escopo da breve revisão historiográfica por nós proposta. Ainda que a
lei 10.639/2003 traga implicações à formação docente, afetando, assim, em maior ou menor
medida, os cursos de licenciatura de muitas universidades, entendemos que são, com relação à
esfera social, os discursos e as ações inscritos no período de 1920 a 1980, por se centrarem
com mais afinco na educação básica, os que mais diretamente fundamentaram o teor da
alteração curricular conquistada em 2003 pelo movimento negro, motivo pelo qual não
abordamos detalhadamente a história, tão recente, da educação do negro após 1990.
Consideramos, portanto, que a historiografia traçada nesta subseção mostra-se
suficiente para se perceber que o movimento negro não permaneceu inerte aos efeitos da
colonização do contexto educacional tantos dos negros quanto dos brancos, e que a lei
10.639/2003 emerge de uma soma crescente de lutas. Desde as importantes ações discursivas
empreendidas pela Imprensa Negra até as ações práticas informais que ganham forma através
das escolas e dos materiais produzidos pela militância negra, observa-se uma rede de
iniciativas que vai sempre ao encontro da descolonização do sistema educacional. A fim de
ampliar e desdobrar a leitura desse quadro, buscamos estabelecer, na seção seguinte, em que
revisamos a atuação do movimento indígena e o seu respectivo papel na aprovação da lei de
2008, breves e pontuais comparações entre as ações orquestradas pelos dois grupos no âmbito
da educação.

35
Para ter acesso a maiores informações sobre o tema, vide o capítulo “Debates atuais”, pp. 394-439, do livro
Histórias do movimento negro no Brasil: depoimentos ao CPDOC (ALBERTI & PEREIRA, 2007).
78

2.2. Precursores sociais e jurídicos da lei nº 11.645/2008

LEI Nº 11.645, DE 10 MARÇO DE 2008.


Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei nº
10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da
educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a
obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”.
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional
decreta e eu sanciono a seguinte Lei:
Art. 1º O art. 26-A da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a
vigorar com a seguinte redação:
“Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio,
públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-
brasileira e indígena.
§ 1º O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos
aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população
brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história
da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil,
a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da
sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social,
econômica e política, pertinentes à história do Brasil.
§ 2º Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos
indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo
escolar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e história
brasileiras.” (NR)
Art. 2º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Brasília, 10 de março de 2008; 187º da Independência e 120º da República.
LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA
Fernando Haddad
Este texto não substitui o publicado no DOU de 11.3.2008.
(BRASIL, 2008, s/p).

O primeiro contato dos povos indígenas com a educação escolar ocorre no período
colonial, através das missões religiosas do cristianismo, vindas de Portugal. Objetivando
“aniquilar suas culturas e incorporar mão-de-obra indígena à sociedade nacional”
(FERREIRA, 2001, p. 72), elas se fundamentavam na catequese e no ensino obrigatório de
português em detrimento da manutenção das culturas e das línguas nativas. Concernente a
este ponto, é bastante relevante estabelecer, a priori, a distinção entre “educação” e
“escolarização”, recordada por Fontan (2017, p. 64): a educação indígena, “transmitida por
cada povo indígena, por meio da educação tradicional”, é “anterior e insubstituível” à
educação escolar indígena, esta sim inicialmente imposta pelos colonizadores e religiosos, no
século XVI, e posteriormente demandada e reformulada pelo próprio movimento indígena, no
século XX (p. 67). No contexto, portanto, da fase coercitiva de escolarização, marcada por
79

forte violência simbólica, vê-se um ensino movido pelos preceitos da dominação cultural tida
como favorável à dominação territorial almejada.

E como se processou a catequese das crianças ameríndias pelos jesuítas?


Primeiramente, os jesuítas gramaticaram a língua tupi por meio dos trabalhos
de Juan Azpilcueta Navarro e José de Anchieta. Em seguida, compuseram
um catecismo bilíngue, português e tupi, na forma de perguntas e respostas
que acentuavam negativamente os hábitos indígenas considerados
pecaminosos, e positivamente os valores cristãos ratificados pelo Concílio de
Trento (1545-1563). Ou seja, o “Catecismo Brasílico” anchietano estava
constituído por um léxico bilíngue que privilegiava os sete sacramentos
(batismo, eucaristia, confirmação, penitência, unção dos enfermos,
ordenação e matrimônio), os dez mandamentos, as orações (Pai-Nosso e
Ave-Maria) e os pecados mortais e veniais, mediante o uso de elementos
extraídos da própria cultura tupi, principalmente aqueles relacionados ao
antagonismo existente entre o bem (Tupã/Deus) e o mal
(Anhangá/Demônios). (FERREIRA JR, 2010, pp. 20-21)

É certo assinalar que a educação jesuítica colonial centrada na catequização dos


índios começa a perder força já no século XVII, uma vez que a violência exercida pelos
portugueses na conquista de territórios fazia desaparecer, aos poucos, as populações
ameríndias, motivo pelo qual o trabalho dos missionários passava a ser mais direcionado à
educação dos filhos dos colonos (FERREIRA JR, 2010, p. 26). Se somarmos essa informação
ao fato de a extinção oficial do ensino jesuítico no país ter ocorrido um século depois, em
1759, em decorrência das reformas pombalinas, pode-se indagar se os resultados de tal
opressão devem ser considerado, afinal, tão grande. Ocorre, porém, que, com maior ou menor
alcance, a influência da ideologia de assimilação e de aculturação das organizações religiosas
perdura com veemência até o século XIX e com alguma intensidade até mesmo na primeira
metade do século XX. Coube ao Império, por exemplo, “regular”, através do decreto 426, de
24 de julho de 1845, as ações dos grupos missionários, formados por outras correntes do
catolicismo, o que assinalava, então, o desinteresse em impedir esse tipo de oferta de ensino.
São muitos os registros de instalação de internatos nas aldeias indígenas durante o Império e a
República, os quais, segundo D’Angelis (2012, p. 22), proibiam, à luz de tal ideologia, o uso
das línguas maternas; é importante registrar, inclusive, que “alguns [internatos] se mantiveram
até quase a década de 1980” (ibidem). Ao relatar a ação dos salesianos no estado do
Amazonas, por exemplo, Ferreira (2001) afirma que, a partir da aprovação do decreto, apesar
da existência de casos bem sucedidos de resistência indígena, nas aldeias em que se
instauravam tais escolas, “crianças eram separadas de sua família e, fundamentalmente,
80

investia-se na capacitação profissional dos índios, como forma de produzir mão-de-obra


barata para a população não-índia circunvizinha” (FERREIRA, 2001, p. 73).
No século XX, surgem, entre muitas controvérsias e muitos interesses escusos, os
primeiros sinais de ação do Estado em prol da assistência indígena, marcados pela criação do
Serviço de Proteção aos Índios (SPI), em 1910, e por sua posterior substituição/restauração
por meio da Fundação Nacional do Índio (Funai), em 1967. Ainda que o ensino religioso
perdesse um pouco de espaço nas escolas para crianças indígenas disseminadas pelo SPI,
“essas escolas não se distinguiam das escolas rurais do país”, uma vez que mantinham a
imposição da leitura e da escrita em Língua Portuguesa (D’ANGELIS, 2012, p. 22), bem
como o enfoque na formação para o trabalho  trabalho agrícola para os meninos; trabalho
doméstico para as meninas (FERREIRA, 2001, p. 75). Outra ressalva é pertinente no que diz
respeito ao, aparentemente positivo, reconhecimento do bilinguismo e do ensino de língua
nativas no “Estatuto do Índio” (1973), apoiado, em um segundo momento, pela Funai.
D’Angelis (2012) esclarece que “a Funai efetivamente encarnou e representou, em todos os
níveis, a política indigenista dos governos militares” (p. 23), de modo que a parceria com os
pesquisadores norte-americanos da Summer Institute of Linguistics (SIL) culminou na oferta
de um ensino bilíngue “de transição”, pautado na desvalorização da língua indígena, “à qual
se designa apenas o papel de ponte para levar à introdução e domínio da língua nacional” (p.
23). Trata-se de uma ação em consonância com os ideais das Constituições anteriores à de
1988 (isto é, de 1934, de 1946 e de 1967), que, de acordo com Fontan (2017), “faziam
referência à ‘incorporação dos silvícolas à comunidade nacional’. Ou seja, [segundo esses
documentos] não se buscava proteger a diferença existente, e sim desprezá-la ante a dita
cultura civilizada e evoluída. [...] [E] a almejada integração ocorreria com o ensino e a
educação, os quais proporcionariam meios para a gradual incorporação os índios à ‘sociedade
nacional’” (FONTAN, 2017, p. 78).
A título de síntese, a história da educação escolar indígena desde o Brasil Colonial
até as décadas de 1970 e de 1980 pode ser resumida da seguinte forma:

É preciso reconhecer que no Brasil, do século XVI até praticamente a


metade deste século [século XX], a oferta de programas de educação escolar
às comunidades indígenas esteve pautada pela catequização, pela civilização
e pela integração forçada dos índios à sociedade nacional. Dos missionários
jesuítas aos positivistas do Serviço de Proteção aos Índios, do ensino
catequético ao bilíngüe, a tônica foi sempre negar a diferença, assimilar os
índios, fazer que se transformassem em algo diferente do que eram. Nesse
81

processo, a instituição da escola entre grupos indígenas serviu de


instrumento de imposição de valores alheios e negação de identidades e
culturas diferenciadas.
Testemunhos históricos da educação indígena são encontrados desde os
primórdios da colonização do Brasil, destacando-se, a partir de 1549, a ação
e os trabalhos dos missionários jesuítas, trabalhos e atividades tanto
missionários quanto educacionais, que se estenderam até o ano de 1759.
A introdução da escola para povos indígenas é concomitante ao início do
processo de colonização do país. Num primeiro momento a escola aparece
como instrumento privilegiado para a catequese, depois para formar mão-de-
obra e, por fim, para incorporar os índios definitivamente à Nação como
trabalhadores nacionais desprovidos de atributos étnicos ou culturais. A idéia
da integração firmou-se na política indigenista brasileira, desde o período
Colonial até o final dos anos 1980. A política integracionista começava por
reconhecer a diversidade das sociedades indígenas que havia no país, mas
apontava como ponto de chegada o fim dessa diversidade. Toda
diferenciação étnica seria anulada ao se incorporar os índios à sociedade
nacional. Ao tornar-se brasileiros, tinham de abandonar sua própria
identidade. (BRASIL-MEC/CNE, 1999, pp. 4-5).

Em meados dos anos de 1970, após um histórico de influências negativas do Estado e


da Igreja em seus percursos educacionais, a articulação dos indígenas, incentivada por
organizações não governamentais favoráveis à causa, propicia o surgimento do movimento
indígena tal qual o conhecemos hoje. Ironicamente, é tida como fundamental nesse processo
uma entidade ligada ao setor progressista da Igreja Católica; trata-se do Conselho Indigenista
Missionário (CIMI), de 1972, que se afasta dos históricos fins religiosos da Igreja para apoiar
a aproximação dos povos indígenas. O pesquisador e escritor indígena Daniel Munduruku
explica que até esse momento “cada comunidade ou cada povo procurava defender apenas
seus interesses, não se dando conta de que outros povos e comunidades viviam em situações
semelhantes” (MUNDURUKU, 2012, p. 45), daí a importância de assembleias como a
patrocinada pelo CIMI em 1974, no estado do Mato Grosso, na qual, de forma inédita, se
reuniram lideranças indígenas (p. 41), dando condições à transformação de demandas locais,
de cada aldeia, em pautas comuns a todos os indígenas. Ainda de acordo com Munduruku,
reuniões desse tipo “foram as principais fontes da criação de uma consciência pan-indígena
em que as lideranças começaram a ter uma atitude macrorregional com relação às demandas
dos outros povos indígenas brasileiros” (52).
Inscrito nesse período de grandes eventos, o Encontro Nacional sobre Educação
Indígena (1979), organizado pela Subcomissão de Educação da Comissão Pró-índio de São
Paulo, fornece um panorama das ações práticas informais que precederam a conquista de
políticas oficiais no campo da educação escolar dos índios. Reunindo professores,
82

antropólogos, linguistas e outros profissionais que, juntamente com membros das


comunidades indígenas, atuavam, na época, em escolas indígenas de diferentes estados do
país, o evento promoveu uma importante troca de relatos e de perspectivas. Ao encontro do
caráter de segmentário descrito por Daniel Munduruku, as experiências compartilhadas na
ocasião “eram bastante isoladas, resultando mais do entusiasmo e intuição de uma pessoa do
que projetos institucionais, programadas. Dessa forma, aquele momento do encontro e [o livro
dele resultante] eram oportunidades para que se as analisassem, ampliassem e aprofundassem,
tirando-as do isolamento” (CAPACLA, 1995, p. 57). Similares às escolas mantidas pelo
movimento negro do século XX, as iniciativas indígenas que caracterizam essa fase da
escolarização indígena também funcionavam paralelamente às práticas oficiais, apoiadas por
organizações não governamentais. Eis que o Encontro Nacional sobre Educação Indígena, ao
reunir representantes de escolas de Norte a Sul do país (vide CAPACLA, 1995, pp. 56-66),
fornece grande contribuição à transposição política das pautas indígenas para a educação,
visto que, de acordo com inúmeros pesquisadores, inspirou diversos documentos, programas e
leis que vieram após a sua realização.
Dessarte, uma vez (re)unido e, por conseguinte, mais organizado, o movimento
indígena passa a cobrar do Estado o exercício da cidadania dos povos originários, sendo o
direito a terra sua maior bandeira, haja vista o papel central da floresta na manutenção de suas
culturas. Para a esfera da educação, tomando como inspiração as experiências
intraeducacionais, clama-se o acesso a uma educação escolar diferenciada, que garantisse a
preservação de suas culturas e que rompesse de forma definitiva com a lógica integracionista.
Inscritos num contexto sociopolítico de união de diversos grupos sociais em prol do fim da
ditadura militar e, consequentemente, a favor da redemocratização do país, os indígenas
passam a reiterar a necessidade de um ensino “específico, intercultural e bilíngue”, nos
moldes do modelo de educação que viria a ser oficialmente reconhecido pela Constituição de
1988 (BRASIL-MEC/CNE, 1999, p. 9). Observa-se, pois, no final do século XX, uma
mudança de paradigma com relação à escolarização, na medida em que “firmava-se a ideia de
que a escola poderia ser algo ‘a favor’ dos índios: instrumento de acesso a informações e
conhecimentos vitais para sua sobrevivência e para sua autodeterminação” (DA SILVA,
2001, p. 31). A educação escolar ganha um sentido de educação complementar, de forte viés
político, visto que, já no Encontro Nacional de 1979, os indígenas reconheciam, por exemplo,
83

a “urgente necessidade [do domínio da língua portuguesa] nas situações de contato”


(BRASIL-MEC/CNE, 1999, pp. 58-59). Ademais,

Mesmo com todos os desafios colocados para os povos indígenas quando


estes decidem instituir uma escola, esta instituição é considerada importante
quando está a serviço das lutas políticas e identitárias. Em encontros e
reuniões das comunidades indígenas que problematizam a experiência
escolar é explícita a delimitação do lugar político da escola. As expressões
usadas pelos indígenas mostram que a escola só tem sentido se estiver
subordinada às lutas políticas pela garantia da terra e pela conquista plena de
seus direitos. Eles qualificam a escola como “formadora de guerreiros”,
“específica e diferenciada” e delimitam suas funções como “escola para
aprender a ler um documento”, “a serviço da comunidade”, “uma escola
indígena e não uma escola com peninhas”, “escola para formar nossos
próprios advogados, médicos, enfermeiros, professores...”, “para não
depender
mais dos brancos”, “para não sermos mais explorados”, “escola inserida na
luta pela terra”, “escola na retomada” e “escola para aprender a língua”,
dentre outras qualificações. (BONIN, 2015, p. 2).

Com o objetivo de atender a tais fins, as escolas indígenas, em oposição às escolas


convencionais, assumem diversas particularidades, sempre orientadas pela intenção de
diálogo com a educação indígena tradicional36, não escolarizada, a qual se ancora, com
frequência, na transmissão comunitária dos saberes ancestrais, nas narrativas orais e, também,
na soma da educação do corpo, da mente e do espírito (MUNDURUKU, 2012). Marcada pela
adoção do bi ou multilinguismo e pela prescrição de professores também indígenas, bem
como pela possibilidade de flexibilização curricular e estrutural consoante às necessidades de
cada etnia, a educação escolar indígena é formalizada, pois, com base nos seguintes
princípios:

[...] o Comitê de Educação Escolar Indígena formulou e publicou em 1994,


nos Cadernos de Educação Básica do MEC, Série Institucional, as
"Diretrizes para a Política Nacional de Educação Escolar Indígena". Partindo
do pressuposto de que a educação escolar indígena é responsabilidade do
Estado, mas tem como objetivo conquistar a autonomia sócio-econômico-
cultural de cada povo, estabelece como princípios gerais que: as escolas
indígenas devem ser específicas e diferenciadas; devem ser interculturais,
intercambiando as culturas das diversas sociedades num processo dinâmico;
a educação necessariamente bilíngüe; o processo de aprendizagem deve ser

36
Nas palavras do educador indígena Gersem Baniwa, na educação indígena tradicional “se aprende a viver
bem, ser um bom caçador, um bom pescador, um bom marido, uma boa esposa, um bom filho (...) a fazer roça,
plantar, fazer farinha, canoa, cestarias, cuidar da saúde, a benzer, curar doenças, conhecer plantas medicinais,
aprende geografia das matas, dos rios, cacuri, etc. Os conhecimentos específicos como o dos pajés, estão a
serviço e ao alcance de todos. [...]” (GERSEM apud FONTAN, 2017, p. 64).
84

global, isto é, os conteúdos não devem ser compartimentalizados e a


construção do conhecimento deve ser coletiva. Estabelece também as
normas e diretrizes em relação a vários aspectos da educação. Prevê que os
conteúdos curriculares devem ser construídos de acordo com a demanda e
interesses do grupo, garantindo a livre opção pela incorporação, ou não, de
componentes e sistemas de explicação tradicionais da cultura, assim como
elementos - como por exemplo aparatos eletrônicos - de uso da sociedade;
devem ser compostos em função do momento social em que eles estão
inseridos, explicitando a realidade histórica e o desvelamento das leis da
natureza. Sobre a relação do educador com o aluno, propõe que ela deve ser
mediatizada pela comunidade. Em relação às formas de avaliação, afirma
basicamente que esta deve ser diagnóstica, de preferência feita em forma de
relatórios e sem ter caráter de retenção e seleção. Quanto à organização,
coloca que o calendário deve basear-se nas atividades cotidianas e rituais do
grupo indígena e a gestão da escola deve ser exercida pelos membros da
comunidade de acordo com seus padrões tradicionais. O material didático-
pedagógico deve ser construído pelos professores indígenas em conjunto
com profissionais de pedagogia, lingüística e outras áreas. A formação de
recursos humanos, portanto, deve capacitar os professores indígenas para
construírem o material didático e, rnais que isso: formar índios como
pesquisadores de sua própria história, geografia, saúde, etc; formá-los
também como alfabetizadores em suas línguas maternas e no português, e
capacitá-los como gestores dos seus processos educativos. Também
assessores especializados das entidades e universidades devem ser formados
para atuar em parceria com os professores indígenas, além dos técnicos das
Secretarias de Educação e Diretorias Regionais da FUNAI. A carreira do
magistério para os professores indígenas deve ser então diferenciada,
resguardando-se a isonomia salarial. São previstos, para tanto, a criação de
Cursos de Formação de Professores para o ensino de 1º e 2º graus e Cursos
de Magistério. Em relação ao financiamento, por fim, as escolas cadastradas
nas Secretarias Estaduais de Educação devem receber recursos provenientes
de transferências do MEC além de outros convênios, como parte do
financiamento de projetos na área de Educação Básica. As ONGs e
instituições universitárias também podem pleitear estes recursos. (BRASIL-
MEC/CNE, 1999, pp. 34-35).

Para termos a dimensão de como funcionou, na prática, a construção das escolas


diferenciadas, vale a leitura do relato de experiência de Gersem dos Santos Luciano,
conhecido como Gersem Baniwa, importante intelectual e professor indígena envolvido com a
causa da educação, que atuou diretamente na conformação das escolas indígenas no
município São Gabriel da Cachoeira (AM), também no final da década de 1990:

Assim que terminei a Graduação na Universidade Federal do Amazonas


(UFAM), atuei 3 anos como secretário de Educação do município de São
Gabriel da Cachoeira (AM), entre 1997 e 1999. Eu era muito jovem, pouco
entendia e pouco conhecia o ambiente da política governamental. O que eu
sabia e queria eram basicamente duas coisas: uma, que era muito estranha
aquela escola que existia na época na região, que proibia as línguas
indígenas, as tradições e os conhecimentos dos povos indígenas. Essa escola
85

perseguia os velhos pajés e os sábios indígenas. Outra coisa que sabia era a
necessidade de mudar aos poucos essa escola. Foi com esses objetivos e
sentido que atuei. Foi uma grande aprendizagem e também grande desafio de
transformar as escolas rurais, como eram chamadas as escolas implantadas
nas aldeias com o currículo colonial, integracionista e perseguidor dos
conhecimentos e culturas indígenas, para escolas indígenas autogeridas, com
currículos interculturais e bilíngues. Para isso inicialmente tivemos que
elaborar e aprovar todo o arcabouço legal e normativo educacional do
município, para depois iniciarmos as mudanças curriculares, pedagógicas e
de gestão das escolas indígenas.
Os 4 anos na Secretaria de Educação foram fundamentais para os
compromissos posteriores. Nós mudamos totalmente a diretriz política do
município, que era um município comum, com leis seguindo as diretrizes e
as políticas nacionais, sem nenhuma diferenciação para os povos indígenas,
que representam 90% da população do município. Durante os 4 anos à
frente da Secretaria de Educação do município, conseguimos mudar
todo o arcabouço legal para possibilitar a construção de escolas
diferenciadas. Escolas que não proibissem mais as línguas e que
passassem a valorizar os conhecimentos indígenas. Começou-se a
discutir material didático específico nas línguas indígenas, isso numa
época em que, mesmo na academia, esse tema era muito pouco
discutido. Pouca gente se dedicava a esses temas e não tinha literatura:
nossa missão era uma espécie de aventura. (destaque nosso) (LUCIANO,
2012, p. 128).

Depreendemos desses excertos que as lutas dos indígenas brasileiros por uma
educação diferenciada simbolizam, assim, uma luta pela descolonização do próprio conceito
de escola, um enfrentamento aos projetos e aos modelos educacionais de matriz colonial
historicamente vigentes no país. E, por essa razão, “negar a educação escolar pelo fato de
estar, substancialmente, imbricada em uma ideologia dominante, [romperia] com a
possibilidade de moldá-la para que se compatibilize com o respeito ao modo peculiar de vida
e cultura dos povos indígenas” (FONTAN, 2017, p. 66). Nesse sentido, em diálogo com a
discussão teórica que apresentamos no início deste trabalho, entendemos que

A educação escolar é um dos suportes da colonialidade do poder


principalmente porque opera de maneira estratégica através da dominação
epistêmica. A imposição do conhecimento ocidental como o único e válido e
a negação e destruição dos saberes dos povos originários se constituiu em
um dos mais poderosos mecanismos de dominação. Essa violência praticada
contra os saberes dos povos “conquistados”, chegando a expropriá-los de
suas formas próprias de pensar a vida e do seu jeito de existir no mundo, foi
denominada pelo professor Boaventura de Sousa Santos de “epistemicídio”.
Isso revela quão desafiadora é a luta em defesa da Educação Escolar
Indígena e quão importante é, dentro desse contexto, o papel desempenhado
pelo professor indígena, que deve atuar na perspectiva de revolucionar a
escola, tornando-a uma aliada dos projetos de vida dos povos originários.
(BONIN, 2015, p. 2).
86

Nesse movimento, são especialmente relevantes as estratégias envolvendo a


resistência à dominação linguística, das quais resulta, em última instância, a literatura
indígena. Naturalmente, inúmeras foram e são as reflexões (de índios e não índios) sobre a
questão da alfabetização e da necessidade de escrita dos povos indígenas, tendo em vista sua
tradição oral37. Como já mencionado, a demanda pela proficiência (oral e escrita) em língua
portuguesa surge fortemente embasada no uso social e político do português em situações de
contato com os brancos38. Interessa-nos, contudo, dar destaque aos sentidos e aos efeitos
culturais que a escolarização do ensino de línguas ganha no contexto indígena. No documento
“Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas”, publicado pelo MEC em 1998,
constam relatos de professores de diferentes etnias a respeito da escrita em língua originária e
em português, assim como a descrição dos potenciais da escrita em língua portuguesa no que
tange à divulgação das culturas autóctones. Destacamos dois trechos:

Uma das línguas que mais atuam aqui no Brasil é a língua portuguesa, mas
a gente sabe que a nossa língua também é de grande importância. E a gente
perdeu muitas histórias, muitos casos passados que a gente agora podia ter
e contar para os nossos filhos. Vamos supor, você sabe de uma história que
é Yawaxikunawa. Antes de você morrer, se você não contar para o seu filho,
o seu filho não vai saber nada dessa história. Então a gente quer registrar
um pouquinho dos mitos. [...] Joaquim Maná, professor Kaxinawa, AC.
(BRASIL-MEC/SEF/DPEF, 1998, p. 126).

O conhecimento da língua portuguesa permite que as populações indígenas


conheçam o funcionamento da sociedade envolvente e, ainda, que elas
tenham acesso a informações e tecnologias variadas. A produção de textos
indígenas em língua portuguesa contribui também, em sentido inverso, para
que a sociedade envolvente - e a humanidade como um todo - conheça
melhor as sociedades indígenas e, com isso, enriqueça-se culturalmente. Os
textos produzidos em língua portuguesa, ou para ela traduzidos, nas escolas
e comunidades indígenas, têm sido uma forma privilegiada de divulgação
dos conhecimentos tradicionais e de afirmação étnica. Esses materiais
fornecem dados importantes sobre as diferentes culturas indígenas e suas
37
Em “De ‘povos ágrafos’ a ‘cidadãos analfabetos’: as concepções teóricas subjacentes às propostas
educacionais para os povos indígenas no Brasil” (2014), Maria Elisa Ladeira revisa e questiona os
embasamentos e os efeitos das propostas bilíngues de alfabetização, delineando um interessante quadro sobre o
tema. Nele, a pesquisadora chama a atenção para o fato de tais políticas não estabeleceram, muitas vezes, uma
relação necessária com a manutenção falada das línguas originárias, mesmo ao se ter em vista tratar-se de
comunidades tradicionalmente ágrafas.
38
“Eu estou trabalhando com o português porque agora a gente tem mais contato com o branco para fazer
negociação de compra e venda. Também quero formar mais alunos para escreverem pequenos textos em
português e quero que leiam qualquer tipo de escrita: bilhete, carta, jornais, rótulos... Quero que consigam
dialogar com amigos e não-amigos; quero que consigam resolver problemas na cidade”. Benjamim Chere,
professor Katukina, AC. (BRASIL-MEC/SEF/DPEF, 1998, p. 121).
87

tradições, permitindo que, através deles, a diversidade cultural no país torne-


se mais evidente e possa ser mais respeitada. (ibid., p. 121).

Com o gradual reconhecimento jurídico das escolas indígenas, encontramos, a


exemplo dos excertos anteriores, discursos que correlacionam a escrita indígena à preservação
e à disseminação de suas culturas, inclusive entre os não índios. Contudo, diferentemente do
que observamos nas ações discursivas do movimento negro do século XX, esses
posicionamentos favoráveis à valorização das culturas indígenas entre os brancos não
parecem se tornar substanciais a ponto de se identificar a emergência de um efetivo e
organizado interesse pela modificação dos currículos das escolas convencionais. Isso porque,
como nos mostra a história da educação desses povos, a especificidade da violência simbólica
por eles sofrida culminou na imprescindível luta pela marcação da diferença, e não da
igualdade, na educação; daí a escola indígena, e não as escolas convencionais, ser o maior
foco de luta, conforme atestam muitos documentos históricos e legais. Dito de forma
simplificada, e a título de comparação, é possível notar que a trajetória das pautas indígenas
contrasta com o esforço direcionado pelo movimento negro do século XX ao acesso e à
modificação do sistema oficial de ensino (haja vista, por exemplo, a insistente crítica dos
negros aos currículos de História) no sentido em que a integração a esse sistema sempre
significou, para os índios, uma imposição, uma ameaça, e não uma conquista necessária ao
exercício de suas cidadanias, como o foi, por sua vez, aos negros. Trata-se de um aspecto que,
a nosso ver, chama a atenção para as particularidades das injustiças sociais sofridas por cada
um desses movimentos, contra as quais negros e indígenas empreenderam, por conseguinte,
formas de luta também distintas. E é também com base nesse ponto que analisamos o contexto
de aprovação da lei 11.645/2008, o qual, veremos adiante, tem início em 2003, momento
imediatamente posterior à formalização da educação indígena diferenciada, e é marcado por
algumas discrepâncias com relação à historiografia da lei 10.639/2003. Para tanto, cabe
apresentar, brevemente, modos de se compreender as injustiças sociais, a fim de elucidar as
eventuais similaridades e/ou as possíveis divergências estabelecidas entre o movimento negro
e o movimento indígena.
De acordo com Nancy Fraser (2006), existem duas formas fundamentais de se
compreender as injustiças sociais: a partir de questões da ordem econômica ou com base em
aspectos culturais. No primeiro caso, o das “injustiças econômicas”, verifica-se a ocorrência
de exploração do trabalho, de marginalização econômica e/ou de privação material (FRASER,
88

2006, p. 232); no segundo, no que tange às ditas “injustiças culturais ou simbólicas”, observa-
se, por sua vez, a constituição de “padrões sociais de representação, interpretação e
comunicação”, responsáveis pela “dominação”, pelo “desrespeito” e/ou pelo “ocultamento”
de determinadas culturas (ibidem). Em resposta a elas, consolidam-se diversas formas de
combate, com destaque, respectivamente, às “lutas por redistribuição [econômica]” e às “lutas
por reconhecimento [cultural]” (FRASER, 2006, p. 232). “Em que pese seu mútuo
entrelaçamento”, a autora propõe essas duas categorias de luta visando explorar os dilemas
políticos advindos da luta concomitante contra as diferentes formas de injustiça social, visto
que “os dois tipos de luta estão em tensão; um pode interferir no outro, ou mesmo agir contra
o outro” (p. 233). Serve de exemplo desses embates a questão da “raça”: ao mesmo tempo em
que “estrutura a divisão capitalista do trabalho”, uma vez que “a divisão racial contemporânea
do trabalho remunerado faz parte do legado histórico do colonialismo” (p. 235), ela também
tem “dimensões culturais-valorativas, que a inserem no universo do reconhecimento”
(ibidem). Portanto,

A “raça” também é, portanto, um modo bivalente de coletividade com uma


face econômico-política e uma face cultural-valorativa. Suas duas faces se
entrelaçam para se reforçarem uma à outra, dialeticamente, ainda mais
porque as normas culturais racistas e eurocêntricas estão institucionalizadas
no Estado e na economia, e a desvantagem econômica sofrida pelas pessoas
de cor restringe sua “voz”. Para compensar a injustiça racial, portanto, é
preciso mudar a economia política e a cultura. Mas, como ocorre com o
gênero, o caráter bivalente da “raça” é a fonte de um dilema. Uma vez que as
pessoas de cor sofrem, no mínimo, de dois tipos de injustiça analiticamente
distintos, elas necessariamente precisam, no mínimo, de dois tipos de
remédios analiticamente distintos: redistribuição e reconhecimento, que não
são facilmente conciliáveis. Enquanto a lógica da redistribuição é acabar
com esse negócio de “raça”, a lógica do reconhecimento é valorizar a
especificidade do grupo. Eis, então, a versão anti-racista do dilema da
redistribuição-reconhecimento: como os anti-racistas podem lutar ao mesmo
tempo para abolir a “raça” e para valorizar a especificidade cultural dos
grupos racializados subordinados? [...] Os anti-racistas [...] devem buscar
remédios econômico-políticos que dissolvam a diferenciação “racial”,
enquanto buscam também remédios culturais que valorizem a especificidade
de coletividades desprezadas. Como podem fazer as duas coisas ao mesmo
tempo? (FRASER, 2006, p. 236).

No início de seus apontamentos, a autora enfatiza a frequente correlação estabelecida


entre as “políticas de redistribuição” e a luta por igualdade [econômica], de um lado, e entre
as “políticas de reconhecimento” e o imperativo do direito à diferença [cultural], de outro.
Todavia, ao encontro dos dilemas descritos no excerto anterior, Fraser direciona sua
89

argumentação mais à coexistência e/ou à imbricação das duas vertentes de militância, e menos
à abordagem de casos isolados. No nosso estudo sobre as lutas dos movimentos negro e
indígena pela educação, é precisamente essas intersecções entre a busca por “redistribuição” e
a busca por “reconhecimento” que ganha relevância para a leitura dos fatos e dos discursos
precursores da lei 11.645/2008.
Na seção anterior, verificamos que, no contexto do movimento negro do século XX,
a ideia de descolonização do campo do saber tem início com a luta pela descolonização do
acesso à educação escolar formal, a qual, se interpretada à luz de Fraser (2006), estaria
inserida no âmbito das lutas por redistribuição, dado que o analfabetismo e a falta de
escolaridade serem o principal catalisador da desigualdade econômica experimentada pelos
negros no pós-Abolição. Por outro lado, a partir da segunda metade do século, a crescente
atenção dirigida pela militância negra aos materiais didáticos e aos currículos escolares das
escolas regulares pode ser lida como o início de uma articulação entre lutas por redistribuição
e lutas por reconhecimento, pois, além da pauta da igualdade de acesso e de oportunidades,
passa-se a proclamar a importância da marcação da diversidade cultural nas instituições
escolares, de modo a questionar e a revisar um conjunto de saberes eurocêntricos; em outras
palavras, soma-se aos esforços pela descolonização do acesso, o interesse pela descolonização
de conteúdos, sempre com o intuito de tornar igualitário e democrático o sistema oficial de
ensino. Eis, então, a justificação para a lei 10.639/2003, que, se lida a partir da teoria de
Fraser, corresponderia a uma “política de reconhecimento”39. No caso indígena brasileiro, por
sua vez, os contornos do quadro analítico fraseriano mostra-se um pouco mais complexo, haja
vista a afirmação da diferença na esfera educacional ganhar um significado transformador
mais abrangente neste que naquele grupo. Sabe-se que a principal injustiça econômica
enfrentada historicamente pelos povos originários atrela-se à expropriação de suas terras. No
entanto, mais que uma questão de redistribuição, tal negação se interliga de forma mais
contundente a injustiças culturais, dado que do acesso à terra dependem inúmeras práticas
socioculturais das comunidades indígenas, entre elas, a educação, que estabelece,
tradicionalmente, um forte vínculo com a natureza/a terra (assim como se nota em relação à

39
Foge ao escopo do nosso trabalho explorar de forma pormenorizada as teorias de Nancy Fraser. A quem possa
interessar, sugerimos a leitura do artigo “Relações étnico-raciais e educação: entre a política de satisfação de
necessidades e a política de transfiguração”, em que o pesquisador Valter Silvério (2015) vale-se de modo muito
mais aprofundada das ideias da autora (e de outros pensadores, como Honneth) para discutir a questão do
reconhecimento e da redistribuição a partir das políticas educacionais de recorte racial no Brasil, com destaque,
inclusive, à lei 10.639/2003.
90

medicina indígena, que também depende da floresta e de recursos naturais). Portanto, essa
forte intersecção entre luta por redistribuição e luta por reconhecimento, da qual a questão dos
territórios indígenas é protagonista40, pode servir de explicação, a nosso ver, à dedicação dos
povos indígenas a um modelo diferenciado de educação (com materiais, currículos e práticas
pedagógicas específicas), e não à alteração do sistema de ensino vigente. Suas escolas nunca
fizeram sentido se pensadas nos moldes e, na maioria das vezes, nos territórios dos não índios.
Se para os negros o acesso igualitário à escola formal configurava-se um fator decisivo à
integração social, para os indígenas o problema inicia-se, justamente, na ideia de integração.
E é, pois, a nosso ver, esse menor engajamento indígena nos debates sobre as escolas
tradicionais que talvez explique alguns pormenores dos motes de aprovação da lei 11.645/08.
Apresentado logo após a promulgação da lei 10.639/2003, o projeto que deu origem
à alteração ocorrida em 2008 (PL 433/2003), de autoria da Deputada Mariângela Duarte
(PT/SP), trazia em sua justificação a afirmação de que “a referida lei [10.639] foi criticada
[...] pela comunidade indígena, que não foi contemplada com a previsão de disciplinas para os
alunos conheceram a realidade indígena do país” (BRASIL-DCD, 2003, p. 13940). Além de
justificar a importância da cultura indígena no Brasil, o documento anuncia-se como uma
“manifestação de povos indígenas do Estado do Acre”, sem especificar, porém, quais as etnias
que estariam vinculadas à reivindicação. Trata-se, afinal, de um texto dotado de certas lacunas
explicativas acerca dos agentes e dos fatos sociais envolvidos na ação. Sozinho, ele não
esclarece, portanto, os caminhos que culminaram na proposta.
Visando obter mais detalhes sobre as origens do projeto e sobre a atuação do
movimento indígena frente ao pedido de modificação da lei de 2003, o pesquisador Felipe
Nunes Nobre (2017) recorre a uma pesquisa documental no periódico Porantim, publicado
pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI)41 desde 1978. No período de 2003 a 2008, em
que ocorria no Congresso Federal grande parte das discussões sobre a alteração da lei

40
É importante esclarecer que, devido tanto ao escopo do nosso estudo quanto ao tempo disponível para a
realização da pesquisa, desconsideramos as discussões sobre a educação do negro em áreas rurais, a saber, a
“educação quilombola”. Reconhecemos, no entanto, que, se analisado sob esse viés, a luta do movimento negro
pela educação aproxima-se da luta dos indígenas, visto que a reivindicação comum de um ensino diferenciado e
veementemente dependente da demarcação e da posse de terras. Informações e dados sobre a educação
quilombola podem ser acessados em: <http://portal.mec.gov.br/educacao-quilombola->.

41
Apesar de o nome do Conselho fazer referência à religião, uma vez que sua interligação com frentes
progressistas da Igreja Católica, discutiremos adiante que o CIMI assume um importante papel nas lutas
indígenas, acabando por se afastar de ideários catequéticos.
91

10.639/03, nenhuma publicação crítica ou significativa foi encontrada pelo pesquisador.


Nobre informa que a revista se limitou apenas à publicação do texto original da lei 11.645 na
ocasião de sua aprovação, sem se aprofundar no assunto. Em sua visão, é possível interpretar
que “os editores do jornal tinham pouco ou mesmo nenhum conhecimento sobre a tramitação
desse projeto, ainda mais se considerarmos que as conquistas frutos de mobilização de
organizações indígenas ou indigenistas costumam ser bastante celebradas no periódico, o que
não aconteceu com a Lei em questão. Nas edições seguintes, o assunto não é mais
mencionado” (NOBRE, 2017, p. 40).
Para fundamentar a sua hipótese que de “a Lei 11.645/08 foi mais uma iniciativa de
parlamentares sensíveis ao tema do que propriamente de organizações indígenas ou
indigenistas” (ibid., p. 40), o pesquisador recorre a um relato de Gersem Baniwa:

A escola é a instituição e o lugar privilegiado e estratégico para reduzir ou


eliminar a intolerância, o preconceito, a discriminação e o racismo entre
pessoas e povos. A Lei 11.645 é, portanto, uma excelente oportunidade e
possibilidade para isso. Agora, nós temos alguns desafios. Embora seja um
instrumento importante, nós não estávamos preparados para isso porque veio
um pouco cedo, do ponto de vista da construção mental, do imaginário. Veio
mais como possibilidade. “Nós” quem? Tanto nós indígenas, quanto a
sociedade não indígena. Isso foi uma luta aproveitada do movimento
negro, pela articulação afrodescendente, e a gente conquistou esse
direito muito importante. (destaque nosso) (LUCIANO, 2012, p.141-142
apud NOBRE, 2017, p. 40).

Na leitura de Nobre, “por essa fala entende-se que houve pouca participação
indígena na construção da Lei, e mesmo um sentimento de surpresa com sua publicação”
(NOBRE, 2017, p. 40). Entretanto, sem postularem o desmerecimento do papel
desempenhado pela militância indígena, os dados e os argumentos apresentados pelo
pesquisador sugerem apenas uma diferenciação entre os caminhos percorridos pelas duas leis.
Enquanto é comum encontrar documentos e relatos que celebrem a lei 10.639 como uma
conquista do movimento negro, a começar pela evidente participação de parlamentares negros
e militantes em seu processo burocrático e legal, não houve até o momento uma identificação
equivalente de atores sociais do movimento indígena no contexto específico da aprovação da
lei 11.645. Outros depoimentos de Gersem Baniwa por nós localizado corroboram as ideias
levantadas por Nobre. Ao elencar a falta de material didático como um provável empecilho à
implantação da lei, ele ilustra que, de fato, os indígenas, e também pesquisadores, voltaram-
92

se, ao longo do tempo, quase que exclusivamente à produção de materiais que atendessem
especificamente as escolas indígenas, e não o alunado em geral:

Percebe-se uma movimentação interessante e cada vez maior por um lado,


de pesquisadores, autores, artistas e professores indígenas e não indígenas na
produção de livros e materiais didáticos de apoio docente ou mesmo de
apoio discente nas universidades, e por outro lado, um interesse crescente do
mercado editorial. Isso é muito bom, pois, representam raras possibilidades e
oportunidades que precisam ser valorizadas, potencializadas e
adequadamente aproveitadas. O problema é que os indígenas ou mesmo não
indígenas interessados na questão ainda são poucos e enfrentam gigantescas
dificuldades para se dedicarem a esse trabalho. Não existe linha de
financiamento público para isso, o que é uma pena, pois isso fragiliza e põe
em xeque o futuro da Lei. Além disso, entre os poucos autores,
pesquisadores e professores indígenas não há experiência acumulada de
produção de livros e materiais didáticos voltados para esse público das
escolas não indígenas. Toda experiência existente no campo da produção
literária indigenista está focada em produção de material didático para
a alfabetização de crianças indígenas por meio das famosas “cartilhas
bilíngues”. Nunca se produziu livros e materiais didáticos para além disso,
para as séries finais do ensino fundamental e ensino médio, muito menos
para os iniciantes dos cursos superiores de graduação, é claro, com
raríssimas exceções. (destaque nosso) (LUCIANO, 2016, p. 21).

A declaração de Gersem Baniwa aponta, então, mais um contraste com relação às


ações do movimento negro, o qual, como exposto na subseção anterior, dedicou-se, sobretudo
a partir da década 1980, à produção de materiais alternativos para as escolas convencionais,
sem se manter restrito à produção de conteúdos para as escolas fundadas e dirigidas por
organizações negras. Esse dado é, em nossa percepção, igualmente interessante à análise de
outro relato do intelectual indígena sobre o papel dos materiais didáticos, em que ele aponta a
falta de clareza, por parte dos próprios indígenas, acerca de quais conteúdos devem
fundamentar a aplicação da lei 11.645/2008 nas escolas não indígenas:

Temos grandes desafios: primeiro, não temos materiais didáticos educativos!


E me parece que é difícil produzir material didático para atender essa
orientação normativa, pela própria complexidade que é. Veja: nós estamos
falando de informações, de conhecimentos sobre os índios, para não índios.
Então, o primeiro desafio é como os povos indígenas vão se apropriar dessa
ferramenta para divulgar seus conhecimentos, seus valores, suas culturas e
tradições. Ainda não vejo o movimento indígena mobilizado para isso.
Essa é a principal dificuldade. A primeira pergunta é: “O que os povos
indígenas querem que os não índios saibam deles?”. Isso já é um enorme
problema, porque teremos muitas dificuldades para os próprios índios
definirem isso, diante da grande diversidade de povos, realidades locais e
contextos históricos. São os índios que devem definir o que querem e como
querem ser conhecidos pela sociedade nacional. “Que tipo de conhecimento
93

querem divulgar?” Aos povos indígenas, muitos conhecimentos seus não


interessam que os brancos fiquem sabendo, pois nem internamente são de
domínio público, como são os conhecimentos dos pajés. Teremos muitas
dificuldades para classificar quais são os conhecimentos que podem ser
levados ao conhecimento dos não índios. (destaque nosso) (LUCIANO,
2012, p. 142).

Eis o ponto central do nosso quadro contrastivo dos percursos das duas leis: ainda
que os materiais produzidos pelo movimento negro não tenham sido diretamente aproveitados
ou apropriados pela lei 10.639/2003, nota-se nos documentos oficiais que orientam a
introdução da história e da cultura afro-brasileira na educação básica (BRASIL-
MEC/SECAD, 2006; BRASIL-MEC/SECADI, 2013; BRASIL-MEC/SEPPIR, 2008;
BRASIL-MEC/SEPPIR, 2004) certo diálogo com os conteúdos historicamente recordados
pela militância negra através de cartilhas e manuais independentes. Personagens e momentos
históricos que outrora fundamentaram suas ações práticas informais no campo do saber
ecoam, hoje, nas ações práticas formais adotadas pelo Estado, em especial, na lei
10.639/2003. A fala de Baniwa sobre a falta de mobilização indígena no que tange à
indicação e à definição dos conteúdos a serem ensinados aos não índios indica, por outro lado,
que a lei 11.645/2008 talvez não conte com o mesmo respaldo por parte das ações da
militância indígena, o que nos faz pensar sobre quais seriam os efeitos dessa diferença de
trajetórias. A partir da análise dos materiais didáticos que apresentamos na última seção,
nossa hipótese é de que esse menor engajamento indígena com o sistema oficial de ensino
talvez possa explicar, ao menos parcialmente, a baixa incidência tanto de documentos
regulatórios que direcionem as práticas e os conteúdos esperados pela lei 11.645/2008 (em
oposição aos diversos documentos e estudos que tratam da educação escolar indígena, por
exemplo) quanto para a quase inexistente presença de literaturas indígenas nos livros
94

didáticos do Ensino Médio42. Não se trata de um dado que justifique o descumprimento da lei
por parte das editoras de manuais escolares, mas que, de certo, não pode ser totalmente
desconsiderado.
Com base nesses pontos, julgamos que a realização de pesquisas etnográficas atentas
à recolha e à compilação de uma gama significativa de depoimentos de militantes e
educadores indígenas pode se afirmar um caminho para se elucidar os pormenores do
envolvimento dos indígenas com a conquista e com a posterior implementação da lei43. No
artigo “Educação, literatura e direitos humanos: visões indígenas da lei 11.645/08” (2011), a
pesquisadora Graça Graúna desenvolve um rico trabalho nesse sentido, ao aplicar um
questionário sobre a lei de 2008 a indígenas de diferentes etnias “com o objetivo de enfatizar
a visão indígena em torno do assunto” (GRAÚNA, 2011, p. 231).
Composto por duas perguntas, “1. Quais os desafios e perspectivas para o ensino da
história e da cultura indígenas?” e “2. De que modo a história e a cultura indígena são
referidas no livro didático hoje?” (GRAÚNA, 2011, p. 239), o questionário que fundamenta
as entrevistas de Graúna foi respondido por dezenas de entrevistados, sendo que doze
conjuntos de respostas são disponibilizados no artigo em questão. A leitura dos depoimentos
42
No ano de 2014, o MEC chegou a abrir um edital voltado à “convocação de editores para o processo de
inscrição e seleção de obras de literatura sobre a temática indígena”, ao qual, ao que parece, não foi dado
prosseguimento. No portal do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), encontram-se
disponíveis a notícia de abertura e o respectivo edital do então denominado “Programa Nacional Biblioteca da
Escola (PNBE) indígena”, mas nenhuma informação ou documento que ateste a continuidade do processo ou que
forneça a relação de obras selecionadas. Tendo em vista que o programa visava selecionar acervos literários que
fomentassem “a ruptura de estereótipos sobre histórias, culturas e identidades”, estando aberto a autores
indígenas e não indígenas, tratar-se-ia, afinal, de uma política educacional alinha à lei 11.645/2008. Na ausência
de informações e de investigações sobre o desenrolar do “PNBE indígena”, é possível ter acesso ao trabalho de
Silveira & Bonin (2012), em que se analisam seis obras selecionadas no PNBE 2008 e 2012 à luz da temática
indígena. Já o edital e a notícia que mencionamos podem ser acessados em:
<http://www.fnde.gov.br/index.php/programas/programas-do-livro/consultas/editais-programas-livro/item/5205-
edital-pnbe-ind%C3%ADgena-2015>; <http://portal.mec.gov.br/component/tags/tag/32134>. Acesso em
22/02/2019.
43
Ressaltamos a necessidade de, a nosso ver, pesquisadores interessados pelo tema desenvolverem estudos que
busquem recolher e/ou compilar depoimentos e relatos de membros do movimento indígena acerca,
especificamente, das origens e dos significados da lei 11.645/2008 para as próprias comunidades indígenas.
Trata-se, em nossa leitura, de uma lacuna nos estudos das áreas de Educação e de Ciências Sociais, a qual, se
preenchida, pode vir a enriquecer os debates sobre as leis 10.639/03 e 11.645/08, bem como sobre as lutas por
uma educação multicultural em geral. Por ora, registramos aqui comentários feitos por Graça Graúna,
pesquisadora e escritora indígena, do povo Potiguara, sobre o fato de lei 10.639/03 ter sido aprovada sem haver
nela menção aos povos indígenas: “Quando a Presidência da Republica sancionou, em 2003, a lei 10.639 que
obriga, especificamente, o ensino da história e da cultura africanas, a primeira impressão que se teve foi a
geração de uma espécie de separatismo: negros de um lado, índios de outro. Considerando que a Constituição de
1988 não reconhece plenamente os direitos dos povos indígenas no Brasil, mais uma vez a presença indígena foi
posta à margem, pois a lei 10.639 foi criada para beneficiar um grupo étnico em detrimento de outros. Ao
sancionar essa lei, o governo brasileiro infelizmente abriu espaço para o predomínio da referência do
invasor/colonizador quanto ao ensino da história e da cultura indígenas nas escolas” (GRAÚNA, 2011, p. 237).
95

coletados por Graúna nos permitiu notar o apontamento recorrente, nas falas dos indígenas, de
certos desafios a serem enfrentados pela lei de 2008, tais como: o desconhecimento da
diversidade cultural e étnica dos povos indígenas e os respectivos estereótipos expressos em
livros didáticos; a hegemonia de narrativas e de visões não indígenas, sobretudo no que
concerne à história desses povos, em particular, e à história do Brasil, em geral; a persistência
da imagem do indígena presa ao passado, especialmente ao período colonial, em detrimento
do indígena contemporâneo. Embora figure entre as “soluções” sugeridas pelos entrevistados
a insistente defesa de materiais produzidos pelos próprios indígenas, reconhece-se que, em se
tratando do ensino da História e da Cultura dos povos indígenas em escolas não indígenas,
existem empecilhos específicos às particularidades da lei 11.645/08, como expõem,
respectivamente, por Juvenal Teodoro Payayá, do povo Payayá, e por Nádia Akau, do povo
Tupinambá de Olivença (Ilhéus-BA):

Primeiro, é saber a serviço de quem está a lei 11.645. Em síntese: é sabido


que não existem suficientes professores índios preparados para trabalhar
com tais disciplinas, nem para produzir o material didático necessário, [e que
transmitam] a visão do povo que não teve ainda esta oportunidade de contá-
la. Fica a lei para ser usada com a compreensão do outro. Ora, isto já existe
em menor tamanho. Este é o desafio: poder contar nossa própria história com
o sentimento de quem viveu, de quem deseja continuar verdadeiramente a
viver a herança de uma ancestralidade singular; ter consciência de que as
mudanças são relativas, que o que se diz útil o é para poucos, e que nem
sempre as mudanças precisam acontecer. (Payayá apud GRAÚNA, 2011, p.
245).

Hoje as escolas indígenas já têm o maior acervo de materiais específicos das


diversas culturas em nível nacional e estadual referindo-se à Bahia. Mas esse
material ainda não atende às escolas não indígenas que estão sendo
obrigadas pela lei a implementar o ensino dessas culturas [...]. (Akau apud
GRAÚNA, 2011, p. 249).

Os relatos presentes nos dois excertos corroboram, em certa medida, parte das
observações que fizemos a respeito do grau de participação do movimento indígena no
processo de implantação da lei 11.645/08, se comparado ao do movimento negro frente à lei
de 2003, merecendo atenção o aspecto reforçado por Payayá no que engloba a
impossibilidade de os indígenas, em particular de os educadores indígenas, arcarem com a
responsabilidade de produzir o material necessário à efetivação do ensino dos conteúdos
determinados pela nova legislação. Contudo, a despeito dos questionamentos e das perguntas
que lançamos ao longo desta subseção, é inconstestável que “a Lei 11.645/08 não foi uma
dádiva concedida a um grupo inerte, pois seu histórico de lutas e mobilizações lhes deu a
96

visibilidade que propiciou a atenção a suas demandas, ainda que a partir da iniciativa de não
indígenas. Nesse sentido, a Lei não deixa de ser, também, uma conquista de sua mobilização”
(NOBRE, 2017, pp. 42-43). Prova disso está, por exemplo, na descrição que Grupioni (1995)
faz do teor de encontros e de manifestações de professores indígenas no final da década de
1980 e no início da década de 1990, que revelam preocupação com o imaginário que engloba
o ensino da cultura indígena nas escolas convencionais, mostrando que os índios não
permaneceram alheios ao tema:

Nos encontros de professores indígenas, que têm acontecido em todo o


território nacional, estes além de discutirem a situação de suas escolas, têm
também se pronunciado sobre este tema. No documento final do I Encontro
Estadual de Educação Indígena do Mato Grosso, realizado em maio de 1989,
os professores indígenas daquele estado registraram como uma de suas
conclusões, que “a sociedade envolvente deve ser educada no sentido de
abolir a discriminação histórica manifestada constantemente nas suas
relações com os povos indígenas”. Os professores indígenas de Rondônia,
também reunidos por ocasião de seu I Encontro em 1990, no documento que
encaminharam aos Senadores da República, solicitaram a colaboração destes
“para que se respeite os índios e suas culturas nas escolas não-indígenas e
nos livros didáticos”. Na “Declaração de Princípios dos Povos Indígenas do
Amazonas, Roraima e Acre”, escrita em julho de 1991 pelos professores
indígenas e reafirmada em outubro de 1994, está firmado como princípio que
“nas escolas dos não-índios, será corretamente tratada e veiculada a
história e cultura dos povos indígenas brasileiros, a fim de acabar com
os preconceitos e o racismo”. (destaque nosso) (GRUPIONI, 1995, p. 483).

Ao encontro desse excerto, localizamos, no livro Atas indigenistas (1988),


organizado por Ana Gita de Oliveira e Olympio Trindade Serra, um documento apresentado
pela UNI – União das Nações Indígenas do Brasil à Câmara dos Deputados em 1984, na
ocasião do Simpósio “Índios e Estado” em que a educação não indígena é igualmente
recordada. No item VI.2 do campo de Educação, solicita-se que “quando for formulada a
política educacional do Estado, tanto uma política específica de educação indígena, quanto à
[sic] valorização dada ao índio na educação não indígena, devem ser consideradas”
(“Simpósio ‘Índios e Estado’” apud DE OLIVEIRA & SERRA, 1988, p. 72). Por fim, e
novamente a partir das experiências de Gersem Baniwa, vê-se que a lei 11.645/2008 é hoje
tida, também, como uma possibilidade de desdobramento das ações iniciadas junto às
comunidades indígenas:

O curioso dessa história é que o que faço hoje aos ensejos da Lei 11.645, ao
falar, divulgar e ensinar sobre as histórias e culturas indígenas para os não
97

índios à época fazia isso aos parentes índios que, por força repressiva de
séculos de colonização, haviam abandonado suas principais tradições e
estavam em reta final de abandono de suas identidades, línguas e modos
próprios de vida. Assim, o meu esforço era falar da importância das nossas
culturas, tradições, línguas e modos de vida, ao mesmo tempo tendo que
desconstruir o discurso e a prática colonial repressiva até então vigente.
(LUCIANO, 2016, p. 16)

Concluímos, assim, que, apesar de as ações práticas informais do movimento


indígena terem objetivado suprir, sobretudo, as demandas educacionais internas ao
movimento, os índios não ficaram inertes diante dos efeitos da colonização nas escolas
tradicionais. A questão que merece destaque, porém, é a de que as particularidades dos
enfoques de luta do movimento negro e do movimento indígena acabam por exigir leituras
igualmente específicas dos contextos de aprovação das leis 10.639/2003 e 11.645/2008, ainda
que o enfrentamento do projeto de base colonial que fundou a educação brasileira afirme-se
um elo evidente entre os dois grupos. Enquanto no primeiro caso, o dos negros, seja possível
observar um diálogo mais explícito e sólido entre as ações informais da militância e as ações
formais oficializadas pelo Estado para o combate ao racismo na educação, além do fato de tal
militância ter contado com a participação ativa de congressistas pertencentes ao movimento, a
lei de 2008 parece constituir-se, para recuperar as palavras de Baniwa, “uma luta aproveitada
do movimento negro”, e/ou, a nosso ver, um efeito colateral (e nem por isso de menor
importância) das lutas históricas pela educação escolar indígena diferenciada, intercultural e
bilíngue. Seja como for, concordamos com Daniela Munduruku sobre o incontestável “caráter
educativo do movimento indígena”, no sentido em que suas mobilizações caminharam em
uma dupla direção: “a da formação de quadros para a sua continuidade e a da formação da
sociedade brasileira para a existência dos diferentes povos indígenas brasileiros”
(MUNDURUKU, 2012, p. 50). Consequentemente, “a maior contribuição que o Movimento
Indígena ofereceu à sociedade brasileira foi a de revelar – e, portanto, denunciar – a
existência da diversidade cultural e linguística” (p. 222), o que, em nossa leitura, preparou um
solo fértil a ações como a lei 11.645/2008.
98

CAPÍTULO 3. Ensino de Língua Portuguesa e colonialidade de poder:


sobre a (des) colonização da educação literária no Brasil

A conquista das leis 10.639/03 e 11.645/08 implicou, ou pelo menos previu,


mudanças de diversas ordens na educação escolar: na formação de professores, nos currículos
do ensino básico e superior, nos materiais didáticos, nos exames vestibulares, no mercado
editorial etc. São, assim, diversificadas as possibilidades de se estudar os contornos da
transposição didática dos pressupostos e dos conteúdos das leis na esfera escolar. Dessarte, é
possível, e necessário, pensar sua implantação e seus efeitos no contexto das diversas
disciplinas (Português, História, Matemática, Artes, Biologia, Geografia, Educação Física...) e
dos diferentes ciclos e modalidades escolares (Educação Infantil, Educação do Campo,
Ensino Fundamental, Ensino Médio, Ensino de Jovens e Adultos, Ensino Superior...). Uma
breve busca pelos termos “10.639/2003” e “11.635/2008” em plataformas científicas
nacionais permite notar que, de fato, os recortes que listamos entre parênteses vêm sendo, em
maior ou menor medida, abordados, ainda que haja clara preponderância de estudos
concernentes à primeira lei.
Eis que nossa escolha por explorar a aplicação das leis especificamente em livros
didáticos de Língua Portuguesa do Ensino Médio apresenta duas justificativas centrais: (i) o
destaque dado à disciplina de literatura no texto que fundamenta as duas medidas, a saber, “§
2º Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos indígenas brasileiros
serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de educação
artística e de literatura e história brasileiras (NR)” (destaque nosso) (BRASIL, 2008); e
(ii) a menor incidência desse tipo de pesquisa, como indicaram nossos levantamentos
bibliográficos iniciais, nos quais ficou evidente que estudos sobre a relação estabelecida entre
ensino de literatura e diversidade cultural/questão raciais e étnicas voltam-se, com mais
frequência, às nuances do Ensino Fundamental. Ademais, é no Ensino Médio que o debate
sobre o lugar e o papel do cânone literário escolar (enquanto mecanismo de inclusão e de
exclusão de saberes) faz-se mais pertinente, devido, principalmente, à atenção dada às escolas
literárias europeias. Por conseguinte, ao se considerar nosso objetivo de refletir sobre a
descolonização da educação literária à luz de teorias pós-coloniais, essa etapa escolar nos
pareceu mais produtiva no que tange, portanto, a um repensar do eurocentrismo no repertório
escolar, uma vez que tal cânone, de evidente matriz europeia, atesta a presença da
colonialidade de poder na esfera educacional.
99

Ao termos, então, o ensino de literatura como recorte de análise, julgamos necessário


expor na subseção 3.1. deste capítulo o teor dos principais documentos que
fundamentaram/fundamentam o ensino de Língua Portuguesa no Brasil, a fim de verificar de
que modo e em que medida a questão da diversidade cultural faz-se ou não historicamente
presente nos discursos oficiais sobre educação, sobretudo no que diz respeito às orientações
acerca da educação literária. É importante observar, inclusive, que algumas das diretrizes por
nós abordadas, por estarem inscritas no período de 1961 a 2006, foram elaboradas e
publicadas dentro do mesmo recorte temporal em que se deu grande parte das lutas dos
movimentos negro e indígena pela modificação da educação no Brasil, o que pode contribuir
com a ampliação da leitura das ações e dos discursos sociais que elencamos no capítulo
anterior.
Visando concentrar o debate sobre o ensino de Português neste capítulo, a subseção
3.2. contextualiza os significados e o contexto da avaliação dos livros didáticos de Língua
Portuguesa no PNLD 2015, além de fornecer informações mais gerais sobre o programa. Em
3.3., por sua vez, introduzimos e justificamos a metodologia e as categorias que embasam a
análise das coleções, a qual é realizada, efetivamente, no capítulo seguinte (Capítulo 4).
Entendemos que os fundamentos de nossos métodos e de nossas categorizações tocam
questões caras ao ensino de Língua Portuguesa, em geral, e aos documentos regulatórios das
leis, em particular, motivo pelo qual nos parece produtivo antecipar neste capítulo os
pormenores dos quadros analíticos que orientam nossas análises.

3.1. Educação literária e diversidade cultural segundo os documentos oficiais

No contexto de publicação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de


1961 (LDBEN-61) já se fazia presente a condenação de atitudes discriminatórias, com
destaque, em dois momentos, ao preconceito racial (BRASIL, 1961, Art. 1 e Art. 95).
Partindo para uma abordagem mais ampla do tema, de caráter declaradamente tecnicista, a
LDBEN-71 passa, por sua vez, a reivindicar um ensino atento às “peculiaridades locais”, às
“diferenças individuais dos alunos”, bem como às “diferenças culturais de cada região do
País” (BRASIL, 1971, Art. 4 e Art. 29). Hoje, após quase vinte anos de vigência (e de
alterações) da LDBEN-96, fala-se explicitamente de um ensino que leve em conta a
“diversidade étnico-racial” do país (BRASIL, 1996, Art. 3).
100

Sem desconsiderar a importância de se adequar o ensino às “características regionais


e locais da sociedade, da cultura, da economia e dos educandos” (ibid., Art. 26), a LDBEN-96
reforça, em distintos Artigos e Parágrafos de sua versão atual, o papel e o lugar do ensino de
conteúdos relativos aos indígenas brasileiros, à população negra e, por extensão, ao continente
africano na educação básica nacional (ibid., Art. 26-A), guiada, sobretudo, pelas alterações
impostas pelas leis federais nº 10.639/03 e nº 11.645/08. Embora o texto original da LDBEN-
96 recomendasse um trabalho pedagógico ciente das contribuições tanto dos europeus quanto
dos indígenas e africanos para o país, ressaltava-se sua importância apenas para a disciplina
de História do Brasil. As medidas tomadas a partir de 2003 instauram, por outro lado, não
somente a obrigatoriedade de ensino de tal temática, como a ampliação de seu alcance a todo
currículo escolar.
No muito revisado e comentado Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino
Médio (PCNEM), publicado em 2000, a noção de diversidade na parte reservada aos
“Conhecimentos de Língua Portuguesa” associa-se fundamentalmente ao fenômeno da
“variação linguística”, a partir do destaque dado, já na introdução do módulo “Linguagens,
Códigos e suas Tecnologias”, à existência de diferentes “manifestações da linguagem”
(BRASIL-MEC/SEB, 2000, p. 9). Defendem-se, ainda na apresentação geral do módulo, a
superação de preconceitos, o “respeito mútuo” e o não desmerecimento de manifestações
linguísticas distintas (pp. 9-10). No lugar de “raça” ou “etnia”, o texto inicial dos PCNEM da
área de Linguagens refere-se, sobretudo, às diferenças estabelecidas entre “sujeitos de
diferentes grupos e esferas sociais” (ibidem), privilegiando, portanto, reflexões em torno da
concepção de classe social/poder econômico.
Outro aspecto a ser mencionado é a discussão sobre “subalternidade” levantada
especificamente no texto relativo ao componente Língua Portuguesa. Ao mesmo tempo em
que os PCNEM parecem defender a inclusão do “não-dito”, ou seja, dos saberes e dos bens
culturais usualmente deslegitimados pela esfera escolar, a escolha de Guimarães Rosa, nome
representativo do cânone literário, como exemplo de tal “diversidade” enfraquece e torna
dúbia a argumentação:

Como anteriormente citamos, no processo interlocutivo há imposições


sociais de hierarquia entre os pares que procuram refrear a verbalização de
pensamentos e sentimentos considerados subalternos ou não referendados
pelas autoridades que autorizam e controlam comportamentos pela
linguagem.
101

Na escola, a exigência de se dar espaço para a verbalização do não-dito será


uma possibilidade para a construção de múltiplas identidades.
Dar espaço para a verbalização da representação social e cultural é um
grande passo para a sistematização da identidade de grupos que sofrem
processos de deslegitimação social. Aprender a conviver com as diferenças,
reconhecê-las como legítimas e saber defendê-las em espaço público fará
com que o aluno reconstrua a auto-estima.
A literatura é um bom exemplo do simbólico verbalizado. Guimarães Rosa
procurou no interior de Minas Gerais a matéria-prima de sua obra: cenários,
modos de pensar, sentir, agir, de ver o mundo, de falar sobre o mundo, uma
bagagem brasileira que resgata a brasilidade. Indo às raízes, devastando
imagens pré-conceituosas, legitimou acordos e condutas sociais, por meio da
criação estética.
Compreender as diferenças não pelo seu caráter folclórico, mas como algo
com o qual nos identificamos e que faz parte de nós como seres humanos, é
o princípio para aceitar aquilo que não sabemos. Todas as áreas partilham
dessa necessidade de conhecimento. (BRASIL-MEC/SEB, 1999, p. 20).

Além da questão do “subalterno”, a ideia de “transdisciplinaridade” é também central


no documento, uma vez que a articulação das “diferentes linguagens” surge como o
argumento-chave de toda a seção “Conhecimentos de Língua Portuguesa”. Desenvolve-se,
assim, uma noção de diversidade ora atrelada à diversidade (social) de falantes, ora à
diversidade de linguagens e de discursos (ou, ainda, à “diversidade de pontos de vista” [19]).
No que se refere a um debate mais profundo sobre identidade, o documento ganha um tom
mais crítico e, por conseguinte, mais alinhado a uma perspectiva intercultural, à medida
enfatiza a valorização não “folclórica” da diferença:

Dar espaço para a verbalização da representação social e cultural é um


grande passo para a sistematização da identidade de grupos que sofrem
processos de deslegitimação social. Aprender a conviver com as diferenças,
reconhecê-las como legítimas e saber defendê-las em espaço público fará
com que o aluno reconstrua sua auto-estima. (...) Compreender as diferenças
não pelo seu “caráter folclórico”, mas como algo com o qual nos
identificamos e que faz parte de nós como seres humanos, é o princípio para
aceitar aquilo que não sabemos. Todas as áreas partilham dessa necessidade
de conhecimento (BRASIL-MEC/SEB, 1999, p. 20).

A publicação do segundo Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio, em


2002, este conhecido como PCN+, repensa os fins e objetivos do Ensino Médio, reitera a
necessidade de um ensino interdisciplinar, e pouco acrescenta a respeito da relação entre
ensino e diversidade. Repete-se em sua introdução a ideia de que a escola, em relação a seus
alunos, deve “valorizá-los em suas diferenças individuais, e não nivelá-los por baixo ou pela
média” (BRASIL-MEC/SEB, 2002, p. 13). Ademais, apresenta-se o “respeito pela
102

diversidade” como um valor humano “sem qualquer especificidade disciplinar”, a ser


integrado em todas as práticas educativas (p. 15).
Repetindo a perspectiva assinalada no documento anterior, o capítulo “Língua
Portuguesa” ressalta o combate do preconceito linguístico, da discriminação “em relação aos
falares diversos que compõem o espectro do português utilizado no Brasil” (BRASIL-
MEC/SEB, 2002, p. 27). A exemplo dos PCNEM, também os PCN+ parecem estabelecer,
ainda que implicitamente, uma exagerada aproximação entre classe social e variação
linguística, ao não ressaltarem que também as classes dominantes “produzem” e “consumem”
variantes, não estando reféns da norma culta a todo o momento e em todas as ocasiões; sem o
devido aprofundamento, o documento destaca como uma finalidade pedagógica: “a partir da
observação da variação lingüística, compreender os valores sociais nela implicados e,
conseqüentemente, o preconceito contra os falares populares em oposição às formas dos
grupos socialmente favorecidos” (BRASIL-MEC/SEB, 2002, p. 82). Os preconceitos de
ordem sexual, étnica e social, por sua vez, aparecem como “deveres e dilemas éticos da
profissão” a serem enfrentados pelo professor (p. 89) ¾ a palavra “etnocentrismo” aparece
uma vez no texto, citada de modo superficial e qualificada como uma recorrente “raiz do
preconceito”.
A tentativa de desconstrução da noção de “erro” em favor de um pensar direcionado
pelas concepções de “adequação” e “inadequação” é, sem dúvidas, um dos pontos fortes dos
PCN+. Trata-se, porém, de um argumento quase estritamente pensado no âmbito do ensino de
língua, que desconsidera, assim como o fez os PCNEM, que a variação linguística faz-se
presente também entre as produções artísticas, também no estilo dos diferentes autores. No
que tange a um repensar do ensino de literatura, observa-se a predileção por produções
artísticas e discursos legitimados, de matriz europeia. Servem de exemplo as produções
literárias listadas na subseção dedicada à apresentação do conceito de “identidade”, momento
em que se elucidam alguns dos possíveis conteúdos representativos das chamadas “diversas
manifestações culturais da vida em sociedade”: “espera-se que o aluno do Ensino Médio
consiga reconhecer e saiba respeitar produtos culturais tão distintos quanto um soneto árcade
ou um romance urbano contemporâneo” (BRASIL-MEC/SEB, 2002, p. 63). Portanto, a partir
desses e de outros pontos aqui recuperados, entende-se o porquê de Moita Lopes & Rojo
(2004), em sua releitura dos PCNEM e dos PCN+, recomendarem que “se repense a relação
103

entre aprendizado cotidiano/aprendizado sistemático e cultura popular/cultura valorizada ou


oficial no conjunto dos documentos” (MOITA LOPES & ROJO, 2004, p. 41).
O início da apresentação do módulo “Linguagens, Códigos e suas Tecnologias” nas
Orientações Curriculares para o Ensino Médio (OCEM), publicadas em 2006, aponta para
uma aparente mudança de perspectiva em relação aos PCNEM e PCN+, visto que se
estabelece, já nas páginas iniciais, uma ponte entre “política curricular” e “política cultural”:

Além disso, a política curricular deve ser entendida como expressão de uma
política cultural, na medida em que seleciona conteúdos e práticas de uma
dada cultura para serem trabalhados no interior da instituição escolar. Trata-
se de uma ação de fôlego: envolve crenças, valores e, às vezes, o
rompimento com práticas arraigadas (BRASIL-MEC/SEB, 2006, p. 8).

Além da variação linguística, mencionam-se no capítulo “Conhecimentos de Língua


Portuguesa” a “diversidade de culturas” (BRASIL-MEC/SEB, p. 33) e as “múltiplas culturas”
que constituem uma sociedade (p. 43). De fato, uma das discussões promovidas nas primeiras
páginas da seção dedicada aos “Conhecimentos de literatura” sugere que o documento
inclina-se a uma perspectiva multicultural de ensino. Recorda-se, explicitamente, que a
literatura fora durante longo período “um dos pilares da formação burguesa humanista”,
havendo sido guiada, portanto, pela “tradição letrada de uma elite que comandava os destinos
da nação” (p. 51). Com base nessas considerações, dá-se início a um discurso em prol de um
repensar do lugar e do papel da literatura nos dias atuais, o qual, porém, parece convergir para
uma postura tão resistente quanto às observadas nos PCNEM e PCN+, resumindo-se, outra
vez, à reafirmação de um cânone já instituído.
Novamente ausente, a questão da diversidade perde espaço para uma breve
abordagem teórica de outros conceitos de grande complexidade, incluindo noções muitas
vezes assumidas como balizadores da interculturalidade dentro da escola, tais como a relação
entre “valor cultural” e “valor estético” ou entre “texto literário” e “texto de consumo”
(BRASIL-MEC/SEB, 2006, p. 57). Ao contrapor, por exemplo, a figura do professor
“conservador”, isto é, afeito ao cânone, à do professor “libertário”, ou seja, do “professor que
lança mão de todo e qualquer texto, de Fernando Pessoa a raps, passando pelos textos típicos
da cultura de massa” (ibid., p. 56), fazem-se as seguintes indagações:

[...] caso do professor que se considera libertário (por desconstruir o cânone)


e democrático (por deselitizar o produto cultural). Será? − perguntamo-nos.
Ainda acompanhando o raciocínio de Chiappini, se existe o professor
104

“conservador” que ignora outras formas de manifestação artística, não


haveria, de outro lado, na atitude “democrática”, e provavelmente cheia de
boas intenções, um certo desrespeito às manifestações populares, sendo
condescendente, paternalista, populista, “sem adotar o mesmo rigor que se
adota para a cultura de elite”? Ou, acrescentaríamos nós, não haveria
demasiada tolerância relativamente aos produtos ditos “culturais”, mas que
visam somente ao mercado? Se vista assim, essa atitude não seria libertária
ou democrática, mas permissiva. Pior ainda: não estaria embutido nessa
escolha o preconceito de que o aluno não seria capaz de entender/fruir
produtos de alta qualidade? [...]. (BRASIL-MEC/SEB, 2006, p. 56).

É curioso no excerto destacado o fato de as OCEM partirem do pressuposto de que a


“desconstrução do cânone” viria ou costuma vir acompanhada de menos rigor na mediação de
leitura e na abordagem dos textos; que ela seria, a priori, “paternalista” ou “permissiva”.
Chama-nos ainda mais a atenção o desdobramento da discussão, em que se rememora, com
bastante naturalidade e sem maiores explicações, a obra do escritor afrodescendente e
abolicionista José do Patrocínio como um exemplo de obra dotada de “escasso valor estético”,
sob o pretexto da defesa de um suposto rigor didático-pedagógico:

Qual seria então o lugar do rap, da literatura de cordel, das letras de músicas
e de tantos outros tipos de produção, em prosa ou verso, no ensino da
literatura? Sem dúvida, muitos deles têm importância das mais acentuadas,
seja por transgredir, por denunciar, enfim, por serem significativos dentro de
determinado contexto, mas isso ainda é insuficiente se eles não tiverem
suporte em si mesmos, ou seja, se não revelarem qualidade estética.
Gramsci, em 1934, já estabelecera uma diferença entre valor cultural e valor
estético. Muitas obras de grande valor cultural têm escasso valor estético, até
mesmo porque não se propuseram a isso: é o caso, por exemplo, dos
escritos de José do Patrocínio; outros, mesmo produzidos por artistas não
letrados, mas que dominam o fazer literário − ainda que quase
instintivamente −, certamente deverão ser considerados no universo literário:
Patativa do Assaré, por exemplo, e tantos outros encontrados no nosso rico
cancioneiro popular. Qualquer texto escrito, seja ele popular ou erudito, seja
expressão de grupos majoritários ou de minorias, contenha denúncias ou
reafirme o status quo, deve passar pelo mesmo crivo que se utiliza para os
escritos canônicos: Há ou não intencionalidade artística? A realização
correspondeu à intenção? Quais os recursos utilizados para tal? Qual seu
significado histórico-social? Proporciona ele o estranhamento, o prazer
estético? (destaque nosso) (BRASIL-MEC/SEB, 2006, pp. 56-57).

De imediato, a pergunta que lançamos é: quais são as fontes e/ou os critérios


utilizados pelas OCEM para classificar e opor as obras de José do Patrocínio e de Patativa do
Assaré de forma tão natural, quase como se fosse uma distinção autoevidente? Em outras
palavras, a falta de embasamento e de aprofundamento em um documento que se pretende
“orientador” pode dar margem a leituras que aproximem tais classificações a juízos de valor,
105

o que prejudica a qualidade do debate. Na sequência, é feita uma observação quanto à questão
dos “julgamentos”, momento em que se contrapõe o “texto de consumo” ao “texto literário”:

Mas não nos iludamos: sempre haverá, em alguns casos, uma boa margem
de dúvida nos julgamentos, dúvida muitas vezes proveniente dos próprios
critérios de aferição, que são mutáveis, por serem históricos. Mesmo
apresentando dificuldades em casos limítrofes, entretanto, na maioria das
vezes é possível discernir entre um texto literário e um texto de consumo,
dada a recorrência, no último caso, de clichês, de estereótipos, do senso
comum, sem trazer qualquer novo aporte. (BRASIL-MEC/SEB, 2006, p.
57).

De modo geral, observa-se no texto das OCEM a recorrência de oposições binárias,


que, mesmo acenando timidamente para a ampliação do repertório escolar, acaba por situar no
polo negativo manifestações desviantes do cânone literário. Na página 59, por exemplo,
também a “fruição” é explicada a partir de uma relação dicotômica com o “divertimento” e
com o “lúdico”: “o prazer estético proporcionado pela fruição pode ser confundido com
divertimento, com atividade lúdica simplesmente”. Em um contexto no qual a educação
intercultural não é uma realidade, como no Brasil, é pertinente questionar o quão produtivo é
dedicar um documento à explicitação do potencial nocivo da adoção de práticas e de
repertórios mais diversos. Em nome de proteger as salas de aula de eventuais textos “de
escasso valor estético” ou de impedir a confusão entre “fruição” e “diversão”, os OCEM
parecem lançar mão de esclarecer quais seriam, afinal, alguns dos significados de uma
educação literária de base multicultural; caberia, por exemplo, no lugar de associar os textos
de um escritor afrodescendente à baixa qualidade estética, elencar autores e textos
representativos da literatura negra, bem como estratégias para introduzir e conduzir essas
leituras de forma crítica.
Feitos esses registros, cabe relembrar: os trechos que acabamos de analisar
respondem a um contexto bastante específico no âmbito de orientações e diretrizes
curriculares. Desse modo, para desenvolver uma leitura completa e esclarecida do texto
“Conhecimentos de literatura” presente nas OCEM, é preciso ter em conta sua conjuntura, a
qual impõe ao documento a sua função de reconstruir uma identidade para a literatura como
área de conhecimento, haja vista a falta de especificidade dos documentos anteriores, o que,
talvez, explique o tom adotado no texto. A respeito dessa questão, explica-se:

As orientações que se seguem têm sua justificativa no fato de que os PCN do


ensino médio, ao incorporarem no estudo da linguagem os conteúdos de
106

Literatura, passaram ao largo dos debates que o ensino de tal disciplina vem
suscitando, além de negar a ela a autonomia e a especificidade que lhe são
devidas. (...) Embora concordemos com o fato de que a Literatura seja um
modo discursivo entre vários (o jornalístico, o científico, o coloquial, etc.), o
discurso literário decorre, diferentemente dos outros, de um modo de
construção que vai além das elaborações lingüísticas usuais, porque de todos
os modos discursivos é o menos pragmático, o que menos visa a aplicações
práticas (BRASIL-MEC/SEB, 2006, p. 49).

Entende-se e justifica-se, sob esse prisma, o excessivo espaço dedicado ao


esclarecimento de questões particulares da esfera literária. Mais que redefinir o lugar e os fins
do ensino de literatura, as OCEM buscam fornecer ferramentas mínimas para que o professor
possa refletir sobre o seu trabalho com o texto literário, com o intuito de preencher uma grave
lacuna deixada tanto pelas políticas educacionais quanto pelos Estudos Literários, que pouca
atenção têm dirigido ao tema. Porém, o ponto questionável dessa reiteração de uma tradição
de ensino está no fato de tal postura implicar na desconsideração de expressões artísticas que
fujam ao repertório já conhecido, as quais são sempre recordadas com ressalvas. Ilustra esse
ponto a indistinção entre “perspectiva multicultural” e interdisciplinaridade ou
multimodalidade, presente nas páginas finais do capítulo:

Também é desejável adotar uma perspectiva multicultural, em que a


Literatura obtenha a parceria de outras áreas, sobretudo artes plásticas e
cinema, não de um modo simplista, diluindo as fronteiras entre elas e
substituindo uma coisa por outra, mas mantendo as especificidades e o modo
de ser de cada uma delas (...) (BRASIL-MEC/SEB, 2006, p. 74).

A título de breve comparação entre os discursos assumidos para o Ensino Médio e


para o Ensino Fundamental, vale apontar a existência de um documento intitulado
Pluralidade Cultural, publicado pelo MEC em 1998, na ocasião de divulgação dos “Temas
Transversais” definidos para o Ensino Fundamental em 199744. `Nele, diferentemente do que
observamos nos discursos orientadores do terceiro ciclo, verificam-se pontuais diálogos com
as futuras premissas e proposições das leis de 2003 e 2008. Destacamos as partes mais
significativas:

Conhecimentos históricos e geográficos


[...]

44
Os Temas Transversais do Ensino Fundamental divulgados pelo MEC em 1997 foram: Ética, Pluralidade
Cultural, Meio Ambiente, Saúde, Orientação Sexual e Temas Locais. “Apresentação dos Temas Transversais”
(1997): <http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/livro081.pdf>. Acesso em 20/11/2018.
107

A formação histórica do Brasil mostra os mecanismos de resistência ao


processo de dominação desenvolvidos pelos grupos sociais em diferentes
momentos. Uma das formas de resistência refere-se ao fato de que cada
grupo — indígena, africano, europeu, asiático e do oriente médio —
encontrou maneiras de preservar sua identidade cultural, ainda que às vezes
de forma clandestina e precária.
Assim sendo, tratar da presença do índio pela inclusão nos currículos de
conteúdos que informem sobre a riqueza de suas culturas e a influência
delas sobre a sociedade, conforme disposto na Constituição de 1988 (art.
210, parágrafo 2º), é valorizar essa presença e reafirmar os direitos dos
índios como povos nativos, de forma que corrija uma visão deturpada
que os homogeneiza como se fossem de um único grupo, devido à
justaposição aleatória de traços retirados de diversas etnias.
[...]
O estudo histórico do continente africano compreende enorme complexidade
de temas do período pré-colonial, como arqueologia; grupos humanos;
civilizações antigas do Sudão, do sul e do norte da África; o Egito como
processo de civilização africana a partir das migrações internas. Essa
complexidade milenar é de extrema relevância como fator de
informação e de formação voltada para a valorização dos descendentes
daqueles povos. Significa resgatar a história mais ampla, na qual os
processos de mercantilização da escravidão foram um momento que não
pode ser amplificado a ponto que se perca a rica construção histórica da
África. O conhecimento desse processo pode significar o dimensionamento
correto do absurdo, do ponto de vista ético, da escravidão, de sua
mercantilização e das repercussões que os povos africanos enfrentam por
isso. (destaque nosso) (BRASIL-MEC/SEF, 1998, pp. 130-132)45.

A partir do panorama aqui esboçado, indo da leitura dos PCN à leitura das OCEM46,
nota-se que é pouco amadurecido o diálogo estabelecido entre os documentos oficiais
centrados no ensino de Língua Portuguesa no Ensino Médio e os pressupostos de uma
perspectiva multicultural e/ou pós-colonial de educação, além do fato de tais documentos
contrastarem com o teor de parte do material direcionado ao Ensino Fundamental, conforme

45
Apesar dos fragmentos por nós destacados, com os quais buscamos dar evidência a discursos alinhados ao que
viria a ser postulado pelas leis 10.639/03 e 11.645/08, é pertinente mencionar a análise global que Silvério &
Trinidad (2012) fazem do documento, sobretudo no que concerne ao tratamento nele dado à questão racial: “Aos
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) acrescentou-se o tema ‘Pluralidade Cultural’, que abarca uma ampla
discussão sobre diversidade, ainda insistindo no mito da democracia racial, não especifi cando a necessidade de
um melhor tratamento da questão do negro na sociedade brasileira, reproduzindo um discurso de igualdade e
homogeneização da população” (SILVÉRIO & TRINIDAD, 2012, p. 910).
46
Além das publicações oficiais já mencionadas, publicaram-se duas Diretrizes Curriculares Nacionais para o
Ensino Médio (DCNEM), uma em 1998 e outra em 2012. Pesquisas indicam que também nessas publicações não
se abordou o tema da diversidade com muita atenção, havendo apenas uma ampliação do caráter polissêmico do
termo, conforme assinala Moehlecke (2012). Após realizar a leitura do referido trabalho, optamos por encerrar a
nossa análise com as OCEM, tendo em vista, também, seu maior protagonismo no debate escolar e acadêmico.
Trata-se, ainda hoje, do documento de maior referência para o Ensino Médio. Ademais, o fato as DCNEM serem
compostas, fundamental, por tópicos, e não por textos de caráter dissertativo-reflexivo, torna-as menos propícias
às discussões que propomos na presente subseção.
108

se vê na cartilha Pluralidade Cultural (1998). Porém, essa aparente ausência não pode ser
interpretada como uma neutralidade discursiva; ao contrário, é possível observar indícios de
uma postura de resistência frente à diversidade cultural no ensino de literatura nos anos finais,
como ilustra a frequente exaltação do cânone literário vigente.
Dessarte, uma análise atenta do período temporal ao qual pertencem as orientações e
os parâmetros estudados permite concluir que antes da lei 10.639/2003  e, até mesmo,
depois dela, ao se levar em consideração que as OCEM foram publicadas em 200647 
pouco se reivindicou uma educação profundamente atenta à pluralidade cultural. Devido a
isso, os pontos problematizados por esta e, posteriormente, pela lei 11.645/08 ganham forma e
espaço somente através de discursos e de textos independentes, alheios aos documentos
basilares da educação  optamos por comentar os pontos centrais dos documentos de
implementação e de regulamentação de ambas as leis em diferentes seções deste trabalho,
conforme eles se mostrem pertinentes às discussões.
Diante, portanto, da inexistência de um diálogo explícito e amadurecido entre os
pressupostos fundamentais da educação básica e as medidas de viés multicultural mais
recentes, faz-se preciso repensar/revisar quais são hoje os significados, o lugar e as
implicações do conjunto de políticas educacionais que, atualmente, fazendo uso das palavras
de Semprini, “lança a problemática do lugar e dos direitos das minorias em relação à maioria”
(SEMPRINI, 1999, p. 43) no Brasil. É, então, a essa questão que buscamos responder ao
explorar os impactos das leis 10.639/03 e 11.645/08 no PNLD 2015.

3.2. O Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) e o PNLD 2015: contextualização do


corpus de pesquisa

Se no Capítulo 2 identificamos alguns dos pormenores da transposição política que


deu origem às duas leis, isto é, do processo através do qual ações e discursos da esfera social
adentraram o Congresso Nacional, a partir deste capítulo elegemos o livro didático como um
objeto privilegiado para se observar a transposição didática das medidas impostas pela nova
legislação. De um percurso que transpunha as demandas das ruas para o Congresso, dirigimo-

47
Na apresentação da seção dedicada a “Linguagens, Códigos e suas Tecnologias”, menciona-se que a
elaboração das OCEM teve início em 2004, ou seja, um ano após a publicação da lei federal nº 10.639/2003.
Apesar de se tratar de um curto espaço de tempo para o desenvolvimento de uma abordagem aprofundada da
temática destacada pela lei, é válido questionar se não caberia em tal publicação uma introdução ou menção ao
novo conteúdo imposto à educação básica.
109

nos, a partir do livro didático, ao trajeto que articula os documentos legais às práticas
escolares. Para tanto, fechamos a presente revisão das políticas e dos documentos que
orientam o ensino de Língua Portuguesa dando atenção à questão da produção e circulação de
livros didáticos no Brasil, bem como à história do Programa Nacional do Livro Didático
(PNLD), criado em 1985, responsável por selecionar e distribuir os materiais didáticos
adotados pela rede pública de ensino no país até os dias atuais.
Em 1938, institui-se a Comissão Nacional do Livro Didático (CNLD) no país, por
meio do Decreto-Lei nº 1.006, de 30/12/38, o qual estabelecia “as condições de produção,
importação e utilização do livro didático” (BRASIL, 1938, s/p). A despeito de certas
similaridades com o atual PNLD, em relação, por exemplo, ao trabalho a ser exercido pelos
especialistas no processo de avaliação e a algumas questões editoriais, suas diretrizes refletem
o contexto sociopolítico do país ao prescrever a defesa da “unidade nacional” e,
consequentemente, dos valores caros às elites:

CAPÍTULO IV
DAS CAUSAS QUE IMPEDEM A AUTORIZAÇÃO DO LIVRO
DIDÁTICO
Art. 20. Não poderá ser autorizado o uso do livro didático:

a) que atente, de qualquer forma, contra a unidade, a independência ou a


honra nacional;
b) que contenha, de modo explícito ou implícito, pregação ideológica ou
indicação da violência contra o regime político adotado pela Nação:
c) que envolva qualquer ofensa ao Chefe da Nação, ou às autoridades
constituídas, ao Exército, à Marinha, ou às demais instituições nacionais;
d) que despreze ou escureça as tradições nacionais, ou tente deslustrar as
figuras dos que se bateram ou se sacrificaram pela pátria;
e) que encerre qualquer afirmação ou sugestão, que induza o pessimismo
quanto ao poder e ao destino da raça brasileira;
f) que inspire o sentimento da superioridade ou inferioridade do homem de
uma região do país com relação ao das demais regiões;
g) que incite ódio contra as raças e as nações estrangeiras;
h) que desperte ou alimente a oposição e a luta entre as classes sociais;
i) que procure negar ou destruir o sentimento religioso ou envolva combate a
qualquer confissão religiosa;
j) que atente contra a família, ou pregue ou insinue contra a indissolubilidade
dos vínculos conjugais;
k) que inspire o desamor à virtude, induza o sentimento da inutilidade ou
desnecessidade do esforço individual, ou combata as legítimas prerrogativas
da personalidade humana. (destaque nosso) (BRASIL, 1938, s/p).

No Decreto-Lei nº 8.460, publicado em 1945, repetem-se as mesmas orientações do


excerto anterior, e apenas em 1966 são reavivadas novas discussões sobre a edição e
110

distribuição de livros didáticos no país, com foco, porém, na questão do financiamento


governamental e nos convênios e no papel das editoras. Até 1985, momento em que o PNLD
é instituído, diversas instituições são criadas ou realocadas para conduzirem a questão dos
livros didáticos48, com destaque à Fundação de Assistência ao Estudante (FAE), em 1983, a
qual viria a dialogar, de forma inédita, com o movimento negro no ano de 1987, como
mostramos no segundo capítulo deste trabalho. Cabe mencionar que de 1985 a 2003, o PNLD
atendeu apenas ao Ensino Fundamental. O Ensino Médio foi incluído progressivamente no
programa, a partir de 2003, sendo que de 2005 a 2009 a vertente desse ciclo escolar recebia
uma denominação específica: PNLEM - Programa Nacional do Livro Didático para o Ensino
Médio.
No tangente a mudanças de diretrizes avaliativas, é notório (e já esperado, dado o
contexto de redemocratização instaurado na década de 1980) o contraste entre os critérios
adotados nos decretos de 1938 e de 1945 supracitados e os discursos que embasam o PNLD.
Em seu primeiro documento de destaque, Definição de critérios para a avaliação de livros
didáticos – 1ª a 4ª séries (BRASIL-MEC/FAE, 1994), apresenta-se, no lugar de princípios
nacionalistas e/ou morais, uma avaliação de viés veementemente técnico-conteudístico, sem
considerações sobre aspectos de outra ordem. No PNLEM de 2006, por sua vez, precisamente
em relação ao componente Língua Portuguesa, prescreve-se como critério fundamental o
“respeito aos princípios de construção da cidadania” (BRASIL-MEC/FNDE, 2006, p. 10), que
se volta contra a presença das seguintes ocorrências em obras didáticas, sob a pena de serem
excluídas do processo seletivo:

a) privilegiar um determinado grupo, camada social ou região do país;


b) veicular preconceitos de origem, cor, condição econômico-social, etnia,
gênero, orientação sexual, linguagem ou qualquer outra forma de
discriminação;
[...]
e) fazer doutrinação religiosa. (BRASIL-MEC/FNDE, 2006, p. 11)

Na análise que realizamos do PNLD 2015, apresentada no Capítulo 4, verifica-se a


permanência de posicionamentos de mesma natureza, acrescidos de alguns dos pressupostos
das leis 10.639/03 e 11.645/08. Apesar de a atenção a princípios democráticos e de cidadania
afirmar-se extremamente positiva à aferição dos livros didáticos a serem distribuídos

48
Para maiores informações, vide a linha histórica traçada pelo MEC:
<https://www.fnde.gov.br/programas/programas-do-livro/livro-didatico/historico>. Acesso em <08/01/2019>.
111

nacionalmente, é certo que a observância dos movimentos de transposição didática costuma


colocar em relevo algumas discrepâncias entre os discursos presentes nos documentos
oficiais/legais e a forma pela qual eles são apropriados na esfera escolar. Ao se recordar,
então, a matriz colonial que atravessa historicamente o ensino no Brasil, o empecilho à plena
implementação dos objetivos educacionais faz-se ainda mais visível.
Na rica pesquisa desenvolvida por Razzini (2000) sobre a história do ensino de
português e de literatura nas escolas brasileiras, a qual abrange o período de 1985 a 1971,
tendo como fonte principal os programas curriculares e os materiais didáticos adotados pelo
Colégio Pedro II, do Rio de Janeiro (RJ), conclui-se que o modelo de ensino adotado no
Brasil sempre respondeu aos modelos europeus de educação, começando pelo ensino jesuíta
português, por nós mencionado na seção anterior, e seguindo, a partir do século XIX, para os
modelos francês e inglês. Somado ao fato de tal ensino permanecer restrito às elites, uma vez
que entre o final do século XIX e início do XX apenas de 15% a 25% da população sabia ler
(RAZZINI, 2000, p. 21), a reincidência de clássicos portugueses, enquanto indicativo da
imutabilidade do cânone, já era percebida nas primeiras coletâneas literárias publicadas no
país. De acordo com o levantamento documental da autora, a Antologia Nacional, primeiro
livro de textos literários organizado consoante a história literária, publicada em 1895,
apresentava, em grande medida, excertos já que haviam aparecido em compêndios dos
séculos XVI, XVII e XVIII (RAZZINI, 2000, p. 242). Tendo em vista que a Antologia foi
amplamente adotada, por diversas escolas, até 1940, quando perdeu força para as políticas de
livros didáticos, é possível inferir que a permanência de seus reflexos no repertório literário
das décadas seguintes. A necessidade de se aprovar leis como a 10.639/03 e a 11.645/08 no
início do século XXI é um forte indício de que pouco mudou nesse ínterim, além de, no
âmbito da História da Leitura, ambas refletirem a desestabilização do cânone desencadeada
também pelos Estudos Culturais e Pós-Coloniais, como destaca Zilberman (2017):

O pós-estruturalismo, os Estudos Culturais, as tendências associadas ao


Gender Criticism ou aos estudos pós-coloniais são outros exemplos de que a
quebra comportamental de paradigmas, localizada histórica sobretudo nos
anos 1960, avançava em ondas sobre o pensamento e a cultura. Essas
rupturas afetaram o cânone literário edificado ao longo dos séculos graças à
ação da escola e dos agentes mais credenciados do campo estético. O
reconhecimento de novos ou outros agentes colapsou a construção bem
arranjada da História da Literatura, que, até então, tinha dificuldade em
admitir a participação de criadores provenientes de segmentos subalternos,
etnicamente discriminados, politicamente rebaixados. Esse reconhecimento
direcionou-se à aceitação de figurantes do passado até então obscurecidos
112

por concepções elitistas de cultura e à inclusão de outras personalidades no


presente, independentemente do gênero literário praticado, do veículo
utilizado, da finalidade prevista por seus produtores. O lugar seguro que
havia sido o conceito de literatura tornou-se o palco de debates e conflitos
[...]. (ZILBERMAN, 2017, p. 32).

Em crítica ao livro didático publicada em 1987, Joel Rufino dos Santos, com base em
estudos e em exemplos, acusa os materiais escolares de serem veiculadores da ideologia
dominante, e afirma, após comentar as concepções racistas e etnocentristas que os
fundamentam, que o livro “é o que o Brasil pensa que o Brasil é” (DOS SANTOS, 1987, p.
100). Se observarmos as recentes implicações das teorias sociais contemporâneas no ensino
de literatura, tais quais recordadas por Zilberman, somadas ao protagonismo dos movimentos
sociais nas políticas educacionais do início do século, percebemos que, mesmo que a passos
lentos, o Brasil foi sendo convidado, nos últimos anos, a “se pensar” de outra forma no que
engloba suas literaturas. A análise da transposição didática das leis, com base no teor das
coleções aprovadas pelo PNLD 2015, permite verificar, justamente, como as editoras de
livros didáticos têm respondido a esse convite.

***

Nossa escolha pelo PNLD 2015 deu-se por duas razões: por se tratar da edição mais
recente do Programa Nacional do Livro Didático na ocasião do início desta pesquisa de
Doutorado; e por corresponder a um conjunto de coleções produzidas dez anos após a
publicação da primeira lei por nós estudada, o que lhe confere um distanciamento temporal
capaz de revelar com mais clareza o alcance e o desdobramento de tais alterações
curriculares.
Como vimos na seção anterior, o PNLD foi instituído em 1985, com a função de
avaliar, selecionar e distribuir coleções didáticas, por meio de processo seletivo público,
aberto às editoras do país. A cada edição, são selecionadas e resenhadas cerca de dez
coleções, as quais ficam disponíveis para a escolha das secretarias de educação ou dos
professores das escolas públicas. Para auxiliá-los, as resenhas são apresentadas em guias que
visam, entre outros aspectos, discutir os fundamentos teórico-metodológicos esperados para
cada componente curricular e disponibilizar as fichas avaliativas utilizadas durante o
processo. Desde sua criação, o programa foi sofrendo gradativas mudanças, contudo, na
última década, ele tem seguido o padrão de lançar a relação de livros destinados ao ensino
113

médio com um intervalo de três anos em relação às listas do ensino fundamental, ou seja, as
últimas edições do PNLD do ensino médio foram divulgadas, respectivamente, em 2009,
2012, 2015 e em 2018. O nosso corpus corresponde à edição de 2015.
O processo de seleção das obras que compõem o PNLD 2015 ocorreu entre 2013 e
2014, por meio de um edital de convocação das editoras disponibilizado no site do Fundo
Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), em parceria com o Ministério da
Educação (BRASIL-MEC/FNDE, 2013). Nessa edição, foram avaliadas e selecionadas obras
didáticas do Ensino Médio para os componentes curriculares de Língua Portuguesa,
Matemática, História, Geografia, Física, Química, Biologia, Inglês, Espanhol, Sociologia,
Filosofia e Arte. Entre os diversos “princípios e critérios para a avaliação de obras didáticas
destinadas ao Ensino Médio” elencados pelo edital (em seu Anexo III), interessa-nos destacar
o fato de o não atendimento às leis 10.639/03 e 11.645/08, por parte de qualquer área de
conhecimento, surgir como um critério eliminatório do processo seletivo, conjuntamente com
uma eventual falta de articulação dos livros didáticos aos princípios de documentos basilares
da educação, como a LDB-96, ou de documentos concernentes à educação para as relações
étnico-raciais, como o Parecer CNE/CP nº 03 de 10/03/2004 (BRASIL-MEC/CNE, 2004a) e a
Resolução CNE/CP nº 01 de 17/06/2004 (BRASIL-MEC/CNE, 2004b). Por essa razão, ao
definirmos os nossos focos de análise, recuperamos algumas das sugestões feitas tanto pelo
Parecer quanto pela Resolução.
De acordo com o Guia de Apresentação do PNLD 2015 (BRASIL-MEC/SEB, 2014a,
p. 7) publicado após o processo seletivo, avaliaram-se 17 coleções de Língua Portuguesa,
entre as quais foram aprovadas dez, sendo todas integrantes do nosso corpus de análise. No
Guia de Português (BRASIL-MEC/SEB, 2014b), é possível ter acesso a resenhas críticas
dessas obras. Trata-se de textos voltados, fundamentalmente, à instrução dos professores e
dos dirigentes responsáveis por escolher os livros didáticos a serem adotados em suas
instituições, e que seguem, estruturalmente, a mesma divisão: “visão geral” da coleção;
“quadro esquemático” (com “pontos fortes”, “pontos fracos”, “destaque”, “programação do
ensino” e “manual do professor”); uma “descrição da coleção”; “análise da obra”; e, por fim,
comentários sobre seu uso “em sala de aula”. Ao final do documento encontramos ainda dois
anexos: o primeiro correspondente aos critérios de avaliação, já presentes no edital de
convocação, entre os quais aqueles supracitados, que ressaltam a necessidade de observância
114

às leis 10.639/03 e 11.645/08; e o segundo intitulado “análise avaliativa”, relevante por


detalhar os critérios específicos do componente Língua Portuguesa.
O conteúdo das resenhas é por nós abordado no decorrer da análise das coleções. Por
ora, no que concerne ao Guia de Português, cabe registrar alguns comentários a respeito das
fichas avaliativas constantes em seu Anexo II.
Em relação ao cumprimento das leis, as fichas apresentam a seguinte pergunta no
quadro referente à avaliação das coletâneas de textos literários: “a seleção contempla textos
da Literatura Africana?” (BRASIL-MEC/SEB, 2014b, p. 95). A mesma questão não é
levantada acerca das literaturas indígenas e negra/afro-brasileira, o que pode explicar, de
antemão, a menor ocorrência destas produções se comparada ao número de autores e de textos
africanos que encontramos durante a pré-análise dos materiais. No entanto, a despeito de tal
lacuna no PNLD 201549, identificam-se no documento outros apontamentos/critérios
envolvendo o lugar da diversidade cultural no ensino de leitura e de literatura:

A coletânea favorece experiências significativas de leitura?


Os temas selecionados e os pontos de vista a partir dos quais são abordados
contemplam a heterogeneidade sociocultural brasileira, quanto a faixa etária,
etnia, gênero, classe social, região, entre outros? (BRASIL-MEC/SEB,
2014b, p. 93).

As atividades – no material impresso e/ou nos OEDs - tratam a leitura


como processo e colaboram significativamente para a formação do
leitor?
Discutem questões relativas à diversidade sociocultural brasileira? (ibid., p.
94).

Coletânea de textos literários


Os textos escolhidos são relevantes para a formação do aluno como leitor de
literatura (são de autores representativos de diferentes correntes estético-
literárias e de diferentes regiões; contemplam autores e gêneros menos
estudados, como peças teatrais, literatura de cordel, letras de música
popular)? (ibid., p. 95).

A coleção cumpre a exigência legal de:


Não disseminar estereótipos e/ou preconceitos de condição social, regional,
étnico-racial, de gênero, de orientação sexual, de idade ou de linguagem,
assim como qualquer outra forma de discriminação ou de violação de
direitos? (ibid., p. 101).

49
Cabe mencionar que as fichas avaliativas do PNLD 2018 (componente Português) preenchem essas lacunas ao
elencarem, separadamente, perguntas relativas ao diálogo das coletâneas de textos literários com “as culturas
africanas”, “com as culturas afro-brasileiras” e com “as culturas indígenas” (BRASIL-MEC/SEB, 2017, p. 86).
115

Em uma primeira leitura, esses critérios dão margem a boas expectativas no que se
refere à não propagação de ideias preconceituosas, bem como no que diz respeito ao
reconhecimento da diversidade cultural nas coleções selecionadas, sobretudo por meio da
indicação de sejam contemplados “autores e gêneros menos estudados”. Tendo em vista,
porém, que é extensa a linha que separa a teoria da prática, verifica-se no texto introdutório
do Guia de Português uma ressalva quanto à qualidade do atendimento dado pelas coleções
aos critérios de diversidade supracitados:

(...) é bastante pequeno o espaço reservado à produção literária que não se


identifica com os cânones estabelecidos: a poesia produzida pelas periferias
urbanas, a literatura dita marginal, as obras menos visitadas de escritores
consagrados, os autores considerados regionais ou pouco conhecidos, os
gêneros de menor prestígio (como o conto ou o romance policial), a
literatura oral e/ou popular. O resultado desse procedimento é que, mesmo
contando com coletâneas de boa qualidade, capazes de oferecer ao aluno
experiências bastante significativas de leitura, colaborando, assim, para a sua
formação como leitor de literatura, as coleções dificultam a discussão sobre
o que dá a um texto o seu caráter literário; e tampouco esclarecem os
critérios utilizados no estabelecimento dos cânones. A fruição do texto fica,
assim, privada de parte dos confrontos e das tensões que dão às obras
literárias, canônicas ou não, a sua singularidade. (BRASIL-MEC/SEB,
2014b, p. 19).
(...)
Os temas presentes — seja os dos textos, seja os de unidades ou capítulos —
contemplam preocupações contemporâneas, colaborando, frequentemente,
para debates e discussões produtivos para a construção da consciência
cidadã. Entretanto, quase sempre na perspectiva das classes médias das
grandes e médias cidades. As periferias urbanas, as camadas populares e a
população rural aparecem como tema de alguns textos, mas não em sua
própria voz ou perspectiva. Nesse sentido, podemos dizer que os LDP para o
EM não disseminam preconceitos e estereótipos discriminatórios, mas ainda
investem muito pouco, tanto no acolhimento às vozes divergentes e às
tensões que caracterizam a vida republicana, quanto no efetivo debate a esse
respeito. (BRASIL-MEC/SEB, 2014b, p. 20).

É com base também nesse tipo de advertência que justificamos o recorte e os fins da
nossa pesquisa. Por essa razão, recuperamos e rediscutimos a consistência dos parâmetros e
dos comentários avaliativos do PNLD 2015 sempre que necessário, sobretudo durante a
análise dos livros. Interessa-nos analisar se, em que medida e de modo os livros didáticos têm
caminhado, de fato, rumo a práticas e a conteúdos representativos da pluralidade cultural.
Para contextualizar brevemente o perfil das coleções aprovadas na edição de 2015,
elaboramos a tabela a seguir, em que destacamos as editoras correspondentes a cada coleção
116

aprovada, os nomes dos respectivos autores, o número total de exemplares distribuídos e as


siglas a serem adotadas no desenvolvimento do nosso estudo:

Coleção Editora Autores Distribuição SIGLA


Português William Roberto Cereja;
Linguagens Saraiva (SP) Thereza Anália Cochar 2.313.339 PL01
(2013) Magalhães.

Novas Palavras Emília Amaral; Mauro


FTD (SP) Ferreira; Ricardo Leite; 1.548.498 NP02
(2013) Severino Antônio.
Português –
Contexto, Moderna Maria Luiza M. Abaurre;
Interlocução e (SP) Maria Bernadete M.
822.319 PCIS03
Sentido Abaurre; Marcela
Pontara.
(2013)
Língua
Portuguesa – Carlos Emílio Faraco;
Linguagem e Francisco Marto de
Ática (SP) 693.452 LPLI04
Interação Moura; José Hamilton
Maruxo Junior.
(2014)
Português –
Linguagens em Graça Sette; Márcia
Conexão Leya (SP) Travalha; Rozário 677.698 PLC05
Starling.
(2013)
Ser protagonista
– Língua Edições SM Rogério de Araújo
Portuguesa 631.835 SPLP06
(SP) Ramos.
(2013)
Língua
Portuguesa Roberta Hernandes; Vima
Positivo (PR) 297.447 LP07
Lia Martin.
(2013)

Viva Português Elizabeth Campos; Paula


Ática (SP) Marques Cardoso; Silvia 232.643 VP08
(2014) Letícia de Andrade.
Português: Base
Língua e Cultura Editorial Carlos Alberto Faraco. 203.332 PLC09
(2013) (PR)

Vozes do Mundo Lília Santos Abreu-


Saraiva (SP) Tardelli; Lucas Sanches 147.640 VM10
(2013) Oda; Salete Toledo.
Tabela 3. Fonte dos dados numéricos: BRASIL-MEC/FNDE (s/d [a]).
117

É importante notar que optamos por siglas compostas pelas iniciais dos títulos das
coleções, seguidas do número indicativo de suas posições no ranking de distribuição.
Consideramos relevante assinalar esse dado, pois pode ser interessante ao leitor ter uma
dimensão do alcance da adoção de cada coleção didática no decorrer de nossos apontamentos
sobre tais obras. Visando ampliar a leitura desse aspecto e reconhecendo os inúmeros fatores
que podem influenciar a formação de um ranking, julgamos igualmente pertinente chamar a
atenção para a hegemonia exercida por determinados grupos editoriais nessas listagens, a fim
explorar outras nuances do processo de escolha de obras didáticas realizado pelo governo
federal. Todavia, reconhecemos a impossibilidade de explorarmos, com a devida
profundidade, todos os aspectos geopolíticos e comerciais que circundam o mercado de livros
didáticos no Brasil, motivo pelo qual nos limitamos à recuperação de alguns estudos, a fim de
discutir melhor os contornos e os fundamentos da lista que integra o nosso corpus de
pesquisa.
Em artigo publicado em 2000, Eloisa de Mattos Höfling já compilava números e
estudos que atestavam a participação de um grupo reduzido de editoras no ramo educacional,
com base, sobretudo, nos relatórios publicados pela extinta Fundação de Assistência ao
Estudante (FAE), cujas responsabilidades no que tange ao PNLD passaram a ficar a cargo do
FNDE a partir de 1996. Assim, os levantamentos da autora nos permitem verificar a
reincidência de coleções desde o ano de 1977:

(HOFLING, 2000, p. 165).


118

(HOFLING, 2000, p. 165).

“Dados referentes a 1994” (HOFLING, 2000, p. 166).

Ao encontro do que se observa no PNLD 2015, nota-se que a editora FTD, por
exemplo, comparece em segundo lugar no ranking de participação das editoras na aquisição
de livros pelo MEC entre o período de 1977 a 1984. Entre 1985 e 1991, ela cai para o quarto
lugar, havendo destaque para o aumento de participação da editora Ática, que sai da quarta
colocação no período anterior rumo ao primeiro lugar da tabela. Em 1994, a FTD volta a
liderar as contratações do MEC, e as editoras que a seguem também correspondem a nomes
presentes no PNLD 2015, sendo elas, na sequência, Scipione, Ática e Saraiva  incluímos a
Scipione nessa comparação, pois ela foi comprada pela Ática em 1983, momento em que as
duas passam a correspondem a um só grupo editorial.
Também o levantamento de dados das edições de 1999 e de 2002 do PNLD,
realizado por Batista, Rojo & Zúñiga (2005), acusa um número reduzido de editoras
envolvidas com o programa de modo geral, sendo que, nos dois anos, quatro delas detiveram
40% da oferta de títulos totais do PNLD, corroborando a hegemonia verificada já em décadas
119

anteriores: Ed. do Brasil, FTD, Ática e Scipione com 46,13% em 1999 (BATISTA, ROJO &
ZÚÑIGA, 2005, p. 58), e FTD, IBEP, Ed. do Brasil e Ática, com 48,31% em 2002 (ibid., p.
59). Se nos apoiarmos em informações mais atuais, verificamos que nas estatísticas do PNLD
2013, por exemplo, lideram o número de distribuições de livros de Português para o Ensino
Fundamental as editoras FTD, Ática e Scipione, num total de 28 coleções aprovadas pelo
programa (BRASIL-MEC/FNDE, s/d [b], p. 1). Embora nosso corpus de análise seja restrito
às coleções atribuídas ao Ensino Médio, enquanto que as tabelas de Höfling (2000) e os dados
de Batista (2005) et al., devido ao recorte temporal, fazem alusão aos materiais distribuídos ao
Ensino Fundamental  pois o Ensino Médio só passa a ser totalmente contemplado pelo
PNLD a partir de 200550 , é correto afirmar que o ano escolar não modifica
significativamente o ranking editorial. Basta observar a reincidência das mesmas editoras na
edição do programa do qual retiramos nosso corpus, o PNLD 2015 do Ensino Médio.
Na leitura de Höfling (2000), tal concentração editorial implica, entre outros pontos,
uma análise sobre a “descentralização nas esferas de decisão e a alocação os recursos
públicos” (HOFLING, 2000, p. 169); “descentralizar” um programa de governo alinha-se, de
acordo com a autora, a sua democratização, especialmente ao se ter em vista o incisivo papel
de empresas privadas em um programa, a priori, público, como o PNLD (p. 164). Se
considerarmos que seu artigo foi publicado há dezoito anos, é possível somar a seus
questionamentos o atual, e crescente, domínio exercido por grandes grupos empresarias,
nacionais e estrangeiros, marcados pela fusão comercial de várias editoras, um fenômeno que
tem dado novos contornos aos monopólios na esfera educacional. Em 2016, a Leya Educação,
por exemplo, foi vendida para o Grupo Escala51, proprietário, entre outros segmentos, da
Escala Educacional, especializada em livros escolares. Também recentemente, a Kroton,
maior empresa de ensino superior do país, anunciou a compra da Somos Educação (antiga
editora Abril)52, grupo editorial que engloba Ática, Benvirá, Scipione, Saraiva, Anglo, entre
50
Não localizamos levantamentos análogos concernentes aos dados dos PNLDs do Ensino Médio, por isso
recorremos a pesquisas atentas às edições do Ensino Fundamental. Em estudo sobre a produção científica
envolvendo livros escolares no Brasil, abrangendo o período de 1975 a 2003, Batista e Rojo apontam que, de
fato, “O Ensino Fundamental é o objeto privilegiado da atenção dos pesquisadores” (BATISTA & ROJO, 2005,
p. 42).
51
“Editora Leya Educação é vendida para Grupo Escala”. Disponível em
<https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2016/06/1787212-editora-leya-educacao-e-vendida-pra-grupo-
escala.shtml>. Acesso em <11/01/2019>.
52
“Kroton fecha compra da Somos Educação por R$ 4,6 bilhões”. Disponível em:
<https://g1.globo.com/economia/noticia/kroton-fecha-compra-da-somos-educacao-por-r-46-bilhoes.ghtml>.
Acesso em 12/10/2018.
120

outros, além de ter expressado interesse pela compra da vertente brasileira da Santillana53,
empresa espanhola dona da editora de livros didáticos Moderna. Entre compras efetivadas e
em negociação, a “descentralização” defendida por Höfling torna-se cada vez mais distante.
Um aspecto importante concernente à participação reduzida de editoras no PNLD
tem relação, evidentemente, com seus efeitos comerciais e financeiros. Desde o quadro de
1994, disponibilizado pela pesquisadora, até a atualidade, verifica-se que a discrepância no
número de distribuições por editora vem acompanhada de uma desproporção bastante
significativa de investimentos financeiros54. Trata-se de um padrão de alocação de verbas que
torna mais clara a influência dos programas do MEC no mercado editorial. Atualmente, é
possível ter acesso apenas à lista de obras aprovadas, e não mais à de obras excluídas, o que
nos impede de saber se havia/tem havido editoras de menor porte entre os inscritos dos
últimos processos do PNLD. Trabalhos como os de Munakata (1997), que registram a
repercussão negativa, tanto a nível midiático quanto a nível comercial, da lista de obras
excluídas no ano de 1996, por exemplo, talvez expliquem as razões de o MEC manter o sigilo
de tais dados na atualidade. Focando-nos, porém, nos dados efetivamente publicados, o
aspecto a ser destacado é a evidente preponderância de determinadas editoras em detrimento
de outras e os efeitos do respectivo poder financeiro resultante dessa hegemonia.
São elucidativos, nesse sentido, os estudos da pesquisadora Célia Cristina de
Figueiredo Cassiano (2005; 2007; 2014), que, entre outros apontamentos, expõem as práticas
comerciais dos “divulgadores” das obras didáticas nas escolas, com base em relatos tanto de
ex-representantes das editoras quanto dos professores responsáveis por escolher as coleções a
serem utilizadas pelas instituições escolares. Seus levantamentos apontam para certo papel
coercitivo do marketing e da propaganda no processo de escolha dos docentes, visto que a tais
divulgadores cabia a missão de manter presença constante nas escolas, ofertando doações de
materiais didáticos, questionando insistentemente o corpo docente a respeito de suas
preferências e necessidades, criando, portanto, um vínculo com as instituições. Ou seja:

53
“Kroton negocia compra da Santillana Brasil”. Disponível em:
<https://www.valor.com.br/empresas/5458219/kroton-negocia-compra-da-santillana-brasil>. Acesso em
12/10/2018.
54
Os valores corresponentes às edições mais atuais do PNLD podem ser consultados em
<https://www.fnde.gov.br/programas/programas-do-livro/livro-didatico/dados-estatisticos>. Acesso em
12/01/2019.
121

quanto maior o capital da empresa, maior a força de sua publicidade e, consequentemente, sua
influência na decisão a ser tomada pelos professores e dirigentes55.
Se em termos práticos as estratégias de marketing podem figurar como um elemento
importante para se entender a disposição do ranking do PNLD, em termos burocráticos
algumas condições listadas no edital do programa parecem propiciar a baixa rotatividade das
listas. São aceitas não apenas obras inéditas, mas também “reapresentadas”. Apesar de se
tratar de um critério plenamente justificável, uma vez que em um período de quatro anos os
currículos escolares não costumam sofrer grandes mudanças, a possibilidade de se
reapresentar uma coleção que já fora positivamente avaliada pode, talvez, revelar-se um
empecilho à entrada de novos títulos. Sem nos estendermos muito, vale registrar que, das dez
coleções do PNLD 2015, sete já se faziam presentes no PNLD 2012 (BRASIL-MEC/FNDE,
s/d [c], pp. 11-13), sendo elas: PL01, NP02, PCIS03, LPLI04, SPLP06, VP08 e PLC09. No
PNLD 2018, por sua vez, também comparativamente à edição de 2015, vemos novamente
aprovadas as coleções NP02, PCIS03, LPLI04, SPLP06 e PLC0956.
A discussão sobre os aspectos editoriais e comerciais interligados ao PNLD que
desenvolvemos até aqui tem por objetivo ilustrar alguns dos fatores extraoficiais que parecem
exercer influência no conjunto final de obras aprovadas pelo programa. Acreditamos que tal
debate permite compreender melhor a origem e o perfil das coleções de 2015. Nesse mesmo
sentido, verificamos na pré-análise do nosso corpus que não apenas as editoras, mas, por
vezes, também o perfil dos autores funciona como um dado favorável a uma percepção mais
ampla sobre os materiais. Observamos, no caso, certa relação entre alguns traços dos livros
didáticos e a formação/ o vínculo institucional de parte de seus autores. Por exemplo: a obra
aparentemente mais inovadora no que tange à introdução do conteúdo das leis conta, entre
seus autores, com uma especialista em Literaturas Africanas  a saber a coleção LP07. O fato
de o edital do PNLD não exigir uma formação específica, mas somente um diploma de
graduação ou de pós-graduação, torna diverso o currículo dos profissionais que assinam as
coleções, os quais se inclinam a um percurso acadêmico mais próximo ora da Linguística ora
55
Com base nas constatações de Cassiano (2005; 2007; 2014), apontamos a importância de se desenvolver novas
pesquisas etnográficas nas escolas, que busquem observar se e até que ponto sobra espaço para a diversidade
cultural enquanto critério seletivo no momento de aferição das coleções do PNLD nas escolas. Ou, dito de outro
modo, que critérios escapam à força publicitária exercida pelos divulgadores no ambiente escolar.
56
Novamente, seria interessante, a nosso ver, que mais pesquisadores da área realizassem estudos atentos a esse
aspecto. O acesso à relação de obras reprovadas pelo PNLD, por exemplo, permitiria compreender melhor quais
são as editoras e os livros que têm perdido lugar para a reincidente aprovação dos mesmos títulos, bem como
quais são os critérios que, de fato, justificam essas exclusões.
122

Estudos Literários, ou que, ainda, se formam em Letras, mas consolidam suas trajetórias
profissionais na esfera da educação, como professores do ensino básico. Tendo em mente,
então, o nosso dado indiciário sobre a influência dos currículos dos autores na composição
das coleções, fazemos menção a seus perfis ao iniciar a análise de cada título, de modo a
explorar essa possível relação.

3.3. Focos e níveis de análise: fundamentações teórico-metodológicas

O livro didático (LD) de Língua Portuguesa corresponde a um objeto de pesquisa de


grande interesse para a área de Linguística Aplicada. Contudo, no que engloba os estudos
sobre o lugar e os contornos dos livros didáticos no ensino de língua materna, é notória a
maior atenção dirigida ao papel da gramática/análise linguística57 do que ao lugar ocupado
pela disciplina de literatura em tal contexto de ensino-aprendizagem. No decorrer desta
pesquisa de Doutorado, foi possível observar, por exemplo, o trabalho desenvolvido pelo
grupo de pesquisa “MELP - (Multi)Letramentos e ensino de Língua Portuguesa”, coordenado
pela profa. Dra. Márcia Rodrigues de Souza Mendonça, do Departamento de Linguística
Aplicada da Universidade Estadual de Campinas (DLA/UNICAMP), o qual tem demonstrado
interesse pela questão da formulação/reformulação de categorias que favoreçam o
levantamento e a análise das atividades de gramática/análise linguística propostas por livros
didáticos de Português58. Em diálogo com investigações afins desenvolvidas pela Linguística
Aplicada, e tendo em vista a escassez de quadros analíticos desse teor para o estudo das
atividades de literatura, julgamos produtivo atentar-nos a eventuais padrões de análise, a fim
de disponibilizar, de forma sistematizada, um quadro que possa, talvez, ser reaproveitado, em
maior ou menor medida, por outros estudiosos da relação entre livros didáticos e educação
literária.
Visando contribuir, assim, com essa vertente de investigação, apresentamos na
subseção seguinte algumas categorias e alguns focos analíticos que, em nosso entendimento,
são passíveis de serem aplicados e/ou adaptados a outros trabalhos sobre livros didáticos de

57
O termo “análise linguística” passa a ser adotado pelos estudiosos da didática do ensino de português na
década de 1980, servindo de referência a um ensino mais reflexivo de gramática. Optamos por utilizar as duas
nomenclaturas pois a abordagem dos conhecimentos linguísticos varia de coleção para coleção.
58
Vale destacar duas Monografias de Conclusão de Curso (Licenciatura em Letras), orientadas pela
coordenadora do Grupo de Pesquisa MELP: “Análise linguística em LDs do Ensino Médio: estudo comparativo
das edições de 2006 e 2015 do PNLD-EM” (2016), de Natália Franzoni Oliveira; “Análise Linguística em Livros
Didáticos de 9º ano: atividades em foco” (2015), de Cora Conte.
123

literatura. Para defini-los, recorremos tanto aos dados obtidos em nossa pré-análise do PNLD
2015, a qual tornou evidente a necessidade de um registro padronizado de determinadas
ocorrências, quanto à metodologia de análise de manuais escolares de Português desenvolvida
pela pesquisadora portuguesa Maria de Lourdes da Trindade Dionísio e apresentada em seu
livro A construção escolar de comunidades de leitores – leituras do manual de Português
(2000). Assim, fazemos referência ao trabalho da autora na medida em que seu método tenha
inspirado e/ou tenha sido transposto ao nosso quadro metodológico. Embora suas propostas
não foquem a relação entre leitura e interculturalidade, mas sim as atividades de leitura dos
livros didáticos em uma perspectiva mais ampla, a transposição de suas ideias ao escopo da
nossa pesquisa mostrou-se pertinente e produtiva. Para tanto, ao selecionar e ao
eventualmente reinterpretar suas categorias, tivemos sempre em vista o objetivo de elaborar
quadros analíticos e de levantar ocorrências que favorecessem a investigação do cumprimento
das leis 10.639/2003 e 11.645/2008, ou seja, que auxiliem na investigação do processo de
introdução de textos não canônicos em livros historicamente compostos pelo cânone escolar,
e não de quaisquer ocorrências de leitura literária.
De modo geral, estabelecemos dois níveis de análise: o da macroestrutura e o da
microestrutura das coleções didáticas. Em ambos os casos, desenvolve-se um estudo de
caráter mais qualitativo que quantitativo59.
O primeiro nível, o da macroestrutura, envolve o estudo do Manual do Professor e
das escolhas editoriais concernentes à localização e à distribuição dos conteúdos impostos
pelas leis 10.639/2003 e 11.645/2008. As perguntas às quais buscamos responder com o
levantamento desses dados são: (i) quais são as diretrizes presentes e os objetivos anunciados
no Manual do Professor, sobretudo no que se refere à questão da diversidade cultural?; e (ii)
qual é o lugar e a abrangência das literaturas afro-brasileira, africanas e indígenas dentro das
obras, e em que medida esse projeto editorial fornece indícios sobre o modo pelo qual as leis
são interpretadas por cada coleção?
O segundo nível, o da microestrutura, volta-se, especificamente, ao estudo da
composição das seções/dos capítulos relacionados (completa ou parcialmente) aos conteúdos

59
A principal justificativa para essa distinção entre “macro” e “micro” está no fato de a maioria das pesquisas
por nós encontradas se restringir a categorizações de viés micro, ignorando, muitas vezes, estratégias editoriais
importantes para a compreensão das ideologias e dos fundamentos didático-pedagógicos dos livros didáticos. Foi
frequente em nosso levantamento bibliográfico a presença de estudos que, interessados na abordagem conferida
às literaturas e/ou temáticas negra, indígena e africana, limitavam-se à análise de atividades e de elementos
iconográficos, isto é, a aspectos do nível micro.
124

das leis, com foco preponderante nas instruções e nas atividades de leitura. A questão
levantada, então, é: como ocorre, afinal, a mediação de leitura do repertório postulado pelas
leis?
Apresentamos a seguir quadros-síntese das categorias analíticas que embasam o
estudo de cada um dos níveis de análise, assim como detalhamos e justificamos seus
fundamentos teórico-metodológicos.

3.3.1. Macroestrutura dos livros didáticos: quadro analítico I

Quadro 2. Categorias da Macroestrutura dos livros didáticos (adapt. de DIONÍSIO [2000]).

De início, cabe esclarecer que a categoria de localização e distribuição figura como


o único recorte inteiramente autoral do nosso método de análise, visto que, para o
desdobramento da categorização dos dois níveis de estudo (macro e micro), apoiamo-nos com
frequência na aplicação e na reinterpretação dos modelos elaborados por Dionísio (2000).
Conforme mencionado, explicitamos, no decorrer do detalhamento dos significados de cada
categoria, quais delas foram diretamente transpostas do trabalho de Dionísio e sobre quais
exercemos qualquer tipo de modificação.
A priori, na análise da macroestrutura, interessa-nos observar inicialmente a
localização e distribuição das literaturas indígenas brasileiras, afro-brasileira e africanas, a
fim de verificar se esta ocupa um lugar restrito, articulado ou tangencial nos livros didáticos.
Em outras palavras, trata-se de verificar se esses textos se encontram, respectivamente, em um
125

capítulo único e substancial; em mais de um capítulo e articulados ao conteúdo escolar


clássico; ou se comparecem tangencialmente/à margem das coleções, em um espaço bastante
reduzido se comparado ao padrão editorial da coleção. Se, conforme discutimos
anteriormente, uma perspectiva pós-colonial de educação implica uma revisão e um
questionamento do cânone escolar, o qual é marcado, nos livros didáticos, por uma
cristalizada disposição cronológica que atenda às escolas literárias europeias, consideramos
que a própria escolha da seção e/ou do capítulo de inserção de “novos” conteúdos afirma-se
como um dado relevante para o entendimento dos impactos de leis de cunho multicultural. Em
outras palavras, a inclusão desses conteúdos em um espaço à margem dos livros didáticos (em
duas ou em três páginas de encerramento do volume, por exemplo) pode culminar,
contrariamente ao esperado, em um novo tipo de exclusão/marginalização dessas produções
culturais.
Os fundamentos do Manual do Professor também integram as discussões
correspondentes ao nível macro dos livros didáticos. Além de explorarmos, de modo geral, se
e em que medida a questão da diversidade cultural faz-se presente nas instruções e nos
subsídios dados ao docente, atentamo-nos especialmente a duas subcategorias de análise,
estas sim em diálogo com o quadro analítico de Dionísio60:

 Critérios de seleção dos textos, que podem fazer-se presentes ou ausentes


(DIONÍSIO, 2000, p. 133); a partir deles, é possível perceber se e em que medida a
diversidade cultural constitui-se um parâmetro de escolha no que tange à definição do
repertório literário geral da coleção, bem como os critérios e as justificativas que
embasam o repertório específico destinado ao cumprimento das leis 10.639/2003 e
11.645/2008 em cada coleção;

60
Para a análise do Manual do Professor, adotamos duas das ramificações categóricas delineada por Dionísio
(2000) em seu Quadro 1 (“Categorias de análise dos ‘textos de abertura’”, p. 138), no caso, as subcategorias
“critérios de seleção de textos” e “objetivos das coleções”. Em seu estudo, essas ramificações atrelam-se a
aspectos daquilo que a autora denomina de “textos de abertura”, correspondente aos textos por meio dos quais é
possível notar “a forma como o autor perspectiva o uso que do seu manual deve ser feito” (ibid., p. 132). No
nosso trabalho, porém, tratamos os “textos de abertura” como sinônimo de “Manual do Professor”, posto que
associamos essa categoria a todas as orientações e respostas fornecidas aos docentes, sem exceção, daí a
pertinência de substituição de um termo por outro.
126

 Objetivos das coleções, que podem ser de natureza técnica, ou seja, atrelados à
aquisição de saberes e de capacidades escolares de viés técnico-conteudístico61, e/ou
voltados à promoção/ao desenvolvimento de atitudes, estando associados, neste caso,
à “dimensão formadora da personalidade, a este papel socializador, bem como as
referências às atitudes e aos valores que se promovem, pela leitura, a par de atitude
crítica e do desenvolvimento afectivo e estético” (DIONÍSIO, 2000, p. 135). Esta
ramificação, em especial, favorece, a nosso ver, o levantamento de objetivos que
relacionem o cumprimento das leis 10.639/03 e 11.645/08 a uma formação para a
cidadania, pois atrelamos a essa subcategoria quaisquer objetivos que postulem
reflexões e atividades favoráveis à promoção de posturas (/“atitudes”) de combate ao
preconceito e à discriminação sofrida por negros e indígenas. Com base nas discussões
que apresentamos nos capítulos anteriores, entendemos que, para além de ampliar o
repertório sociocultural dos estudantes, as leis surgem também, e fundamentalmente,
com o intuito de discutir, a partir da literatura, atitudes e valores alinhados ao
reconhecimento crítico e positivo da pluralidade cultural. Daí a necessidade de
verificar se o trabalho com as literaturas afro-brasileira, africanas e indígenas proposto
pelas coleções busca articular objetivos que visem ao desenvolvimento de capacidades
e de conhecimentos técnicos a objetivos que visem suscitar novas atitudes frente à
temática.

A título de ilustração/aplicação das categorias supracitadas, analisamos brevemente o


excerto abaixo, extraído do Manual do Professor da coleção VM10:

A unidade volta-se para o estudo das manifestações da literatura moderna


em países africanos de expressão portuguesa, isto é, aquela literatura surgida
do desejo de criar uma literatura que não fosse apenas uma adaptação dos
modelos literários portugueses, mas genuinamente africana. A escolha desse
61
Aqui também recorremos a uma simplificação das categorias de Dionísio (2000), optando por concentrar em
uma única categoria (a qual denominamos de objetivos “técnicos”) os objetivos voltados tanto a
“conhecimentos” (objetivos que “que fazem referência a saberes linguísticos, literários e/ou culturais alcançáveis
pela prática de leitura” [DIONÍSIO, 2000, p. 133]) e quanto a “capacidades” (quando se referem “às diversas
competências linguísticas ou de compreensão/interpretação (...), [comumente] associados aos processos
cognitivos envolvidos num acto de leitura como, por exemplo, a inferência, a antecipação, a formulação de
hipóteses (...)” [ibid., p. 134]). Para o nosso trabalho, interessa menos verificar a frequência de cada um dos tipos
de objetivos listados pela autora e mais contrastá-los, de forma abrangente, a eventuais objetivos voltados a
“atitudes”, devido ao fato de as leis 10.639/2003 e 11.645/2008 estarem também, e principalmente, atreladas ao
combate da discriminação étnico-racial e não apenas a uma ampliação dos conhecimentos e das capacidades
escolares. Nesse sentido, é importante investigar se e com qual frequência o cumprimento das leis associa-se, em
cada coleção, à promoção de “atitudes” alinhadas ao reconhecimento crítico e positivo da pluralidade cultural.
127

recorte deve-se ao fato de entendermos que é durante o período de luta pela


independência que se desenvolve, nos países africanos, a preocupação de
produzir uma literatura que represente certo sentimento de africanidade e
exprima a visão de mundo de sujeitos que nasceram e viveram nos territórios
africanos [1].
Em Origens e períodos das literaturas africanas, o professor poderá
encontrar elementos que permitirão iniciar uma discussão sobre as marcas
que singularizam a produção literária nos países outrora colonizados.
Fundamentalmente, trata-se de auxiliar os alunos a romper eventuais
preconceitos quanto à literatura angolana, cabo-verdiana, santomense,
moçambicana e guineense [2]. (...)
O Brasil ocupou um lugar de extrema importância no imaginário dos países
africanos de expressão portuguesa. Os brasileiros foram os que
ultrapassaram as limitações da herança colonial no plano econômico e
social. Foram também os que criaram uma literatura ao mesmo tempo
universal e local.
A apresentação inicial deste capítulo, que trata da produção de autores
africanos, deve passar, necessariamente, pela discussão das trocas culturais
entre os povos de lá e de cá do Atlântico [3]. (...) (destaque nosso) (ABREU-
TARDELLI; ODA; CAMPOS & TOLEDO, 2013 [Vol. 3], p. 457-458).

As passagens sublinhadas indicam que os critérios fazem-se presentes ([1]:


“literatura que represente certo sentimento de africanidade”); que coexistem, no capítulo,
objetivos orientados para as atitudes ([2]: “romper eventuais preconceitos”) e objetivos
técnicos ([3]: “discussão das trocas culturais entre os povos de lá e de cá do Atlântico”).
Longe de limitar o nosso estudo à tabulação desses dados, assumimos as categorias como um
ponto de partida para que, na seção de análise, possamos desenvolver uma leitura qualitativa e
por vezes comparativa das informações recolhidas. Além de ser relevante investigar, por
exemplo, em que proporção a natureza dos critérios e dos objetivos que envolvem o conteúdo
das leis varia ou se mantém de coleção em coleção, objetivamos desenvolver reflexões mais
aprofundadas sobre os significados dos discursos que as fundamentam; no excerto
supracitado, por exemplo, as ideias de “literatura genuinamente africana” ou de “sentimento
de africanidade”, ou, ainda, a descrição do Brasil como um país que “ultrapassou as heranças
coloniais”, são exemplos de aspectos a serem qualitativa e teoricamente abordados em nosso
capítulo analítico.
Esclarecidas, portanto, as categorias que alicerçam a análise do projeto editorial das
coleções, bem como dos respectivos manuais do professor, disponibilizamos a seguir as
categorias referentes ao nível da microestrutura dos livros didáticos, isto é, as categorias a
serem empregadas na análise de capítulos, sem deixar de rememorar questões relativas ao
128

nível macro sempre que tal relação se faça produtiva à apresentação da metodologia de
pesquisa.

3.3.2. Microestrutura dos livros didáticos: quadro analítico II

Quadro 3. Categorias da Microestrutura dos livros didáticos (adapt. de DIONÍSIO [2000]).

Explicamos anteriormente que o prefixo “micro” faz alusão às seções e/ou a


capítulos pontuais atrelados à temática e às literaturas referidas pelas leis 10.639/03 e
11.645/08, sobretudo no que concerne a suas atividades de leitura. Para a análise desse nível,
e recorrendo, novamente, aos importantes aportes de Dionísio (2000), apresentamos duas
categorias estruturantes: a dos enquadradores discursivos (DIONÍSIO, 2000, p. 157 –
“Quadro 3” [adapt.]) e a das solicitações interpretativas62 (ibid., p. 189 – “Quadro 6”
[adapt.])63. De forma mais simplificada, é possível afirmar que os primeiros correspondem aos
enunciados que antecedem e direcionam as atividades de leitura, enquanto que as segundas
referem-se às perguntas e aos exercícios propriamente ditos. Nos exemplos a seguir, retirados
de um capítulo sobre literaturas africanas de uma das coleções do PNLD 2012, destacamos
com sublinhado o que reconhecemos como enquadradores discursivos das atividades de
leitura e com itálico as respectivas solicitações interpretativas:

62
Dionísio (2000) vale-se preponderantemente do termo “solicitações”, contudo, optamos pela expressão
“solicitações interpretativas” porque, além de mais esclarecedora, ela remete à expressão “solicitação de acções
interpretativas” (p. 180) empregada pela autora no início da apresentação de tal categoria.
63
No modelo de Dionísio (2000), tanto os “enquadradores” quanto as “solicitações” apresentam vários
desdobramentos analíticos. Para os fins do nosso estudo, recorremos a uma reinterpretação bastante resumida e
simplificada de sua proposta, motivo pelo qual suprimidos diversas subcategorias delineadas pela pesquisadora.
129

(i) 1. Os poemas apresentados foram escritos por autores que viveram


difíceis anos de luta pela independência política de seus países, enfrentando,
muitas vezes, sangrentas guerras civis.
Que características desses textos nos revelam essa ligação entre literatura e
contexto histórico? (SARMENTO & TUFANO, 2010, p. 210). 64

(ii) 3. Com relação ao poema “Receita para fazer um herói”, responda.


a) Por que o texto tem este título?
b) No texto, que “ingredientes” devem ser usados para criar um “herói”?
c) Que concepção de herói nasce dessa receita?
d) Pode-se dizer que há ironia nesse poema? (ibidem, p. 211). 65

Comecemos, pois, por entender o papel dos enquadradores discursivos.


Nos exemplos acima, ficam evidentes os diferentes graus de controle que os
enquadradores discursivos podem exercer sobre a atividade interpretativa dos alunos, uma
vez que em (i) é fornecido um dado da biografia dos autores talvez desconhecido por parte
dos estudantes (a participação na luta pela “independência política de seus países,
enfrentando, muitas vezes, sangrentas guerras civis”), enquanto que (ii) limita-se ao anúncio
do título da obra. Se é certo afirmar que em (ii) o enquadramento de leitura é pouco
significativo, em (i) vemos um enquadrador que induz o leitor a relacionar as literaturas
africanas a uma literatura histórica/memorialística e de resistência, por exemplo. Ademais, no
que diz respeito à possibilidade de uma interpretação comparativa das coleções do PNLD
2015, a escassez ou a repetição de enquadradores semelhantes ao do exemplo (i) ou ao do
exemplo (ii) mostra-se um dado importante para a compreensão do modo pelo qual os livros
didáticos têm introduzido o repertório das leis.
Portanto, essa distinção proposta por Dionísio (entre “enunciado da atividade” e
“atividade/solicitação de uma ação”) nos é interessante por desvelar o tipo de direcionamento
didático que os livros didáticos costumam dar a leituras de textos que respondam à
diversidade cultural. Por meio do conceito de enquadradores discursivos, torna-se possível
verificar, por exemplo, “os movimentos de abertura ou de fechamento de sequências
interactivas” (DIONÍSIO, 2000, p. 153), responsáveis por estabelecer “relações entre os
sujeitos do discurso e/ou estes e os textos” (ibidem). É por essa razão, e com base na pré-
análise das coleções, que classificamos como enquadradores discursivos também os textos de

64
Os poemas em questão são: “Revolta” (1975), de Aguinaldo Fonseca; “Antievasão”, de Ovídio Martins
(1975); “Receita de um herói” (1996), de Reinaldo Ferreira; “Rumo” (1963), de Alda Lara; “Descoberta” (sem
data), de Conceição Lima; “Ilha nua”, Alda do Espírito Santo (sem data); “Antologia poética” (sem data), de
Helder Proença.
65
“Receita de um herói” (1996), de Reinaldo Ferreira.
130

apresentação dos capítulos e eventuais paratextos que atendem, de algum modo, aos
conteúdos das leis66. Embora esses textos não sejam imediatamente acompanhados de
atividades, notamos que eles interferem de forma significativa no direcionamento das leituras
dos textos que integram tais seções. O exemplo seguinte, retirado da mesma coleção,
evidencia, inclusive, um diálogo entre o que é anunciado na introdução do capítulo de
literaturas africanas (a qual transcrevemos, abaixo, quase que em sua totalidade) e o que
observamos no enquadrador discursivo do exemplo (i), anteriormente citado. A ideia de que
as literaturas africanas devam ser lidas fundamentalmente como literaturas de resistência faz-
se presente, portanto, desde a abertura do capítulo:

(iii) Uma literatura de resistência


A marca principal da literatura africana de língua portuguesa é sua postura
de resistência à dominação estrangeira, de reivindicação dos direitos
humanos básicos, bem como a denúncia da exploração de que ainda são
vítimas as populações mais pobres.
Muita gente se engajou nessa resistência – cantores, pintores, poetas,
escritores, intelectuais, jornalistas. E, como milhões de africanos foram
trazidos na condição de escravos ao Brasil ao longo de vários séculos, boa
parte da população brasileira se reconhece nessa resistência, pois, afinal, são
descendentes dessas pessoas, como vimos, por exemplo, na poesia “Sou
negro”, do pernambucano Solano Trindade (1908-1974). E hoje, graças às
facilidades de comunicação, os contatos entre Brasil e esses países africanos
e língua portuguesa são cada vez mais constantes. (...) Livros de escritores
africanos começam a ser cada vez mais editados no Brasil. Enfim, embora o
processo de integração seja lento, ele é constante e deve continuar, porque
nos enriquece a todos. Por isso, é importante fecharmos esta coleção com
alguns exemplos da literatura africana produzida em língua portuguesa, em
prosa e verso. (...) (destaque nosso) (SARMENTO & TUFANO, 2010, p.
206).

Depreendemos a partir desses exemplos que os “pré-textos” (/enquadradores


discursivos) que anunciam as atividades ou que introduzem e/ou fazem a mediação dos
capítulos acabam por exercer o papel de balizadores do exercício interpretativo dos alunos,
haja vista funcionarem como “‘ampliadores’ do que o autor [do LD] reconhece como
relevante e digno de ser compreendido e integrado como conhecimento ou não” (DIONÍSIO,
2000, p. 122). A esse respeito, esclarece Dionísio:

66
Na obra de Dionísio (2000), muitos dos textos introdutórios das coleções e de seus capítulos, bem como o
próprio manual do professor, são analisados a partir da categoria “textos de abertura” (DIONÍSIO, 2000, p. 131).
Contudo, para os fins do nosso estudo, a distinção entre “textos de abertura” e “enquadradores discursivos”
mostrou-se desnecessária. E tendo em vista as categorias às quais visamos dar maior evidência, o Manual do
Professor também acabou por figurar, por sua vez, uma subcategoria à parte dentro do nosso quadro analítico.
131

Estas formas, na acção de ensinar a ler, regulando sempre de alguma


maneira o saber em causa, podem, mesmo assim, ser vistas como criadoras
de condições mais ou menos favoráveis para o desempenho, por parte dos
aprendizes, de papéis mais passivos ou mais activos na construção dos
saberes sobre os textos e sobre a leitura. Efectivamente, a opção pela
apresentação, num “enquadrador”, de juízos de valor sobre um texto ou, em
alternativa, a apresentação de informação sobre o mundo, susceptível de
ajudar na compreensão desse texto, supõe uma atividade diferente quanto ao
modo de entender o papel do leitor na construção dos sentidos textuais.
(DIONÍSIO, 2000, p. 155).

Para sistematizar a análise dos enquadradores consoante ao tipo de


informação/instrução fornecida por esses enunciados, a autora propõe ramificações
categóricas, das quais nos interessam, salvaguardadas as devidas adaptações, três
subcategorias67, que, como vemos a seguir, estabelecem certo diálogo com as fichas
avaliativas do PNLD 2015:
 Enquadradores extratextuais: “nível de enunciados em que os autores [dos livros
didáticos] afirmam e transmitem saberes acerca do mundo, da língua, também dos
autores e das obras, ou mesmo de outros textos, e que, de alguma forma, podem
interagir com o texto em estudo” (DIONÍSIO, 2000, p. 155)68. O enquadrador do
exemplo (i), anteriormente discutido, ao fornecer dados relativos aos autores dos
textos e à história de seus países, ilustra, portanto, o tipo extratextual. Em relação às
fichas avaliativas do PNLD, entendemos que esse tipo de enquadrador firma certa
articulação com a seguinte questão colocada pelo Guia do componente Português:
“[As atividades] estabelecem relações entre o texto literário e o contexto histórico,
social e político de sua produção?” (BRASIL-MEC/SEB, 2014b, p. 96).

67
Em seu Quadro 3 (DIONÍSIO, 2000, p. 157), a autora propõe quatro tipos de «enquadradores»:
“interpessoais”, “paratextuais”, “extratextuais” e “textuais”. Desconsideramos na nossa análise o primeiro e o
segundo tipo, pois, contrariamente às finalidades do trabalho de Dionísio, ambos se mostram pouco relevantes
para a nossa pesquisa, haja vista a baixa frequência, nas coleções do Ensino Médio, de enunciados como
“Esperamos que tenhas gostado do texto que acabaste de ler” (ibid., p. 154), bem como o nosso baixo interesse
por detalhes relacionados à editoração (/papel dos paratextos). Portanto, abordaremos esses pontos conforme
eles se mostrem significativos para o entendimento dos livros didáticos, e não a partir de categorias
privilegiadas.
68
Cabe mencionar que a autora faz uma distinção entre enquadradores extratextuais em posição inicial (antes da
atividade), que teriam a função de “facilitar a compreensão do texto em estudo” (DIONÍSIO, 2000, p. 267), e
enquadradores extratextuais em posição final (após a atividade), que “só podem ser vistos como
preferencialmente servindo o alargamento de conhecimentos dos alunos” (ibid., p. 268). Trata-se, porém, de uma
distinção pouco relevante a nossa análise de dados.
132

 Enquadradores textuais: enunciados que se reportam a elementos e questões do


próprio texto, ou que, remetendo aos critérios avaliativos do PNLD, “levam o aluno a
considerar a materialidade do texto na apreensão de efeitos de sentido” (BRASIL-
MEC/SEB, 2014b, p. 96). Nos Quadros 3 (“Categorias de descrição dos
‘enquadradores’ quanto ao tipo” - p. 157) e 4 (“Categorias de análise das ‘operações
de leitura’” - p.163) de Dionísio (2000), propõem-se vários tipos e subtipos de
«enquadradores textuais»69, os quais, entretanto, extrapolam os objetivos da pesquisa
aqui pretendida. Assim, são entendidos como textuais desde os enunciados que apenas
reafirmam/retomem aspectos básicos/autoevidentes dos textos (título, autor etc.) –
como é o caso do enquadrador do exemplo (ii): “3. Com relação ao poema “Receita
para fazer um herói”, responda.” –, até enunciados que citem, parafraseiem ou
interpretem parte da obra, como em ocorrências do tipo: (iv) “Embora Pitanga assuma
as dores do abandono de sua mãe pelo seu pai, há um momento da narrativa em que
ela demonstra um afeto por ele” (ABREU-TARDELLI; ODA; CAMPOS &
TOLEDO, 2013 [Vol. 3], p. 213)70.
 Enquadradores intertextuais: apesar de Dionísio não adotar essa subcategoria em seu
levantamento de dados71, a pré-análise das coleções do PNLD 2015 permitiu-nos
identificar certo protagonismo de estratégias intertextuais no que concerne à
apresentação dos conteúdos das leis 10.639/03 e 11.645/08, ao menos em duas ou três
coleções. Ademais, também o Guia do PNLD elenca a pergunta “[as atividades]
abordam a literatura brasileira em diálogo com outras literaturas de língua
portuguesa?” (BRASIL-MEC/SEB, 2014b, p. 96), evidenciando a valorização desse
tipo de direcionamento de leitura. A nosso ver, a questão que essa categoria nos
coloca refere-se à frequência com que esses “novos” textos são articulados, no nível
do exercício da leitura, aos textos escolares canônicos (leitura comparada entre Mia

69
Dionísio (2000) divide os «enquadradores textuais» em três tipos: citação, paráfrase e interpretativos. Para o
último, isto é para os “enquadradores textuais interpretativos”, propõe ainda cinco subcategorias: “citação”,
“identificação”, “inferência”, “síntese” e “juízo de valor”. Em nosso trabalho, decidimos aplicar seu modelo de
uma forma mais simplificada, sem nos atentar a nenhum desses desdobramentos na etapa de levantamento de
dados. Basta-nos identificar, inicialmente, quando um enquadrador é do tipo textual, independentemente de suas
especificidades.
70
Atividade referente a um trecho do romance As mulheres de meu pai (2007), de José Eduardo Agualusa.
71
“A sua não consideração como categoria de análise resultou (...) do facto de na testagem das categorias se ter
verificado que, neste caso dos ‘enquadradores’, não era significativo o número de enunciados que marcassem as
relações entre diferentes textos” (DIONÍSIO, 2000, p. 271).
133

Couto e Guimarães Rosa, por exemplo); e/ou relacionados uns aos outros (leitura
comparada entre um escritor de Angola e um escritor de Moçambique); e/ou, ainda, à
própria fortuna dos autores e/ou dos temas trabalhados, como em um exercício
proposto pela coleção Vozes do Mundo (2013), da editora Saraiva, no qual o
enquadrador discursivo fornece algumas definições de “cultura” formuladas pelo
intelectual Edward Said72 a fim de direcionar a atividade de leitura do texto “Poema
do futuro cidadão”, de José Craveirinha (vide ABREU-TARDELLI; ODA; CAMPOS
& TOLEDO, 2013 [Vol. 3], p. 217). Vale ressaltar, por fim, que se trata de uma
categoria micro bastante favorável ao estudo dos casos em que a macroestrutura é
caracterizada por uma localização e distribuição articulada, uma vez que a
intertextualidade afirma-se, a priori, o eixo fundador das duas ocorrências.
Reiteramos no início da seção que, para além dos enquadrados discursivos, quais
sejam, extratextuais, textuais e intertextuais, o quadro analítico da microestrutura dos livros
didáticos conta também com as solicitações interpretativas. Em relação a esse ponto, optamos
por uma releitura ainda mais contundente das subcategorias de Dionísio. Em seu Quadro 6
(DIONÍSIO, 2000, p. 189), a pesquisadora sugere serem sete os tipos de “operações de
leitura” comumente requeridas pelas solicitações: “identificação”, “inferência”, “síntese”,
“juízo de valor”, “justificação”, “mobilização” e “classificação”73. Ao considerarmos, no
entanto, o nosso objetivo de pensar a relação entre ensino de literatura/leitura e diversidade
cultural, assim como os embasamentos teóricos da nossa pesquisa tese, propomos um modelo
que dê evidência a apenas duas categorias de solicitações por nós formuladas, cada qual
associada, de forma implícita, a determinados tipos de “operações de leitura” elencados por
Dionísio. São elas: solicitações analíticas e solicitações cursivas.
As solicitações analíticas atrelam-se a ações de leitura de viés objetivo, circunscritas
nos limites delineados pelos textos, e envolvem, usualmente, operações de identificação,

72
Na coleção, Edward Said é apresentado como um “escritor indiano”, sendo que, na verdade, ele é palestino.
73
Em Quadro anterior (Quadro 5 – “Categorias de análise das ‘solicitações’ quanto ao ‘estatuto’ e ‘orientação’”,
p. 186), Dionísio chama igual atenção para os tipos de relações a ser estabelecidas entre os enquadradores e as
solicitações: tipo “independente” e tipo “dependente”. Para o tipo “dependente”, propõe ainda uma distinção
entre dependência “convergente” e “divergente”. Embora bastante interessantes, essas classificações mostraram-
se pouco produtivas para a nossa análise. Novamente, tais questões são abordadas apenas na medida em que se
façam necessárias para o desenvolvimento da abordagem qualitativa dos dados.
134

classificação, inferência, síntese e justificação74. Já no plano das solicitações cursivas,


encontramos solicitações voltadas a reflexões subjetivas acerca dos textos lidos, e, portanto,
abertas à extrapolação de seus limites, à emissão de juízos de valor e à mobilização de
conhecimentos e de experiências prévias relacionadas à temática do texto lido75. Expandindo
seu alcance, associamos às solicitações cursivas qualquer atividade que envolva fruição
estética. Nesse sentido, ela pode vir a figurar como uma categoria produtiva para se verificar
em que medida as atividades “levam o aluno à fruição estética e à apreciação crítica da
produção literária” (BRASIL-MEC/SEB, 2014b, p. 96), outro questionamento presente nos
critérios avaliativos do PNLD.
Para elucidar os contornos das solicitações interpretativas, observemos os exemplos
a seguir:

1. Na foto que abre este capítulo, vemos um jogo de capoeira. O que você
sabe a respeito da capoeira?
2. Além da capoeira, que outros elementos da cultura africana presentes no
Brasil você saberia apontar?
(...)
4. O eu lírico [do poema Sou Negro, de Solano Trindade] destaca também
uma contribuição cultural do escravo africano. Qual? (...) (SARMENTO &
TUFANO, 2010 [Vol. 3], p. 206).

As questões 1 e 2 são representativas do tipo solicitações cursivas, pois visam a


mobilizar os eventuais conhecimentos prévios e pessoais que os alunos possam ter acerca do
tema. Vale notar que o viés subjetivo dessas questões faz com que o enquadrador discursivo
textual do primeiro exercício em nada direcione a resposta dos estudantes, e que na pergunta
2 ele se faça ausente, dada a liberdade de resposta prevista por esse tipo de questão. Já a
atividade 4 corresponde ao que denominamos de solicitação analítica, uma vez que é

74
Das operações listadas por Dionísio (2000), entendemos que cinco podem fundamentar, implicitamente, as
solicitações analíticas: as operações de identificação (de passagens/de aspectos explicitamente presentes nos
textos); de classificação (“acto inclusão de um objecto numa dada categoria [neste caso, linguística ou textual]”
[p. 189]); as de inferência (“preenchimento dos espaços em branco, a formulação de conclusões” [...], impregnar
“de sentido o que só parcialmente é dado pela superfície do texto” [ibid., p. 186]); as operações de síntese
(recapitulação pessoal de passagens/de informações do texto); e, finalmente, as de justificação (“solicitar
evidência para um produto antes apresentado [...]”, em geral, pelos enquadradores discursivos, ou solicitar que o
aluno explique “o processo pelo qual chegou a um determinado sentido” [p. 188]).
75
À luz de Dionísio (2000), identificamos como operações de leitura típicas da subcategoria solicitação cursiva
o juízo de valor (resposta de cunho mais pessoal; formulação de juízos críticos que podem envolver “resposta
emocional e/ou estética do leitor” [p. 187]”) e a mobilização (“solicitação da activação” de “conhecimentos
prévios (...)”, “(...) do repertório cognitivo relativo à língua, aos textos, ao mundo” [188]).
135

proposto aos estudantes que identifiquem uma informação presente no poema lido. Além
disso, a título de síntese, o enquadrador de 4 é também do tipo textual, pois conduz o leitor
novamente ao texto-fonte, e não a informações exteriores ao texto de Solano Trindade nem a
dados concernentes a outros textos com os quais o poema poderia estabelecer, eventualmente,
uma relação de intertextualidade.
É necessário esclarecer que ao propormos que as solicitações cursivas atendessem a
uma subcategoria de análise  escolha esta que demandou significativas reinterpretações do
quadro analítico de Dionísio (2000) , visamos dar destaque à atual discussão sobre o lugar e
o papel da leitura subjetiva/cursiva no ensino de literatura. A partir dessa ramificação
categórica, defendemos, à luz de teorias contemporâneas sobre o “sujeito leitor” no contexto
escolar76, a importância de se conjugar a usual “leitura [escolar] analítica” (baseada em
conhecimentos, competências, capacidades etc.) à leitura do tipo “cursiva” (ROUXEL,
2012a), ou “subjetiva”, esta mais “pessoal”, “flexível” e “autônoma”, uma leitura que
“autoriza o fenômeno da identificação e convida a uma apropriação singular das obras.
Favorecendo outra relação com o texto, significa um desejo de levar em conta os leitores
reais” (ibid., p. 276). Portanto, longe de sugerir a renúncia “ao estudo da obra em sua
dimensão formal e objetivável” (ROUXEL, 2012a, p. 281), tais reflexões baseiam-se na
premissa de que a leitura com fins analíticos “não pode conduzir à exclusão de toda expressão
singular da subjetividade do leitor” (ROUXEL, 2012a, p. 278), dado que

Nessa leitura crítica [ou analítica], o leitor está principalmente atento aos
elementos relacionados a uma literariedade construída por meio do
conhecimento de códigos específicos da literatura (gênero, intertextualidade
etc.). Porém, em uma atitude de leitura ‘normal’ [...] minha atenção não está
focalizada exclusivamente nesses traços estéticos, nesses índices da
referência literária, o que não significa que sejam ignorados por mim, que os
apague artificialmente de meu espírito; estão, entretanto, associados a outros
elementos que remetem a minha personalidade global: meus conhecimentos
literários e minhas leituras anteriores, sem dúvida, mas também minha
experiência de mundo, minhas recordações pessoais, minha história própria.
(LANGLADE, 2013, p. 32).

76
Tem-se como marco recente dessa corrente de pesquisa o Colóquio “Le sujet lecteur” (2004), realizado na
cidade de Rennes, na França, evento que consolida a articulação de propostas teórico-metodológicas voltadas à
contextualização e à aplicação dos conceitos de “sujeito leitor” e de “leitura subjetiva” ao contexto escolar. Entre
seus pesquisadores, destacam-se Annie Rouxel, Gérard Langlade, Vincent Jouve, Jean-Louis Dufays e Michèle
Petit.
136

Para evidenciar as diferenças existentes entre leituras de viés analítico e leituras de


viés cursivo, Annie Rouxel (2012b, 2013), a partir de Umberto Eco, dá ênfase à ocorrência do
interpretar e do utilizar em sala de aula. Enquanto aquele se associa à busca por um
“equilíbrio entre ‘direitos do texto’ e ‘direitos do autor’” (ROUXEL, 2013, p. 153), o segundo
prevê uma leitura dotada de maior liberdade. Contestando então Eco, que, em sua discussão,
“descarta a ‘utilização’ por ser uma atividade mais pessoal” (ROUXEL, 2012b, p. 18), Rouxel
destaca a igual importância do uso do texto no ensino-aprendizagem de leitura, um uso que se
configuraria, na prática, uma atividade menos escolarizada, atenta à subjetividade do aluno
leitor. Nesse ponto, os argumentos da autora aproximam-se significativamente das ideias
centrais defendidas por Michèle Petit em seus trabalhos: recuperar a leitura subjetiva, esse uso
do texto, requer admitir seu “espaço íntimo” (PETIT, 2013), seu exercício no âmbito do
privado, para além do viés social e universal que é imediatamente imposto pela interpretação
escolar.
Com base nesses subsídios, entendemos que contrapor, em nosso quadro analítico,
solicitações cursivas a solicitações analíticas nos permite observar em que medida se dá
espaço, nas coleções didáticas, às impressões pessoais e iniciais de leitura dos alunos, antes de
se apresentar (ou impor) consensos interpretativos acerca das literaturas indígenas brasileiras,
afro-brasileira e africanas. Entendemos que, embora prevaleçam nos materiais e nas aulas de
literatura solicitações do tipo analítico, uma mediação de leitura que reconheça o leitor como
sujeito mostra-se ainda mais necessária no contexto de inserção de repertórios multiculturais,
sobretudo por figurar como uma oportunidade privilegiada de exposição e de discussão de
ideias preconceituosas, estereotipadas e/ou cristalizadas que possam envolver o olhar dos
estudantes diante das culturas representadas por/nessas produções textuais. Recuperando,
pois, o diálogo firmado entre as teorias do sujeito leitor na esfera didática e os pressupostos
das teorias da recepção, é correto associar a nossa categoria de solicitações analíticas ao
movimento de interpretação de um texto, que “supõe sempre uma dialética entre a estratégia
do autor e a resposta do Leitor Modelo”77 (ECO, 1993, p. 86), e as solicitações cursivas a
atividades abertas ao uso/utilização livre do texto, “tomado como estímulo imaginativo” (p.
85). Eis a nossa justificação para a sua inclusão no quadro da microestrutura dos livros
didáticos.

77
Tradução minha do original em espanhol: “supone siempre una dialéctica entre la estrategia del autor y la
respuesta del Lector Modelo”.
137

Uma vez apresentados, portanto, os pormenores dos quadros analíticos dos níveis
macro e micro das coleções didáticas, disponibilizamos uma síntese de todas as categorias que
embasam a nossa investigação:

Quadro 4. Categorias de análise da Micro e da Macroestrutura dos livros didáticos (adapt. de


DIONÍSIO [2000]).

***

Antes de encerrarmos a apresentação do nosso método de análise, é necessário frisar


a relação a ser estabelecida entre a análise das coleções do PNLD 2015 e os pressupostos das
leis 10.639/03 e 11.645/08, os quais ganham especial importância no campo dos objetivos das
coleções (macroestrutura), independentemente de quais sejam as suas orientações
138

pedagógicas (a saber, para capacidades/conhecimentos técnicos e/ou para atitudes), e no


campo dos enquadradores discursivos (microestrutura), com destaque aos enquadradores do
tipo extratextuais e intertextuais.
De acordo com o texto das leis e com os subsequentes documentos regulatórios
assinados pelo MEC, espera-se que a implementação desses conteúdos contribua para o
reconhecimento da “importância dos africanos e afro-brasileiros no processo de formação
nacional” (BRASIL-MEC/SECADI, 2013, p. 10), visto que a discriminação dos negros no
Brasil passa pela “desvalorização da cultura de matriz africana” (CNE/CP nº 3/2004 apud
BRASIL-MEC/SECADI, 2013, p. 82). Apesar de todos os documentos norteadores serem
anteriores à alteração feita pela lei 11.645/0878, esclarece-se no Plano Nacional de
Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-
Raciais e para ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana (2013) que “indígenas
e negros convivem com problemas de mesma natureza, embora em diferentes proporções”
(BRASIL-MEC/SECADI, 2013, p. 10), razão pela qual é possível aplicar também à questão
indígena parte dos direcionamentos postulados para a lei 10.639/03.
Assim, ao encontro de nossas categorias, reitera-se, em diversas passagens das
publicações do MEC, a necessidade de divulgação e de produção de “conhecimentos”,
“atitudes” e “competências” que “eduquem cidadãos orgulhosos de seu pertencimento étnico-
racial” (BRASIL-MEC/SECADI, 2013, p. 16). Nesse sentido, conforme mencionamos
anteriormente, procuramos observar, no que concerne aos objetivos das coleções, se e em que
os livros do PNLD 2015 visam a competências e conhecimentos técnicos que permitam
revisar criticamente a hegemonia dos discursos colonizadores, bem como a atitudes em prol
de uma formação cidadã dos estudantes, alinhadas ao respeito e ao reconhecimento da
diversidade cultural. Tendo em vista, igualmente, o protagonismo da área de História nas
orientações dadas pelas leis e a insistente premissa de se objetivar o “cuidado para que se dê
um sentido construtivo à participação dos diferentes grupos sociais, étnico-raciais na

78
No fechamento da seção anterior, ao discutirmos as particularidades das participações dos movimentos negro
e indígena na conquista das duas leis, levantamos algumas hipóteses acerca da ausência de documentos
regulatórios e de diretrizes para a implantação da lei 11.645/2008. Observamos que o ativismo do movimento
negro foi mais contundente que o do indígena no que tange à demanda por modificações no sistema regular de
ensino, de modo que há mais clareza sobre o que a militância negra espera da lei 10.639/03, em termos de
currículo e de propostas pedagógicas, e menos sobre os conteúdos que podem vir a embasar a implantação da lei
de 2008. Historicamente, no campo da educação, os povos originários dedicaram-se quase que exclusivamente à
formalização da educação escolar indígena e menos aos problemas relativos às escolas convencionais. Esse
aspecto pode explicar, parcialmente, a discrepância no número de documentos legais que regem as duas leis.
139

construção da nação brasileira, aos elos culturais e históricos entre diferentes grupos étnico-
raciais, às alianças sociais” (CNE/CP nº 3/2004 apud BRASIL-MEC/SECADI, 2013, p. 88),
levantamos a hipótese de que a presença de enquadradores discursivos do tipo extratextual,
que forneçam informações acerca do contexto sócio-histórico dessas literaturas, e do tipo
intertextual, que relacionem as produções textuais de Brasil e África e/ou literatura nacional
canônica e literaturas indígenas, possa ser especialmente produtiva para o cumprimento das
diretrizes legais. Igualmente, como vimos em relação ao eventual papel a ser exercido por
enquadradores intertextuais, nas fichas avaliativas do PNLD 2015 há um indicativo de que
essa aproximação mostra-se didaticamente desejável, à medida que se pergunta: “[As
atividades] abordam a literatura brasileira em diálogo com outras literaturas de língua
portuguesa?” (BRASIL-MEC/SEB, 2014b, p. 96).
A nosso ver, esse destaque ao potencial pedagógico de operações de leitura de cunho
inter e extratextual aproxima-se dos fundamentos do “método comparativo” e da “abordagem
prospectiva” que Vima Martin (2016) tem postulado para o ensino das literaturas africanas e
afro-brasileiras no Ensino Médio, “na esteira do proposto por Benjamin Abdala Jr.”:

Segundo o pesquisador, o método comparativo, baseado na leitura


contrastiva de textos literários escritos em português, favorece a reflexão
sobre a identidade nacional, cultural e literária dos países de língua oficial
portuguesa – Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique,
Portugal e São Tomé e Príncipe. Sob a óptica comparatista, compreender
sistemas (ou subsistemas) culturais e literários singulares, que compartilham
de um mesmo sistema linguístico, adquire maior consistência, uma vez que
são evidenciados espaços literários de intercâmbio e tensão entre valores
socioculturais heterogêneos.
Já a abordagem prospectiva mostra-se importante para o exercício de uma
cidadania ativa. Sem desconsiderar o sentido histórico do texto, sua função e
valor no momento específico em que foi escrito, importa também sublinhar
suas conexões com as demandas da vida contemporânea: nesse sentido, é
fundamental que professores e alunos possam atualizar os sentidos de
diferentes produções literárias e responder a seguinte questão: afinal, o que
esse(s) texto(s) me diz(em) hoje?
(...) a ideia é efetivar a inclusão sistemática de autores e textos das literaturas
africanas e afro-brasileira, preferencialmente em diálogo com o conjunto de
autores e textos – brasileiros e portugueses – já canônicos. Com isso,
objetiva-se enfatizar a existência de diferentes perspectivas construídas sobre
a realidade, expandindo caminhos para uma prática pedagógica
simultaneamente crítica e propositiva, calcada na percepção plural e
dinâmica da história da literatura. (MARTIN, 2016, p. 127)

Em nossa leitura, tais sugestões didático-metodológicas afirmam-se como uma


alternativa aos limitados movimentos de adição e de exclusão de conteúdos, pois, como já
140

defendemos em seções anteriores, descolonizar o ensino não implica o apagamento da matriz


europeia nem a mera soma de produções de outras matrizes culturais. Trata-se, ao contrário,
de contestar a existência de uma pretensa hierarquia cultural, a qual pode ser quebrada,
precisamente, por meio de um tratamento horizontalizado/dialógico dessas literaturas, bem
como de um exercício interpretativo interessado em “atualizar os sentidos de diferentes
produções literárias”, tal como esclarece Martin.
Também elegendo o comparativismo como uma estratégia positiva para se consolidar
uma reformulação metodológica que responda à pluralidade cultural, Bispo & Bezerra Júnior
(2016) integram a suas propostas didático-pedagógicas a ideia de que abordagens dessa
natureza possam favorecer a emergência de práticas que extrapolem o uso do livro didático e
que, consequentemente, questionem o lugar a ser ocupado pelas escolas literárias no processo
de condução das leituras dos estudantes:

Para tanto, a abordagem de ensino aqui proposta consiste na eleição de


temas amplos, selecionados de acordo com a necessidade e/ou interesse da
nossa realidade local. Temas estes que promovam diálogos e
comparativismos entre autores de tempos ou espaços diferentes se preciso
for, e que coloquem autores afro-brasileiros, indígenas ou africanos lado a
lado com escritores antológicos. Dentro deste exercício comparativista,
esperamos que possibilidades múltiplas surjam, abrindo espaço para o
ensino, por exemplo, de termos ou conceitos literários a partir da prática da
leitura e discussão coletivas (LAJOLO, 2001). Com isso, não se pretende
abolir menções a escolas literárias quando necessárias, mas dar maior ênfase
ao sujeito com suas peculiaridades formais, sobretudo, ideológicas dentro de
um tema específico. Assim sendo, a apresentação das escolas literárias
poderá ocorrer secundariamente a partir de contrastes temático-autorais,
cedendo espaço para o aprofundamento de habilidades de leitura crítica,
capazes de promover letramento e conscientização crítica do aluno por meio
de debates em sala de aula, conforme sugerem as OCNs. (BISPO &
BEZERRA JR., p. 95, 2016)

Com base nessas reflexões sobre o potencial pedagógico de leituras comparadas, e


naquilo que os textos regulatórios da lei 10.639/03 afirmam sobre a necessidade de aproximar
diferentes culturas, assumimos como ponto especial de atenção qualquer estratégia editorial,
nas coleções do PNLD, que vise articular autores e obras canônicos àqueles de origem
africana, afro-brasileira e indígena. Entre as nossas categorias de análise, duas parecem ser
mais propícias a classificar/evidenciar esse movimento: no nível macro¸ a localização
articulada, isto é, a distribuição das “novas” literaturas em diferentes capítulos das coleções;
no micro, o enquadrador discursivo intertextual, por propor leituras que aproximem o
repertório escolar clássico do repertório imposto pelas leis de 2003 e de 2008.
141

Nosso último esclarecimento sobre os fundamentos e os parâmetros de análise por


nós retirados dos documentos oficiais diz respeito a algumas de suas listagens de conteúdo.
Destacamos entre elas a eventual menção a importantes nomes da Cultura e da História afro-
brasileira, referências às quais nos atentaremos no decorrer da leitura dos livros didáticos. A
tabela a seguir compila todos os nomes de referência localizados nos textos orientadores da
lei 10.639/03:

ESFERA NOMES DE REFERÊNCIA


Luís Gama (1830-1882), Cruz e Sousa (1861-1898), Solano Trindade
(1908-1974), Beatriz Nascimento (1942-1995), Cuti (1951),
Aleijadinho (1730-1814), José Correia Leite (1900-1989), Edison
Carneiro (1912-1972), Henrique Antunes da Cunha (1908-2006),
Emanoel Araujo (1960), Inaicyra Falcão dos Santos (1958), Alzira
Rufino (1949).
(Fonte: CNE/CP nº 3/2004 apud BRASIL-MEC/SEPPIR, 2004, pp.
22-23).

Literária, Carolina de Jesus (1914-1977), Eliza Lucinda (1958), Esmeralda


Jornalística Ribeiro (1958), Conceição Evaristo (1946), Heloísa Pires, Geni
e Guimarães (1947)79.
Artística (Fonte: BRASIL-MEC/SECAD, 2006, p. 171).

“Ashell, Ashell, pra todo mundo, Ashell” - Elisa Lucinda.


“Mahin Amanhã” - Miriam Alves. Cadernos Negros - Melhores
Poemas, 1998.
“Quem sou eu?” - Luiz Gama
“Salve Mulher Negra”, Oliveira Silveira. Cadernos Negros, vol. 03.
Org. Quilombhoje, São Paulo: Editora dos Autores, 1980.
“Serra da Barriga” - Jorge de Lima
“Tem gente com fome” – Solano Trindade.80 (Fonte: BRASIL-
MEC/SECAD, 2006, p. 189).
Zumbi (1655-1695), Luiza Mahin (início séc. XIX), Padre Maurício,
Histórica João Cândido (1880-1969), André Rebouças (1838-1898), Teodoro
e Sampaio (1855-1937), Antonieta de Barros (1901-1952), Lélia
Política Gonzáles (1935-1994), Milton Santos (1926-2001), Guerreiro Ramos
142

(1915-1982), Clóvis Moura (1925-2003), Abdias do Nascimento


(1914-2011), Tereza Santos (1930-2012), Amilcar Cabral (1924-1973).
(Fonte: BRASIL-MEC/SECAD, 2006, pp. 245-246).
Tabela 4. Referências culturais e literárias presentes nos documentos oficiais.

Ao distinguirmos tais figuras históricas por tipo de “esfera de atuação” não


pretendemos estabelecer uma separação estanque que negue o trânsito, de uma mesma
personagem, pela literatura e pela política, por exemplo. Nosso intuito com essas duas colunas
é dar destaque aos nomes que parecem dialogar mais facilmente com o ensino de literatura, a
saber, os inscritos na esfera “literária, jornalística e artística”. Com base neles, é possível
esboçar, inclusive, algumas inferências quanto aos caminhos desejáveis de implementação da
lei 10.639/03 nos livros didáticos: nomes como os de José Correia Leite e Henrique Antunes
da Cunha, de um lado, e os de Cuti e Oliveira Silveira, de outro, validam tanto a Imprensa
Negra quanto o grupo literário Quilombhoje como fontes privilegiadas para o levantamento
de produções afro-brasileiras. A menção a Abdias Nascimento e a Solano Trindade, por sua
vez, faz-nos ter igual atenção à forma pela qual as coleções abordam o gênero dramático no
Brasil, visto que ambos lideraram grupos teatrais negros no país, respectivamente o Teatro
Experimental Negro (TEN; 1944) e Teatro Popular Brasileiro (TPB; 1950). Nesse sentido,
concluímos ser pertinente verificar se as coleções do PNLD 2015 recorrem ou não a essas
referências.
Por fim, na ausência de diretrizes governamentais específicas para o tratamento da
questão indígena, delineamos alguns critérios mínimos de pesquisa para a verificação dos
impactos da lei 11.645/08 nas coleções do PNLD 2015. Além de investigar se há, nos livros
didáticos, um movimento de adição de produções literárias de autoria indígena, priorizamos a
análise de capítulos que, a nosso ver, possam dar margem a um movimento de revisão da
temática indígena no contexto de ensino-aprendizagem de literatura, sendo eles, por ora, os
capítulos concernentes às escolas literárias conhecidas por expor e/ou tematizar a figura e o
universo indígena: “Quinhentismo” (séc. XVI), que reúne manifestações literárias

79
Esse segundo bloco de indicações de escritores, retirado do segundo documento oficial analisado, também
rememora Cuti e a Solano Trindade, juntamente à observação de que todos os autores citados podem vir a
integrar saraus de poesia que contem com textos de “Cecília Meireles, Vinícius de Morais, Carlos Drumond de
Andrade, Manoel Bandeira, entre tantos poetas e escritores brasileiros” (MEC/SECAD, 2006, p. 171). Vale
destacar que tais recomendações são feitas à Educação Infantil, mas que, apesar disso, as julgamos igualmente
ou até mesmo mais pertinentes ao Ensino Médio.
80
Indicações feitas ao Ensino Fundamental, mas consideradas, por nós, adequadas ao Ensino Médio.
143

portuguesas da época do Descobrimento (“literatura informativa” e “literatura jesuítica”),


veemente marcadas pelo discurso e pelo olhar do colonizador; e “Romantismo no Brasil”
(séc. XIX), que agrega produções poéticas relacionadas à poesia e aos romances indianistas,
bem como aos discursos abolicionistas condoreiros, ambos caracterizados pelo “falar sobre” o
índio, pelo “falar sobre” o negro. Trata-se de uma escolha metodológica que vai ao encontro
da recomendação de se “analisar mais detidamente a obra de autores clássicos que abordam a
questão racial” (BRASIL-MEC/SECAD, 2006, p. 194) no Ensino Médio, uma diretriz da lei
10.639/03 que corrobora a importância de releitura do cânone literário. Por essa razão,
eventuais movimentos de revisão de conteúdos são observados no contexto das três temáticas:
indígena, africana e afro-brasileira.
É, pois, na equação de categorias analíticas e de recortes temáticos/conteudísticos
que se embasa a nossa metodologia de pesquisa. Tem-se, então, um ponto de partida, que, à
luz dos pressupostos da Linguística Aplicada, pode enveredar por diferentes caminhos, de
modo a se atentar e se adequar às especificidades e às necessidades impostas pelo nosso
corpus.
144

CAPÍTULO 4. Literaturas indígenas brasileiras, afro-brasileira e africanas


nas coleções do PNLD 2015

4.1. Análise das coleções

Ao encontro do que assinalamos em nossa Introdução, este trabalho reconhece os


livros didáticos não apenas como transmissores de conhecimentos acadêmicos, mas como
efetivos modificadores e construtores de saberes escolares. Nesse sentido, não julgamos
necessário expor aqui uma revisão teórica acerca dos conceitos de “literaturas africanas”,
“literatura negra/afro-brasileira” ou de “literatura indígena”, ainda mais ao se ter em vista a
existência de trabalhos que exploram, de forma crítica e aprofundada, essas questões81.
Interessa-nos enfocar, precisamente, os significados e as perspectivas que as próprias coleções
conferem a esse repertório, isto é, explorar o resultado da transposição didática de tais
discussões acadêmicas, e não os discursos acadêmicos em si. Eventuais conceituações
teóricas desse viés são articuladas às nossas reflexões conforme se façam necessárias às
análises.
Em síntese, o presente capítulo expõe os resultados da análise do nosso corpus de
pesquisa, tendo sempre em vista cumprir com o objetivo geral de verificar se, em que medida
e de que modo a aplicação das leis 10.639/03 e 11.645/08 corrobora a ideia de descolonização
do ensino de literatura. Em diálogo com os focos e métodos analíticos anteriormente
detalhados, a apresentação da análise de cada uma das coleções do PNLD 2015 divide-se em
“Macroestrutura da Coleção” e “Microestrutura da Coleção”, cada qual correspondente aos
focos de investigação sintetizados no Quadro 4 (subseção 3.3.2., página 127) 
simplificadamente: a primeira é focada no estudo do Manual do Professor, enquanto que a
segunda volta-se majoritariamente à análise do Caderno do Aluno. Ademais, visando atender
também aos recortes temáticos que mencionamos ao final subseção 3.2.2., a análise do nível
micro conta com uma subdivisão específica, constituída dos seguintes recortes:
 “Revisitando o cânone: Quinhentismo e Romantismo (Indianismo e Condoreirismo)”;
 “Reestruturando o cânone I: literaturas africanas e literatura negra/afro-brasileira”;
 “Reestruturando o cânone II: literaturas indígenas”.

81
Trabalhos sobre “literatura negra” e/ou “afro-brasileira”: DUARTE (2015), DA SILVA (2011) e BERND
(1988); sobre “literaturas africanas”: LEITE (2013) e ABDALA JUNIOR (2007); sobre “literatura indígena”:
THIÉL (2012; 2013) e GRAÚNA (2003); literaturas indígenas brasileiras, afro-brasileira e africanas e práticas
pedagógicas: DUARTE (2014), AMÂNCIO et al (2008), ABDALA JUNIOR (2003), DA SILVA & GRUPIONI
(1995); outros: RISERIO (1993).
145

No primeiro caso, apresentamos uma revisão crítica dos capítulos dedicados ao


Quinhentismo e ao Romantismo; no segundo, abordamos, articuladamente, todas as
ocorrências relacionadas às literaturas africanas e à literatura negra/afro-brasileira,
independentemente dos capítulos em que elas compareçam; em “Reestruturando o cânone II”,
o mesmo método é empregado no que tange às literaturas indígenas. Finalmente, inserimos,
no encerramento de cada análise, uma tabela precedida pelo título “A título de retomada e de
síntese: coleção X e o repertório das leis 10.639/03 e 11.645/08 (produções de autoria
indígena, negra/afrodescendente e/ou africana, para além do cânone escolar)”, na qual
listamos as produções artístico-literárias utilizadas pela coleção para introduzir as literaturas
indígenas, afro-brasileira e africanas — vale esclarecer que optamos por elencar apenas os
casos em que o cumprimento das leis estivesse associado a excertos/fragmentos artístico-
literários, de modo que desconsideramos, no contexto de elaboração das tabelas, a mera
menção a um autor ou a uma obra.
Especificamente em relação à compilação dos repertórios literários de cada coleção,
reiteramos que o nosso levantamento atenta-se à introdução, nos livros didáticos, de autores
africanos, indígenas e afrodescendentes que usualmente são alijados do cânone escolar — por
isso, nomes já clássicos da literatura brasileira, como o de Cruz e Sousa ou de Lima Barreto,
não integram nosso foco analítico. Uma vez localizados esses escritores nas coleções, dois
aspectos nos parecem particularmente relevantes: (i) averiguar se o autor estudado pelo
material assume-se, de fato, como um autor “negro”, “africano” e/ou “indígena”, por meio de
consulta a suas declarações públicas — nota-se, por exemplo, que a identidade literária de
escritores nascidos em países africanos, mas que têm ascendência europeia e/ou que se
mudaram muito jovens para Portugal, costuma ser variável, pois se revela por vezes atrelada à
Europa, por vezes atrelada à África; e (ii) conferir se as chaves de leitura escolhida pelo livro
didático tocam, também, questões identitárias (raciais e/ou étnicas) e/ou históricas, haja vista
os objetivos das leis 10.639/03 e 11.645/08 englobarem o combate a estereótipos, a
preconceitos, bem como uma aproximação crítica e positiva à História e à Cultura desses
grupos. Isso significa, em nossa percepção, que um uso desses textos apenas como pretexto
para exercícios linguísticos descolados de seus contextos e/ou o desenvolvimento de análises
literárias presas à superficialidade das narrativas, além de não favorecerem a formação de
leitores críticos, em geral, vão contra quaisquer pressupostos de uma educação para a
diversidade cultural, em particular. De forma simplificada, o levantamento desses conteúdos
146

nos leva a perguntar: quem os livros de Português escolhem para o cumprimento das leis e
como suas produções artístico-literárias são apresentadas. Para avaliar o como, buscamos dar
especial destaque a dados, a aspectos e a propostas didático-pedagógicas do PNLD 2015 que
se mostrem alinhados e/ou contrários à consolidação de uma educação literária de viés pós-
colonial, tal qual debatida nas seções iniciais deste trabalho.
A escolha de apresentar as análises isoladamente, uma a uma, é justificada pela
necessidade de manter um diálogo entre os níveis macro e micro das coleções, isto é, de
estabelecer relações entre a composição do projeto editorial e do Manual do Professor e as
respectivas chaves e atividades de leitura sugeridas aos alunos. Contudo, na subseção 4.2.,
que encerra este capítulo, chamamos a atenção para as principais similaridades e
discrepâncias identificadas entre as coleções analisadas. Outrossim, a despeito de não se tratar
de uma análise de viés longitudinal82, consideramos pertinente ao entendimento daquilo que
repetidas vezes chamamos de “cânone literário escolar” ou “modelo clássico de ensino”
recorrer, breve e pontualmente, a comparações com livros didáticos mais antigos, que
permitam atestar e elucidar o teor das mudanças e das inovações desencadeadas pelas leis. Em
virtude disso, algumas passagens de Português Linguagens (2013), de William Roberto
Cereja e Thereza Cochar Magalhães, são comparadas a trechos de suas edições anteriores, a
saber, a edição de 1994 e de 2003. Essa escolha se deu com base no lugar historicamente
ocupado por esses autores no mercado editorial de livro didático. Suas obras fazem-se
presentes em grande parte das listas até hoje aprovadas pelo PNLD, tanto no nível
Fundamental quanto no nível Médio. Enfatizamos que, com essas leituras, objetivamos
apenas assinalar alguns contrastes mais evidentes dos efeitos das leis na produção de
materiais escolares, sem nos desviar do nosso corpus, o qual, por sua vez, corresponde a obras
publicadas entre os anos de 2013 e 2014, ou seja, a um distanciamento temporal de dez anos
da data de aprovação da lei 10.639/2003.

82
Traçar paralelos entre diferentes edições de um mesmo livro didático parece ser, a nosso ver, uma produtiva
possibilidade de pesquisa. Nesse sentido, por fugir ao escopo do nosso trabalho, registramos aqui tal lacuna
analítica, a fim de incentivar outros investigadores a abordar, de forma sistemática, a questão da descolonização
dos livros didáticos a partir de um estudo longitudinal.
147

4.1.1. Português Linguagens (Saraiva) – 1ª coleção do PNLD 2015 em


número de distribuições

CEREJA, William Roberto; MAGALHÃES, Thereza Anália Cochar. Português


Linguagens (Livro do Professor), 9ª ed., Volumes 1, 2 e 3, São Paulo: Saraiva, 2013.

SIGLA: PL01

De acordo com o Guia do PNLD 2015, a “articulação promovida pela leitura” e a


“contextualização da produção literária” revelam-se pontos fortes da coleção PL01,
contrariamente ao que se observa em relação ao trabalho com conhecimentos linguísticos,
destacado no Guia como um ponto fraco pelo fato de haver poucas oportunidades de reflexão
(BRASIL-MEC/SEB, 2014b, p. 55). De fato, muitos aspectos por nós observados atestam “a
ênfase” dada ao ensino de teoria e história literária mencionada pelo documento: do total de
121 capítulos que compõem seus três volumes, 40% (ou 49 capítulos) voltam-se à literatura,
sendo o restante distribuído entre os eixos de “produção de texto”, “língua: uso e reflexão” e
“interpretação de texto”; o critério organizacional da coleção funda-se na literatura, haja vista
os títulos de suas unidades temáticas (que agrupam capítulos dos diferentes eixos) darem
destaque aos nomes das escolas ou dos movimentos literários a serem estudados, seguindo
uma ordem cronológica; e, por fim, também a formação dos autores da coleção pode ser
considerada, talvez, à luz dessa predominância, pois, apesar de William Cereja ser Doutor em
Linguística Aplicada e Análise do Discurso (PUC-SP), tanto ele quanto Thereza Cochar são
mestres em Teoria Literária (USP) e Estudos Literários (UNESP), respectivamente. De
acordo com as biografias presentes nas coleções, Cereja atua como professor da rede
particular de ensino, em São Paulo-SP, e Cochar na rede pública da cidade de Araraquara,
interior de SP.

MACROESTRUTURA DA COLEÇÃO PNL01

O Manual do Professor do PL01 é composto por respostas justapostas às atividades e


por um apêndice com orientações gerais e indicações complementares. Logo em seu texto
introdutório vemos algumas respostas às leis 10.639/2003 e 11.645/208; nele, anuncia-se que
a atual edição da coleção comporta uma seção intitulada “literatura comparada” que visa
“aproximar a literatura brasileira de outras literaturas com as quais ela historicamente vem
148

dialogando, como as literaturas europeias e as africanas de língua portuguesa” (CEREJA &


MAGALHÃES, 2013 [Vol. 1 – Apêndice: “Manual do Professor”], p. 405). Esclarece-se
também que se mantém, em relação à(s) edição(ões) anterior(es), o capítulo “Panorama das
literaturas africanas de língua portuguesa”, no volume 3. Desse modo, verificamos que em
termos de localização e distribuição dos conteúdos postulados pelas leis o material adota
movimentos de viés tanto articulado, favorecido pela seção de “literatura comparada”, quanto
restrito, no caso da seção (de oito páginas) dedicada exclusivamente às produções de matriz
africana.
No que tange a seu “projeto pedagógico”, interessa-nos o destaque dado por PL01 ao
comprometimento da coleção com a “educação para a cidadania”, pelo fato de se evidenciar o
interesse da coleção por objetivos voltados à promoção de atitudes cidadãs, e não apenas por
objetivos técnicos. Em síntese, esclarece-se que “a obra se volta para a formação de um
indivíduo autônomo e solidário [...] que tenha uma perspectiva multicultural da vida em
sociedade, com todas as suas diversidades (étnicas, sociais, culturais, religiosas e
linguísticas); que cultive sentimentos de alteridade e solidariedade e tenha respeito aos
direitos humanos [...]” (CEREJA & MAGALHÃES, 2013 [Vol. 1 – Apêndice: “Manual do
Professor”], p. 407). Cabe registrar, neste caso, que no livro didático homônimo publicado
pelos mesmos autores em 1994 (CEREJA & MAGALHÃES, 1994), e destinado, à época, ao
2º grau, não havia nenhuma orientação afim. Apresentando um Manual do Professor bem
mais sucinto que o da edição de 2013, a coleção Português Linguagens de meados de 1990
restringia-se à explanação mais descritiva de seu projeto editorial e à reiteração da leitura de
autores e de obras canônicos representativos de cada movimento ou época (CEREJA &
MAGALHÃES, 1994 [Vol. 1 – Apêndice: “Manual do Professor”], p. 3). A questão da
“diversidade”, nesse contexto, surge atrelada à ideia de “diversidade de estratégias” (como
ouvir músicas, assistir a filmes, entre outras), que, segundo a coleção, estaria alinhada às
“novas propostas pedagógicas” que incriminavam “a ‘educação bancária’, na qual o aluno se
coloca de forma passiva” e que defendiam “a necessidade de o estudante assumir um papel
ativo no processo ensino/aprendizagem” (ibid., p. 5). Trata-se de um contraste (envolvendo a
edição de 1994 e a de 2013 de Português Linguagens) que evidencia o impacto das discussões
acadêmicas e das políticas públicas nos currículos, haja vista os sentidos de “diversidade”
presentes em cada edição refletirem o teor dos debates e das ações que ocorriam fora das
escolas.
149

Voltando ao Manual do Professor da edição aprovada pelo PNLD 2015, PL01


apresenta, então, uma relação de temas vinculados a questões de cidadania83, a serem
encontrados na coleção, com a indicação dos volumes e das páginas em que se situam. Entre
os temas próximos ao recorte das leis aqui estudadas, chamamos a atenção para o de
“minorias étnicas”, subdividido em “negros” e “índios”, e o de “minorias: cotas”, ainda que o
material não faça menção à legislação ao apresentar essas discussões. Para trabalhar com os
dois últimos recortes, “índios” e “cotas”, o docente depara-se com a sugestão de textos e
atividades pertencentes ao eixo da escrita, presentes, respectivamente, no volume 2 e no
volume 3 da coleção. Na primeira proposta, direcionada ao trabalho com o gênero “crítica”,
tem-se como texto-fonte uma crítica ao filme Xingu, de Cao Hamburger, escrita por Luiz
Zanim Oricchio84; na segunda, dois artigos de opinião, sendo um contrário e o outro favorável
às cotas raciais85, ambos situados no trabalho com o gênero “debate regrado público” e com
estratégias de contra-argumentação. No entanto, contrariamente ao que sugere o Manual do
Professor ao aproximar o projeto pedagógico do livro a objetivos embasados em atitudes,
verificamos em sua prática um uso de tais temas como pretexto para se discutir aspectos
textuais dos gêneros em foco, havendo pouco espaço a uma leitura crítica mais ampla sobre os
povos indígenas, por exemplo. Embora algumas passagens da crítica ao filme Xingu (“a
sobrevivência dos índios no interior de um país que já começava a fechar-lhes o cerco”
[CEREJA & MAGALHÃES, 2013 [Vol. 2], p. 333]; “[os índios] personagens maiores deste
filme amoroso, mas nada piegas e nem cultor do mito do bom selvagem” [ibid., p. 334]) deem
margem a questionamentos relacionados a aspectos culturais, geográficos e políticos
relevantes, o material restringe-se, de fato, a enquadradores textuais e a solicitações
analíticas, que parecem dialogar mais com objetivos técnicos, e não com a promoção de
atitudes. Dos onze exercícios de leitura ofertados aos alunos, todos se inscrevem nessas
categorias, predominando operações de identificação e de classificação. Destacamos alguns
exemplos:

83
Temas como “meio ambiente”, “ética e corrupção”, “consumismo”, “valorização do idoso”, entre outros.
84
Texto “Filme propõe um olhar amoroso mas não idealizado” (O Estado de S. Paulo, 5/4/2012).
85
Textos: “Cota valida teses racistas”, de José Roberto Ferreira Militão (foi secretário-geral do Conselho da
Comunidade Negra no governo do Estado de São Paulo e atuou na Comissão de Assuntos Antidiscriminatórios
da OAB/SP) e “Cotas enriquecem universidades”, de Hédio Silva Jr. (foi secretário do governo do Estado de São
Paulo e, na ocasião, diretor acadêmico da Faculdade Zumbi dos Palmares e do Centro de Estudos das Relações
de Trabalho e Desigualdades).
150

1. A crítica é um gênero textual que tem por finalidade orientar o leitor de


um jornal ou revista, estimulando-o ou desestimulando-o a consumir um
objeto cultural [...]. Qual é o objeto cultural em exame na crítica lida?
[Resposta: o filme Xingu.]
2. A crítica tem uma estrutura relativamente livre, que varia muito,
dependendo do autor, do público e do veículo em que é publicada. Apesar
disso, apresenta alguns elementos essenciais, como a descrição da obra em
exame, sua situação no conjunto das obras do autor, diretor ou músico, uma
opinião sobre a qualidade da obra, etc. Em relação à crítica lida, responda:
a) Em que parágrafo o crítico explicita o tema do filme? [Resposta: no 1º
parágrafo.]
b) O crítico avalia como amorosa, mas não idealizada, a visão do diretor em
relação ao tema. Cite duas passagens em que o crítico se refere a essa visão
não idealizada das personagens. [Resposta: “É bom também que os Villas-
Boas não sejam apresentados como seres perfeitos”; “E há os índios... mas
nada piegas e nem cultor do mito do bom selvagem”.]
[...]
4. Observe a linguagem utilizada na crítica em estudo.
a) Que variedade linguística foi empregada? [Resposta: Uma variedade de
acordo com a norma-padrão.]
b) Em que tempo estão as formas verbais, predominantemente? [Resposta:
No presente do indicativo.]
[...]
(CEREJA & MAGALHÃES, 2013 [Vol. 2], p. 334).

Também na leitura dos textos opinativos sobre as cotas raciais não se propõe que o
professor conduza os estudantes a reflexões extratextuais ou interdisciplinares acerca das
cotas. Por outro lado, ao observamos os exemplos a seguir, é possível notar que o gênero
debate, somado ao caráter opinativo dos textos-fonte e ao objetivo de exercitar a estratégia/a
produção de contra-argumentação, atribui um tom mais crítico à análise textual, justamente
por demandar um olhar, por vezes, mais aprofundado às nuances dos argumentos presentes
em cada texto:

1. Para tratar do assunto, os dois artigos focam a constitucionalidade do


sistema de cotas raciais para ingresso nas universidades brasileiras.
a) De acordo com o primeiro texto, essa medida tem caráter racista. Em que
essa opinião é fundamentada? [Resposta: No argumento de que a medida
valida a ideia de diversidade racial e consiste em uma prática de
classificação racial.]
b) O segundo texto fundamenta sua argumentação favorável ao sistema de
cotas raciais no conceito de “política de ação afirmativa”. De acordo com o
autor, que situações são ilustrativas da presença desse tipo de política na
legislação brasileira? [Resposta: As situações, a partir de 1931, em que
151

foram criadas as leis em defesa de uma parcela desprotegida da população:


o trabalhador, o portador de deficiência, a mulher na política, o
consumidor, o filho de agricultor, etc.]
[...]
2. Ao desenvolver seus argumentos, o autor do primeiro texto cita dois
filósofos e um historiador brasileiro86.
a) Qual filósofo confirma o que o autor pensa? Qual contraria? [Resposta:
Immanuel Kant confirma: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais
em dignidade e em direitos”. Aristóteles contraria: “Se os homens não são
iguais, não devem receber coisas iguais”.]
b) Na visão do historiador, por que não há diversidade racial em nosso país?
[Resposta: Pelo fato de que o brasileiro típico é um ser miscigenado, ou
seja, provém da mistura de genes de três povos – o nativo, o europeu e o
africano.]
3. Os dois autores fazem referência à Constituição de 1988.
a) Com que objetivo o autor desfavorável às cotas faz referência a esse
documento? [Resposta: O de demonstrar que as cotas raciais ferem o
princípio da igualdade de direitos entre os brasileiros anunciado na
Constituição.]
b) E o autor do segundo texto? [Resposta: O de demonstrar que a adoção de
cotas, vista como uma forma de beneficiar parcelas da população
consideradas mais frágeis, já existia nessa Constituição, em favor de
portadores de deficiência, no setor público e privado, e mulheres nas
candidaturas partidárias. A classificação racial, no ponto de vista desse
autor, agora é invocada para a fruição de direitos e não para a sua
violação.]
[...]
6. Nos textos argumentativos, é comum a utilização de diferentes tipos de
argumentos para fundamentar o ponto de vista defendido: exemplos, citações
de pessoas ilustres, comparações, referências históricas, estatísticas, etc.
Desses tipos de argumento, quais são utilizados:
a) no texto de José Roberto Ferreira Militão? [Resposta: Citação de autores
ilustres, referências históricas e estatísticas.]
b) no texto de Hélvio Silva Jr.? [Resposta: Exemplos, referências históricas,
comparação.]
[...]
(CEREJA & MAGALHÃES, 2013 [Vol. 3], p. 254).

Ao todo, são lançadas treze perguntas aos estudantes. O gabarito do material limita-
se a fornecer ao professor a resposta esperada, não havendo nenhuma sugestão de
desdobramento da discussão. Somente nas atividades finais, item 7, dá-se espaço às
impressões pessoais dos alunos sobre a argumentação de cada autor:
86
Os dois filósofos são Aristóteles e Immanuel Kant; o historiador é Sérgio Buarque de Holanda.
152

7. Como se observa, os dois autores apresentaram argumentos que revelam


segurança e conhecimento do tema. Apesar disso, todos os argumentos são
passíveis de contra-argumentação.
a) Que contra-argumentos você apresentaria para rebater o ponto de vista de
José Roberto Ferreira Militão, desfavorável às cotas raciais?
b) E para rebater o ponto de vista de Hélvio Silva Jr. às cotas raciais?
c) Na sua opinião, qual dos articulistas foi mais persuasivo? (ibidem)

A atividade 7 corresponde ao único conjunto de solicitações cursivas sobre o tema


trabalhado, pois prevê certa liberdade aos estudantes para registrarem suas impressões, desde
que resguardado o diálogo com os textos. Porém, também aqui não são dadas maiores
instruções ao professor; a resposta indicada para as três perguntas é “resposta pessoal” 
adiante, após levantarmos mais ocorrências desse tipo, discutimos essa frequente carência de
detalhamento no gabarito de atividades que tratam das subjetividades dos alunos (seria esse
detalhamento desnecessário? Ou, ao contrário, há lugar para a mediação das “respostas
pessoais”?).
Se, por um lado, tanto a escolha dos textos quanto a mediação de suas leituras
parecem levar os estudantes a uma pertinente reflexão sobre a questão das cotas raciais, por
outro, a condução das atividades à produção de uma contra-argumentação impede, em certo
grau, a ampliação do debate, que permanece restrito às ideias trazidas pelos dois artigos. Não
por acaso, a pergunta de encerramento é “qual deles foi mais persuasivo?” no lugar de algo
como “com base na leitura dos textos, qual é a sua opinião sobre as cotas raciais?”. Nota-se,
assim, que, no trabalho com o gênero crítica e no trabalho com o gênero debate, o material
busca dar protagonismo às características e às estratégias textuais dos gêneros estudados, e
não ao assunto do texto-fonte (indígenas/cotas). Em outras palavras, verifica-se um
condicionamento a um tipo de ensino convencional de leitura, a interpretações fixadas. Isso
significa que, apesar de figurarem como uma oportunidade para o professor colocar em
prática “a educação para a cidadania” anunciada no projeto pedagógico da coleção, a
abordagem de tais temas nos capítulos de “produção de texto” fica à mercê das demandas
interpretativas exigidas por cada gênero textual. “Índios” e “cotas raciais” mostram-se, afinal,
como elementos secundários das atividades propostas, e não há, no gabarito fornecido ao
professor, nenhuma orientação de como desenvolvê-los para além do que requerem os
gêneros-chave dos capítulos.
153

A terceira e última indicação de tema vinculado à cidadania destacado pelo Manual


do Professor do PL01 é “minorias étnicas: negros”. Localizado no capítulo “O que é
literatura?”, do volume 1 da coleção, o exercício propõe uma análise do poema “Grito Negro”
(1964), do escritor moçambicano José Craveirinha (CEREJA & MAGALHÃES, 2013 [Vol.
1], p. 21)87. Diferentemente das anteriores, a atividade correspondente a esse texto encontra-se
no eixo literatura, motivo pelo qual a mediação de leitura do texto-fonte não tem por
finalidade, nesse contexto, a produção de um gênero textual, mas sim a discussão sobre o
“literário” e o “não literário”.
O poema de Craveirinha é utilizado para debater, especificamente, “o encontro do
individual com o social” na literatura. Antes de detalhar essa proposta, é válido ressaltar a
escolha editorial do PL01 de articular a literatura moçambicana à introdução e à conceituação
da visão de literatura adotada pela coleção, ao lado de textos de, por exemplo, Casimiro de
Abreu e Moacyr Scliar, como ilustra a atividade 6, que transcrevemos a seguir. Essa escolha
merece destaque por ser pouco frequente nos livros didáticos por nós analisados, que trazem
as literaturas africanas ou em uma seção exclusiva ou em diálogo com autores brasileiros, mas
nunca como pretexto ou fonte privilegiada para se ensinar algo a respeito da história e teoria
literária de modo geral.

6. Reúna-se com um colega e, com base na leitura do poema de Craveirinha


e do conto “A mulher sem medo”, de Moacyr Scliar, montem um quadro
com as principais características do texto literário. (CEREJA &
MAGALHÃES, 2013 [Vol. 1], p. 22).

Por se tratar de um capítulo introdutório e, por isso, bastante aberto à fruição estética,
é igualmente interessante o fato de quatro das sete perguntas que integram a mediação de
leitura do poema “Grito Negro” corresponderam a solicitações cursivas, ou seja, a indagações

87
Na edição de 2003 de Português Linguagens, aprovada pelo PNLEM, a subseção “O que é literatura?”
(CEREJA & MAGALHÃES, 2003, p. 31) contava apenas com textos do cânone escolar, assinados por Carlos
Drummond de Andrade (pp. 31-32), Fernando Pessoa (p. 33) e Vinícius de Morais (p. 33). Na reconfiguração
proposta pela edição de 2013, em que a subseção torna-se um capítulo, é possível afirmar que o poema de José
Craveirinha acaba por assumir um lugar de destaque, haja vista figurar como texto principal de uma das
atividades de leitura do capítulo. Ainda que Carlos Drummond de Andrade, Fernando Pessoa e Vinícius de
Morais deixem de compor o capítulo introdutório da edição do PNLD 2015, suas obras dão lugar a textos
literários de Moacyr Scliar (CEREJA & MAGALHÃES, 2013 [Vol. 1], p. 16), Casimiro de Abreu (p. 23) e
Antônio Cacaso (ibidem). Assim, o cânone escolar não é apagado em nome da inclusão de um escritor
moçambicano, é apenas atualizado. Nesse sentido, entendemos que tais mudanças mostram-se alinhadas com a
ideia de descolonização da educação literária e reforçam os efeitos da lei 10.639/08 nos livros didáticos.
154

atentas às possíveis leituras subjetivas dos alunos. Selecionamos alguns exemplos que
ilustram a coexistência de solicitações do tipo analítica e do tipo cursiva no referido capítulo:

1. O texto lido é um poema, um dos vários gêneros literários. Nos poemas, é


comum o eu lírico expor seus sentimentos e pensamentos.
a) Qual é o tema do poema lido? [Resposta: É a relação de exploração que
há entre o patrão e o eu lírico, supostamente seu escravo ou empregado]
b) O que predomina nesse poema: aspectos individuais ou sociais? [Resposta
pessoal. Espera-se que os alunos percebam que, além da relação social, a
mais evidente, há também a exposição dos sentimentos do eu lírico.]
2. Os poemas geralmente utilizam uma linguagem plurissignificativa, isto
é, uma linguagem figurada, em que as palavras apresentam mais de um
sentido. O eu lírico do poema lido, por exemplo, chama a si mesmo de
carvão. Que sentidos têm as palavras carvão e mina no contexto? [Resposta:
O carvão representa a força de trabalho do negro (“a força motriz”) e a
mina representa o próprio negro, ou seja, o lugar de onde o patrão extrai
sua riqueza. Logo, carvão e mina representam a exploração do homem pelo
homem, ou a exploração do homem negro pelo homem branco.]
[...]
4. O poema de Craveirinha, além de expressar os sentimentos e as ideias do
eu lírico, é também uma recriação da realidade. Por meio dessa recriação o
poeta denuncia as condições de vida a que eram submetidos os negros em
Moçambique antes do processo de independência. Na sua opinião, a
literatura pode contribuir para transformar a realidade concreta? Explique.
[Resposta pessoal. Espera-se que os alunos respondam que sim, pois,
denunciando os problemas da realidade, a literatura sensibiliza as pessoas,
preparando-as e estimulando-as para as mudanças sociais.]
5. O escritor e educador Rubem Alves afirma que o escritor “escreve para
produzir prazer”. Em sua opinião, a literatura proporciona prazer ao ser
humano, mesmo quando trata de problemas sociais, como ocorre no poema
de Craveirinha? Justifique sua resposta. [Resposta pessoal. Espera-se que os
alunos respondam que sim, pois, mesmo quando trata de problemas sociais,
a literatura é capaz de provocar emoções e reflexões no ser humano.]
[...]
(CEREJA & MAGALHÃES, 2013 [Vol. 1], p. 22).

As solicitações analíticas requeridas em 1a e em 2 são as mais significativas no que


tange à consolidação do projeto pedagógico do PL01 em termos de “temas de cidadania”,
pois, a partir do poema, suscitam uma reflexão acerca da histórica divisão racial do trabalho.
Nesse contexto, as solicitações cursivas, marcadas pela indicação de “resposta pessoal” (a
saber, 1b, 4 e 5), também dão notoriedade à coleção ao comparamos esta ao restante do nosso
corpus. É comum nos livros do PNLD 2015 que o destaque dado ao caráter social das
literaturas africanas acabe por ofuscar seu potencial estético, ponto este questionado pelas
155

atividades supracitadas ao se explorarem as relações entre individual e social (exercício 1b) e


entre leitura e prazer (exercício 5), bem como a “transformação da realidade” orquestrada
pela literatura (exercício 4). Resumidamente, o material afirma aos alunos que a literatura,
seja ela brasileira (Moacyr Scliar) ou de matriz africana (José Craveirinha), pode ter e servir,
igualmente, a muitas funções, não estando condicionada a apenas um estilo ou uma
finalidade.
Os três capítulos que analisamos até aqui  na ordem de análise: “A crítica –
trabalhando o gênero” (volume 2); “O debate regrado público: estratégias de contra-
argumentação” (volume 3); e “O que é literatura?” (volume 1)  são anunciados no Manual
do Professor do PL01 como capítulos favoráveis, respectivamente, ao debate sobre “minorias
étnicas: índios”, “minorias: cotas” e “minorias étnicas: negros”. Nossa análise permitiu
verificar que nos capítulos reservados ao eixo de produção de texto o alcance dessas
discussões revela-se relativamente menor que no capítulo de “literatura”, devido, sobretudo,
ao enfoque dado aos elementos linguísticos e textuais dos gêneros que dão nome às seções.
Voltando-nos novamente ao conteúdo do Manual do Professor, é necessário
apresentar as diretrizes fornecidas acerca da literatura, em geral, e das literaturas africanas,
em particular. Apesar de o ano de edição do PL01 ser 2013, a coleção só faz menção à lei
10.639/03, de modo que as culturas e literaturas indígenas configuram-se uma lacuna. No
entanto, como discutimos nas seções anteriores, as próprias fichas avaliativas do PNLD 2015
não explicitam essa exigência, recordando somente a necessidade de os livros didáticos
contemplarem textos de matriz africana, tal como o faz PL01. Por outro lado, ao se ter em
vista que o não atendimento às leis 10.639/03 e 11.645/08, por parte de qualquer área de
conhecimento, surge como um critério eliminatório no edital do PNLD, é possível que, em
alguma medida, PL01 acabe abordando a temática indígena em um ou mais volumes, mesmo
que a ela não dê visibilidade no Manual do Professor. Trata-se de um aspecto a ser pensado
no desenrolar da análise da microestrutura da coleção.
No Manual, as literaturas africanas apresentam-se como uma subseção do texto de
fundamentação didático-pedagógica destinado ao eixo literatura. Ao encontro do que
discutimos na apresentação de nossa metodologia de pesquisa, PL01 assume a literatura
comparada como uma perspectiva adequada para introduzir tal conteúdo:

Ao professor de literatura, coloca-se a seguinte questão: como inserir as


literaturas africanas de língua portuguesa num curso geralmente voltado à
156

produção literária do Brasil e de Portugal? Seria a perspectiva histórica a


mais indicada para tratar dessa literatura cuja história de formação e de
consolidação ocorreu somente no século XX?
A construção de uma historiografia literária produzida em Angola,
Moçambique, Cabo Verde e Guiné-Bissau está se dando no momento atual,
com a participação tanto de pesquisadores desses países quanto de
pesquisadores do Brasil e de Portugal. A perspectiva histórica, portanto,
embora possível, ainda está cheia de lacunas. Além disso, seria essa
perspectiva a mais interessante para o estudante brasileiro?
Os autores desta obra entendem que não. Embora apresentemos, na unidade
4 do volume 3, um capítulo intitulado “Panorama das literaturas africanas de
língua portuguesa”, que tem a finalidade de situar a gênese da literatura
escrita nesses países e obras, acreditamos que os estudos de literatura
portuguesa e brasileira no Brasil ficariam mais enriquecidos se essas
literaturas fossem tratadas a partir de uma perspectiva dialógica, isto é,
cruzadas com as literaturas portuguesa e brasileira naquilo que têm em
comum quanto a temas, visão de mundo, projetos estéticos, etc. (CEREJA &
MAGALHÃES, 2013 [Vol. 1 – Apêndice:” Manual do Professor”], p. 415).

É interessante perceber que PL01 atenta-se à importância de recorrer a novas


perspectivas para introduzir novas literaturas nos livros didáticos; em outras palavras, nota-se,
à primeira vista, o intuito conjugado de descolonizar tanto o repertório quanto as ferramentas
de análise da educação literária escolar. De fato, como já mencionamos, a coleção conta com
um quadro transversal a todos os volumes intitulado “literatura comparada”, responsável por
romper “com a linearidade e a rigidez da história da literatura” e, à luz de Jauss, aproximar
“projetos artísticos afins, independentemente da época ou lugar” (CEREJA &
MAGALHÃES, 2013 [Vol. 1 – Apêndice:” Manual do Professor”], p. 415). Sua estrutura
anuncia, assim, a provável recorrência de enquadradores discursivos intertextuais,
consequentes, fundamentalmente, de uma localização articulada dos conteúdos das leis. Não
sem razão, os critérios de seleção das produções de matriz africana remetem, igualmente, ao
dialogismo: “é dado espaço para autores africanos de língua portuguesa, que tomaram nossa
literatura como referência ou modelo ou com ela estabeleceram ricos diálogo” (ibid., p. 414).
Sobre o excerto anterior, frisamos, finalmente, a ausência de São Tomé e Príncipe na
listagem de países africanos de língua portuguesa de PL01. No encerramento das análises,
retomamos essa questão a fim de realizar uma leitura crítica das presenças e das ausências das
literaturas de determinados países africanos em detrimento das produções artístico-literárias
de outros.
157

MICROESTRUTURA DA COLEÇÃO PNL01

Revisitando o cânone: Quinhentismo e Romantismo (Indianismo e Condoreirismo) em


PL01

No PL01, o Quinhentismo é introduzido por meio do seguinte enquadrador


discursivo:

Nem crônicas, nem memórias, pois não resultavam de nenhuma intenção


literária: os escritos dos cronistas e viajantes eram uma tentativa de
descrever e catalogar a terra e o povo recém-descobertos. Entretanto,
permeava-os a fantasia de seus autores, exploradores europeus que filtravam
fatos e dados, acrescentando-lhes elementos mágicos e características muitas
vezes fantásticas. (CEREJA & MAGALHÃES, 2013 [Vol. 1], p. 197).

Esse enquadrador do tipo extratextual alerta os estudantes quanto à “fantasia” e à


“filtragem” de dados e de fatos que perpassam os escritos dos europeus no contexto do
Descobrimento, uma ressalva que, a nosso ver, pode contribuir para que haja uma leitura pós-
colonial dessas produções. Na sequência, para além de dados históricos, o capítulo recorre às
cartas de Caminha e a trechos da obra de José de Anchieta. Em relação a este, não é
promovida nenhuma visão crítica sobre seu papel na catequização dos indígenas, havendo
uma discussão restrita à estética de seus textos; já a respeito de Caminha, somam-se às usuais
solicitações analíticas de seus relatos, algumas leituras comparadas que dão espaço a um
olhar mais atual sobre os interesses e sobre as ações dos portugueses no Brasil:

Você vai ler a seguir três fragmentos da Carta de Pero Vaz de Caminha e
dois trabalhos de artistas que dialogam com a Carta: uma tira de Nilson e
um cartum de Marcos Müller.
[...]
TEXTO IV

(Nilson. A caravela. Belo Horizonte: Crisália, 2000, p. 11.)

TEXTO V
158

(Marcos Müller. Bundas, nº 44.)

[...]
5. Aponte semelhanças entre os textos lidos e os versos de Camões a seguir,
quanto ao ponto de vista do colonizador português sobre os motivos da
colonização.
E também as memórias gloriosas
Daqueles reis que foram dilatando
A Fé, o Império, e as terras viciosas
De África e de Ásia andaram devastando,
[Resposta: Tanto na Carta de Caminha quanto nesse fragmento de Os
lusíadas, de Camões, os interesses econômicos e políticos do imperialismo
português são justificados com o argumento da necessidade de levar o
cristianismo às ‘terras viciosas’ (não cristãs).]
6. Compare o texto IV ao texto III. Que semelhanças há entre eles?
[Resposta: Ambos os textos abordam o tema da expansão e do império
português (motivada por interesses econômico, político e militar),
justificada pela necessidade de expandir a fé cristã.]
7. No texto III, Caminha diz ao rei: “Mas o melhor fruto que nela se pode
fazer, me parece salvar essa gente”. Comparando o texto de Caminha ao
cartum de Marcos Müller, é possível perceber pontos de vista diferentes
sobre a conquista e a colonização do Brasil.
a) De acordo com o ponto de vista do conquistador europeu, o objetivo de
“salvar” os índios foi alcançado no transcorrer do tempo? Por quê?
[Resposta: Sim, pois os portugueses catequizaram os índios e procuraram
implantar sua civilização no Brasil.]
b) Do ponto de vista do cartunista, o que resultou da relação do conquistador
com os índios? Por quê? [Resposta: O contato com o conquistador europeu e
a posterior colonização do Brasil levaram os índios, historicamente, à
marginalização e à indiferença social. Isso porque os índios foram
espoliados de seus bens e de sua cultura pelos conquistadores.] (CEREJA &
MAGALHÃES, 2013 [Vol. 1], pp. 201-202).

Percebe-se, portanto, que PL01 reitera, a partir do Quinhentismo, os fatores políticos


e econômicos que fundamentaram a colonização, focando-se, por fim, em questões vinculadas
às identidades e às culturas indígenas através da atividade 7. Por meio da tirinha e do cartum
159

(textos IV e V), a coleção conduz a mediação da leitura das Cartas de Caminha para a
contemporaneidade e, em certa medida, para uma interpretação de cunho pós-colonial. É
igualmente relevante citar que se fazem ressalvas quanto à pertença da literatura produzida no
período colonial; esclarece-se que “embora a literatura brasileira tenha nascido no período
colonial, é difícil precisar o momento em que passou a se configurar como uma produção
cultural independente dos vínculos lusitanos [...]. Por essas razões, alguns historiadores da
literatura preferem chamar a literatura aqui produzida até o final do século XVII de
manifestações literárias ou ecos da literatura no Brasil colonial” (CEREJA &
MAGALHÃES, 2013 [Vol. 1], p. 198-199).
Antes de dar início à análise do Indianismo e do Condoreirismo, consideramos
bastante válido tecer alguns comentários relativos às edições anteriores de Português
Linguagens. Nas coleções homônimas publicadas por seus autores em 1994 e em 2003, sendo
esta, inclusive, uma das obras aprovadas pelo Programa Nacional do Livro Didático para o
Ensino Médio (PNLEM) 2005, identificamos a manutenção parcial da atividade de leitura
supracitada. Nas três edições (1994, 2003 e 2013), os textos I, II e III, referentes a trechos da
Carta de Caminha, mantêm-se os mesmos, bem como grande parte das perguntas sobre eles
levantadas. São, pois, as charges que sofrem substituições. As charges que disponibilizamos
anteriormente, que integram PL01, não são as mesmas que encontramos nas edições
precedentes:

(i)

(CEREJA & MAGALHÃES, 1994 [Vol. 1], p. 159).

(ii)
160

(Folhetim Humor, São Paulo, nº 269, 14/3/1982)


(CEREJA & MAGALHÃES, 2003 [Vol. Único], p. 79).

Chama-nos a atenção, em especial, a charge que consta na edição de 1994, a qual,


em nossa leitura, sugere que os povos indígenas possam ter tido vantagens equiparáveis às
obtidas pela corte portuguesa com a colonização (afinal, teriam ganhado “espelhinhos”),
frisando, assim, a ideia de um processo ancorado em acordos mútuos em detrimento da
questão da violência colonial. Além disso, é importante mencionar que a imagem (i) deixa de
acompanhar o quadro de atividades da edição de 2003 (sendo, pois, substituída por [ii]), mas
nem por isso é excluída do repertório da coleção. Na versão de Português Linguagens
aprovada pelo PNLEM 2005, ela é realocada para a página que antecede os exercícios de
leitura, assumindo o papel de elemento ilustrativo da apresentação do Quinhentismo
(CEREJA & MAGALHÃES, 2003 [Vol. Único], p. 77). Um agravante a ser apontado é a
ausência, tanto em 1994 quanto em 2003, de enquadradores de leitura que situassem o
professor e/ou o aluno quanto às interpretações esperadas pela coleção ou que fornecessem
instruções mínimas de mediação de leitura. Se considerarmos que tal charge não se faz
presente na edição de 2013, mas que, ao contrário, ela é substituída por produções artísticas a
partir das quais se exploram, precisamente, os efeitos da violência e do legado colonial para
os povos indígenas brasileiros, é possível inferir o impacto das políticas de recorte
multicultural naquilo que temos denominado de “descolonização da educação literária”. O
livro didático de 2013 não parece dialogar tanto com o da década de 1990 ao menos no que
diz respeito às narrativas coloniais. A análise textual dos escritos de Caminha permanece
quase que intacta ao longo dos anos, mas vai, gradativamente (primeiro, com a imagem da
edição de 2003; depois, com as da edição de 2013), sendo articulada a um contraponto que
161

desloca o olhar do aluno também para a perspectiva do colonizado, rompendo, portanto, com
o modelo clássico de ensino88.
Concernente, por fim, ao Romantismo, a coleção descreve uma literatura de
“conotação de movimento anticolonialista e antilusitano, ou seja, de rejeição à literatura
produzida na época colonial” (CEREJA & MAGALHÃES, 2013 [Vol. 2], p. 53).
Especificamente sobre o Indianismo, analisa-se, na poesia, o canto IV de “I-Juca-Pirama”, por
meio, sobretudo, de enquadradores textuais e de solicitações analíticas de identificação, de
síntese e de inferência. Na prosa, é feita a usual apresentação da obra de José de Alencar,
seguida, porém, de uma abordagem inovadora desenvolvida a partir da subseção “literatura
comparada”, sob o título “Diálogo entre a poesia africana contemporânea e a prosa romântica
brasileira”. Afastando-se da questão indígena, PL01 centra-se na afirmação de identidade no
Brasil e em Angola, tendo por base a leitura dialógica de um fragmento de Iracema (1865), de
Alencar, e do poema “Carta de um contratado” (1961), de Antônio Jacinto. Inicialmente,
fazem-se perguntas interpretativas sobre cada um dos textos (a maioria delas, nos dois casos,
do tipo solicitações analíticas de identificação e de inferência), sendo especialmente
interessante para a nossa análise duas delas: a que questiona o papel de José de Alencar nessa
busca identitária, e a que concretiza a leitura comparada:

[...]
2. José de Alencar foi um dos principais escritores brasileiros empenhados
no projeto romântico de construir uma identidade nacional. Por meio da
literatura, o escritor pretendia libertar a cultura brasileira do domínio da
cultura portuguesa. De que modo o escritor põe em prática esse projeto, no
texto, considerando-se os aspectos da língua e do espaço? [Resposta:
Empregando palavras indígenas e destacando elementos da fauna e da flora

88
Verificamos uma ocorrência similar envolvendo o estudo do Condoreirismo nas edições de 1990 e de 2010 de
coleções assinadas por Douglas Tufano, sendo a segunda constitutiva da lista de obras aprovadas pelo PNLD
2013. Apesar de a edição mais recente ser também assinada por Leila Lauar Sarmento, e não apenas por Tufano,
algumas similaridades de repertório e de enquadramento de leitura acabam por justificar o registro da
discrepância por nós levantada. Nos dois casos, o capítulo da produção romântica encerra-se com uma proposta
de discussão, sendo que em Estudos de Língua e Literatura (1990) o recorte temático escolhido é “Os negros no
Brasil, ontem e hoje” (TUFANO, 1990 [Vol. 2], pp. 58-60), a partir do qual se solicita a produção textual de
uma dissertação sobre o “relacionamento atual entre brancos e negros no Brasil” (ibid., p. 61). Em Português –
Literatura, Gramática e Produção de Texto (2013), por sua vez, o “negro” enquanto tema é substituído pela
autoria negra, dado que no fechamento do trabalho com a poesia romântica tem-se a seção “Poesia negra –
ontem e hoje” (SARMENTO & TUFANO, 2013, pp. 124-125). No lugar de textos sobre a condição da
população negra no Brasil “ontem e hoje”, a edição mais recente do livro de Tufano disponibiliza produções
literários de poetas afrodescendentes mais antigos e mais recentes, como Luís Gama e Solano Trindade. Tendo
em vista que é possível notar algumas permanências na edição de 2010 se comparada à edição da década de
1990, tal exemplo configura-se, certamente, uma interessante e significativa ruptura.
162

nacionais; por meio desse procedimento, o autor procurou criar uma


literatura identificada com a nossa gente, nossa cultura e nossa natureza.]
[...]
5. O romance Iracema foi escrito após a independência política do Brasil. O
poema de Antônio Jacinto foi escrito no período em que Angola ainda era
colônia portuguesa. Considerando os contextos de produção dos textos,
responda: Que importância têm, no texto de José de Alencar e no poema, as
várias referências feitas à fauna e à flora brasileiras e angolanas,
respectivamente? [Resposta: Os dois textos, ao empregar palavras
originadas das línguas nativas, indígena (no caso de Iracema) e africana (no
caso do poema) e destacar elementos da fauna e da flora locais, podem ser
vistos como expressão do nacionalismo (brasileiro e angolano). No caso do
texto de Alencar, uma forma de consolidar a Independência; no caso de
Antônio Jacinto, um grito de liberdade, de protesto contra o colonialismo
português. Professor: Chame a atenção dos alunos para pontos em comum
na identidade histórica, cultural e linguística do Brasil, Angola e
Moçambique, uma vez que esses países viveram experiências semelhantes de
colonização e de libertação política.] (CEREJA & MAGALHÃES, 2013
[Vol. 2], p. 133).

A atividade 2 parece-nos relevante porque ilustra a ausência de questionamento


acerca da imagem idealizada do indígena pintada pelo Romantismo, uma lacuna por nós
observada em todo o capítulo. No desenrolar de nossas análises, é possível perceber que
algumas coleções do PNLD 2015 têm se valido do Indianismo para promover essa reflexão,
motivo pelo qual consideramos pertinente arquivar esse dado do PL01. A título de
complementação, podemos nos ater novamente à mediação de leitura da poesia indianista: nas
atividades sobre o canto “I-Juca-Pirama”, que citamos anteriormente, o último exercício
solicita que seja estabelecida uma relação entre o conceito de “bom selvagem” de Rousseau
(explicitado por meio de um Box nas páginas anteriores à atividade) e o comportamento do
índio retratado pelo Romantismo brasileiro (CEREJA & MAGALHÃES [Vol. 2], 2013, p.
56). Todavia, tanto as perguntas quanto as respostas de tal atividade limitam-se à recuperação
de elementos textuais, e, a exemplo da atividade 2 anteriormente transcrita, não confrontam o
problema da idealização. O mito do “bom selvagem” é, assim, trazido, mas pouco explorado.
Apesar disso, na seção “Sugestões de Estratégia” que integra o Manual do Professor, assinala-
se para os educadores a possibilidade de seguir por esse caminho, ao sugerir a possibilidade
de se confrontar “a literatura indianista romântica com os textos de História” (CEREJA &
MAGALHÃES, 2013 [Vol. 2 – Apêndice:” Manual do Professor”], p. 451) ou ainda de trazer
“o confronto entre o índio retratado pelo Romantismo e o índio real, contemporâneo” (p.
163

452). Portanto, em PL01, o uso do Indianismo como ponte para uma releitura da imagem e de
estereótipos indígenas fica ao critério de escolha do professor.
A pergunta 5, por sua vez, parte de uma aproximação entre Brasil e Angola para
chegar a uma indicação de comparação mais ampla, que inclua também Moçambique. A
referência a este país justifica-se pelo conteúdo do Box “Oratura na África”, localizado na
página anterior às atividades. Tendo como gancho a problemática do analfabetismo presente
no poema de Antônio Jacinto, PL01 expõe no Box a importância da oralidade nas culturas
africanas: “Moçambique e Angola foram colônias de Portugal até a década de 1970. Até essa
data, esses países eram dependentes da metrópole também culturalmente e viviam um grave
problema de analfabetismo. Isso não quer dizer, porém, que neles não havia uma intensa vida
cultural e literária. Havia, sim, e tal era a importância dessa produção transmitida oralmente,
que se costuma chamá-la de oratura [...]” (CEREJA & MAGALHÃES, 2013 [Vol. 2], p.
132). Observa-se, então, que se, por um lado, as culturas indígenas brasileiras parecem ficar
em segundo plano, por outro, PL01 faz uso da clássica apresentação do Indianismo para
promover uma leitura mais abrangente sobre a afirmação das identidades e sobre o “protesto
contra o colonialismo” experimentado nas literaturas escritas no Brasil e em outros países
colonizados por Portugal.
No Condoreirismo, a única atividade de leitura baseia-se num fragmento do canônico
“O navio negreiro” (1868), de Castro Alves, ainda que o poeta Sousândrade também seja
apresentado. Para análise do poema, observam-se solicitações analíticas contendo operações
de identificação por estrofe. O que mais chama a atenção no capítulo é o Box intitulado
“Brasil: país da diversidade e da desigualdade”, no qual se afirma:

Nas últimas décadas do século XX, os negros brasileiros perceberam que a


luta iniciada por Castro Alves (ironicamente um branco) deveria ser levada
adiante. Agora, não mais uma luta pela abolição, mas pelo fim do
preconceito racial e cultural, da desigualdade de oportunidades, da
discriminação social. Assim, diversos grupos organizados, bem como muitos
negros de destaque na sociedade, têm afirmado sua identidade afro-
brasileira, seja por meio de manifestações de protesto, seja por meio de
atividades culturais identificadas com origens africanas [...]. (CEREJA &
MAGALHÃES, 2013 [Vol. 2], p. 114).

A recuperação do movimento negro contemporâneo é um dado que vai ao encontro


das ideias propagadas pelos documentos oficiais das leis 10.639/03 e 11.645/08. No entanto, a
afirmação de que apenas no século passado “os negros brasileiros perceberam que a luta
164

iniciada por Castro Alves (ironicamente um branco) deveria ser levada adiante” reitera a falsa
ideia de passividade dos negros frente ao colonialismo. À luz dos documentos estudados na
seção anterior, sabe-se que PL01 poderia ter recorrido, nesse contexto, a algum dos nomes de
abolicionistas negros indicados pelos textos regulatórios das leis, como Luís Gama ou Cruz e
Sousa, contemporâneos de Castro Alves, ou até mesmo Zumbi, personagem histórica anterior
ao poeta, que serve de contestação à afirmação de que a luta teria sido iniciada com o
representante do Condoreirismo. Em suma, faz-se uma ponte a figura do negro no século XIX
e na atualidade, mas por meio de um discurso que dá margem à propagação de estereótipos e
de lacunas históricas sobre o movimento negro.

Reestruturando o cânone I: literaturas africanas e literatura negra/afro-brasileira em


PL01

A localização articulada que caracteriza a macroestrutura de PL01 levou-nos a


antecipar a discussão sobre os contornos das literaturas africanas em tal coleção. Somada à
presença do moçambicano José Craveirinha no capítulo introdutório do volume 1, bem como
à do angolano Antônio Jacinto no capítulo dedicado ao Romantismo, PL01 dispõe de uma
terceira seção de “literatura comparada”, intitulada “Diálogo entre a poesia de Manuel
Bandeira e a literatura africana” (CEREJA & MAGALHÃES, 2013 [Vol. 3], p. 113), que
inclui o escritor cabo-verdiano Ovídio Martins. Presente na unidade sobre o Modernismo, a
comparação busca exemplificar como “a literatura brasileira de diferentes épocas tem sido
fonte de inspiração para muitos escritores africanos de língua portuguesa” (ibidem), por meio
dos poemas “Vou-me embora pra Pasárgada” (1930), do brasileiro, e “Antievasão” (1962), do
africano. Apesar de tratar apenas do poema de Ovídio Martins, PL01 cita, por meio de um
breve Box, o fato de os escritores cabo-verdianos “Osvaldo Alcântara e Baltazar Lopes” (sic)
também terem escrito “cinco poemas a partir de ‘Vou-me embora pra Pasárgada’” (CEREJA
& MAGALHÃES, 2013 [Vol. 3], p. 115), sem esclarecer, porém, que o primeiro é um
pseudônimo do segundo.
Alternando, novamente, entre solicitações analíticas ora focadas no texto de
Bandeira ora no de Ovídio Martins, a coleção propõe uma leitura intertextual na atividade 6:

6. Nos jogos interdiscursivos, um texto pode citar outro para afirmá-lo ou


para negá-lo.
a) O poema de Ovídio Martins afirma ou nega o poema de Bandeira?
[Resposta: Nega.]
165

b) Em “Antievasão”, Pasárgada tem o mesmo significado que tem no poema


de Manuel Bandeira? Justifique sua resposta. [Resposta: Não. No poema de
Bandeira, Pasárgada é um lugar de prazeres, de realizações; no poema de
Ovídio Martins, Pasárgada equivale a uma fuga da realidade, a alienação.]
(ibid., p. 115).

Entre os exercícios de leitura do poema do cabo-verdiano, o último, em certa medida


complementar a 6b, chama-nos a atenção devido ao conteúdo de seu enquadrador
extratextual:

7. Ovídio Martins fez parte de um grupo de escritores militantes que, em


Cabo Verde, lutou pela independência política de seu pai, combatendo a
colonização portuguesa. Por causa disso, chegou a ser preso e exilado.
Considerando essas informações, levante hipóteses: Por que o eu lírico
insiste na postura “antievasão”? [Resposta: Porque, para ele, melhor do que
fugir da realidade, buscando um mundo imaginário, é enfrentá-la e
transformá-la.] (ibidem).

Com esse enquadrador, PL01 introduz novamente a questão do colonialismo


português em África, assim como o fez a partir do poema de Antônio Jacinto. Nas próximas
análises, baseadas no capítulo de PL01 especificamente dedicado às literaturas africanas,
buscamos observar se essa relação entre literatura e experiências coloniais se mantém ou se a
coleção oferece outras perspectivas sobre as produções africanas, similares, por exemplo, à
que orienta a leitura do poema de Craveirinha, anteriormente discutido.
O capítulo “Panorama das literaturas africanas de língua portuguesa”89, que encerra a
coleção, subdivide-se em “literatura em Angola”, “literatura em Moçambique” e “literatura
em Cabo Verde”, e propõe uma atividade de leitura para cada contexto, a partir de excertos
dos seguintes textos: “Exortação”, poema do angolano Maurício Gomes; “Nas águas do
tempo” (1994), conto do moçambicano Mia Couto; e “Hora Grande” (1962), poema do Cabo
Verdiano Onésimo Silveira.
Antes das atividades, apresentam-se enquadradores discursivos extratextuais,
contendo dados sobre a história do respectivo país e de sua literatura, incluindo referências a
nomes de diversos autores de cada país abordado. Devido ao excesso e à extensão desses
textos introdutórios  um deles, inclusive, baseado em uma citação de Pepetela sobre o
89
A título de registro: contrariamente a PL01, na edição de Português Linguagens publicada em 2003 (CEREJA
& MAGALHÃES, 2003), ou seja, na última coleção produzida por Cereja e Magalhães antes da aprovação da lei
10.639/03, não encontramos nem seções nem textos que remetessem às literaturas africanas de língua
portuguesa. Trata-se de um dado que atesta o papel de revisão curricular exercido por leis educacionais de viés
multicultural.
166

processo de formação da literatura angolana , destacamos e enumeramos alguns exemplos,


visando dar visibilidade às ocorrências mais significativas:

(i) Cultivada muitas vezes por portugueses ou por filhos de


portugueses que viviam na África, a literatura produzida nos
países africanos de língua portuguesa foi durante muito tempo
considerada mera extensão da literatura portuguesa.
Contudo, embora seja difícil traçar a linha divisória entre a
literatura portuguesa e as literaturas africanas em nossa língua,
pode-se dizer que o florescimento dessas literaturas se deu
concomitantemente ao início da discussão sobre a identidade
nacional. (CEREJA & MAGALHÃES, 2013 [Vol. 3], p. 378).
(ii) Embora a produção desse período [em Angola, final da
década de 1940 e início da de 1950] tenha mantido o caráter de
crítica e resistência política ao colonialismo português, ela não
deixou de lado a preocupação estética, alcançando um bom
equilíbrio entre forma e conteúdo. (ibid., p. 379)
(iii) Nesse período [1964 a 1975], era natural que alguns
escritores, por motivos de nascimento, por laços familiares ou
por ideologia, ficassem divididos entre a colônia e a metrópole.
(ibid., p. 381)
(iv) O surgimento de uma literatura própria em Cabo Verde está
diretamente relacionado, como nas demais ex-colônias
portuguesas na África, com a questão da identidade nacional.
(ibid., p. 384)

Se (iii) e (iv) reforçam o lugar ocupado pela identidade nacional/cultural no contexto


de produção das literaturas africanas, o excerto (ii), ao mesmo tempo em que frisa a
motivação política dessa tendência, recorda a qualidade estética do repertório africano. É
ilustrativo dessa perspectiva um exercício sobre o conto de Mia Couto, que indaga os alunos
sobre outros elementos que não identitários ou políticos:

6. Você diria que o texto apresenta um fundo filosófico? Por quê? [Resposta:
Espera-se que os alunos percebam que sim, pois ele promove uma reflexão
sobre questões metafísicas, como vida e morte, passagem do tempo, razão
de existir, vida depois da morte, etc.] (CEREJA & MAGALHÃES, 2013
[Vol. 3], p. 384).

Ainda que tanto o enquadrador discursivo (ii) quanto a atividade supracitada


mostrem-se interessantes ao alargamento crítico dos alunos, na medida em que colocam em
xeque enquadramentos de leitura que reduzam essas literaturas a escritas de testemunho ou
memorialísticas, entendemos que a informação presente em (i), de que a literatura de matriz
167

africana foi/é “cultivada muitas vezes por portugueses ou por filhos de portugueses que
viviam na África”, quando desprovida de aprofundamento, é passível de instituir uma
condição de dependência de Portugal, por exemplo. Nem no Caderno do Aluno nem no
Manual do Professor essa discussão é retomada.
Em relação às atividades, nota-se que, seguindo a tendência dos demais capítulos de
literatura do século XX, predominam no capítulo de literaturas africanas produtivas
solicitações analíticas, não sendo, porém, o texto literário um simples pretexto para a
aprendizagem de conhecimentos linguísticos e/ou literários, mas sim uma fonte para
exercícios reflexivos da interpretação. Atendendo ao mesmo padrão de exercícios verificado
nas seções de literatura contemporânea que precedem tal seção, não se dá muito espaço a
solicitações cursivas, uma vez que mesmo nas perguntas em que se assinala a expectativa de
uma “resposta pessoal” espera-se, ao fim, uma leitura mais objetiva que subjetiva. Aqui,
cabem algumas considerações sobre a forma pela qual esse tipo de exercício é elaborado.
Atentemo-nos ao exemplo:

4. A parte 3 [do poema de Onésimo Silveira] descreve como será esse tempo
imaginário.
a) Dê uma interpretação coerente a estes versos: ‘As crianças nascerão sem
metas nos olhos’, ‘As crianças serão crianças!’. [Resposta pessoal. Sugestão:
Com a liberdade conquistada, as crianças não terão com que se preocupar,
isto é, serão apenas amadas pelos adultos] (CEREJA & MAGALHÃES,
2013 [Vol. 3], p. 385).

A questão que levantamos é: o que mudaria na atividade se houvesse a supressão da


indicação “resposta pessoal”? Ou seja, em que a resposta esperada, sob o título de “sugestão”,
difere dos demais tipos de gabarito? Destacamos outro exemplo:

4. Já quase no final do conto [de Mia Couto], o avô desce do barco e pisa “os
interditos territórios”. Nesse momento, o neto consegue ver os panos na
margem, inclusive o pano vermelho de seu avô, que começa a mudar de cor.
a) Interprete a mudança de cor do pano do avô. [Professor: sugerimos abrir
a discussão com a classe, pois pode haver mais de uma interpretação.
Sugestão: ele representa a morte do avô.] (ibid., p. 384).

Não há em PL01 um padrão ou um esclarecimento sobre o porquê de determinadas


questões demandarem uma discussão, como no caso anterior, e/ou espaço para resposta
pessoal. Desse modo, entendemos que a coleção não explora, de fato, a leitura subjetiva de
168

obras de países africanos, pois todas as perguntas e respostas envolvendo “resposta pessoal”
convergem para um gabarito muito similar aos que observamos nas solicitações analíticas. É
certo que as leituras subjetivas possam, ou talvez devam, ser direcionadas a um consenso
analítico; é igualmente correto considerar que o indicativo de “resposta pessoal” no Manual
Professor não seja suficiente para determinar se uma solicitação é ou não do tipo cursiva. A
questão 6 sobre o conto de Mia Couto que analisamos anteriormente (“Você diria que o texto
apresenta um fundo filosófico? Por quê?”) comprova essa premissa, pois recorre à operação
de mobilização de conhecimentos prévios (no caso, sobre filosofia), abrindo um leque de
respostas possíveis, consequentes das diferentes experiências dos leitores, mas sem assinalar a
expectativa de “resposta pessoal”. No entanto, em todas essas ocorrências, nota-se o risco de
solicitações de potencial cursivo funcionarem apenas como leituras interpretativas
convencionais, dada a ausência de instruções detalhadas no Manual do Professor.
Partindo, então, para o teor das solicitações analíticas, julgamos as atividades a
seguir especialmente interessantes à questão da descolonização do discurso escolar e do
pensamento:

1. A primeira estrofe do poema cita nominalmente dois escritores brasileiros,


Ribeiro Couto e Manuel Bandeira, que pertenceram à primeira geração do
nosso Modernismo. Sabendo que essa geração empenhava-se, entre outras
coisas, pelo resgate das tradições da cultura popular brasileira e pela
definição de uma identidade nacional, responda: O que justifica a citação
desses poetas no poema de Maurício Gomes? [Resposta: Assim como os
modernistas brasileiros da primeira geração, os poetas angolanos da
geração de Maurício Gomes também estavam interessados em criar uma
poesia livre dos modelos lusitanos ou europeus, uma poesia que fosse
expressão da identidade nacional.] (CEREJA & MAGALHÃES, 2013 [Vol.
3], p. 381).
[...]
4. Observe as duas últimas estrofes do poema.
(...)
b) Considerando o contexto em que o poema [de Maurício Gomes] foi
escrito, é possível dizer que ele tem um caráter anticolonialista? Por quê?
Justifique sua resposta. [Resposta: Sim, pois, no contexto do colonialismo
português, o rompimento com os modelos literários portugueses e a
valorização de elementos próprios da terra revelam uma atitude
nacionalista, em contraposição aos interesses da metrópole portuguesa.]
(ibid., p. 381).
[...]
4. A parte 3 [do poema de Onésimo Silveira] descreve como será esse tempo
imaginário.
169

b) Nesse tempo imaginário, como deverá se colocar a questão étnica?


[Resposta: A referência a crianças ‘negras e loiras e brancas’ como ‘pétalas
da mesma flor’ sugere que não haverá preconceito racial. O país será de
diversidade étnica, mas vinculado às suas origens africanas.] (CEREJA &
MAGALHÃES, 2013 [Vol. 3], p. 385).

Em nossa leitura, a atividade 1 consolida, de certa forma, o diálogo entre a literatura


brasileira e as de países africanos de língua portuguesa, concretizando as perspectivas e os
objetivos anunciados no Manual do Professor. Somados a ela, há, no capítulo, Boxes que
informam sobre outras pontes literárias de mesma natureza: a intertextualidade estabelecida
entre “Exortação” de Maurício Gomes, e “Evocação do Recife”, de Manuel Bandeira
(CEREJA & MAGALHÃES, 2013 [Vol. 3], p. 380), e as similaridades entre o estilo de
escrita de Mia Couto, um “recriador da linguagem”, e de Guimarães Rosa (p. 382). Por sua
vez, as atividades 4b, sobre o poema de Maurício Gomes, e 4b sobre o poema de Onésimo
Silveira, ganham relevância por abordarem, especificamente, o anticolonialismo e o
preconceito racial. Percebe-se, assim, que o comparativismo, enquanto metodologia de
introdução de “novas” literaturas no repertório escolar, é produtivamente utilizado pela
coleção90. Não por acaso, um de seus projetos interdisciplinares de encerramento de Unidade
(no caso, da Unidade 2 [“A segunda fase do Modernismo. O Romance de 30”], Vol. 3),
voltado à “realização de uma mostra de arte moderna” (CEREJA & MAGALHÃES, 2013
[Vol. 3], p. 222) pelos alunos, indica como recorte possível “Diálogos negros: Brasil e
África”91 (p. 224). Propõe-se, com ele, que seja feito um levantamento de “autores nacionais
que retrataram a presença negra na região nordestina [como Jorge Amado ou Jorge de Lima]”
(ibidem) e de escritores africanos de língua portuguesa cuja obra tenha “afinidade com os
temas tratados pelos escritores brasileiros nas décadas de 1930 e 1940 [como José
Craveirinha, Antônio Jacinto ou Manuel Lopes]” (CEREJA & MAGALHÃES, 2013 [Vol. 3],
p. 225). Isso feito, sugere-se que os alunos selecionem alguns textos para serem lidos ou
declamados no dia da mostra artística em questão (ibidem).
Localizamos, por fim, a proposta de análise textual do poema “O húmus do homem
novo”, do moçambicano Juvenal Bucuane, na abertura do capítulo “Concordância.

90
Por fim, no que tange à diversidade das literaturas de língua portuguesa no mundo, cabe registrar que a
coleção aborda, no capítulo “As variedades linguísticas” (Vol. 1), um poema (sem título) de Xanana Gusmão,
poeta do Timor Leste (Oceania) (CEREJA & MAGALHÃES, 2013 [Vol. 1], p. 81).
91
Os outros recortes temáticos da atividade são: “Nordeste no Cinema” e “O romance de 30 na visão de Antonio
Candido”.
170

Concordância Verbal”, do eixo de conhecimentos linguísticos de PL01 (CEREJA &


MAGALHÃES, 2013 [Vol. 3], pp. 240-241). Dessarte, predominam solicitações analíticas de
viés linguístico, atentas, por exemplo, aos significados do uso de determinados tempos
verbais ou aos sentidos de adjetivos específicos. Adiante, ao analisarmos coleções em que o
cumprimento das leis 10.639/03 e 11.645/08 atrela-se com mais consistência e/ou frequência
a outros eixos de ensino, que não somente ao eixo de literatura, desenvolvemos reflexões mais
aprofundadas sobre esse tipo de ocorrência, isto é, sobre o fato de a descolonização do ensino
de Português ganhar novas formas quando pensada para além dos limites da educação
literária.
Encerrada, pois, a análise sobre a presença das literaturas africanas em PL01,
reiteramos a ausência de textos representativos da literatura negra/afro-brasileira, tendo em
vista a ausência de autores brasileiros negros e não canônicos nos três volumes da coleção.

Reestruturando o cânone II: literaturas indígenas em PL01

Não encontramos textos de autoria indígena nos capítulos de literatura do PL01.


Embora a temática indígena seja abordada de forma crítica em algumas passagens dos
capítulos concernentes ao Quinhentismo (e menos em relação ao Indianismo), permanece na
coleção um “falar sobre”, sem espaço, ainda, à produção indígena.
171

A título de retomada e de síntese: PL01 e o repertório das leis 10.639/03 e 11.645/08


(produções de autoria indígena, negra/afrodescendente e/ou africana, para além do
cânone escolar)

PL01 REPERTÓRIO LOCALIZAÇÃO


Unidade 1 – “A literatura na
Poema “Grito Negro” (1964), de José
VOLUME 1 Baixa Idade Média”, Capítulo 1:
Craveirinha (Moçambique).
“O que é literatura?”.
Unidade 2 – “O Romantismo. A
prosa”, Capítulo 1: “O romance
Poema “Carta de um contratado” (1961), de romântico e a identidade
VOLUME 2
Antônio Jacinto (Angola). nacional. O romance indianista”
(na subseção “Literatura
Comparada”).
Unidade 1 – “História Social do
Modernismo”, Capítulo 10:
Poema “Antievasão” (1962), de Ovídio
“Manuel Bandeira e Alcântara
Martins (Cabo Verde).
Machado” (na subseção
“Literatura Comparada”).
Poema “Exortação”, de Maurício Gomes
(Angola).

Conto “Nas águas do tempo” (1994), Mia Unidade 4 – “A Literatura


Couto (Moçambique). Contemporânea”, Capítulo 9:
“Panorama das literaturas
Poema “Hora Grande” (1962), de Onésimo africanas de língua portuguesa”.
Silveira (Cabo Verde).
VOLUME 3
Comentário de Pepetela (Angola) sobre a
formação da literatura angolana.
Unidade 3 – “A segunda fase do
Modernismo. A poesia de 30”,
Poema “O húmus do homem novo”, de Capítulo 2: “Concordância.
Juvenal Bucuane (Moçambique). Concordância Verbal” (na
subseção “Língua: uso e
reflexão”).
Tabela 5. Relação de textos e autores abordados em PL01.
172

4.1.2. Novas Palavras (FTD) – 2ª coleção do PNLD 2015 em número de


distribuições

AMARAL, Emília; FERREIRA, Mauro; LEITE, Ricardo; ANTÔNIO, Severino. Novas


Palavras (Livro do Professor), 2ª ed., Volumes 1, 2 e 3, São Paulo: FTD, 2013.

SIGLA: NP02

A resenha apresentada pelo PNLD 2015 destaca a centralidade da leitura literária no


trabalho desenvolvido com o eixo leitura em NP02. Nesse sentido, é tida como ponto fraco “a
pouca exploração dos gêneros textuais” (BRASIL-MEC/SEB, 2014b, p. 45), conjuntamente à
normatividade e ao formalismo que orientam o eixo da gramática. Soma-se a esse quadro o
“estudo predominantemente linear da literatura”, embora a coleção conte, segundo o Guia,
com uma “farta coletânea” (ibid., p. 44), bem como com propostas pontuais de
intertextualidade no eixo literatura, responsáveis por relacionar “tradição e
contemporaneidade” (ibid., 47). Ao encontro dessa inclinação a um modelo de ensino que
parece corresponder a uma visão estruturalista e afeita aos clássicos, encontramos na resenha
uma síntese das conclusões às quais também pudemos chegar através de nossa análise: “a
coletânea literária [de NP02] não contempla satisfatoriamente a Literatura Africana,
prendendo-se mais ao cânone literário brasileiro e português”, apesar de abrir espaço “para
autores contemporâneos ainda pouco estudados em livros didáticos” (ibid., p. 48).
Analogamente ao observado em PL01, em NP02 o eixo literatura é predominante: do
total de 78 capítulos que integram a coleção, 37% (ou 29 capítulos) são de literatura. Os
demais se dividem entre “Gramática” e “Redação e leitura”. Mantendo a comparação com o
livro didático anterior, dois de seus quatros autores  Emília Amaral e Ricardo Silva Leite
 também são mestres em Teoria Literária por uma universidade paulista (UNICAMP);
Mauro Ferreira do Patrocínio, por sua vez, possui Especialização em Metodologia de Ensino,
e tanto Severino Antônio Moreira Barbosa quanto Emília Amaral são doutores em Educação,
os três também pela UNICAMP. De acordo com as biografias fornecidas pelas coleções,
todos atuam ou atuaram como professores da rede básica de ensino e alguns também como
professores de cursinhos pré-vestibulares. Moreira Barbosa é o único com experiência
docente no Ensino Superior.
173

MACROESTRUTURA DA COLEÇÃO NP02

O Manual do Professor do NP02 é composto por respostas integradas às atividades e


por um apêndice com orientações gerais e indicações complementares. Não há nele nenhuma
diretriz específica sobre o lugar a ser ocupado pela diversidade cultural na coleção, tampouco
se mencionam as leis 10.639/03 e 11.645/08. Por conseguinte, a localização e distribuição
dos conteúdos previstos pelas leis é do tipo tangencial, com escassa presença de títulos
representativos das literaturas africanas, negras e indígenas. Chama a atenção, nesse sentido,
no subcapítulo de orientação pedagógica dedicado ao eixo literário, o fato de o recorte de
debate proposto ao Professor acabar por construir uma argumentação favorável à reafirmação
da leitura de obras clássicas. Para responder as perguntas “Mas os alunos estarão preparados
para a complexidade da leitura literária? A literatura não é uma manifestação estética elitista,
distante dos alunos, sobretudo os das escolas públicas?” (AMARAL; FERREIRA; LEITE;
ANTÔNIO, 2013 [Vol. 1 – Apêndice: “Caderno do Professor”], p. 7), NP02 dialoga com o
artigo “Literatura para todos”, de Leyla Moisés-Perrone92, a partir do qual se questiona o
caráter elitista por vezes atribuído ao campo literário e se reafirma a leitura do cânone como
sendo uma leitura democrática. É nas conclusões dessa discussão que se torna evidente, a
nosso ver, uma concepção em certa medida equivocada do papel de um repertório literário
plural nas escolas. Observemos esses apontamentos, atentando-nos, em especial, à
apresentação dos critérios de seleção de seus textos, descritos no parágrafo final:

A fim de exemplificar essa posição [“qualquer que seja a extração social do


aluno, sua inteligência lhe permite a aprendizagem da leitura literária”],
Leyla Perrone refere-se ao escritor Ferréz, de Capão Redondo, um dos
bairros mais problemáticos da periferia paulistana. Recriado literariamente, o
lugar transformou-se em Capão pecado, obra reconhecida pelo público e
também pela crítica. Em uma entrevista, ele relata que um romance –
Madame Bovary, de Gustave Flaubert – foi o responsável pela mudança
radical que houve em sua vida, permitindo, até mesmo, que conseguisse
“contaminar toda a comunidade”.
Por meio desse exemplo, a ensaísta propõe que repensemos o repertório de
autores e obras presente nos currículos, relativizando “excessiva
preocupação com o ‘contexto social’ e a ‘identidade’”. Na sua maneira de
ver, o resultado de tal postura é “o artificialismo dos estudos literários”,
vistos como elitistas. Em oposição, ela defende que “o ensino da literatura,
em qualquer nacionalidade, não é elitista, mas democratizante”, pois “[o]
livro ainda é o objeto cultural mais barato e acessível, e o texto de Dom
Quixote ou de Dom Casmurro é o mesmo, num volume encadernado em

92
Publicado em Literatura e Sociedade (USP), v. 9, 2006.
174

papel-bíblia ou num exemplar da banca de jornal”. E concluí: “[se] os


leitores de literatura constituem uma elite, esta é aberta a todos os
alfabetizados, cabendo aos professores apenas mostrar o objeto sob sua
melhor luz”.
Em sintonia com tais ponderações iluminadoras, e com o projeto global
deste livro, o setor da Literatura busca um equilíbrio entre o ensino
tradicional de história literária e o estudo interno da Literatura, elegendo as
obras que constituem o cânon selecionado pela tradição e dando ênfase ao
trabalho com o texto: o centro inequívoco da preparação das aulas do
professor. (destaque nosso) (AMARAL; FERREIRA; LEITE; ANTÔNIO,
2013 [Vol. 1 – Apêndice: “Caderno do Professor”], p. 8).

O critério de eleger obras “tradicionais”, somado ao objetivo de se promover o


“estudo interno da Literatura”, já antecipa as razões pelas quais observamos, durante a análise
de NP02, a baixa ocorrência de repertórios não canônicos e de atividades que conduzam a
reflexões sobre a diversidade cultural. Todavia, revela-se pouco consistente a argumentação
que justifica essa escolha. Primeiramente, é preciso ter em mente que as discussões
envolvendo “identidade” e “contexto social” (ou “sociedade”) no âmbito do ensino de Língua
Portuguesa não costumam reivindicar o apagamento ou o desmerecimento do cânone literário.
Como vimos em nossa fundamentação teórica, a busca pela diversidade (ou pela
descolonização) no ensino de literatura implica a revisão do cânone, mas não nega sua
relevância nem seu lugar. Isso posto, pensar a “democratização” da educação literária tem a
ver mais com a reivindicação de um repertório democrático (no que tange à origem e ao perfil
de seus autores, aos gêneros textuais etc.), que amplie (e não que reduza) a gama de textos aos
quais os estudantes têm acesso, e menos (ou nada) a um questionamento das capacidades e
das competências (ou da “inteligência”) dos estudantes a depender de sua classe social  tal
perspectiva seria, inclusive, preconceituosa. É nesse sentido que causa estranheza o fato de o
suposto “elitismo” presente nos Estudos Literários ser debatido, em NP02, à luz das origens
dos estudantes e não dos autores e das obras; explico: a crítica a esse pretenso “elitismo
literário” costuma partir, no contexto das reflexões sobre literatura e sociedade, do
apagamento de determinados autores e de determinadas obras (tal qual acusam as leis aqui
estudadas), servindo igualmente ao cenário das escolas públicas e ao das particulares. Ao
contrário do que parece apontar a argumentação de NP02, o repensar do cânone é também
pertinente ao setor privado de educação, dado que a dificuldade e a resistência à leitura dos
clássicos também nele se faz presente, como revelam relatos de docentes e trabalhos
acadêmicos. Não se trata, portanto, de tomar a experiência de Ferréz com Madame Bovary
como uma prova da democracia inerente à leitura do cânone, mas de pensar essa democracia,
175

bem como a quebra do referido elitismo, com base, justamente, na ausência de escritores
como Ferréz no rol de autores ofertados nas escolas; escritores estes como os citados pelo
autor de Capão pecado na complementação de sua resposta sobre Madame Bovary, não
apresentada pelo material:

Folha - E que livro mudou sua vida?


Ferréz - Foi "Madame Bovary", de Flaubert. Eu tinha uns 15, 16 anos, já lia
muito gibi, literatura de cordel. O livro caiu na minha mão de uma forma
bem curiosa. Um amigo meu mandou a mãe escolher entre ele e o padrasto.
Ela escolheu o padrasto e o abandonou. No final de semana, a gente ia levar
comida para ele, que morava sozinho em um barraco. Uma das coisas que a
mãe dele deixou foi uma caixa de livros. Depois disso, descobri Paulo Lins,
João Antônio, Lima Barreto, Plínio Marcos. Tomei a pílula do "Matrix" e
nunca mais fui o mesmo. (sublinhado nosso) (FERRÉZ, 2005, s/p)93.

Para fechar a análise da macroestrutura de NP02, merece atenção uma das


“sugestões de projetos interdisciplinares” dadas ao Professor, projeto este transversal aos três
volumes. A partir da proposta de articulação das disciplinas de Literatura, História e
Gramática, sugere-se o tema “Escritoras brasileiras e a condição feminina no Brasil”, visando
discutir, entre outros aspectos, que “hoje em dia há muitas autoras famosas, mas que em
outros tempos a manifestação literária das mulheres sofreu limitações e entraves, em razão do
preconceito e da opressão” (AMARAL; FERREIRA; LEITE; ANTÔNIO, 2013 [Vol. 1 –
Apêndice: “Caderno do Professor”], p. 21). Na relação de “autoras menos conhecidas” do
século XIX apresentada por NP02, entre as quais os estudantes devem selecionar três para
uma pesquisa aprofundada sobre suas biografias e obras94, consta a indicação de Maria
Firmina dos Reis (1825-1917), apresentada como “maranhense e mulata, [que] teria sido a
primeira brasileira a publicar um romance: Úrsula (1859)” (ibid., p. 21). Como “ponto de
partida”, é dado o link do texto “Maria Firmina dos Reis e os primórdios da ficção afro-
brasileira”, de Eduardo de Assis Duarte. Embora o link disponibilizado pelo livro didático
esteja atualmente corrompido, é fácil encontrar o referido artigo na internet, o qual integra,

93
A entrevista à qual NP02 faz referência pode ser lida integralmente em:
<https://www1.folha.uol.com.br/fsp/folhatee/fm0606200515.htm>. Acesso em 04/03/2019. O trecho por nós
citado não constava no material, mas é, a nosso ver, imprescendível ao entedimento da experiência literária de
Ferréz.
94
Demais autoras listadas: Nísia Floresta (1810-1885); Maria Benedita Bormann (1852-1917); Narcisa Amália
(1852-1924); Júlia Lopes de Almeida (1862-1934).
176

inclusive, o acervo do portal “Literafro – O portal da literatura afro-brasileira”, da UFMG95.


Dessarte, interpretamos tanto o projeto de autoria feminina, no geral, quanto a rememoração
de Maria Firmina dos Reis, em particular, como positivos a uma educação literária
descolonizadora.

MICROESTRUTURA DA COLEÇÃO NP02

Revisitando o cânone: Quinhentismo e Romantismo (Indianismo e Condoreirismo) em


NP02

NP02 introduz o capítulo dedicado ao Quinhentismo (capítulo 6 do Volume 1) com


um excerto da Carta de Pero Vaz de Caminha. Em seguida, propõem-se apenas solicitações
analíticas pouco reflexivas, voltadas a questões de cunho linguístico, tais como perguntas
acerca do significado de determinadas palavras, exercícios de identificação de características
do português arcaico e de localização de termos anafóricos. Exemplos: “2. b) Dê um sinônimo
para o substantivo mareantes (terceiro parágrafo)”; “3. [...] Identifique no texto os termos a
que se referem os anafóricos destacados: [...]” (AMARAL; FERREIRA; LEITE; ANTÔNIO,
2013 [Vol. 1], p. 98). A intenção anunciada pela coleção é a de estabelecer uma relação
inicial com o estudo do galego-português desenvolvido nos capítulos anteriores. Por
conseguinte, predomina nas orientações específicas registradas no Manual do Professor o
anúncio de objetivos relacionados mais ao gênero “documento histórico” e à capacidade
leitora, como “desenvolver habilidades e estratégias de leitura” e “observar e interpretar
características discursivas de uma carta-documento” (AMARAL; FERREIRA; LEITE;
ANTÔNIO, 2013 [Vol. 1 – Apêndice: “Caderno do Professor”], p. 48), do que ao movimento
literário propriamente dito.
No decorrer do referido capítulo, observamos que NP02 coloca em prática no
Caderno do Aluno o objetivo de realizar, sobretudo, um “estudo interno da literatura”, tal
como anunciado na introdução do Manual do Professor, haja vista a reiteração do suposto teor
“informativo” e “descritivo” dos escritos do Descobrimento em detrimento de uma
abordagem mais crítica do contexto socio-histórico dessas produções. Observemos os
enquadradores e as solicitações das demais atividades de leitura da “Carta de Caminha”:

95
Disponível em < http://www.letras.ufmg.br/literafro/autoras/29-critica-de-autores-feminios/317-maria-
firmina-dos-reis-e-os-primordios-da-ficcao-afro-brasileira-critica>. Acesso em 30/09/2018.
177

A Carta de Pero Vaz de Caminha é um documento histórico, isto é, um


texto que serve aos historiadores para esclarecer fatos do passado. O valor de
um documento depende, entre outras coisas, da fidelidade e isenção com que
relata os acontecimentos.
1. A Carta é um documento oficial da administração do reino; como
escrivão, Caminha tinha a obrigatoriedade de prestar ao rei informações
claras e fidedignas. Encontre no texto um trecho que mostre a intenção do
autor de cumprir, bem como essa obrigação. [Respostas possíveis: “(...) não
deixarei de também eu dar minha conta disso a Vossa Alteza, fazendo como
melhor me for possível (...)”;“(...) creia que certamente nada porei aqui,
para embelezar nem para enfeiar, mais do que vi e me pareceu (...)”; “E
desta maneira dou aqui a Vossa Alteza conta do que nesta Vossa terra vi. E
se me alonguei um pouco, Ela me perdoe. Porque o desejo que tinha de Vos
tudo dizer, me fez pôr assim tudo pelo miúdo”].
2. Segundo alguns historiadores, Caminha considerava-se amigo do rei. A
Carta teria, além de seu caráter oficial, um caráter íntimo. Que passagem do
texto pode apoiar essa interpretação? Explique. [Resposta: O parágrafo 5.
Nele, Caminha pede um favor pessoal (“singular mercê”) ao rei: suspender
o degredo de seu genro, Jorge Osório].
3. Além da importância documental, que significado simbólico tem a Carta
para nós, brasileiros? [Resposta: Ela é considerada a “certidão de
nascimento” do Brasil, o documento inaugural da nossa história].
(AMARAL; FERREIRA; LEITE; ANTÔNIO, 2013 [Vol. 1], p. 99).

As ideias de “fidelidade e isenção com que relata os acontecimentos” e de


“informações claras e fidedignas” trazidas pelos enunciadores extratextuais, sem nenhuma
consideração acerca do contexto histórico ou da visão eurocêntrica que embasa relatos como
o de Caminha, afasta NP02 de uma abordagem pós-colonial das produções do Quinhetismo.
Nota-se, pois, que os elementos extratextuais presentes em seus enunciados inclinam-se,
quase que exclusivamente, a informações acerca do gênero textual “relato”, de modo amplo, e
não às particularidades de produção da literatura colonial. Nas páginas subsequentes, o livro
didático reafirma, a título de síntese, as manifestações literárias do período colonial como
“literatura informativa” (AMARAL; FERREIRA; LEITE; ANTÔNIO, 2013 [Vol. 1], p. 100),
atribuindo, pois, um caráter mais descritivo que ideológico a esses documentos.
Também os enquadradores, as solicitações e as respostas esperadas para os
exercícios de leitura do excerto de Tratado da terra do Brasil; História da Província de Santa
Cruz, do cronista colonial Pero de Magalhães Gândavo, mostram-se acríticos ao colonialismo:

1. O encontro entre portugueses e índios provoca um choque entre culturas.


Indique o parágrafo do texto que melhor exemplifica esse choque cultural.
[Resposta: O 4º parágrafo, que exprime a admiração e a incompreensão do
cronista diante da nudez dos índios].
178

2. Que grande contrassenso existe no primeiro parágrafo do texto de


Gândavo? [Resposta: No primeiro parágrafo do fragmento, ele agradece a
Deus pelo fato de as diversas nações indígenas habitantes do litoral serem
inimigas porque isso permitia o domínio português na região].
3. Comente a descrição que Pero de Magalhães Gândavo faz da língua dos
indígenas. [Resposta pessoal]. (AMARAL; FERREIRA; LEITE;
ANTÔNIO, 2013 [Vol. 1], p. 101).

A despeito de as atividades 1 e 2 abordarem temas complexos, como o choque


cultural ocorrido entre portugueses e indígenas (atividade 1) e a percepção dos portugueses de
que os indígenas eram seus inimigos e que, portanto, deveriam ser dominados (atividade 2), a
escolha de NP02 por perguntas restritas à identificação da resposta em determinados
parágrafos, esvazia o potencial crítico-reflexivo das questões levantadas. Finalmente, em
relação ao exercício 3, a brevidade do gabarito fornecido ao Professor, o qual assinala apenas
a possibilidade de “respostas pessoais”, revela pouco alinhamento com uma releitura pós-
colonial do cânone, de um lado, e com a temática indígena, de outro. A descrição a que se
refere o exercício é dotada de estereótipos e de preconceitos, de raiz eurocêntrica, que
justificariam um gabarito que mediasse e orientasse, mais detalhadamente, o trabalho de
condução de leituras a ser exercido pelos docentes; transcrevo o referido trecho: “A lingua
deste gentio toda pela Costa he, huma: carece de tres letras – scilicet, não se acha nella F, nem
L, nem R, cousa digna de espanto, porque assi não têm Fé, nem Lei, nem Rei; e desta maneira
vivem sem Justiça e desordenadamente” (AMARAL; FERREIRA; LEITE; ANTÔNIO, 2013
[Vol. 1], p. 101).
Embora haja nas orientações específicas presentes no Manual do Professor a
sugestão de assinalar aos alunos que “a impossibilidade de compreensão [por parte dos
portugueses] tem como consequência uma visão ingênua e preconceituosa – eurocêntrica –
dos costumes ‘pagãos’ dos indígenas” (AMARAL; FERREIRA; LEITE; ANTÔNIO, 2013
[Vol. 1 – Apêndice: “Caderno do Professor”], p. 48), nota-se uma falta de diálogo entre os
discursos e as propostas do Caderno do Aluno e as diretrizes extras fornecidas ao professor.
Tal quebra coesiva pode, a nosso ver, limitar o alcance das atividades de interpretação.
Mesmo que o professor atente-se à sugestão do material, e ainda que o potencial e os efeitos
da autonomia e do saber docente escapem totalmente ao escopo da nossa pesquisa, as
atividades e suas respostas pouco contribuem para um direcionamento que vá ao encontro do
objetivo de “interpretar significados ideológicos em documentos históricos” (ibidem), este
explicitamente marcado no Manual de NP02. Diferentemente da coleção PL01, por exemplo,
179

que, no próprio Caderno do Aluno, por meio de seus enquadradores textuais e das respostas
das atividades, chama a atenção para o tom fantasioso e para os interesses políticos e
econômicos subjacentes ao teor das cartas do Descobrimento, NP02 descreve, sem nenhuma
ressalva ou complemento, a “Carta de Caminha” aos alunos como “a certidão de nascimento
do Brasil”, por exemplo.
Como última análise do capítulo do Quinhentismo, comentamos as leituras
comparadas que, em NP02, englobam o contexto da colonização. Nas atividades finais da
seção, propõe-se a leitura conjunta da “Carta de Caminha” e do poema “Carta de Pero Vaz”
(1932), de Murilo Mendes (ibid., p. 103), cujos exercícios de interpretação obedecem, uma
vez mais, à lógica de “estudo interno da Literatura”, e, ao contrário das atividades anteriores,
não contam com sugestões de procedimento mais aprofundadas no Manual do Professor.
Observam-se, então, solicitações analíticas pouco reflexivas, visto que não se requer dos
estudantes uma interpretação que extrapole os conteúdos intratextuais do texto. Ilustram com
clareza esse aspecto as atividades 4 e 5, que transcrevemos a seguir. Se analisarmos as
respostas dadas ao Professor, percebemos que a mediação de leitura em NP02 acaba por ser
superficial e desprovida de uma efetiva articulação entre as ideias dos dois autores no que se
refere às narrativas coloniais:

4. Que recomendação Caminha faz ao rei em sua carta? [Resposta:


Recomenda que a maior preocupação do rei seja com a salvação das almas
dos indígenas].
5. E que recomendação o personagem Pero Vaz, do poema de Murilo
Mendes, faz ao rei? [Resposta: Recomenda que ele reforce a arca para
receber os lucros da exploração da nova terra]. (AMARAL; FERREIRA;
LEITE; ANTÔNIO, 2013 [Vol. 1], p. 104).

Os possíveis sentidos (históricos, sociais, políticos) da “salvação dos índios”,


presente em Caminha, em contraste aos dos “lucros da exploração”, mencionados na sátira de
Mendes, não integram as expectativas e os direcionamentos de leitura registrados pelos
autores do LD, visto que as ações requeridas aos alunos limitam-se ao movimento de
identificação dessas passagens, e não a um exercício de inferência, por exemplo. Além disso,
é correto afirmar que NP02 inclina-se a uma leitura concomitante e não a uma leitura
comparada, pois a intertextualidade, de fato, perde lugar para a interpretação isolada de cada
excerto. A ausência de enquadradores intertextuais, em uma subseção dedicada à leitura
comparada, serve de indicativo dessa tendência.
180

No capítulo 4, do Volume 3, a coleção volta a abordar paródias das cartas de


Caminha, com base, desta vez, no modo pelo qual o tema serviu de inspiração ao
Modernismo. Para tanto, compara-se um excerto das cartas do português a uma passagem de
Macunaíma (1928), de Mário de Andrade. Seguindo o mesmo modelo de atividades
empregado na seção dedicada ao Quinhentismo, a leitura desses textos permanece restrita aos
elementos textuais, ignorando aspectos extratextuais no que concerne à forma pela qual os
indígenas foram/são historicamente retratados. Os objetivos específicos descritos no Manual
do Professor expressam, novamente, uma inclinação ao uso do texto como pretexto para a
validação das escolas literárias, bem como a leituras intratextuais: “1. Explorar como os
escritores modernistas recontam a História do Brasil; 2. “Mostrar que, ao reescrever a Carta
de Caminha, Mario de Andrade se apropria de uma linguagem inaugural do Brasil [...]”
(AMARAL; FERREIRA; LEITE; ANTÔNIO, 2013 [Vol. 3 – Apêndice: “Caderno do
Professor”], p. 37).
Ao nos deslocarmos à análise do Romantismo no Brasil (Volume 2 – capítulos 2 e
3), nota-se que NP02 mantém para o Indianismo e para o Condoreirismo a mediação de
leitura verificada nos exercícios anteriores: atenção aos sentidos internos do texto, a seus
aspectos linguísticos e às características das escolas literárias, sem grandes relações ou
reflexões de viés extratextual. No primeiro caso, recorre-se, sobretudo, a textos de Gonçalves
Dias, na poesia, e de José de Alencar, na prosa. No segundo, desenvolve-se a leitura, também
de viés intratextual, de excertos de “O navio negreiro” (1868), de Castro Alves. De fato, no
Manual do Professor essas atividades são vinculadas a objetivos do tipo “reconhecer e
interpretar recursos retóricos utilizados no fragmento” (AMARAL; FERREIRA; LEITE;
ANTÔNIO, 2013 [Vol. 2 – Apêndice: “Caderno do Professor”], p. 38) e “sementar texto,
reconhecendo a progressão do entrecho lírico-dramático” (ibid., p. 36).
Se considerarmos apenas o Caderno do Aluno, com suas atividades e respostas,
nossa conclusão é a de que NP02 não se aproveita do Indianismo e do Condoreirismo para
construir uma ponte com as literaturas afro-brasileira e indígenas. Todavia, confirmando sua
tendência de situar os conteúdos das leis em projetos extraclasse indicados no Manual do
Professor, a coleção, nas orientações específicas concernentes ao Condoreirismo, propõe:

SUGESTÃO DE ATIVIDADES
Atividade interdisciplinar com História: pesquisa sobre os movimentos
negros atuais no Brasil. Há na internet muitos sites e farta documentação
181

sobre esses movimentos. Ao professor, recomenda-se a leitura da obra de


Antônio Riserio, A utopia brasileira e os movimentos negros (São Paulo:
Editora 34, 2007).
Poesia negra: elaboração, individual ou em grupo, de uma pequena
antologia comentada de poetas negros. Os alunos podem pesquisar na
internet e encontrar farto material para leitura e seleção. Alguns poetas:
Solano Trindade, Cristiane Sobral, Éle Semog, Esmeralda Ribeiro, Jônatas
Conceição da Silva, José Carlos Limeira, Marise Tietra. (AMARAL;
FERREIRA; LEITE; ANTÔNIO, 2013 [Vol. 2 – Apêndice: “Caderno do
Professor”], p. 36).

Essa última ilustração daquilo que classificamos como “quebra coesiva” em NP02,
visto que, contrariamente ao Manual do Professor, nada é apresentado sobre a literatura
negra/afro-brasileira no Caderno do Aluno, leva-nos a repensar os sentidos da categoria
localização e distribuição tangencial, que empregamos na análise do nível da macroestrutura
das coleções. Até aqui, tal categoria fez referência apenas à localização periférica dessas
literaturas quando presentes no Caderno do Aluno. Todavia, restringir o efetivo cumprimento
das leis às orientações específicas e extras elencadas no Manual do Professor parece-nos,
também, uma forma de tangenciamento, uma vez que não se alteram nem a clássica
disposição de conteúdos nem o clássico repertório dos livros didáticos de literatura96. Em uma
primeira leitura, concentrar os conteúdos das leis em tarefas “extraclasses” sugeridas apenas
no Manual do Professor pode acabar por consolidar um novo tipo de marginalização, e não
uma efetiva introdução, das produções indígenas, afro-brasileira e africanas no contexto
escolar.
Especificamente na subseção do Indianismo, uma atividade de leitura comparada
entre o poema “O canto do piaga” (1846), de Gonçalves Dias, e um texto da FUNAI
intitulado “O deslocamento da população” inova ao tratar, já no Caderno do Aluno, a questão
indígena para além de seu papel no Romantismo. Assim, questionam-se, no exercício, os
imaginários e os estereótipos da literatura romântica, de modo que os objetivos e sugestões de
leitura descritos no Manual do Professor alinham-se, de forma explícita, à realização de uma
leitura mais reflexiva: “2. Refletir sobre a situação dos indígenas brasileiros e a perda da

96
Essa restrição de conteúdos que atendam à diversidade cultural apenas ao Manual do Professor leva-nos a
concluir que seria interessante conjugar, futuramente, o nosso estudo documental a pesquisas etnográficas que
verificassem em que medida os docentes colocam em prática as sugestões extraclasse feitas pelos livros
didáticos. Reiteramos essa lacuna no sentido de motivar novas pesquisas. Na impossibilidade de realizarmos um
estudo de campo, deixamos algumas perguntas que, no momento, carecem de dados e de respostas: de que modo
e com que frequência as sugestões pedagógicas de recorte multicultural são trabalhadas pelos professores,
quando restritas ao Manual do Professor e acompanhadas do indicativo “extraclasse”?
182

identidade cultural”97; “3. Refletir sobre a idealização dos indígenas praticada por Gonçalves
Dias e pelos autores indianistas românticos”; “provocar uma discussão sobre a problemática
indígena” (AMARAL; FERREIRA; LEITE; ANTÔNIO, 2013 [Vol. 2 – Apêndice: “Caderno
do Professor”], p. 36). A seguir, transcrevemos a referida atividade:

1. O que o piaga descreve nas três primeiras estrofes do poema? Interprete as


imagens que ele emprega na descrição. [Resposta: O piaga descreve um
monstro que chega pelas ondas do mar. Esse monstro sustenta uma selva de
troncos e cipós, semelhantes aos das matas, mas tendo asas brancas, como
um bando de garças, no lugar das folhas. O monstro é a imagem do casco
de um navio; os troncos representam os mastros, os cipós, o cordame, e as
asas brancas, as velas. Essas imagens constituem uma alegoria da chegada
dos navios portugueses ao Brasil].
2. “Os povos que habitavam a costa leste, na maioria falantes de línguas do
Tronco Tupi, foram dizimados, dominados ou refugiaram-se nas terras
interioranas para evitar o contato”. Ajude seus colegas a escolher, para cada
trecho destacado nesse fragmento do texto da Funai, um verso do poema que
possa ser considerado a “premonição” do fato histórico. [Escolhas possíveis:
para foram dizimados: “Vem matar vossos bravos guerreiros”, “Vendo os
vossos quão poucos serão.”; para dominados: “Vem quebrar-vos a
escravos”; para refugiaram-se nas terras interioranas: “Fugireis
procurando um asilo,/ Triste asilo por ínvio sertão”].
3. Pode-se dizer que, em “O canto do piaga”, o indígena é idealizado como
em outras obras românticas, inclusive a de Gonçalves Dias? [Resposta: No
Romantismo, os indígenas são idealizados como grandes guerreiros que,
vivendo em harmonia com a natureza, possuem uma grande inteireza moral
e uma força física imbatível. Com a profecia dramática do piaga, Gonçalves
Dias faz uma denúncia do holocausto que ocorreu ao longo da colonização
portuguesa. O indígena, portanto, está mais próximo da realidade, é visto
como um povo mais fraco e mesmo impotente diante do colonizador branco.
A resposta, ainda assim, pode ser afirmativa, se considerar que o contato
com a civilização teria quebrado aquela harmonia com a natureza, fator da
força física e moral do indígena na idealização romântica]. (AMARAL;
FERREIRA; LEITE; ANTÔNIO, 2013 [Vol. 2], p. 49).

No que tange a essa atividade, não identificamos a quebra coesiva à qual fizemos
menção anteriormente, pois, neste caso, a respectiva “sugestão de atividade interdisciplinar [e
extraclasse]” do Manual do Professor funciona como uma continuidade do conteúdo presente
no Caderno do Aluno. Inclusive, sugere-se no material que “em parceria com professores de
outros componentes curriculares (História, Geografia, Matemática, Artes), realizar pesquisa
sobre a situação dos indígenas brasileiros (contingente populacional, gráficos, distribuição
territorial, mapas, situação cultural, social e jurídica, tradições, reservas indígenas, ações

97
Os significados do que seria uma “perda de identidade” não ficam muito claros na coleção.
183

governamentais etc.). O trabalho pode ser ilustrado com fragmentos de poemas indianistas”
(AMARAL; FERREIRA; LEITE; ANTÔNIO, 2013 [Vol. 2 – Apêndice: “Caderno do
Professor”], p. 36).
Reestruturando o cânone I: literaturas africanas e literatura negra/afro-brasileira em
NP02

A localização tangencial dos conteúdos referentes às leis 10.639/03 e 11.645/08 é


marcada pela apresentação de apenas um fragmento do romance Terra Sonâmbula (1992), do
escritor Mia Couto, na subseção dedicada às literaturas contemporâneas de língua portuguesa
(terceiro volume da coleção) e um excerto do poema “Itinerário de Pasárgada” (1946), do
cabo-verdiano Osvaldo Alcântara (Baltasar Lopes), entre os exercícios de fechamento do
mesmo capítulo. Ainda que haja, como veremos adiante, atividades de leitura comparada 
que buscam relacionar Mia Couto a Guimarães Rosa e Osvaldo Alcântara a Manual Bandeira
, elas não se dão, em termos de macroestrutura, por meio de uma localização articulada,
visto que se concentram em seção única; ainda sim, esses exercícios acabam por atender, em
alguma medida, ao trabalho com a intertextualidade positivamente destacado no Manual do
Professor (AMARAL; FERREIRA; LEITE; ANTÔNIO, 2013 [Vol. 1 – Apêndice: “Caderno
do Professor”], p. 8), mas sem esboçar interesse pela questão da diversidade ou pelo
cumprimento das leis. Ademais, para além do baixo número de autores africanos no material,
a discrepância observada entre a abordagem deste recorte e dos recortes de origem portuguesa
configura-se outro fator favorável à classificação da localização desses conteúdos como sendo
tangencial, e não restrita.
As literaturas africanas e a literatura portuguesa contemporânea codividem um
mesmo capítulo em NP02: “Tendências contemporâneas da literatura de expressão
portuguesa”. Contrariando o título, que remete, a priori, às literaturas de língua portuguesa de
diferentes países, o que incluiria o Brasil, “literatura de expressão portuguesa” acaba por
figurar quase que como sinônimo de “literatura portuguesa”, de modo que das 14 páginas
destinadas à leitura de textos contemporâneos, três dão espaço a africanos, no caso a um
africano, Mia Couto. Entre as nove páginas restantes, diferentes subseções atendem a
diferentes vertentes da literatura portuguesa do século XX e XXI. A literatura brasileira
contemporânea é debatida, então, em um capítulo exclusivo, sob o título “Tendências
contemporâneas da literatura brasileira”, o que nos fornece indícios de que, na interpretação
de NP02, “expressão portuguesa” remeta fundamentalmente a Portugal, sendo as literaturas
184

africanas uma espécie de apêndice dessas produções. No Manual do Professor, essa impressão
é confirmada, de certa forma, pela descrição dos objetivos da leitura de abertura do capítulo:
“1. Introduzir os alunos no estudo da produção literária portuguesa contemporânea [...]”
(AMARAL; FERREIRA; LEITE; ANTÔNIO, 2013 [Vol. 3 – Apêndice: “Caderno do
Professor”], p. 55).
Além disso, a escassez de repertório de matriz africana é acompanhada da escassez
de enquadradores discursivos extratextuais. Destoando de parte dos livros didáticos que
compõem nosso corpus, bem como do padrão editorial de outros textos introdutórios
presentes na própria coleção, NP02 não oferece enquadradores extratextuais que façam a
mediação entre as leituras a serem realizadas pelos estudantes e contexto cultural e social dos
autores e das obras de países africanos. Nos enquadradores que abrem o capítulo, dão-se
apenas informações bastante breves, como “[essas literaturas] desenvolveram-se a partir da
década de 1940 e vêm adquirindo maturidade ao longo desse período e em seguida ao
processo de descolonização, com a Revolução dos Cravos, em 1974” (AMARAL;
FERREIRA; LEITE; ANTÔNIO, 2013 [Vol. 3], p. 155). Ademais, só se faz referência a
todos os países africanos de língua oficial portuguesa, por exemplo, no Box que encerra e
resume o capítulo, por meio de um discurso bastante vago em termos de fundamentação
teórico-literária:

[...] falamos da projeção cada vez maior que a literatura africana de


expressão portuguesa vem ganhando internacionalmente [prêmio recebido
por Mia Couto pelo júri da Feira Internacional do Livro do Zumbabwe].
Dialogar com nossas raízes é uma boa pedida. Ler o que se escreve em
português contemporaneamente – no Brasil, em Portugal, em Moçambique,
Angola, São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau ou Cabo Verde – é para nós
uma forma de autoconhecimento, de depuração da sensibilidade, do intelecto
e principalmente de nossa humanidade. (colchetes nossos) (ibid., p. 157)

Essa superficialidade no tratamento dado à introdução das literaturas africanas pode


ser observada também nos enquadradores que acompanham as atividades, como vemos na
terceira e última questão sobre o texto de Mia Couto:

3. Considerando que Mia Couto é um escritor de Moçambique, responda:


a) Que frase do texto mostra importância vital da notícia – a independência
da Moçambique – que o velho Taímo dá à família? Que fato confirma essa
importância? [Resposta: “Mas havia na voz do velho uma emoção tão funda,
parecia estar ali a consumação de todos seus sonhos.”. O que confirma a
185

importância da notícia é o fato de o velho nomear o filho que está para


nascer com a data de independência.]
b) Interprete a metáfora com a qual o autor faz uma crítica poética à guerra,
no desfecho do texto. [Resposta: Ao associar a guerra a uma cobra “que
usa nossos próprios dentes para morder”, o narrador alude poeticamente o
fato de que nós é que somos os criadores dessa ‘cobra’, a guerra.] (ibid., p.
156)

Nota-se que a referência a Moçambique presente nos enquadradores, da forma como


é realizada, pouca ou nenhuma articulação estabelece com as solicitações discursivas, haja
vista 3a corresponder a uma solicitação analítica de identificação, dissociada de reflexões que
demandem um saber acerca da história de Moçambique. Também a resposta esperada em 3b
atesta essa superficialidade, pois simplifica a discussão sobre quem seriam os “criadores da
guerra”, no caso, da guerra de Moçambique, haja vista o enquadramento de leitura
anteriormente discutido. Não negamos a validade de tais atividades, mas questionamos em
que medida a falta de enquadradores discursivos mais críticos e detalhados pode culminar em
leituras superficiais ou dotadas de lacunas.
Um aspecto interessante dessa subseção de literaturas africanas é que sua localização
tangencial, e não articulada, não impede a presença de enquadradores intertextuais. O
primeiro exercício sobre o fragmento de Mia Couto (1) propõe uma leitura de viés intertextual
que é posteriormente desenvolvida por meio de uma breve proposta de comparação entre seu
texto e o trecho de uma fala de Guimarães Rosa98 sobre as narrativas dos “homens do sertão”
(2):

1. Entre os escritores brasileiros modernistas, qual se aproxima do fragmento


de Mia Couto? Explique. [Resposta: Trata-se de Guimarães Rosa, pois
encontramos semelhanças entre o fragmento de Mia Couto e os textos desse
escritor. A linguagem oralizada e poética, encontrada em trechos como
“Nesse entretempo, ele nos chamava para escutarmos seus imprevistos
improvisos” e “Leito dele era o puro chão, lugar onde a chuva também
gosta de deitar”, exemplificam essa proximidade.]
[...]
2. Nos dois textos, quem são os contadores de estórias, para quem elas são
contadas e qual é sua função na vida dos indivíduos? Escolha um pequeno
trecho de cada texto para ilustrar sua resposta. [Resposta: Nos dois textos, os
contadores de estórias são os velhos; elas são contadas para as crianças,
que assim recebem “esse dom para toda a vida”. No texto de Mia Couto, as

98
Fonte do fragmento: ROSA, João Guimarães. Um diálogo de Günter Lorenz e Guimarães Rosa. Arte em
Revista, São Paulo: Kairós, ano 1, n. 2, p. 8, maio/ago. 1979. Entrevista concedida a Günter Lorenz.
186

estórias são “verdades reveladas”, que dão sentido à vida.] (AMARAL;


FERREIRA; LEITE; ANTÔNIO, 2013 [Vol. 3], p. 156).

A despeito de se tratar de dois exercícios de viés intertextual, chama-nos a atenção


na atividade 2 a intenção de se comparar um texto não ficcional (declaração de Rosa sobre
narradores/narração) à produção ficcional de Mia Couto. A atividade 1 revela-se, assim, mais
convencional no que tange ao intuito de marcar a intertextualidade, dado que mobiliza o
repertório, também literário, de capítulos anteriores da coleção. Nas “sugestões de
procedimento” contidas no Manual do Professor, sugere-se que o professor conduza as
atividades “de modo a ‘seduzir’ os alunos para a descoberta desse ‘novo mundo’, que amplia
e enrique o estudos das literaturas em língua portuguesa” (AMARAL; FERREIRA; LEITE;
ANTÔNIO, 2013 [Vol. 3 – Apêndice: “Caderno do Professor”], p. 55), sem disponibilizar, no
entanto, orientações precisas e objetivas de como fazê-lo, com exceção da recordação de que
há, entre as oito atividades de fechamento do capítulo, uma que relaciona um fragmento do
poema “Vou-me embora para Pasárgada” (1930), de Manuel Bandeira, a outro do cabo-
verdiano Osvaldo Alcântara (Baltasar Lopes), “Itinerário de Pasárgada” (1946).
Repetindo a proposta de análise que já vimos em PL01, NP02 questiona o
significado de Pasárgada nos dois contextos, bem como reitera, por meio das demais questões,
a relação de diálogo entre a literatura brasileira e a cabo-verdiana, por meio, mais uma vez, de
enquadradores bastante breves:

6. Leia com atenção os fragmentos a seguir, um de Manuel Bandeira, outro


de Osvaldo Alcântara, poeta de Cabo Verde, para responder aos itens
propostos.
[...]
a) Considerando que o segundo fragmento foi escrito depois do primeiro,
explique o tipo de relação. [Resposta: Trata-se de uma relação de
intertextualidade; o segundo fragmento cita elementos do primeiro.]
b) Qual é o significado de Pasárgada no fragmento 1? E no fragmento 2?
[Resposta: No fragmento 1, Pasárgada é um espaço utópico, de realização
dos desejos. No fragmento 2, o poeta sente saudade provavelmente dessa
mesma utopia, como se vê no verso “é um veneno gostoso dentro do meu
coração”.]
c) O que a proximidade entre os textos indica a respeito das literaturas
brasileira e cabo-verdiana? [Resposta: A proximidade entre os textos indica
que a literatura brasileira, no caso específico do poeta Manuel Bandeira,
influenciou a literatura cabo-verdiana.] (AMARAL; FERREIRA; LEITE;
ANTÔNIO, 2013 [Vol. 3], p. 160).
187

Novamente, as “sugestões de procedimento” dadas ao professor mostram-se vagas ao


não detalharem, de fato, como o docente pode proceder nem o porquê de se reivindicar
“respeito” a essas literaturas: “sugerimos que o professor sensibilize e entusiasme os alunos,
no sentido de mostrar a eles que essa vertente literária da África, que se expressa em língua
portuguesa, possui muitas afinidades conosco e, portanto, merece e solicita nosso respeito e
interesse” (AMARAL; FERREIRA; LEITE; ANTÔNIO, 2013 [Vol. 3 – Apêndice: “Caderno
do Professor”], p. 55). Ao contrastarmos o teor destas sugestões ao conteúdo das “sugestões
de procedimento” voltadas aos textos de origem portuguesa do mesmo capítulo, verifica-se,
por parte de NP02, um discurso mais consistente e fundamentado para orientar a leitura das
produções europeias. Selecionamos dois exemplos:

[Leitura de Nome de guerra, de Almada Negreiros, e O homem disfarçado,


de Fernando Namora] (...). Dessa forma, ajude-os a concluir que a leitura dos
textos mostra a passagem que houve, em Portugal, do Orfismo e do
Presencismo – tendências marcadas por uma linguagem experimental – para
o Neorrealismo – tendência que retoma o Realismo para representar a
realidade, denunciando-a em suas desigualdades e contradições. (ibid., p.
56).
[Leitura de Levantado do chão, de José Saramago] (...) Levar o aluno a
reconhecer que a obra de Saramago representa a evolução estética
significativa em relação ao início do Neorrealismo português, que se
caracterizava pelo caráter documental e pelo esquematismo na construção de
personagens (...)]). (ibid., p. 57).

Para encerrar a análise dos conteúdos relacionados à África de língua oficial


portuguesa em NP02, registramos que a baixa ocorrência de autores desses países é agravada
pelo fato de o material optar por abordar, no mesmo capítulo, a questão da guerra colonial
somente a partir de “escritores [portugueses] que tematizaram a Guerra Colonial”
(AMARAL; FERREIRA; LEITE; ANTÔNIO, 2013 [Vol. 3], p. 152). Desconsiderando as
narrativas africanas sobre o tema, afirma-se que “outra tendência significativa da prosa
contemporânea portuguesa é a presença de escritores [como Lobo Antunes, Lídia Jorge e
Helder Macedo] cuja ficção se nutre da violência da Guerra Colonial” (ibidem)99. Em diálogo
com as “opções descoloniais” discutidas em nosso capítulo inicial, não negamos a
importância das obras e dos autores escolhidos por NP02, mas ressaltamos que a temática da

99
Obras dadas como exemplo de tal tendência: O cus de Judas (1979) e Não entres tão depressa nessa noite
escura (2000), de António Lobo Antunes; A costa dos murmúrios (1988) e O vento assobiando nas gruas
(2002), de Lídia Jorge; Partes de África (1992), de Helder Macedo.
188

colonização mostra-se sempre produtiva à articulação de produções não europeias aos


materiais e, portanto, a um consistente cumprimento dos pressupostos das leis 10.639/2003 e
11.645/2008. Ademais, a falha do livro didático em permanecer restrito ao universo ficcional
português agrava-se se considerarmos a ausência de relação entre a discussão textual e a
fotografia do líder moçambicano Samora Machel que ilustra a subseção (vide a seguir). Tem-
se, assim, igualmente, um aproveitamento iconográfico pouco crítico, visto que nada é
informado a respeito de Moçambique e de sua guerra de independência na apresentação das
obras dos supracitados escritores portugueses.

(AMARAL; FERREIRA; LEITE; ANTÔNIO, 2013 [Vol. 3], p. 152).

Em relação às produções afro-brasileiras, também em NP02 não é dado destaque à


literatura negra em nenhum dos volumes, bem como não há menções a nenhuma vertente do
Teatro Negro, ainda que, seja importante registrar, a obra de Hermilo Borba Filho seja
descrita como sendo articulada à discussão do “racismo ‘de classe’” (AMARAL; FERREIRA;
LEITE; ANTÔNIO, 2013 [Vol. 3], p. 175). Dessarte, propõe-se uma breve relação entre o
teatro e temática racial, mas sem chegar, ainda, à autoria negra.
Por fim, a título de registro, cabe mencionar que no eixo de Gramática do Volume 1,
no fechamento do capítulo “Noções de variações linguísticas”, propõe-se uma pesquisa
sistematizada sobre “a língua portuguesa no mundo”, envolvendo os oito países falantes de
português, a qual, entre vários aspectos (geográficos, sociais), chama a atenção para as
“manifestações artístico-culturais” e para as eventuais relações históricas e/ou culturais
estabelecidas por esses países com o Brasil (AMARAL; FERREIRA; LEITE; ANTÔNIO,
189

2013 [Vol. 1], p. 198). Embora não se configure uma atividade de leitura comparada
propriamente dita, a atividade em questão é a que mais se aproxima da abordagem
comparativista.

Reestruturando o cânone II: literaturas indígenas em NP02

Não encontramos textos de autores indígenas nos capítulos de literatura do NP02. No


Indianismo faz-se, apenas, uma articulação mínima dos textos românticos à problemática
indígena na contemporaneidade. Contudo, uma ocorrência por nós observada no eixo de
“redação e leitura” (Vol. 1) merece destaque. Um dos textos de abertura/ textos motivadores
do capítulo “O mundo narrado”, voltado, portanto, ao estudo do tipo textual narrativo, refere-
se a um mito dos indígenas Caiapós (“O buraco no céu”) (AMARAL; FERREIRA; LEITE;
ANTÔNIO, 2013 [Vol. 1], p. 377). Embora a referência bibliográfica do texto sugira se tratar
da recolha de narrativas orais feita por um antropólogo (LUKESCH, Anton), e não de um
texto assinado por indígenas, consideramos que o fragmento se mostra adequado ao
atendimento da lei 11.645/08, ainda mais ao se ter em vista a complexidade da autoria
literária indígena, dado que grande parte das estórias desses povos advém de relatos da
tradição oral, não apresentando, com frequência, autor único e específico, com exceção dos
casos em que os indígenas assumem-se, explicitamente, como escritores literários. Com base
nessa premissa e na ideia de que a revisão do cânone passa, precisamente, pela introdução do
falar “do índio” em detrimento do “falar sobre o índio”  e estando, pois, a nosso ver, as
narrativas coletadas/transcritas por pesquisadores (antropólogos, etnógrafos) inscritas no
primeiro caso , incluímos o fragmento em questão na lista de conteúdos de NP02, elencadas
na Tabela 6.
Como último registro, vale mencionar que há também no eixo “redação e leitura” do
Volume 3, desta vez direcionado ao estudo do tipo textual descritivo, um breve excerto da
carta enviada pelo líder indígena norte-americano Seathl, do povo suquamish (Noroeste dos
EUA), ao presidente Franklin Pierce, em 1854 (AMARAL; FERREIRA; LEITE; ANTÔNIO,
2013 [Vol. 3], p. 328).
190

A título de retomada e de síntese: NP02 e o repertório das leis 10.639/03 e 11.645/08


(produções de autoria indígena, negra/afrodescendente e/ou africana, para além do
cânone escolar)

NP02 REPERTÓRIO LOCALIZAÇÃO


VOLUME 1 Mito “O buraco no céu”, dos índios Seção “Redação e leitura”,
Caiapós (retirado de LUKESCH, 1969). Capítulo: “O mundo narrado”.
Seção “Literatura”, Capítulo 9:
“Tendências contemporâneas
Romance Terra Sonâmbula (1992), de da literatura de expressão
Mia Couto (Moçambique). portuguesa” (subseção “As
literaturas africanas de
VOLUME 3 expressão portuguesa”).
Seção “Literatura”, Capítulo 9:
Poema “Itinerário de Pasárgada” (1946), “Tendências contemporâneas
de Osvaldo Alcântara (Baltasar Lopes) da literatura de expressão
(Cabo Verde). portuguesa” (subseção
“Atividades”).
Tabela 6. Relação de textos e autores abordados em NP02.
191

4.1.3. Português – Contexto, Interlocução e Sentido (Moderna) – 3ª coleção


do PNLD 2015 em número de distribuições

ABAURRE, Maria Luiza M.; ABAURRE, Maria Bernadete M.; PONTARA, Marcela.
Português – Contexto, Interlocução e Sentido (Livro do Professor), 2ª ed., Volumes 1, 2 e
3, São Paulo: Moderna, 2013.

SIGLA: PCIS03

Na resenha bastante positiva do Guia do PNLD 2015 sobre PCIS03, destaca-se a


bem delimitada divisão por eixos seguida pelo material, a saber, os eixos de “Literatura”, de
“Gramática” e “Produção de texto”. A respeito do primeiro, dá-se ênfase ao fato de a coleção
optar por “tratar a literatura como um discurso, o que implica situá-la em seu contexto sócio-
histórico, político e cultural, considerar seus agentes, tomá-la como linguagem que manifesta
a produção artística de determinada época, em diálogo com outras formas de arte” (BRASIL-
MEC/SEB, 2014b, p. 28); a “perspectiva discursiva” adotada pela obra, neste e nos demais
eixos, é apontada, inclusive, como ponte forte da coleção. Segundo o Guia, tal perspectiva faz
com que, no eixo literatura, as características estéticas dos diferentes períodos não sejam
vistas como “casuais ou arbitrárias” (ibid., p. 31). No desenvolvimento de nossa análise, é
possível perceber algumas implicações desse fundamento teórico de PCIS03 nas atividades
relativas ao Quinhentismo, por exemplo. O fato de as produções artístico-literárias serem
encaradas como discursos culminou, neste caso, em exercícios de interpretação bastante
atentos a aspectos ideológicos das narrativas do Descobrimento, isto é, à relação estabelecida
entre as visões e os valores de mundo dos agentes dos discursos e o teor daquilo que é
narrado, o que vai ao encontro da contestação da existência de uma história única sobre a
colonização.
Um aspecto particular a essa coleção, e igualmente mencionado pelo Guia, é o
diálogo estabelecido entre os pressupostos teórico-metodológicos apresentados no Manual do
Professor e a matriz de referência do ENEM 2009. Ressalta-se também que a diversidade de
gêneros, bem como a gama de informações complementares presentes em PCIS03 podem
contribuir para uma “formação escolar e cidadã” (BRASIL-MEC/SEB, 2014b, p. 30). Por
outro lado, a “fragmentação de inúmeros textos literários da coleção” (p. 29) é tida como um
ponto fraco de PCIS03. Corroborando esta afirmação, notamos que a coleção prioriza mais a
quantidade e a variedade do que a extensão dos excertos; no geral, opta-se por dispor breves
fragmentos de vários autores, e não um número reduzido de textos mais completos.
192

O guia também destaca, inicialmente, que a coleção organiza-se “nos moldes de um


compêndio” (p. 28), ou seja: diferentemente dos livros que analisamos anteriormente, os quais
atendem ao modelo dos “manuais”  que se organizam “basicamente como uma sequência
de ‘passos’ e de atividades”, e cujas seções ou unidades correspondem, “geralmente, a uma
aula; ou, com mais frequência, a uma sequência de aulas” (BRASIL-MEC/SEB, 2014b, p.
17) , PCIS03, na condição de “compêndio”, deixa a cargo do docente “a ordenação e o
tratamento didático efetivo a ser dado aos objetos de ensino propostos”, ofertando, assim,
“exemplos e/ou modelos, a serem replicados e adaptados” (ibid., p. 16). Em termos práticos,
verificamos que este livro didático difere-se de grande parte das obras do PNLD 2015 por se
mostrar mais descritivo-transmissivo, por investir, com um pouco mais de veemência, na
exposição de exemplos e de textos explicativos que os demais.
A respeito do projeto editorial da coleção, nota-se que dos 80 capítulos que
compõem os três volumes, 61 dividem-se entre o eixo literário e o eixo linguístico (sendo 31
dedicados do primeiro e 30 voltados ao segundo), havendo, assim, um menor número de
seções para o eixo escrita, que conta com 19 capítulos. Cabe esclarecer que o eixo literário
soma um capítulo a mais que o de gramática devido à existência de uma “seção especial”
dedicada às literaturas africanas. Em relação ao perfil de suas três autoras, apresentado nas
páginas de abertura de cada um dos volumes de PCIS03, destaca-se como ponto comum a
graduação em Letras em universidades da região sudeste (UNICAMP, UFES e UNESP) e a
atuação em bancas de correção de exames vestibulares (UNICAMP e UNESP). Maria Luiza
M. Abaurre e Maria Bernadete M. Abaurre, para além de terem exercido cargos de
consultoria (em Língua Portuguesa) junto ao Enem/Inesp/MEC  o que explica, talvez, o
lugar ocupado pelo matriz do Enem no Manual do Professor , são mestras, respectivamente,
em Teoria Literária e em Linguística, ambas pela UNICAMP, sendo a segunda também
doutora em Filosofia pela Universidade Estadual de New York – Buffalo e professora titular
do Departamento de Linguística do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da UNICAMP.
Por fim, Marcela Pontara, terceira autora da coleção, é professora e assessora de escolas da
rede particular de ensino, tal qual Maria Luiza M. Abaurre, que também atua como
coordenadora de uma escola particular.
193

MACROESTRUTURA DA COLEÇÃO PCIS03

O Manual do Professor de PCIS03 é apresentado em um apêndice, e nele constam


tanto os pressupostos teórico-metodológicos da coleção quanto o gabarito das atividades
propostas aos alunos. Eventualmente, inserem-se, para o professor, diretrizes complementares
ao lado dos textos e das atividades que integram a versão do aluno. Nesses casos, trata-se
mais de orientações de mediação do trabalho a ser conduzido pelo docente, e não da relação
de respostas esperadas, o que figura, a nosso ver, um ponto forte da coleção, conforme
discutimos no desenrolar da análise.
Na apresentação do eixo literário, o material aborda a literatura “como paixão” e
“como discurso” (ABAURRE; ABAURRE; PONTARA, 2013 [Vol. 1 – Apêndice: “Guia de
Recursos”], 2013, pp. 5-6). No primeiro caso, reitera-se, entre outros aspectos afins, a questão
da fruição e do lúdico que caracterizam o ato de ler; no segundo, a literatura é admitida como
um “uso da língua em um contexto específico” (p. 6), motivo pelo qual PCIS03 aborda, com
muita frequência, os contextos de produção e de recepção dos textos literários para além dos
limites dos debates clássicos sobre as escolas literárias. A despeito de a localização dos
conteúdos das leis realizar-se por meio de uma localização e distribuição restrita, anuncia-se
no Manual do Professor a seção “interações”, responsável por dar visibilidade a eventuais
diálogos firmados entre autores e textos “de diferentes tempos e culturas” (ibid., p. 10).
Alguns documentos basilares da educação básica (LDB, PCNs etc.) são recordados
ao se discutir o trabalho com competências e habilidades proposto pela coleção, sem se fazer
menção, no entanto, às especificidades das leis 10.639/2003 e 11.645/2008. Contudo, o tema
da diversidade cultural ganha espaço ao longo da apresentação que PCIS03 faz da matriz de
referência do Enem 2009, uma vez que a Competência 4 da área de Linguagens contempla,
segundo o Manual, a operação de “[reconhecer] a importância da diversidade na definição de
identidade de grupos sociais e éticos [sic] (H14)” (ABAURRE; ABAURRE; PONTARA,
2013 [Vol. 1 – Apêndice: “Guia de Recursos”], p. 47).
Se comparado às coleções anteriores, o Manual de PCIS03 não é tão produtivo para
explorarmos de que modo a coleção assume ou nega a pluralidade cultural no ensino de
literatura. Ocorre, no entanto, que suas instruções específicas e seus gabaritos, elencados de
capítulo em capítulo, são, no geral, mais dotados de detalhamento do que os de outras
coleções. É por essa razão que o teor dos subsídios dados aos professores no que engloba
temas e textos caros aos conteúdos prescritos pelas leis fica mais evidente na análise do nível
194

micro, em que conjugamos a análise dos textos e das atividades do Caderno do Aluno às
respostas e orientações disponibilizadas ao professor.

MICROESTRUTURA DA COLEÇÃO PCIS03

Revisitando o cânone: Quinhentismo e Romantismo (Indianismo e Condoreirismo) em


PCIS03

O capítulo destinado ao Quinhentismo (capítulo 9 do volume 1) leva o título de


“Primeiras visões do Brasil” e apresenta como primeiro objetivo de seção a finalidade de
tornar o aluno capaz de “explicar o que foi o projeto colonial português” (ABAURRE;
ABAURRE; PONTARA, 2013 [Vol. 1], p. 108). Mantendo o padrão da coleção, fornece-se
mais espaço a enquadradores discursos que a textos literários e a atividades; trata-se, assim,
de um livro didático veementemente descritivo-expositivo, com mais textos
explicativos/mediadores e pequenos excertos do que atividades.
De modo geral, a obra aborda a produção quinhentista de forma crítica, chamando a
atenção o contexto socio-histórico de dominação que sustenta tais narrativas. Observemos a
primeira atividade do capítulo (i), direcionada à leitura do mapa (imagem) Terra Brasilis, do
século XVI100, bem como dois excertos de instruções complementares apresentados ao
professor (ii e iii):

(i) 1. A imagem de abertura reproduz um mapa das terras brasileiras feito no


século XVI, pouco tempo depois da chegada de Pedro Álvares Cabral. Que
elementos nativos os autores acharam importante registrar?
2. Observe os indígenas. Que atividades eles realizam?
 O fato de serem retratados realizando essas atividades revela o modo
como eram vistos pelos europeus. Explique como pode ser caracterizado
esse olhar europeu para os indígenas. (ABAURRE; ABAURRE;
PONTARA, 2013 [Vol. 1], p. 109). [Resposta: (...) Os indígenas aparecem
servindo aos interesses dos europeus (cortando e transportando pau-
brasil). Além disso, são retratados em posições semelhantes às dos animais
(há um macaco e um índio andando de forma semelhante no mapa). Os
caçadores revelam a feição mais “exótica” associada aos nativos
brasileiros: estão adornados com cocares e mantos de penas coloridas,
indumentária pouco prática para caçadas]. (destaque nosso) (ABAURRE;
ABAURRE; PONTARA, 2013 [Vol. 1 – Apêndice: “Guia de Recursos”], p.
73).

(ii) Chamar a atenção dos alunos para o fato de alguns índios terem sido
representados com cocares e mantos de penas coloridas. Geralmente, esse
tipo de adorno é utilizado na prática de rituais, não no momento da caçada.
100
A quem possa interessar, o mapa em questão pode ser facilmente encontrado nos sites de busca da internet.
195

Além disso, é bom lembrar que os autores do mapa basearam a sua


representação nos relatos dos viajantes, porque nenhum deles veio à
América ou teve qualquer contato com os índios que foram levados às cortes
europeias no século XVI. Nesses relatos, há uma referência constante à
nudez dos índios. A imagem feita, portanto, é bastante reveladora de
como os europeus imaginavam os nativos do Novo Mundo. (destaque
nosso) (ABAURRE; ABAURRE; PONTARA, 2013 [Vol. 1], p. 109).

(iii) [indicação do filme A missão (1986), de Rolland Joffé] [...] Nosso


objetivo, ao sugerir que os alunos assistam a esse filme, é permitir a
discussão do processo de aculturação (e consequentemente de destruição)
promovido nos povos indígenas durante a colonização do Brasil. (ibid., p.
115).

As atividades (i) e (ii) parecem atender ao objetivo de “identificar e compreender


como se articulam os agentes do discurso no período” (ABAURRE; ABAURRE; PONTARA,
2013 [Vol. 1], p. 108), igualmente listado na abertura do capítulo, na medida em que chamam
a atenção para a intencionalidade discursiva dos relatos do Descobrimento e enfatizam a
questão do imaginário criado em torno das culturas indígenas. Já a instrução pedagógica
trazida no excerto (iii) evidencia o lugar reservado também ao debate da consequente
violência simbólica sofrida pelos indígenas. Na leitura das cartas de Caminha, realizada no
fechamento da seção, a ideia de “aculturação” é retomada e aprofundada, reforçando a relação
entre discurso e poder:

2. Releia.
“E imprimir-se-á facilmente neles todos e qualquer cunho que lhes quiserem
dar, uma vez que Nosso Senhor lhes deu bons corpos e bons rostos, como a
homens bons.”
a) O trecho destacado revela os princípios que nortearam a colonização
portuguesa. Explique por quê. (ABAURRE; ABAURRE; PONTARA, 2013
[Vol. 1], p. 116). [Resposta: O trecho destacado deixa claro que, na visão do
escrivão português, é muito natural impor os valores da civilização
europeia aos povos nativos encontrados na terra nova. Foi exatamente isso
que aconteceu no Brasil: índios foram submetidos aos valores culturais e
religiosos da metrópole, tendo sua cultura, comportamento e religião
desconsiderados pelos colonizadores] (destaque nosso) (ABAURRE;
ABAURRE; PONTARA, 2013 [Vol. 1 – Apêndice: “Guia de Recursos”], p.
74).
[...]
3. Que elementos do texto indicam a visão de um homem europeu que
desconsidera a cultura indígena?
 É possível explicar o processo de aculturação dos índios a partir dessa
visão de mundo do colonizador? Por quê? (ABAURRE; ABAURRE;
PONTARA, 2013 [Vol. 1], p. 117).
196

[Resposta: (...) Como em todo processo de aculturação, o que determina a


eliminação de todos os traços da cultura colonizada é a visão de
superioridade daquele que coloniza. Ora, é isso que fica evidente nesse
trecho da Carta. Para Caminha, os índios representavam um povo dócil e
ingênuo que deveria ser salvo. (...)] (destaque nosso) (ABAURRE;
ABAURRE; PONTARA, 2013 [Vol. 1 – Apêndice: “Guia de Recursos”], p.
74).

É interessante notar que a coleção investe, preponderantemente, em enquadradores


discursivos textuais e em solicitações analíticas. As informações extratextuais mais
significativas são, na maioria das vezes, disponibilizadas ao professor, na condição de
importantes dados para o trabalho de mediação das atividades. Na análise da coleção anterior,
Novas Palavras (NP02), o excesso desse tipo de exercício foi por nós criticado por se revelar
um fator impeditivo de reflexões mais aprofundadas. Por outro lado, a análise das atividades
de leitura presentes em PCIS03 revela-nos que não se trata tanto do tipo de enquadradores ou
de solicitações, mas de como eles são elaborados, da chave de leitura definida pelo livro
didático. Embora os exercícios 2 e 3, acima transcritos, recorram, respectivamente, a
operações de justificação e de localização, centradas no próprio texto, as quais costumam dar
margem a tarefas mais tecnicistas e menos críticas, o recorte de texto e o encaminhamento das
perguntas conduzem o aluno a uma leitura reflexiva sobre a colonização, uma vez que ambas
também demandam, em maior ou menor medida, operações de inferência. Tendo em vista,
ainda, o papel de mediação a ser exercido pelo professor, ao qual são ofertados, pela coleção,
subsídios relativos ao contexto socio-histórico, a proposta de PCIS03 afirma-se
potencialmente produtiva no que tange ao questionamento de narrativas únicas e de
imaginários envolvendo o período colonial101.
Outra crítica que fizemos às coleções anteriormente analisadas refere-se ao eventual
uso do texto literário como pretexto para o trabalho com a materialidade de determinados
gêneros textuais, sem se considerar, para isso, aspectos socio-históricos cruciais à leitura

101
O questionamento de narrativas e de imaginários faz-se presente em diferentes capítulos de PCI03. No
Volume 1, no capítulo “Discurso e Texto” do eixo gramática, por exemplo, discute-se a produção social de
“imagens de mulher”, a partir de uma reflexão sobre “as marcas ideológicas” presentes em três letras de música:
“Ai que saudades da Amélia”, de Ataulfo Alves, “Emília”, de Vassourinha e “Dandara”, de Ivan Lins
(ABAURRE; ABAURRE; PONTARA, [Vol. 1], 2013, p. 275). No Volume 3, no capítulo destinado ao
Modernismo, contrapõe-se, com base em textos de Euclides da Cunha e de Olavo Bilac, diferentes versões sobre
a Guerra de Canudos (ABAURRE; ABAURRE; PONTARA, [Vol. 3], 2013, p. 17), e solicita-se aos alunos que
pensem sobre acontecimentos históricos mais recentes que tenham sido alvos de diferentes interpretações; no
Manual do Professor, recordam-se as versões sobre a ditadura militar como uma resposta possível.
197

dessas produções. No caso da coleção NP02, por exemplo, atentamo-nos ao fato de a


discussão sobre o colonialismo perder espaço, no capítulo dedicado ao Quinhentismo, para o
protagonismo conferido aos elementos estruturantes do gênero relato. Novamente, a
comparação entre NP02 e PCIS03 abre outros horizontes de leitura para essas ocorrências.
PCIS03 opta por apresentar e por trabalhar de forma mais sistematizada o gênero “relato de
viagem” somente no fechamento do capítulo do Quinhentismo, ou seja, após a leitura crítica
de diferentes textos quinhentistas e após ter discutido questões concernentes ao colonialismo.
Ademais, ainda no decorrer do capítulo, pontuais orientações sobre os elementos textuais das
narrativas do Descobrimento comparecem sempre articuladas à ideia do olhar subjetivo e
valorativo que caracteriza esse tipo de escrita, como se nota no excerto seguinte:

Seria interessante aproveitar os textos dos viajantes para discutir com os


alunos a importância de adjetivos e advérbios (principalmente
quantificadores) na elaboração das descrições. Por meio de adjetivos, os
viajantes qualificavam (de modo positivo ou negativo) os elementos
apresentados. Os advérbios frequentemente são usados para quantificar
aquilo que se observa (“há na terra muita abundancia”) ou sua qualidade
(mui tenras, mui sabrosa, etc.). Com esse tipo de observação, ajudamos os
alunos a identificar recursos de linguagem que, por um lado, participam
ativamente da construção do sentido do texto, e, por outro, revelam o
olhar estrangeiro para a realidade desconhecida. (destaque nosso)
(ABAURRE; ABAURRE; PONTARA, 2013 [Vol. 1], p. 113).

Trata-se de instruções que vão ao encontro do objetivo 4 da presente seção de


PCIS03, a saber, tornar o aluno capaz de “identificar valores e visões de mundo expressos nos
textos da literatura de viagens” (ibid., 108). Cabe assinalar, nesse sentido, que este e outros
objetivos do capítulo, tais quais os já citados “explicar o que foi o projeto colonial
português” (ibidem) e “identificar e compreender como se articulam os agentes do discurso
no período” (ibidem), colocam em evidência pode ser tênue a linha que separa, por vezes,
objetivos voltados à técnica (conhecimentos e capacidades) daqueles direcionados à
promoção de atitudes. Isso porque o entendimento dos “valores”, das “visões de mundo” e
dos “agentes do discurso” do período colonial, bem como a compreensão do colonialismo
enquanto “projeto” figuram como conhecimentos socio-históricos e como capacidades
interpretativas fundadoras de novas atitudes frente ao legado colonial presente na sociedade
atual. Dessarte, independentemente da classificação categórica dos objetivos de PCIS03, eles
parecem se mostrar alinhados aos objetivos das leis 10.639/03 e 11.645/08.
198

Finalmente, para encerrarmos a discussão sobre o Quinhentismo, é necessário


comentar uma das atividades de fechamento da unidade à qual pertence esse capítulo, a
unidade 3 - “A literatura do período colonial”, composta não apenas pelo Quinhentismo, mas
também pelo Barroco e pelo Arcadismo. Ao final das unidades de literatura, PCIS03
apresenta uma subseção intitulada “Jogo de Ideias”, em que é definido um exercício de
reorganização do que foi aprendido nos capítulos, centrado, na maioria das vezes, em algum
gênero da oralidade. Propõe-se, então, para a unidade da literatura do período colonial, um
debate sobre o processo de colonização, dividido, por meio de sorteio, entre “perspectiva do
colonizador” (“o processo de colonização foi benéfico e trouxe vantagens para o povo
colonizado” [ABAURRE; ABAURRE; PONTARA, 2013 [Vol. 1], p. 154]) e “perspectiva do
colonizado” (“o processo de colonização foi nocivo e trouxe prejuízos para o país e seu povo
em diferentes esferas [econômica, política e cultural]” [ibidem]). Os alunos são instruídos a
realizar pesquisas para embasarem seus argumentos e, a partir eles, a responder:

- Quais as intenções dos colonizadores europeus em relação à terra


descoberta?
- Que imagens os colonizadores faziam do povo colonizado e de si mesmos?
Que imagem os colonizados faziam dos europeus? Por quê?
- Quais foram as vantagens e as desvantagens do processo de colonização
para o nosso país? Por quê? (ABAURRE; ABAURRE; PONTARA, 2013
[Vol. 1], p. 154).

Nas indicações do Manual do Professor a respeito da condução da atividade, afirma-


se que, entre outras possibilidades, na perspectiva do colonizador vê-se um “processo que
determinou o crescimento do país [...]. Cidades foram fundadas, bibliotecas e universidades
foram criadas e houve intercâmbio cultural entre o colonizador e o colonizado, o que levou a
uma mudança de mentalidades desses povos [...] [a vinda dos portugueses fez com que] uma
terra ainda ‘selvagem’ e inexplorada pudesse crescer” (ABAURRE; ABAURRE; PONTARA,
2013 [Vol. 1 – Apêndice: “Guia de Recursos”], p. 79); por outro lado, “o grupo que deve
defender que o processo de colonização foi nocivo pode argumentar que o real interesse do
colonizador não era o de ocupação e expansão do território brasileiro, mas o de exploração
das riquezas que aqui existiam. Pode ainda destacar o processo de aculturação dos nativos
[...]. Pode ainda ressaltar a mentalidade predatória [com relação ao meio ambiente] que
caracteriza nosso país até os dias atuais” (ibidem).
A despeito de se tratar de um exercício bastante dependente do perfil dos alunos e da
mediação do professor, os quais são dotados de particularidades inerentes a cada contexto de
199

ensino-aprendizagem, a proposta tal qual descrita pela coleção corrobora a ideia de ruptura
com a narrativa colonial única, pois visa contrapor diferentes visões sobre o processo de
colonização. Outrossim, a atividade também se configura um produtivo exemplo de como
equacionar a leitura literária ao trabalho com gêneros textuais específicos, haja vista o
consistente gancho coesivo que liga a literatura do período colonial a exercícios abrangendo,
inicialmente, o gênero relato de viagem e, posteriormente, o gênero debate.
Nos capítulos dedicados ao Romantismo no Brasil (unidade 1, do volume 2),
encontramos outros exemplos interessantes de contestação da histórica única sobre a
colonização. No que engloba o Indianismo, verificam-se novas ressalvas quanto aos históricos
imaginários e estereótipos que circundam a visão que os brancos têm sobre as culturas
indígenas. Tal ideia da existência de múltiplas visões e imagens faz-se presente, em menor ou
maior medida, em muitos exercícios. Destacamos dois exemplos, retirados da análise de um
excerto de Iracema (1865), de José de Alencar:

[...]
1. Qual é a missão de Martim ao voltar?
[...]
b) Ao tratar da conversão dos indígenas, Alencar consegue abandonar sua
visão de homem branco civilizado? Explique. (ABAURRE; ABAURRE;
PONTARA, 2013 [Vol. 2], p. 96). [Resposta: Não. Alencar apresenta a
colonização e a catequização dos povos indígenas, isto é, o processo de
aculturação, de modo natural. Ele sugere a necessidade de “salvar” os
índios pela religião, já que essa “terra selvagem” teria uma cruz plantada
por um sacerdote da religião do chefe branco. (ABAURRE; ABAURRE;
PONTARA, 2013 [Vol. 2 – Apêndice: “Guia de Recursos”], p. 73).

[...]
5. Alencar apresenta uma visão positiva em relação à conversão de Poti. O
texto de Darcy Ribeiro [excerto de O povo brasileiro (1995) disponibilizado
aos alunos] leva à reavaliação dessa visão. Que “releitura” podemos fazer da
cena final de Iracema? (ABAURRE; ABAURRE; PONTARA, 2013 [Vol.
2], p. 97). [Resposta: Darcy Ribeiro apresenta uma visão negativa dessa
conversão. Segundo o antropólogo, a cristandade traz para o índio o mundo
do pecado e do sofrimento, negando todos os seus costumes, ou
condenando-os como inadequados aos valores cristãos. Nesse cenário,
“todo futuro possível seria a negação mais horrível do passado, uma vida
digna de ser vivida por gente verdadeira”.] (ABAURRE; ABAURRE;
PONTARA, 2013 [Vol. 2 – Apêndice: “Guia de Recursos”], p. 73).

A atividade 1b é coerente com o fundamento teórico adotado pela coleção, isto é, o


de admitir a literatura como um gênero um discurso historicamente situado. É sob essa
200

premissa que se torna válido o emprego de um enquadrador discursivo extratextual atento aos
dados biográficos de José Alencar (homem, branco, civilizado); ainda que a ficção não
assuma um compromisso com a realidade (ao contrário), o fato de a produção indianista estar
inscrita entre uma pequena elite de escritores não índios, os quais intentavam idealizar
símbolos nacionais, abre a possibilidade de pensarmos tais textos também à luz do contexto
de escrita vivenciado pelos agentes de tal discurso. O exercício 5, ao recorrer a um texto de
Darcy Ribeiro e, por conseguinte, a um enquadrador discursivo intertextual, reforça e
consolida, assim, a existência de leituras “menos românticas”, distintas àquela que é
desenvolvida por Alencar.
Ao encontro da configuração do capítulo do Quinhentismo, a abordagem do romance
indianista em PCIS03 é encerrada com atividade de reorganização das reflexões e das ideias
até então debatidas  neste caso, por meio da seção “Interações”. Propõe-se, então, que os
alunos pesquisem imagens e notícias sobre a situação atual dos índios brasileiros, a fim de
escrever um texto dissertativo-argumentativo sobre o tema. (ABAURRE; ABAURRE;
PONTARA, 2013 [Vol. 2], p. 98). Ao professor, sugere-se que eventuais dados sobre o
problema da demarcação de terras na atualidade sejam relacionados a heranças do processo de
colonização do país, e que se estabeleça uma ponte entre as imagens do passado e do presente
 para tanto, além de rememorar todos os autores e textos do capítulo, apresenta-se um
excerto das cartas de Américo Vespúcio e da música “Índios”, de Renato Russo. Vale lembrar
que vimos na coleção NP02 uma proposta similar de comparação entre as nuances da questão
indígena no passado e no presente, também no capítulo do Romantismo.
A seção dedicada em PCIS03 ao Condoreirismo segue a mesma proposta de
encerramento: pensar, após a leitura da obra de Castro Alves, a arte de cunho social no
passado e no presente. O exercício central consiste em discutir oralmente em sala de aula as
relações estabelecidas entre um excerto do poema “Olá! Negro”, de Jorge de Lima, e um
cartum da Laerte sobre o genocídio negro. Nas instruções dadas ao professor, frisa-se o debate
sobre o racismo e recomenda-se: “Para acrescentar outros elementos à discussão, seria
interessante trazer algumas letras de rap, como as dos Racionais MC’s ou Emicida, que
abordem, em uma outra linguagem, a questão racial. Além dessas indicações, no site
<http:/poeticasemporgues.blogspot.com>, é possível encontrar poemas de escritores africanos
que tematizam a vida e a história do negro e da cultura afro-brasileira” (ABAURRE;
ABAURRE; PONTARA, 2013 [Vol. 2], p. 69). Conclui-se, pois, que embora a coleção não
201

traga textos de autoria negra, a atividade abre caminho a essas produções e alinha-se, em certa
medida, ao esperado pela lei 10.639/2003, sobretudo ao dar evidenciar ao problema racial.
Verificamos, todavia, que o blog indicado encontra-se fora do ar (último acesso em
19/01/2019), o que torna falha a referência feita a escritores africanos. Trata-se,
inquestionavelmente, de um exercício crítico e favorável a uma formação cidadã, e, portanto,
necessário, mas no qual impera, ainda, um falar sobre o negro e a negritude, e não o falar do
negro.

Reestruturando o cânone I: literaturas africanas e literatura negra/afro-brasileira em


PCIS03

Classificamos a localização e distribuição de conteúdos de PCIS03 como restrita


devido à presença de uma seção especial para as literaturas africanas. Todavia, no que
concerne à literatura negra/afro-brasileira, verificamos que a obra da escritora Carolina Maria
de Jesus comparece, mesmo que superficialmente, em dois capítulos da coleção: na seção
dedicada ao Naturalismo (capítulo 9, volume 2) e na atividade de encerramento do Pré-
Modernismo (capítulo 1, volume 3). Na primeira ocorrência, presente no Box “De olho no
livro”, há um breve excerto e a indicação de leitura de Quarto de Despejo (1960), bem como
uma breve menção comparativa ao livro O cortiço (1890), de Aluísio Azevedo (ABAURRE;
ABAURRE; PONTARA, 2013 [Vol. 2], p. 152). No segundo caso, em que se propõe aos
alunos a redação de um depoimento inspirado em uma das personagens dos excertos
disponibilizados  a saber, um trecho de O mulato (1881), de Aluísio Azevedo, de “Erro de
Português”, de Oswald de Andrade, e um recorte da letra “Brasil”, de Cazuza102 , a obra de
Carolina Maria de Jesus é recordada nas instruções dadas ao professor, como uma referência
complementar (ABAURRE; ABAURRE; PONTARA, 2013 [Vol. 3], p. 26). Não se efetiva,
portanto, nenhuma atividade de leitura envolvendo os textos da escritora. Vale registrar que o
mesmo se observa em relação à obra Cidade de Deus (1997), de Paulo Lins, com a diferença

102
Orientações fornecidas ao professor: “A atividade leva o aluno a identificar, nos três textos da seção, as
personagens que servem de veiculação da crítica social dos autores: Raimundo (o mulato), os índios e
portugueses, e um marginalizado urbano” (ABAURRE; ABAURRE; PONTARA, [Vol. 3], 2013, p. 26).
202

de que PCIS03 restringe-se, nesse caso, a uma breve referência ao livro (no capítulo 5,
volume 3), sem a apresentação de nenhum excerto do romance103.
Embora fuga ao escopo da literatura afro-brasileira, é interessante citar a presença de
uma atividade de leitura baseada no poema “Ainda assim, eu me levanto” (1978), da escritora
norte-americana Maya Angelou. Tendo em vista que PCIS03 difere-se de outras coleções à
medida que dá espaço a escritores de distintas nacionalidades, escapando, muitas vezes, ao
cânone luso-brasileiro, a escolha da obra de uma importante ativista do movimento negro
estadunidense chama a nossa atenção. Situado no fechamento do capítulo “Literatura é
gênero I: o épico e o lírico” (capítulo 3, volume 1), o exercício conjuga perguntas sobre as
características do gênero a questões relativas ao tema do preconceito racial, tal qual presente
no texto. Em uma delas, indica-se ao professor que aceite tanto respostas baseadas no texto
quanto no conhecimento de mundo dos alunos a respeito da escravidão e da discriminação:

3. É possível, a partir da leitura do poema, construir uma imagem do eu


lírico. Que experiências pode ter tido alguém que diz coisas como essas?
Explique como você formou tal imagem. (ABAURRE; ABAURRE;
PONTARA, 2013 [Vol. 1], p. 44). [Resposta: Possibilidade: alguém que
faça as afirmações e acusações que aparecem no poema deve ter sofrido
discriminação racial, ou seja, deve ser o negro que foi humilhado, que teve
seus antepassados escravizados e que carrega, hoje, o “sonho e a
esperança” de sua raça.
 Resposta Pessoal. O aluno pode se valer, para construir a imagem do eu
lírico, daquilo que é afirmado no próprio poema sobre a discriminação
dos negros e sobre o seu passado de sofrimento. Pode ainda recorrer ao
seu conhecimento de mundo sobre a escravidão e a discriminação racial
que ainda hoje ocorrem em inúmeras sociedades.] (ABAURRE;
ABAURRE; PONTARA, 2013 [Vol. 1 – Apêndice: “Guia de
Recursos”], p. 64).

Para além da importância do tema do racismo, interpretamos esse exercício, em


especial o item 3 acima transcrito, como ilustrativo de uma boa articulação entre solicitações
de viés analítico e de viés cursivo, dado que nele se reconhece o papel das subjetividades dos
estudantes no processo de leitura, especialmente em se tratando de um tema tão relevante e
sensível. A despeito da nacionalidade da autora do poema, julgamos a atividade produtiva ao

103
No âmbito da literatura periférica/marginal, merece destaque a presença de um excerto de Capão pecado
(2000), do escritor Ferréz, situado na seção de encerramento do capítulo sobre a segunda geração do
Modernismo (capítulo 5, volume 3). Intitulada “Interações: a consciência do subdesenvolvimento brasileiro”, a
atividade propõe a escrita de um artigo de opinião baseado na imagem de um menino de rua e no trecho do
romance de Ferréz. Entre outras possibilidades de diálogo listadas aos alunos, menciona-se, então, o livro
Cidade de Deus (1997), do escritor afrodescendente Paulo Lins (ABAURRE; ABAURRE; PONTARA, [Vol. 3],
2013, p. 110).
203

cumprimento de parte dos objetivos da lei 10.639/03, sobretudo daqueles que tratam
diretamente do combate ao preconceito racial.
A seção especial “Literatura Africana”, última do eixo literatura do terceiro volume
de PCIS03, totaliza 31 páginas de conteúdos, subdivididos em “A poesia africana de língua
portuguesa” e “A narrativa africana de língua portuguesa”. Conforme já explicamos em
relação à estrutura de outros capítulos, a coleção dedica-se, também na abordagem das
literaturas africanas, à apresentação de muitos excertos e de enquadradores discursivos em
detrimento de atividades de leitura propriamente ditas. De modo geral, os capítulos da coleção
compõem-se de textos literários dispostos intercaladamente a textos explicativos (/de
enquadradores de leitura) e de um único “texto para a análise” alocado ao final das
subseções. Por conseguinte, dos 26 excertos literários disponibilizados aos alunos, apenas
dois são de fato analisados por meio de exercícios de interpretação  no caso, excertos do
poema “Mamã Negra”, de Viriato da Cruz (Angola), e uma passagem do romance O planalto
e a estepe (2009), de Pepetela (Angola). Ao todo, a seção introduz a obra de 10 escritores
africanos, sendo duas delas mulheres: Conceição Lima (São Tomé e Príncipe) e Noémia de
Sousa (Moçambique).
A lista completa do repertório de matriz africana que integra PCIS03 é por nós
detalhada na Tabela 7 (página 201), de modo que optamos por comentar pontos centrais da
organização do capítulo, bem como exemplos que sejam representativos do modo pelo qual a
coleção trabalha com as tais produções artístico-literárias.
Os textos introdutórios e de mediação de conteúdo configuram-se, em sua maioria,
enquadradores discursos extratextuais, fornecendo informações sobre as biografias dos
autores e da história dos países africanos de língua portuguesa. Questões como a do papel da
oralidade e da “oratura” nas culturas africanas, da formação da identidade nacional e local em
meio a um histórico de dominação colonial e de guerras, das belezas naturais e das tradições,
entre outras, dão forma à seção. Há também uma seleção volumosa de elementos
iconográficos, os quais trazem imagens tanto dos autores quanto dos países, indo desde
fotografias de ritos locais a registros do cotidiano, da natureza e da arquitetura dos países
lusófonos em África.
Especificamente no que tange às atividades de análise dos dois excertos supracitados,
nota-se que se mantém o padrão adotado por PCIS03 nos demais capítulos, ou seja, há o
predomínio de enquadradores discursivos textuais, seguidos de solicitações analíticas,
204

geralmente envolvendo operações de localização, de justificação e de inferência.


Selecionamos dois exemplos, o primeiro referente à leitura do poema “Mamã Negra”, de
Viriato da Cruz (Angola), e o segundo correspondente à análise de uma passagem do romance
O planalto e a estepe (2009), de Pepetela (Angola):

2. Na terceira estrofe do poema, o eu lírico faz referência aos filhos que


receberam os cuidados dessa “mãe”. Quem são eles, considerando o
contexto apresentado no poema? Explique.
 De que forma a referência a esses “filhos” sugere a herança de um
passado colonial essa pátria a quem o eu lírico se dirige? (ABAURRE;
ABAURRE; PONTARA, 2013 [Vol. 3], p. 189). [Resposta: O eu lírico
afirma que são filhos “de outras gentes” e não os filhos dessa pátria.
Pelo contexto apresentado no poema, pode-se concluir que se trata de
uma referência aos colonizadores portugueses e seus descendentes, que
foram alimentados e embalados por essa mãe, que representa,
metaforicamente, o próprio país, vítima da exploração de seus
“senhores”, que extraíram suas riquezas e foram “alimentados” por
ela, e, também, todas as mulheres angolanas que, pela condição de
inferioridade a que estavam submetidas no contexto da colonização,
foram responsáveis por cuidar e alimentar os filhos de seus
conquistadores.
A referência a esses filhos revela a herança colonial de Angola e os
efeitos dela para o povo desse país: a pátria foi explorada pela máquina
colonial portuguesa e os filhos dela foram escravizados, durante muito
tempo, por esses conquistadores. Por isso, o eu lírico afirma que essa
“mãe” com quem ele dialoga embalou em seu colo e alimentou com seu
leite os filhos de “outras gentes”. A Angola e seu povo, de fato, serviram
de “alimento” para saciar o “apetite” voraz de seus colonizadores.
Enquanto essa mãe ninava “santos poetas e sábios” de “outras gentes”,
seus filhos sofriam com a crueldade da exploração gerada pelo
processo de dominação.] (ABAURRE; ABAURRE; PONTARA, 2013
[Vol. 3 – Apêndice: “Guia de Recursos”], p. 87).

3. Olga, a irmã mais velha de Julio, é quem primeiro o alerta para uma grave
questão africana: a do racismo. Como isso ocorre no trecho transcrito?
 Podemos afirmar que a menina, neste trecho, representa a voz daqueles
que reproduzem o discurso segregacionista, alimentando o preconceito
em países colonizados, como foi o caso de Angola? Justifique.
(ABAURRE; ABAURRE; PONTARA, 2013 [Vol. 3], p. 203).
[Resposta: Julio relata que, um dia, a irmã disse-lhe que ele não devia
brincar com os meninos das redondezas porque eles eram negros e ele e
sua família, brancos. Ao ser questionada pelo irmão sobre os motivos
para ter que se afastar dos amigos, Olga responde que os pais não viam
aquela amizade como algo adequado. Julio ainda se pergunta se, de
fato, essa era a opinião dos pais ou apenas uma intromissão da irmã
que, por ser mais velha, se achava no direito de controlar a vida dos
irmãos menores.
Em parte, sim. Espera-se que os alunos percebem que, no trecho, Julio
afirma que a irmã era racista desde pequena. Acrescenta, ainda, a
suposição de que, por ter ouvido declarações racistas dos colonos
205

inúmeras vezes, Olga repetia frases preconceituosas “como um


papagaio”, antes mesmo de compreender aquilo que dizia. Sendo assim,
é possível afirmar que a fala racista de Olga é, na verdade, a
reprodução de um discurso preconceituoso e segragacionista muito
comum em países colonizados que viveram a violência do racismo.]
(ABAURRE; ABAURRE; PONTARA, 2013 [Vol. 3 – Apêndice: “Guia
de Recursos”], p. 88).

Observamos, nestas e nas demais perguntam, que se espera que os alunos recorram,
em maior ou menor grau, aos diversos enquadradores discursivos extratextuais dispersos no
decorrer da apresentação dessas literaturas no Caderno do Aluno, sobretudo no que diz
respeito à dominação e à violência colonial. As inferências demandadas pelas questões
levantadas articulam-se, de certo modo, ao extenso conteúdo descritivo-explicativo trazido
previamente por PCIS03. A última pergunta sobre o poema de Viriato Cruz evidencia com
bastante clareza esse movimento:

5. Considerando o que você viu, nesta seção especial, sobre a poesia africana
e seus temas, como esse texto se relaciona com a produção literária de
autores desse país? (ABAURRE; ABAURRE; PONTARA, 2013 [Vol. 3], p.
189). [Resposta: O poema transcrito reflete a necessidade dos poetas
angolanos (apresentada na teoria referente a essa seção), a partir de 1951,
de fazer uma poesia que fizesse a denúncia do passado de sofrimento desse
povo e combatesse, dessa forma, a alienação social. Além disso, o tom final
do poema reforça uma característica importante da poesia africana e da
poesia angolana, em especial: a necessidade, também, de despertar a
consciência de seu povo e levá-lo a lutar, com esperança, para concretizar o
sonho de reconquistar a própria identidade e, dessa forma, consolidar-se
como uma nação livre, autônoma e independente] (ABAURRE;
ABAURRE; PONTARA, 2013 [Vol. 3 – Apêndice: “Guia de Recursos”], p.
87).

Se, à primeira vista, o contraste entre o alto número de textos e o baixo número de
atividades de leitura suscita reflexões sobre as implicações didático-pedagógicas de se
ofertarem excertos sem que com eles sejam requeridos exercícios de interpretação, os
exemplos por nós frisados indicam que tais textos ilustrativos integram a reflexão teórica
desenvolvida pela coleção, a qual é posteriormente rememorada/cobrada dos alunos. É certo
que tanto a leitura quanto o aproveitamento dos 26 excertos fornecidos por PCIS03 ficam a
cargo da mediação do professor, porém, comparativamente aos demais livros didáticos por
nós analisados, a presente coleção destaca-se por fornecer um vasto panorama das literaturas
de matriz africana, principalmente ao se ter em vista que todos os países de língua portuguesa
206

são representados. PCIS03 figura, nesse ponto, a coleção do PNLD 2015 com uma das
coletâneas mais vastas e variadas.
Por fim, novamente em relação às produções afro-brasileiras, cabe ressaltar que não
há, em PCIS03, textos de autores afrodescendentes para além do breve excerto de Carolina
Maria de Jesus anteriormente mencionado.

Reestruturando o cânone II: literaturas indígenas em PCIS03

Não encontramos textos de autoria indígena em PCIS03. Embora a temática indígena


seja abordada de forma bastante crítica nos capítulos concernentes ao Quinhentismo e ao
Indianismo, permanece na coleção um “falar sobre”, sem espaço, ainda, à produção indígena.
Para além das ocorrências discutidas nas subseções anteriores, julgamos interessante
mencionar que logo na abertura da coleção tem-se a imagem de um quadro do indígena
canadense Lawrence Paul Yuxweluptun, sobre o qual são feitas perguntas relacionadas,
também, à questão das lutas dos povos indígenas canadenses e estadunidenses (ABAURRE;
ABAURRE; PONTARA, 2013 [Vol. 1], pp. 10-11). Também no volume 1, na lista de
referências bibliográficas e audiovisuais do capítulo dedicado ao Arcadismo (capítulo 11),
ganha destaque a sugestão do CD de músicas e cantos guaranis “Ñande Arandu Pyguá:
memória viva guarani” (2004) (ibid., p. 155).
A título de retomada e de síntese: PCIS03 e o repertório das leis 10.639/03 e 11.645/08
(produções de autoria indígena, negra/afrodescendente e/ou africana, para além do
cânone escolar).
PCIS03 REPERTÓRIO LOCALIZAÇÃO
Unidade 2 –
Diário Quarto de Despejo (1960), de Carolina Maria de “Realismo e
VOLUME
Jesus. Naturalismo”,
2 Capítulo 9:
“Naturalismo”.
Poema “Primeira proposta para uma noção geográfica”
(1976), de Ruy Duarte de Carvalho (Angola).
Trecho da palestra “... e fazer do nosso sonho uma casa”
(2008), de Mia Couto (Moçambique).
Poema “Poema do mar” (1941), de Jorge Barbosa (Cabo
VOLUME Seção especial
Verde).
“Literatura Africana”.
3 Poema “Ritmo do pilão”, de António Nunes (Cabo Verde).
Poema “Viagem na noite longa” (1962), de Mário Fonseca
(Cabo Verde).
Poema “Acerca do amor”, de Filinto Elísio (Cabo Verde).
Poema “Fragmentos de blues”, de Francisco José Tenreiro
(São Tomé e Príncipe).
207

Poema“Zálima Gabon”, de Conceição Lima (São Tomé e


Príncipe).
Poema “Aspiração” (1949), de Agostinho Neto (Angola).
Poema “Donas de outro tempo” (1958), de Mário António
(Angola).
Poema sem título (“a sul do sonho...”), de Arlindo Barbeitos
(Angola).
Poema “Descobrimento”, de Noémia de Sousa
(Moçambique).
Poema “A minha dor”, de José Craveirinha (Moçambique).
Poema “Cidade 1985” (1985), de Carlos Cardoso
(Moçambique).
Poema “Poema mestiço” (1985), de Mia Couto
(Moçambique).
Poema “Canto à Guiné” (1995), de Tony Tcheka (Guiné
Bissau).
VOLUME
Poema “Mamã Negra”, de Viriato da Cruz (Angola). Seção especial
3 “Literatura Africana”.
Texto de opinião “Dualidade, aprendizagens”, de Mia Couto
(Moçambique).
Conto “Quinzinho” (1957), de Luandino Vieira (Angola).
Romance Parábola do cágado velho (1996), de Pepetela
(Angola).
Romance Nação crioula (1997), de José Eduardo Agualusa
(Angola).
Romance Bom dia camaradas (2001), de Ondjaki (Angola).
Romance Terra sonâmbula (1992), de Mia Couto
(Moçambique).
Romance Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra
(2002), de Mia Couto (Moçambique).
Romance A varanda do frangipani (1996), de Mia Couto
(Moçambique).
Romance O planalto e a estepe (2009), de Pepetela (Angola).
Tabela 7. Relação de textos e autores abordados em PCIS03.
208

4.1.4. Língua Portuguesa – Linguagem e Interação (Ática) – 4ª coleção do


PNLD 2015 em número de distribuições

FARACO, Carlos Emílio; MOURA, Francisco Marto de; MARUXO JR., José
Hamilton. Língua Portuguesa – Linguagem e Interação (Livro do Professor), 2ª ed.,
Volumes 1, 2 e 3, São Paulo: Editora Ática, 2014.

SIGLA: LPLI04

Na resenha do PNLD 2015, a coleção destaca-se pela “diversidade” e pela


“qualidade” de sua coletânea, “com textos do período literário em estudo e da
contemporaneidade, articulados pelo tema” (BRASIL-MEC/SEB, 2014b, p. 39). Tal
articulação, por nós comprovada, advém do fato de LPLI04 organizar-se por meio de
unidades temáticas e de gêneros/tipos textuais, e não por eixos de ensino, ainda que todos os
eixos (a saber, “leitura”, “literatura”, “produção de textos”, “oralidade”, “conhecimentos
linguísticos”) sejam trabalhados (exemplificaremos detalhadamente a estruturação de LPLI04
na próxima subseção). A respeito desse aspecto, o Guia define como ponto forte a
“abordagem dos aspectos textuais e discursivos no eixo conhecimentos linguísticos”, e como
ponto fraco a “primazia da informação histórica em relação à de cunho estético” e a
desconsideração das “particularidades locais de cada movimento literário” (ibidem)  “não
são trabalhados os elementos ou os conceitos da experiência estética, nem se investe na
fruição dos textos, nem dos verbais, nem dos imagéticos. A noção de belo ou de beleza não é
discutida criticamente ou problematizada [...]” (BRASIL-MEC/SEB, 2014b, p. 41).
Paradoxalmente, encontramos no Manual do Professor a afirmação de que “o objetivo
principal do estudo de literatura [é] auxiliar os alunos a desenvolver capacidades que lhes
permitam apreciar esteticamente as obras dos diferentes autores abordados” (ibid., p. 387).
Ademais, ainda no que diz respeito ao contraste entre o desenvolvimento dos eixos, notamos
que a qualidade do trabalho com os conhecimentos linguísticos, sendo esta elogiada no Guia
do PNLD, é acompanhada de um maior espaço assumido pelo eixo linguístico, em oposição
ao eixo literário, no desenrolar dos capítulos: enquanto o estudo da literatura restringe-se à
subseção “Literatura: teoria e história”, a gramática/análise linguística conta com três
subseções fixas, “Gramática textual”, “Língua – análise e reflexão” e “Prática da linguagem”.
Concordamos igualmente com a resenha do PNLD 2015 quando esta aponta o eixo
da leitura como o eixo privilegiado por LPLI04, haja vista ele ser requerido tanto em seções
específicas quanto nas seções de gramática e de produção textual (BRASIL-MEC/SEB,
209

2014b, p. 40), embora o não investimento “na formação de leitor de imagens” (ibidem)
mereça ressalvas. Todavia, se comparada a outras coleções, LPLI04 destaca-se, a nosso ver,
também por certo protagonismo dado ao eixo da escrita, eixo usualmente menos explorado
pelos livros didáticos. Não sem razão, consta no Manual do Professor que “as unidades, em
linhas gerais, têm por objetivo levar à construção de um projeto coletivo de leitura e escrita”
(destaque nosso) (FARACO; MOURA; MARUXO JR., 2014 [Vol. 1 – Apêndice: “Manual do
Professor”], p. 366).
No que tange a aspectos ligados, direta ou indiretamente, ao cumprimento das leis
10.639/03 e 11.645/08, o Guia acusa a falta de “leitura comparada entre os estilos de época
abordados” (BRASIL-MEC/SEB, 2014b, p. 41), registrando a necessidade de este trabalho
ser exercido/complementado pelo professor e afirmando como desejável, neste caso, a
promoção de um diálogo entre “obras da literatura brasileira, portuguesa e africana” (p. 43).
Em relação a questões de diversidade cultural, a resenha considera que “a diversidade
sociocultural brasileira não é tema privilegiado nos textos e nas atividades de leitura” e toma
como exemplo a seguinte ocorrência: “quando o texto favorece a discussão da variação
linguística, são propostas atividades que contemplam, por exemplo, as diferenças entre o
português falado no Brasil, em Portugal ou em países africanos, e o registro (formal ou
informal) usado em variadas situações de interação” (p. 40). Ou seja: se no eixo literatura a
ausência de diálogo entre os países de língua portuguesa é tida como um ponto fraco, no eixo
de conhecimentos linguísticos critica-se, justamente, a presença desse diálogo, no sentido em
que ele parece tomar o lugar do debate da variação linguística existente no Brasil.
Finalmente, são três os autores da coleção: Carlos Emílio Faraco, Francisco Marto de
Moura e José Hamilton Maruxo Júnior, todos com formação atrelada à Universidade de São
Paulo: os dois primeiros licenciados em Letras e o último Doutor em Letras pela instituição,
segundo informações presentes na folha de abertura dos três volumes do manual. Contudo, o
dado biográfico reiterado pelos autores na carta de apresentação do Manual do Professor
corresponde a suas experiências na educação básica, tanto no nível fundamental quanto no
médio, da rede pública e particular. Moura e Maruxo Jr. também têm experiência no ensino
superior, sendo o último, inclusive, pesquisador do CENPEC (Centro de Estudos e Pesquisas
em Educação, Cultura e Ação comunitária).
210

MACROESTRUTURA DA COLEÇÃO LPLI04

O projeto editorial de LPLI04 diverge do projeto comumente adotado pelos livros


didáticos. No lugar de uma divisão por eixos, opta-se por seções e por capítulos temáticos, a
partir dos quais os diferentes eixos são trabalhados. O eixo literatura configura-se, assim, uma
subseção fixa dos capítulos temáticos, e não o mote dos capítulos. Cada volume compõe-se,
igualmente, de quatro unidades, cada qual composta por três capítulos fundamentais, bem
como de um capítulo introdutório geral do volume. As primeiras centram-se, respectivamente,
e em todos os volumes, “no estudo do modo de organização” narrativo, descritivo, explicativo
e argumentativo (FARACO; MOURA; MARUXO JR., 2014 [Vol. 1], p. 367 – Apêndice:
“Manual do Professor”). Assim, a Unidade 1, do Volume 1, por exemplo, ao visar atender o
tipo textual narrativo, tem como tema “Das histórias do passado às históricas do presente”.
Tal recorte temático orienta, por sua vez, os gêneros a serem trabalhados em cada unidade, os
quais dão título aos respectivos capítulos. Dessa forma, os capítulos da unidade supracitada,
cujo foco é a narração, são: “Capítulo 1 – Conto”, “Capítulo 2 – Novela”, “Capítulo 3 –
Crônica”. Para a subseção de literatura, são selecionados, portanto, textos que dialoguem com
o tipo e com os gêneros textuais destacados nas respectivas unidades, não havendo uma
abordagem muito rigorosa nem sistematizada das escolas literárias, ainda que todas sejam, em
maior ou menor medida, discutidas pela coleção  na análise da microestrutura fica mais
claro de que modo funciona, na prática, o trabalho com os textos literários em LPLI04. De
acordo com o Manual, não se adota “um critério inflexível e único para o estudo da
literatura”, a qual é ora focada nas escolas e nos períodos, ora na obra de um único autor
(FARACO; MOURA; MARUXO JR., 2014 [Vol. 1 – Apêndice: “Manual do Professor”], p.
388).
Na carta que abre o Manual do Professor, os autores justificam a organização dos
volumes com base em uma crítica à “desarticulação entre os estudos da linguagem [...], os
estudos de produção de textos e os de análise e reflexão em torno das obras das literaturas de
língua portuguesa” (FARACO; MOURA; MARUXO JR., 2014 [Vol. 1 – Manual do
Professor – Apêndice: “Manual do Professor”], p. 363) presentes em muitos materiais. Por
conseguinte, a despeito de haver uma subseção de literatura dedicada às literaturas africanas,
a localização e distribuição dos conteúdos relacionados, em alguma medida, ao cumprimento
das leis 10.639/03 e 11.645/08 ocorre também de forma articulada, dado o princípio dialógico
que orienta a coleção. Trata-se, porém, de uma abordagem que não culmina em exercícios de
211

literatura comparada, pois, apesar de esses conteúdos fazerem-se presentes em capítulos


distintos, eles são analisados isoladamente, ponto já destacado pelo Guia do PNLD 2015.
Sempre atrelada ao estudo dos gêneros e dos tipos textuais, a seleção dos autores e
das produções que dão forma à coleção obedecem, de acordo com o Manual, aos seguintes
critérios: “fornecer um panorama variado da literatura brasileira”; “fornecer alguns nomes
fundamentais” das literaturas portuguesa e africanas; dar espaço a “determinadas literaturas
estrangeiras, como a francesa” que tiverem/têm “grande influência” na literatura brasileira
(FARACO; MOURA; MARUXO JR., 2014 [Vol. 1 – Apêndice: “Manual do Professor”], p.
388).
Por fim, a exemplo de outras coleções por nós analisadas, o Manual do Professor de
LPLI04 é composto por respostas integradas às atividades e por um apêndice com orientações
gerais e indicações complementares. Embora seja possível identificar o anúncio de objetivos
orientados por atitudes, e não somente a enumeração de objetivos técnicos, uma vez que se
enfatiza a finalidade de tornar o estudante “um cidadão ético, crítico e atuante na sociedade
contemporânea” (FARACO; MOURA; MARUXO JR., 2014 [Vol. 1 – Apêndice: “Manual do
Professor”], p. 363), a promoção de tal postura não é diretamente associada, ao menos no
plano do discurso, ao combate de preconceitos e/ou ao reconhecimento da pluralidade cultural
 apesar de, seja necessário antecipar, algumas das atividades propostas aos alunos tocarem
nessas questões. Por sua vez, ao tratar do papel da interdisciplinaridade, afirma-se, de modo
geral, a necessidade de se discutir “questões temáticas de natureza complexa”, entre as quais
“as relações culturais delicadas que compõem o espectro da cultura brasileira” (ibid., p. 369).
Não há, contudo, nenhuma diretriz específica sobre as leis 10.639/03 e 11.645/08. Chama a
atenção, por outro lado, o fato de um dos “textos para leitura e reflexão” ofertados
exclusivamente ao professor104 ser relativo ao projeto de lei nº 1676/99, do deputado Aldo
Rebelo, acerca da coibição do emprego de estrangeirismos (FARACO; MOURA; MARUXO
JR., 2014 [Vol. 1 – Apêndice: “Manual do Professor”], p. 395)105. A despeito de se configurar
um debate linguístico relevante, é curioso pensar o porquê de, entre tantos projetos de lei e de
leis com efeitos diretos na educação básica, como as leis por nós estudadas, LPLI04 opta por
104
Todas as coleções oferecem, em maior ou menor quantidade, excertos de textos teóricos no Manual do
Professor, relativos a aspectos linguísticos, literários e/ou legislativos que fundamentam a coleção. A priori, não
consideramos relevante abordar cada uma dessas referências, de modo que optamos por comentar tal repertório
apenas quando ele se relaciona, direta ou indiretamente, às duas leis por nós estudadas e/ou, em alguma medida,
à questão da diversidade cultural como um todo.
105
Texto “Considerações em torno do projeto de lei nº 1676/99”, de José Luiz Fiorin.
212

dar espaço de destaque precisamente a este. Nas demais coleções que integram nosso corpus,
ou é dado espaço à legislação educacional como um todo e/ou a leis que a alteram. Trata-se de
uma ocorrência bastante peculiar a LPLI04.

MICROESTRUTURA DA COLEÇÃO LPLI04

Revisitando o cânone: Quinhentismo e Romantismo (Indianismo e Condoreirismo) em


LPLI04

As produções relacionadas ao Quinhentismo são apresentadas em duas subseções de


literatura, ambas do primeiro volume de LPLI04: em “I. Imagens do Brasil na literatura: do
século XVI até o início do século XXI” e “II. Imagens do Brasil na pintura” (Unidade 2 –
“Canções de ontem, hoje e sempre”, Capítulo 6: “Textos icônico-verbais”); e em “Literatura
dos viajantes” (Unidade 3 – “Viagens”, Capítulo 7: “Relato de Viagem”). No contexto de
discussão das imagens do Brasil na literatura e na arte, em que um trecho da Carta de
Caminha, bem como a imagem do mapa Terra Brasilis ilustram o imaginário do século XVI,
a coleção recorre, preponderantemente, a solicitações cursivas mais amplas, que, em nossa
leitura, favoreçam reflexões sobre o recorte geral do capítulo (“textos icônico-verbais”).
Selecionamos alguns exemplos:

Depois de observar atentamente as imagens e ler os textos, responda às


questões a seguir:
1. Você já conhecia alguma dessas imagens ou algum dos autores? Qual
(is)?
2. Qual das imagens ou dos textos lhe pareceu mais interessante? Por quê?
[Instrução: Professor, liste as preferências e as explicações na lousa. Se
considerar adequado, discuta as justificativas dadas pelos alunos,
observando sobretudo a coerência das respostas].
3. A forma de uma imagem é, em princípio, semelhante ao objeto
representado.
a) Qual das imagens lhe parece ilustrar melhor essa afirmativa?
[...]. (FARACO; MOURA; MARUXO JR., 2014 [Vol. 1], p. 173).

Ao encontro do que verificamos em outras coleções, tais solicitações cursivas não


são acompanhadas de diretrizes pormenorizadas ao professor. Indica-se, somente, que se
observe “a coerência das respostas”. Tendo em vista que se somam ao excerto de Caminha
fragmentos de e autores distintos, em tempo e em estilo, como Gregório de Matos e Cassiano
Ricardo, as perguntas colocadas, por não se articularem, em nenhum momento, a um olhar
mais analítico, enfraquecem o potencial de comparação observado no repertório elencado. O
mesmo ocorre em relação ao aproveitamento das pinturas. Outrossim, a ausência de
213

enquadradores discursivos intertextuais que proponham comparações mais objetivas, entre


excertos específicos, dá margem a um trabalho superficial com a intertextualidade.
A subseção “Literatura dos viajantes” inicia-se com a retomada da Carta de
Caminha, seguida de trechos dos relatos de Hans Staden e das crônicas de Pero de Magalhães
Gândavo. Desta vez, os exercícios fundamentam-se, majoritariamente, em solicitações
analíticas e são acompanhados de orientações mais detalhadas. Os textos dos dois primeiros
autores servem, sobretudo, a questões de viés linguístico (tais como, reflexão sobre palavras
com significados distintos no singular e no plural [vergonha/vergonhas]; função da conjunção
“segundo” em determinado trecho), corroborando a ressalva feita pelo guia do PNLD 2015 de
que a coleção explora pouco a “experiência estética”. Todavia, as instruções dadas ao
Professor, sejam na lateral das atividades, sejam no Manual do Professor, sugerem o debate
de especificidades socio-históricas e de aspectos ideológicos, os quais são explicitamente
cobrados no exercício de leitura sobre o fragmento de Pero de Magalhães Gândavo.
Transcrevemos, na ordem, (i) as diretrizes fornecidas na abertura da subseção; (ii) o exercício
acerca dos escritos de Gândavo; e os comentários específicos e complementares registrados
no Manual do Professor; e (iii) a sugestão de atividade complementar:

(i) [Instrução: Professor, depois de lidos os três textos seguintes, comente


com os alunos de que maneira os alunos desses relatos analisam o corpo e a
linguagem corporal dos indígenas: sempre pelo olhar do europeu da época
medieval. Converse com eles sobre etnocentrismo, ou seja, sobre o fato de
se interpretar o mundo de acordo com a ideologia do intérprete. Comente
também cada caso: o texto de Caminha dá a visão dele, europeu, de como os
indígenas lidam com o próprio corpo; o de Hans Staden fornece uma ideia
de como ele se sentiu tratado pelos indígenas durante seu aprisionamento; o
de Gândavo também os descreve, além de dizer que se deixam levar pela
sensualidade e pelos vícios]. (FARACO; MOURA; MARUXO JR., 2014
[Vol. 1], p. 198).
(ii) Reúna-se com alguns colegas e analisem a visão preconceituosa que
percebemos no texto de Pero de Magalhães Gândavo106. [Resposta:
Professor, depois de feito o trabalho pelos grupos, converse com os alunos
sobre o preconceito que salta aos olhos no texto de Gândavo, com relação
aos indígenas e às suas características, aos seus costumes, etc. Ressalte o
preconceito linguístico que também podemos perceber nesse texto. Não se
esqueça de compara a visão do corpo (“nisso mostram ter alguma
vergonha”, semelhante à dos outros dois autores lidos nesta seção)] (ibid.,
p. 203).
(iii) Sugestão de atividade interdisciplinar – História, Sociologia – para
discussão de preconceitos.

106
Texto: “História da província de Sanata Cruz”.
214

O texto de Hans Staden proporciona a oportunidade de discutir


preconceitos a respeito de diversas condições. Apresentamos aqui textos de
leitura para abrir um debate ou discussão a respeito de temas que podem
ser trabalhos a partir desse relato de viagem. [...] Para comentar o
canibalismo e os preconceitos e desconhecimentos que envolvem a opinião
das pessoas em geral sobre essa prática de alguns povos, sugerimos a
leitura do texto transcrito a seguir [...] [Textos apresentados: “O sabor da
própria carne”, Ricardo Arnt; “A formação e a convivência multiétnicas no
Brasil e o mito da sua cordialidade”, Moacyr Scliar] (FARACO; MOURA;
MARUXO JR., 2014 [Vol. 1 – Apêndice: “Manual do Professor”], pp. 422-
425).

Os exemplos acima transcritos atestam que a coleção fornece subsídios para que o
professor promova uma leitura crítica/reflexiva das narrativas coloniais, que questione a
hegemonia desses discursos. A título de complementação, há ainda, ao final do Manual do
Professor, a proposta de um projeto interdisciplinar extraclasse baseado no levantamento de
relatos de preconceitos dos quais os alunos suponham terem sido vítimas, para que, a partir de
tais registros, sejam realizadas pesquisas sobre os tipos de discriminação relatados, as quais,
por sua vez, devem ser socializadas com toda a comunidade escolar (FARACO; MOURA;
MARUXO JR., 2014 [Vol. 1], p. 432). Verifica-se, pois, um efetivo alinhamento aos objetivos
voltados à preconização de atitudes mais éticas e cidadãs, conforme anunciado no Manual do
Professor.
As produções artístico-literárias indianistas e condoreiras encontram-se distribuídas
na primeira unidade (Unidade 1 – “... como um romance [I]”) do segundo volume de LPLI04.
Os exercícios iniciais envolvendo textos desse período baseiam-se em trechos do romance
Iracema (1865), de José de Alencar, que integra, junto de excertos da obra de Joaquim
Manuel de Macedo, Visconde de Taunay e Manuel Antônio de Almeida, uma coletânea
introdutória da prosa romântica. Para a apresentação da poesia, a coleção recorre a fragmentos
de Gonçalves Dias enquanto representativos da valorização “do nativo” e “da natureza”. Nos
dois casos, predominam enquadradores discursos textuais e solicitações analíticas,
direcionados a operações de localização, identificação, justificação e inferência, que não
extrapolam para reflexões acerca da idealização dos indígenas e/ou dos pontos de contato com
os discursos coloniais. Este aspecto é mencionado apenas ao professor, estando previsto,
portanto, na mediação a ser exercida pelo docente em sala de aula: “Professor, [...] faça
também uma síntese da origem do indianismo, comparando-a com a volta ao passado na
literatura europeia” (FARACO; MOURA; MARUXO JR., 2014 [Vol. 2], p. 30); “Professor,
[...] mais importante que responder a questões pontuais do texto, é os alunos perceberem a
215

idealização a que Gonçalves Dias submete a figura do indígena e compreender o motivo dessa
idealização” (FARACO; MOURA; MARUXO JR., 2014 [Vol. 2], p. 56). No Caderno do
Aluno, a coleção discorre, brevemente, sobre o mito do “bom selvagem” para situar a escolha
do índio como símbolo nacional do contexto do Romantismo (ibid., p.55), o que dialoga com
as sugestões didático-pedagógicas feitas ao professor.
A análise do Condoreirismo, descrito na coleção como exemplar da dita “literatura
engajada”, dá-se a partir da leitura de um fragmento de “O navio negreiro” (1880), de Castro
Alves, para a qual são elaborados exercícios também atentos a elementos intratextuais e
linguísticos, com exceção da pergunta 19: “Onde fica Serra Leoa? Localize o país no mapa-
múndi. Por que o autor e referiu a esse lugar? [Resposta: Fica na África, ao lado do Atlântico
(ocidental). Referiu-se a esse lugar porque muitos negros escravizados vinham desse país]”
(FARACO; MOURA; MARUXO JR., 2014 [Vol. 2], p. 66). Trata-se, a nosso ver, de uma
proposta interessante visto que muitos alunos não pensam a África como um continente;
explorar sua geografia mostra-se, assim, um exercício produtivo à desmistificação de seu
território.
Em linhas gerais, é possível depreender que LPLI04, ao menos nos capítulos
relacionados ao Romantismo, caracteriza-se por investir mais no Manual do Professor que no
Caderno do Aluno no que tange à promoção de leituras mais críticas sobre o passado colonial
na literatura. A despeito, portanto, da qualidade das informações e dos direcionamentos
disponibilizados ao docente, as atividades listadas aos alunos parecem limitar-se, com
frequência, a operações basilares de identificação, justificação, etc., mesmo ao se ter vista
que, por vezes, os textos da subseção de literatura são ainda retomados nas subseções de
gramática/ análise linguística, a fim de consolidar a “articulação dos eixos” pretendida pela
coleção. Trata-se de uma nova ocorrência daquilo que denominamos de “quebra coesiva” ao
analisar a coleção NP02, isto é, de um descompasso entre o teor da versão do aluno e o teor
da versão do professor. No desenrolar da nossa pesquisa, buscamos expandir nossas reflexões
a respeito das possíveis implicações de tal discrepância.

Reestruturando o cânone I: literaturas africanas e literatura negra/afro-brasileira em


LPLI04

As literaturas africanas fazem-se presentes em diferentes capítulos dos três volumes


de LPLI04 e também em uma seção exclusiva. No primeiro caso, o uso desses textos torna
mais evidente o intuito de articulação dos eixos de aprendizagem que fundamenta a
216

organização da coleção. Na unidade de abertura do Volume 1 (“Das histórias do passado às


histórias do presente”), no capítulo dedicado ao gênero “conto” (capítulo 1), o texto “O
menino que escrevia versos” (2003), do moçambicano Mia Couto, é utilizado como texto-
fonte para a análise de características desse tipo de narrativa e a outras questões de viés tanto
linguístico quanto literário. Dessarte, além da recorrência de enquadradores discursivos
textuais e de solicitações analíticas focados na interpretação de aspectos basilares envolvendo
os personagens e determinadas passagens da narrativa (tais como, “2. [...] b) Uma dessas
personagens está ausente nos momentos das consultas médicas. Qual?; “3. O fato de o garoto
escrever versos preocupa o pai dele. Por quê?” [FARACO; MOURA; MARUXO JR., 2014
[Vol. 1], p. 24]; “5. b) Explique de que forma o tratamento sugerido pelo médico ‘soluciona’
o problema do menino” [ibid., p. 25]), trechos do conto são aproveitados em exercícios de
análise linguística, sobretudo no que diz respeito a reflexões sobre elementos típicos da
narração, como a especificidade da escolha lexical, os tempos verbais, o uso da linguagem
figurada e também as marcas de tempo e espaço (uso dos advérbios, por exemplo) típicas da
narração.
Embora o conto de Mia Couto não esteja situado na subseção de literatura, servindo,
principalmente, de pretexto para o estudo do gênero conto, encontramos exercícios produtivos
para se pensar a introdução do continente africano e de Moçambique nos livros didáticos de
Português. Primeiramente, cabe citar a presença de um Box com dados básicos de
Moçambique, os quais são acompanhados de um mapa da África em que o país aparece em
destaque (FARACO; MOURA; MARUXO JR., 2014 [Vol. 1], p. 24). Em segundo lugar,
consideramos igualmente positiva a discussão acerca da variação do português no Brasil e em
Moçambique; propõe-se aos alunos que anotem, pesquisem e socializem palavra e expressões
que possam ter causado algum estranhamento durante a leitura do conto de Mia Couto (ibid.,
p. 26)107. Finalmente, uma das solicitações analíticas dá margem à abordagem de aspectos
culturais e históricos do país, aproximando, ainda mais, os alunos desse “novo” repertório:

7. Você já sabe que há quatro personagens na história lida. Por que, em sua
opinião, apenas a mãe do menino tem o nome explícito, e as outras
personagens são apenas designadas pelo que “fazem”? [Instrução: Professor,
nas Orientações Específicas do Manual do Professor, há informações a
respeito de Moçambique. Seria interessante que os alunos conhecessem um
107
Vale lembrar que, conforme informamos no início da análise, o Guia do PNDL 2015 critica o fato de a
coleção discutir a questão da variação linguística apenas em relação às variantes observadas entre os países
lusófonos, deixando em segundo plano o debate das variações regionais existentes no Brasil.
217

pouco a história desse país quando forem resolver esta questão. Dê a eles a
oportunidade de formular hipóteses interpretativas. Uma hipótese
interpretativa dos autores deste livro didático, baseada na estrutura do
conto e na relação de poder entre as personagens protagonista e
antagonista, seria a seguinte: o menino e o pai opõem-se um ao outro e
representam dois momentos distintos da vida em Moçambique – o passado,
marcado pelo fazer físico (o trabalho de mecânico) e o futuro, marcado pelo
fazer intelectual (o trabalho poético). Essa relação complexa é mediada pela
mãe, personagem entre o passado e o futuro (o presente). Talvez, por isso,
seja a única personagem nomeada no conto]. (destaque nosso) (FARACO;
MOURA; MARUXO JR., 2014 [Vol. 1], p. 30).

Por sua vez, as “orientações específicas” indicadas ao professor trazem um breve


panorama da história de Moçambique (FARACO; MOURA; MARUXO JR., 2014 [Vol. 1 –
Apêndice: “Manual do Professor”], p. 418). Somadas ao mapa e aos exercícios supracitados,
que, juntos, dão visibilidade à geografia, à língua e à história do país, elas parecem contribuir
para a construção de visões mais críticas sobre os países africanos de língua portuguesa ao ir
de encontro a certos imaginários que tendem a homogeneizar e estereotipar o continente.
Além do conto de Mia Couto, há nos dois primeiros capítulos do Volume 1 duas
atividades de fechamento, inseridas na seção “Para ir mais longe”, que buscam abordar o
papel das tradições e das narrativas orais, dando ênfase às culturas africanas. Observemos a
primeira proposta:

1. Muitos escritores brasileiros, como Ana Maria Machado, têm feito um


trabalho interessante de recolher histórias da tradição oral brasileira,
registrando-as em livros para públicos variados [...]. Propomos uma pesquisa
a esse respeito.
[...]
2. As literaturas de língua portuguesa (tal como a do Brasil e a de
Moçambique) têm todas alguma relação com a literatura desenvolvida em
Portugal, que é a fonte primordial, a base para constituição das outras
literaturas de mesma língua, por ser a que começou a se desenvolver
primeiro entre elas (lembra-se de que Portugal disseminou sua língua pelos
países que colonizou, sobre na América e na África). Vamos pesquisar a esse
respeito.
Reúna-se com seus colegas e, sob orientação do professor, pesquisem as
origens da literatura portuguesa e de todas as outras literaturas de língua
portuguesa, de países como Angola e Moçambique. (FARACO; MOURA;
MARUXO JR., 2014 [Vol. 1], p. 44).

Nota-se, pois, que é solicitado aos alunos que pesquisem “as origens da literatura
portuguesa e de todas as outras literaturas de língua portuguesa, de países como Angola e
218

Moçambique” (FARACO; MOURA; MARUXO JR., 2014 [Vol. 1], p. 44). Ademais, ao se ter
em mente as premissas que fundamentam as atividades precedentes, é possível concluir que a
proposta se insere em um debate mais amplo sobre a recolha e a compilação de “histórias da
tradição” realizadas por alguns escritores, tal qual o faz, segundo LPLI04, Ana Maria
Machado. Contudo, o direcionamento inicial dado pelo enquadrador discursivo extratextual
do item 2, que anuncia Portugal como “fonte primordial” da literatura dos demais países
lusófonos, pode acabar por conduzir a pesquisa, a nosso ver, a uma reafirmação de Portugal
como origem das culturas dos países colonizados e não à descoberta de suas especificidades.
Sabe-se, inclusive, que muitas literaturas africanas buscaram/buscam referências e inspirações
também na literatura brasileira. Apesar de tal exercício vir acompanhado de um pertinente
mapa em que os países de língua portuguesa são colocados em evidência, ponto que
interpretamos como sendo bastante positivo, faltam instruções detalhadas ao professor a
respeito dos meios e dos fins do levantamento. Na ausência de um enquadrador discurso mais
claro e detalhado, consideramos grave tal lacuna.
O roteiro da segunda pesquisa sugerida na seção fixa “Para ir mais longe” mostra-se
bem mais objetivo. Após indicar a leitura de obras de Luís Câmara Cascudo e de Sílvo
Romero, e de propor que os estudantes entrevistem “pessoas mais velhas”, o item 3 anuncia
que: “3. Boa parte de nossas histórias orais de origem africana vem de Angola, país africano
que, como Moçambique, também foi colonizado por Portugal. Reúna-se com seus colegas e
pesquisem essas histórias” (FARACO; MOURA; MARUXO JR., 2014 [Vol. 1], p. 71). Como
referência, mencionam-se as obras de Agostinho Neto e Pepetela, e também o livro Contos e
lendas da África (1997), de Yves Pinguilly; em seguida, os alunos são orientados a
escolherem alguns contos africanos e a pensarem as “relações entre a tradição oral angolana e
brasileira” (ibidem). Ao professor, por sua vez, registra-se: “Professor, antes de orientar a
questão 3, comente que a oratura veicula o saber tradicional de uma comunidade ou de um
povo, mobilizando esse patrimônio. A importância dessa manifestação cultural nos países
africanos é tão forte que levou o etnólogo e escritor Hampaté Bâ a afirmar que ‘em África,
cada velho que morre é uma biblioteca que desaparece’” (FARACO; MOURA; MARUXO
JR., 2014 [Vol. 1], p. 71). Na lateral direita da página, observa-se a fotografia de um “griot”,
contador de histórias africanas, rodeado por crianças.
Uma vez introduzido por tais atividades do Volume 1, o estudo de textos de autores
africanos vai sendo ampliado nos volumes seguintes. Se, como vimos, a obra de Mia Couto
219

figura como pretexto para o trabalho com o gênero conto, a do angolano José Luandino Vieira
surge como texto-fonte do capítulo “Suspense na narrativa” (Unidade 1 – “... como um
romance (I)”, Capítulo 3), do segundo volume, configurando-se, assim, um modelo de
narrativa de suspense. Apresentado na íntegra, mas trabalhado em três etapas (respeitando a
divisão definida pelo próprio autor), o conto “O fato completo de Lucas Matesso” (1975) é
explorado em seus aspectos linguísticos e literários, com atenção especial aos recursos
empregados, portanto, na construção do suspense (por exemplo, a verossimilhança e os tipos
de discursos [direto, indireto, etc.]). Nesse sentido, é válido assinalar que, a exemplo da forma
pela qual foi discutido o conto de Mia Couto, o texto de José Luandino Vieira é igualmente
usado para contrapor as diferenças linguísticas (em especial ao nível da sintaxe) estabelecidas
entre o português brasileiro e o português angolano (FARACO; MOURA; MARUXO JR.,
2014 [Vol. 2], p. 105).
Outro padrão editorial verificado refere-se à iconografia da coleção, uma vez que se
disponibilizam a fotografia de Luandino Vieira e um mapa mundial em que Angola aparece
em destaque, tais quais as imagens presentes no capítulo sobre o texto de Mia Couto.
Outrossim, ao encontro do que verificamos nos demais capítulos da coleção, é válido citar que
o presente capítulo fornece imagens tanto das zonas rurais quanto das zonas urbanas de
Angola, o que se mostra em consonância com uma apresentação não estereotipada do país.
Finalmente, na seção “Para ir mais longe”, uma das pesquisas de encerramento sugerida por
LPLI04 baseia-se ao levantamento de pratos da culinária brasileira e de outros países de
língua portuguesa, visando à produção de um “livro de culinária lusófona” (FARACO;
MOURA; MARUXO JR., 2014 [Vol. 2], p. 107).
Especificamente a respeito do teor das perguntas que embasam o exercício de
interpretação do conto de Luandino Vieira, quatro nos chamam a atenção devido ao fato de
exigirem relações extratextuais com história e com a cultura dos países africanos:

(i) 8. Podemos ver as personagens do conto como metonímias da situação


do povo de Angola, em luta pela libertação do domínio português. Explique
essa afirmativa em seu caderno. [Resposta: Lucas Matesso não é um
indivíduo, representa toda uma classe de dominados; o Chefe Reis e seu
auxiliar são metonímias para a repressão. Lucas representa todos aqueles
que entraram em confronto com o aparato repressivo]. (FARACO;
MOURA; MARUXO JR., 2014 [Vol. 2], p. 92).
(ii) 10. Releia na página 66 do capítulo anterior o significado de literatura
engajada. Pode-se classificar o conto lido como engajado? Justifique sua
opinião no caderno. [Resposta: Sim, pois o objetivo do escritor é denunciar a
220

exploração a que Portugal submetia os países dominados na África. Além


da denúncia, o autor procura afirmar a identidade de seu universo cultural
e o combate ao domínio do estrangeiro] (ibidem).
(iii) 4. [...]
a) Nesse conto, a expressão “fato completo” é empregada de forma ambígua.
Em que momento da história você descobriu os dois significados dessa
expressão?
[...]
d) Imagine: um leitor que saiba que, em Angola, “fato completo” pode
designar um prato típico se surpreenderia da mesma forma que um leitor que
desconhece o sentido dessa expressão? Justifique sua opinião. [Professor, o
conflito e o suspense do conto decorrem do sentido ambíguo da expressão
“fato completo”. Para um leitor que conhecesse todos os sentidos da
expressão, o efeito de “suspense” criado pelo narrador poderia não ser tão
surpreendente como para um leitor que não conhece a ambiguidade dessa
expressão]. (FARACO; MOURA; MARUXO JR., 2014 [Vol. 2], p. 94).

Já em relação à seção dedicada exclusivamente às literaturas africanas, situada, por


sua vez, no eixo literário, observamos que a ideia de “literatura engajada” trazida no excerto
(ii) torna-se central, a começar por sua inscrição no capítulo referente ao tipo textual
“Discurso político” (Unidade 4 – “Mundo do trabalho” [II], Capítulo 12, Volume 3). No
enquadrador discursivo extratextual que abre a seção, tem-se que:

Uma literatura engajada


A literatura, conforme você sabe, não se preocupa em mobilizar apenas o
sentimento do leitor, mas também sua consciência. Por isso, muitas vezes
trata das questões políticas e ideológicas. Quando esse objetivo predomina
numa produção literária, estamos no terreno da literatura engajada, que,
grosso modo, procura denunciar aspectos problemáticos da realidade em que
vive o escritor, de forma a contribuir para que se produzam certas mudanças
na sociedade da qual ele faz parte.
Na literatura africana em língua portuguesa predomina esse engajamento,
que se centra nas lutas pela libertação dos territórios colonizados pelos
portugueses. [...] (FARACO; MOURA; MARUXO JR., 2014 [Vol. 3], p.
327).

Atendendo ao padrão de organização do eixo literatura de LPLI04, disponibiliza-se


uma antologia de textos representativos dessas literaturas, que atestam, assim, seu caráter
“enjagado”, a qual é composta, neste caso, por uma quantidade de excertos maior que o usual:
somam-se, na totalidade, 14 fragmentos. Na Tabela 8 (página 221), listamos todas as
referências. Por ora, merece atenção o fato de apenas dois deles serem acompanhados de
solicitações analíticas, a saber, o poema “África! Ergue-te e caminha”, do escritor guineense
Vasco Cabral, e “Grito Negro”, do moçambicano José Craveirinha; o fato de se rememorar
apenas uma escritora mulher, a saber, Alda Espírito Santos, de São Tomé e Príncipe; e, não
221

menos importante, o fato de o escritor português Valter Hugo Mãe integrar a listagem, haja
vista que, a despeito de ter nascido e morado em Angola até os oito anos de idade, momento
em que se muda para Portugal, o autor assume-se, publicamente, como escritor português.
Percebemos até aqui que a coleção não explora, com empenho, a possibilidade de
estabelecer leituras comparadas, como já aponta, negativamente, a resenha do PNLD 2015.
No entanto, localizamos dois indícios de sugestão de atividades afins: como complementação
da análise do conto de Luandino Vieira que discutimos anteriormente, o Manual do Professor
indica, a depender da “disponibilidade de tempo”, que se compare este texto ao conto “A hora
e a vez de Augusto Matraga”, de Guimarães Rosa, a fim de observar “a construção da
coragem contra determinado mal” nas duas narrativas (FARACO; MOURA; MARUXO JR.,
2014 [Vol. 2], p. 412); já no Volume 3, repete-se uma proposta também presente em outras
coleções que integram o nosso corpus: relacionar o poema “Vou-me embora para Pasárgada”,
de Manuel Bandeira, ao poema “Antievasão”, do cabo-verdiano Ovídio Martins (FARACO;
MOURA; MARUXO JR., 2014 [Vol. 3], p. 110). Esta se configura a única atividade
efetivamente intertextual que encontramos em LPLI04  “23. Leia o poema a seguir, do
escritor cabo-verdiano Ovídio Martins (1928-1999), e procure as semelhanças e diferenças em
relação ao poema de Bandeira” (ibidem). Por fim, encerrando o repertório concernente a
países africanos presente na coleção, há, ainda, um excerto de O vendedor de passados
(2004), do angolano José Eduardo Agualusa, que, por corresponder a um romance epistolar, é
tomado como exemplo final do gênero “correspondência formal”, que tematiza o capítulo em
questão (FARACO; MOURA; MARUXO JR., 2014 [Vol. 3], p. 288).
No que se refere à literatura negra/afro-brasileira, LPLI04 apresenta fragmentos de O
quarto de despejo (1960), de Carolina Maria de Jesus, no primeiro volume (Unidade 2 –
“Viagens”, Capítulo 8: “Diário Pessoal”), e um excerto de Cidade de Deus (1997), de Paulo
Lins, no segundo volume (Unidade 2 – “...como um romance [II]”, Capítulo 4: “Romance
[III]”). A abordagem dada ao texto de Lins é similar às abordagens dos contos de Mia Couto e
de José Luandino Vieira, pois o fragmento de seu livro serve, majoritariamente, de texto-fonte
(/pretexto) para reflexões sobre o gênero romance. Por conseguinte, para além de perguntas
sobre elementos fundamentais para a compreensão da narrativa (contexto, construção dos
personagens, estratégias discursivas, etc.), exploram-se com veemência seus aspectos
linguísticos. O diário de Carolina Maria de Jesus, por sua vez, ainda que presente no capítulo
relacionado ao estudo de tal gênero textual, não abre o capítulo, visto que compõe o debate
222

sobre “Literatura e memoralismo” proposto pela subseção “Literatura: teoria e história”. Por
conseguinte, a análise de sua obra é mais centrada na análise literária que linguística;
questiona-se, por exemplo, a presença recorrente da “fome”, o sentido de se manter os desvios
ortográficos da autora, etc.
Para finalizar nossos apontamentos, julgamos importante dar evidência à recorrência
de solicitações cursivas nas análises elaboradas por LPLI04. Ao detalharmos a nossa
metodologia de pesquisa, explicamos que as solicitações cursivas, por postularem o
reconhecimento das subjetividades no ato de ler, pode se mostrar produtiva à introdução de
repertórios representativos da pluralidade cultural. Embora a coleção não formule solicitações
que toquem diretamente em possíveis imaginários estereotipados e/ou preconceitos que os
estudantes possam ter em relação ao continente africano e a suas culturas, consideramos
interessante a frequência com que suas atividades de leitura buscam aproveitar as
experiências pessoais dos alunos no processo de compreensão dos textos lidos. Os exemplos a
seguir correspondem, respectivamente, a questões sobre o conto de Mia Couto e o conto de
José Luandino Vieira:

7. De que maneira você acredita que as pessoas de sua convivência –


familiares, amigos, vizinhos, conhecidos – acolheriam um garoto que
gostasse de fazer versos? E você: o que acharia de um menino assim? Por
quê? (FARACO; MOURA; MARUXO JR., 2014 [Vol. 1], p. 25).
7. Leia uma passagem do texto:
[...] uma vontade de rebentar à porrada esse cão do Lucas Matesso, fazer-lhe
confessar qualquer coisa, nem que fossem mentiras não fazia mal. (linhas
84-87)
Você já deve ter assistido filmes em que prisioneiros são submetidos a
tortura e, depois de algum tempo de resistência, torturado “confessa”
mesmo o que não fez e o torturador aceita qualquer tipo de confissão,
mesmo sabendo não ser verdadeira. Tente explicar por quê. [Resposta:
Professor aceite as respostas coerentes. Geralmente, as pessoas sob tortura
acabam dizendo tudo o que o torturador deseja ouvir, às vezes apenas para
que a dor cesse.] (destaque nosso) (FARACO; MOURA; MARUXO JR.,
2014 [Vol. 2], p. 85)108.

Outra ocorrência que nos chama a atenção em LPLI04 é a das solicitações cursivas
que integram a leitura de textos opinativos sobre cotas raciais, devido, sobretudo, às críticas
que fizemos anteriormente à coleção PL01, a qual fornece, inclusive, o mesmo repertório

108
Há, ainda, uma (e única) solicitação cursiva acerca do poema “Canção do tamoio - Natalícia”, de Gonçalves
Dias: “5. Seu pai ou algum familiar já se dirigiu a você exortando-se a ser corajoso diante das adversidades da
vida? Quer contar como foi? [Professor, trabalhe apenas depoimentos espontâneos]” (FARACO; MOURA;
MARUXO JR., [Vol. 2], p. 57).
223

textual que LPLI04109. Na primeira coleção por nós analisada, o tema das cotas comparece no
Manual do Professor como um tema favorável à educação para a cidadania. Se, de um lado,
observamos que as reflexões desenvolvidas ampliam, de fato, o olhar do estudante no que
engloba a temática das ações afirmativas, de outro, verificamos que a condução das atividades
de interpretação acaba por se voltar, na prática, mais a um uso dos textos como pretextos para
o estudo de estratégias de argumentação e de gêneros argumentativos. Desse modo, as
opiniões e as vivências dos estudantes são exploradas desde que seja mantida certa articulação
(de concordância ou de discordância) com os textos lidos. Em LPLI04, por sua vez, o uso de
tais textos para o estudo do gênero “discurso político” não é marcado pelo apagamento das
impressões pessoais dos alunos, mas ao contrário: conforme vemos nos excertos citados a
seguir, a coleção parte, precisamente, das opiniões dos alunos para então solicitar uma relação
com os argumentos presentes nos textos lidos:

1. O que você sabe sobre os temas das cotas raciais de acesso às


universidades públicas federais? Se tiver pouco conhecimento a respeito
desse assunto, pesquise-o e registre em seu caderno as principais ideias que
reunir.
2. Com base na resposta à questão 1, discuta com seus colegas e o professor:
por que esse tema é potencialmente polêmico? [Professor, espera-se que os
alunos percebam que um tema é potencialmente polêmico quando suscita
opiniões divergentes. Nem todos os possíveis leitores do texto de José
Roberto F. Miltrão tenderão a concordar com as ideias que são
apresentadas no texto, o mesmo vale para o texto de Hédio Silva Jr. O fato
de haver quem discorde de uma ideia e argumento em favor de sua posição
pessoal (ou do grupo que supõe representar) torna o tema potencialmente
polêmico].
3. A leitura atenta dos dois textos justifica a resposta que você deu à questão
2? Explique. [Professor, espera-se resposta afirmativa e justificativas
coerentes].
4. Segundo alguns estudiosos deste assunto, a lei das cotas raciais deixa de
reconhecer o mérito como único critério para admissão nas universidades
públicas. Qual é a sua opinião a respeito dessa afirmação? Utilize
argumentos dos textos lidos para ajudá-lo a defender seu ponto de vista.
[Professor, procure apenas analisar a coerência entre opinião e argumentos
reunidos].
(FARACO; MOURA; MARUXO JR., 2014 [Vol. 3], p. 323).

109
Ambas as coleções contrapõem, em suas atividades de análise, os seguintes textos: “Cota valida teses
racistas”, de José Roberto Ferreira Militão (foi secretário-geral do Conselho da Comunidade Negra no governo
do Estado de São Paulo e atuou na Comissão de Assuntos Antidiscriminatórios da OAB/SP) e “Cotas
enriquecem universidades”, de Hédio Silva Jr. (foi secretário do governo do Estado de São Paulo e, na ocasião,
diretor acadêmico da Faculdade Zumbi dos Palmares e do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e
Desigualdades).
224

Essa breve comparação entre PL01 e LPLI04 não visa contestar a qualidade dos
exercícios da primeira coleção, pois, como já afirmamos, eles favorecem, de fato, uma
reflexão crítica sobre o tema. O nosso objetivo com tal contraposição é esclarecer qual é o
lugar a ser ocupado por solicitações cursivas na condução de temas sensíveis a questões
raciais, dado que as leis 10.639/03 e 11.645/08 têm também a finalidade de combater o
preconceito e a discriminação. Para tanto, faz-se necessário, a nosso ver, reconhecer os
estudantes como sujeitos, dando mais espaço a suas experiências de vida e de leitura.
A título de fechamento, enfatizamos um ponto ao qual damos mais atenção na síntese
das conclusões às quais chegamos com nossas análises: o uso das literaturas preconizadas
pelas leis para o estudo de gêneros textuais diversos, ou seja, o deslocamento desse repertório
para outros eixos de aprendizagem que não o eixo literatura. Em uma primeira leitura, esse
uso nos remete a duas indagações: (i) em que medida a escolha desses textos como textos-
modelo de gêneros como romance e conto mostra-se positiva a uma revisão do cânone
escolar, ou, em outras palavras, quais são os efeitos da predileção por Mia Couto e Luandino
Vieira para a introdução dos estudos sobre gêneros narrativos em detrimento da seleção de
autores clássicos ou dotados de certo prestígio dentro da literatura brasileira contemporânea,
por exemplo?110; (ii) por outro lado, que efeitos tem, para a análise literária, essa articulação
dos eixos de conhecimentos linguísticos e de literatura no que diz respeito, por exemplo, à
apreciação estética e à observação dos pormenores socio-históricos que atravessam as
narrativas estudadas? Trata-se de questões que buscamos retomar e debater ao concluirmos a
análise do nosso corpus de pesquisa111.

Reestruturando o cânone II: literaturas indígenas em LPLI04

Não encontramos textos de autoria indígena no eixo literatura do LPLI04. E,


diferentemente de outras coleções do PNLD 2015, o manual não estabelece uma articulação
dos textos indianistas do Romantismo à problemática indígena na contemporaneidade, ainda
que as culturas dos povos originários sejam pontual e superficialmente recuperadas em duas
110
Nas três primeiras coleções por nós analisadas, por exemplo, os textos-fonte que introduzem o estudo do
gênero “conto” são todos de autores brasileiros: “As cerejas”, de Lygia Fagundes Telles (Volume 2, de PL01);
“Tantas mulheres”, de Dalton Trevisan (Volume 2, de NP02); e “Espaço vital”, de Moacyr Scliar (Volume 3 de
PCIS03).
111
Em certa medida, tais relações didático-pedagógicas estabelecidas entre “análise linguística” e “análise
literária” são por nós discutidas em artigo publicado na revista Leitura: teoria & prática: DE SÁ, A. P. S.. “As
dicotomias da leitura na educação básica: reflexões sobre o literário e o não literário”. Leitura. Teoria &
Prática (Campinas), v. 34, p. 111-124, 2016.
225

passagens do capítulo sobre “narrativa histórica” do primeiro volume: na abertura do capítulo,


em que há uma fotografia de crianças Barasana e Tuyuka banhando-se em um rio, cuja
legenda faz referência à influência indígena no nosso hábito de tomar banho  o texto-chave
do capítulo corresponde a uma narrativa histórica sobre hábitos de higiene e o uso do
banheiro na Antiguidade (“Em casa - O banheiro”, de Bill Bryson) (FARACO; MOURA;
MARUXO JR., 2014 [Vol. 1], p. 100); e em seu fechamento, em que é sugerida a leitura de
um texto “sobre as primeiras sociedades de que se tem notícia”, intitulado “A chegada dos
peles-vermelhas”, de Ivar Lissner, o qual dá encaminhamento a uma atividade de produção
escrita (ibid., pp. 126-129).
226

A título de retomada e de síntese: LPLI04 e o repertório das leis 10.639/03 e 11.645/08


(produções de autoria indígena, negra/afrodescendente e/ou africana, para além do cânone
escolar).

LPLI04 REPERTÓRIO LOCALIZAÇÃO


Unidade 1 – “Das histórias do
Conto “O menino que escrevia versos” (2003),
passado às histórias do presente”,
de Mia Couto (Moçambique).
VOLUME Capítulo 1: “Conto”.
1 Unidade 3 – “Viagens”, Capítulo
Diário Quarto de Despejo (1960), de Carolina 8: “Diário pessoal”, Subseção
Maria de Jesus. “Literatura: teoria e história –
Literatura e memorialismo”.
Unidade 1 – “... como um
Conto “O fato completo de Lucas Matesso”
romance (I)”, Capítulo 3:
VOLUME (1975), de José Luandino Vieira.
“Suspense na narrativa”.
2
Unidade 2 – “... como um
Romance Cidade de Deus (1997), de Paulo
romance (III)”, Capítulo 4:
Lins.
“Romance (III)”.
Poema “Grito Negro”, de José Craveirinha
(Moçambique).
Poema “Voz do sangue”, de Agostinho Neto
(Angola).
Poema “A fronteira de asfalto”, de Luandino
Vieira (Angola).
Romance Mayombe, de Pepetela (Angola).
Poema “África! Ergue-te e caminha”, de Vasco
Cabral (Guiné Bissau).
Romance O vendedor de passados, de José
Eduardo Agualusa (Angola).
Romance A máquina de fazer espanhóis, de Unidade 4 – “Mundo do
Valter Hugo Mãe (anunciado como “escritor Trabalho (II)”, Capítulo 12:
angolano” pela coleção). “Discurso político”, Subseção:
Poema sem título (“Sou analfabeto...”), de José “Literatura: teoria e história –
Craveirinha (Moçambique). Literatura africana em língua
VOLUME
Poema “Um homem nunca chora”, de José portuguesa: tendências”.
3
Craveirinha (Moçambique).
Conto “A princesa russa”, de Mia Couto
(Moçambique).
Poema “Ansiedade”, de Carlos Semedo (Guiné
Bissau).
Poema “Lá no Água Grande”, de Alda Espírito
Santo (São Tomé e Príncipe).
Poema “Em torno da minha baía”, de Alda
Espírito Santo (São Tomé e Príncipe).
Poema sem título (“Não sei se existe Deus...”),
de José Craveirinha (Moçambique).
Unidade 2 – “O Brasil, sob
muitos olhares”, Capítulo 4:
Poema “Antievasão” (1962), de Ovídio Martins
“Canções”, Subseção:
(Cabo Verde).
“Literatura: teoria e história – A
poesia de Manual Bandeira”.
Tabela 8. Relação de textos e autores abordados em LPLI04.
227

4.1.5. Português – Linguagens em Conexão (Leya) – 5ª coleção do PNLD


2015 em número de distribuições

SETTE, Maria das Graças Leão; TRAVALHA, Márcia Antônia; BARROS, Maria do
Rozário Starling de. Português – Linguagens em Conexão (Livro do Professor), Volumes
1, 2 e 3, São Paulo: Leya, 2013.

SIGLA: PLC05

Segundo a resenha presente no Guia de Português do PNLD 2015, PLC05 tem como
ponto forte a “boa articulação entre os diferentes eixos de ensino”, bem como a qualidade de
seu material impresso (BRASIL-MEC/SEB, 2014b, p. 61). Destaca-se, ainda, positiva e
repetidamente, a “abrangência de imagens” no que diz respeito ao trabalho de leitura
(ibidem), aspecto que também nos chama a atenção, principalmente por se tratar de uma das
poucas coleções a apresentar a imagem de uma obra artística de um artista afrodescendente,
ocorrência que comentamos na subseção reservada ao estudo da microestrutura da coleção. Já
o ponto fraco assinalado pelo guia refere-se tanto a certa tradicionalidade no ensino de
gramática quanto a “pouca diversidade de gêneros orais” (ibidem).
Em relação à descrição estrutural da obra, interpretamos como adequada e produtiva
a presença de pré-textos (verbais e não verbais) antes dos textos de leitura, visto que, em
concordância com a resenha, notamos que eles “aguçam a curiosidade do aluno e ativam seu
conhecimento prévio” (BRASIL-MEC/SEB, 2014b, p. 62), aproximando-se da perspectiva de
leitura subjetiva/cursiva por nós rememorada e, por que não, preconizada. Igualmente ao
encontro do Guia, consideramos que PLC05 “permite uma boa interlocução com o professor”
(ibidem), um ponto que enfatizamos em diferentes momentos da nossa análise. Por outro lado,
temos algumas ressalvas concernentes a gama de críticas positivas dirigidas, pelo Guia, ao
eixo literário; de acordo com a resenha do PNLD,

A coleção colabora significativamente para a formação do leitor literário,


pois fornece uma base conceitual consistente para o tratamento do fenômeno
literário; favorece a compreensão da literatura como campo de
conhecimento; leva o aluno a considerar a materialidade do texto na
apreensão de efeitos de sentido; disponibiliza atividades que estabelecem
relações entre o texto literário e o contexto histórico, social e político de sua
produção; e coloca a literatura brasileira em diálogo com outras
literaturas de língua portuguesa, sobretudo a produzida em Portugal.
(destaque nosso) (BRASIL-MEC/SEB, 2014b, p. 63).
Apesar de todas as observações serem pertinentes, PLC05 não dá, em nossa leitura,
igual atenção a todos os aspectos listados; ao analisarmos a coleção, notamos, de certo modo,
228

uma predileção por atividades que exploram a “materialidade do texto na apreensão de efeitos
de sentidos” em detrimento, por vezes, de um trabalho mais minucioso com questões
extratextuais. Ademais, o “diálogo” entre a literatura brasileira e “outras literaturas”, embora
presente, não culmina, em muitos casos, em perguntas intertextuais aprofundadas,
prevalecendo uma aproximação no nível das temáticas das narrativas, e não exercícios mais
pormenorizados e/ou reflexivos de leitura comparada. E, de fato, é evidente o maior interesse
de se articular a literatura brasileira à portuguesa, e não às africanas ou à afro-brasileira 
ainda que, seja importante antecipar, PLC05 disponibilize um rico repertório de textos de
escritores negros.
Estruturalmente, cada volume da coleção compõe-se de três grandes seções:
“Literatura e leitura de imagens”, “Gramática e estudo da língua” e “Produção de textos orais
e escritos” (esta última com o número fixo de oito capítulos por volume). Do total de 101
capítulos, 42 atendem ao eixo literatura e 36 ao eixo conhecimentos linguísticos, sendo que é
no terceiro volume da obra que se verifica o contraste mais acentuado de distribuição de
conteúdos: são 16 capítulos de literatura para cinco capítulos de gramática 
coincidentemente (ou não), isso ocorre no volume em que as literaturas indígenas, afro-
brasileira e africanas ganham mais espaço.
Por fim, no tangente à autoria, trata-se de um livro didático escrito por três mulheres:
Maria das Graças Leão Sette, Márcia Antônia Travalha e Maria do Rozário Starling de
Barros, todas com graduação em Letras por instituições do estado de Minas Gerais  PUC-
MG, UFMG e Fafi-BH, respectivamente , e professoras da rede básica de ensino da mesma
região. Maria do Rozário Starling de Barros é também formada em Jornalismo e mestra em
Linguística, ambas pela UFMG.

MACROESTRUTURA DA COLEÇÃO PLC05

O Manual do Professor do PLC05 é composto por respostas integradas às atividades


e por um apêndice com orientações específicas. A exemplo do que vimos em outras coleções,
o apêndice de PLC05, intitulado “Assessoria Pedagógica” divide-se em duas grandes seções:
uma de conteúdo geral e comum aos três volumes, em que apresentam os fundamentos
teórico-metodológicos do livro didático, e outra com diretrizes complementares acerca de
cada atividade e/ou de cada capítulo. Apesar de o núcleo comum de orientações dadas aos
docentes não conter nenhum registro sobre o lugar a ser ocupado pela diversidade cultural ou
229

pelas leis 10.639/03 e 11.645/08, verificamos menções a essas questões na medida em que
determinados exercícios e/ou capítulos foram se mostrando próximos/favoráveis à temática 
encontramos, no caso, alusões específicas à lei de 2003 e às respectivas literaturas por ela
postulada. Por conseguinte, as orientações complementares relativas a cada atividade e/ou a
cada capítulo, as quais são por nós comentadas no decorrer do estudo da microestrutura de
PLC05, respondem mais ao nosso foco de pesquisa do que os conteúdos gerais presentes na
subseção fixa “Assessoria Pedagógica”. Sobre esta, destacamos alguns pontos que servem de
reflexão sobre o modo pelo qual o eixo literatura é entendido pela coleção, desconsiderando
os fundamentos didático-metodológicos que embasam outros eixos (como o eixo leitura ou o
eixo escrita, por exemplo).
Ao tratar de sua “concepção de estudos linguístico-literários”, as autoras afirmam
que fizeram “também um retorno à tradição ibérica com o objetivo de levar os alunos a
compreender a influência da literatura portuguesa em nossa produção literária” (SETTE;
TRAVALHA; BARROS, 2013 [Vol 1 – Apêndice: “Assessoria Pedagógica”], p. 16), e
completam com a informação de que também são objeto de compreensão e de fruição textos
“de países lusófonos”, bem como “de autores que tratam da questão de gênero, de preconceito
racial, da realidade da periferia das grandes cidades” (ibidem). De fato, comentamos durante a
análise da microestrutura, que PLC05 se revela, a nosso ver, um livro que transita entre um
modelo mais clássico de ensino de literatura  haja vista a coleção ser veementemente presa
a autores canônicos e a uma historiografia clássica  e certos movimentos de ruptura com
esse modelo  uma vez que introduz, de forma muito crítica e variada, a literatura feminina
ou a literatura afro-brasileira, por exemplo. Não sem razão, nota-se, entre os muitos objetivos
técnicos associados pela coleção ao trabalho com a leitura literária (tais como, “reconhecer o
caráter metalinguístico dos textos literários” ou “identificar e compreender as formas
composicionais e temáticas de textos de diferentes épocas” [(ibid., p. 17)]), um objetivo
claramente voltado à promoção de novas atitudes, o qual dialoga, por sua vez, com as
questões sociais anteriormente enfatizadas por PLC05: “[levar os alunos] a compreender a
representação da terra, da mulher, do negro, do índio, do imigrante, do povo brasileiro; enfim,
da vida social e política na literatura brasileira, em diferentes momentos” (SETTE;
TRAVALHA; BARROS, 2013 [Vol 1 – Apêndice: “Assessoria Pedagógica”], p. 17).
Também o contato com textos de autores “de países africanos falantes de Língua Portuguesa”
aparece como um objetivo a ser alcançado no eixo literatura (ibidem). Finalmente, em
230

consonância com essas finalidades, anuncia-se como critério de seleção dos textos da coleção
a atenção a temáticas concernentes a preocupações contemporâneas, entre elas o “respeito ao
outro e a tolerância” e os “direitos humanos”, “com o objetivo de promover a reflexão para a
formação de valores de cidadania” (ibid., p. 9).
Os conteúdos referentes às leis 10.639/03 e 11.645/08 são articulados a mais de um
capítulo do eixo literatura, principalmente no que tange a textos de autores afrodescendentes.
Todavia, o maior volume de textos de autoria afrodescendente e africana situa-se no capítulo
“Vozes poéticas femininas, afrodescendentes e africanas contemporâneas” (Volume 3), o que
nos faz classificar a localização e distribuição de conteúdos de PLC05 também como restrita.
Ademais, vale registrar a ressalva de que a localização articulada não vem acompanhada de
um número relevante de propostas de leitura comparada envolvendo, por exemplo, Brasil e
África, a despeito de o dialogismo e de a intertextualidade fazerem-se presentes entre os
fundamentos teórico-metodológicos da coleção (SETTE; TRAVALHA; BARROS, 2013 [Vol
1 – Apêndice: “Assessoria Pedagógica”], p. 6 e p. 8).

MICROESTRUTURA DA COLEÇÃO PLC05

Revisitando o cânone: Quinhentismo e Romantismo (Indianismo e Condoreirismo) em


PLC05

Em PLC05, as atividades de leitura do repertório clássico do Quinhentismo (cartas


de Caminha, relatos de Gândavo etc.)  situadas no capítulo 11 (“Nova terra: olhares
cruzados”) do primeiro volume  baseiam-se em solicitações analíticas que buscam discutir
aspectos centrais dos enredos e alguns de seus elementos linguísticos, atendendo, à primeira
vista, a um modelo mais clássico (/pouco inovador) de abordagem de tal escola literária.
Ocorre, porém, que, em diálogo com o teor da epígrafe que abre o capítulo  a qual,
diferentemente do que preveem as atividades, aponta certa inclinação a uma leitura de viés
pós-colonial dessas narrativas 112, propostas mais críticas e reflexivas sobre o
Descobrimento ficam, em PLC05, mais a cargo do professor do que das diretrizes e dos

112
No apêndice intitulado “Assessoria Pedagógica”, esclarece-se ao professor que tais epígrafes são entendidas
pela coleção como “pequenos textos que despertem a curiosidade do aluno e dão apoio temático e motivação
para o estudo do capítulo”, possibilitando “uma breve reflexão a respeito do conteúdo que será estudado”
(SETTE; TRAVALHA; BARROS, 2013 [Vol 1 – Apêndice: “Assessoria Pedagógica”], p. 32). Daí, a nosso ver,
a relevância de uma epígrafe que direcione os alunos a uma leitura de viés pós-colonial.
231

enquadradores discursivos presentes no Caderno do Aluno. A seguir, transcrevemos tanto a


referida epígrafe quanto a respectiva instrução dada ao docente:

“(...) a literatura de viagem dos cronistas europeus só pode dar a ver um


país configurado por intenções alheias. Não basta reconhecer que eles
escreveram páginas fundamentais de uma história que nos dias respeito. O
olhar dos viajantes espelha ademais a condição de nos vermos pelos olhos
deles.” Ana Maria de Moraes Belluzzo. (SETTE; TRAVALHA; BARROS,
2013 [Vol 1], p. 138).
Proponha aos alunos uma discussão inicial sobre os sentimentos ou as
reflexões que a epígrafe da escritora, pesquisadora e professora Ana Maria
Belluzzo lhes provoca. A epígrafe tem o objetivo de levar os alunos a refletir
a respeito de como a Literatura, ou os relatos de viagem dos cronistas
estrangeiros (como a Carta, de Caminha), mostra o país do ponto de vista
europeu, com sua cultura, suas crenças religiosas e seus interesses
econômicos e políticos. Nesse trecho, a autoria não desqualifica os textos
dos cronistas viajantes, pois os considera fundamentais, mas alerta para a
necessidade de serem lidos criticamente.
Se considerar interessante, peça aos alunos que levantem hipóteses a respeito
de tudo aquilo que os nativos sentiram quando entraram em contato com os
europeus. Leve-os a refletir também sobre como os brasileiros de hoje se
veem, como analisam a vida no Brasil atual? Será que os brasileiros
continuam se vendo pelo olhar dos estrangeiros? (SETTE; TRAVALHA;
BARROS, 2013 [Vol 1 – Apêndice: “Assessoria Pedagógica”], p. 74).

Embora PLC05 não retome essa diretriz no decorrer da apresentação do gabarito dos
exercícios, consideramos pertinente analisar o capítulo dedicado às produções literárias do
Quinhentismo em conjunto com a discussão desenvolvida no capítulo precedente, intitulado
“Visões do batismo do Brasil – leitura de imagens”. Comum a todo o eixo literatura, a seção
de “leitura de imagens” propõe, neste caso, uma leitura comparada das obras A primeira
missa no Brasil (1861), de Victor Meirelles, da tela homônima assinada por Candido Portinari
em 1948, e, por fim, também do cartum homônimo do artista contemporâneo Nani (SETTE;
TRAVALHA; BARROS, 2013 [Vol 1], pp. 132-137)113.

113
As telas de Meirelles e de Portinari são facilmente encontradas em sites de busca na internet, razão pela qual
disponibilizamos apenas o cartum de Nani.
232

(A primeira missa, de Nani. Apud: Nani não erra uma!. In: Revista Palavra, Belo Horizonte: Gaia, ano 1,
n, 12, ab. 2000, p. 120)

(SETTE; TRAVALHA; BARROS, 2013 [Vol 1], p. 136).

3. Em que consiste o humor no cartum de Nani? [Resposta: Um catequista


tenta expulsar as aves “empoleiradas” na cruz. Essa ação, assim como os
troncos secos, mostra a relação predatória do colonizador com a nova
terra.] (SETTE; TRAVALHA; BARROS, 2013 [Vol 1], p. 137).

Em linhas gerais, as questões lançadas aos estudantes focam nas eventuais


similaridades e/ou discrepâncias estabelecidas entre as três obras, na pretensa
harmonia/desarmonia entre colonizadores e índios percebida nas retratações, para além da
presença de uma solicitação cursiva a respeito do gosto dos alunos: “De qual das três obras
artísticas você mais gostou? Por quê? Compartilhe sua resposta com os colegas. [Resposta
pessoal]” (ibid., p. 137). E, novamente, é possível observar um maior investimento no Manual
do Professor do que no Caderno do Aluno, dado que a aparente simplicidade dos
direcionamentos de leitura que integram os exercícios contrasta com a criticidade da
mediação de leitura descrita ao professor, a qual recupera, outra vez, a questão da “narrativa
única/narrativa oficial”.

[2. Em que elas [tela de Meirelles e tela de Portinari] são diferentes?] [...]
Leve os alunos a inferir que Victor Meirelles destaca a realidade histórica
construída pela “história oficial”, mostrando índios e europeus como
espectadores da cerimônia religiosa. O pintor do século XIX é fiel às
descrições da carta de Pero Vaz de Caminha [...]. Já Portinari rompe com
essa construção histórica. O pintor do século XX nega a “romantização” de
harmonia entre europeus e indígenas e retrata a cerimônia apenas com
europeus. [...].(SETTE; TRAVALHA; BARROS, 2013 [Vol 1– Apêndice:
“Assessoria Pedagógica], p. 73).
233

Nota-se, pois, que, neste capítulo, PLC05 vale-se de enquadradores textuais em


perguntas para as quais são esperadas respostas que toquem aspectos extratextuais, isto é:
pergunta-se, por exemplo, “1. O que as duas obras [de Meirelles e de Portinari] têm em
comum?” e “2. Em que elas são diferentes?” (ibid., p. 135), sem haver menções à expectativa
de comparação no que tange não apenas a suas técnicas e estéticas, mas também, e, sobretudo,
a suas relações com as narrativas históricas da colonização; ademais, vale frisar, os escritos de
Caminha, mencionados no gabarito, são estudados apenas no capítulo seguinte. Em nossa
conclusão, ao se considerar principalmente o Manual do Professor, a coleção mostra-se
produtiva a uma leitura crítica dos textos quinhentistas, contudo, parecer deixar algumas
lacunas na versão do material voltada aos alunos.
No estudo do Romantismo (capítulos 2, 3, 4, 5 e 6 do Volume 2), a abordagem da
fase condoreira difere-se da abordagem do Indianismo ao se mostrar veementemente
articulada aos pressupostos da lei 10.639/03. No segundo caso, contrariamente ao que vimos
em outros livros didáticos do PNLD 2015, não é muito explorada, por exemplo, a idealização
dos poetas românticos sobre os povos indígenas, havendo maior interesse em relacionar tais
produções ora à questão do nacionalismo e do gênero épico, ora à estética trovadoresca114,
como ilustra o excerto a seguir:

6. Muitos críticos literários afirmam que o indígena, personagem do


Romantismo brasileiro, é semelhante ao cavaleiro medieval. Baseando-se
nas informações que você têm sobre a Idade Média, deem sua opinião a
respeito da personagem de Gonçalves Dias em “I-Juca Pirama”.
[Resposta pessoal do aluno. Leve os alunos a concluir que a representação
do indígena do Romantismo brasileiro e a do cavaleiro medieval têm
atributos comuns, como a altivez, a lealdade e a valentia. Leia um texto
complementar sobre esse assunto na Assessoria Pedagógica]. (SETTE;
TRAVALHA; BARROS, 2013 [Vol 2], p. 33).

Por outro lado, após o debate da prosa romântica, especificamente do romance


Iracema (1865), de José de Alencar, o Manual do Professor sugere uma “atividade
complementar” de pesquisa acerca dos “povos indígenas hoje no Brasil”, que englobe as
disciplinas de Geografia e História (SETTE; TRAVALHA; BARROS, 2013 [Vol 2 –
Apêndice: “Assessoria Pedagógica”], p. 64), e que leve a uma reflexão sobre o que “pode ser
feito para garantir, constitucionalmente, o direito desses povos à terra, à preservação de sua
cultura e à sua cidadania” (ibidem). É proposto, num primeiro momento, que os alunos
114
Essa proposta de comparação reforça o objetivo de “retornar à tradição ibérica”, anunciado pelas autoras e
por nós comentado na análise da macroestrutura da coleção.
234

“pesquisem se há moradores indígenas no município em que vivem; a que povos ou etnias


pertencem [...]” (SETTE; TRAVALHA; BARROS, 2013 [Vol 2 – Apêndice: “Assessoria
Pedagógica”], p. 64)
O Condoreirismo, por sua vez, chama a atenção devido ao modo pelo qual essa
vertente literária é aproveitada para a introdução da literatura negra/afro-brasileira, o que
torna PLC05 bastante inovadora em relação às propostas que verificamos em outras coleções.
Trata-se de uma escolha que responde a um dos objetivos fundadores do capítulo 3:
“comparar poemas de denúncia social produzidos no século XIX com poemas e letras de
canções de poetas dos séculos XX e XXI” (SETTE; TRAVALHA; BARROS, 2013 [Vol 2 –
Apêndice: “Assessoria Pedagógica”], p. 61).
Dessarte, a partir de Castro Alves e de sua “denúncia social” a coleção desprende-se
do “falar sobre” e dirige-se à voz de poetas negros do século XX e XXI. Para tanto, o livro
constrói ganchos coesivos de articulação dessas literaturas através do uso do ícone “Na
bagagem”, marcador fixo de subdivisão dos capítulos da coleção, responsável por introduzir
os conteúdos a serem ensinados em cada etapa:

(i) Na bagagem
 Você acha que a poesia de denúncia social de Castro Alves
influenciou a poética contemporânea? Que poetas afro-brasileiros
dialogam com sua poesia?
 Em sua opinião, os problemas apontados em “O navio negreiro”
ainda persistem em nossa sociedade? Que outras temáticas sociais
poderiam ser abordadas nos dias de hoje?
Para ajudar a refletir a respeito dessas questões, leia um poema de Adão
Ventura, poeta afrodescendente contemporâneo. (SETTE; TRAVALHA;
BARROS, 2013 [Vol 2], p. 45).

(ii) Na bagagem
 Apesar de vários escritores afrodescendentes terem escrito textos
de reconhecido valor estético e social desde o Brasil Colônia, por
que você acha que ainda pouco se conhece sobre a literatura afro-
brasileira?
 Você já ouviu falar em Luís Gama, Domingos Caldas Barbosa,
Henrique Dias, José da Natividade Saldanha, Antônio Gonçalves
Teixeira Souza, Maria Firmina dos Reis? Será que esses poetas
tiveram visibilidade merecida?
Leia a seguir um poema “Minha mãe”, de Luís Gama, importante poeta do
Romantismo brasileiro. [Instrução dada ao Professor: Seria interessante
consultar um professor de História a respeito da Revolta dos Malês e da
revolta da Sabinada, que contaram com a participação de Luiza Mahin, mãe
235

do poeta Luís Gama]. (SETTE; TRAVALHA; BARROS, 2013 [Vol 2], p.


51).

Para além da supracitada atividade (excerto i) de comparação da poesia de Castro


Alves ao poema “Flash back” (1988), de Adão Ventura, a seção soma a esses exercícios a
análise da letra do rap “O navio negreiro” de autoria de Slim Rimografia (SETTE;
TRAVALHA; BARROS, 2013 [Vol 2], p. 47)  no Manual do Professor, citam-se outros
músicos que tratam da mesma temática, como O Rappa, Racionais MC’s, Nação Zumbi, entre
outros (SETTE; TRAVALHA; BARROS, 2013 [Vol 2 – Apêndice: “Assessoria
Pedagógica”], p. 62). Explorando, nesses textos, a questão do grave problema social
enfrentado pelos negros durante a escravidão, tais atividades encerram-se com uma reflexão
de cunho sociopolítico, norteada, a nosso ver, por objetivos ancorados na promoção de
atitudes: “5. Como vocês viram, vários poetas apontaram problemas ainda presentes na
realidade dos afrodescendentes. Conversem com os colegas e o professor sobre algumas ações
que deveriam ser desenvolvidas pela sociedade e pelas autoridades brasileiras para sanar esses
problemas” (SETTE; TRAVALHA; BARROS, 2013 [Vol 2], p. 49). Para além da indicação
de “resposta pessoal”, o professor é orientado a considerar uma “atividade complementar e
interdisciplinar” (com História, Filosofia e Sociologia), de pesquisa e de trabalho, sobre
“projetos e leis que defendem a igualdade racial” (SETTE; TRAVALHA; BARROS, 2013
[Vol 2 – Apêndice: “Assessoria Pedagógica”], p. 63), em que figura entre as “fontes
possíveis” a lei 10.639/2003115.
Em relação ao poema de Luís Gama, a coleção recorre a exercícios basilares de
interpretação e inclui, ao final da página, um Box com o indicativo de desenvolvimento de
uma pesquisa sobre “outros poetas afro-brasileiros e românticos” (SETTE; TRAVALHA;
BARROS, 2013 [Vol 2], p. 53). É interessante que o Manual do Professor lista como
comentário complementar a ser feito pelo docente o fato de o poeta romper com os padrões
estéticos europeus, pois, ao descrever sua mãe, “ele valoriza os traços físicos da mulher
africana” (SETTE; TRAVALHA; BARROS, 2013 [Vol 2 – Apêndice: “Assessoria
Pedagógica”], p. 62). Todavia, mais que o teor das atividades, julgamos que merece destaque
especial a recordação da figura histórica da mãe de Luís Gama feita por PLC05. Embora o
poema, intitulado, justamente, “Minha Mãe”, não traga dados biográficos objetivos, a coleção

115
Listam-se dois sites (site da SEPPIR e o “Portal Planalto”); três artigos acadêmicos relacionados à temática
da desigualdade racial e da literatura afro-brasileira; e também a lei 12.288/10, que institui o Estatuto da
Igualdade Racial.
236

alerta o professor quanto à possibilidade de, em parceria com o professor de História,


recuperar “a Revolta dos Malês” (1895) e a “Revolta da Sabinada” (1837)116, “que contaram
com a participação de Luiza Mahin, mãe do poeta Luís Gama” (SETTE; TRAVALHA;
BARROS, 2013 [Vol 2], p. 51). Esclarece-se, no Manual do Professor, que ela “é considerada
um exemplo de luta e resistência dos afrodescendentes” (SETTE; TRAVALHA; BARROS,
2013 [Vol 2 – Apêndice: “Assessoria Pedagógica”], p. 62). Trata-se de uma ocorrência que
chama a nossa atenção em virtude do diálogo que ela firma com as referências que listamos
na Tabela 4 (página 132), retiradas das indicações feitas pelos documentos regulatórios da lei
10.639/03, e entre as quais se encontram Luís Gama e Luiza Mahin. Se é correto afirmar que
o nome de Carolina Maria de Jesus, o qual também se faz presente na tabela em questão, tem
sido por nós identificado em diferentes coleções do PNLD 2015, o mesmo não pode ser dito
acerca de Gama e Mahin. Na subseção a seguir, ao explorarmos outros capítulos (que não do
Romantismo) em que a literatura negra/afro-brasileira é apresentada aos alunos, verificamos
que os textos de outros autores elencados na tabela, e que têm sido menos considerados pelos
livros didáticos, são trabalhados por PLC05, como Conceição Evaristo e Miriam Alves. Nesse
sentido, no que engloba a introdução de autores afrodescendentes prescrita pela lei 10.639/03,
a coleção revela-se produtiva e inovadora.
Por fim, antes de concluirmos nossos apontamentos sobre o Romantismo, é
necessário mencionar que, ao encontro do objetivo de relacionar literatura e música, tem-se
após o poema de Luís Gama um exercício de leitura sobre a letra da canção “Batuque”, de
Itamar Assumpção (SETTE; TRAVALHA; BARROS, 2013 [Vol 2], p. 55) com base na qual
o tema da escravidão é novamente debatido. Ademais, constitui-se outro dado relevante sobre
PLC05 a presença, em todos os capítulos da coleção, de minibiografias e de ilustrações dos
rostos de todos os escritores apresentados.

Reestruturando o cânone I: literaturas africanas e literatura negra/afro-brasileira em


PLC05

Conforme adiantamos, PLC05 destaca-se pelo modo como aborda a literatura


negra/afrobrasileira. Além das relações estabelecidas com as produções condoreiras, o
capítulo correspondente ao estudo das escolas Realismo e Naturalismo (capítulo 8, Volume 2)
116
O Manual do Professor registra que a primeira Revolta refere-se à defesa “[d]a libertação dos escravos negros
e [d]a liberdade religiosa” e que a segunda “defendia a autonomia política e a instituição do federalismo
republicado” (SETTE; TRAVALHA; BARROS, 2013 [Vol 2 – Apêndice: “Assessoria Pedagógica”], p. 62). Em
seguida, sugere-se que se apresente aos alunos o rap “Revolta dos Malês”, de Rafael Pondé (ibidem).
237

é encerrado com leitura de um fragmento de Cidade de Deus (1997), de Paulo Lins (SETTE;
TRAVALHA; BARROS, 2013 [Vol 2], p. 115). Contudo, observa-se que a literatura afro-
brasileira faz-se presente, especialmente, nos capítulos 12 (“Prosa contemporânea (I) – O
cenário urbano e o realismo fantástico”) e 16 (“Vozes poéticas femininas, afrodescendentes e
africanas contemporâneas”) do terceiros volume da coleção, motivo pelo qual eles são mais
discutidos nesta subseção.
O capítulo 12 não faz distinção entre as origens das literaturas de língua portuguesa,
visto que parte de seus objetivos técnicos é dar conhecer, de um lado, “o cenário urbano
brasileiro [...], a solidão urbana, a violência e a desigualdade social”, e, de outro, “alguns
prosadores importantes do realismo fantástico no Brasil, em Portugal e em Moçambique”
(SETTE; TRAVALHA; BARROS, 2013 [Vol 3 – Apêndice: “Assessoria Pedagógica”], p.
80). Assim, escritores como Rubem Braga, Ferréz e Conceição Evaristo são escolhidos para
ilustrar o primeiro caso, enquanto que nomes como José Saramago e Mia Couto teriam em
comum o fato de se aproximarem, em alguma medida, do realismo fantástico. Interessa-nos
comentar, no que abarca o cumprimento da lei 10.639/03, a presença de Mia Couto e de
Conceição Evaristo nesse capítulo, ainda que, como já observado acerca da coleção PCIS03,
reconheçamos a presença da obra de Ferréz como um dado importante, uma vez que, na
condição de literatura marginal/periférica, ela também desestabiliza o cânone escolar.
A escritora negra Conceição Evaristo é apresentada em um quadro situado após a
análise de excertos de Capão pecado (2000), de Ferréz, no qual se encontram uma fotografia
da autora, bem como sua breve biografia (SETTE; TRAVALHA; BARROS, 2013 [Vol 3], p.
207). Em seguida a esse panorama (pp. 207-209), desenvolve-se uma atividade de leitura de
um trecho do romance Ponciá Vicêncio (2003), composta por questões de múltipla escolha
retiradas e adaptadas do Exame Vestibular 2010 da Universidade Estadual de Londrina
(UEL), um fato que nos chama a atenção para os efeitos que essas provas podem ter nos livros
didáticos, os quais recorrem, com frequência, aos conteúdos cobrados nesses exames.
Adiante, discutimos ocorrências envolvendo exercícios de outros vestibulares utilizados por
PLC05.
A despeito de o romance de Evaristo ser explorado a partir de questões objetivas, e
não discursivas, cujo gabarito se restringe à indicação da alternativa correta, a coleção sugere
que o professor consulte a “Assessoria Pedagógica”, no apêndice do Manual. Nela, propõe-se
uma “atividade complementar” similar àquela presente nas diretrizes sobre o Condoreirismo,
238

havendo, portanto, nova menção à lei 10.639/03. Desta vez, indica-se um debate a respeito
“dos países africanos e de sua riqueza cultural; da herança dessa cultura e do papel dos
afrodescendentes na construção de nosso país; da importância de se cumprir a lei nº
10.639/03, de 9 de janeiro de 2003, que trata da introdução no currículo escolar da ‘História e
Cultura Afro-Brasileira’” (SETTE; TRAVALHA; BARROS, 2013 [Vol 3 – Apêndice:
“Assessoria Pedagógica”], p. 80). Ressaltando a possibilidade de se recorrer à assessoria dos
professores de História e de Geografia, prescreve-se que seja discutida igualmente a situação
histórica dos afrodescendentes no Brasil, e que se acesse o texto integral e original da lei
(ibidem)  também neste caso a coleção fornece uma breve referência bibliográfica sobre o
tema.
O conto “A carteira do crocodilo”, de Mia Couto, é introduzido aos alunos por meio
de solicitações cursivas e de um enquadrador extratextual que responde à segunda pergunta
lançada: “Você conhece a Literatura em prosa de algum escritor africano de língua
portuguesa? Qual(is)? O realismo fantástico também faria parte do contexto literário desse
continente? Um dos grandes escritores lusófonos que também abraçam o realismo mágico é o
moçambicano Mia Couto” (SETTE; TRAVALHA; BARROS, 2013 [Vol 3], p. 212). É
interessante observar que a segunda questão cursiva dá margem à exposição das ideias
prévias que os estudantes possam ter sobre as literaturas de matriz africana, antes de se
direcionar a leitura do texto a um diálogo com as características do realismo fantástico. No
entanto, com exceção de uma atividade que questiona diretamente a relação entre o texto e a
escola literária, predominam exercícios em torno de aspectos linguísticos (neologismos,
sentidos de palavras e expressões) e de estratégias narrativas (voz narrativa e composição do
narrador) que dão forma ao conto, embora haja uma atividade totalmente voltada a operações
interpretativas de inferência, as quais se revelam reflexivas e, assim, produtivas à formação de
leitores literários.
A título de ilustração, optamos por transcrever a seguir a atividade que faz alusão ao
realismo fantástico (i), visando evidenciar as nuances do direcionamento de leitura que
norteia o capítulo; transcrevemos também o primeiro exercício proposto pela coleção (ii), por
se constituir um exemplo que foge ao padrão de pergunta verificado em PLC05, pois nele a
solicitação analítica é precedida por um extenso enquadrador discursivo extratextual que
fornece aos alunos informações sobre a história de Moçambique  e não por um breve
enquadrador textual, tal qual ocorre na maioria das atividades de leitura do presente livro ;
239

e, finalmente, transcrevemos também a respectiva orientação complementar registrada no


Manual do Professor (iii).

(i) 2. Segundo estudiosos, esse conto (assim como O edifício, de Murilo


Rubião) é filiado ao realismo fantástico.
a) Que elementos desse conto de Mia Couto extrapolam a realidade, ou seja,
podem ser considerados fantásticos? [Resposta: As circunstâncias absurdas
que envolveram a morte da Senhora Dona Francisca Júlia Sacramento,
esposa do governador-geral, que é devorada por um crocodilo que sai de
sua bolsa de pele (de crocodilo); e a metamorfose pública e gradual do
corpo do governador em serpente (exceto os pés, que estavam descalços
com sapatos de couro desse animal).]
b) Como você interpreta a presença desses elementos fantásticos no conto A
carteira de crocodilo? [Resposta: Esses elementos foram usados com o
objetivo de provocar a reflexão a respeito da arrogância, da vaidade,
hipocrisia, da inveja e de denunciar a realidade; a política colonialista, o
oportunismo político etc.].
c) O que o crocodilo e a serpente simbolizam? [Resposta: Os nomes dos dois
animais estão associados a aspectos negativos do ser humano. E chamada
de cobra uma pessoa traiçoeira, maldosa. A expressão “lágrimas de
crocodilo” está associada a fingimento. Tanto no Brasil como em
Moçambique, a gíria crocodilar/crocodilagem tem o sentido pejorativo tem
o sentido pejorativo de “agir com falsidade, hipocrisia”.]
d) Que sentimentos, ações humanas e fatos reais são tematizados nesse
conto? [Resposta: A hipocrisia, a falsidade, a vaidade, a inveja, a
exploração colonial, assim como o uso político das tragédias]. (SETTE;
TRAVALHA; BARROS, 2013 [Vol 3], p. 214).

(ii) 1. Leia as informações a seguir


A República de Moçambique, cuja capital é Maputo, situa-se na costa
sudeste do continente africano. Foi uma colônia portuguesa e tornou-se
independente em 25 de junho de 1975. Segundo estudos arqueológicos, os
povos bantu se fixaram nessa região entre os séculos I e V. Além de
agricultores, eles dominavam a metalurgia, ciência que estuda os processos
de extração de metais e seu uso industrial ou a arte de trabalhar metais. Os
portugueses chegaram pela primeira vez em Moçambique em 1497.
Com base nessas informações, quem representariam as personagens
governador-geral, Sacramento; sua mulher, Dona Francisca Júlia
Sacramento; suas amigas; e os “íntimos e ilustres”?
[Resposta: Todas essas personagens representam o colonizador português
em Moçambique]. (ibidem).

(iii) 2. b) Comente com os alunos que, por meio da narração desses eventos
surpreendentes, o conto estimula a reflexão, assim como denuncia as práticas
e as relações políticas em Moçambique. Seria interessante contar com a
ajuda do professor de História para melhor contextualizar historicamente a
240

obra (SETTE; TRAVALHA; BARROS, 2013 [Vol 3 – Apêndice:


“Assessoria Pedagógica”], p. 83).

Em nossa leitura, os três excertos indicam que, ao mesmo tempo em que PLC05
escapa ao lugar comum de vincular, de forma estrita, as literaturas africanas a um tipo de
literatura “política” ou “engajada” (muito embora elas atendam, obviamente, também a essa
vertente de escrita ficcional), a coleção não desconsidera, para isso, informações socio-
históricas produtivas à leitura de grande parte dessas narrativas. Tendo em vista que muitas
das coleções do PNLD 2015 adotam apenas a primeira perspectiva (literatura
“política”/”engajada” ou, ainda, “memorialística”), este é um dado contrastivo relevante para
a nossa análise.
Antes de nos voltarmos ao capítulo 16, dois pontos dos capítulos precedentes
merecem ser citados. Primeiramente, chamam-nos a atenção os exercícios finais do capítulo
12, baseados num texto opinativo de Mia Couto (“Plastificar a cidade?”) sobre a questão da
preservação de palmeiras em Maputo, e novamente retirados e adaptados de um Exame
Vestibular, especialmente da prova de ingresso de 2012 do Instituto Federal do Tocantins
(IFTO) (SETTE; TRAVALHA; BARROS, 2013 [Vol 3], pp. 220-221). Em segundo lugar, e
não menos importante, destaca-se a repetição dos títulos de Ferréz, de Conceição Evaristo e
de Mia Couto entre as obras indicadas para o desenvolvimento de uma atividade de produção
textual concernente ao gênero “ficha de leitura”, em que é recomendada a leitura integral do
livro escolhido (ibid., p. 238)  os demais autores trabalhados no capítulo completam a lista,
tais como Rubem Braga e José Saramago.
Sob o título “Vozes poéticas femininas, afrodescendentes e africanas
contemporâneas”, o segundo capítulo a recuperar autores negros atenta-se, exclusivamente, a
um repertório literário historicamente esquecido pelos livros didáticos. Nesse sentido, PLC05
soma a voz feminina às “vozes” previstas pela lei 10.639/03. Trata-se, em nossa interpretação,
de um enfrentamento do legado colonial no que tange, igualmente, à persistência do
patriarcalismo nos processos de validação e de ordenação dos saberes. Nesse primeiro recorte
(“vozes poéticas femininas”), a obra de Conceição Evaristo reaparece ao lado de Adélia
Prado, Alice Ruiz e Hilda Hilst, bem como serve de introdução à análise de fragmentos de
“vozes afrodescendentes” (ou seja, ao segundo recorte temático do capítulo), sendo estas a
voz de Esmeralda Ribeiro (poema “Trocar de máscara”), de Solano Trindade (“Canto aos
Palmares”) e de José Carlos Limeira (poema “Diariamente”). Acerca dos três, lança-se uma
241

pergunta comum: “Quais são as temáticas desses versos?” (SETTE; TRAVALHA; BARROS,
2013 [Vol 3], p. 280). Para além das respostas detalhadas, registra-se ao professor que “se
achar conveniente, discuta o alto índice de homicídios cometido contra jovens negros e as
medidas que devem ser tomadas para garantir a segurança e os direitos desses jovens”
(SETTE; TRAVALHA; BARROS, 2013 [Vol 3 – Apêndice: “Assessoria Pedagógica”], p.
92). Também uma breve explicação sobre os sentidos de “literatura negra” e “literatura afro-
brasileira” é fornecida:

Explique aos alunos que os termos literatura negra ou literatura afro-


brasileira são usados para se referir à produção literária de autores
afrodescendentes que tematizam a história de seu povo, as tradições
africanas que formam a cultura brasileira, denunciam a exclusão social e os
preconceitos; defendem formas de resistência etc. Há divergências entre
criadores e estudiosos a respeito de qual desses termos é mais adequado.
(SETTE; TRAVALHA; BARROS, 2013 [Vol 3 – Apêndice: “Assessoria
Pedagógica”], p. 92).

Especificamente sobre este segundo estudo da produção de Conceição Evaristo, cabe


destacar que PLC05 disponibiliza o poema “Vozes-Mulheres”, a respeito do qual são feias
perguntas de interpretação acerca dos sentidos de versos específicos. Mais que os exercícios,
os enquadradores discursivos antepostos e pospostos à leitura revelam algumas
particularidades; são eles, na ordem:

Conceição Evaristo, autora afrodescendente que você conheceu ao estudar


um trecho de Ponciá Vicêncio (capítulo 12), além de romancista, é também
poeta.
A poética dos afrodescendentes apresenta temas e dicção peculiares?
Você já leu algum dos livros da série “Cadernos Negros”?
[...] (destaque nosso) (SETTE; TRAVALHA; BARROS, 2013 [Vol. 3], p.
278).

Conceição Evaristo é uma das vozes femininas mais importantes da poesia


que surge no Brasil a partir dos anos 1980. Seu poema Vozes-Mulheres,
publicado no número 13 da série Cadernos Negros do Grupo Quilombo
[sic] (SP), figura até hoje como uma espécie de manifesto-síntese de sua
poética. (destaque nosso) (ibid., p. 279).

Panorama
Como você pôde perceber nos versos de Conceição Evaristo, Esmeralda
Ribeiro, Solano Trindade e José Carlos Limeira, os sujeitos poéticos de seus
textos tematizam elementos da trajetória afrodescendente no Brasil. Por
meio do discurso poéticos, esses poetas buscam o resgate da memória,
denunciam a escravidão e suas consequências, relatam a resistência de seu
242

povo, homenageiam seus heróis, polemizam as narrativas dos colonizadores;


enfim, lutam contra o apagamento de sua História, civilização e cultura.
Além das temáticas e da denúncia social, esses poemas apresentam ritmo,
entonação e escolha vocabular peculiar, cumprindo também as funções
estéticas e poéticas que são marcas da linguagem literária. (ibid., p. 281).

A menção aos Cadernos Negros e ao Grupo Quilombhoje (este erroneamente


grafado na coleção) configura-se um ponto forte da coleção, ainda que não fiquem
devidamente claros os eventuais significados atribuídos pelo livro à ideia de “temas e dicção
peculiares” relacionada à poética afrodescendente. Trata-se de um importante movimento
artístico-literário negro que, apesar de ser citado nos documentos que regulamentam a
implementação da lei 10.639/03 (conforme ilustra o levantamento por nós registrado na
Tabela 4 [página 132]), é pouco referenciado pelas obras do PNLD 2015.
Encerrando e confirmando a significativa atenção dada às “vozes poéticas
afrodescendentes”, propõem-se breves análises do poema “Mahin amanhã”, de Miriam Alves
(SETTE; TRAVALHA; BARROS, 2013 [Vol 3], p. 282)  sendo esta atividade retirada e
adaptada de uma questão da edição de 2012 do Exame Vestibular da Universidade Federal da
Bahia (UFBA) , e de uma imagem que reproduz a escultura em madeira Altar Sacral do
escultor afrodescendente Rubem Valentim (ibid., p. 280).

(SETTE; TRAVALHA; BARROS, 2013 [Vol 3], p. 280).

Acompanham a imagem uma solicitação cursiva acerca da experiência estética e das


percepções pessoais dos estudantes e uma solicitação analítica sobre o título dado à obra. Em
seguida, vemos dois Boxes: um com a indicação da página do Museu Afro-Brasil e da
Pinacoteca, e o outro com a fotografia do artista e com excertos de seu Manifesto ainda tardio
243

(1976), no qual Rubem Valentim discorre sobre o “peso da Bahia” em sua arte (SETTE;
TRAVALHA; BARROS, 2013 [Vol 3], p. 281). Ao professor, sugere-se “realizar esta
atividade com o professor de Artes, que pode realizar um mural com reproduções de obras de
outros artistas plásticos afrodescendentes brasileiros” (ibid., p. 280). Já sobre o poema de
Miriam Alves, cujo título rememora a mãe de Luís Gama, repete-se, inicialmente, a diretriz já
presente no Volume 2, isto é, explorar, em conjunto com o docente de História, tanto a
personagem histórica em questão, quanto as revoltas das quais elas participou (“Revolta dos
Malês”, por exemplo), com o adendo de que se pesquise, inclusivamente, “a existência de
outros movimentos ocorridos no Brasil contra o regime escravocrata” (SETTE; TRAVALHA;
BARROS, 2013 [Vol 3 – Apêndice: “Assessoria Pedagógica”], p. 93). Por fim, acrescenta-se
a sugestão de que seja realçada junto aos alunos “sua própria luta como mulher negra, para
defender seu ideal [o ideal da luta dos afrodescendentes]. Uma mulher que também busca, na
verdade dos fatos, na realidade do dia a dia, o seu caminho (luta) como escritora: uma luta
que deve ser travada por si mesma, por mais ninguém” (ibid., p. 91).
No terceiro e último recorte do capítulo, “vozes poéticas africanas”, tem-se um
repertório constituído pelo poema “Grito negro” (1964), do moçambicano José Craveirinha,
pelo poema “Chão”, do angolano Ondjaki, e, repetindo o equívoco que vimos em LPLI04 em
relação à inclusão de Valter Hugo Mãe na seção de literaturas africanas, PLC05 disponibiliza
também o poema “O que é que eu quero para a minha vida?”, do português Gonçalo M.
Tavares, escritor que, assim como Mãe, nega em diversas entrevistas sua identificação como
escritor africano, mesmo tendo nascido em Angola. Trata-se, pois, de uma questão a ser
examinada no que concerne aos materiais didáticos: em que medida o local de nascimento dos
escritores figura como critério de seleção de produções artístico-literárias de matriz africana?
Entre as coleções que analisamos até aqui, em duas verificamos essa ocorrência, com a
diferença que PLC05, tanto na apresentação do autor quanto na análise dos textos, fornece
alguns vestígios sobre a relação literária de Gonçalo M. Tavares com Portugal: além de se
referir a ele como “poeta angolano/português”, a coleção contrapõe sua literatura às de
Craveirinha e Ondjaki justamente no que se refere à “temática” africana, sem, contudo,
problematizar devidamente a questão da identidade literária do escritor, como verificamos nos
excertos:

4. Qual é a diferença entre de José Craveirinha, Ondjaki e Gonçalo M.


Tavares? [Resposta: Os poemas de José Craveirinha e de Ondjaki
244

apresentam dicção poética e temas africanos; o poema de Gonçalo M.


Tavares tem caráter existencial/existencialista e, nesse sentido, reflete a
dicção poética europeia (de Portugal)]. (SETTE; TRAVALHA; BARROS,
2013 [Vol 3], p. 287).

Poéticas africanas de língua portuguesa


Os poetas africanos de língua portuguesa tematizaram em suas obras as
questões políticas e sociais de seus países, a herança colonial, os
movimentos de independência, as revoluções e a riqueza cultural africana.
Alguns deles passaram a residir, estudar, trabalhar e publicar em Portugal e
em outros países europeus. Outros se mudaram para o Brasil. E muitos
permaneceram em seu país de origem e lá mesmo desenvolveram sua obra.
Os poetas José Craveirinha e Ondjaki, nos poemas que você leu, tematizam
o processo de exploração colonial, a escravidão, o pertencimento ao
continente africano. Os temas, o ritmo, as características estilísticas e a
musicalidade dos poemas reafirmam a identidade literária da poesia dos
países africanos de língua portuguesa. Já o angolano Gonçalo M. Tavares, no
poema “O que é que eu quero para a vida?” atualiza, de forma bem-
humorada, questões existenciais muito presentes na poesia portuguesa.
(ibid., p. 288).

Uma vez analisados os três textos, o capítulo se encerra, novamente, com questões
adaptadas de Exames Vestibulares  da prova da UFBA/2011 e da prova da
UFBA/UFRB/2008, respectivamente , as quais colocam os alunos em contato com outros
textos da literatura negra/afro-brasileira: os poemas “Em maio”, de Oswaldo de Camargo, e
“Passado histórico”, de Sônia Fátima, ambos retirados dos Cadernos Negros. Nestas e nas
demais análises textuais elaboradas por PLC05, identificamos um padrão: atividades basilares
de interpretação, mas de grande potencial crítico se consideradas à luz das orientações dadas
ao professor. Os exercícios sobre os poemas de Camargo e de Fátima são, inclusive, do tipo
“múltipla escolha”, mas se pensados no contexto maior da gama de informações sobre a
literatura negra/afro-brasileira acessível ao professor, mostram-se mais produtivos. Essa
predileção pelas diretrizes fornecidas ao docente em detrimento da elaboração de questões
mais complexas e de enquadradores discursivos mais detalhados, é um dado peculiar e
interessante de PLC05, passível de ser retomado em nossas considerações gerais sobre o
PNLD 2015, na medida em que ele chama a atenção para o fato de que um repertório
inovador pode não vir acompanhado, necessariamente, de estratégias didático-pedagógicas
inovadoras. Em outras palavras, o Caderno do Aluno (em todos os capítulos) atende a um
lugar comum de estruturação e de organização dos livros didáticos, apresentando atividades
textuais que, à primeira vista, podem ser lidas como pouco críticas; nesse sentido, a
introdução de textos de autoria feminina e afrodescendente, somada (necessariamente) ao teor
245

do Manual do Professor, funciona como o grande (ou talvez o único) fator desviante de
PLC05 frente ao cânone.
Como últimos apontamentos, é preciso mencionar que há no Manual do Professor,
também no terceiro volume, uma atividade de “leitura complementar” sobre a prosa
contemporânea em países lusófonos, em que se faz referência, no caso específico dos
prosadores africanos, aos escritores angolanos Luandino Vieira, Pepetela e José Eduardo
Agualusa; a Germano Almeida (Cabo Verde) e a Abdulai Sila (Guiné Bissau) (SETTE;
TRAVALHA; BARROS, 2013 [Vol 3 – Apêndice: “Assessoria Pedagógica”], p. 85). Nas
instruções, esclarece-se que muitos desses autores refletem em sua escrita certa “tensão”
decorrente das duas realidades por eles vivenciadas, a da “sociedade colonial portuguesa” e a
da “sociedade africana”; mesmo com tal ressalva, o Manual cita a “’diversidade’ da literatura
lusófona africana” (ibid., p. 86).
Ressaltamos, finalmente, que a obra disponibiliza diversos Boxes com referências
extras aos alunos e aos docentes, indo desde a indicação de entrevistas com escritores negros
e africanos até a relação de trabalhos acadêmicos, passando também pela sugestão de vídeos
do Youtube contendo a recitação de poemas pertencentes a essas literaturas.

Reestruturando o cânone II: literaturas indígenas em PLC05

Não encontramos textos de autoria indígena em PLC05. Cabe ressaltar, nesse


sentido, que a lei 10.639/03 é discutida pela coleção enquanto a 11.645/08 não é recordada. E,
diferentemente de outras coleções do PNLD 2015, a coleção não propõe questionamentos
significativos sobre a idealização do índio nos textos do Romantismo, ainda que a “pesquisa
complementar” sobre a questão indígena, enquanto temática atrelada a direitos sociais, à
demarcação de terras etc., seja sugerida no Manual do Professor (SETTE; TRAVALHA;
BARROS, 2013 [Vol 2 – Apêndice: “Assessoria Pedagógica”], p. 64). Também em uma
atividade de produção textual do gênero “artigo de divulgação científica”, do eixo escrita, o
tema dos povos indígenas é recuperado através da análise do poema “A lágrima de Caeté”, da
escritora brasileira Nísia Floresta (SETTE; TRAVALHA; BARROS, 2013 [Vol 2], p. 307);
nesse capítulo, o texto serve de fonte inicial para um debate sobre a exploração de recursos
naturais, haja vista a “biopirataria” constituir-se o tema central do artigo de divulgação
científica a ser escrito pelos alunos. Por fim, localizamos em uma capítulo sobre
“intertextualidade”, no Volume 1, uma questão do Enem/2010 que relaciona uma charge
246

sobre a demarcação das terras indígenas a poema de João Cabral de Melo Neto (SETTE;
TRAVALHA; BARROS, 2013 [Vol 1], p. 67); e, no capítulo “origem da língua portuguesa”,
também no primeiro volume, outra questão da mesma edição do exame acerca das línguas
indígenas (ibid., p. 291).

A título de retomada e de síntese: PLC05 e o repertório das leis 10.639/03 e 11.645/08


(produções de autoria indígena, negra/afrodescendente e/ou africana, para além do
cânone escolar).
PLC05 REPERTÓRIO LOCALIZAÇÃO
Poema “Minha mãe”, de Luís Gama.
Letra da canção “Batuque”, de Itamar
Assumpção. Capítulo 3: “Romantismo (II):
Letra de rap “O navio negreiro”, de Slim poesia” (seção “Literatura e
Rimografia. leitura de imagens”).
VOLUME
Poema “Flash back” (1988), de Adão
2
Ventura.
Capítulo 8: “Realismo e
Romance Cidade de Deus (1997), de Naturalismo (I)” (eixo
Paulo Lins. “Literatura e leitura de
imagens”).
Conto “A carteira e o crocodilo”, de Mia Capítulo 12: “Prosa
Couto (Moçambique). contemporânea (I) – O cenário
urbano e o realismo fantástico”
Romance Ponciá Vicêncio (2003), de
(seção “Literatura e leitura de
Conceição Evaristo.
imagens”).
Poema “Vozes-Mulheres”, de Conceição
Evaristo.
Poema “Grito negro” (1964), de José
Craveirinha (Moçambique).
Poema “O que é que eu quero para a
minha vida?”, de Gonçalo M. Tavares
VOLUME (anunciado como “escritor
3 angolano/português” pela coleção).
Poema “Chão”, de Ondjaki (Angola). Capítulo 16: “Vozes poéticas
Poeta “Mahin amanhã”, de Miriam Alves. femininas, afrodescendentes e
africanas contemporâneas”
Imagem da escultura Altar Sacral, de
(seção “Literatura e leitura de
Rubem Valentim.
imagens”).
Poema “Diariamente”, de José Carlos
Limeira.
Poema “Trocar de máscara”, de
Esmeralda Ribeiro.
Poema “Canto aos Palmares”, de Solano
Trindade.
Tabela 9. Relação de textos e autores abordados em PLC05 . mia couto
247

4.1.6. Ser protagonista – Língua Portuguesa (Edições SM) – 6ª coleção do


PNLD 2015 em número de distribuições

RAMOS, Rogério de Araújo. Ser protagonista – Língua Portuguesa (Livro do Professor),


2ª ed., Volumes 1, 2 e 3, São Paulo: Edições SM, 2014.

SIGLA: SPLP06

Na resenha do PNLD 2015, tem-se como ponto forte da coleção o fato de suas
atividades oferecerem “múltiplas formas de abordagem dos textos” (BRASIL-MEC/SEB,
2014b, p. 71), e como ponto fraco a falta de propostas de circulação dos textos produzidos
pelos alunos (ibidem). Entre os destaques, menciona-se a promoção de articulação entre os
eixos, sobretudo entre o eixo da literatura e o dos conhecimentos linguísticos (BRASIL-
MEC/SEB, 2014b, p. 71). Em concordância com a resenha feita pelo MEC, também notamos
que os Boxes, seções fixas e links contribuem significativamente para este tipo de diálogo. Em
linhas gerais, o Guia de Português descreve e dá evidência às diversas vertentes de atividades
de leitura que atravessam todos os eixos de ensino. Atendendo a um modelo mais clássico de
livros didático, “a coleção propõe para o ensino da literatura o seu estudo cronológico, por
meio de textos e autores representativos de ‘estéticas literárias’ de diferentes épocas,
tendência caracterizada por contextualização de época e utilização de textos exemplares de
autores representativos dos movimentos” (ibid., p. 74). Percebe-se todavia, que, ao encontro
do que afirma a resenha, ocorre por vezes “uma quebra dessa tendência” em SPLP06, através
de propostas de leituras comparadas de textos “afastados no tempo” (ibidem). Isso significa
que, tal como ilustra a nossa análise, as relações intertextuais neste material obedecem mais a
um critério de diferença temporal que de diversidade cultural; não por acaso, os diálogos entre
as literaturas brasileira e africanas não são explorados pela coleção. Por fim, frisamos,
conjuntamente com o Guia, que “além de informações sobre quem é o autor, outras
informações preparam e apoiam o leitor para compreender o contexto de circulação dos
textos” (BRASIL-MEC/SEB, 2014b, p. 76), o que nos faz reconhecer os variados e extensos
enquadradores discursivos (tanto do tipo textual quanto do tipo extratextual) do Caderno do
Aluno como elementos de grande importância e impacto no direcionamento de leitura.
Assim como vimos em algumas coleções, o eixo literário é predominante em
SPLP06: dos 110 capítulos totais, 50% é reservado à literatura, sendo o restante distribuído,
com baixa margem de diferença, entre o eixo linguístico e o eixo escrita. Por outro lado,
contrariamente à maioria do corpus, a presente coleção conta com um único “editor
248

responsável”, Rogério de Araújo Ramos, Bacharel e Licenciado em Letras pela Universidade


de São Paulo (USP). A designação “editor”, e não “autor”, decorre, em nossa interpretação,
do fato de se tratar de uma “obra coletiva, desenvolvida e produzida por Edições SM”,
segundo informação registrada na primeira folha de cada volume. Entendemos, nesse sentido,
que deve ter havido o envolvimento de muitos autores, cujas produções foram
editadas/organizadas por Ramos.

MACROESTRUTURA DA COLEÇÃO SPLP06

No apêndice que integra o Manual do Professor, encontram-se tanto a apresentação


dos aspectos gerais e de sugestões complementares quanto os gabaritos das atividades.
Primeiramente, os textos gerais indicam que SPLP06 alinha seus princípios aos objetivos e às
competências e habilidades elencadas pelas OCEM – Orientações Curriculares para o Ensino
Médio. Especificamente em relação ao ensino de literatura, a coleção anuncia como “eixo
norteador” a perspectiva didático-pedagógica do “letramento literário”, embora ele não seja
conceitualmente aprofundado, mas apenas articulado às OCEM e às justificativas da coleção
acerca das razões pelas quais o ensino de literatura é importante e necessário (RAMOS, 2014
[Vol 1 – Apêndice: “Manual do Professor”], pp. 407-408). Em meio aos usuais objetivos
técnicos atrelados ao trabalho com a leitura literária, como “olhar para os recursos
expressivos de diferentes formas de arte” ou “propiciar experiências estéticas variadas” (ibid.,
p. 407), SPLP06 vincula a literatura a um “importante trabalho de humanização por meio da
arte” (ibid., p. 408), sem propor, no entanto, nenhum objetivo claramente voltado à promoção
de atitudes, ainda que o diálogo repetidamente firmado com as OCEM acabe por deixar
prevista uma proposta de ensino que esteja atenta, também, à educação para a cidadania.
Em termos de repertório, SPLP06 sublinha, inicialmente, o “estudo de textos
representativos do cânone literário em língua portuguesa” (RAMOS, 2014 [Vol 1 – Apêndice:
“Manual do Professor”], p. 408) como seu principal critério de seleção de textos. Em um
segundo momento, ao chegar à descrição dos conteúdos no terceiro volume, afirma-se que a
presença das literaturas de países africanos lusófonos está em conformidade com a lei
10.639/03 e com o “reconhecimento às profundas relações históricas, sociais e culturais entre
o nosso país e as nações africanas de língua portuguesa” (ibid. ,p. 410); adverte-se igualmente
que se privilegiam “as literaturas de Angola e Moçambique, que possuem maior penetração
em nosso meio literário” (ibidem). A despeito de haver uma seção exclusiva a essas literaturas
249

ao final do livro, também encontramos textos de autores africanos em outros capítulos, de


modo que a localização e distribuição desses conteúdos é do tipo restrito e do tipo articulado.
Cabe ressaltar, por fim, que a lei 11.645/08 não é mencionada.
A respeito de seu projeto editorial, observa-se que cada volume de SPLP06 conta
com três blocos de unidades  um para cada eixo de ensino-aprendizagem (a saber,
literatura, linguagem e produção de texto) , sendo estas subdividas em capítulos. Fica claro
no desenvolvimento de nossa análise que a coleção destaca-se pelo uso que faz de certos
Boxes e determinados seções fixas, dos quais merecem atenção: o Box de atividade “O que
você pensa disto?”, do eixo literário, que leva “o aluno a articular conceitos e noções
presentes em determinado período literário com problemáticas referentes ao contexto
contemporâneo” (RAMOS, 2014 [Vol 1 – Apêndice: “Manual do Professor”], p. 426), e que,
em nossa leitura, possibilita um bom trabalho com solicitações cursivas e com o gênero
“debate”; e o Box informativo “Ação e cidadania”, transversal aos três eixos, o qual detalha
aspectos de questões sociais que sejam próximas das temáticas dos capítulos.

MICROESTRUTURA DA COLEÇÃO SPLP06

Revisitando o cânone: Quinhentismo e Romantismo (Indianismo e Condoreirismo) em


SPLP06

Em “As origens da literatura brasileira” (Unidade 5 – “As manifestações literárias no


Brasil quinhentista”, Volume 1), SPLP06 propõe, mais que atividades sobre pontos centrais
das diferentes imagens e narrativas do Descobrimento, reflexões sobre as implicâncias do
olhar etnocêntrico do europeu nesses discursos, por meio tanto de seus enquadradores
discursivos extratextuais (os quais são bastante frequentes na coleção) quanto dos solicitações
interpretativas propostas. Selecionamos alguns exemplos:
250

BRY, T. A divisão do corpo do prisioneiro e o preparo do alimento (1592).

2. A antropofagia era um ritual comum na cultura tupinambá. A devoração


dos corpos não era um hábito alimentar, mas uma homenagem aos mortos e
o desejo de adquirir suas características, como força e coragem.
a) Esse aspecto cultural está representado na gravura de Bry? Justifique sua
resposta com elementos da imagem. (RAMOS, 2014 [Vol 1], p. 115).
[Resposta: Não. Na gravura, o ritual antropofágico é representado como ato
de selvageria: e dado destaque ao esquartejamento, e também à
contraposição entre a postura violenta dos indígenas e a placidez e o medo
do europeu.]. (RAMOS, 2014 [Vol 1 – Apêndice: “Manual do Professor”],
p. 474).
b) Que tipo de visão sobre a cultura dos indígenas a gravura sugere?
(RAMOS, 2014 [Vol 1], p. 115). [Resposta: Uma visão preconceituosa, que
desconsidera culturas diferentes e inferioriza seus praticantes. Como o
ponto de vista privilegiado na representação é o da cultura européia da
época, pode-se dizer que se trata de uma visão eurocêntrica.]. (RAMOS,
2014 [Vol 1 – Apêndice: “Manual do Professor”], p. 474).

3. Qual é a imagem do indígena construído no texto de Gândavo? Identifique


as características principais que compõem essa imagem. (RAMOS, 2014
[Vol 1], p. 115). [Resposta: Assim como na gravura de Bry, o indígena é
retratado como um animal selvagem no texto de Gândavo: “mui desumanos
e cruéis, inclinados a pelejar, e vingativos por extremo. Vivemo todos mui
descansados sem terem outros pensamentos senão de comer, beber e matar
gente”.]. (RAMOS, 2014 [Vol 1 – Apêndice: “Manual do Professor”], p.
474).

[Enquadrador discursivo presente no Caderno do Aluno] [...] Apesar da


objetividade pretendida por esses relatos, muitos deles, contudo, se
deixavam influenciar pelas fantasias que o misterioso Novo Mundo
despertava no imaginário europeu. Nos diários de viagem dessa época, como
os de Cristóvão Colombo ou do português Gândavo, há referências a seres
251

míticos como sereias, monstros marinhos ou indivíduos com apenas um


olho. (RAMOS, 2014 [Vol 1], p. 117).

Para além das análises textuais do capítulo, destaca-se o papel exercido por algumas
seções e Boxes fixos do eixo literatura, bem como as orientações complementares presentes
no Manual do Professor. No Box informativo “Ação e cidadania”, afirma-se que “o
Quinhentismo marcou o início de uma relação entre nativos e europeus muito desvantajosa
para os indígenas”, sendo citados como exemplos dessas desvantagens a escravidão indígena,
as doenças trazidas pelos brancos, a luta pela posse de terras e a dominação cultural
(RAMOS, 2014 [Vol 1], p.116)  vale registrar que integra o presente Box uma imagem do
movimento indígena em frente ao Congresso Nacional. Já no Box de atividade “O que você
pensa disto?” (ibid., p. 123), os alunos são convidados a refletir e a debater sobre os direitos e
sobre a identidade cultural dos povos indígenas117; transcrevemos abaixo as perguntas
lançadas a respeito do tema e a respectiva orientação dada ao professor:

A demarcação das terras indígenas faz surgir um antigo debate: Os povos


indígenas devem realmente ter leis especiais, ou devem estar sujeitos às
mesmas normas que o restante da população brasileira? Qual é o melhor
modo de preservar sua identidade cultural? Por que se deveria preservar essa
identidade cultural? (RAMOS, 2014 [Vol 1], p. 123). [Resposta pessoal.
Professor: Peça aos alunos que contem o que sabem sobre a história e a
cultura dos indígenas brasileiros. É provável que eles apontem várias
contribuições para a formação da cultura do Brasil, e também que reflitam
à drástica redução no número de indígenas no país e ao fato de grande
parte deles ter se submetido a uma cultura que não lhes era original.
Conduza-os, então, a refletir sobre a necessidade ou não de preservar a
identidade cultural em tempos de globalização. De que forma seria possível,
por exemplo, valorizar a cultura dos antepassados e manter uma identidade
cultural e, simultaneamente, fazer parte de uma sociedade em constante
mudança, usufruindo dos avanços da tecnologia? Estimule a diversidade de
opiniões, observando, especialmente, se não haverá o reforço de
estereótipos que impeçam uma visão dos povos indígenas como iguais aos
demais em capacidade de aprendizagem, de atuação política, etc.]
(RAMOS, 2014 [Vol 1 – Apêndice: “Manual do Professor”], p. 475).

Um ponto relevante de tais diretrizes está na conjugação do indicativo de “resposta


pessoal” a sugestões mais detalhadas dos possíveis caminhos de mediação a serem tomados
pelo docente. Trata-se de uma ocorrência presente em toda a coleção, e que, a nosso ver,

117
Outro exemplo interessante dos conteúdos trazidos pelo Box “O que você pensa disto?” encontra-se no
Capítulo 11, “O Barroco em Portugal”, em que, a partir do estudo dos sermões do Padre Vieira, se pergunta: “é
possível observar essa relação entre os campos religioso e político atualmente? Em caso positivo, que exemplos
você poderia citar?” (RAMOS, 2014 [Vol 1], p.141).
252

favorece o aproveitamento das solicitações cursivas frequentemente requisitas em SPLP06.


Por outro lado, diferentemente do livro didático que analisamos anteriormente, PLC05, os
alunos não são instruídos a pesquisarem sobre a presença indígena em seus municípios. O
aluno indígena não é tido como interlocutor provável do material, pois ele comparece como o
“Outro”. Percebemos no desenrolar da nossa análise que essa desconsideração da pluralidade
étnica que pode se fazer presente nas escolas é frequente nos materiais.
Também chama-nos a atenção no capítulo do Quinhentismo o teor da seção de fim
de unidade “Ferramenta de leitura”, em que se busca aplicar discussões conceituais à leitura
de textos literários. Neste caso, dotada do subtítulo “O escritor e os valores sociais de seu
tempo”, a seção disponibiliza um fragmento de Arte e sociedade, do sociólogo francês Roger
Batisde, que, entre outras ideias, reforça a premissa da relação estabelecida entre a inscrição e
os valores socioculturais dos escritores e sua respectiva produção textual. A partir dele,
sugere-se aos alunos a leitura de uma nova passagem das crônicas de Pero de Magalhães
Gândavo, reitera-se o questionamento acerca de uma pretensa objetividade ou neutralidade
narrativa dos escritos portugueses:

1. Quais as concepções de Pero de Magalhães Gândavo sobre o


português e o indígena em relação ao processo de ocupação da terra?
(RAMOS, 2014 [Vol 1], p. 124). [Resposta: Os portugueses são
retratados como estrategistas, possuidores de uma grande capacidade
de conquista, sabendo tanto combater os grupos indígenas rebeldes
quanto aliciar os mais pacíficos; em suma, refletem a figura do europeu
corajoso que se lança ao desconhecido e selvagem para domá-lo. Já os
indígenas, no geral, são representados como desorganizados, rústicos e
“atrevidos”, ou seja, sem medo do combate franco e aberto contra os
portugueses. A comparação sugere a superioridade dos portugueses por
sua capacidade estratégica.]. (RAMOS, 2014 [Vol 1 – Apêndice:
“Manual do Professor”], p. 475).
2. Para Bastide, o artista está “pensando sempre no público” para o qual
se destina sua obra. Como você imagina que a corte portuguesa do
século XVI recebeu o texto de Gândavo? Justifique sua resposta.
(RAMOS, 2014 [Vol 1], p. 124). [Resposta: Resposta pessoal.
Professor: Das hipóteses possíveis, uma delas é a de que a corte
portuguesa recebeu o texto de Gândavo com uma mistura de espanto e
curiosidade quanto ao modo de vida dos indígenas, bastante diverso
daquilo que conhecia um europeu do século XVI. Também se pode
pensar que, por seu caráter religioso à capacidade de dominação
portuguesa, o texto pode ter provocado a elevação do orgulho pátrio
nos portugueses.]. (RAMOS, 2014 [Vol 1 – Apêndice: “Manual do
Professor”], p. 475).
253

Por fim, é pertinente assinalar que estes e os outros exemplos que apresentamos vão
ao encontro de alguns dos objetivos de capítulo introduzidos ao professor, tais como
“perceber que a linguagem utilizada demonstra um ponto de vista determinado pelo contexto”
e “relacionar os preconceitos veiculados por seus textos [Gândavo] à visão de mundo
eurocêntrica da época” (RAMOS, 2014 [Vol 1 – Apêndice: “Manual do Professor”], p. 437).
E dando continuidade, ainda, a essa abordagem, verifica-se entre as “sugestões didáticas e
ampliação de repertório” a indicação, no Manual do Professor, do exercício de produção
textual de “uma carta do Descobrimento” do ponto de vista dos indígenas (ibidem), assim
como de uma pesquisa extraclasse sobre os povos indígenas no passado e no presente. Como
leitura complementar, o professor encontra um excerto da introdução da antologia Cronistas
do descobrimento (1999), organizada por Antonio Carlos Olivieri e Marco Antonio Villa, que
discorre sobre a relação desses textos com o sentimento nativista e nacionalista na literatura
brasileira (ibid., p. 453).
Ainda que dotada menor aprofundamento se comparada ao capítulo do
Quinhentismo, a unidade reservada ao Romantismo (Unidade 1, do Volume 2, composta por
dez capítulos) mantém, em certa medida, o debate sobre o lugar ocupado pelo eurocentrismo
na literatura brasileira. Em relação ao Indianismo em José de Alencar, por exemplo, há no
Caderno do Aluno a afirmação de que, a despeito de Alencar refutar algumas perspectivas
negativas sobre os povos indígenas e de contribuir, assim, com a modificações de
determinados preconceitos, sua literatura corresponde também a uma “abordagem
etnocêntrica, já que a valorização do povo nativo não ocorreu por suas qualidades próprias,
mas sim por aquilo que os fazia parecidos com o que o europeu considerava belo e bom”
(RAMOS, 2014 [Vol 2], p. 39). Selecionamos uma solicitação analítica de justificação e de
inferência que trabalha esse aspecto:

[análise de um fragmento de O guarani (1857), de José de Alencar]


3. d) Mesmo valorizando o povo nativo do Brasil, o indianismo revelou uma
visão ética e moral apegada à sociedade europeia. Justifique como essa visão
se revela na fala de dom Antônio de Mariz e nos atos de Peri. (RAMOS,
2014 [Vol 2], p. 41). [Resposta: A fala de do Mariz mostra que o referencial
é o indivíduo branco e europeu: Peri é um herói, pois lembra um cavaleiro
português; e Peri escolhe sujeitar sua natureza e os seus valores culturais
às expectativas desse mesmo modelo] (RAMOS, 2014 [Vol 2 – Apêndice:
“Manual do Professor”], p. 460).
254

Na mesma página em que se localiza tal atividade, ganha evidência novamente o Box
“Ação e cidadania”, iniciado com a retomada da ideia de que “no Romantismo, a construção
de uma identidade nacional afinada com a visão do indígena era uma herança inventada” e
encerrado com uma referência à criação e ao papel da FUNAI – Fundação Nacional do Índio
(RAMOS, 2014 [Vol 1], p. 41).
Diferentemente do que vimos em outras coleções, o estudo da poesia romântica não
é, em SPLP06, pensado, por sua vez, nos termos de uma possível idealização desses povos.
De acordo com o texto de abertura do capítulo “Gonçalves Dias: inovações na poesia”, sua
“representação do indígena e de sua cultura é verossímil”, “apesar do exagero”, visto que, de
encontro a José Alencar, Dias centra-se em “valores e sentimentos” e não “na personalidade
do herói e seus feitos” (RAMOS, 2014 [Vol 2], p. 54). Trata-se de um enquadrador
discursivo adequado aos fragmentos e às solicitações analíticas que integram as análises
textuais da produção do poeta, os quais buscam, a nosso ver, conduzir os alunos à exploração
desse recorte temático (“valores e sentimentos”, construção e relações de personagens etc.) 
exemplos de solicitações analíticas concernentes ao estudo dos poemas “I-Jura Pirama –
Parte VIII” e “Olhos verdes”, respectivamente: “2. O pai evoca infortúnios a serem vividos
por seu filho. Explique, com outras palavras, quais são os castigos mencionados ao longo do
poema” (RAMOS, 2014 [Vol 2], p. 56); “2. Qual é a concepção de amor apresentada no
poema?” (ibid., p. 57). Por essa razão, comentamos apenas um exercício em especial, que nos
chama a atenção devido ao modo pelo qual ele direciona a leitura de uma crítica feita por
Antonio Candido a Gonçalves Dias:

4. Com base na leitura desse fragmento de “I-Juca Pirama”, explique o


comentário do crítico Antonio Candido acerca do indianismo de Gonçalves
Dias, transcrito a seguir.
Como poeta, (...) ele procura nos comunicar uma visão geral do índio, por
meio de cenas ou feitos à vida de um índio qualquer, cuja identidade é
puramente convencional e apenas funciona como padrão [...]
CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. 8. Ed. Belo Horizonte, 1997, v. 2. P. 73.

(RAMOS, 2014 [Vol 2], p. 56). [Resposta: Segundo Antonio Candido, o


indianismo de Gonçalves Dias tem como peculiaridade evitar particularizar
o indígena. Ao contrário, seu herói tem valor simbólico e representa os
princípios indígenas em geral. Em outras palavras, o drama do prisioneiro
dessa oitava parte é um expediente para demonstrar o ideal de bravura que
preside as relações nas tribos e pode, portanto, ser estendido a qualquer
indivíduo indígena.]
(RAMOS, 2014 [Vol 2 – Apêndice: “Manual do Professor”], p. 462).
255

Em nossa interpretação, o gabarito fornecido por SPLP06 corrobora uma das


premissas anunciadas já na abertura do capítulo, a premissa de que a poesia de Dias trata de
sentimentos e de valores mais universais, sem “particularizar” o indígena. Contudo,
independentemente da perspectiva de leitura adotada pela coleção, entendemos que a
afirmação de Candido também dá margem a uma ressalva sobre a negação, nas narrativas
românticas, da diversidade dos povos indígenas, que se distribuem em muitas etnias. Por
conseguinte, consideramos que o questionamento, a partir de Candido, da histórica
naturalização e universalização da figura do índio  a qual se reflete socialmente no
estereótipo do índio unívoco, nu e adornado de penas , aproximaria a análise textual de
SPLP06 de uma leitura de viés pós-colonial, e, assim, de alguns dos objetivos da lei
11.645/08.
Finalmente, no capítulo 9, “Castro Alves: a superação do egocentrismo”, a ponte
entre os poemas de Alves e a questão racial na atualidade dá-se por meio de Boxes, e não das
atividades de leitura; em linhas gerais, propõem-se solicitações analíticas similares às que
vimos no estudo da poesia de Gonçalves Dias, com uma maior atenção, no caso de Castro
Alves, aos sentidos de determinadas figuras de linguagem. Centrando-se, portanto, na
temática racial em detrimento da articulação do Condoreirismo à atual literatura negra/afro-
brasileira, o Box “Repertório” detalha aos alunos as “condições de transporte nos navios
negreiros”, dando a dimensão da violência e da crueldade sofridas pelos africanos
(superlotação, péssimas condições de higiene) (RAMOS, 2014 [Vol 2], p. 70) enquanto o Box
“O que você pensa disto?” pergunta aos estudantes “que outras ações [para além de museus]
seriam necessárias para que essa cultura [cultura negra] fosse devidamente valorizada?”
(ibid., p. 71); no Manual do Professor, indica-se que, em sua respostas pessoais, “os alunos
apontem outras ações culturais já existentes e também deem novas sugestões” (RAMOS, 2014
[Vol 2 – Apêndice: “Manual do Professor”], p. 464). Nos Boxes, há elementos iconográficos:
a tela Navio Negreiro, de J. M. Rugendas e uma fotografia do Museu Afro-brasileiro de
Salvador (BA).

Reestruturando o cânone I: literaturas africanas e literatura negra/afro-brasileira em


SPLP06

No capítulo 20 do Volume 3, “Literaturas africanas – reconstrução de identidades”,


são apresentados sete fragmentos literários de autores africanos  António Cardoso
256

(Angola); Alexandre Dáskalos (Angola); Mia Couto (Moçambique); José Eduardo Agualusa
(Angola); Pepetela (Angola); Rui Knopfli (Moçambique/Portugal); Amílcar Cabral (Guiné
Bissau) ; um pequeno excerto de uma entrevista com o moçambicano José Craveirinha;
uma letra de música interpretada pela cabo-verdiana Cesária Évora (apresentada no Box
“Repertório”); e duas obras do artista plástico moçambicano Malangatana Valente
Ngwenya118, uma situada na folha de abertura do capítulo [tela Onde estão meus pais, meus
irmãos e todos os outros]119 e a outra [desenho A cela]120 compondo uma atividade de leitura
comparada com o poema “Drama na cela disciplinar”, de António Cardoso (vide referências
completas do repertório de SPLP06 na Tabela 10 [página 264]). Com exceção da letra de
música, da entrevista, da tela de Ngwenya que abre a unidade, e, finalmente, dos poemas de
Dáskalos e Cabral (cujos fragmentos são bastante breves), os excertos restantes são
acompanhados de atividades, das quais comentamos algumas no decorrer de nossa análise.
De início, a coleção adverte os estudantes de que

Para conhecer a África, é preciso desfazer estereótipos e abandonar ideias


preconcebidas; buscar, para além da percepção desse conjunto como um
bloco homogêneo e uniforme, as singularidades de cada grupo social que,
durante séculos, foram sufocadas pela sujeição política, econômica e social.
A África é um continente ‘em movimento’, e o mesmo pode ser dito sobre
suas literaturas. (RAMOS, 2014 [Vol 3], p. 180).

Além da ideia de confrontar leituras estereotipadas, os enquadradores discursivos


antepostos e pospostos a tal afirmação apontam o igual intuito de promover leituras
particularmente atentas à violência colonial. O direcionamento de leitura das obras de
Malangatana Valente Ngwenya ilustra essa perspectiva. Juntamente à tela que estampa a capa
da unidade, esclarece-se que, tal qual o “contexto de violência e opressão” retratado pelo
artista moçambicano, a possibilidade de uma “’identidade africana’ em meio à diversidade
dos processos históricos vividos pelas sociedades daquele continente” residiria “na luta contra
a violência física e simbólica imposta pelo colonialismo europeu” (RAMOS, 2014 [Vol 3], p.

118
Encontramos uma página pessoal (de M.Virgínia Costa) que reúne 345 imagens de Malangatana:
<https://br.pinterest.com/mvirginiacosta/malangatana-1936-2011/> e também um vasto acervo das obras do
artista disponibilizado pela Fundação Mário Soares <http://casacomum.org/cc/parceiros?inst=6>. Acesso em:
31/01/2019.
119
Imagem disponível em <http://casacomum.org/cc/visualizador?pasta=07210.361.000>. Acesso em:
13/02/2019.
120
Imagem disponível em <http://casacomum.org/cc/visualizador?pasta=07210.216.000>. Acesso em:
13/02/2019.
257

179). Do mesmo modo, os exercícios de comparação do desenho A cela, também de autoria


de Ngwenya, ao poema de António Cardoso abordam a questão da representação da opressão
colonial na arte do moçambicano e do angolano. Em outras análises textuais, como na análise
do romance Mayombe (1979), de Pepetela, os alunos são novamente direcionados a identificar
e a discutir indícios “da violência do processo de colonização” na referida narrativa
(RAMOS, 2014 [Vol 3], p. 187).
Seguindo o padrão verificado nos demais capítulos da coleção, a seção de literaturas
africanas é composta, portanto, por diversos enquadradores discursivos extratextuais,
marcados, preponderantemente, por um amplo número de informações históricas sobre os
países lusófonos em África e sobre a constituição de sua escrita literária121. Para além da
relação entre memória (do passado colonial) e identidade que acabamos de discutir, bem
como dos pormenores do colonialismo português, verificamos que o papel da oralidade e da
tradição, por exemplo, é outro um importante aspecto abordado pelos enquadradores de
leitura da presente seção. E é por isso que notamos, entre os exercícios que exploram os
elementos estéticos dessas narrativas, atividades que, com certa frequência, acionam a gama
de conteúdos extratextuais fornecidos previamente pelo material. Recortamos dois exemplos:

[Análise do conto “A noite em que prenderam Papai Noel”, de José Eduardo


Agualusa]
3. Embora o olhar do narrador se encontre identificado com a visão de
Pascoal, sua voz por vezes deixa entrever outro ponto de vista sobre os
mesmos fatos. Ilustre essa afirmação com um exemplo do texto,
relacionando-o à política de assimilação imposta por Portugal. (RAMOS,
2014 [Vol 3], p. 185). [Resposta: “Tinha trabalhado quarenta anos na piscina
– desde o primeiro dia! – como zelador. Sabia ler, contar, e ainda todas as
devoções que aprendera na Missão, sem falar na honestidade, higiene, amor
ao trabalho. Os brancos gostavam dele, era Pascoal por aqui, Pascoal para
ali, confiavam-lhe as crianças pequenas, alguns até o convidavam para jogar
futebol (foi um bom goleiro), outros faziam confidências, pediam o quarto
emprestado para fazer namoros”. Nesse trecho é possível perceber que as
qualidades atribuídas a Pascoal são fruto de uma visão europeia sobre o
africano, supostamente inferior e selvagem. Um “negro” que soubesse ler e
contar e aceitasse professar a religião cristã, além de apresentar “higiene” e
“amor ao trabalho”, seria um resultado bem-sucedido da política de
assimilação portuguesa, que o teria convertido de “selvagem” em

121
A coleção traça, no desenrolar do capítulo, uma breve historiografia das literaturas africanas lusófonas. Sobre
os “sistemas literários africanos”, assinala-se, brevemente, o surgimento dessas literaturas por volto do ano de
1940, decorrente da expansão do ensino e da imprensa; a prevalência de textos “de forte marca ideológica” entre
1940 e 1970; e, por fim, certa abertura a obras com “temáticas mais existenciais” a partir dessa data (RAMOS,
2014 [Vol 3], p. 183). Ademais, explica-se que se as “literaturas ultramarina e colonial [...] retratavam a África
pela ótica do colonizador português”, a “literatura neoafricana rompe com essa tradição [...]” (ibidem).
258

“civilizado”. Professor: Outros trechos são igualmente adequados. Note-se o


primeiro parágrafo, em que o narrador mostra que Pascoal vive a velhice em
condição de miséria, mas se queixa menos dela do que da tristeza pelos
tempos que se foram.]. (RAMOS, 2014 [Vol 3 – Apêndice: “Manual do
Professor”], p. 477).
4. Elabore uma leitura interpretativa para o último parágrafo, relacionando-o
ao contexto de produção africano que você estudou neste capítulo.
(RAMOS, 2014 [Vol 3], p. 185). [Resposta: A Guerra da Libertação fez
morrer um tipo de civilização e uma organização urbana típica do
colonizador; a piscina representa um ideal de vida burguês, valorizado pela
“civilização burguesa” da qual faz parte o colonizador. Em seu lugar, surge
uma nova organização, mais identificada com os modos de vida da
população pobre. “África – vamos chamar-lhe assim”, denuncia, de um
lado, a maneira ocidental com que se pensa o continente africano como um
bloco uniforme, desprovido de singularidade; de outro, o fato de que seria
impossível, àquela altura, pensar em uma “identidade”, depois de tantos
séculos de submissão cultural. No entanto, ainda que esfacelada e dividida,
a “África (...) voltou a apoderar-se do que fora seu” ]. (RAMOS, 2014 [Vol
3 – Apêndice: “Manual do Professor”], p. 477).

Se, de um lado, o capítulo “Literaturas africanas – reconstrução de identidades”


explora com atenção a relação entre literatura e história, de outro, a seção carece de
solicitações cursivas que deem abertura à exposição das apreciações pessoais dos estudantes;
solicita-se ora operações clássicas de leitura, ora a relação entre texto e contexto, como nos
mostra o excerto anterior. Nesse sentido, novamente o Box “O que você pensa disto?”
funciona como um espaço privilegiado de debate e serve, neste caso, a uma aproximação dos
estudantes de parte das reflexões propostas pela lei 10.639/03, ainda que esta não seja citada
por SPLP06:

O que você pensa disto?


As raízes africanas são consideradas fundamentais na formação do povo
brasileiro, mas muitos não sabem onde fica a África ou que países africanos
têm o português como língua oficial.
Em sua opinião, a cultura e a história da África são alvo de preconceitos e
estereótipos em nosso país? (RAMOS, 2014 [Vol 3], p. 187).
[Professor: Evite restringir a discussão à mera constatação de que ainda
falta muito para serem extintos o preconceito e os estereótipos relacionados
à cultura africana. Para isso, pode perguntar aos alunos, por exemplo, o
que eles gostaram de aprender sobre os países africanos de língua
portuguesa, que curiosidades esse estudos lhes despertou, que eventuais
mudanças de imagem ocorreram após esse contato um pouco mais
próximo.] (RAMOS, 2014 [Vol 3 – Apêndice: “Manual do Professor”], p.
478).
259

Para além do importante elo estabelecido entre a proposta supracitada e as


problemáticas levantadas pelos documentos oficiais que regem a lei de 2003, o teor das
instruções dadas aos docentes nos parece produtivo pois sugere ouvir os anseios e as
impressões de aprendizagem do alunado, o que pode abrir caminho para trocas de
experiências e para a exposição de demandas curriculares envolvendo o tema.
Outra ocorrência que merece nossa atenção é a escolha de inserir o escritor Rui
Knopfli (Moçambique/Portugal) em seu repertório. Criticamos em relação a livros didáticos
anteriores (a recordar, as coleções LPLI04 e PLC05) a inserção de autores como Valter Hugo
Mãe e Gonçalo M. Tavares em seções reservadas às literaturas africanas, devido ao fato de se
tratar de escritores que, a despeito de terem nascido em países africanos, se autoidentificam
como escritores portugueses, abraçando suas ascendências europeias. Trata-se de uma questão
recorrente nessas literaturas, visto que o colonialismo português é marcado por muitos
trânsitos (de pessoas e, por conseguinte, de identidades) entre Portugal e os países
colonizados em África  há escritores cujos pais portugueses permaneceram um longo
período em solo africano em decorrência das guerras, ou, ainda, autores africanos que
viveram grande parte da vida na Europa por causa dos estudos etc.. Chama-nos a atenção,
nesse sentido, que SPLP06 recorra ao poema de um escritor que, situado nesse contexto de
trânsito identitário  Knopfli nasceu em Moçambique, mas viveu muitos anos em Portugal
, se volte precisamente à problematização de tal condição122. No poema trazido pela
coleção, “Naturalidade”, ele escreve: “Não sei se o que escrevo tem a raiz de
algum/pensamento europeu./ É provável... Não. É certo, mas africano sou”; e, para analisá-lo,
apresentam-se aos alunos alguns conceitos de Jean-Paul Sartre sobre “o engajamento político
na literatura”123. Com base nisso, pergunta-se, por exemplo:

3. Apesar de se sentir africano, o eu lírico não contesta inteiramente a ideia


de parecer europeu. Indique um trecho do poema que comprove essa
afirmação. Justifique sua escolha. (RAMOS, 2014 [Vol 3], p. 189).
[...]

122
No artigo “Rui Knopfli: o país de quem - Para a análise de uma moçambicanidade literária”, a pesquisadora
Sônia Quental explica que Knopfli afirma-se ora um escritor português, ora um escritor moçambicano. Texto
disponível em: <http://web.letras.up.pt/primeiraprova/knopfli.htm>. Acesso em: 31/01/2019.
123
Ao todo a coleção apresenta três fragmento da obra Que é literatura? (1947), de Sartre. E cabe esclarecer que
se trata, novamente, de uma proposta pertencente à seção fixa “Ferramenta de leitura”, por nós já comentada na
análise do capítulo do Quinhentismo.
260

5. Segundo Jean-Paul Sarte, a literatura deve fazer com que o leitor “assuma
sua inteira responsabilidade” diante do mundo desvendado pelo escritor.
Como isso acontece na leitura do poema de Rui Knopfli? (RAMOS, 2014
[Vol 3], p. 189). [Resposta: O poema propõe ao leitor uma reflexão sobre a
identidade africana e sobre como ela pode persistir mesmo em expressões
marcadas pela influência europeia e escritas em uma língua europeia (no
caso, o português). São questões que dizem respeito à realidade social de
que o escritor, como muitos de seus leitores, faz parte. Aliás, nesse poema, o
eu lírico assume uma posição clara: sua voz toma partido da África e dos
africanos]. (RAMOS, 2014 [Vol 3 – Apêndice: “Manual do Professor”], p.
478).

Servindo de contraposição, portanto, aos equívocos cometidos por algumas coleções,


ao inscreverem, sem ressalvas, autores autodeclarados portugueses no rol de autores
africanos, a proposta de SPLP06 mostra-se inovadora ao problematizar, justamente, o tema do
pertencimento, o que, em nosso entendimento, pode ampliar ainda mais a visão dos alunos
acerca dos contornos e das nuances das literaturas de matriz africana.
A respeito do fechamento do capítulo, é pertinente assinalar que na seção de “Entre
textos”, dedicada à literatura comparada, a coleção opta por comparar textos de autores
brasileiros do século XX que, de acordo com SPLP06, “falam de um território imaginário
singular, constituído pelos laços entre Brasil e África” (RAMOS, 2014 [Vol 3], p. 190), e não
por desenvolver uma comparação entre a produção brasileira e a africana  escolhem um
fragmento de Capitães da Areia (1937), de Jorge Amado, e o poema “Monólogo da noite”, de
Ribeiro Couto. Divergindo de parte do nosso corpus, que busca, como vimos, aproximar a
literatura brasileira da africana, tal comparação fica restrita, em SPLP06, a África enquanto
temática, uma estratégia por nós interpretada com menos produtiva, ainda que justificada.
Após essa seção, os alunos têm acesso, ainda, a três exercícios retirados de Exames
Vestibulares: dois da PUC-MG, sendo o primeiro acerca da obra de Mia Couto e o segundo
baseado num apontamento da pesquisadora Tânia Macedo sobre a literatura angolana; e um
exercício da UnB-DF, novamente sobre Mia Couto, porém desenvolvido a partir do trecho de
uma entrevista concedida pelo autor, em que se discutem os sentidos de “literatura africana”.
Outrossim, há no Manual do Professor algumas “sugestões complementares” a serem
colocadas em prática com os alunos: visitar o site da União de Escritores Angolanos e/ou
realizar um “sarau de literatura africana em língua portuguesa” (RAMOS, 2014 [Vol 3 –
Apêndice: “Manual do Professor”], p. 438); também se fornecem algumas referências visando
à “formação continuada” do docente, tais como o livro Marcas da diferença: as literaturas
261

africanas de língua portuguesa (2006), organizado por Tania Macedo e Rita Chaves, e o
documento Atlântico negro – na rota dos orixás (1998), dirigido por Renato Barbieri.
Conforme afirmamos na análise da macroestrutura, a localização dos conteúdos que
atendem às leis não é somente do tipo restrita, mas também do tipo articulada. No capítulo
introdutório do eixo literário (Unidade 1 – “Ao encontro da literatura”, Capítulo 2:
“Literatura: gêneros e modos de leitura”), o poema “Amor adiado” do moçambicano Hélder
Muteia surge como texto exemplar do gênero lírico (RAMOS, 2014 [Vol 1], p. 33), ao lado
um trecho de Odisseia, de Homero, o qual, por sua vez, ilustra o gênero épico. No mesmo
volume, na seção “Entre textos” da unidade do Classicismo, um poema sem título do
angolano Arlindo Barbeitos (“a sul do sonho...”) integra a proposta de leitura comparada
composta, inclusive, por fragmentos de Olavo Bilac, Fernando Pessoa e Vinicius de Moraes.
Segundo a coleção, todos têm em comum a abordagem do “expansionismo do Império
português, celebrado em Os Lusíadas” (RAMOS, 2014 [Vol 1], p. 108). Fechando os
movimentos de articulação das literaturas e/ou de autores africanos a outros capítulos do livro
didático, uma entrevista de Mia Couto sobre as diferenças do português do Brasil e de
Moçambique dá forma a uma questão sobre variação linguística no capítulo “Uma língua,
muitas línguas”, do eixo conhecimentos linguísticos (ibid., p. 201).
Finalmente, verificamos que SPLP06 não investe, em linhas gerais, na introdução da
literatura negra/afro-brasileira. Tem-se apenas um fragmento de Cidade de Deus (1997), de
Paulo Lins, o qual é apresentado como exemplo de texto contemporâneo que dialoga, “mesmo
que indiretamente”, com o Naturalismo (RAMOS, 2014 [Vol 2], p. 134)124. Por outro lado,
embora a abordagem de autores negros pertencentes ao cânone não integre o nosso recorte de
pesquisa125, notamos que os Boxes fixos de SPLP06, discutidos em determinadas passagens
da nossa análise, são usados frequentemente para vincular, de modo enfático, escritores
afrodescendentes à questão racial, estratégia nem sempre observada nos livros didáticos. No
Box “O que você pensa disto?”, alocado no capítulo acerca do Simbolismo, por exemplo, a

124
Ademais, no debate da literatura contemporânea (Capítulo 19, Volume 3), há a indicação do livro Literatura
Marginal: talentos da escrita periférica (2005), acompanhado de um excerto do textos introdutório assinado por
Ferréz (RAMOS, 2014 [Vol 3], p. 171).
125
Nossa análise permitiu perceber que seria bastante interessante e produtivo desenvolver pesquisas que
observem em que medida escritores negros inscritos no cânone são ou não relacionados à questão racial pelos
livros didáticos de literatura. No caso de Cruz e Sousa, por exemplo, é comum que sua obra seja explorada
apenas no que tange à discussão da escola literária Simbolismo, havendo um total apagamento de suas produções
abolicionistas. Há livros em que a afrodescendêcia do escritor nem é mencionada. Com base nisso, reforçamos a
noss sugestão de que estudos afins sejam desenvolvidos.
262

informação de que Cruz e Sousa não teve seu talento reconhecido em sua época
“principalmente devido ao racismo que vigorava na sociedade do século XIX” dá início a um
debate sobre cotas raciais nas universidades (RAMOS, 2014 [Vol 2], p. 169)126.

Reestruturando o cânone II: literaturas indígenas em SPLP06

Encontramos em SPLP06 um fragmento de Crônicas de São Paulo: um olhar


indígena (2004), do escritor indígena Daniel Munduruku. Seu livro é recuperado na seção fixa
“Usina literária”, do eixo de conhecimento linguísticos, responsável por articular Gramática e
Literatura. Situado no capítulo “Termos integrantes da oração” (Capítulo 24, Volume 3), o
excerto da crônica “Tatuapé – O caminho do tatu” é discutido por meio das solicitações
analíticas:

1. Tatuapé é o nome do bairro e de uma estação de metrô em São Paulo.


Como o título da crônica se relaciona ao estranhamento do eu lírico diante
da mudança da paisagem da cidade? (RAMOS, 2014 [Vol 3], p. 235).
[Resposta: A palavra tatuapé, de origem tupi, significa “o caminho do tatu”.
Enquanto anda de metrô em São Paulo, o narrador indígena confronta a
ideia de um tatu caminhando pela paisagem natural e a ideia do metrô como
um “tatu tecnológico”, que “corta o coração da Mãe Terra como uma
lâmina afiada”]. (RAMOS, 2014 [Vol 3 – Apêndice: “Manual do
Professor”], p. 486).
2. No primeiro parágrafo, os complementos nominais constroem a oposição
entre aquilo com que estão acostumados o “homem comum” e o “homem da
floresta”. Comprove dando exemplos. (RAMOS, 2014 [Vol 3], p. 235).
[Resposta: São os complementos nominais de acostumado que mostram
aquilo com que o “homem comum” está acostumado (“com os avanços
tecnológicos”) e as coisas com que o “homem da floresta” está acostumado
(“com o silêncio da mata”, “com o canto dos pássaros”, “com a paciência
constante do rio”)]. (RAMOS, 2014 [Vol 3 – Apêndice: “Manual do
Professor”], p. 486).
3. No último período do texto, que complemento nominal caracteriza o
sentimento do indígena em relação à irrefreável ação transformadora do ser
humano sobre a natureza? (RAMOS, 2014 [Vol 3], p. 235). [Resposta: “De
um ontem impossível de se tornar hoje novamente” é o complemento
nominal de saudade e indica ao mesmo tempo a tristeza do narrador
indígena em relação à mudança da paisagem de São Paulo e sua percepção
sobre a impossibilidade de que a coisas voltem a ser como foram um dia.].
(RAMOS, 2014 [Vol 3 – Apêndice: “Manual do Professor”], p. 486).

126
No encerramento do capítulo em que se discute a obra de Lima Barreto, por sua vez, além de um Box sobre “a
questão racial na ficção de Lima Barreto”, a seção “Ferramenta de leitura” vale-se do texto “Memória coletiva e
sincretismo científico: as teorias raciais do século XIX”, do sociólogo Renato Ortiz, para promover uma reflexão
sobre “a questão das raças na literatura pré-modernista”; com base nele, propõe-se a leitura de um excerto de
Canaã (1902), de Graça Aranha (RAMOS, 2014 [Vol 2], pp. 34-35).
263

A despeito de a obra não ser estudada no eixo literário, consideramos importante


registrar essa ocorrência pelo fato de ser rara a presença de autores indígenas nos livros
didáticos do PNLD 2015. Nas conclusões da nossa análise, retomamos essa ocorrência a fim
de pensar seus significados em conjunto com as eventuais estratégias adotadas por outras
coleções no que concerne à introdução da literatura indígena. Por ora, assinalamos que
SPLP06 é a primeira coleção do nosso corpus a apresentar um escritor indígena, ainda que o
faça no eixo linguístico.
Ao encontro de outras coleções, a temática (em detrimento da literatura) indígena é
debatida em diferentes seções de SPLP06, para além do capítulo do Indianismo por nós já
analisado. A primeira delas refere-se, a nosso ver, a um uso bastante interessante de
documentos históricos desses povos no trabalho com o gênero “seminário” (Capítulo 35,
Volume 3), pertencente ao eixo escrita. É escolhido como texto-modelo do gênero trechos dos
anais do seminário “Políticas do Ensino Médio para os povos indígenas”, realizado em
Brasília-DF em 2003, em que constam relatos de líderes de distintas etnias (RAMOS, 2014
[Vol 3], p. 357)127. Trata-se de um texto não literário, mas que coloca os alunos diretamente
em contato com a voz dos indígenas, bem como com algumas especificidades da educação
indígena, a qual figura como elo argumentativo do documento. Nesse sentido, consideramos
que tanto o repertório quanto o exercício contribuem com a implantação da lei 11.645/08, pois
eles são a conhecer alguns aspectos das culturas indígenas (educação), sob a perspectiva e o
discurso dos próprios índios.
Também identificamos no Box “O que você pensa sobre isto?” presente no capítulo
“Mário, Oswald e Raul Bopp: ousadia literária” (Capítulo 6, Volume 3) uma sugestão de
debate sobre a questão indígena. Partindo de uma síntese sobre o modo pelo qual muitos
modernistas retrataram o indígena  os quais, segundo SPLP06, se desvincularam da
imagem do “bom selvagem” propagada pelo Romantismo (RAMOS, 2014 [Vol 3], p. 77) ,
pergunta-se: “É possível dizer que, nos dias de hoje, o indígena conseguiu afirmar-se no
contexto sociocultural de uma sociedade globalizada sem perder seus valores e suas marcas
de identidade? Justifique sua resposta.” (ibidem). A instrução de mediação fornecida ao
professor, ao não se limitar à usual indicação de “resposta pessoal”, parece-nos interessante,
e, assim, novamente em consonância com os propósitos da lei 11.645/08, pois contribui para o
127
Documento de Domínio Público disponível em:
<http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/me002043.pdf>. Acesso em 01/02/2019.
264

questionamento de preconceitos, sobretudo ao dar evidência à produção audiovisual desses


povos, referência usualmente inexistente em livros didáticos:

Resposta pessoal. Professor: O objetivo desta questão é estimular a


discussão sobre o conceito de identidade cultural do indígena que vive numa
sociedade bem diferente da que havia em outros séculos. Atualmente, é
muito menos a possibilidade de isolamento das culturas indígenas. Se o
indígena assimila elementos externos à sua cultura tradicional, como roupas
e aparelhos tecnológicos, ele automaticamente deixa de ser indígena? A
apropriação de saberes de outras culturas significa o abandono ou a
reelaboração de sua identidade cultural? Essa é uma questão muito
importante para a formação de cidadãos com consciência da diversidade
cultural. Como sensibilização para a discussão, podem ser exibidos vídeo do
projeto Vídeo nas Aldeias, que possibilitou a indígenas habitante do Parque
Nacional do Xingu expressar sua visão de mundo por meio da linguagem
cinematográfica. Alguns desses vídeos estão disponíveis no site do projeto:
<http://www.videonasaldeias.org.br>. Acesso em: 7 jun. 2013. (RAMOS,
2014 [Vol 3 – Apêndice: “Manual do Professor”], p. 465).

Em síntese, apesar de haver apenas um texto literário de autoria indígena, SPLP06


elabora atividades interessantes para se refletir sobre os povos indígenas na atualidade e
questionar possíveis visões estereotipadas acerca de suas culturas.
265

A título de retomada e de síntese: SPLP06 e o repertório das leis 10.639/03 e 11.645/08


(produções de autoria indígena, negra/afrodescendente e/ou africana, para além do cânone
escolar).

SPLP06 REPERTÓRIO LOCALIZAÇÃO


Unidade 1 – “Ao encontro da literatura”
Poema “Amor adiado”, de Hélder (Seção “Literatura: experiências de
Muteia (Moçambique). leitura”), Capítulo 20: “Literatura:
gêneros e modos de leitura”.
Unidade 4 – “O Classicismo” (Seção
VOLUME Poema sem título (“a sul do sonho...”), “Literatura: experiências de leitura”),
1 de Arlindo Barbeitos (Angola). Capítulo 08: “O Classicismo em
Portugal”.
Unidade 8 – “Introdução aos estudos
Entrevista com Mia Couto sobre a linguagem” (Seção “Linguagem:
(Moçambique). ser no mundo e com o outro”), Capítulo
17: “Uma língua, muitas línguas”.
Unidade 3 – “O Naturalismo” (Seção
VOLUME Romance Cidade de Deus (1997), de “Literatura: os movimentos do século
2 Paulo Lins. XIX”), Capítulo 15: “O Naturalismo no
Brasil”.
Tela Onde estão meus pais, meus irmãos
e todos os outros (1986), de
Malangatana Valente Ngwenya
(Moçambique).
Desenho A cela, de Malangatana Valente
Ngwenya (Moçambique).
Poema “Drama na cela disciplinar”, de
António Cadorso (Angola).
Poema “Que é São Tomé”, de Alexandre
Dáskalos (Angola).
Entrevista com José Craveirinha
Unidade 7 – “Panorama das literaturas
(Moçambique).
africanas de língua portuguesa” (Seção
Letra da canção “Sorte”, de Nilka Sicite
“Literatura: autonomia e competência
e Teofilo Chantre, interpretada por
expressiva”), Capítulo 20: “Literaturas
VOLUME Cesária Évora (Cabo Verde).
africanas – reconstrução de identidades”.
3 Conto “Enterro televiso” (2003), de Mia
Couto (Moçambique).
Conto “A noite em que prenderam Papai
Noel”, de José Eduardo Agualusa
(Angola).
Romance Mayombe, de Pepetela
(Angola).
Poema “Naturalidade”, de Rui Knopfli
(Moçambique/Portugal).
Poema “Regresso”, de Amílcar Cabral
(Guiné Bissau).
Unidade 8 – “Ordenar palavras, produzir
Livro de crônicas Crônicas de São
sentidos” (Seção “Linguagem: a
Paulo: um olhar indígena (2004), do
arquitetura da língua”), Capítulo 24:
escritor indígena Daniela Munduruku.
“Termos integrantes da oração”.
Tabela 10. Relação de textos e autores abordados em SPLP06.
266

4.1.7. Língua Portuguesa (Positivo) – 7ª coleção do PNLD 2015 em número


de distribuições

HERNANDES, Roberta; MARTIN, Vima Lia. Língua Portuguesa (Livro do Professor),


Volumes 1, 2 e 3, Curitiba: Positivo, 2013.

SIGLA: LP07

O eixo literário de LP07 é comentado em quase todos os quesitos avaliativos do Guia


do PNLD 2015: como ponto forte, citam-se o trabalho com a leitura e com os conhecimentos
linguísticos e o “tratamento dado à literatura de um modo geral e, especificamente, à literatura
de países africanos de língua portuguesa” (BRASIL-MEC/SEB, 2014b, p. 34); por outro lado,
“a inclusão excessiva de textos didáticos sobre história da literatura e estilos de época”
(ibidem) figura como ponto fraco; ainda sim, o “ponto de destaque” elencado pela resenha
refere-se, justamente, ao “trabalho com a leitura literária” de modo geral (ibidem). Nesse
sentido, ao encontro dos pontos assinalados pelo Guia, é correto afirmar que se trata de um
livro didático que “prioriza os estudos literários” (BRASIL-MEC/SEB, 2014b, p. 35).
Estruturados em unidades, as quais, por sua vez, subdividem-se em capítulos, os três volumes
de LP07 reservam um número maior de seções à educação literária. Em nosso levantamento,
notamos que dos quatro capítulos que integram cada unidade, dois são dedicados ao eixo da
literatura e os demais, respectivamente, aos eixos “língua em uso” e “produção de texto” 
apenas as duas últimas unidades do terceiro volume, ambas compostas por três capítulos ao
invés de quatro, fogem a esse padrão, visto que se exclui o eixo da escrita, de uma, e o eixo de
conhecimentos linguísticos, da outra. Ou seja, repetindo a configuração de outras obras
presentes no nosso corpus, pouco mais de 50% dos capítulos de LP07 atendem ao ensino de
literatura.
A menção às literaturas africanas entre os pontos fortes observados pelo Guia não
pode ser lida, aqui, como um dado secundário. Trata-se, de fato, da obra do PNLD 2015 que
mais explora (em número de fragmentos literários e de autores) tanto essas literaturas quanto
a literatura negra/afro-brasileira, para além de disponibilizar, ainda que com menor
frequência, produções de autoria indígena. Como bem descreve a resenha, os temas do eixo
literário “seguem a cronologia dos estudos da literatura portuguesa, articulados com os
estudos da literatura brasileira, afro-brasileira e africanas de língua portuguesa” (BRASIL-
MEC/SEB, 2014b, p. 36). Isso significa, na prática, que as literaturas recordadas pela lei
267

10.639/03 são inseridas em todos os volumes de LP07 e de modo articulado, isto é:


pedagogicamente, “os textos, de um modo geral são trabalhados comparativamente,
buscando-se verificar o diálogo existente entre eles, sobretudo em relação à temática que, por
vezes, discute questões relativas à colonização, escravidão, preconceito étnico e de gênero”
(ibid., p. 35).
O vasto trabalho desenvolvido com as literaturas africanas, bem como a predileção
por uma abordagem comparativista, escolhas que se mostram muito particulares a LP07 se
contrastadas à forma pela qual outros livros didáticos do nosso corpus articulam os conteúdos
da lei de 2003 ao cânone escolar, podem ser associados, a nosso ver, ao perfil e às
especialidades de suas duas autoras. Roberta Hernandes Alves e Vima Lia Martin, para além
da experiência nas redes pública e privada de ensino, são doutoradas em Letras pela USP,
com concentração, respectivamente, nas áreas de Literatura Brasileira e de Estudos
Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa. Atualmente, a segunda atua como
professora do Curso de Letras da USP, atuando, precisamente, na área de Estudos
Comparados de Literaturas em Língua Portuguesa. Também buscamos retomar a questão dos
eventuais vínculos entre perfil dos autores e perfil das obras didáticas em nossas conclusões.
Por fim, e não menos importante, destacamos mais dois comentários presentes na
resenha do Guia de Português. O primeiro se refere à afirmação de que “na abertura de cada
capítulo, exploram-se os conhecimentos prévios dos alunos, a partir de atividades com textos
pictóricos ou multimodais e verbais” (BRASIL-MEC/SEB, 2014b, p. 34). Em consonância
com essa descrição, acrescentamos que não apenas na abertura, mas em outras passagens da
coleção, acionam-se os “conhecimentos prévios dos alunos” e/ou demanda-se a exposição de
suas impressões pessoais sobre o tema ou texto estudado, o que torna as solicitações do tipo
cursivas comuns em LP07. Já o nosso segundo e último apontamento é concernente à
advertência, feita pelo Guia, de que o “extenso quadro” disponibilizado no eixo literário, ou
sua “grande quantidade de informações”, possa exigir “grande esforço pedagógico para sua
viabilização” (ibid., p. 36) ou, em outras palavras, “um planejamento cuidadoso das
atividades a serem desenvolvidas em sala de aula ou extraclasse, considerando as limitações
de tempo do período letivo” (p. 37). A análise por nós realizada faz-nos concordar com essa
ressalva na medida em que a inovação do repertório escolar proposta pela coleção é
acompanhada de uma ampliação de conteúdos no Caderno do Aluno e de subsídios teórico-
pedagógicos no Manual do Professor, os quais, embora muito ricos e veementemente
268

alinhados com as leis 10.639/03 e 11.465/08, escapam e extrapolam o modelo tradicional de


ensino, o que pode impor, de fato, uma maior necessidade de adaptações/adequações ao
professor.

MACROESTRUTURA DA COLEÇÃO LP07

O apêndice que integra o Manual do Professor contém tanto a apresentação dos


aspectos gerais da coleção e de sugestões complementares quanto os gabaritos das atividades.
Nas partes comuns a todos os volumes  “Parte 1: Novos rumos para o Ensino Médio” e
“Parte 2: Concepção de ensino” , LP07 desenvolve, inicialmente, um debate mais geral
sobre os contornos do Ensino Médio, retomando e comentando alguns princípios de
documentos oficiais de educação, como LDB e DCNEM, e discorre, num segundo momento,
acerca dos fundamentos teórico-metodológicos da coleção. Em linhas gerais, a coleção
assume uma perspectiva “sociointeracionista e discursiva de trabalho com a linguagem”
(HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 1 – Apêndice: “Manual do Professor”], p. 11) e,
orientada pela ideia de promover “uma atitude interativa e questionadora diante do texto
literário”, prevê dois pressupostos específicos para o estudo de literatura: “a comparação e a
prospecção” (ibid., p. 12); o primeiro diretamente relacionado ao reconhecimento das
“diferentes literatura escritas em português [...] como interlocutoras de um mesmo diálogo
cultural” (ibidem), e o segundo ancorado na ideia de estabelecer, a partir da leitura de “textos
literários escritos no passado”, um elo entre passado e presente  visto que “se, de fato, a
memória que subjaz aos textos for recuperada e projetada para o futuro, norteando a
construção de uma realidade nova, uma ponte efetiva terá sido construída entre a literatura e a
experiência concreta de cada aluno que, inserido em um coletivo, possui um sistema próprio
de expectativas e aspirações” (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 1 – Apêndice: “Manual
do Professor”], p. 12). Nas orientações específicas do capítulo de introdução das literaturas de
língua portuguesa (Capítulo 9 – Volume 1), essa fundamentação é detalhada ao professor,
deixando evidente a coadunação de objetivos técnicos e de objetivos atrelados à promoção de
novas atitudes (cidadãs):

As sugestões didáticas para o ensino e para a aprendizagem das literaturas de


língua portuguesa baseiam-se no método comparativo e na abordagem
prospectiva, na esteira do proposto por Benjamin Abdala Júnior, especialista
em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa [...].
269

Segundo o autor, o método comparativo, baseado na leitura contrastiva de


textos literários escritos em português, favorece a reflexão sobre a identidade
nacional, cultural e literária dos países de língua oficial portuguesa. Sob a
óptica comparatista, compreender sistemas (ou subsistemas) culturais e
literários singulares, que compartilham de um mesmo sistema linguístico,
adquire maior consistência, uma vez que são evidenciados espaços literários
de intercâmbio e tensão entre valores socioculturais heterogêneos.
Já a abordagem prospectiva mostra-se importante para o exercício da
cidadania ativa. Sem desconsiderar o sentido histórico do texto, sua função e
valor no momento específico em que foi escrito, importa também sublinhar
suas conexões com as demandas da vida contemporânea: nesse sentido, é
fundamental que os alunos possam atualizar os sentidos de diferentes
produções literárias e responder a seguinte questão: afinal, o que esse (s)
texto (s) me diz (em) hoje?
[...] (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 1 – Apêndice: “Manual do
Professor”], p. 51).

As premissas supracitadas explicam, portanto, a acentuada articulação, verificada em


LP07, das literaturas afro-brasileira e africanas ao cânone escolar. Além de recordar
explicitamente as determinações da lei 10.639/03 (ibid., p. 13), a coleção associa a abordagem
comparativista a uma “estratégia ‘descolonizada’” (ibid., p. 12), e justifica suas
particularidades frente a outros materiais didáticos:

Para tanto, buscou-se uma mudança de foco no que tange à apreensão dos
tradicionais conteúdos de literatura tal como dispostos em grande parte dos
materiais didáticos brasileiros disponíveis e em circulação na atualidade.
Expandindo os repertórios já oferecidos, são incluídos, nos três volumes e
em diferentes seções, diversos autores e textos afro-brasileiros e africanos,
preferencialmente em diálogo com o conjunto de autores e textos já
canônicos nos currículos escolares. Com isso, objetiva-se indicar caminhos
para uma prática pedagógica simultaneamente crítica e propositiva, calcada
na percepção plural e dinâmica da história da literatura. (HERNANDES;
MARTIN, 2013 [Vol 1 – Apêndice: “Manual do Professor”], p. 13).

O presente excerto já permite perceber que, ao menos no que tange às literaturas


preconizadas pela lei 10.639/03, PL07 apresenta o maior e mais diverso repertório de
literaturas de língua portuguesa, entre todos os livros didáticos que integram o nosso corpus.
Cabe assinalar, contudo, que, assim como vimos em grande parte das obras aprovadas pelo
PNLD 2015, a lei 11.645/08 não é igualmente rememorada pelo Manual do Professor, ainda
que a análise da microestrutura da coleção permita identificar também textos literários de
autoria indígena.
A seguir, desenvolvemos, pois, o estudo da microestrutura, no qual parte das
orientações específicas e das sugestões complementares dadas ao professor é abordada,
270

consoante se façam relevantes à compreensão das atividades por nós destacadas e


comentadas.

MICROESTRUTURA DA COLEÇÃO LP07

Revisitando o cânone: Quinhentismo e Romantismo (Indianismo e Condoreirismo) em


LP07

Em LP07, o capítulo “Quinhentismo” (Capítulo 18, Volume 1) é precedido pelo


capítulo “O projeto colonial português” (Capítulo 17), em que se revisam aspectos da
expansão do império português e sua respectiva representação em textos literários.
Consideramos importante analisar as duas seções, haja vista uma ser complementar a outra.
No primeiro capítulo (“O projeto colonial português”), a coleção discute a
dominação colonial tanto no Brasil e quanto em África, sendo esta última muito mais
explorada nos exercícios de leitura. Por meio de enquadradores discursivos extratextuais,
enfatiza-se a existência de interesses econômicos e religiosos por parte dos portugueses e
também a interação conflituosa e violenta estabelecida entre os europeus e os nativos das
regiões ocupadas (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 1], p. 269). A respeito da produção
literária, a coleção esclarece que durante séculos o colonizador “desqualificou” o colonizado,
o qual, por sua vez, ao adquirir autonomia, pôde apresentar, nos textos literários, “uma
abordagem mais crítica das tensões culturais decorrente do encontro de culturas” (ibid., p.
270). Como exemplo, apresenta-se uma imagem da pintura Inferno (1968)128, de Malangatana
Valente Ngwenya, que, segundo a coleção, “representa o dilaceramento das culturas
moçambicanas impactadas pelo domínio colonial” (ibidem). Ao observarmos o capítulo em
sua totalidade, a obra de Ngwenya serve de contraposição às obras do holandês Albert
Eckhout129 que embasam as atividades de abertura (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 1],
p. 268), e a partir das quais os alunos são conduzidos a pensar sobre a relação entre certo
exotismo presente nas produções artísticas do pintor e as expectativas do público europeu. Ou
seja, diferentemente da maioria das coleções do nosso corpus, LP07 não trabalha,
inicialmente, as narrativas coloniais apenas sob o prisma do colonizador. Ao listar, por
exemplo, ficções contemporâneas que tratam da colonização portuguesa, indicam-se livros

128
Imagem disponível em: https://br.pinterest.com/pin/516225176016506829/?lp=true Acesso em: 17/02/2019.
129
As telas apresentadas pela coleção são: Mulher mameluca (1641); Mulher negra (1641); e Mulher tapuia
(1641). (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 3], p. 268). Todas são facilmente encontradas na internet.
271

escritos por autores de todos os países de língua portuguesa (HERNANDES; MARTIN, 2013
[Vol 1], p. 272). Além disso, também as atividades de leitura do capítulo (HERNANDES;
MARTIN, 2013 [Vol 1], pp. 271-275) servem de exemplo dessa extrapolação do olhar do
europeu: das cinco atividades propostas (uma na seção “Leitura” e as demais na seção
“Atividades”), três partem de fragmentos de escritores africanos (a relação completa do
repertório literário da coleção encontra-se na Tabela 11 [páginas 295-297]), sendo as demais
baseadas, respectivamente, num fragmento do romance Caderno de memórias coloniais
(2010), de Isabela Figueiredo, escritora portuguesa nascida em Moçambique que, no romance,
também discute os conflitos da sociedade colonial, e numa charge crítica à histórica
estereotipia dos indígenas (vide adiante).
Antes de dar início às leituras, LP07 informa que os textos literários produzidos
pelos colonizados passam a abordar com mais veemência as especificidades das culturas
nacionais no século XIX, no caso do Brasil, e nas primeiras décadas do século XX, no caso
dos países africanos de língua portuguesa. Já no que concerne ao teor das análises textuais,
verificamos como ponto comum um diálogo entre os exercícios e a temática do capítulo, isto
é, a colonização, inclusivamente nas questões de viés mais linguístico que literário, as quais
se voltam, com frequência, também a aspectos dos contextos sócio-históricos de cada país.
Selecionamos alguns exemplos:

(i) [Sobre o texto “Eu e o Outro – O invasor ou em poucas três linhas uma
maneira de pensar o texto”, proferido pelo angolano Manuel Rui durante o
encontro “Perfil da Literatura Negra” (1985), no Brasil]
1. Segundo Manuel Rui, como era a realidade vivida pelos africanos antes da
chegada do colonizador europeu? (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 1],
p. 271). [Resposta: Era uma realidade de harmonia, pois “estava tudo em
seu lugar”. Os mais velhos contavam histórias, texto oral que era “falado
ouvido visto”, e esse procedimento contribuía para a manutenção da
harmonia entre os homens e entre os homens e a natureza] (HERNANDES;
MARTIN, 2013 [Vol 1 – Apêndice: “Manual do Professor”], p. 82).
[...]
4. Por que a escrita do colonizador – que pode ser entendida como metáfora
da cultura europeia – é considerada uma arma tão poderosa como o canhão?
(HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 1], p. 271). [Resposta: Porque a
escrita (cultura) do colonizador disparou contra o texto oral (cultura) do
colonizado. Isso significou tentar destruir a identidade, os valores, o modo
de vida do colonizado] (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 1 – Apêndice:
“Manual do Professor”], p. 82).

(ii) [Sobre os poemas “Epigrama”, de Marcelo da Veiga (São Tomé e


Princípe), e “Mar”, de Mário António (Angola)]
272

e) Os poemas trazem uma visão positiva ou negativa da ação colonial?


Justifique sua resposta. (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 1], p. 274).
[Resposta: Ambos os poemas apresentam uma visão negativa do
colonialismo. O primeiro trata da exploração do colonizado pelo
colonizador; e o segundo, do caráter “moral” da escravidão]
(HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 1 – Apêndice: “Manual do
Professor”], p. 82).

(iii) [Sobre o romance Caderno de memórias coloniais (2010), de


Isabela Figueiredo]
3. O texto reproduzido a seguir é fragmento do romance Caderno de
memórias coloniais, publicado por Isabela Figueiredo em 2010. A autora,
que é filha de colonos portugueses e nasceu em Moçambique em 1963, foi
para Portugal em 1975, quando o país se tornou independente. Sua obra, de
caráter autobiográfico, aborda os conflitos e as contradições da sociedade
colonial. Leia o trecho e responda às questões propostas.
a) Sabendo-se que, até 1975, a capital de Moçambique chamava-se
Lourenço Marques e que, depois da independência, passou a chamar-se
Maputo, explique por que o primo da narradora nunca pronunciou a
palavra Maputo. (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 1], p. 275).
[Resposta: Porque ele não aceitava o fim do colonialismo em
Moçambique] (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 1 – Apêndice:
“Manual do Professor”], p. 83).
b) Por que “um branco”, saído de Lourenço Marques, opta por falar
“frigorífico” em vez de geladeira, “frango” em vez de “galinha”?
(HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 1], p. 275). [Resposta: Porque
não quer se identificar com o modo de falar (vocabulário) usado pelos
negros. Em sua perspectiva, não usar determinados termos afirmaria
sua suposta superioridade] (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 1 –
Apêndice: “Manual do Professor”], p. 83).
c) Você acha que a questão da nomeação revela uma perspectiva específica
sobre aquilo (ou quem) é nomeado (pessoas/cidades/coisas)? Ou, em
outras palavras, você acha que nomear é exercer alguma forma de
poder? Discuta essa questão com os seus colegas. (HERNANDES;
MARTIN, 2013 [Vol 1], p. 275). [Resposta: Espera-se que os alunos
percebam que, em determinadas situações, há uma clara
intencionalidade de nomeação de pessoas/cidades/coisas. Assim, nomes
de origem européia, indígena ou africana, por exemplo, podem indicar
um gesto de afirmação cultural.] (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol
1 – Apêndice: “Manual do Professor”], p. 83).

Os excertos (i) e (ii) ilustram que o capítulo precedente ao Quinhentismo promove


um questionamento da narrativa única sobre a colonização ao refletir sobre a realidade pré-
colonização, sobre a imposição da voz (/escrita) do europeu etc, tudo isso, como dissemos,
através da visão do colonizado. O excerto (iii), além de figurar como uma interessante, e
crítica, abordagem da variação linguística, estabelece, a nossa ver, um gancho com uma das
atividades de produção textual a ser consolidada no capítulo 20 (“Relatório de pesquisa
273

escolar”), em que se sugere a realização de uma “pesquisa toponímica” sobre “as motivações
naturais e culturais” que deram origem aos nomes de espaços (fazendas, rios, praias, ruas,
etc.) da região em que os alunos moram (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 1], p. 312)130.
Mais que um bom gancho coesivo, o excerto (iii), em especial a letra “c”, somado ao estudo
de topônimos, elucida os vínculos existentes entre linguagem e poder, ponto caro ao estudo
crítico dos textos quinhentistas.
Mantendo o padrão de abrir os capítulos por meio de leituras imagéticas, LP07 inicia
a seção do Quinhentismo com um mapa “que mostra a distribuição atual dos povos indígenas
no Brasil” (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 1], p. 280). Em seguida, a coleção segue
com a discussão do respectivo contexto histórico, enfatizando, entre outros aspectos, a visão
eurocêntrica de tais textos dirigidos ao público leitor europeu, bem como faz menção aos
principais autores do período (Caminha, Gândavo, Hans Staden). Contudo, escapando ao
modelo clássico de ensino, a usual ênfase nos escritos dos cronistas dá lugar, por exemplo, a
atividades de leitura comparada em detrimento de análises isoladas do cânone131: um trecho
da carta de Pero Vaz de Caminha é lido comparativamente ao poema “Erro de português”, de
Oswald Andrade, e o texto visual “Duas viagens ao Brasil” (1557), de Hans Staden, a uma
paródia feita pelo ilustrador brasileiro Guazelli132 (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 1],
pp. 284-285).
A questão indígena é debatida de forma aprofundada em ambos os capítulos. No
capítulo 17 (“O projeto colonial português”), como dissemos, tem-se a análise de uma charge
relativa ao modo pelo qual os indígenas são eventualmente vistos nos dias atuais:

130
Para tanto, propõe-se a realização de entrevistas com moradores, a análise de dados, a elaboração de
relatórios contendo as informações coletadas e, por fim, a apresentação oral do relatório (HERNANDES;
MARTIN, 2013 [Vol 1], pp. 310-315).
131
Devido ao vasto repertório literário que compõe cada um dos capítulos de LP07, buscamos destacar as
passagens que julgamos mais significativas ao escopo da nossa pesquisa, de modo que nem todas as atividades
são por nós comentadas. Todavia, consideramos interessante mencionar que a coleção trata da temática da
colonização também a partir da leitura de um fragmento do romance Desmundo, da cearense Ana Miranda. Nos
demais livros didáticos do nosso corpus, tal obra, quando rememorada, costuma fazer-se presente através da
referência ao filme homônimo, e não de uma proposta de análise textual do romance.
132
Imagem disponível em: <http://grafar.blogspot.com/2008/04/datas-descobrimento-do-brasil.html>. Acesso
em 17/02/2019.
274

4. Até os dias de hoje, o passado colonial brasileiro é bastante discutido e


merece atenção de escritores e artistas. Leia a tira a seguir, que focaliza a
relação entre indígenas e não indígenas, e explique o que produz o seu efeito
humorístico. (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 1], p. 275). [Resposta: A
tira mostra um homem não indígena que subestima o conhecimento de uma
criança indígena sobre um objeto de uso comum para quem escreve - a
caneta. O humor da tira está justamente no fato de a criança surpreender o
homem, uma vez que decide comprar o objeto pela internet, demonstrando
desenvoltura diante do universo tecnológico. Trata-se de uma tira de fácil
leitura e entendimento. Espera-se, aqui, que os alunos exercitem sua
capacidade de descrever uma situação narrativa de maneira clara e
concisa.] (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 1 – Apêndice: “Manual do
Professor”], p. 83).

No capítulo 18 (“Quinhentismo”), por sua vez, LP07 retira do Enem uma atividade
sobre “o uso de novas tecnologias de informação e comunicação” feito pela tribo Sapucaí
(HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 1], p. 292), questão que chama a atenção para a
possibilidade de se conciliar a informática à conservação das línguas indígenas e, portanto, de
suas identidades (p. 293). Trata-se de exercícios que, em nossa leitura, vão ao encontro, em
maior ou menor medida, das propostas de encerramento dos dois capítulos, pertencentes à
subseção fixa “Ampliação” (sendo esta destinada “à complementação e aprofundamento do
conteúdo” [HERNANDES; MARTIN, 2013 (Vol 1 – Apêndice: “Manual do Professor”), p.
17]), relevando a qualidade dos ganchos coesivos construídos pela coleção. No fechamento do
capítulo 17 (“O projeto colonial português”), logo após a leitura da charge, o espaço
“Ampliação” reserva-se, então, à discussão do tema da diversidade cultural brasileira, por
meio de um texto crítico de Kabengele Munanga e Nilma Lino Gomes133 e de letras de
canções brasileiras que tocam a temática da miscigenação134 (HERNANDES; MARTIN, 2013
[Vol 1], pp. 276-279). Já no encerramento do estudo do Quinhentismo, o tema debatido é “a

133
Fragmento retirado da obra O negro no Brasil hoje. São Paulo: Global, 2006, p. 17.
134
Letras disponibilizadas: “Chegança”, de Antonio Nóbrega; “África”, de Sandra Peres, Arnaldo Antunes e
Paulo Tatit; “Etnia”, de Chico Science & Nação Zumbi; e “Racismo é burrice”, de Gabriel o pensador.
275

condição indígena hoje”, para o qual se dispõem três textos, um que discorre sobre a questão
de modo mais abrangente e dois que tratam da produção audiovisual indígena em particular
(ibid., pp. 294-297), momento em que se retoma, portanto, a temática do uso das novas
tecnologias tal qual feito pelos povos indígenas na atualidade. Elegemos como pontos fortes
desses debates finais tanto a predileção por solicitações cursivas para se conduzir as reflexões
junto aos alunos quanto as diretrizes dadas ao professor:

[Capítulo 17 - “Ampliação: Brasil – país do encontro de culturas e


civilizações”]
Professor, este é um bom momento para discutir com os alunos a
importância do reconhecimento das várias matrizes culturais que estão na
base da formação social brasileira. É também um momento oportuno para
valorizar a história e a cultura dos grupos minoritários (afrodescendentes,
indígenas), que, frequentemente, têm sido objeto de preconceito.
Se julgar conveniente, pergunte aos alunos se já sofreram preconceito ou
presenciaram situações em que houve discriminação. Com base nesses
relatos pessoais, o tema pode ser tratado de forma mais aprofundada.
(HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 1 – Apêndice: “Manual do
Professor”], p. 83).
[...]
2. De qual letra você gostou mais? Por quê? (HERNANDES; MARTIN,
2013 [Vol 1], p. 279). [Resposta: Resposta pessoal. Incentive os alunos a
justificar suas escolhas] (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 1 –
Apêndice: “Manual do Professor”], p. 83).
3. Você conhece sua ascendência? Sabe se seus antepassados são indígenas,
africanos, europeus, asiáticos, árabes, judeus, ciganos? Se for preciso,
pergunte a seus pais, avós ou bisavós, que informações eles têm sobre as
origens de sua família (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 1], p. 279).
[Resposta: Caso haja ascendências variadas, seria interessante promover
uma troca entre os alunos sobre as diferenças culturais entre essas
ascendências e como cada uma contribuiu ou contribui ainda para a
formação do povo brasileiro] (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 1 –
Apêndice: “Manual do Professor”], p. 83).

[Capítulo 18 - “Ampliação: a condição indígena hoje”]


Discuta em grupos: você acredita que projetos [de cinema/ de capacitação
audiovisual] como o desenvolvido pelos xucurus são válidos para dar
visibilidade aos povos indígenas? Você conhece outras iniciativas de
protagonismo social em sua comunidade? Discuta suas ideias com os
colegas. (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 1], p. 297). [Resposta: Este é
um bom momento para ampliar os conhecimentos dos alunos a respeito dos
povos indígenas no Brasil. É possível também discutir o protagonismo
social, dando visibilidade a iniciativas de inserção na comunidade a que
nem todos os alunos podem ter acesso. Dependendo do envolvimento da
turma, é possível propor pesquisas e visitas a centros comunitários, entre
outras atividades.] (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 1 – Apêndice:
“Manual do Professor”], p. 89).
276

Nota-se, em síntese, que LP07 vale-se do Quinhentismo para suscitar pensamentos


mais atuais e abrangentes sobre a formação e a diversidade cultural do país, convidando o
aluno a expor suas vivências e percepções. Trata-se, em nossa leitura, de formulações atentas
aos princípios de uma educação para a cidadania tais quais reforçados pelas 10.639/03 e
11.645/08, e que, por conseguinte, favorecem uma leitura de viés pós-colonial dos conteúdos
clássicos do período colonial, haja vista a reiteração da ideia de pluralidade de vozes, de
narrativas, de culturas.
No capítulo 18 (“Quinhentismo”), as demais ocorrências acerca das culturas
indígenas encontram-se mais no plano das discussões teóricas, situadas entre os
enquadradores discursivos extratextuais da seção. Primeiramente, frisamos os
questionamentos e os esclarecimentos, de LP07, acerca da representação dos rituais
antropofágicos feita pelos cronistas. A partir da leitura de uma imagem produzida por
Theodor de Bry, no século XVI135, a coleção esclarece que, contrariamente ao que sugere a
pintura, tratava-se de um ritual restrito aos homens, sem a participação de mulheres ou de
crianças; além disso, o material discorre sobre as representações por vezes “infernais”
atribuídas aos indígenas nos textos quinhentistas, decorrentes, segundo LP07, da resistência
dos povos originários ao processo civilizatório e do conflito entre suas culturas e os valores
cristãos (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 1], pp. 282-283). Similarmente, é separado um
espaço ao apontamento da “sobrevivência dos rituais indígenas”, a respeito da qual se dá o
exemplo da permanência do ritual kuarup, de homenagem a “um morto ilustre”, “que
acontece anualmente no Parque Indígena do Xingu” (ibid., p. 289)136.
Finalmente, cabe retomar o capítulo 17 (“O projeto colonial português”) e comentar
seu “projeto de encerramento”, intitulado “Painel sobre a formação do Brasil”, devido,
sobretudo, ao fato de os temas de pesquisa que o integram dialogarem diretamente com as leis
10.639/03 e 11.645/08: “presença dos indígenas na formação do Brasil; presença dos
portugueses na formação do Brasil; presença dos africanos na formação do Brasil; as artes
plásticas no Brasil Colonial; a literatura no Brasil Colonial; a arquitetura no Brasil Colonial;
135
Imagem disponível em (“Ilustração 2”): <http://www.cchla.ufrn.br/humanidades2009/Anais/GT07/7.10.pdf>.
Acesso em 17/02/2019.
136
As culturas indígenas também são discutidas de modo crítico-reflexivo nas atividades acerca da atuação e das
narrativas dos jesuítas (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 1], pp. 291-293). Analogamente, as leituras
complementares sugeridas no Manual do Professores favorecem reflexões de viés pós-colonial, são elas: “BOSI,
Alfredo. Dilética da colonização. São Paulo, Companhia das Letras, 1992” e “CUNHA, Manuela Carneiro da.
Índios no Brasil. História, direitos e cidadania. São Paulo, Companhia das Letras/Claro enigma, 2013”
(HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 1 – Apêndice: “Manual do Professor”], p. 90).
277

heranças do Brasil colonial nas letras de canção; representações dos indígenas na mídia;
representações dos afrodescendentes na mídia; a literatura afrodescendente; o racismo
no Brasil” (destaque nosso) (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 1 – Apêndice: “Manual
do Professor”], p. 84)137. Reconhecida a relevância do projeto, fazemos somente uma
ressalva: assim como a literatura afrodescendente comparece como um tema possível,
julgamos que a literatura indígena poderia ser inserida em tal listagem.
O estudo do Romantismo (Unidades 1 e 2 do Volume 2) também articula as
produções portuguesas e brasileiras às literaturas africanas e, neste caso, à literatura indígena.
Composta por quatro capítulos, a abordagem de tal escola literária inicia-se com uma
contextualização histórica bastante atenta, entre outros fatores, ao desenvolvimento e ao papel
da imprensa na divulgação da literatura romântica. A usual apresentação dos marcos
históricos europeus e das características estilísticas do período  tais como, o papel da
Revolução Francesa e da Revolução Industrial, o sentimento nacionalista, a idealização do
herói e do amor etc.  é acrescida (e, assim, inovada) de uma breve descrição do contexto de
surgimento da imprensa e do gênero romance “na África e na Ásia colonizada por Portugal”
(HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 2], p. 23), em que se listam nomes fundadores dessa
escrita em diversas ex-colônias portuguesas situadas nesses continentes. Introduz-se, então,
uma pequena biografia e comentários sobre a obra do escritor angolano Pepetela, apresentado
pela coleção como “um dos mais importantes romancistas contemporâneos em língua
portuguesa” (ibid., p. 25). Em seguida, na subseção “Atividades”, propõe-se, para além da
análise de fragmentos do clássico Os sofrimentos do jovem Werther (1774), de Goethe, a
leitura de um trecho de Yaka (1984), do autor africano. Sobre esta atividade, chama-nos a
atenção seu enquadrador discursivo extratextual. Nele, recordam-se as diferenças entre os
processos de independência do Brasil e de Angola e reitera-se que Pepetela “desenvolve um
projeto literário voltado para a reconstrução da história de seu país” (HERNANDES;
MARTIN, 2013 [Vol 2], p. 28). Dessarte, analogamente ao que vimos no capítulo que
antecede o estudo do Quinhentismo, a introdução ao Romantismo afasta o aluno de uma
percepção eurocêntrica das produções artístico-literárias do período da escola a ser

137
A ideia do projeto é produzir, em grupos, um painel com colagens e imagens sobre alguns dos temas listados.
Para tal, são fornecidas algumas referências bibliográficas e fontes de pesquisa.
278

trabalhada, tanto ao expandir o repertório escolar quanto ao articulá-lo a textos


representativos do cânone138.
O capítulo seguinte, Capítulo 2 - “Romantismo em Portugal”, revela-se, por outro
lado, mais condizente com a abordagem escolar clássica, havendo o predomínio de discussões
e de análises textuais do cânone literário da época. É nos capítulos 5 e 6 (“Romantismo
brasileiro: poesia” e “Romantismo brasileiro: prosa”), da Unidade 2, que a literatura
comparada e a ampliação o repertório voltam a tomar lugar.
No que engloba a poesia Indianista, por sua vez, admite-se, a priori, que

a figura do indígena [...] foi ideologicamente reconstruída. Se antes a nação


parecia envergonhada pelo fato de tribos brasileiras praticarem a
antropofagia, por exemplo, nesse movimento, o indígena revisitado, quase
um herdeiro direto dos valores dos cavaleiros medievais europeus, passou a
ser o ancestral valorizado, modelo de coragem, retidão e respeito aos valores
cristãos e à natureza. (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 2], p. 79).

Repetindo o objetivo de explorar os diálogos culturais firmados entre as literaturas de


língua portuguesa, bem como entre passado e presente, LP07 conjuga ao exercício de leitura
de “Canção do exílio”, de Gonçalves Dias, à análise textual do poema “À minha terra”, do
angolano José da Silva Maia Ferreira, através, novamente, de um enquadrador discursivo
extratextual que esclarece ao aluno o contexto de escrita do autor africano:

1. O poema a seguir foi escrito pelo angolano José da Silva Maia Ferreira,
que viveu no Brasil de 1834 a 1845, quando teve a oportunidade de entrar
em contato com a poesia dos românticos brasileiros e estudá-la. O texto
consta do primeiro livro de poesia publicado em território africano dominado
por Portugal. Trata-se de Espontaneidades da minha alma: às senhoras
africanas (Luanda, 1849). Leia-o e, na sequência, responda às questões
propostas. (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 2], p. 83).
a) O poema À minha terra estabelece um interessante diálogo com Canção
do exílio, de Gonçalves Dias. Aponte os elementos temáticos e formais que
permitem ao leitor associar um poema ao outro. (HERNANDES; MARTIN,
2013 [Vol 2], p. 84). [Resposta: Do ponto de vista temático, observa-se no
poema de Maia Ferreira a mesma intencionalidade presente no poema de

138
LP07 também aborda neste primeiro capítulo do Romantismo a “presença feminina nos jornais brasileiros do
século XIX” (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 2], p. 21) e a “escrita de autoria feminina” no Romantismo
(ibid., p. 29). Ao encontro desse recorte, a subseção de encerramento “Ampliação” tem como tema “Direitos das
mulheres” (ibid., p. 32), em que encontramos solicitações cursivas similares às que integram a proposta de
fechamento do Quinhentismo, tais como , “Que razões lvariam alguns homens a acreditar que são ‘donos’ de
suas mulheres e que podem ser violentos com elas?” e “Você conhece alguma mulher que violência domésticaou
outro tipo qualquer de violência?” (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 2], p. 35). Ademais, no capítulo 6
(“Romantismo brasileiro: prosa”), a coleção reserva uma subseção a “um pouco da história das mulheres
escritoras no Brasil” (ibid., p. 133).
279

Gonçalves Dias: a exaltação da terra natal, de uma perspectiva distanciada


(observa-se o subtítulo do poema). Nesse sentido, ambos os textos traduzem
a postura romântica de apego à terra e à natureza. Já do ponto de vista
formal, observa-se, no poema angolano, o uso de um vocabulário bastante
próximo ao usado no poema brasileiro (repetição de termos como
“primores” e “amores”, por exemplo), bem como a presença de
redondilhas maiores.] (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 2 – Apêndice:
“Manual do Professor”], p. 41).
b) Releia com atenção o seguinte trecho do poema de Maia Ferreira: “Tem
d’África o sol ardente,/Que sobre a areia fervente/Vem-me a mente
acalentar./Debaixo do fogo intenso,/Onde só brilha formosa/Sinto n’alma
fervorosa/O desejo de a abraçar”. Levando em consideração que a terra natal
do poeta é Angola, relacione a descrição feita desse país à seleção de
adjetivos e verbos que aparecem no trecho. (HERNANDES; MARTIN, 2013
[Vol 2], p. 84). [Resposta: A maior parte dos adjetivos selecionados pelo
poeta refere-se ao calor, direta ou indiretamente: ardente, fervente, (fogo)
intenso, fervorosa. Além deles, também os verbos “acalentar” e “brilhar”
fazem referência ao calor. Todas essas características da terra africana é
que levariam o eu lírico a sentir vontade de “abraçá-la”, ou seja, sentir o
calor de estar junto a ela.] (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 2 –
Apêndice: “Manual do Professor”], p. 41).
c) Como vimos, Gonçalves Dias apresenta uma visão idealizada de sua terra,
enfatizando-lhe apenas as qualidades. É o que acontece no poema angolano?
Justifique sua resposta. (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 2], p. 84).
[Resposta: Não. Embora predomine um canto de elogios a sua terra natal, o
angolano não deixa de apontar seus limites: seus fulgores são “simples”;
sua beleza é “singela”; e ela é “pobre”. Desse modo, os elogios aparecem
mesclados a certa consciência dos problemas de Angola (talvez em
comparação ao Brasil, vista pelo poeta como colônia portuguesa mais
desenvolvida e promissora).] (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 2 –
Apêndice: “Manual do Professor”], p. 41).

A despeito de a segunda geração romântica não compor nosso foco analítico, cabe
registrar que LP07 propõe, de forma análoga, um exercício de leitura comparada abarcando os
poemas “Namoro a cavalo”, de Álvares de Azevedo, e “Namoro”, do angolano Viriato Cruz
(HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 2], pp. 93-95). Também o poema “Realidade, sonho
horrível”, do caboverdiano Eugênio Tavares, é inserido como um exemplo de produção
africana de inspiração ultrarromântica (ibid., p. 90).
Para o Condoreirismo, a coleção soma aos autores mais clássicos, a saber, Castro
Alves e Sousândrade, o escritor afrodescendente e abolicionista Luiz Gama, escolha esta
pouco frequente entre os livros didáticos por nós analisados. Menciona-se no presente
capítulo, seu “tom satírico” e o fato o autor assumir a voz “diferenciada” do “negro-autor” em
sua obra única, Primeiras trovas burlescas de Getulino (1859) (HERNANDES; MARTIN,
2013 [Vol 2], pp. 99-100). Além de uma minibiografia, disponibilizam-se dois fragmentos de
280

poemas de Gama, sendo um deles, “Saudades do escravo”, acompanhado de questões


interpretativas (ibid., p. 107) acerca, sobretudo, o tema da resistência dos próprios escravos à
escravidão139, uma perspectiva raramente tratada em materiais didáticos:

a) Quem é o eu lírico do poema? Justifique com base no texto.


(HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 2], p. 107). [Resposta: É um homem
negro, um escravo que vive cativo, mas sente sua alma livre.]
(HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 2 – Apêndice: “Manual do
Professor”], p. 44).
b) No poema, é possível notar uma oposição entre um “lá” e um “cá”, num
diálogo intertextual com a Canção do exílio de Gonçalves Dias. No poema
gonçalvino, o “lá” era representado pelo Brasil e o “cá”, por Portugal.
Identifique os lugares representados pelo “lá” e pelo “cá” no poema de Luís
Gama. (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 2], p. 107). [Resposta: O “lá”
é o lugar da liberdade: o quilombo dos Palmares (“Lá nos palmares vivi”).
Já o “cá” é o lugar da escravidão, a senzala (“Nas faces
ensanguentadas/Sinto as torturas de cá”).] (HERNANDES; MARTIN, 2013
[Vol 2 – Apêndice: “Manual do Professor”], p. 44).
c) O eu lírico apresenta idealismo em seu poema, ao separar o corpo da
alma, com privilégio da alma sobre o corpo. Qual a importância desse
idealismo no contexto da escravidão? (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol
2], p. 107). [Resposta: Esse idealismo é responsável por reiterar a
liberdade: embora o corpo do eu lírico possa estar escravizado, sua alma é
livre, como ele expressa no trecho: “A liberdade que eu tive/Por escravo
não perdi-a;/Minha’alma que lá só vive”. Ou seja, ainda que cativo, a alma
do escravo não se rende e se recusa a abandonar a esperança de liberdade,
vagando pelo “lá” onde era livre.] (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 2
– Apêndice: “Manual do Professor”], p. 44).
d) Considerando suas respostas aos itens anteriores, é possível afirmar que se
trata de um poema de resistência? Justifique. (HERNANDES; MARTIN,
2013 [Vol 2], p. 107). [Resposta: Sim, trata-se de um poema de resistência.
A própria referência ao Quilombo dos Palmares corrobora essa leitura, já
que esse foi um lugar de união e luta conjunta dos escravos contra a
realidade escravista. Afora isso, o eu lírico não apresenta uma postura de
resignação em relação à escravidão, mas luta pela liberdade, alimentando-
se da memória dos tempos em que viveu livre, recusando-se a aprisionar sua
alma.] (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 2 – Apêndice: “Manual do
Professor”], p. 44).

Da mesma maneira, merece comentário um ponto da abordagem da obra de Castro


Alves. É interessante o fato de LP07 debater conjuntamente a vertente racial e a vertente
amorosa de sua poesia, uma vez que na maioria das coleções do PNLD 2015 elas são tidas

139
Também no capítulo 21 do primeiro volume, intitulado “Barroco”, há uma breve subseção sobre o tema
“resistência à escravidão no Brasil Colonial” (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 1], p. 335), que trata
especialmente do Quilombo dos Palmares e da cultura negra (discutem-se/apresentam-se canções e danças da
capoeira, por exemplo).
281

como frentes literárias distintas. Após a leitura do “O adeus de Teresa”, frisa-se aos alunos
que “outro ponto interessante que aparece na tematização do amor em Castro Alves é que, em
sua poesia, o amor não tem cor ou raça. Diferentemente do ocorrido na literatura até o
Romantismo [...], Castro Alves trata o amor da mesma forma, aconteça ele entre brancos e
negros ou entre um casal de negros” (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 2], p. 98). No
mais, verificam-se exercícios parecidos aos de outras coleções, abrangendo a leitura de “O
Navio Negreiro”, de um lado, e o estudo de possíveis intertextualidades com Castro Alves, de
outro, como com a letra da canção “Todo camburão tem um pouco de navio negreiro”, do
grupo O Rappa (ibid., p. 104), ou com a obra artística de J. M. Rugendas (p. 106).
Inquestionavelmente, a subseção de encerramento “Ampliação” surge, uma vez mais,
como espaço bastante produtivo ao cumprimento da lei 10.639/03, haja vista ela se dedicar à
temática “Afirmação da identidade afro-brasileira nos Cadernos Negros” (HERNANDES;
MARTIN, 2013 [Vol 2], p. 108). Nesse sentido, depreendemos que, em síntese, LP07 parte do
Condoreirismo, escola conhecida mais pelo “falar sobre os negros”, para a literatura “dos
negros”, escrita por afrodescendentes. Transcrevemos parte dos enquadradores discursivos da
subseção, o primeiro pertencente ao Caderno do Aluno e o segundo referente a orientações
dadas ao professor:

Neste capítulo, você pôde refletir sobre a produção poética de Castro Alves,
que se empenhou na luta pela libertação dos escravos, concretizada em 1888.
Entretanto, a condição subalterna dos negros no Brasil não foi
substancialmente alterada com o fim da escravidão. Por isso, diversos grupos
continuam lutando pela emancipação dos afrodescendentes e, de modo mais
amplo, por um Brasil sem preconceito racial. Essa luta também se deu no
âmbito da Literatura, por meio de publicações escritas por e para os
afrodescendentes. Entre elas, destacam-se os Cadernos Negros.
(HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 2], p. 108).

Comente com os alunos que os Cadernos Negros agregam textos literários


escritos por autores negros, que assumem sua condição étnica com base na
qual elaboram seus textos. Assim, nos contos e poemas publicados, há o
ponto de vista do negro sobre a sua própria situação. Trata-se de uma
posição diferente da encontrada, por exemplo, nos poemas de Castro Alves.
Ao escrever seus poemas para denunciar a condição de opressão dos
escravizados no Brasil, o poeta romântico “emprestou” a sua voz para falar
dos negros, expressando um ponto de vista “de fora” sobre a realidade dos
africanos e seus descendentes. (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 2 –
Apêndice: “Manual do Professor”], pp. 44-45).

Mais que a breve história dos Cadernos Negros e do grupo paulistano Quilombhoje,
completam a atividade fragmentos literários de Conceição Evaristo (poema “Vozes-
282

Mulheres”), Cuti (poema “Quebranto”) e Solano Trindade (“Sou negro”). Separamos as


solicitações analíticas em que, a nosso ver, prevalecem questionamentos acerca da questão
racial/da negritude, por ser esse um ponto especialmente caro aos pressupostos da lei
10.639/03:

[...]
d) O poema faz referências claras à história do Brasil, sugerindo que os
negros sempre estiveram à margem dos processos históricos, sofrendo
claramente as suas consequências. À luz dessa perspectiva, interprete o
verso: “um dia fui abolição que me lancei de supetão no espanto”.
(HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 2], p. 111). [Resposta: O verso
refere-se ao modo como foi conduzida a abolição dos escravos no Brasil. O
eu lírico, que assume a sua afrodescendência, coloca-se no lugar de seus
antepassados que, depois da abolição, ficaram sem lugar social, pois não
houve políticas públicas para sua integração no universo do trabalho
assalariado. Como se sabe, esse fato está na base da exclusão social dos
afrodescendentes, que se perpetua até hoje.] (HERNANDES; MARTIN,
2013 [Vol 2 – Apêndice: “Manual do Professor”], p. 45).
[...]
g) Você sabe o significado de “quebranto”? Confira o sentido da palavra no
dicionário e, depois, elabora uma hipótese para explicar por que o termo foi
escolhido para dar título ao poema. [Resposta: O significado de “quebranto”
é “mau-olhado”, ou seja, um suposto efeito malévolo que a atitude ou o
olhar de algumas pessoas produzem em outras. O poema intitula-se
“Quebranto” exatamente porque aborda o efeito negativo que a perspectiva
hegemônica de desvalorização do negro exerce sobre o eu lírico, fazendo
com que ele interiorize o preconceito veiculado socialmente.
Chame a atenção dos alunos para a questão da interiorização do
preconceito, mecanismo perverso capaz de atingir, desde muito cedo, todos
aqueles que são alvo de discriminação. No caso do preconceito racial,
pode-se pensar nas crianças negras que dificilmente se veem representadas
de modo positivo na televisão, no cinema ou na literatura. Por serem
invisibilizadas ou ainda representadas de modo negativo, acabam por
introjetar um sentimento de inferioridade em relação às pessoas brancas. A
introjeção do preconceito pode ser percebida, de modo mais aparente, na
busca feminina por determinados padrões de beleza socialmente valorizados
- como os cabelos lisos e loiros, por exemplo.] (HERNANDES; MARTIN,
2013 [Vol 2 – Apêndice: “Manual do Professor”], p. 45).

2. Leia o poema a seguir, do pernambucano Solano Trindade.


[...]
a) Qual é o posicionamento do eu lírico em relação à sua ascendência e
cultura? (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 2], p. 111). [Resposta: O
poema de Solano Trindade evidencia o orgulho do eu lírico em relação à
sua ascendência e a seus antepassados] (HERNANDES; MARTIN, 2013
[Vol 2 – Apêndice: “Manual do Professor”], p. 45).
283

b) Que elementos da ancestralidade o eu lírico destaca como positivos?


(HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 2], p. 111). [Resposta: O eu lírico
destaca o trabalho, a valentia, a coragem, a disposição de luta]
(HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 2 – Apêndice: “Manual do
Professor”], p. 45).

Se o capítulo centrado na poesia romântica traz, como ilustram os exemplos


supracitados, a autoria negra/afro-brasileira para o livro didático de Português, o capítulo final
dedicado ao Romantismo em LP07, “Capítulo 6 – Romantismo brasileiro: prosa”, dá espaço à
literatura indígena, cumprindo, pois, com a lei 11.645/08. Tal qual a poesia de Gonçalves
Dias, a prosa indianista de Jose de Alencar é apresentada e trabalhada de forma crítica e
seguida da leitura de excertos do escritor indígena Daniel Munduruku. Observemos
primeiramente a introdução e o teor do estudo do cânone:

Os romances indianistas, de que são exemplo O guarani (1857) e Iracema


(1865), concentram-se na construção de uma imagem idealizada do indígena
brasileiro, que é visto como uma espécie de cavaleiro medieval dos trópicos.
Nesses romances, o indígena é descrito por meio de dois estereótipos: o
herói virtuoso, adaptado plenamente aos padrões éticos sociais europeus, ou
o vilão absoluto, selvagem e violento. (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol
2], p. 118).

2. O romance Iracema narra de modo idealizado o encontro de uma índia


tabajara, que guarda o segredo da Jurema, ritual importante de sua tribo (e
por isso deve manter a castidade), com Martim, colonizador português. Ao
se conhecerem, Iracema abandona sua cultura e suas crenças para se tornar
esposa de Martim. [...] Leia, a seguir, o Capítulo II, em que Iracema e
Martim se encontram pela primeira vez. (HERNANDES; MARTIN, 2013
[Vol 2], p. 123).
[...]
d) Como o encontro de Iracema e Martim, Alencar tenta reconstruir o
passado colonial brasileiro: o encontro entre europeu e indígena gerando o
povo brasileiro - representado pelo filho de ambos, Moacir. Considerando-se
o que você leu nesse capítulo, qual seria a marca central desse encontro de
culturas, segundo José de Alencar? (ibid., p. 124). [Resposta: O eu lírico
destaca o trabalho, a valentia, a coragem, a disposição de luta]
(HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 2 – Apêndice: “Manual do
Professor”], p. 52).

É importante apontar que estes e os demais excertos que recortamos de LP07 expõem
a relevância que os enquadradores discursivos adquirem na coleção, dado que, em nossa
percepção, se nota um contínuo e cuidadoso trabalho de direcionamento de leitura, realizado
por meio dos textos (/dos enquadradores) que antecedem as solicitações analíticas e daqueles
que fazem a contextualização e mediação dos conteúdos de cada capítulo. O enquadrador
284

discursivo que abre a atividade de análise textual da obra de Daniel Munduruku reforça essa
impressão; destacamos o enquadrador e algumas solicitações analíticas:

5. Desde o início da colonização do Brasil, o indígena foi alvo de


prejulgamentos e preconceitos por parte dos colonizadores. Autores como
José de Alencar representaram os indígenas a partir de seus próprios valores,
como objeto literário. Contemporaneamente, autores como o indígena Daniel
Munduruku tomam a palavra e escrevem sua própria história, passando de
objeto de estudo a sujeito de produção de suas histórias. A seguir, você lerá
dois textos do autor. O primeiro está no prefácio do livro de contos A
primeira estrela que vejo é a estrela do meu desejo e trata do lugar ocupado
pelo amor na sociedade indígena; o segundo é um dos contos desse livro.
Leia-os para refletir sobre o amor nas sociedades indígenas.
(HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 2], p. 126).

a) Segundo o texto 1, a experiência amorosa é universal. Após a leitura do


texto 2, você concorda com a afirmação de que o enredo do conto pode ser
considerado um enredo amoroso universal? (HERNANDES; MARTIN,
2013 [Vol 2], p. 128).[Resposta: Sim, trata-se de um enredo universal: o
amor entre jovens que enfrentam diversidades.]. (HERNANDES; MARTIN,
2013 [Vol 2 – Apêndice: “Manual do Professor”], p. 53).
b) É possível identificar elementos românticos no conto? Justifique sua
resposta.(HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 2], p. 128). [Resposta: Há
vários elementos românticos no conto: o drama de um casal que se ama e
supera as dificuldades para ficar juntos é bastante comum no Romantismo;
também o tema do sofrimento insuperável que acaba levando à morte está
presente em vários enredos românticos.] (HERNANDES; MARTIN, 2013
[Vol 2 – Apêndice: “Manual do Professor”], p. 53).
c) Você identifica semelhança temática entre o enredo do texto 2 e o do
romance Iracema, de José de Alencar? Qual? (HERNANDES; MARTIN,
2013 [Vol 2], p. 128). [Resposta: Sim. Tanto no romance alencariano quanto
no conto de Daniel Munduruku, uma jovem indígena morre após o parto. No
caso de Alencar, Iracema morre logo depois de dar à luz; no texto 2, ela
morre de tristeza pela perda do filho.]. (HERNANDES; MARTIN, 2013
[Vol 2 – Apêndice: “Manual do Professor”], p. 53).
d) Aponte ao menos duas diferenças entre o romance Iracema e o conto “Só
o amor é tão forte”. (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 2], p. 128).
[Resposta: No texto de Alencar, há o encontro de culturas: o português
Martim tem um filho com a indígena Iracema; já no texto de Munduruku,
trata-se de um casal de jovens indígenas. Além disso, a jovem no conto não
morre no parto, mas a criança, sim, ao contrário do que ocorre no romance
de Alencar, em que Iracema morre, mas seu filho sobrevive e segue para
Portugal com o pai.] (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 2 – Apêndice:
“Manual do Professor”], p. 53).
e) Um dos questionamentos que se faz em relação à obra de José de Alencar
é que o autor estereotipava a figura do indígena: ele era visto ou como herói,
ou como vilão. É possível afirmar que o conto “Só o amor” é tão forte
apresenta uma visão estereotipada do indígena? Explique seu ponto de vista.
(HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 2], p. 128). [Resposta: Não, não
285

ocorre estereotipia do indígena, já que os jovens não são representados de


modo heroico, tampouco como selvagens, mas como um casal apaixonado e
que vive dramas universais: a jovem sofre com a morte do filho, não
consegue superar a perda, nem mesmo com a ajuda do pajé e de seu marido,
que tenta reverter seu estado de ânimo sem sucesso.] (HERNANDES;
MARTIN, 2013 [Vol 2 – Apêndice: “Manual do Professor”], p. 53).

De encontro às demais coleções em que localizamos textos de Munduruku, LP07


prioriza a efetivação de uma análise literária, de fato, e não de uma análise linguística dos
excertos. Efetiva-se, inclusive, uma articulação aprofundada dos textos do autor indígena ao
capítulo sobre Romantismo, pois os alunos são chamados a pensar em que medida as
narrativas de Munduruku dialogam com a escola romântica, em geral, e com a obra de José de
Alencar, em particular. A afirmação da universalidade do enredo é outro aspecto inovador, já
que refuta leituras estereotipadas que costumam inserir as culturas indígenas sempre no lugar
de um “Outro” distante e específico. Trata-se, a nosso ver, de um exercício de leitura que
corrobora a premissa de que o trabalho com a diversidade cultural não implica nem na
negação nem no apagamento do cânone literário.
A única ressalva que temos sobre os capítulos do Romantismo refere-se aos
elementos iconográficos do recorte “um pouco da história das mulheres escritoras no Brasil”
(Capítulo 6, Volume 2), que, a despeito de dar uma necessária e relevante visibilidade à
escrita feminina no Romantismo, ilustram as escritores afrodescendentes Maria Firmina dos
Reis e Auta de Souza com o mesmo tom de pele das escritoras brancas (nas imagens a seguir
é possível contrastá-las, por exemplo, à imagem da escritora Francisca Júlia da Silva) 140:

(HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 2], p. 134).

140
As demais escritoras brasileiras citadas são: Nísia Floresta, Maria Benedita Câmara Bormann, Francisca Júlia
da Silva, Narcisa Amália de Campos e Prisciliana Duarte de Almeida (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 2],
p. 134).
286

Por fim, é válido dar evidência a duas sugestões complementares do Manual do


Professor para o desdobramento do Capítulo 5 (“Romantismo brasileiro: poesia”): a indicação
dos poemas de Viriato Cruz, Luís Gama e Cuti como referências possíveis para o
desenvolvimento de uma “leitura expressiva de poemas” (HERNANDES; MARTIN, 2013
[Vol 2 – Apêndice: “Manual do Professor”], p. 46); e a proposta “Pesquisa sobre a poesia de
Solano Trindade”, a qual conta com uma breve biografia do escritor e objetiva a produção e a
apresentação de uma pequena antologia de seus textos (ibid., pp. 49-50).

Reestruturando o cânone I: literaturas africanas e literatura negra/afro-brasileira em


LP07

Em PL07, a articulação dos conteúdos das leis 10.639/03 e 11.645/08 faz-se presente
em muitos capítulos, de modo que não é possível comentarmos toda essa gama de
ocorrências. A título de exemplificação, elencamos a seguir algumas propostas de leitura
comparada que atestam a existência dessas literaturas, sobretudo das de matriz africana, em
todos os volumes da coleção:

 Volume 1
Capítulo 2 – “Literatura e Sociedade”: leitura comparada do poema “Agosto de 1964”,
de Ferreira Gullar; da canção “Comida”, do grupo Titãs; e do poema “Reza, Maria”,
do moçambicano José Craveirinha (páginas 32-34).

 Volume 2
Capítulo 13 – “Realismo e Naturalismo no Brasil”: leitura comparada dos romances O
Cortiço (1890), de Aluísio Azevedo, e Kufemba (1973) do moçambicano João Salva-
Rey (página 236).

 Volume 3:
Capítulo 2 – “Vanguardas europeias e Modernismo Português”: leitura comparada dos
poemas de Álvaro de Campos (1935 - poema sem título) e “Carta de um contratado”
(1952) do angolano António Jacinto (páginas 65-66).

Para se ter uma dimensão precisa da amplitude do repertório literário de LP07,


indicamos que seja consultada a Tabela 11 (página 295-297), na qual registramos todos os
excertos de matriz africana, afro-brasileira e indígena que localizamos no material. Nesta
subseção, discutiremos os casos que consideramos mais inovadores e/ou mais ilustrativos do
viés didático-pedagógico da coleção, para além daqueles já mencionados na análise do
Quinhentismo e do Romantismo.
287

Em relação às literaturas africanas, há, no terceiro volume, duas seções especiais,


bem como capítulos em que se observa uma abordagem mais sistematizada e substancial
desse corpus. Nas primeiras, pertencentes ao espaço fixo “Ampliação”, propõem-se,
respectivamente, os temas “O regionalismo brasileiro e a literatura cabo-verdiana”
(fechamento do capítulo “Segunda geração modernista: o romance social de 1930”) e
“Guimarães Rosa, Luandino Vieira e Mia Couto: criadores de linguagens” (fechamento do
capítulo “Prosa e poesia do pós-guerra”). Como os próprios títulos sugerem, discute-se a
influência “do romance social nordestino” no contexto de “consolidação da literatura de Cabo
Verde”141 (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 3], p. 224), de um lado, e a aproximação da
obra de Rosa a dos escritores angolano e moçambicano supracitados, de outro (ibid., p. 298).
Em ambas as seções, indica-se a leitura de fragmentos literários dos autores em debate.
Pode-se dizer que essa perspectiva dialógica entre Brasil e África é ainda mais
aprofundada em “A literatura brasileira e a formação das literaturas de língua portuguesa”
(Capítulo 10). Nele, além das esperadas análises de relações intertextuais, abrangendo
diferentes poetas brasileiros e africanos142, assinala-se que

Se a formação do Brasil é fortemente marcada por heranças africanas, o


Brasil e a cultura brasileira também tiveram e ainda têm um papel de destaca
na África colonizada por Portugal [...]. No campo específico da literatura, os
escritores africanos acabaram por criar, em meados do século passado, uma
representação um tanto idealizada do Brasil. Naquela altura, os autores
buscavam caminhos para produzir uma literatura própria, distinta da
portuguesa, e a literatura brasileira foi uma grande inspiração para eles”
HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 3], p. 228).

Conforme mencionado anteriormente, a lista completa dos autores africanos e afro-


brasileiros que integram esse capítulo consta, igualmente, na Tabela 11 (páginas 295-297).
Adiante, comentamos um pouco mais sobre os contornos dessa seção, com especial interesse
pelo modo como a literatura negra/afro-brasileira é por ele trabalhada.
Quanto ao estudo mais restrito, e não tão dialógico, dessas produções, ganham
protagonismo os capítulos dedicados à prosa e à poesia contemporâneas em língua portuguesa
(Capítulos 16 e 17 do terceiro volume). Subdivididos consoante à origem territorial desses

141
Autores analisados na seção: Graciliano Ramos, Manuel Lopes e Ovídio Martins.
142
Um ponto bastante inovador de LP07 é a atenção dada, também no referido capítulo, ao “diálogo cultural
entre brasileiros e africanos nas páginas da revista catarinense Sul”, que “abriu espaço para que jovens escritores
africanos pudessem se manisfestar a salvo da vigilância colonial portuguesa”” (HERNANDES; MARTIN, 2013
[Vol 3 – Apêndice: “Manual do Professor”], p. 233).
288

textos (Brasil, Portugal, países africanos em língua portuguesa), as duas seções, ao abordarem
o continente africano, tratam, especialmente, das literaturas africanas produzidas em Angola,
Moçambique e Cabo Verde143. A explicação para tal enfoque é registrada no capítulo 9 do
primeiro volume (“Literatura em Processo”), em que, ao introduzir e conceituar as literaturas
em língua portuguesa, LP07 afirma se tratar dos países “onde há um maior número de
escritores com obras publicadas e divulgadas para além de suas fronteiras” (HERNANDES;
MARTIN, 2013 [Vol 1], p. 127). Deve-se considerar, portanto, que, anteriormente aos
capítulos do terceiro volume, alguns esclarecimentos acerca dessa matriz literária são feitos
ao aluno144, entre os quais frisamos o enquadrador de leitura responsável por enfatizar a
diversidade e as especificidades literárias do continente africano:

O continente africano possui uma história própria, distinta da história


europeia que, frequentemente, é adotada como parâmetro para se refletir
sobre a história mundial. Culturalmente, os africanos também possuem
paradigmas próprios, portadores de sentidos muitas vezes desconhecidos
para quem vive em outros sistemas culturais. As particularidades das
realidades africanas também estão presentes nas produções artísticas e
literárias de cada país, que encontram soluções próprias para abordar tanto
questões locais, como questões mais gerais, que fazem parte das
preocupações dos sujeitos contemporâneos.
Os cinco países colonizados por Portugal, ainda que possam ser
aproximados por seu passado colonial, possuem histórias específicas e não
podem ser vistos como um bloco homogêneo e indiferenciado.
(HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 1], p. 128).

Na introdução do capítulo 16, esclarece-se que “os tempos de paz” vividos


atualmente nos países africanos em língua portuguesa, “depois dos anos de grave
instabilidade e conflitos que se seguiram após a independência política, conquistada em
meados dos anos de 1970”, favorecem a emergência de uma literatura que não
exclusivamente focada no projeto nacional, mas também interessada por temas
contemporâneos, “como a corrupção e a condição feminina” (HERNANDES; MARTIN, 2013

143
A despeito de serem exploradas somente as literaturas desses países, LP07 lista nomes de autores de Guiné-
Bissau e de São Tomé e Príncipe, tanto no capítulo sobre a poesia quanto no capítulo sobre a prosa.
144
Outrossim, no capítulo 9 do primeiro volume, LP07 comenta conceitualmente, em maior ou menor medida,
aspectos relacionados às distintas “fases literárias” pelas quais passaram essas literaturas, tais como, o papel da
oralidade, a produção literária “nativista” do período colonial, o lugar dos movimentos de “negritude” e de
“africanidade” no fazer literário do século XX e, finalmente, o surgimento de um maior “empenho estético”,
bem como de “mulheres escritoras” no século XXI (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 1], pp. 127-131).
Apesar de se configurarem subsídios de grande importância, preferimos dar mais evidência aos capítulos que
priorizam análises textuais e não tanto aos debates de viés expositivo-explicativo. Por essa razão, os capítulos 16
e 17 do terceiro volume são mais explorados.
289

[Vol 3], p. 335)  em outras palavras, coexistem a “abrangência de temas” e a “uma


experimentação formal” (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 1], p. 131). Afirma-se,
ademais, que se trata de literaturas “em diálogo com a tradição literária produzida em outros
países e regiões e também com as tradições orais que são matrizes do patrimônio cultural do
continente” (ibid., p. 336). Seguem-se, então, breves contextualizações do sistema literário de
cada país, imediatamente acompanhadas de fragmentos literários e da minibiografia de
autores que lhe são representativos, a saber, neste caso, de autoria de Pepetela (Angola), de
Paulina Chizine (Moçambique) e de Germano Almeida (Cabo Verde)  acerca destes, não
são elaboradas propostas de análise textual, havendo somente uma mediação de leitura
descritiva-expositiva.
Entre as atividades de leitura situadas no final do capítulo  relativas a todas as
literaturas contemporâneas em língua portuguesa , julgamos interessante transcrever parte
do exercício de comparação entre um fragmento de O matador (1995), da escritora brasileira
Patrícia Melo, e de Manual prático de levitação (2005), do angolano José Eduardo Agualusa,
haja vista a baixa frequência com que autoras brasileiras são comparadas a autores/as
africanos/as:

1. A seguir, você lerá duas narrativas contemporâneas. A primeira é um


fragmento do romance policial O matador, da escritora brasileira Patricia
Melo. Nesse romance, depois de envolver-se numa briga de bar, Máiquel se
torna um matador de aluguel. A segunda narrativa, de autoria do escritor
angolano José Eduardo Agualusa, no Brasil e em espaços diversos que o
autor chama de “outros lugares de errância”. O conto selecionado, “O
assalto”, tem como cenário a cidade do Rio de Janeiro. Após a leitura dos
dois textos, responda às questões propostas. (HERNANDES; MARTIN,
2013 [Vol 3], p. 342).
d) [...]
II. Uma das tendências da literatura contemporânea é a narrativa
psicológica, que explora o drama interior dos personagens. Compare os dois
textos e identifique a função do uso do fluxo de consciência em cada um
deles. (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 3], p. 343). [Resposta: No texto
1, o fluxo de consciência é responsável por evidenciar ao leitor o drama
vivido por Máiquel ao constatar que “a alma de qualquer homem é um
inferno”: ele adquire consciência de que a violência o cerca, ela está em
toda parte. Já no texto 2, o fluxo de consciência permite ao leitor entender
as motivações da médica Juliana e sua postura indiferente diante da
violência: ao conhecer os dramas que ela enfrenta, é possível entender suas
reações.] (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 3 – Apêndice: “Manual do
Professor”], p. 85).
[...]
290

f) É possível considerar o “realismo feroz” como uma marca das narrativas


lidas? Justifique sua resposta. (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 3], p.
343). [Resposta: Sim, é possível. Ambos os textos se passam em cenários
urbanos caracterizados de modo a realçar a violência em suas varias faces:
o isolamento pelo medo, o desequilíbrio social, o assalto, a reação violenta
à agressão, os perigos do cotidiano, etc.] (HERNANDES; MARTIN, 2013
[Vol 2 – Apêndice: “Manual do Professor”], p. 85).

No capítulo 17, a produção poética em países africanos é também descrita como


sendo atrelada a “temas e formas bastante diversificados”, sendo que sua produção mais
significativa “expressa uma profunda consciência histórica” (HERNANDES; MARTIN, 2013
[Vol 3], p. 355). De Angola, LP07 disponibiliza poemas de Arlindo Barbeitos e João Tala
(ibid., p. 357); acerca de Moçambique, chama-se a atenção para as relações entre poesia e
artes plásticas e, para tanto, contrapõe-se um poema de José Craveirinha a uma tela de
Malangatana145 (p. 358); e, finalmente, a poesia cabo-verdiana é pensada principalmente à luz
de seu patrimônio musical, sobre o qual há um excerto temático e um Box de apresentação da
cantora Cesária Évora (p. 359). Tal como no estudo da prosa, esses fragmentos não são
acrescidos de exercícios; as análises textuais do capítulo recuperam outros escritores, como
Corsino Fortes (Cabo Verde) e Eduardo White (Moçambique). Em suma, mais que articular
as literaturas africanas ao cânone, LP07 traça um produtivo panorama de suas especificidades.
A respeito da literatura afro-brasileira, por sua vez, a recuperação do Teatro Negro (a
exemplo da recuperação dos Cadernos Negros no estudo do Romantismo) surge como ponte
forte de LP07, uma vez que corresponde à abordagem de outro conteúdo explicitamente
lembrado pelos documentos regulatórios da lei 10.639/03, como mostramos em seções
anteriores deste trabalho. Enquanto o capítulo “O universo do teatro” (Volume 1) cita, entre
outras iniciativas, o Teatro Experimental do Negro (TEN), dirigido por Abdias do Nascimento
na cidade do Rio de Janeiro, como “uma iniciativa importante no cenário cultural brasileiro”
da década de 1940 (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 1], p. 184), o capítulo “Teatro
brasileiro nos séculos XX e XXI” (Volume 3) detalha um pouco mais seus significativos
sociopolíticos, além de trazer lado a lado (por meio de Boxes contendo fotografia e
minibiografia) Abdias do Nascimento e Solano Trindade:

Em 1944, surgiu no Rio de Janeiro o Teatro Experimental do Negro (TEN),


criado por Abdias do Nascimento e Solano Trindade.

145
Tela “Vivências” (1987). Disponível em: <https://programadefestas.wordpress.com/2008/05/21/malangatana-
vivencias-galeria-valbom/>. Acesso em 19/02/2019.
291

[...]
De caráter militante, o grupo tinha por objetivo inserir atrizes, atores,
diretores e autores negros nas artes cênicas brasileira,s visando reabilitar a
herança cultural, a identidade e a valorização social do afrodescendente,
Participaram do TEN atores como Grande Otelo, Ruth de Souza e Lea
Garcia.
O TEN patrocinou a Convenção Nacional do Negro, a qual propôs à
Assembleia Nacional Constituinte de 1946 a inclusão de políticas públicas
para a população afrodescendente. Além disso, foi um polo de cultura
bastante importante, e também responsável pela publicação de um jornal
intitulado Quilombo, de caráter antirracista, que focalizou o panorama
político e cultural brasileiro da época. (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol
3], p. 302).

Embora não sejam apresentados fragmentos de peças teatrais do grupo, o registro de


sua existência na história do teatro brasileiro já diferencia LP07 das demais coleções do nosso
corpus, as quais não fazem referência a esse movimento. Além disso, com base em um olhar
global ao repertório da obra, verifica-se que autores negros fazem-se presentes para além das
seções do Romantismo (Volume 2), por nós já estudadas. No Volume 1 (Capítulo 9), por
exemplo, ao se reportar a estratégias intertextuais, como a paródia, a coleção sugere a
comparação dos poemas “Irene do céu”, de Manual Bandeira, e “O que não dizia o poeminha
do Manuel”, do poeta negro Márcio Barbosa (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 1], p.
134), acabando por tocar, uma vez mais, no tema do preconceito racial :

2. Leis os dois poemas que se seguem, comparare-os e responda às questões


propostas. (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 1], p. 135). [Resposta:
Chame a atenção dos alunos para o fato de que o texto 2 questiona a visão
que o texto 1 apresenta sobre o negro, sempre obediente e servil ao branco.
Nesse sentido, o autor, Márcio Barbosa, introduz explicitamente o tema do
preconceito e propõe uma maneira combativa de agir diante desse
problema: os negros devem ser sujeitos (agentes) e não se submeter a
nenhuma forma de preconceito.] (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 1 –
Apêndice: “Manual do Professor”], p. 52).
[...]
b) O poema de Márcio Barbosa, poeta negro engajado na luta pela igualdade
das relações étnico-raciais, retoma a mesma situação apresentada pelo
poema de Bandeira, mas introduz uma mudança em relação à atitude de São
Pedro. Que mudança é essa? (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 1], p.
135). [Resposta: No poema de Márcio Barbosa, em vez de autorizar a
entrada de Ireneu no céu, São Pedro, com rispidez, ordena que ela utilize a
entrada de serviço.] (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 1 – Apêndice:
“Manual do Professor”], p. 52).
[...]
d) Em sua opinião, qual foi a intencionalidade do autor do texto 2 ao
parodiar o texto de Bandeira? (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 1], p.
292

135). [Resposta: Espera-se que os alunos percebam, no texto de Márcio


Barbosa, uma crítica bem-humorada ao racismo, bem como a sugestão do
enfrentamento desse preconceito, já que Irene, no poema, age de maneira
desafiadora, afirmando sua identidade negra.] (HERNANDES; MARTIN,
2013 [Vol 1 – Apêndice: “Manual do Professor”], p. 52).

Finalmente, como última crítica positiva ao papel desempenhado pela subseção fixa
“Ampliação”, encontramos no encerramento do supracitado “A literatura brasileira e a
formação das literaturas de língua portuguesa” (Capítulo 10, Volume 3) quatro poemas de
escritores negros  a saber, Solano Trindade, Oswaldo Camargo, Márcio Barbosa e Míriam
Alves  e três letras de canção que tematizam, em alguma medida, a africanidade e a
negritude (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 1], pp. 240-244). Intitulada “Representações
do negro na poesia e na música brasileira”, a proposta de leitura, interpretação e recitação
alerta e questiona os alunos sobre a representação artística da identidade e da realidade dos
negros e de seus descendentes (ibid., p. 244)146.
Visando compor um quadro amplo sobre LP07, cabe frisar que todos os volumes
trazem, no Manual do Professor, referências bibliográficas complementares tanto de viés
teórico quanto de obras literárias, concernentes, em especial, ao sistema literário africano, e
que, em linhas gerais, o material destaca-se por trazer nomes das literaturas africanas que
extrapolam o lugar comum, isto é, a coleção não permanece restrita a autores
internacionalmente aclamados, como Mia Couto ou Pepetela, mas, ao contrário, insere em seu
repertório escritores menos divulgados no Brasil, como Corsino Fontes e João Tala.

Reestruturando o cânone II: literaturas indígenas em LP07

Vimos que P07 promove uma releitura crítica das representações dos indígenas na
literatura (Quinhentismo e Romantismo) e da condição experimentada por esses povos na
atualidade, bem como insere textos de Daniel Munduruku na unidade reservada ao
Romantismo. É certo, porém, que o atendimento aos conteúdos da lei 11.645/08 dá-se com
menor frequência e profundidade se comparado à forma como a lei 10.639/03 é rememorada
pelo material. Contudo, para além das ocorrências já discutidas, podemos destacar uma

146
Como já afirmando, não inserimos em nosso enfoque analítico o estudo do modo pelo qual as coleções
abordam autores canônicos, contudo, é interessante observar que LP07 não ignora a questão racial ao introduzir
autores como Machado de Assis (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 2], p. 244) e Cruz e Sousa
(HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 2], p. 330). Sobre o primeiro, há, inclusive, um grande Box intitulado
“Machado de Assis afrodescendente” (ibid., p. 248), recorte inexistente nas outras coleções do nosso corpus de
pesquisa.
293

atividade do Quinhentismo que optamos por abordar nesta subseção e a presença de


conteúdos afins no eixo de conhecimentos linguísticos e de produção escrita.
Nas atividades de leitura do Quinhentismo (capítulo 18), propõe-se que os alunos
leiam “como os kuikuro, povo indígena do Mato Grosso, narram a chegada dos brancos a sua
terra”147, a fim de que se explique como, na visão dos kuikuro, “se deu chegada dos
bandeirantes no interior do Brasil” (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 1], p. 293). E como
expectativa de resposta, tem-se:

É importante que os alunos analisem o fato considerando o ponto de vista


dos indígenas, muitas vezes distinto daquele a que estão habituados. Sabe-se
que muitas populações indígenas foram dizimadas, a fim de que a terra que
habitavam fosse ocupada. Explique aos alunos que a terra é muito
importante para as populações indígenas porque seu modo de vida requer a
preservação ambiental e também porque, para eles, a terra dos ancestrais tem
um significado e uma importância singular. Perder as terras é como perder o
sentido da vida para seu povo. Para informações sobre a escravização dos
indígenas pelos bandeirantes confira: MONTEIRO, John Manuel. Negros da
terra: índia e bandeirantes nas origens de São Paulo. Companhia das Letras,
1994. (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 1 – Apêndice: “Manual do
Professor”], p. 89).

A despeito de o excerto não corresponder a um texto escrito e assinado por


indígenas, mas ao levantamento de narrativas orais realizado por etnógrafos e antropólogos,
entendemos, assim como o fizemos em relação a uma ocorrência afim em NP02, que ele se
mostra bastante adequado e produtivo ao trabalho com a lei 11.645/08, pois proporciona,
igualmente, o contato com a visão e a perspectiva indígena a respeito de narrativas históricas
até então eurocentradas. Ademais, como já dissemos, a materialidade e a autoria literária no
contexto indígena devem ser pensadas de forma complexa, pois raras vezes são registradas
por escrito ou anunciam um autor em particular. Ao encontro, portanto, da valorização do
falar do indígena em detrimento do tradicional falar sobre, admitimos tal texto pertinente ao
atendimento da lei.
E, ao encontro de outras coleções do PNLD 2015, LP07 não restringe os conteúdos
das leis 10.639/03 e 11.645/08 ao eixo literário, mas os insere, por vezes, no eixo de
conhecimentos linguísticos e de escrita. No que tange à lei de 2008, servem de exemplos a

147
Excerto disponível em (p. 344): <http://etnolinguistica.wdfiles.com/local--files/hist%3Ap339-356/p339-
356_Franchetto_O_aparecimento_dos_caraiba.pdf>. Acesso em: 21/02/2019.
O livro “CUNHA, Manuela Carneiro da (Org.). 1992. História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das
Letras, Secretaria Municipal de Cultura, FAPESP”, do qual daz parte tal capítulo, encontra-se disponível
integralmente em: <http://www.etnolinguistica.org/historia>. Acesso em: 21/02/2019.
294

presença de uma entrevista com Daniel Munduruku na coletânea que direciona a produção do
gênero “debate” (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 2], p. 164)  na entrevista
Munduruku discorre sobre “a influência da TV no universo indígena”, haja vista o tema do
debate a ser desenvolvido pelos alunos: “Televisão: é possível conciliar educação e
entretenimento?” ; e a análise de notícias sobre a questão indígena no capítulo dedicado ao
gênero “notícia” (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 2], p. 288). Também a lei de 2003
inspira atividades de mesmo teor, tais como: uso de anúncios e de propagandas angolanas
como texto-fonte para o estudo da variação linguística (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol
1], p. 298) e para o estudo da utilização de pronomes (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol
2], p. 276); análise do cartaz do “Seminário de Patrimônio Imaterial e Cultura Afro-brasileira”
no capítulo reservado ao gênero “seminário” (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 3], p. 91).
Destaca-se como uma atividade particularmente interessante do eixo de gramática de
LP07, e, neste caso, inexistente em outros livros do PNLD 2015, a proposta de análise da capa
de uma cartilha elaborada para o ensino de língua indígena macuxi, falada pelos índios
macuxi, de Roraima (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 1], p. 45), voltada à discussão das
diferenças entre “culturas escritas e culturas orais” (ibid., p. 44). A partir dela, os alunos são
convidados a apontar semelhanças e diferenças estabelecidas entre as “duas imagens que
representam situações de transmissão de conhecimento” que ilustram a capa (ibid., p. 45),
uma representando o ensino oral tradicional (em frente a uma fogueira) e a outra o ensino
escolar convencional (em frente a uma lousa).

(HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 1], p. 45).


295

Outro aspecto interessante está no fato de tal exercício ser antecedido pela análise de
uma afirmação de Tierno Bokar, que viveu no Mali, sobre a relação entre o saber e a escrita.
No breve excerto, Bokar faz menção ao baobá, tida como a “árvore da palavra” no continente
africano (HERNANDES; MARTIN, 2013 [Vol 1], p. 45). Pensando os fins das leis de 2003 e
2008, parece-nos bastante pertinente abordar, conjuntamente, a questão das culturas orais no
contexto africano e no contexto indígena.
Com base nessas ocorrências, concluímos que a coleção traz atividades diversas e
inovadoras no que concerne ao cumprimento da lei 11.645/08.

A título de retomada e de síntese: LP07 e o repertório das leis 10.639/03 e 11.645/08


(produções de autoria indígena, negra/afrodescendente e/ou africana para além do
cânone escolar)

LP07 REPERTÓRIO LOCALIZAÇÃO


Imagens das obras Talheres e Manto da apresentação, de
Arthur Bispo do Rosário. Unidade 1, Capítulo 1 – “Em
Imagem da fotografia Iluminando Vidas, de Ricardo busca de um conceito de arte”.
Rangel (Moçambique).
Poema “Reza, Maria”, de José Craveirinha
Unidade 1, Capítulo 2 –
(Moçambique).
“Literatura e Sociedade”.
Poema “O céu é mesmo um buraco”, de Solano Trindade.
Poema “Testamento”, de Alda Lara (Angola). Unidade 2, Capítulo 6 – “O
Letra da canção “Brasil com p”, de Racionais MC’s. texto poético”.
Unidade 2, Capítulo 7 –
Crônica “Excrescências desinventosas”, de Mia Couto
“Dimensões sonoras da língua
(Moçambique).
e convenções da escrita”.
Poema “O que não dizia o poeminha do Manuel”, de
Unidade 3, Capítulo 9 –
Márcio Barbosa.
“Literatura em processo”.
Poema “Tem gente com fome”, de Solano Trindade.
Unidade 3, Capítulo 11 –
Conto “Mestre Tamoda”, de Uanhenga Xitu (Angola).
“Variação linguística”.
Unidade 4, Capítulo 15 –
Poema “Receita para fazer um herói”, de Reinaldo
VOLUME 1 “Linguagem figurada e figuras
Ferreira (Moçambicano).
de linguagem”.
Letra da canção “Dança do Quilombo dos Palmares”,
atribuída a membros do Quilombo dos Palmares (1680
ou 1690).
Unidade 6, Capítulo 21 –
Ladainha de capoeira sem título (“Eu naveguei...”), de
“Barroco”.
Eziquiel Martins Marinho ou Mestre Eziquiel.
Texto de opinião “O sertão brasileiro na savana
moçambicana”, de Mia Couto (Moçambique).
Trecho da palestra “Eu e o Outro”, de Manuel Rui
(Angola).
Poema “País”, de Mia Couto (Moçambique).
Unidade 5, Capítulo 17 – “O
Poema “Prelúdio”, de Jorge Barbosa (Cabo Verde).
projeto colonial português”.
Poema “Epigrama”, de Marcelo da Veiga (São Tomé e
Príncipe).
Poema “Mar”, de Mário António (Angola).
296

Mito do povo indígena kuikuro (Mato Grosso) sobre a Unidade 5, Capítulo 18 –


chegada dos brancos (retirado de FRANCHETTO, 1992). “Quinhentismo”.
Unidade 5, Capítulo 19 –
Trecho da palestra proferida em 2005 na UERJ, de Mia
“Origem e desenvolvimento da
VOLUME 1 Couto (Moçambique).
língua portuguesa”.
Unidade 5, Capítulo 17 –
“Origem e desenvolvimento da
Poema “Meu canto Europa”, de Tomás Medeiros (São
língua portuguesa”. * Excerto
Tomé e Príncipe). *
disponível apenas no Manual
do Professor.
Unidade 1, Capítulo 1 –
Romance Yaka, de Pepetela (Angola).
“Romantismo”.
Poema “À minha terra”, de José da Silva Maia Ferreira
(Angola).
Poema “Realidade, sonho horrível”, de Eugênio Tavares
(Cabo Verde).
Poema “Namoro”, de Viriato da Cruz (Angola). Unidade 2, Capítulo 5 –
Letra de rap “O navio negreiro”, de Slim Rimografia. “Romantismo brasileiro:
Poema “Quem sou eu”, de Luiz Gama. poesia”.
Poema “Saudades do escravo”, de Luiz Gama.
Poema “Vozes-Mulheres”, de Conceição Evaristo.
VOLUME 2 Poema “Quebranto”, de Cuti.
Poema “Sou negro”, de Solano Trindade.
Prefácio “Breves palavras”, de Daniel Munduruku. Unidade 2, Capítulo 6 –
Conto “Só o amor é tão forte”, de Daniel Munduruku. “Romantismo brasileiro:
Poema “Melancolia”, de Auta de Sousa. prosa”.
Unidade 2, Capítulo 8 –
Entrevista com Daniel Munduruku.
“Debate”.
Unidade 3, Capítulo 10 –
Poema “1ª ode ao inverno”, de José Craveirinha.
“Realismo em Portugal”.
Unidade 4, Capítulo 13 –
Romance Kufemba (1973), de João Salva-Rey
“Realismo e Naturalismo no
(Moçambique).
Brasil”.
Unidade 1, Capítulo 2 –
Poema “Carta de um contratado”, de António Jacinto
“Vanguardas europeias e
(angola).
Modernismo português”.
Unidade 2, Capítulo 5 – “A
Poema “Portugal colonial”, de David Mestre (Angola). semana de 1922 e a primeira
geração modernista”.
Poema “Poema para Carlos Drummond de Andrade”, de
VOLUME 3 João Maimona (Angola). Unidade 2, Capítulo 6 –
Poema “Outra negra Fulô”, de Oliveira Silveira. “Segunda geração modernista:
“Ode a Cecília Meireiles”, de Virgílio de Lemos a poesia de 1930”.
(Moçambique).
Texto de opinião “Uma palavra de conselho e um Unidade 2, Capítulo 8 –
conselho sem palavras”, de Mia Couto (Moçambique). “Conto”.
Poema “Poema a Jorge Amado”, de Noémia de Sousa
(Moçambique).
Comentário de Baltazar Lopes (Cabo Verde) sobre as
Unidade 3, Capítulo 9 –
relações literárias entre Cabo Verde e Brasil.
“Segunda geração modernista:
Romance Os flagelados do vento leste, de Manuel Lopes
romance social de 1930”.
(Cabo Verde).
Poema “Flagelados do Vento-Leste” (1974), de Ovídio
Martins.
Depoimento de Costa Andrade (Angola). Unidade 3, Capítulo 10 – “A
Depoimento de José Craveirinha (Moçambique). literatura brasileira e a
297

Poema “Adeus à hora largada”, de Agostinho Neto


(Angola).
Carta escrita por Fernando Reis (São Tomé e Príncipe).
Poema “Exortação”, de Maurício Gomes (Angola).
Poema “Língua-mãe”, de Henrique Guerra (Angola).
Poema “Você, Brasil”, de Jorge Barbosa (Cabo Verde).
Poema “Karingana ua karingana”, de José Craveirinha formação das literaturas
(Moçambique). africanas de língua
Poema “Antievasão”, de Ovídio Martins (Cabo Verde). portuguesa”.
Poema “Muleque”, de Solano Trindade.
Poema “Vozes-mulheres”, de Míriam Alves (trata-se de
um poema de Conceição Evaristo, mas que é atribuído à
Miriam Alves neste capítulo de LP07).
Poema “Rumo”, de Oswaldo de Camargo.
Poema “Sou do gueto”, de Márcio Barbosa.
Poema “Para vivenciar nadas”, de Ondjaki (Angola).
Depoimento de Luandino Vieira (Angola) sobre
Guimarães Rosa.
Unidade 4, Capítulo 13 –
Conto “Estória da galinha e do ovo”, de Luandino Vieira
“Prosa e poesia do pós-guerra”.
(Angola).
Depoimento de Mia Couto (Moçambique) sobre
VOLUME 3
Guimarães Rosa.
Romance Cidade de Deus, de Paulo Lins.
Romance O quase fim do mundo, de Pepetela (Angola).
Romance Niketche: uma história de poligamia, de Unidade 5, Capítulo16 –
Paulina Chziane (Moçambique). “Caminhos da ficção
Romance O testamento do Sr. Napumoceno da Silva contemporânea em língua
Araújo (1989), de Germano Almeida (Cabo Verde). portuguesa”.
Conto “O assalto”, de José Eduardo Agualusa (Angola).
Romance Cidade de Deus, de Paulo Lins.
Poema “Danação”, de Allan da rosa.
Poema sem título (“de amarelo/ se pintam...”), Arlindo
Barbeitos (Angola).
Poema “Obituário”, de João Tala (Angola).
Poema “Síntese”, de José Craveirinha (Moçambique). Unidade 5, Capítulo17 –
Tela Vivências (1987), de Malangatana Valente “Caminhos da poesia
Ngwenya (Moçambique). contemporânea em língua
Poema “Em que língua escrever”, de Odete Semedo portuguesa”.
(Guiné Bissau).
Poema “Porta de sol”, de Corsino Fortes (Cabo Verde).
Poema sem título (“Teu corpo é o país dos sabores...”),
de Eduardo White (Moçambique).
Tabela 11. Relação de textos e autores abordados em LP07.
298

4.1.8. Viva Português (Ática) – 8ª coleção do PNLD 2015 em número de


distribuições

CAMPOS, Elizabeth; CARDOSO, Paula Marques; ANDRADE, Silvia Letícia de. Viva
Português (Livro do Professor), 2ª ed., Volumes 1, 2 e 3, São Paulo: Editora Ática, 2014.

SIGLA: VP08

De acordo com a resenha do PNLD 2015, VP08 destaca-se pelo fato de fazer
presente o ensino de leitura em toda a coleção, e tem como ponto forte a “articulação entre
todos os eixos e investimento na observação, análise e reflexão sobre fatos linguísticos e
literários” (BRASIL-MEC/SEB, 2014b, p. 79). Acerca de seu ponto fraco, concordamos com
a apreciação feita pelo Guia no sentido em que também identificamos na obra certa
“simplificação e esquematização de informações, principalmente na apresentação de autores
de cada escola literária” (ibidem), o que nos faz associar essa característica de VP08 à baixa
ocorrência de propostas ou de repertórios inovadores para o ensino de literatura. A resenha
assinala ainda que o livro “dá prioridade à experiência de leitura do texto literário” (ibid., 79),
apontamento sobre o qual registramos uma ressalva: embora, em linhas gerais, as experiências
de leitura sejam de fato consideradas, essa “prioridade” não foi por nós observada no trabalho
desenvolvido com as literaturas africanas, como expomos na subseção correspondente.
Discrepância similar nota-se em relação à possibilidade de leitura comparada entre as
produções brasileiras e africanas; se, de um lado, o Guia acerta ao apontar que se colocam em
diálogo “textos contemporâneos e textos de outros momentos históricos” (ibid., p. 80), de
outro, não se verifica a mesma estratégia de análise textual envolvendo a pluralidade
sociocultural, isto é, os sistemáticos literários do Brasil e dos países africanos de língua
portuguesa não são comparados, a despeito de a intertextualidade ser frequentemente
explorada por VP08.
Estruturalmente, trata-se de um livro didático dividido por Unidades Temáticas, cada
qual subdivida pelos eixos “língua e produção de texto” (orientado pelos gêneros textuais) e
“literatura”, assim denominados/definidos pelo material. Não há, portanto, uma desproporção
entre o número de capítulos dedicados a um ou a outro eixo; as unidades seguem o mesmo
formato, ainda que possa haver variação quanto ao número de páginas reservados a cada eixo
de ensino-aprendizagem, a depender da unidade temática  apenas o Modernismo conta com
mais de um capítulo em uma única unidade (Unidade 2, Volume 3). A título de ilustração,
299

detalhamos a organização de duas unidades: (i) “Unidade 1 – Trovas e Trovadores”, Eixo 1:


“Língua e produção de texto – A literatura de cordel”, Eixo 2: “Literatura - Trovadorismo”
(Volume 1); (ii) “Unidade 6 – Investigar e documentar um tema”, Eixo 1: “Língua e produção
de texto – A reportagem”, Eixo 2: “Literatura – Pré-Modernismo” (Volume 2).
São três as autoras da coleção, todas com experiência na rede de ensino municipal ou
estadual de São Paulo: Elizabeth Marques Campos, Licenciada em Pedagogia e Graduada em
Letras pela Faculdade de Filosofia Nossa Senhora Medianeira (SP); Paula Marques Cardoso,
graduada em Letras pela Universidade Mackenzie (SP) e mestra em Língua Portuguesa pela
PUC-SP; e Silvia Letícia de Andrade, Licenciada em Língua Portuguesa e Graduada em
Letras pela USP.

MACROESTRUTURA DA COLEÇÃO VP08

O Manual do Professor do VP08 é composto por respostas justapostas às atividades e


por um apêndice com orientações gerais e indicações complementares. Não há no conteúdo
geral e fixo do Manual nenhuma menção às leis 10.639/03 e 11.645/08 nem considerações
sobre o lugar da diversidade cultural dentro da coleção. O anúncio de objetivos técnicos no
início da carta que abre o apêndice explicita, pois, a dimensão do enfoque didático-
pedagógico de VP08: “colaborar com a formação de um aluno leitor, produtor de texto e
conhecedor de muitos mecanismos implicados na comunicação mais eficiente” (CAMPOS;
CARDOSO; ANDRADE, 2014 [Vol 1 – Apêndice: “Manual do Professor”], p. 339). Ao
encontro da resenha do PNLD 2015, bem como daquilo que observamos durante a nossa
análise, as autoras admitem desenvolver “um trabalho bastante sistemático de leitura de textos
literários” (ibidem). Por si só essa escolha não nos permite chegar a grandes conclusões, mas
ela dialoga com a organização mais clássica (em termos de repertório e de exercícios) que se
nota no LD. Ao menos no que tange ao eixo de literatura, não se verificam significativas
tentativas de revisar ou de desestabilizar o cânone escolar, por exemplo. Não por acaso, o
único critério de seleção de textos que encontramos no Manual do Professor se refere a uma
escolha feita “de acordo com a época de sua primeira edição e com sua participação em uma
escola literária específica” (CAMPOS; CARDOSO; ANDRADE, 2014 [Vol 1 – Apêndice:
“Manual do Professor”], p. 344).
Com base nesses apontamentos, já é possível depreender, a exemplo do que expomos
adiante por meio da nossa análise, que o Caderno do Aluno de VP08 não se configura um
300

livro didático significativamente crítico-reflexivo frente a questões de diversidade. Contudo,


chama-nos a atenção o papel desempenhado pelos “quadros de interdisciplinaridade”,
registrados na “parte específica” do Manual do Professor, os quais, mais de uma vez,
mostram-se responsáveis por consolidar propostas de trabalho que articulem, com mais
afinco, literatura e sociedade. Além disso, embora predominem na coleção objetivos de viés
técnico, a seção fixa “E por falar em...”, que propõe a “ampliação de um dos temas abordados
no capítulo”, alinha-se, em mais de uma ocasião, a objetivos voltadas a atitudes, como
ilustram os exemplos que destacamos em nossas subseções analíticas. Segundo consta no
Manual de VP08, “é por meio dessas atividades [da seção “E por falar em...”] que os alunos
têm a possibilidade de simular num contexto de sala de aula algumas das situações cotidianas
que exigirão reflexão sobre o papel do ser humano na sociedade. [...] o cidadão precisa agir de
forma responsável, e deve ser papel da escola favorecer esse tipo de ação” (CAMPOS;
CARDOSO; ANDRADE, 2014 [Vol 1 – Apêndice: “Manual do Professor”], p. 346). Em
síntese, é possível identificar vestígios de uma perspectiva de educação em consonância com
uma formação para a cidadania, ainda que esta não esteja necessariamente vinculada aos
pressupostos das leis 10.639/03 e 11.645/08.
Acerca de sua localização e distribuição de conteúdos, admitimos, de forma inédita,
a presença de uma organização de viés tanto articulado quanto tangencial. É certo assinalar
que o texto de um autor africano é aproveitado na Unidade que trata do Romantismo, e que,
ao mesmo tempo, VP08 reserva, no último volume, um espaço exclusivo às literaturas
africanas. Porém, ao invés de optar pela seleção de um repertório substancial e por uma
abordagem aprofundada desse recorte, a coleção encerra-se com a exposição superficial de
apenas dois fragmentos literários de matriz africana.

MICROESTRUTURA DA COLEÇÃO VP08

Revisitando o cânone: Quinhentismo e Romantismo (Indianismo e Condoreirismo) em


VP08

O Quinhentismo situa-se na unidade “Histórias de quem viaja” (Unidade 4, Volume


1), que é introduzida pelo estudo do gênero “relato de viagem”. Desse modo, no caso de haver
um uso linear do livro didático, espera-se que o aluno inicie a leitura das narrativas do
Descobrimento após obter algum conhecimento sobre as características desse tipo de texto.
301

Intitulada “Literatura – Primeiras manifestações literárias no Brasil”, a seção é aberta


com a análise de uma charge de Fernando Gonsales, a partir da qual se solicitam aos alunos
inferências a respeito do período histórico rememorado pelo artista. Em síntese, observam-se
atividades que ressaltam, sobretudo, a ideia de “procrastinação” e de “fisiologismo” encenada
pela personagem principal. Optamos por dar destaque ao último exercício, pelo fato de este
buscar relacionar a charge e um fragmento de Casa-grande & senzala (1933), de Gilberto
Freyre:

1. A história em quadrinhos a seguir faz referência a um importante


momento da história do Brasil.

GONSALES, Fernando. Aventuras na História. São Paulo: Abril, maio 2006. (CAMPOS;
CARDOSO; ANDRADE, 2014 [Vol 1], p. 205).
302

[...]
5. Leia o trecho a seguir, retirado do livro Casa-grande & senzala, do
sociólogo brasileiro Gilberto Freyre (19000-1987).
O ambiente em que começou a vida brasileira foi de grande intoxicação
sexual. O europeu saltava em terra escorregando em índia nua. Os próprios padres
da Companhia precisavam descer com cuidado, se não atolavam o pé em carne.
(FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala. Disponível em:
<www.tvcultura.com.br/aloescola/estudosbrasileiros/casagrande/index.htm>. Acesso em: 16 out. 2012).

a) Autor de Casa-grande & senzala, um livro atualmente controvertido,


embora de relevância fundamental nos estudos sobre a formação da nação
brasileira, Gilberto Freyre expõe no trecho lido uma visão semelhante à
destacada em determinados momentos da história em quadrinhos. Em que
quadrinho ou sequência de quadrinhos essa relação é percebida? [Resposta:
No terceiro e quarto quadrinhos].
b) Considerando que a história em quadrinhos usa o humor como uma crítica
a ideias e modo de agir ainda atuais no Brasil, é possível afirmar que a
referência à nudez na HQ é uma forma de deixar evidente algumas visões
preconceituosas presentes na sociedade? Explique sua resposta. [Sugestão:
Por um lado, é possível que o quadrinho esteja criticando somente o
posicionamento do explorador português em relação à mulher indígena e à
própria exploração a que ele submeteu os nativos. Porém também é possível
que a HQ esteja evidenciando um preconceito atual dos brasileiros, que
ainda relacionam a nudez da mulher indígena a um comportamento
puramente sexual, em vez de considerar a cultura e os hábitos desses
povos]. (CAMPOS; CARDOSO; ANDRADE, 2014 [Vol 1], p. 206).

Em linhas gerais, vemos nesses exercícios introdutórios o objetivo de aproximar os


alunos da temática do Descobrimento, de forma mais ampla, diferentemente do que
verificamos em outras coleções, como PL01 e PLC05, em que as tirinhas comparecem no
capítulo do Quinhentismo para dar início ou continuidade a uma leitura crítica dos efeitos
históricos da colonização. No caso de VP08, percebe-se que a atividade supracitada serve,
pois, de gancho à leitura das cartas de Caminha. Para além das solicitações analíticas mais
comuns a esse repertório (em torno da finalidade da Carta de Caminha, dos recursos
linguísticos empregados, da interpretação de passagens específicas etc.), encontramos três
perguntas que conduzem os alunos a refletir, em certa medida, sobre a visão eurocêntrica que
funda essas narrativas:

[Sobre a Carta de Caminha]


4. Você acha provável que os habitantes da nova terra também tenham
estranhado o comportamento dos portugueses? Explique sua resposta.
[Resposta: Prof., converse com os alunos sobre essa questão: certamente os
navegantes portugueses também causaram espanto, com suas roupas
pesadas, sua alimentação, suas regras de comportamento, sua religião, seus
hábitos de higiene (bastante precários em relação aos banhos diários que os
303

indígenas tomavam nos rios)]. (CAMPOS; CARDOSO; ANDRADE, 2014


[Vol 1], p. 210).

7. Observe esta pintura de Portinari [Descobrimento], de 1956148, que


também representa o momento da chegada dos portugueses narrado por Pero
Vaz de Caminha em sua carta.
[...]
c) É o mesmo ponto de vista da carta de Caminha? Explique sua resposta.
[Resposta: Não, é o ponto de vista oposto ao da carta. Na pintura, as
embarcações portuguesas são os elementos estranhos, desconhecidos, que
se aproximam]. (ibid., p. 211).

[Sobre “Carta ao Padre Geral”, de José de Anchieta]


5. Quais devem ser os cuidados ao interpretar esses relatos de época?
Converse com seus colegas sobre esse assunto. [Resposta: Prof., os alunos
devem compreender que esses textos apresentam uma visão de mundo
particular, em que cada um de seus autores mostram sua concepção do
mundo considerando os valores das instituições das quais fazem parte e o
momento histórico vivido] (ibid., p. 218).

Com exceção desses excertos, não localizamos na coleção uma presença significativa
nem de enquadradores discursivos nem de solicitações analíticas que possam indicar
movimentos de releitura crítica ou estratégias inovadoras na abordagem dos textos
quinhentistas. Há no livro afirmações como “esta é, certamente, uma visão eurocêntrica do
mundo” ou “para nós, brasileiros, a produção de Caminha representa uma autêntica certidão
de nascimento” (CAMPOS; CARDOSO; ANDRADE, 2014 [Vol 1], p. 214), as quais não são
acompanhadas, porém, de reflexões mais aprofundadas sobre, por exemplo, os sentidos do
eurocentrismo, a violência física e simbólica sofrida pelos indígenas e/ou as nuances do
caráter ideológico desses escritos (como a justificação da dominação). Também nas
“atividades complementares” elencadas aos docentes, a coleção recorre à abordagem clássica
do Quinhentismo, haja vista o fato de VP08 disponibilizar como “atividade extra” a análise
textual de um fragmento dos relatos de viagem de Hans Staden (CAMPOS; CARDOSO;
ANDRADE, 2014 [Vol 1 – Apêndice: “Manual do Professor”], pp. 385-386).
Se, de um lado, o capítulo parece atender apenas parcialmente ao seu objetivo
específico de levar o aluno a compreender  com o auxílio das disciplinas de História,
Geografia e Sociologia , que esses “relatos são marcados pela visão pessoal do relator; tal
visão está impregnada pela cultura de uma época, por um lado, e pelas experiências pessoais,
por outro, as quais podem impedir a identificação da pluralidade possível de interpretações de
148
A imagem pode ser facilmente encontrada por meio de sites de busca na internet.
304

um mesmo evento” (ibid., p. 377), de outro, chama-nos a atenção a proposta de debate que
encerra a unidade, esta sim bastante alinhada ao referido objetivo e a um olhar mais crítico ao
colonialismo (ainda que, cabe enfatizar, faltem orientações mais detalhadas no Manual do
Professor):

E por falar em viagens…


Quando viajamos, é inevitável conhecer outras culturas, grupos vivendo de
formas diferentes da nossa, com crenças e hábitos diversos. Imagine, então,
a surpresa do povo português ao entrar em contato com os nativos do Novo
Mundo, grupo de cultura tão distinta. A surpresa foi tanta que quase todas as
produções da época retratam esse olhar do outro - indígena - pelo olhar de si
- europeu. Ou seja, para falar dos grupos indígenas, os autores tinham como
referência seus próprios hábitos.
A cultura européia da época retratava os valores mercantilistas e era muito
diferente da indígena. O europeu não estava aqui para passear e conhecer
uma nova cultura, mas sobretudo para lucrar - base do mercantilismo - e
catequizar. A estada do português e o seu contato com os indígenas levaram
a cultura do nativo a se modificar completamente.
Os indígenas tiveram de lutar para manter suas crenças e costumes, os quais
se misturaram à cultura imposta pelo europeu. Embora nenhuma cultura seja
estática, imutável, permanente, é necessário perceber a diferença entre
modificações internas e trocas culturais, de um lado, e a imposição pela
força de uma cultura sobre outra. Nos dias atuais, por causa do processo de
globalização, da força econômica, assistimos a povos que se despem de seus
valores, de suas crenças, opiniões e modo de vida para viver a cultura do
outro.
Vamos conversar um pouco sobre isso? (CAMPOS; CARDOSO;
ANDRADE, 2014 [Vol 1], p. 221).

O estudo do Romantismo (Unidade 1 – “A vida que se recria” e Unidade 2 – “Do


amor, da denúncia e do nacionalismo”, Volume 2) segue o mesmo padrão: é precedido pelo
trabalho com o gênero textual “romance”  para o qual é usado como texto introdutório um
fragmento de Mia Couto, conforme comentamos na subseção seguinte , e assinala
brevíssimas e pontuais reflexões críticas sobre seus temas principais, tudo isso sem propor
mudanças que revisem e/ou desestabilizem significativamente o cânone escolar, ou, ainda,
sem explorar a relação entre texto e contexto, motivo pelo qual prevalecem enquadradores
discursivos textuais. Acerca do Indianismo, no que tange, em específico, à prosa de José de
Alencar, faz-se superficial menção ao “indígena idealizado e que agia, muitas vezes, segundo
padrões europeus de comportamento” (CAMPOS; CARDOSO; ANDRADE, 2014 [Vol 2], p.
55), a qual não é articulada, no entanto, a atividades que atendam a tal premissa. Gonçalves
Dias, por sua vez, é lido somente sob o prisma dos aspectos mais gerais (principalmente de
305

viés linguístico e narrativo) que marcam a primeira fase romântica, assim como Castro Alves,
que parece servir apenas ao preenchimento do espaço reservado à terceira fase. Selecionamos
alguns exemplos para deixar mais claro o padrão das solicitações analíticas requeridas no
Caderno do Aluno:

[Sobre Iracema (1865), de José de Alencar]


4. Releia:
“Agora podia viver com Iracema, e colher em seus lábios o beijo, que ali
viçava entre sorrisos, como o fruto na corola da flor. Podia amá-la, e sugar
desse amor o mel e o perfume, sem deixar veneno no seio da virgem.”
Se o amor de Martim pela indígena era impossível, por que, nesse momento,
ele acredita poder “viver com Iracema, e colher em seus lábios o beijo”?.
[Resposta: Porque o efeito da jurema lhe dava a possibilidade de viver em
sonho algo que não poderia ser vivido na realidade]. (CAMPOS;
CARDOSO; ANDRADE, 2014 [Vol 2], p. 51).

Foram três as gerações da poesia romântica brasileira. Os poetas da primeira


cultivavam temas nacionalistas, seus poemas faziam referência a nossas
belezas naturais e ao indígena. Os da segunda viviam imersos no tédio; seus
poemas, plenos de sonhos inatingíveis e donzelas inalcançáveis, revelam
desesperança e pouco contato com a realidade. A terceira geração foi
marcada por um forte sentido social, e sua poesia era repleta de indignação.
2. Cada um dos três poetas que você acabou de conhecer representa uma das
gerações do Romantismo brasileiro. Considere as informações do parágrafo
anterior e indique no caderno qual deles representa a primeira geração, qual
representa a segunda e qual resume o espírito da terceira. Copie um ou dois
versos de cada poema da atividade 1 para justificar sua resposta. [Instruções:
Prof., se houver possibilidade, prepare a leitura oral dos textos 1 e 2.
Primeira geração: Gonçalves Dias (“Minha terra tem palmeiras, / onde
canta o sabiá”); segunda geração: Álvares de Azevedo (“Ah! vem, pálida
virgem, se tens pena / de quem morre por ti, e morre amando,”); terceira
geração: Castro Alves (“Tinir de ferros...estalar de açoite…”).] (ibid., p.
93).

[Sobre “Navio Negreiro” (1880), de Castro Alves]


1. O que é retratado nas cinco primeiras estrofes? [Resposta: O sofrimento
vivido pelos escravos africanos nos navios negreiros].
2. [...]
b) “Varrer” é tirar a sujeira com uma vassoura, limpar, remover algo de uma
superfície. Qual é a sujeira que o eu lírico pede ao tufão que limpe dos
mares? [Resposta: Os navios negreiros e, por extensão, a escravidão]. (ibid.,
p. 102).

Diferentemente, portanto, de outras coleções por nós analisadas, o Caderno do Aluno


de VP08 restringe-se consideravelmente à exploração de elementos intratextuais e das
306

características que legitimam cada fase do Romantismo. Não é feito, assim, nenhum gancho
com as literaturas afro-brasileira ou indígenas. A proposta de aproximação do Condoreirismo
à discussão/ à denúncia de problemas contemporâneos orienta-se, na coleção, pela sugestão de
debate/levantamento dos “problemas sociais brasileiros de nossa época” e das dificuldades
enfrentadas pelos jovens/juventude (CAMPOS; CARDOSO; ANDRADE, 2014 [Vol 2], p.
116), sem menção específica a um recorte racial ou étnico. Nesse sentido, o projeto de maior
diálogo com os pressupostos da lei 10.639/03 fica a cargo de uma atividade complementar e
interdisciplinar (com História e Sociologia) sobre as “rotas de navios negreiros”:

Breve apresentação de atividade


Interpretação de um fragmento do poema “Navio negreiro”, de Castro Alves.
Interação com outras disciplinas
A compreensão do fragmento destacado de “Navio negreiro” será
enriquecida pelo conhecimento dos alunos do sistema escravagista brasileiro
e da forma como se dava o tráfico de pessoas escravizadas. Saber quem foi
José Bonifácio de Andrada e quem foi Cristovão Colombo, bem como a
importância dessas personagens históricas, também é condição para a melhor
compreensão de um dos trechos do poema.
Proposta de atividade complementar
Se o professor dispuser de tempo, pode levar para a sala um mapa-múndi e
pedir aos alunos que pesquisem algumas das rotas de navios negreiros. Os
alunos também podem buscar dados sobre a escravidão no Brasil: quantas
pessoas, de diferentes etnias, foram trazidas das diversas partes da África?
Quantas provavelmente morreram durante a viagem e por quais razões?
Devem refletir, ainda, em que medida a escravidão deixou marcas cujos
efeitos até hoje são evidentes na estrutura social brasileira. (CAMPOS;
CARDOSO; ANDRADE, 2014 [Vol 2 – Apêndice: “Manual do Professor”],
p. 362).

A despeito da importância de se desenvolver tarefas como a supracitada, em que são


dados novos enfoques ao estudo da escravidão, VP08 nos faz recordar uma ressalva feita
durante a análise da coleção NP02: é preciso pensar em que medida a concentração de tarefas
atentas à diversidade cultural no Manual do Professor (em detrimento de sua presença no
Caderno do Aluno) favorece ou prejudica a efetivação desse tipo de proposta, haja vista sua
condição de “atividade extraclasse” ou de “atividade complementar” (vide nota de rodapé nº
90). A poesia de Gonçalves Dias funciona, igualmente, como ponto de partida para uma
atividade interdisciplinar (com Arte, História, Sociologia e Filosofia) de caráter
complementar, ou “extraclasse”, sobre a “investigação do tema exílio nas diferentes
disciplinas” (CAMPOS; CARDOSO; ANDRADE, 2014 [Vol 2 – Apêndice: “Manual do
307

Professor”], p. 363), sendo a Ditadura Militar um evento ressaltado como produtivo149. Em


síntese, esses exemplos demonstram que não se pode negar que VP08 atente-se, sobretudo em
suas propostas “complementares”, aos eventuais elos estabelecidos entre literatura e
sociedade (não apenas nas ocorrências por nós citadas, mas também em outras, relativas a
outros temas); todavia, ao contrário do que vimos em outros livros do nosso corpus, tais
abordagens não são reconhecidas como oportunidades de se enfatizar aspectos socioculturais
das comunidades negra e indígena, tal como postulado pelas leis 10.639/03 e 11.645/08.
Por fim, a exemplo do que identificamos no tratamento dado ao Quinhentismo,
observa-se novamente que a atividade de leitura “extra” disponível ao professor remete à obra
de um escritor romântico já trabalhado no Caderno do Aluno  fragmento de Senhora
(1875), de José de Alencar , não se configurando uma oportunidade de extrapolação do
cânone escolar (CAMPOS; CARDOSO; ANDRADE, 2014 [Vol 2 – Apêndice: “Manual do
Professor”], pp. 368-369)150. Assim, interpretamos que, comparativamente a outras coleções,
o Quinhentismo e o Romantismo são poucos explorados por VP08 no que concerne à
promoção de leituras de viés pós-colonial.

Reestruturando o cânone I: literaturas africanas e literatura negra/afro-brasileira em


VP08

De forma inédita, classificamos a localização e distribuição de conteúdos de uma


coleção como sendo, concomitantemente, articulada e tangencial. “Articulada”, pois
encontramos, de fato, um texto de Mia Couto em meio ao capítulo do Romantismo;
“Tangencial” porque, apesar dessa pontual presença da obra do escritor moçambicano, a
apresentação das literaturas africanas ao final da obra é composta apenas por dois fragmentos
literários, um de Mia Couto e outro do angolano José Luandino Vieira, e se dá de modo
bastante superficial.

149
Essas atividades integram, em VP08, os “quadros de interdisciplinariedade” ” (CAMPOS; CARDOSO;
ANDRADE, 2014 [Vol 2 – “Manual do Professor”], p. 358), que, apesar de não serem explicitamente
apresentados como “complementares”, se situam no Apêndice do Manual do Professor e demandam, na maioria
das propostas, a participação de professores de outras disciplinas, ou seja, requerem uma organização a nível de
execução de projeto e não de aula convencional. Não se trata, assim, de atividades imprescindíveis ao
cumprimento dos conteúdos presentes no Caderno do Aluno, mas “adicionais”, razão pela qual a destacamos
como sendo “extraclasse”, interpretando-as como opcionais.
150
Há, para o Romantismo, outras duas propostas de atividades complementares: uma relacionada à análise de
letras de “música sertaneja raiz” (no caso, de “Brasil poeira”, de Almir Sater e Renato Teixeira) e outra
envolvendo a produção de um podcast com base na discussão dos “problemas sociais brasileiros de nossa época”
(CAMPOS; CARDOSO; ANDRADE, 2014 [Vol 2 – “Manual do Professor”], pp. 370).
308

O excerto do romance Antes de nascer o mundo (2009), de Mia Couto, é o texto que
abre a discussão do romance enquanto gênero textual (Unidade 1 – “A vida que se recria”,
subseção “Língua e produção de texto – O romance”, Volume 2). Nesse sentido, a análise
textual de VP08 inclina-se mais ao estudo da “forma” (significados de expressões e de frases;
tipos de discurso e construção da voz narrativa; recursos estilísticos) que do “conteúdo”
(enredo, personagens), conforme anunciam as próprias categorias de análise
empregadas/anunciadas pela coleção (CAMPOS; CARDOSO; ANDRADE, 2014 [Vol 2], p.
14). Por se encontrar, portanto, no eixo de escrita e de conhecimentos linguísticos, e não no
eixo literário, nada é dito acerca das especificidades e/ou do contexto de produção das
literaturas africanas151. Por outro lado, notamos aqui a repetição de uma estratégia já vista em
outras coleções do nosso corpus: ao ser escolhida como produção exemplar do gênero
romance, a obra de Mia Couto passa a ocupar um lugar historicamente reservado a textos
canônicos, o que, embora não traga contribuições substanciais para a introdução das
literaturas de matriz africana, pode figurar outro meio de desestabilização do cânone. (vide
observação feita na nota de rodapé nº 104 e o parágrafo ao qual a nota se refere).
Indo além do Caderno do Aluno, Mia Couto comparece como “atividade
complementar” do Manual do Professor no Volume 1. Neste caso, a análise do texto do
escritor moçambicano visa complementar o estudo introdutório dos diferentes gêneros
literários (“Unidade de Abertura”, seção “Literatura: arte com palavras”, Volume 1). Tem-se,
então, um fragmento do romance Terra sonâmbula (1992) a partir do qual são elaborados
exercícios interpretativos que permitam refletir acerca da presença de características dos
poemas épicos em romances modernos (CAMPOS; CARDOSO; ANDRADE, 2014 [Vol 1 –
Apêndice: “Manual do Professor”], p. 380)  para tanto, a coleção busca chamar a atenção
para a construção e as marcas de heroísmo presentes na narrativa e nas personagens.
É na última unidade da coleção (Unidade 6 – “Temas e cenas”)  mais precisamente
na subseção “Autores da prosa contemporânea em língua portuguesa”, a qual, por sua vez,
aparece como subitem da seção “Literatura – Literatura brasileira contemporânea (prosa)” ,
que Mia Couto surge como um representante das literaturas africanas, ao lado, como

151
Ademais, a atividade complementar e interdisciplinar associada ao romance de Mia Couto afasta-se ainda
mais de uma eventual análise literária, pois se solicita que, conjuntamente com o professor de Educação Física,
os alunos empreguem seus conhecimentos sobre “recurso estilístico” (aprendidos, justamente, através da leitura
do texto de Mia Couto) na análise “do estilo de jogo de dois jogadores conhecidos da turma” (CAMPOS;
CARDOSO; ANDRADE, 2014 [Vol 2 – “Manual do Professor”], p. 359).
309

dissemos, do angolano José Luandino Vieira (vide referências dos textos de matriz africana
utilizados por VP08 na Tabela 12 [página 312]).
Cabe esclarecer inicialmente que tal subseção é composta apenas por minibiografias
e por excertos dos autores escolhidos, sem que seja proposta nenhuma análise textual. Apesar
de termos classificado como tangencial a distribuição das produções africanas, é preciso
mencionar também que essas literaturas e a literatura contemporânea de Portugal recebem a
mesma atenção e o mesmo espaço em VP08: ao todo, elencam-se, além de Mia Couto e de
Luandino Vieira, dois autores portugueses (José Saramago e António Lobo Antunes) e doze
autores brasileiros (Cristovão Tezza, Ricardo Ramos, Moacyr Scliar, Luiz Alfredo Garcia-
Roza, Fernando Bonassi, Rubem Braga, Fernando Sabino, Marina Colasanti, Patrícia Melo,
Dalton Trevisan, Milton Hatoum e Ignácio de Loyola Brandão) (CAMPOS; CARDOSO;
ANDRADE, 2014 [Vol 3], pp. 303-320). Nesse sentido, depreende-se que a coleção opta por
privilegiar a prosa brasileira, motivo pelo qual relega os países africanos de língua portuguesa
e Portugal a segundo plano. Entretanto, independentemente de tal brevidade e superficialidade
não ser exclusiva à introdução das literaturas africanas, julgamos tangencial o modo como
esse recorte é trabalhado, seja pela limitação do repertório (visto que este é formado por
apenas dois autores), seja pela ausência de exercícios de leitura. Na apresentação de Mia
Couto, para além de dados biográficos basilares, ressalta-se que “tal qual Guimarães Rosa,
Couto preocupa-se em usar uma linguagem que caracteriza suas personagens” e que “fazem
parte de sua temática os dramas pessoais de quem vive em Moçambique após a
independência” (CAMPOS; CARDOSO; ANDRADE, 2014 [Vol 3], p. 318); sobre José
Luandino Vieira, afirma-se que “sua literatura sempre serviu na luta pela independência do
país africano, o que o levou a ser preso inúmeras vezes”, bem como que o autor “apresenta a
língua portuguesa cortada, atravessada pelo quimbundo, a língua do dia a dia angolano”
(ibid., p. 319). Por fim, todas as atividades e orientações complementares relativas à Unidade
em questão voltam-se à produção de textos dissertativos, não sendo recuperadas, no Manual
do Professor, as literaturas africanas.
Em relação à literatura negra/afro-brasileira, levantamos apenas um texto afim, da
escritora afrodescendente Elisa Lucinda152. Seu poema “Só de sacanagem” comparece ao lado

152
Novamente no que tange à presença de repertórios tidos como “periféricos”, registramos que há no Volume 1
uma proposta de análise textual da letra de rap “Um pião de vida loka”, de Trilha sonora do gueto (T$G)
(CAMPOS; CARDOSO; ANDRADE, 2014 [Vol 1], p. 99), a qual integra a discussão sobre as diferenças entre
linguagem oral e linguagem escrita.
310

de charges sobre a desigualdade social no Brasil (de Laerte e de Jean Galvão) e de uma carta
aberta (assinada por Gabriel Perissé) dirigida ao Ministro de Educação. Juntos, esses textos
introduzem a questão dos “problemas da realidade social e cultural brasileira”, a fim de
aproximar os alunos das produções artístico-literárias do Pré-Modernismo, escola literária que
dá título à seção. Outrossim, o contato inicial com esses textos fundamenta solicitações
cursivas do tipo “Que tema brasileiro você escolheria para escrever uma carta aberta?” e
“Você conhece algum poema que retrate um problema brasileiro?” (CAMPOS; CARDOSO;
ANDRADE, 2014 [Vol 2], p. 284)  neste caso, não dá diretrizes sobre como os docentes
podem mediar/conduzir as respectivas respostas. Por conseguinte, esse repertório é
interpretado a partir de suas temáticas comuns, e não em suas especificidades (isto é, Lucinda
não é introduzida como uma autora negra nem vinculada à literatura afro-brasileira)153.

Reestruturando o cânone II: literaturas indígenas em VP08

Não localizamos em VP08 produções literárias de escritores indígenas. Os povos


indígenas e suas culturas, enquanto temáticas sociais relevantes, também não ganham
destaque na coleção.

153
A título de registro, tem-se uma atividade interdisciplinar (com Filosofia, Geografia e História) e
complementar, presente no Manual do Professor e inspirada no Pré-Modernismo, na qual se sugere que, a partir
dele, seja debatida “a situação econômica, política e social do Brasil do final do século XIX”, com destaque às
“grandes transformações provocadas pela abolição da escravatura e pela República recém-proclamada”
(CAMPOS; CARDOSO; ANDRADE, 2014 [Vol 2 – “Manual do Professor”], p. 367).
311

A título de retomada e de síntese: VP08 e o repertório das leis 10.639/03 e 11.645/08


(produções de autoria indígena, negra/afrodescendente e/ou africana, para além do
cânone escolar).

VP08 REPERTÓRIO LOCALIZAÇÃO


“Unidade de Abertura”
(subseção “Literatura: arte com
VOLUME Terra sonâmbula (1992), de Mia Couto
palavras”).
1 (Moçambique)*.
* Excerto disponível apenas no
Manual do Professor.
Unidade 1 – “A vida que se
Romance Antes de nascer o mundo recria” (subseção “Língua e
(2009), de Mia Couto (Moçambique). produção de texto – O
VOLUME romance”).
2 Unidade 6 – “Investigar e
Poema “Só de sacanagem”, de Elisa documentar um tema”
Lucinda. (subseção “Literatura: Pré-
Modernismo”).
Romance Terra Sonâmbula (1992), de
Mia Couto (Moçambique). Unidade 6 – “Temas e Cenas”
VOLUME
Conto “Estória da galinha e do ovo” (subseção “Literatura brasileira
3
(1963), de José Luandino Vieira contemporânea - prosa”).
(Angola).
Tabela 12. Relação de textos e autores abordados em VP08.
312

4.1.9. Português: Língua e Cultura (Base Editorial) – 9ª coleção do PNLD


2015 em número de distribuições

FARACO, Carlos Alberto. Português: Língua e Cultura (Livro do Professor), 3ª ed.,


Volumes 1, 2 e 3, Curitiba: Base Editorial, 2013.

SIGLA: PLC09

Os trabalhos desenvolvidos com o eixo de conhecimentos linguísticos e com o eixo


da oralidade configuram-se, respectivamente, ponto forte e ponto fraco de PLC09, segundo
avaliação feita pelo PNLD 2015. O Guia destaca, especialmente, “capítulos voltados para
questões como variação e preconceito linguístico” (BRASIL-MEC/SEB, 2014b, p. 51).
Ressalta-se, ainda, a perspectiva sócio-interacionista adotada pela coleção, a qual, de acordo
com a resenha, se faz presente tanto no eixo linguístico quanto no literário, sendo neste
evidente, portanto, a “contextualização histórica das correntes literárias estudadas” (ibid., p.
52).
Apesar da variedade de gêneros presente em PLC09, o Guia chama a atenção para a
ausência de um número significativo de textos multimodais (BRASIL-MEC/SEB, 2014b, p.
52); de fato, ao encontro dessa observação, percebemos também no decorrer de nossa análise
um baixo investimento em elementos iconográficos em PLC09, principalmente se comparado
aos demais livros didáticos que integram o nosso corpus. É também correto assinalar que “os
textos presentes são de autores representativos da literatura brasileira, portuguesa e africana”
(BRASIL-MEC/SEB, 2014b, p. 52), visto que a presente coleção dedica dois capítulos às
literaturas de países africanos, revelando, pois, uma localização e distribuição de conteúdos
do tipo restrito.
Finalmente, a exemplo da organização do livro PCIS03, anteriormente analisado,
PLC09 é apresentado no Guia como sendo um compêndio, e não um manual. Por essa razão,
PLC09 não assume compromisso com a linearidade/ com um projeto sequencial de ensino-
aprendizagem, o que culmina em uma organização específica para cada volume.
Resumidamente, suas unidades temáticas orientam-se pelos eixos de ensino-aprendizagem,
havendo, porém, mais de um recorte para o eixo linguístico; assim, têm-se, de um lado, as
unidades “gênero” e “literatura”, e, de outro, as unidades de cunho linguístico “almanaque
gramatical”, “enciclopédia da linguagem”, “guia normativo” e “apêndice”, as quais são
voltadas, respectivamente, ao estudo da pontuação, da acentuação, da crase e do hífen. Ao
separarmos as unidades de PLC09 em três grandes grupos (“gêneros”, “literatura” e
313

“gramática”), nota-se que o eixo literário ocupa um espaço menor que o eixo linguístico e que
o estudo dos gêneros: ao todo, são onze unidades de literatura para dezessete de gênero e
dezenove de gramática.
Trata-se de um material didático de autor único: Carlos Alberto Faraco, professor de
Língua Portuguesa no Ensino Médio e na Universidade Federal do Paraná (UFPR),
Especialista em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Mestre
e Doutor em Linguística, pela UNICAMP e pela Universidade de Salford (Grã-Bretanha),
respectivamente.

MACROESTRUTURA DA COLEÇÃO PLC09

O Manual do Professor de PLC09 é apresentado em um apêndice, e nele constam


tanto os pressupostos teórico-metodológicos da coleção quanto o gabarito das atividades
propostas aos alunos. Não há, assim, respostas ou instruções justapostas às atividades do
Caderno do Aluno. Nos fundamentos da coleção, assinala-se a relação do Ensino Médio com
a educação para a cidadania (FARACO, 2013 [Vol 1 – Apêndice: “Manual do Professor”], p.
260) e reitera-se o afastamento de PLC09 de um tratamento pedagógico “burocratizado de
ensino”, responsável por tornar “o texto literário mero meio para estudos gramaticais ou
teóricos; ou cercando-o de enfadonhas e insossas obrigações” (ibid., p. 262). Em termos
práticos, observamos que tal perspectiva reflete-se, a nosso ver, em uma menor frequência de
atividades de leitura no eixo literário, as quais, quando presentes, mostram-se mais
abrangentes, isto é, menos presas às especificidades das escolas literárias e/ou a eventuais
características comuns a autores de um mesmo período. Notamos que PLC09 prioriza a
exposição de fragmentos seguida de “comentários” do autor da coleção, havendo, então, mais
enquadradores discursivos que solicitações interpretativas  no caso específico da
abordagem das literaturas africanas, observa-se, no entanto, que o livro opta por propor uma
gama maior de exercícios de interpretação, ponto que discutimos na subseção correspondente
a esse recorte. Em termos práticos, talvez seja válido mencionar que o baixo número de
atividades de PLC09 tem reflexo no número de páginas da coleção, cerca de 300-320 por
volume, quantidade bem inferior à média das demais coleções do PNLD 2015, as quais
costumam totalizar entre 400 e 500 páginas por volume.
Tal qual anunciado ao professor, o livro tem predileção por “gêneros textuais
literários”, devido ao fato de o texto literário ter “maior permanência no tempo”, organizar
314

“esteticamente as grandes questões humanas e a própria linguagem verbal” (FARACO, 2013


[Vol 1 – Apêndice: “Manual do Professor”], p. 273), ainda que os critérios de seleção desses
textos não sejam explicitados. Em relação aos objetivos da coleção, verificamos uma
intersecção entre objetivos técnicos e objetivos voltados a atitudes, pois a defesa da formação
do “leitor crítico” feita pelo material toca, muitas vezes, questões gerais de cidadania.
Contudo, tais indícios de promoção de novas atitudes não se articulam aos princípios das leis
10.639/03 e 11.645/08; para além de não se citar a necessidade de cumprimento da legislação,
não se discute a importância e/ou o lugar da diversidade cultural em seu projeto pedagógico.
PLC09 limita-se a informar que foi “a primeira [coleção] no Brasil a incluir a literatura dos
países africanos que têm a língua portuguesa como oficial” (FARACO, 2013 [Vol 1 –
Apêndice: “Manual do Professor”], p. 271).
Nosso último apontamento refere-se ao teor das respostas e das orientações
específicas presentes em cada volume. Comparativamente a outras coleções, consideramos
que PLC09 fornece instruções muito breves e objetivas aos docentes, carecendo, por vezes, de
detalhamento em suas indicações didático-pedagógicas. Buscamos observar em que medida
essa carência afeta ou não o entendimento das atividades propostas e/ou das expectativas do
autor da coleção. Apesar desse aspecto, julgamos interessante e produtivo o incentivo dado ao
professor para promover “o engajamento” dos alunos com os textos, para que sejam expressas
suas reações: “E aqui as possibilidades de motivá-los são inúmeras. Por exemplo: o que
chamou particularmente a atenção deles na leitura? Alguma parte deixou-os perplexos,
surpresos, desconcertados, alegres, tristes? [...] Associaram o texto a algum outro texto, a
alguma música, a alguma coisa que ouviram ou a algum momento da vida? [...]” (FARACO,
2013 [Vol 1 – Apêndice: “Manual do Professor”], p. 300). Trata-se de uma orientação geral
registrada no início do trabalho com o eixo literário, a qual, embora pouco frequente, vai ao
encontro dos pressupostos da “leitura subjetiva”, e que, por isso, pode favorecer a mediação
da experiência literária dos alunos.

MICROESTRUTURA DA COLEÇÃO PLC09

Revisitando o cânone: Quinhentismo e Romantismo (Indianismo e Condoreirismo) em


PLC09

PLC09 divide em duas partes (capítulos 6 e 7, Volume 1) a abordagem da “história


da literatura brasileira: período colonial”, sendo a primeira dedicada aos séculos XVI e XVII
315

e a segunda, ao século XVIII. Na abertura da discussão, a importância da leitura dessas


produções é justificada sob a premissa de sua contribuição para a melhor compreensão do
nosso passado e da nossa cultura (FARACO, 2013 [Vol 1], p. 91), embora, se esclareça, a
atividade literária no período colonial tenha sido “no geral, muito rarefeita” (ibid., p. 90),
devido, entre outros aspectos, à restrição da educação a uma pequena parcela da população, o
que era acompanhado, por conseguinte, de altos índices de analfabetismo, os quais, por sua
vez, se estendem até os dias atuais. Essa e outras mazelas enfrentadas pela esfera da educação
são interpretadas pela coleção como “uma herança negativa do nosso passado colonial” (p.
91), que explica a baixa produção e circulação de livros observada até o século XX no Brasil.
A despeito de se tratar de um interessante, e inovador, enquadrador discursivo
extratextual, que direciona os estudantes a uma leitura mais clara do contexto de produção
dessas narrativas, em PLC09, diferentemente do que verificamos em outras coleções, os
textos dos cronistas do Descobrimento não são abordados na mesma proporção com que o são
as produções de Gregório de Matos e do Padre Antônio Vieira, do século seguinte.
Encontramos apenas uma proposta de leitura e de atividade envolvendo a Carta de Caminha,
situada no fechamento do capítulo 6. Antes dela, ainda na introdução do capítulo, é exposto
somente o papel exercido pelos escritos de Caminha, Gândavo e Gabriel Soares e Sousa, sem
a presença de excertos ilustrativos. Inclusive, na proposta em questão, a Carta de Caminha
não é disponibilizada, uma vez que, segundo PLC09, “o texto é facilmente encontrável na
internet (por exemplo, no endereço [...])” (FARACO, 2013 [Vol 1], p. 103). Com base em sua
leitura, os alunos são orientados a discutir coletivamente o texto, “em especial os julgamentos
do autor sobre o que via”, e a compará-lo à letra da canção “Descobrimento”, de Toquinho e
Paulo César154, sobretudo no que tange à ironia desta segunda produção (ibidem). Em
seguida, propõem-se mais dois exercícios:

2. Em 2202, o brasileiro Alain Fresnot dirigiu o filme Desmundo, inspirado


em livro homônimo da escritora Ana Miranda. A ação do filme se passa no
século 16 e apresenta aspectos da vida do início da colonização portuguesa
da “nova terra”, em especial dramas humanas vivenciados pelos colonos.
Houve uma cuidadosa reconstituição da época (embora as fontes de
informação sejam muito escassas). O diretor buscou também preservar o tom
antigo do texto da Ana Miranda, construindo diálogos em português
quinhentista, reconstituído pelo professor Helder Ferreira, linguista da
Universidade de São Paulo.

154
Letra disponível em <https://www.letras.mus.br/toquinho/87219/>. Acesso em 05/02/2019.
316

Sugerimos, então, que a turma assista ao filme e discuta seu enredo, em


especial alguns dos problemas postos pela colonização inicial da “nova
terra”. (FARACO, 2013 [Vol 1], p. 104). [Resposta: Atividade da turma.].
(FARACO, 2013 [Vol 1 – Apêndice: “Manual do Professor”], p. 301).

3. Sobre o Padre Vieira, diz Alfredo Bosi, um dos principais estudiosos


contemporâneos da literatura brasileira, em seu livro História concisa da
literatura brasileira (39. ed. São Paulo: Cultrix, 2001, p.45-46):
É de leitura obrigatória o Sermão da Sexagésima, proferido na Capela Real
de Lisboa, em 1655, e no qual o orador expõe a sua arte de pregar.
Ao leitor brasileiro interessa particularmente:
[excerto de Padre Vieira]
Nem se diga que Vieira foi insensível ao escravo negro preterindo-o no
ardor de defesa ao indígena. No Sermão 14 do Rosário, pregado em 1633 à
Irmandade dos Pretos de um engenho baiano, ele equipara os sofrimentos
de Cristo aos dos escravos, ideia tanto mais forte quando se lembra que os
ouvintes eram os próprios negros.
[excerto de Padre Vieira]
(FARACO, 2013 [Vol 1], p. 104).
Responda agora às seguintes questões:
a) Costuma-se dizer que, numa sociedade escravocrata, a classe dominante
considerava o trabalho indigno. Que afirmação de Vieira, nos trechos dos
sermões citados pelo autor, contém uma crítica a essa perspectiva?
(FARACO, 2013 [Vol 1], p. 104). [Resposta: O trecho em que Vieira diz:
“porque melhor é sustentar-se do suor próprio, que do sangue alheio”].
(FARACO, 2013 [Vol 1 – Apêndice: “Manual do Professor”], p. 301).
b) Que afirmação de Vieira contém uma crítica à exploração da mão de obra
escrava? (FARACO, 2013 [Vol 1], p. 104). [Resposta: “eles descansam, e
vós trabalhais; eles gozam o fruto de vossos trabalhos... Não há trabalhos
mais doces que os das vossas oficinas; mas toda essa doçura para quem
é?”]. (FARACO, 2013 [Vol 1 – Apêndice: “Manual do Professor”], p. 301).

O conjunto de atividades correspondente ao Quinhentismo nos leva a concluir que


PLC09 inclina-se fundamentalmente à exploração do contexto histórico dessas narrativas, e
com certo destaque ao entendimento da visão de mundo do colonizador. Indo de encontro ao
anúncio da “herança negativa da colonização” presente na abertura do capítulo, não se faz um
gancho entre o passado colonial e a atual realidade do país, nem se questionam os relatos de
Caminha à luz de seu papel na construção de uma narrativa colonial única. Em relação ao
debate do enredo do filme (atividade 1), por exemplo, nenhuma orientação específica é
fornecida ao professor. Independentemente de se configurarem exercícios interessantes, suas
finalidades contrastam com a forma como a produção quinhentista é estudada em outras
coleções do PNLD 2015, concernente, principalmente, ao uso desses textos para uma revisão/
317

um questionamento dos discursos coloniais. No que engloba o Romantismo (capítulo 8,


Volume 1), nota-se um projeto didático similar. Identificamos um enquadrador discursivo
extratextual crítico ao Indianismo  a saber, “há nessas obras uma idealização da figura do
índio [...]. Não se tratava de exaltar as culturas e os povos indígenas concretos (muitos, aliás,
paradoxalmente, estavam sendo dizimados por epidemias, massacres eventuais e sistemática
exploração), mas de heroicizar um longínquo índio tupi [...]” (FARACO, 2013 [Vol 1], p.
132) , ao encontro do qual, porém, se formula apenas uma atividade:

3. No capítulo anterior lemos um texto do jornalista Eduardo Bueno sobre


Vila Rica (Ouro Preto). Como vimos, Bueno tem se dedicado à escrita de
livros para o grande público com temas de história do Brasil. Em seu livro
Brasil: uma história (São Paulo: Ática, 2003, p. 199 e 200), ele se refere à
literatura romântica indianista como um dos elementos que contribuíram
com o projeto político-cultural do imperador Dom Pedro II de reinterpretar
nosso passado de modo monumental e mitificador. Diz ele:
“Foi com José de Alencar que o romance indianista se pôs plenamente a
serviço de uma visão mitificada da ‘nova’ sociedade brasileira. [...] Em
Alencar, não apenas os ‘autóctones’, mas a própria natureza brasileira, são
postos a serviço do nobre conquistador branco. Ou melhor: existem só para
servi-lo. José de Alencar fundou o nativismo servil e colonialista.
[...]”.(FARACO, 2013 [Vol 1], p. 140).
Sugerimos que a turma desenvolva, em conjunto com o professor de
História, um projeto de pesquisa das características desse período histórico
(primeiras décadas do Segundo Reinado) e dos objetivos da construção de
um passado monumental e idealizado para o País. [Resposta: Projeto
interdisciplinar a ser desenvolvido com o professor de História]. (FARACO,
2013 [Vol 1 – Apêndice: “Manual do Professor”], p. 302).

Somam-se a esse exercício, duas atividades precedentes: uma proposta de leitura


declamada de Y-Juca-Pirama, de Gonçalves Dias, e de Tragédia do mar (Navio Negreiro), de
Castro Alves, e outra referente à leitura dramática de uma das peças de Martins da Pena
(FARACO, 2013 [Vol 1], p. 140). Ao se ter em vista tanto a falta de detalhamento nas
diretrizes disponíveis ao docente quanto o baixo número de questões (os três exercícios
correspondem ao número total de atividades de leitura que compõe o capítulo do
Romantismo), não reconhecemos em PLC09 um trabalho crítico-reflexivo acerca da figura do
indígena e dos problemas raciais tais quais retratados pela escola romântica. Contrastivamente
a grande parte do nosso corpus, a presente coleção também não se vale dessas produções
indianistas e condoreiras para firmar uma ponte entre o “falar sobre” índios e negros no
passado e a condição e/ou as produções literárias desses grupos nos dias atuais.
318

Reestruturando o cânone I: literaturas africanas e literatura negra/afro-brasileira em


PLC09

No terceiro volume de PLC09 há dois capítulos sobre literaturas africanas 


capítulos 9 e 10 (“Literatura africana em língua portuguesa [1]” e “Literatura africana em
língua portuguesa [2]”). O primeiro dedica-se ao que a coleção denomina de “despertar
literário”, correspondente à produção inscrita entre o período de 1940 e 1960. Já o segundo,
concentra-se em publicações contemporâneas, todas posteriores às conquistas de
independência. Em ambos, abordam-se todos os países africanos lusófonos, havendo sempre
uma minibiografia do autor dos respectivos excertos (por vezes, acompanhada de uma
fotografia) e pelo menos uma proposta de análise textual por país  a lista completa dos
fragmentos literários que integram esses capítulos encontra-se na Tabela 13 (página 325);
discutimos nesta subseção somente ocorrências mais relevantes/ ilustrativas. Por ora,
destacamos como ponto positivo do repertório a presença de quatro autoras mulheres (Ana
Paula Tavares [Angola], Conceição Lima [São Tomé e Príncipe], Noémia de Sousa
[Moçambique] e Vera Duarte [Cabo Verde]) e a variedade de textos, de um modo geral.
Entre os enquadradores discursivos dos dois capítulos, verificam-se breves, porém
relevantes, contextualizações socio-históricas. Na abertura do capítulo 9, afirma-se aos alunos
que a divulgação das literaturas africanas no país “pode vir a ser um dos caminhos
importantes para o Brasil recuperar seus laços com as culturas africanas e compreender mais
profundamente suas próprias raízes. Por outro lado, conhecê-la[s] é também abrir-se para uma
literatura que revela outras faces de imensa riqueza expressiva da língua portuguesa”
(FARACO, 2013 [Vol 3], p. 140). Ademais, para além da exposição de um breve panorama
sobre os contornos da dominação portuguesa em África, PLC09 dedica-se a esclarecer o
porquê de a língua portuguesa ter sido adotada como língua oficial por esses países; frisam-se,
então, razões políticas (“projeção internacional do português”, “o interesse em estreitar as
relações com o Brasil”), culturais (“integração das diferentes etnias”), entre outras (“o fato de
o português ser a única língua naqueles territórios a ter uma tradição escrita”) (ibid., p. 141).
Trata-se de uma discussão que pode ser considerada inovadora na medida em que a questão
da oficialização da língua portuguesa após a Independência não é frequentemente debatida
nos livros didáticos que compõem o nosso corpus. Na abertura do capítulo 10, mantém-se
uma breve reflexão conceitual sobre as literaturas africanas, desta vez ancorada em uma
entrevista dada por Mia Couto sobre o tema à revista Isto é (FARACO, 2013 [Vol 3], p. 160)
319

 fala-se sobre a atual repercussão dessas literaturas e também das mudanças de enfoque
nela observadas com o decorrer do tempo.
Objetivando traçar uma mínima historiografia literária, a coleção divide o
“desenvolvimento” dessas literaturas em três períodos: (i) o da escrita de pessoas de
ascendência europeia que escreviam a partir do olhar do colonizador; (ii) o do “despertar de
uma consciência literária efetivamente africana”, ocorrido por volta de 1920, em que
escritores de ascendência africana assumem seu pertencimento à África; (iii) “a fase literária
posterior à independência”, em que essas produções passam a apresentar “crescente
diversificação” (FARACO, 2013 [Vol 3], p. 142). Este último apontamento é interessante
porque ele vai de encontro à usual inscrição dessas literaturas no rol das literaturas
“engajadas” ou “históricas”. PLC09, ao invés de chamar a atenção para uma vertente das
produções de matriz africana, elenca sua pluralidade; cita-se, entre muitos exemplos, a
existência de escritos mais intimistas ou atentos a temas universais, assim como de textos que
“se aproximam da diversidade das tradições locais” ou dos “dramas humanos” (miséria,
violência) consequentes das guerras anticoloniais e de guerras civis (ibidem).
No que diz respeito ao teor dos exercícios de leitura, dissemos anteriormente que a
reiteração, em PLC09, da importância da “apreciação” e do “contato” com o texto literário,
culmina, em grande parte do eixo literário, em um número reduzido de atividades sistemáticas
de interpretação. Entretanto, no caso específico das literaturas africanas, percebemos um
movimento contrário, haja vista quase todos os fragmentos serem seguidos por solicitações
interpretativas. Em síntese, predomina nas duas seções o trabalho com operações de leitura
pautadas na interpretação de passagens ou de escolhas lexicais específicas, na observação e
justificação de recursos estilísticos, bem como na identificação dos temas centrais das
narrativas ou de figuras de linguagem, quase sempre precedidas por enquadradores
discursivos textuais. Figuram exceções uma questão sobre o poema “No mesmo lado da
canoa”, da poetisa Alda Espírito Santo, de São Tomé e Princípe, devido a seu enquadrador
discursivo extratextual, e um pergunta focada na intertextualidade estabelecida entre um
romance de Luandino Vieira (Angola) e um poema Vasco Cabral (Guiné Bissau), a qual
conta, por conseguinte, com um enquadrador discursivo intertextual:

[Sobre o poema “No mesmo lado da canoa” de Alda Espírito Santo]


2. O poema, nesse sentido, revela o drama vivido pelos intelectuais (Alda foi
educada em Portugal) que estiveram na luta anticolonial: eram minoria e,
320

muitas vezes, eram vistos com desconfiança pelos seus compatriotas pobres,
sofridos e analfabetos. Apesar disso, a poeta insiste que está do mesmo lado
da canoa de seus irmãos e irmãs - na suas vidas e lutas cotidianas, nos seus
ritos religiosos (“no ritmo frenético dum batuque de encomendação”). O
poema conclui, então, com um convite do eu poético. Qual?
Nota: observe que o contratado, tema do poema de Agostinho Neto,
reaparece no texto de Luandino Vieira e neste poema de Alda Espírito Santo.
(FARACO, 2013 [Vol 3], p. 153). [Resposta: O poema se encerra com o
convite para que todos se unam (“unir nossas mãos milenárias/ ... para nos
situarmos todos do mesmo lado da canoa/ ... onde se juntam os nossos
braços/ e nos sentamos todos lado a lado/ ...”)] (FARACO, 2013 [Vol 3 –
Apêndice: “Manual do Professor”], p. 306).

[Sobre o romance A vida verdadeira de Domingos Xavier (1974), de


Luandino Vieira, e o poema “Antidelação”, de Vasco Cabral]
1. Há algo em comum entre este poema e o texto que lemos de Luandino
Vieira. Qual? (FARACO, 2013 [Vol 3], p. 154). [Resposta: A resistência à
tortura, a não delação dos companheiros apesar da tortura] (FARACO,
2013 [Vol 3 – Apêndice: “Manual do Professor”], p. 306).

Além das propostas centrais, os capítulos 9 e 10 disponibilizam, no Caderno do


Aluno, leituras complementares e projetos de encerramento que visam consolidar e/ou
ampliar os conteúdos até então estudados. Quanto às leituras, tem-se primeiramente o texto
“A língua portuguesa no mundo”, assinado pelo próprio autor da coleção, Carlos Alberto
Faraco, que discute “a expansão da língua portuguesa no mundo a partir do século 15”
(FARACO, 2013 [Vol 3], p. 157); com base nele, levantam-se dez perguntas, que passam pela
presença da língua portuguesa na Ásia, na África e no Atlântico Sul, pelo desenvolvimento
das línguas crioulas de base portuguesa, e pela história de muitos conflitos desencadeados
pela colonização (ibid., p. 159). Já o segundo texto complementar corresponde a uma
entrevista com Mia Couto, em que o autor discorre, entre outros assuntos, acerca da influência
de Guimarães Rosa na literatura moçambicana; as três perguntas feitas aos alunos centram-se
nesse ponto dos relatos do entrevistado (FARACO, 2013 [Vol 3], pp. 174-177). Em relação,
por fim, aos projetos de encerramento, sugere-se, de um lado, que se desenvolva, “junto com
os professores de História, Geografia e Sociologia, alguns projetos de pesquisa sobre o
colonialismo europeu moderno (suas origens, características e consequências), sobre o
processo de descolonização de cada um dos cinco países africanos que adotaram a língua
portuguesa como oficial (sua história, sua atual situação econômica, política e cultural)”
(ibid., p. 157); e, de outro, que se pesquisem e se discutam as relações as “profundas raízes
africanas” do país, assim como “as profundas desigualdades socioeconômicas que ainda
321

afetam a população afrodescendente no Brasil”, tendo como ponto de partida,


respectivamente, o livro Brasil: uma história (2003), de Eduardo Bueno (indicação da leitura
dos capítulos 11 e 20), um excerto do livro Um rio chamado Atlântico: a África no Brasil e o
Brasil na África (2003), de Alberto da Costa e Silva, e também um fragmento de um texto
sobre racismo publicado pela historiadora Emilia Viotti no jornal Folha de São Paulo, em
2000. Apesar de não haver instruções detalhadas no Manual do Professor, que indicassem
caminhos possíveis de mediação dos projetos, julgamos tais propostas relevantes e
condizentes com os pressupostos da lei 10.639/03.
Por fim, e não menos importante, cabe registrar que não localizamos nenhuma
produção representativa da literatura negra/afro-brasileira.

Reestruturando o cânone II: literaturas indígenas em PLC09

Não localizamos em PLC09 produções literárias de escritores indígenas, e,


igualmente, não se observam questionamentos aprofundados acerca da estereotipia (pelo
Quinhentismo) e/ou da idealização (pelo Romantismo) do indígena na literatura brasileira.
Todavia, vê-se no capítulo 5 do Volume 2, intitulado “Gênero: entrevista”, uma entrevista
com o escritor indígena Kaká Werá Jecupé, em que muitos aspectos da cultura e da condição
dos povos indígenas brasileiros, das heranças nocivas da colonização, e também questões
relativas à escrita do autor, são debatidos155. Em seguida, propõe-se que os alunos comparem
as declarações da entrevista de Jecupé ao teor da carta enviada pelo líder indígena norte-
americano Seathl, do povo suquamish (Noroeste dos EUA), ao presidente Franklin Pierce, em
1854156. Então, a partir dessas leituras, indica-se que os alunos registrem por escrito seus
pensamentos a respeito dos textos (através de uma escrita intimista, opinativa ou ficcional), e
que, posteriormente, desenvolvam uma proposta de pesquisa e de debate sobre a temática,
abrangendo recortes como a demarcação das terras indígenas, as cosmovisões das diferentes
etnias, as políticas oficiais relacionadas a esses povos, entre outros (FARACO, 2013 [Vol 2],
p. 81). Como último exercício, tem-se:

155
“500 anos de desenconstros”, entrevista disponível em:
<https://istoe.com.br/32803_500+ANOS+DE+DESENCONTROS/>. Acesso em 06/02/2019.
156
“Quem é o dono da pureza do ar e do resplendor da água?” (título dado pela coleção), carta disponível em:
<http://www.culturabrasil.org/seattle1.htm>. Acesso em 06/02/2019.
322

2. Escutando a palavra do outro: são raros os momentos em que a voz dos


povos indígenas aparece nos nossos meios de comunicação social e nos
nossos espaços públicos em geral. Ainda recai sobre a palavra dessas
populações - como herança do passado colonial - um pesado silenciamento.
Em abril de 2000, data em que o País registrou os 500 anos da chegada dos
portugueses, houve várias celebrações oficiais e em nenhuma se deu voz a
essas populações. Um grupo de índios pataxós invadiu uma cerimônia
religiosa que se realizava em Porto Seguro, e um deles, Matalauê, fez um
discurso que expressava a indignação dessas populações e foi manchete em
vários jornais do País. O discurso pode ser lido em diferentes endereços na
internet. Na ferramenta de busca, digite “Matalauê”. Depois de lido o texto,
sugerimos que as ideias de Matalauê sejam debatidas pela turma. (FARACO,
2013 [Vol 2], p. 81).

Na apresentação do capítulo disposta no Manual do Professor, reforça-se que o tema


que orienta o estudo do gênero “entrevista” é “a palavra do outro” (FARACO, 2013 [Vol 2 –
Apêndice: “Manual do Professor”], p. 282). Afirma-se ao professor que a leitura da entrevista
de Jecupé pode favorecer o debate “sobre os sentidos da diversidade de culturas” e
configurar-se uma “oportunidade para se questionar a visão etnocêntrica [...] e abrir a cabeça
para a crítica aos preconceitos que temos em relação a outros povos e outras culturas”
(ibidem). Assinala-se, ainda, a possibilidade de realização de um estudo interdisciplinar com
Sociologia, História e Filosofia, bem como, no que tange à carta de Seathl, discutir
igualmente temas ambientais (ibidem). Trata-se, a nosso ver, de exercícios bastante alinhados
com a lei 11.645/08, ainda que escapem ao eixo literário. Em consonância com estratégias
que vimos em outras coleções, as quais retomamos nas conclusões do nosso quadro analítico,
entendemos que propostas afins atestam que o cumprimento da lei no livro didático de
Português não precisa (ou não deve) permanecer preso ao eixo de literatura. A única ressalva
(ou reflexão) que lançamos aqui se refere à identificação do índio, em PLC09, como sendo,
necessariamente, o “outro”. Dado o alcance nacional de circulação dos livros do PNLD, é
possível que haja indígenas na própria comunidade escolar que adota a coleção, de modo que
parece mais adequado investir em uma interlocução similar a que encontramos nas atividades
de PLC05 sobre a temática indígena, que, partindo do pressuposto de que possa haver
estudantes de distintas etnias numa mesma sala de aula, demanda, num primeiro momento,
que os alunos verifiquem se há moradores indígenas em sua região.
323

A título de retomada e de síntese: PLC09 e o repertório das leis 10.639/03 e 11.645/08


(produções de autoria indígena, negra/afrodescendente e/ou africana, para além do
cânone escolar).

PLC09 REPERTÓRIO LOCALIZAÇÃO


VOLUME Entrevista com o escritor indígena Kaká Capítulo 5: “Gênero:
2 Werá Jecupé. entrevista”.
Poema “Havemos de voltar”, de
Agostinho Neto (Angola).
Poema “Contratados”, de Agostinho Neto
(Angola).
Romance A vida verdadeira de Domingos
Xavier (1974), de José Luandino Vieira
(Angola).
Poema “Quero ser tambor”, de José
Capítulo 9: “Literatura –
Craveirinha (Moçambique).
Literatura Africana em Língua
Poema “Magaíça”, de Noémia de Sousa
Portuguesa (1)”.
(Moçambique).
Poema “No mesmo lado da canoa”, de
Alda Espírito Santos (São Tomé e
Príncipe).
Poema “Antidelação”, de Vasco Cabral
(Guiné Bissau).
Romance Os flagelados do vento leste
(1959), de Manuel Lopes (Cabo Verde).
Entrevista com Mia Couto nº 1
(Moçambique).
VOLUME
Romance As aventuras de Ngunga (1972),
3
de Pepetela (Angola).
Poema em título (“esperei-te do nascer ao
pôr do sol”...), de Ana Paula Tavares
(Angola).
Conto “As mãos dos pretos”, de Luís
Bernardo Honwana (Moçambique).
Conto “O menina que fazia versos”, de
Mia Couto (Moçambique). Capítulo 10: “Literatura –
Poema sem título (“Teu corpo é o país dos Literatura Africana em Língua
sabores...”), de Eduardo White Portuguesa (2)”.
(Moçambique).
Poema sem título (“Após o ardor da
reconquista...”), de Conceição Lima (São
Tomé e Príncipe).
Poema “Não posso adiar a palavra”, de
Helder Proença (Guiné Bissau).
Poema “Momento IV – (desabafo)”, de
Vera Duarte (Cabo Verde).
Entrevista com Mia Couto nº 2
(Moçambique).
Tabela 13. Relação de textos e autores abordados em PLC09.
324

4.1.10. Vozes do Mundo (Saraiva) – 10ª coleção do PNLD 2015 em número


de distribuições

ABREU-TARDELLI, Lília Santos; ODA, Lucas Sanches; CAMPOS, Maria Tereza


Arruda (Coord.); TOLEDO, Salete. Vozes do Mundo (Livro do Professor), Volumes 1, 2
[2ª ed.] e 3, São Paulo: Saraiva, 2013.

SIGLA: VM10

De acordo com a resenha feita pelo PNLD 2015, o trabalho com “o funcionamento
discursivo” dos gêneros textuais configura-se um ponto forte de VM10 (BRASIL-MEC/SEB,
2014b, p. 65). Em nossa percepção, também o trabalho realizado com os variados elementos
iconográficos que integram a coleção, com destaque ao estudo de quadros e da arte urbana
(grafites), deve ser apontado como bastante rico e produtivo. Por outro lado, o Guia de
Português aponta “o excesso de fragmentação que limita a fruição de poemas” como um
ponto fraco, e dá destaque ao trabalho constante desenvolvido com o eixo da leitura (ibid.,
66).
Concordamos com a resenha em relação ao modo “tímido” com que a
“heterogeneidade sociocultural brasileira” comparece na coleção (BRASIL-MEC/SEB,
2014b, p. 68). Há, por sua vez, como também consta na análise realizada pelo PNLD 2015,
uma variedade de gêneros e de tipos textuais, os quais se inscrevem em diferentes esferas e
apresentam distintas materialidades (musical, pictórica); porém, no eixo literário, por
exemplo, notamos, em linhas gerais, poucos movimentos inclinados à extrapolação do cânone
literário, ainda que as literaturas africanas, em especial, sejam trabalhadas em uma unidade
exclusiva. No entanto, interessa-nos principalmente a ressalva que o Guia registra acerca da
compreensão histórico-cultural que marca os capítulos de literatura de VM10. De fato,
notamos que o livro oferece informações pormenorizadas sobre o contexto socio-histórico de
cada escola literária, com a particularidade de recorrer, como assinala a resenha, a “teorias
críticas contemporâneas” (ibidem); trata-se, evidentemente, de um aspecto positivo, mas que
vem acompanhado de uma menor atenção às “especificidades do literário” e a “atividades que
levam o aprendiz à fruição estética e à apreciação crítica da produção literária” (BRASIL-
MEC/SEB, 2014b, pp. 68-69)  tarefa que, segundo o Guia, fica a cargo do docente.
Durante a nossa análise, percebemos, nesse sentido, a escassez de solicitações
cursivas, isto é, os alunos quase nunca são interpelados sobre suas impressões pessoais e
sobre suas experiências de leitura. Em síntese, consideramos que VM10 se restringe, em
325

muitas ocasiões, a questões relacionadas à validação de determinadas escolas ou períodos


literários, bem como à exposição-explicação excessiva de conteúdos, em detrimento de
propostas analíticas mais dialógicas. Isso não significa que não haja atividades crítico-
reflexivas nesta coleção, mas que se observa a preponderância de exercícios que privilegiam a
autoridade do texto, sem dar espaço à subjetividade do leitor ou a leituras que extrapolam
determinados limites de interpretação. Por fim, vale mencionar que, seguindo a clássica
organização cronológica da historiografia literária, o número de unidades do eixo de literatura
é superior tanto ao do eixo de “língua” quanto ao do eixo de “produção de texto” (sendo estes
os três eixos orientadores de cada volume); das 41 unidades, 43% reserva-se à literatura.
Trata-se de um livro didático assinado por quatro autores: Lília Santos Abreu-
Tardelli e Maria Tereza Arruda Campos, ambas mestras em Linguística Aplicada pela PUC-
SP, sendo a segunda também bacharel em Letras pela USP; Lucas Sanches Oda, mestre em
Linguística pela UNICAMP; e Salete Toledo, mestra em Letras pela USP. Na minibiografia
que abre a coleção, Campos e Toledo são descritos como consultores em Educação, enquanto
Abreu-Tardelli e Oda são apresentados como professores, a primeira do Departamento de
Estudos Linguísticos e Literários e do Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos
da UNESP – São José do Rio Preto (SP) e o segundo da rede particular de ensino e de curso
pré-vestibular.

MACROESTRUTURA DA COLEÇÃO VM10

Todos os volumes da coleção dividem-se em três partes: “literatura”, “língua” e


“produção de texto”. O eixo literário segue a ordenação da historiografia literária e os
conteúdos relativos às leis 10.639/03 e 11.645/08 comparecem raras vezes articulados a
outros repertórios e significativamente em dois capítulos restritos às literaturas africanas.
Tanto as orientações específicas quanto as respostas das atividades localizam-se no apêndice
do Manual do Professor, não havendo registros de instruções justapostos aos exercícios.
Comentamos aqui a parte fixa do Manual, visto que as demais são analisadas conforme se
mostrem interessantes à discussão da microestrutura de VM10.
O Manual do Professor inicia-se com uma justificação para o título da coleção,
“Vozes do mundo”, a qual esclarece a ênfase dada, por VM10, a uma abordagem discursiva
de linguagem (ABREU-TARDELLI; ODA; CAMPOS; TOLEDO, 2013 [Vol. 3 – Apêndice:
“Manual do Professor”], p. 405). Especificamente sobre o trabalho com o eixo literário,
326

questiona-se certa “artificialidade” que estaria hoje presente na educação literária (aulas
muito expositivas e cheias de “regras”), para então ressaltar “o papel humanizador da
literatura”, afirmando-a como “um exercício de liberdade” (ibid., 406), sem negar, no entanto,
o importante papel de mediação a ser exercido pelo docente (ibid., p. 407). Trata-se, porém, a
nosso ver, de premissas que não se refletem consistentemente no Caderno do Aluno, haja
vista VM10 quase não propor solicitações cursivas que deem efetivo espaço a esse “exercício
de liberdade”, conforme mostram os levantamentos por nós registrados na análise de sua
microestrutura. É importante citar que figura no Quadro “As habilidades leitoras
desenvolvidas nesta coleção” (ABREU-TARDELLI; ODA; CAMPOS; TOLEDO, 2013 [Vol.
3 – Apêndice: “Manual do Professor”], pp. 410-411) a capacidade e a habilidade de
“elaboração de opiniões a partir de temas e/ou ideias contidas em um texto”, as quais se
atrelam, justamente, à ideia de “compreensão subjetiva” (ibid., p. 411). Verificamos, assim,
que a parte fixa do Manual do Professor chama a atenção para a mediação da leitura subjetiva
 no referido Quadro, sugere-se, inclusive, que “o professor pode abrir espaço para uma
breve discussão depois da leitura individual de um texto literário”, de modo a não inserir essas
leituras numa “rotina monótona” (ibid., p. 411) , mas não busca retomá-la ou concretizá-la
por meio das análises textuais que dão forma ao material.
No mais, o Manual do Professor dedica-se a muitas conceituações teórico-
pedagógicas, em torno, por exemplo, dos conceitos de “texto”, “texto literário”, “dimensão
discursiva do texto literário”, “letramento literário”, sem tocar, em nenhuma delas, no debate
sobre o lugar a ser ocupado pela diversidade cultural na coleção. Ademais, nem as leis
10.639/03 e 11.645/08 nem os conteúdos por elas postulados são citados pela coleção.
Também não encontramos nenhum objetivo que se mostrasse mais inclinado à promoção de
atitudes concernentes a uma educação para a cidadania; embora muitos interessantes e,
evidentemente, necessárias, as capacidades e habilidades listadas por VM10 parecem alinhar-
se, de modo geral, a objetivos mais técnicos (ou seja, sem relação com o combate de
preconceitos e estereótipos nem com a percepção do viés ideológico dos textos lidos etc.).
Ainda que o cânone não seja exaltado, fazem-se ressalvas do tipo “não necessariamente os
textos supostamente mais interessantes para os alunos permitem as aprendizagens mais
significativas ou as melhores leituras” (ABREU-TARDELLI; ODA; CAMPOS; TOLEDO,
2013 [Vol. 3 – Apêndice: “Manual do Professor”], p. 406), e “merece uma reflexão mais
apurada, por parte do professor a escolha de textos considerados ‘mais fáceis’ para a leitura
327

dos alunos, sob o risco de excluí-los do contato com textos de maior qualidade literária”
(ibid., p. 408).
Por fim, é perceptível na análise da microestrutura de VM10 que seus paratextos
exercem um relevante papel informativo e/ou complementar. No eixo literário, ganha
destaque no decorrer do nosso estudo o Box “+Mais”, que busca “ampliar a exploração de
alguns conteúdos relacionados com o período estudado” (ibid., p. 422).

MICROESTRUTURA DA COLEÇÃO VM10

Revisitando o cânone: Quinhentismo e Romantismo (Indianismo e Condoreirismo) em


VM10

Na abordagem do Quinhentismo em VM 10 (Unidade 4 – “As origens da literatura


brasileira”, capítulos 6 e 7), observam-se, como em toda a coleção, muitos elementos
iconográficos (com o predomínio de representações de pinturas) e muitas informações
históricas (com certa ênfase, neste caso, no projeto europeu de expansão marítima).
Admitindo a literatura como um discurso, a coleção buscar esclarecer pontos sobre o contexto
de produção e recepção das narrativas do Descobrimento: ressalta-se, assim, sua finalidade
primeira de “prestar contas” a Portugal sobre as viagens exploratórias; o tom de “aventura” e
de “exotismo” consequente da visão eurocêntrica desses relatos; a necessidade de se justificar
a dominação dos povos nativos, entre outros aspectos. Especificamente sobre Caminha,
VM10 registra-se que há uma “combinação entre a objetividade característica do texto de
informação e a subjetividade”, isto é “se na forma ele persegue a fidelidade, no conteúdo
avalia, opina” (ABREU-TARDELLI; ODA; CAMPOS; TOLEDO, 2013 [Vol. 1], p. 112).
Sobre os escritos de Gândavo, por sua vez, chama-se a atenção para o fato de tais narrativas
refletirem/ serem influenciadas “por dois aspectos de seu tempo”: “o etnocentrismo do
colonizador, que reduzia os costumes dos nativos a manifestações selvagens, e o humanismo
europeu, que buscava entender a realidade a partir de regras políticas, culturais, religiosas e
econômicas universais” (ibid., p. 113). Verifica-se, assim, que a coleção direciona os alunos a
uma leitura crítica desse repertório à medida que, repetidas vezes, recorda o papel
determinante do “olhar europeu” na forma pela qual esses acontecimentos foram narrados.
No que tange a exercícios mais inovadores e/ou significativos para se pensar, em
alguma medida, possibilidades e/ou impeditivos de uma abordagem pós-colonial desses textos
 desconsiderando, portanto, grande parte das atividades voltadas a aspectos intratextuais,
328

como interpretação de pontos basilares dos enredos ou identificação de elementos linguísticos


e estilísticos, etc., as quais, diga-se de passagem, são frequentes na coleção , destacamos
duas ocorrências, a começar por uma proposta de leitura comparada muito similar a que
vimos em PLC05, em que a tela Primeira missa do Brasil (1860), de Vítor Meirelles, é
comparada à obra homônima de Portinari, de 1948157. Enquanto PLC05 afirma ao professor
que, diferentemente de Meirelles, Portinari “nega a ‘romantização’ de harmonia entre
europeus e indígenas e retrata a cerimônia apenas com europeus” (grifo nosso) (SETTE;
TRAVALHA; BARROS, 2013 [Vol 1– Apêndice: “Assessoria Pedagógica”], p. 73), VM10
afirma que, opondo-se à disposição semicircular verificada na tela de Meirelles, “na tela de
Portinari, os indígenas encontram-se em segundo plano” (grifo nosso), o que pode ser
interpretado, segundo a coleção, como um indicativo de que “no processo de colonização,
eles são vistos como alheios pelos colonizadores” (ABREU-TARDELLI; ODA; CAMPOS;
TOLEDO, 2013 [Vol. 1 – Apêndice: “Manual do Professor”], p. 486). Reconhecida essa
discrepância quanto à presença secundária ou à ausência dos indígenas na segunda obra158,
entendemos que a ideia central de ambas as coleções acaba por ser a reflexão sobre a
pluralidade de visões, atrelada, a partir de Portinari, ao questionamento de uma pretensa
relação harmônica e igualitária por vezes sugerida pela “história oficial”. A nosso ver uma
análise textual alinhada com uma leitura crítica e reflexiva da colonização.
O segundo caso a ser mencionado refere-se a uma discussão acerca da forma como o
canibalismo praticado por alguns povos indígenas era descrito pelos viajantes portugueses.
Com base num fragmento do desbravador Gabriel Soares de Souza (“Capítulo XLV – Em que
se diz quem são os goitacases, sua vida e costumes”), apresenta-se uma questão precedida por
enquadrador extratextual que direciona os alunos a uma leitura atenta às influências do
Humanismo no olhar do europeu:

1. A visão do indígena como um devorador de carne humana aparece de


forma reiterada nos textos dos viajantes. Tendo como contexto o
Humanismo renascentista em que as descobertas ocorreram, qual o choque
entre os atos de canibalismo atribuídos aos indígenas e a mentalidade
europeia desse período? (ABREU-TARDELLI; ODA; CAMPOS; TOLEDO,
157
Conforme registrado anteriormente, as duas telas são facilmente encontradas na internet.
158
Na descrição do quadro feita pelo “Projeto Portinari”, não há menção à presença de indígenas na tela; os
personagens identificados são descritos como sendo soldados, religiosos ou figuras histórias. Descrição
disponível em:<http://www.portinari.org.br/#/acervo/obra/1706/detalhes>. Acesso em 07/02/2019. Ao encontro
desse detalhamento, também não encontramos na tela nenhum elemento que permita reconhecer, com precisão,
indígenas na cena retratada pelo artista brasileiro.
329

2013 [Vol. 1], p. 109). [Resposta: O ritual antropofágico de devorar a carne


humana choca-se tanto com os princípios da valorização humanista do
indivíduo como o centro da reflexão humana quanto com os preceitos
cristãos]. (ABREU-TARDELLI; ODA; CAMPOS; TOLEDO, 2013 [Vol. 1
– Apêndice: “Manual do Professor”], p. 486).

No desenrolar de nossa análise, temos apontado como produtiva a reiteração, nos


livros didáticos, de que os discursos dos portugueses, tal qual qualquer discurso, são
historicamente situados e, assim, refletem uma visão de mundo específica. Em VM10, não
apenas o exercício supracitado, como também uma das instruções gerais dada ao docente  a
saber, lançar a seguinte questão aos alunos: “que marcas do pensamento medieval e do
humanismo renascentista são perceptíveis no projeto colonizador europeu?” (ABREU-
TARDELLI; ODA; CAMPOS; TOLEDO, 2013 [Vol. 1 – Apêndice: “Manual do Professor”],
p. 443) , dialogam com essa premissa por nós defendida. Nesse sentido, a única ressalva
que consideramos pertinente ao exercício supracitado refere-se ao gabarito da atividade, que,
a exemplo da deficiência que notamos também em outras atividades de VM10, poderia ter
deixado mais explícito e marcado esse viés de mediação de leitura, ao explicar, por exemplo,
quais eram, afinal, os significados dos rituais antropofágicos para os indígenas, não no sentido
de justificar a prática, mas de compreender seu valor cultural. Vimos em outros livros do
nosso corpus  em especial, em LPLI04, que disponibiliza ao docente o texto “O sabor da
própria carne”, Ricardo Arnt, por exemplo  algumas propostas mais aprofundadas que, mais
que esmiuçar as nuances do olhar do europeu (o que é, evidentemente, necessário), se voltam,
também, ao entendimento dos contornos da perspectiva indígena. Entendemos, portanto, que
caberia mais atenção aos enquadradores discursivos do Caderno do Aluno e/ou às instruções
didático-pedagógicas do Manual do Professor.
Por outro lado, para além das atividades de leitura, ganha certo protagonismo em
VM10 a função de seus paratextos, sobretudo do Box “+ Mais”, responsável por fornecer
informações complementares sobre as temáticas de cada capítulo. Tem-se, por exemplo, um
Box que define e reforça o “etnocentrismo” presente na “literatura de informação” (ABREU-
TARDELLI; ODA; CAMPOS; TOLEDO, 2013 [Vol. 1], p. 113), e outro a respeito dos
conflitos entre Estado e Religião envolvendo a escravização indígena almejada pelos
portugueses (ibid., p. 114), sendo ambos os Boxes acompanhados de obras artísticas
ilustrativas das discussões. Concernente ao papel da iconografia na coleção, vê-se, ainda, no
Box “Vozes em rede”, a imagem do grafite “Chicará de chá”, de Francisco Rodrigues, artista
330

autodenominado NUNCA, que, segundo a coleção, apresenta “vozes da cultura indígena


latino-americana em diálogo com a modernidade” (ABREU-TARDELLI; ODA; CAMPOS;
TOLEDO, 2013 [Vol. 1], p. 108). De acordo com VM10, a suposta integração do indígena à
cultura civilizada retratada na imagem (por meio do uso da xícara) “é questionada pela mão
cortada que a personagem pisa, que remete às gravuras que retratavam os indígenas na época
do Descobrimento do Brasil” (ibidem).

“Chicará de chá”, de Francisco Rodrigues – fachada museu Tate Modern (Londre, Inglaterra). ”
(ABREU-TARDELLI; ODA; CAMPOS; TOLEDO, 2013 [Vol. 1], p.
108)159.

Finalmente, também ganham destaque as sugestões de atividade suplementar do


Manual do Professor: assistir a um dos filmes mencionados no texto “A imagem do índio no
cinema brasileiro”, de Edgar Teodoro Cunha, e, em seguida, realizar um debate sobre o modo
pelo qual o indígena é retratado na produção escolhida; pesquisar e expor oralmente dados
relativos a documentos e a mapas do período colonial (com base, inicialmente, no acervo
online da biblioteca “Brasiliana”) (ABREU-TARDELLI; ODA; CAMPOS; TOLEDO, 2013

159
No Volume 3, na abertura do capítulo “Argumentar”, pertencente ao eixo de produção escrita, VM10 traz
outro grafite de representação contemporânea do indígena (entre a tradição e a modernidade), assinado, desta
vez, pelo artista Crânio (ABREU-TARDELLI; ODA; CAMPOS; TOLEDO, 2013 [Vol. 3], p. 365). Na imagem,
um indígena encontra-se em frente a uma placa que aponta três direções distintas para se chegar à Amazônia.
Imagem disponível em (na ordem, a sétima imagem disponibilizada pela site - indo da esquerda para a direita, de
cima para baixo): <http://www.merije.com.br/blog/diario/brasil-street-art-cranio-1/>. Acesso em 10/02/2019.
331

[Vol. 1 – Apêndice: “Manual do Professor”], pp. 444-445)160. Tanto os Boxes quanto os


conteúdos complementares, em especial a atividade sobre a figura do indígena na produção
audiovisual brasileira, são por nós interpretados como positivos a uma leitura crítico-reflexivo
das narrativas quinhentistas161 e contemporâneas sobre a colonização e sobre os povos
indígenas.
“Romantismo”, por sua vez, é a unidade de abertura do segundo volume de VM10,
estando subdivida em dez capítulos. Seguindo o padrão da coleção, o estudo de Indianismo e
do Condoreirismo contam com muitas informações históricas sobre a construção do
sentimento de nacionalismo, de um lado, e a consolidação e os desdobramentos da escravidão
no Brasil, de outro. Assim como em outras coleções, esclarece-se no Caderno do Aluno que,
sob influência do mito do “bom selvagem” (de Rousseau) (ABREU-TARDELLI; ODA;
CAMPOS; TOLEDO, 2013 [Vol. 2], p. 41), “o indígena representado nos romances não
correspondia às figuras reais. Suas qualidades morais apenas repetiam aquilo que se via nos
cavaleiros dos romances medievais”162 (ibid., p. 37). De fato, encontramos alguns exercícios
de leitura que parecem dialogam com esses fundamentos:

[Sobre Iracema (1865), de José de Alencar]


[...] 1. c) As qualidades atribuídas a Iracema relacionam-se com os sentidos
do paladar, da visão e do olfato. Por que é feita essa associação? Para
responder, releia o conceito de bom selvagem desenvolvido pelo filósofo
Jean-Jacques Rousseau.

2. A descrição do guerreiro estranho que contempla a jovem Iracema banhar-


se apresenta uma comparação que antecipa sua origem ao leitor.
a) Que origem é essa?

160
Entre o repertório de leitura extra disponibilizado ao docente, tem-se, por sua vez, fragmentos dos textos “O
percurso da indianidade na literatura brasileira”, de Luzia Aparecida Santos, sobre as diferenças das
representações do indígena feitas por Caminha e por José de Alencar (ABREU-TARDELLI; ODA; CAMPOS;
TOLEDO, 2013 [Vol. – Apêndice: “Manual do Professor”], p. 443), e de “O Brasil e seus nomes”, de José
Murilo de Carvalho, acerca do “ambiente encontrado pelos primeiros cronistas que escreveram sobre o Brasil”
(ibid., p. 444).
161
Algumas narrativas e obras artísticas quinhentistas são recuperadas pela coleção no capítulo “Relatar”, que
integra o eixo de produção de texto do segundo volume (ABREU-TARDELLI; ODA; CAMPOS; TOLEDO,
2013 [Vol. 2] p. 419). A elas somam-se alguns relatos pessoais de viagem a países africanos.
162
Além disso, na introdução do Condoreirismo, no contexto de justificação da mudança de foco dos escritos
românticos, informa-se que “uma polêmica em torno de José de Alencar ilustra os novos rumos que a produção
artística e literária iria tomar. Em 1871, o escritor regionalista Franklin Távora começa a questionar o excesso de
idealismo das obras de Alencar. Sua alegação era a de que o pouco contato do escritor com as várias realidades
que mostrava em seus romances resultava em retratos que ignoravam uma nova sociedade brasileira em
formação. Para Távora, Alencar escrevia sobre um mundo que não conhecia, pois era um homem de gabinete.”
(ABREU-TARDELLI; ODA; CAMPOS; TOLEDO, 2013 [Vol. 2], p. 92).
332

b) A aparição do guerreira “quebra a doce harmonia da sesta”. É possível


apontar uma relação entre esse fato e o Descobrimento do Brasil?
(ABREU-TARDELLI; ODA; CAMPOS; TOLEDO, 2013 [Vol. 2], p. 42).

5. “O sentimento que ele pôs nos olhos e no rosto, não o sei eu. Porém a
virgem lançou de si o arco e a uiraçaba, e correu para o guerreiro, sentida da
mágoa que causara. A mão que rápida ferira, estancou mais rápida e
compassiva o sangue que goteja. Depois Iracema quebrou a flecha homicida:
deu a haste ao desconhecido, guardando consigo a ponta farpada.”
Há nesse trecho um traço de idealização da figura indígena. Qual é ele?
(ABREU-TARDELLI; ODA; CAMPOS; TOLEDO, 2013 [Vol. 2], p. 46).163

É certo, pois, que a idealização dos indígenas é um aspecto questionado por VM10.
Entretanto, não se nota, de modo geral, propostas muito inovadoras na coleção, que visem,
por exemplo, atualizar a discussão sobre a representação/a representatividade dos povos
indígenas no Brasil. Em meio a extensos enquadradores discursivos e à variedade de
elementos iconográficos usualmente presentes nesta coleção, bem como ao predomínio de
atividades interpretativas mais basilares sobre a obra de José de Alencar e de Gonçalves Dias,
VM10 opta por explorar, por exemplo, o “falar sobre o índio” também em produções literárias
de outros períodos, a partir da seção de encerramento “vozes em rede”, em que são expostos e
comentados, para a promoção de um exercício de leitura comparada, fragmentos literários de
três obras: de O Uraguai (1769), de Basílio da Gama; Maíra (1976), de Darcy Ribeiro; Nove
noites (2002), de Bernardo Carvalho (ABREU-TARDELLI; ODA; CAMPOS; TOLEDO,
2013 [Vol. 2], pp. 80-81). Concluímos, assim, que predomina no livro um enfoque no “falar
sobre”, sem espaço, ainda, à voz/ à autoria do indígena na contemporaneidade. Ademais,
considerando que as sugestões complementares do Manual do Professor centram-se em um
aprofundamento do estudo do Romantismo enquanto escola literária, isto é, no estudo
conceitual de seus fundamentos e de suas características dominantes e comuns, entendemos
que VM10 vale-se pouco do Indianismo extrapolar o cânone, ainda que, cabe reforçar,
existam atividades crítico-reflexivas nos referidos capítulos.
A despeito do rico embasamento histórico sobre a escravidão e sobre seus reflexos
na/para a arte, o trabalho em torno do Condoreirismo segue, em certa medida, o mesmo
padrão, salvo ocorrências pontuais de atualização do debate sobre o legado colonial, a
começar pelo Box “Vozes em rede” acerca do tema “Trabalho escravo ontem e hoje”. Nele,

163
O nosso exemplar do Volume 2 de VM10 contém um defeito de fabricação, de modo que não temos acesso às
páginas 49 a 80 do Manual do Professor. Por essa razão, não registramos as expectativa de respostas
concernentes a essas atividades.
333

contrapõe-se o quadro Escravos sendo açoitados durante a Guerra do Paraguai (1886), de


Ângelo Agostini, a uma charge de Angeli, também sobre trabalho escravo:

[...]
2. As duas imagens mostram uma realidade que persiste desde os tempos
coloniais. Qual é essa realidade? (ABREU-TARDELLI; ODA; CAMPOS;
TOLEDO, 2013 [Vol. 2], p. 93). [Resposta: Permanece a condição de
mando e violência dos senhores de terras oprimindo aqueles que ali
trabalham]. (ABREU-TARDELLI; ODA; CAMPOS; TOLEDO, 2013 [Vol.
2 – Apêndice: “Manual do Professor”], p. 82).

Tanto neste quanto no segundo exercício (transcrito a seguir), que consideramos


igual e potencialmente produtivo a uma (re) leitura mais aprofundada e/ou atualizada do
cânone, observamos pouco detalhamento nas orientações dadas aos docentes. Em comum, as
duas atividades configuram-se, portanto, propostas interessantes, mas com expectativas de
resposta superficiais. Segue o segundo caso por nós destacado, em que há o intuito de se
refletir sobre os laços estabelecidos entre literatura e política, mas cujo gabarito acaba por
sugerir uma resposta muito limitada ao teor do próprio enquadrador discursivo da questão:

6. Leia um trecho do artigo do escritor Hélio Pólvora sobre Castro Alves.


[...]164
Como vimos neste capítulo, a poesia romântica social no Brasil relaciona-se
com os interesses de grupos ligados ao pensamento liberal. Considere o
fragmento do texto de Hélio Pólvora e reponda: além do tema - os horrores
da escravidão -, o poema de Castro Alves é escrito de modo a envolver a
audiência em um “discurso que se dirige mais ao ouvido”. Que relação há
entre essa forma de escrita e causa liberal? (ABREU-TARDELLI; ODA;
CAMPOS; TOLEDO, 2013 [Vol. 2], p. 97). [Resposta: Como explica Hélio
Pólvora, o comprometimento com uma audiência - “discurso que se dirige

164
Texto disponível em: <http://www.jornaldepoesia.jor.br/polvra01.html>. Acesso em: 10/02/2019.
334

mais ao ouvido” - faz parte do ideário da poesia romântica social que


deseja convencer seu leitor/ouvinte a participar da causa liberal que
apresenta, ou seja, a libertação dos escravos.]. (ABREU-TARDELLI;
ODA; CAMPOS; TOLEDO, 2013 [Vol. 2 – Apêndice: “Manual do
Professor”], p. 82).

Por fim, em consonância com a seção de fechamento do Indianismo, em que é


desenvolvida uma leitura comparada de textos que tematizam o indígena, tem-se no
encerramento do estudo do Condoreirismo a contraposição de fragmentos ilustrativos da
função social da literatura (ABREU-TARDELLI; ODA; CAMPOS; TOLEDO, 2013 [Vol. 2],
pp. 98-99). Embora VM10 não vise debater a produção afro-brasileira, a letra da canção
“Negro drama”, dos Racionais MC’s, integra o repertório da atividade, conjuntamente com
“Poema brasileiro”, de Ferreira Gullar, e “Define o poeta os maus modos de obrar na
governança da Bahia, principalmente naquela universal fome que padecia a cidade”, de
Gregório de Matos. Sobre o primeiro, tece-se o seguinte comentário: “Em ‘Negro Drama’
ocorre uma espécie de atualização da condição da vida da população negra que em muito
lembra a poesia condoreira de Castro Alves, com um acréscimo: a inserção da figura do
bacana, sujeito rico que se contrapõe aos negros pobres da periferia” (ABREU-TARDELLI;
ODA; CAMPOS; TOLEDO, 2013 [Vol. 2], p. 99). Ademais, a temática da afro-descendência
faz-se presente também em uma das questões de Exames Vestibulares de consolidação dos
conteúdos da Unidade do Romantismo. Retirada do processo seletivo da Universidade Federal
da Bahia (UFBA), a questão propõe a comparação de duas produções: de um fragmento de As
vítimas algozes: quadros da escravidão (1869), de Joaquim Manual de Macedo, à transcrição
de um pequeno diálogo do filme Cidade de Deus (2002). A partir deles, solicita-se: “Os
fragmentos transcritos dizem respeito à visão ficcional da existência de afrodescendentes no
Brasil, em momentos históricos distintos. Teça um comentário sobre as representações do
negro brasileiro de ontem e de hoje [...]” (ibid., p. 111). Trata-se, pois, de mais um exemplo
que ilustra o enfoque dado, por VM10, ao “falar sobre”, um recorte necessário e importante,
mas não o único possível ao estudo do Romantismo, como vimos em outras coleções.

Reestruturando o cânone I: literaturas africanas e literatura negra/afro-brasileira em


VM10

A literatura negra/afro-brasileira não é substancialmente recordada por VM10, mas


encontramos uma ocorrência bastante inovadora na abertura da Unidade “Narrar”, do eixo de
produção de texto do Volume 2. Para aproximar os alunos do tipo textual narrativo, bem
335

como das especificidades das histórias em quadrinhos, apresenta-se uma sequência de


quadrinhos do artista afrodescendente Marcelo D’Salete (ABREU-TARDELLI; ODA;
CAMPOS; TOLEDO, 2013 [Vol. 2], p. 411).

(ABREU-TARDELLI; ODA; CAMPOS; TOLEDO, 2013 [Vol. 2], p. 411).

Julgamos relevante esse conteúdo uma vez que o gênero “histórias em quadrinhos”
costuma ocupar um lugar privilegiado em diferentes eixos dos livros didáticos de Língua
Portuguesa, razão pela qual se mostra necessário dar atenção, também, à descolonização desse
repertório. Entendemos, assim, que a inserção de quadrinistas negros em materiais didáticos
deve fazer parte dos caminhos de implementação da lei 10.639/03. Por outro lado,
recuperamos um ponto que tem sido constante em nossa análise: os efeitos, no que tange aos
pressupostos da lei, do uso de produções de artistas e de escritores negros apenas como
pretexto para o trabalho com determinado tipo/gênero textual e/ou com aspectos linguísticos
 no caso supracitado, exploram-se, sobretudo, os “recursos” empregados por D’Salete em
sua obra, os sentidos de determinados quadrinhos etc. , uso este totalmente desvinculado de
uma introdução da produção afro-brasileira. A mesma indagação é pertinente à introdução do
poema “Adonde”, do escritor negro e periférico Fuzzil, no estudo sobre variação linguística
(ABREU-TARDELLI; ODA; CAMPOS; TOLEDO, 2013 [Vol. 1], p. 200): de um lado, vê-se
que VM10 elenca questões que buscam conduzir os alunos a uma leitura crítico-reflexiva da
“linguagem informal” presente no poema, porém, de outro, continua sendo baixo o trabalho
336

com esses textos no eixo de literatura. Dessarte, assim como em outras coleções, o único
excerto literário escrito por um autor negro e trabalhado no eixo literário de VM10
corresponde a um trecho de Cidade de Deus (1997), de Paulo Lins, que é lido
comparativamente a fragmentos de Inocência (1872), de Visconde de Taunay, e de A
bagaceira (1928), de José Américo de Almeida, aos quais é identificado como ponto comum
o retrato das diferentes naturezas e realidades locais do país, em diferentes épocas (ABREU-
TARDELLI; ODA; CAMPOS; TOLEDO, 2013 [Vol. 3], pp. 125-126). Percebe-se que a
coleção investe em análises comparativas, mas tendo como norte a dimensão temporal dos
textos comparados, e não a questão da interculturalidade, ou seja, da pluralidade de perfis de
escritores e de temáticas.
Abordadas com mais atenção, as literaturas de matriz africana são trabalhadas em
uma unidade específica do terceiro volume (Unidade 6 – “Literaturas africanas em língua
portuguesa”), totalizando dois capítulos: “Capítulo 18: identidade e afirmação cultural” e
“Capítulo 19: Prosa e poesia africana em língua portuguesa”. A exemplo da recorrência de
análises de imagens que caracteriza VM10, a unidade é aberta com uma imagem da tela Final
judgement (1961)165, do moçambicano Malangatana Valente Ngwenya, a qual é
acompanhada, por sua vez, de uma breve apresentação da biografia do artista. Segundo a
coleção, “sua vida e obra representam bem todo histórico de luta e resistência que dominou
grande parte dos países africanos durante o século XX” (ABREU-TARDELLI; ODA;
CAMPOS; TOLEDO, 2013 [Vol. 3], p. 199). Transcrevemos as questões lançadas, tendo em
vista se tratar da atividade de abertura da unidade, ou seja, das primeiras reflexões colocadas
aos alunos:

1. As imagens da tela parecem se amontoar sem uma lógica definida. As


referências mitológicas (figuras de seres imaginários e bestializados, por
exemplo) são colocadas em um mesmo plano que as figuras de mortos (os
esqueletos e um homem morto que está na base da tela) e a representação de
um sacerdote cristão derramando lágrimas de sangue. O que sugere essa
sobreposição de referências culturais tão diversas? (ABREU-TARDELLI;
ODA; CAMPOS; TOLEDO, 2013 [Vol. 3], p. 199). [Resposta: Sugere que a
cultura dos povos africanos é resultado do acúmulo de todas as
representações culturais envolvidas durante o processo de colonização do
continente.]. (ABREU-TARDELLI; ODA; CAMPOS; TOLEDO, 2013 [Vol.
3 – Apêndice: “Manual do Professor”], p. 491).

165
Imagem disponível em: <http://casacomum.org/cc/visualizador?pasta=07210.346.000>. Acesso em
13/02/2019.
337

2. Em boa parte da tela, há imagens de sangue escorrendo. De que forma


essa referência ao sangue diz respeito ao processo de colonização da África?
(ABREU-TARDELLI; ODA; CAMPOS; TOLEDO, 2013 [Vol. 3], p. 199).
[Resposta: A associação entre o sangue sugerido na tela e o processo de
colonização da África indica a violência das ações dos colonizadores.].
(ABREU-TARDELLI; ODA; CAMPOS; TOLEDO, 2013 [Vol. 3 –
Apêndice: “Manual do Professor”], p. 491).
3. Na tela estão representados elementos religiosos da cultura do colonizador
português e de um misticismo próprio da cultura africana original, em que se
combinam deuses, homens e seres da natureza. identifique alguns deles.
(ABREU-TARDELLI; ODA; CAMPOS; TOLEDO, 2013 [Vol. 3], p. 199).
[Resposta: Elementos de natureza humana e de natureza animal, como
homens e mulheres às vezes deformados, cabeças, esqueletos; a imagem da
cruz cristã na capa de um livro (possivelmente a Bíblia) e como pingente de
um colar em torno do pescoço de um religioso.]. (ABREU-TARDELLI;
ODA; CAMPOS; TOLEDO, 2013 [Vol. 3 – Apêndice: “Manual do
Professor”], p. 491).

Essas primeiras chaves de leitura indicam que VM10 inclina-se a uma ênfase no
passado e na violência colonial. Contudo, no desenrolar da unidade, notamos que esta não se
configura a única perspectiva de leitura proposta pela coleção. Se autores reconhecidos por
sua escrita de viés político, como José Craveirinha, não escapam de exercícios que explorem
esse aspecto, o mesmo não ocorre em relação a Mia Couto, por exemplo, cujo romance Um
rio chamado tempo, uma casa chamada terra (2002) dá margem, em VM10, a questões
voltadas estritamente à interpretação de partes e do todo da narrativa (ABREU-TARDELLI;
ODA; CAMPOS; TOLEDO, 2013 [Vol. 3], p. 201), sem se estabelecerem ganchos com
aspectos políticos ou históricos, sejam eles de Moçambique ou do continente africano.
Também As mulheres de meu pai (2007), do angolano José Eduardo Agualusa, segue esse
padrão, com exceção de uma pergunta que solicita uma comparação entre as mudanças
sofridas pelas personagens femininas e as mudanças vivenciadas “na sociedade de países
africanos como Angola” (ibid., p. 213), para a qual, cabe registrar, é fornecido um gabarito
pouco detalhado/aprofundado:

5. A diferença entre Pitanga e sua mãe é bastante destacada por Laurentina: a


primeira é caracterizada como “robusta” e apresentada a partir de seu
currículo, de suas conquistas como economista, empresária e política; a
segunda é uma figura tipicamente frágil, que pouco fala e a nada se impõe.
Que relação é possível estabelecer entre essa mudança do modo de ser da
mulher e as mudanças na sociedade de países africanos como Angola?
(ABREU-TARDELLI; ODA; CAMPOS; TOLEDO, 2013 [Vol. 3], p. 213).
[Resposta: A mudança da figura feminina pode indicar alterações profundas
que ocorrem em algumas sociedades consideradas desiguais até bem pouco
338

tempo. O que de fato deve chamar a atenção é a coexistência, ainda nos dias
de hoje, desses dois tipos de mulher: a submissa e a que busca sua
emancipação.]. (ABREU-TARDELLI; ODA; CAMPOS; TOLEDO, 2013
[Vol. 3 – Apêndice: “Manual do Professor”], p. 491).

A nosso ver, a expectativa de resposta que consta no Manual do Professor não


cumpre a finalidade de firmar um vínculo/um paralelo com o contexto angolano, pois tece de
forma superficial uma relação entre a desigualdade e o papel social da mulher. Não se trata,
no entanto, de uma ocorrência isolada, pois, em linhas gerais, percebemos que as respostas e
orientações de VM10 revelam-se pouco detalhadas e aprofundadas se comparadas às de
outras coleções por nós analisadas. Nesse sentido, contrariamente ao que se propõe, a
atividade pode não vir a promover, de fato, a recuperação de aspectos socio-históricos dos
países africanos de língua portuguesa. Na abordagem dos poemas de Craveirinha, que citamos
anteriormente, os respectivos gabaritos parecem-nos mais consistentes. A título de
contraposição, transcrevemos dois exemplos:

[Sobre o poema “Teias da memória”, de José Craveirinha]


4. Partindo do pressuposto de que o poema foi escrito em um contexto
político conturbado, em que as prisões e a prática da tortura eram frequentes,
a que situação histórica podem ser relacionados termos como mutismo,
solidão e sussurros? (ABREU-TARDELLI; ODA; CAMPOS; TOLEDO,
2013 [Vol. 3], p. 206). [Resposta: Essas três palavras podem significar as
atitudes e o sentimento de um opositor ao regime colonialista ao encontrar-
se preso em uma cela]. (ABREU-TARDELLI; ODA; CAMPOS; TOLEDO,
2013 [Vol. 3 – Apêndice: “Manual do Professor”], p. 491).

[Sobre o poema “Poema do futuro cidadão”, de José Craveirinha]


4. A terceira estrofe manifesta o caráter político e coletivo da poesia de
Craveirinha. Que elementos presentes no poema comprovam essa
afirmação? (ABREU-TARDELLI; ODA; CAMPOS; TOLEDO, 2013 [Vol.
3], p. 217). [Resposta: O eu do poema reconhece que ainda não tem um país
porque a identidade nacional está em formação e anuncia que traz no
coração outras vozes que se somam à sua para construir esse país. Ou seja,
não é um clamor solitário: a voz que surge no poema é o resultado de outras
tantas vozes que almejam a construção de uma nação, em um projeto
coletivo e utópico.]. (ABREU-TARDELLI; ODA; CAMPOS; TOLEDO,
2013 [Vol. 3 – Apêndice: “Manual do Professor”], p. 492).

A convergência entre literatura e história nas produções africanas é igualmente


recordada na análise textual do poema “Antidelação”, do guineense Vasco Cabral, o qual é
comparado, por meio de uma atividade, ao desenho O prisioneiro (1969)166, de Malangatana

166
Imagem disponível em: <http://casacomum.org/cc/visualizador?pasta=07210.346.000>. Acesso em:
13/02/2019.
339

Valente Ngwenya. Novamente, porém, observamos que a superficialidade do gabarito


enfraquece o potencial crítico-reflexivo do exercício:

3. Este desenho é de Malangatana Valente. Refere-se à prisão política de


ativistas pró-independência de Moçambique. Que relação é possível
estabelecer entre o desenho e o poema? (ABREU-TARDELLI; ODA;
CAMPOS; TOLEDO, 2013 [Vol. 3], p. 205). [Resposta: Possibilidade:
poema e imagem tratam do mesmo tema: a vida na prisão]. (ABREU-
TARDELLI; ODA; CAMPOS; TOLEDO, 2013 [Vol. 3 – Apêndice:
“Manual do Professor”], p. 491).

A despeito do fato de a atividade contar com um enquadrador discursivo


extratextual que convida os alunos a pensarem essas obras à luz das lutas por independência,
a expectativa de resposta mostra-se bastante limitante ao não fornecer nenhuma instrução
quanto às similaridades e/ou discrepâncias estabelecidas entre as lutas guineenses e
moçambicanas, por exemplo. Na parte de “orientações específicas”, por sua vez, há a
indicação para que o professor exponha previamente “a situação de enfrentamento político
que vigorava nos países africanos no período em que lutavam pela Independência de
Portugal” (ABREU-TARDELLI; ODA; CAMPOS; TOLEDO, 2013 [Vol. 3 – Apêndice:
“Manual do Professor”], p. 457); contudo, o texto de apoio fornecido ao docente, apesar de
muito interessante, trata da literatura de resistência em Angola, e não precisamente em Guiné
ou Moçambique, países dos autores em estudo.
Em consequência de tais quebras coesivas e lacunas, consideramos que, concernente
ao Caderno do Aluno, as diversas informações introdutórias dispersas no capítulo que abre a
unidade, o capítulo 18, acabam por ser subaproveitadas. Em síntese, a unidade busca
contextualizar as literaturas africanas no capítulo 18 e explorar alguns de seus autores
representativos no capítulo 19. No primeiro caso, para além de análises textuais de
aproximação ao repertório, verificam-se, sobretudo em paratextos, informações históricas
sobre os países africanos de língua portuguesa (envolvendo as guerras de libertação, as fases
do colonialismo etc.), e a menção, mesmo que pouco aprofundada, ao papel e à influência da
religião, da língua e colonialismo nesses escritos. Outrossim, dialogando com a breve
historiografia literária apresentada também por outros livros didáticos do nosso corpus, VM10
lista quatro fases que traduziriam a relação entre literatura e política: a fase de assimilação
(“imitação de escritores europeus”); de resistência (escritor “como defensor de sua cultura”);
de afirmação (após a Independência o escritor “procura definir seu lugar na sociedade pós-
colonial”); fase atual (“escritores passam a se preocupar em conquistar um espaço na
340

literatura local e global”) (ABREU-TARDELLI; ODA; CAMPOS; TOLEDO, 2013 [Vol. 3],
p. 203). Com base nessa gama de conteúdos e de informações, identificamos, portanto, uma
quebra coesiva entre os textos de subsídio e de fundamentação que integram o Caderno do
Aluno e a superficialidade que caracteriza parte do gabarito das análises propostas.
O capítulo 19, como dissemos, dedica-se à leitura de excertos representativos da
prosa e da poesia de matriz africana, tendo em vista que o estudo dessas produções permite
“compreender parte de nossa própria cultura e o alcance de referências comuns entre Brasil e
África” (ABREU-TARDELLI; ODA; CAMPOS; TOLEDO, 2013 [Vol. 3], p. 207). Embora o
diálogo histórico e literário entre Brasil e África lusófona seja repetidas vezes reiterado pela
coleção  ressaltam-se não apenas os pontos de contato entre a formação de seus sistemas
literários, mas também a influência de autores modernistas brasileiros na escrita de autores
africanos (ibid., p. 200; p. 208), ou, ainda, a importância da obra de Jorge Amado em África,
segundo declarações feitas por Mia Couto (ibid., p. 208) , é necessário frisar que essa
informação não se concretiza, no Caderno do Aluno, em atividades de leitura comparada.
Apenas no apêndice do Manual do Professor, na parte de sugestões complementares e
interdisciplinares, sugere-se um levantamento, com posterior socialização de resultados, a
respeito das “relações culturais estabelecidas entre Brasil e esses países em outros campos do
saber” (ABREU-TARDELLI; ODA; CAMPOS; TOLEDO, 2013 [Vol. 3 – Apêndice:
“Manual do Professor”], p. 459)167. Para tanto, propõe-se que os alunos sejam divididos em
grupos focados, inicialmente, na história e na literatura de Angola, de Moçambique ou de
Cabo Verde168, para então selecionar escritores brasileiros que estabeleçam contato com os
autores africanos pesquisados, tendo como “tema central de aproximação a representação da
identidade do ser africano e do ser brasileiro” (ibidem)169. Entre as abordagens possíveis,
elenca-se a “recepção da literatura brasileira pelos escritores engajados na luta contra o

167
Além dessa atividade, há no Manual do Professor um exercício complementar de leitura comparada da letra
da canção “Guerreiro menino”, de Gonzaguinha, e o poema “Um homem nunca chora”, de José Craveirinha
(ABREU-TARDELLI; ODA; CAMPOS; TOLEDO, 2013 [Vol. 3 – Apêndice: “Manual do Professor”], p. 460).
Solicita-se, apenas, que os alunos apontem três semelhanças.
168
Para esta etapa, a coleção sugere Luandino Vieira, Pepetela e José Agualusa (para o grupo de Angola); Mia
Couto, José Craveirinha e Rui Knopli (para o grupo de Moçambique) e Eugénio Tavares, Germano Almeida e
Jorge Barbosa (para o grupo de Cabo Verde) (ABREU-TARDELLI; ODA; CAMPOS; TOLEDO, 2013 [Vol. 3 –
Apêndice: “Manual do Professor”], p. 459).
169
Os autores sugeridos para cada país são: Graciliano Ramos, Jorge Amado e Chico Buarque de Holanda (para
Angola); Guimarães Rosa e Carlos Drummond de Andrade (para Moçambique); Manuel Bandeira e Oswald de
Andrade (para Cabo Verde) (ABREU-TARDELLI; ODA; CAMPOS; TOLEDO, 2013 [Vol. 3 – Apêndice:
“Manual do Professor”], p. 459).
341

sistema de dominação” e/ou a “a produção literária africana contemporânea e sua recepção no


Brasil atual” (ABREU-TARDELLI; ODA; CAMPOS; TOLEDO, 2013 [Vol. 3 – Apêndice:
“Manual do Professor”], p. 460). Salvaguardada a inquestionável qualidade desse projeto no
que engloba a uma sólida introdução das literaturas africanas aos alunos, assinalamos
novamente, assim como também já o fizemos no contexto de análise de NP02 e de LPLI04,
outra ocorrência de quebra coesiva, desta vez devido ao fato de as premissas anunciadas no
Caderno do Aluno só serem consistentemente evocadas em atividades complementares e,
assim, restritas ao Manual do Professor.
De encontro, pois, à valoração do comparativismo abarcando Brasil e África,
preconizada no capítulo em questão, escritores africanos são discutidos individualmente no
Caderno do Aluno (a relação de todos os excertos deste e do outro capítulo encontra-se na
Tabela 14 [página 349]), estando a maioria dos fragmentos acompanhada de comentários
feitos pela própria coleção, e não por exercícios interpretativos  as produções acrescidas de
atividades são a de Agualusa e a de Craveirinha, por nós exemplificadas anteriormente. Para
cada autor, dá-se destaque a um aspecto, tais como a “polifonia” em Pepetela (ABREU-
TARDELLI; ODA; CAMPOS; TOLEDO, 2013 [Vol. 3], p. 210), “o choque entre tradição e
modernidade em Luandino Vieira” (ibid., p. 209), ou a “melancolia” e a “africanidade” em
Rui Knopfli (ibid., p. 216)170. Sobre este, a presente coleção repete uma abordagem que
consideramos bastante positiva em SPLP06: valer-se da “crise” identitária expressa no poema
“Naturalidade”, de Knopfli, para tratar da complexa questão do pertencimento e do
autorreconhecimento literário de autores africanos que transitam entre Portugal e África
(ABREU-TARDELLI; ODA; CAMPOS; TOLEDO, 2013 [Vol. 3], p. 217). Por fim, somam-
se a tal repertório de leitura muitas indicações de links com entrevistas, debates, recitação de
poemas e/ou palestras realizados com diferentes autores africanos.
Nossos últimos comentários acerca da Unidade “Literaturas africanas em língua
portuguesa” referem-se a um exercício baseado em trecho da obra crítica de Edward Said, em
que VM10 aciona grande parte dos textos lidos na unidade, e ao modo pelo qual Cabo Verde
comparece na coleção.

[Sobre o poema “Poema do futuro cidadão”, de José Craveirinha]

170
A apresentação de José Agualusa é a única que não conta com um excerto literário do autor; no lugar, tem-se
uma declaração do angolano acerca das culturas crioulas, aspecto que VM10 discute a partir de sua obra
(ABREU-TARDELLI; ODA; CAMPOS; TOLEDO, 2013 [Vol. 3], p. 211).
342

6. Leia o que diz o escritor indiano Edward Said ao analisar os modos como
a cultura contemporânea se forma.
[...] a invocação do passado constitui uma das estratégias mais comuns nas
interpretações do presente. O que inspira tais apelos não é apenas a
divergência quanto ao que ocorreu no passado e o que teria esse passado,
mas também a incerteza se o passado é de fato passado, morto e
enterrado, ou se persiste, mesmo que talvez de outras formas.
Apud SECCO, Carmen Lúcia Tindó. Travessias e rotas: das literaturas africanas de língua portuguesa
(das profecias libertárias Às distopias contemporâneas). Disponível em:
<http://leguaemeia.uefs.br?1/1_091_travessia.pdf>. Acesso em: 23 jan. 2013.

Tendo como base a leitura do “Poema do futuro cidadão” e a produção


literária de outros autores estudados neste capítulo, a relação entre o passado
e o presente (e, no caso do poema, o futuro também) mostra que o passado
de dominação colonial portuguesa pode ser morto e enterrado ou é algo que
persiste na cultura dos países africanos de língua portuguesa? Justifique sua
resposta. (ABREU-TARDELLI; ODA; CAMPOS; TOLEDO, 2013 [Vol. 3],
p. 217)171. [Resposta: Pode-se dizer que o passado das lutas pela libertação
não é eliminado da construção cultural do presente (ou do futuro) dos povos
africanos. Um dos grandes temas da literatura desses países ainda é o da
construção de suas identidades, processo que teve início antes mesmo de
deflagradas as guerras pela independência. Para que essas identidades
possam aflorar, a literatura (e a poesia, mais particularmente) ainda busca
pistas sobre os processos que, ao longo do tempo, se firmaram como
decisivos para a formação do homem africano e para a constituição das
nações que, no passado, foram colônias portuguesas.]. (ABREU-
TARDELLI; ODA; CAMPOS; TOLEDO, 2013 [Vol. 3 – Apêndice:
“Manual do Professor”], p. 492).

Destacamos essa proposta por duas razões: não é comum que grandes nomes dos
Estudos Pós-coloniais, como Edward Said, sejam debatidos ou apresentados aos alunos, e,
diferentemente de muitos dos gabaritos de VM10 que analisamos nesta subseção, a
expectativa de resposta mostra-se detalhada e à altura de um exercício de retomada de
conteúdos. Já sobre o estudo das produções cabo-verdianas, cabe registrar que nem Cabo
Verde nem São Tomé e Príncipe são trabalhados no Caderno do Aluno, mas que o primeiro é
discutido na parte de “sugestões complementares” do Manual do Professor. VM10 justifica a
ausência de autores desse país sob o argumento de que tal literatura “possui, em comparação
com outras produções escritas africanas de expressão portuguesa, aspectos bastante
singulares” (ABREU-TARDELLI; ODA; CAMPOS; TOLEDO, 2013 [Vol. 3 – Apêndice:
“Manual do Professor”], p. 458). A partir de explicações relacionadas à miséria sofrida no
pós-guerra e ao isolamento experimentado pelos habitantes do arquipélago, enfatiza-se o
papel das “metáforas marítimas” nessa literatura e propõe-se a leitura do poema “Poema”, de

171
Na coleção, Edward Said é apresentado como um “escritor indiano”, sendo que, na verdade, ele é palestino.
343

Arménio Vieira, seguida de questões que discutem, justamente, a figura da “ilha” nessa
narrativa (ibid., p. 459)172.
Finalmente, para além dos limites da unidade reservada exclusivamente às literaturas
africanas, localizamos um poema de Agostinho Neto (“A voz do sangue”) em um dos
capítulos de introdução do eixo literário (Capítulo 2 – “Um pacto com o leitor”), na condição
de texto ilustrativo dos vínculos entre “literatura e sociedade” e das “funções da literatura”
(ABREU-TARDELLI; ODA; CAMPOS; TOLEDO, 2013 [Vol. 1], p. 33). Destacado por seu
viés de denúncia e pela reflexão e pela emoção que o texto pode causar no leitor; com base
nele, afirma-se que “a literatura propõe ao leitor experimentar outras realidades e modos de
vida muitas vezes diferentes daqueles aos quais o leitor está habituado” (ibidem).
Considerando que o segundo autor a integrar esse conjunto de exemplos é William
Shakespeare, parece-nos que VM10 busca, na unidade de abertura, revisar o cânone literário,
ao apresentar lado a lado as literaturas de matriz europeia e africana. Outro dado importante é
a inserção de uma tela de Malangatana Valente Ngwenya, Perturbação na floresta (1987)173,
também nos capítulos em que se discute o que é literatura, a título de ilustração do debate
sobre a relação entre literatura e contexto (ABREU-TARDELLI; ODA; CAMPOS;
TOLEDO, 2013 [Vol. 1], p. 23). Reforçando nossa impressão inicial de que o trabalho com
imagens em VM10 é bastante vasto, o Manual do Professor lista nomes de outros artistas
plásticos africanos que podem ser introduzidos aos alunos em sala de aula, são eles: Fernando
Caterça Valentim e António Gonga (angolanos)  este que, inclusive ilustra a página 207
(Volume 3) da unidade sobre literaturas africanas174  e Roberto Chichorro (moçambicano)
(ABREU-TARDELLI; ODA; CAMPOS; TOLEDO, 2013 [Vol. 3 – Apêndice: “Manual do
Professor”], p. 457). Equacionando produções da literatura e das artes plásticas, é correto
concluir que VM10 conta com um dos mais variados repertórios de matriz africana do nosso

172
São também disponibilizadas, no apêndice do Manual do Professor, atividades complementares sobre uma
entrevista dada por Mia Couto, na qual o autor fala da literatura moçambicana, e sobre um excerto de Mayombe
(1979), de Pepetela, que é articulado a um fragmento de Antonio Candido acerca das relações entre literatura e
contexto social (ABREU-TARDELLI; ODA; CAMPOS; TOLEDO, 2013 [Vol. 3 – Apêndice: “Manual do
Professor”], pp. 460-461).
173
Imagem disponível em: <http://casacomum.org/cc/visualizador?pasta=07210.372.000>. Acesso em
13/02/2019.
174
Por se tratar de uma tela meramente ilustrativa, sem atividades, não comentamos em detalhes sua presença na
coleção. Trata-se da obra O arremesso, disponível em: <http://artafrica.letras.ulisboa.pt/en/artist/244.html>.
Acesso em: 13/02/2019.
344

corpus, muito embora sejam reincidentes textos de autoria de Mia Couto e de José
Craveirinha, ambos moçambicanos.

Reestruturando o cânone II: literaturas indígenas em VM10

Como vimos, há, em certa medida, questionamentos e reflexões acerca da


estereotipia (pelo Quinhentismo) e da idealização (pelo Romantismo) do indígena na
literatura brasileira, ainda que, por vezes, de forma superficial/ pouco aprofundada. Ademais,
encontramos um texto de autoria indígena do capítulo “Substantivo: referenciar”, do eixo
linguístico do Volume 2. Com base num fragmento do livro Crônicas de São Paulo (2004), de
Daniel Munduruku, são formuladas solicitações analíticas a respeito, fundamentalmente, dos
sentidos de determinadas palavras e das escolhas e dos jogos lexicais feitos pelo autor
(ABREU-TARDELLI; ODA; CAMPOS; TOLEDO, 2013 [Vol. 2], p. 260), ao encontro do
recorte do capítulo. Novamente, repetindo o que vimos em outros livros didáticos do nosso
corpus, a lei 11.645/2008 é atendida mais no eixo linguístico que no eixo literário.

A título de retomada e de síntese: VM10 e o repertório das leis 10.639/03 e 11.645/08


(produções de autoria indígena, negra/afrodescendente e/ou africana, para além do
cânone escolar).
VM10 REPERTÓRIO LOCALIZAÇÃO
Parte II – Língua, Unidade 1 –
Poema “Adonde”, de Fuzzil. “Trajetórias do discurso” (Capítulo
2: “A língua varia”).
Parte I – Literatura, Unidade 1 –
Tela Perturbação na floresta (1987), de “Arte e literatura: representações e
VOLUME
Malangatana Valente Ngwenya (Moçambique). realidade” (Capítulo 1: “Arte: o
1
jogo da representação”).
Parte I – Literatura, Unidade 1 –
Poema “A voz do sangue”, de Agostinho Neto “Arte e literatura: representações e
(Angola). realidade” (Capítulo 2: “Um pacto
com o leitor”).
Parte II – Língua, Unidade 2 –
Livro de crônicas Crônicas de São Paulo: um
“Expressões que nomeiam e
olhar indígena (2004), do escritor indígena
avaliam o mundo” (Capítulo 3:
VOLUME Daniela Munduruku.
“Substantivo: referenciar”).
2
Parte III – Produção de Texto,
Quadrinhos Grafitti – Noite Luz (2008), Marcelo
Unidade 1 – “Narrar” (Capítulo 1:
D’Salete.
“O texto dramático”).

Romance Cidade de Deus (1997), de Paulo Lins. Parte I – Literatura, Unidade 3 – “O


segundo tempo modernista”
VOLUME
(Capítulo 9: “A poesia da segunda
3 Letra da canção “Negro drama”, de Racionais
geração modernista”).
MC’s.
Tela Final judgement (1961), de Malangatana Parte I – Literatura, Unidade 6 –
Valente Ngwenya (Moçambique). “Literaturas africanas em língua
345

Romance Um rio chamado tempo, uma casa


chamada terra (2002), de Mia Couto
(Moçambique).
Desenho O prisioneiro (1969), de Malangatana
Valente Ngwenya (Moçambique).
Poema “Antidelação”, de Vasco Cabral (Guiné
Bissau).
Poema “Criar”, de Agostinho Neto (Angola).
Poema “Teias da memória”, de José Craveirinha
(Moçambique).
Tela O arremesso, de António Gomes – Gonga
(Angola).
Entrevista com Mia Couto (Moçambique).
Livro de Contos Luuanda (1963), de José
portuguesa” (Capítulos 18:
Luandino Vieira (Angola).
“Identidades e afirmação cultural” e
Romance Mayombe (1979), de Pepetela (Angola).
19: “Prosa e poesia africana em
Romance Terra Sonâmbula (1992), de Mia Couto
língua portuguesa”).
VOLUME (Moçambique).
3 Romance As mulheres de meu pai (2007), José
Eduardo Agualusa (Angola).
Poema “Borboletas de luz”, de Arlindo Barbeitos
(Angola).
Poema “Regresso”, de Amílcar Cabral (Guiné
Bissau/Cabo Verde).
Poema “A minha dor”, de José Craveirinha
(Moçambique).
Poema “Naturalidade”, de Rui Knopfli
(Moçambique/Portugal).
Poema “Poema do futuro cidadão”, de José
Craveirinha (Moçambique).
Relato de José Eduardo Agualusa (Angola).
Poema “Poema”, de Arménio Vieira (Cabo Parte I – Literatura, Unidade 6 –
Verde).* “Literaturas africanas em língua
portuguesa”.
Poema “Um homem nunca chora”, de José
* Excertos disponíveis apenas no
Craveirinha (Moçambique).*
Manual do Professor.
Tabela 14 . Relação de textos e autores abordados em VM10.
346

4.2. Síntese dos dados levantados: convergências e divergências

Menção à lei Menção à lei


Distribuição e
COLEÇÃO 10.639/03 no 11.645/08 no
Localização de
Manual do Manual do
conteúdos (leis)
Professor Professor

LP01 Articulada e Restrita SIM NÃO


NP02 Tangencial NÃO NÃO
PCIS03 Restrita NÃO NÃO
LPLI04 Articulada e Restrita NÃO NÃO
PLC05 Articulada e Restrita SIM NÃO
SPLP06 Articulada e Restrita SIM NÃO
LP07 Articulada e Restrita SIM NÃO
Articulada e
VP08 NÃO NÃO
tangencial
PLC09 Restrita NÃO NÃO
VM10 Articulada e Restrita NÃO NÃO
Tabela 15. Síntese dos dados relativos à macroestrutura das coleções do PNLD 2015.

Número de produções
artístico-literárias
Literatura
Literaturas Literaturas relacionadas às leis
COLEÇÃO negra/afro-
Africanas indígenas (textos literários, letras
brasileira
de canção e imagens de
artes plásticas).

LP01 SIM NÃO NÃO 7


NP02 SIM NÃO NÃO 2
PCIS03 SIM SIM NÃO 25
LPLI04 SIM SIM NÃO 18
PLC05 SIM SIM NÃO 14
SPLP06 SIM SIM SIM 15
LP07 SIM SIM SIM 66
VP08 SIM SIM NÃO 4
PLC09 SIM NÃO NÃO 16
VM10 SIM SIM SIM 25
Tabela 16. Síntese dos dados relativos à microestrutura das coleções do PNLD 2015.

Em linhas gerais, observa-se nas Tabelas 15 e 16 que as coleções do PNLD 2015


atendem muito mais aos conteúdos da lei 10.639/03 que aos da lei 11.645/08: 40% das
coleções tratam explicitamente da primeira no Manual do Professor, enquanto que nenhuma
347

menção é feita à alteração por ela sofrida em 2008, em nenhum dos livros analisados (Tabela
15); por conseguinte, as literaturas africanas fazem-se presentes em todas as obras, em
detrimento das literaturas indígenas, que são estudadas em apenas 30% dos materiais (Tabela
16) e, na maioria dos casos, restritas a um ou dois excertos de textos de Daniel Munduruku. O
estudo da literatura negra/afro-brasileira também merece ressalvas: embora nosso quadro
indique que 70% das obras contam com textos de autores afrodescendentes em seus
repertórios (Tabela 16), a variedade de textos é baixa; com exceção de PLC05 e de LP07,
que desenvolvem um trabalho consistente e variado com essa literatura, as demais coleções
restringem-se, em média, a um ou dois excertos de autores negros não canônicos. Cabe
assinalar, nesse sentido, que tal cenário pode ser reflexo, também e em alguma medida, das
fichas avaliativas do PNLD 2015, por nós discutidas na seção 3.2., as quais, embora incluam
o cumprimento das leis 10.639/03 e 11.645/08 entre seus critérios de seleção, reforçam em
seu questionário avaliativo apenas o atendimento à introdução das literaturas africanas, sem
lançar perguntas relativas à presença das literaturas indígenas e afro-brasileira.
No que diz respeito, especificamente, à primeira coluna da Tabela 15, chama-nos a
atenção o fato de 70% das coleções optarem por uma localização e distribuição de conteúdos
do tipo articulada, e não somente restrita. Isso significa que, em maior ou menor grau, as
literaturas africanas, principalmente, podem ser encontradas em capítulos historicamente
reservados ao cânone escolar, sem serem abordadas de forma isolada, em um capítulo
exclusivo175. Contudo, essa “articulação” não deve ser lida como sinônimo de uma abordagem
comparativista envolvendo as produções artístico-literárias africanas e brasileiras176 (vide
Tabela 17, adiante); as coleções PLC05 e VP08 servem de “exceções à regra” no sentido em
que articulam as literaturas africanas ao capítulo de introdução do eixo literário e a um
capítulo do eixo de produção escrita, no primeiro caso, e a um capítulo temático sobre
“cenário urbano e realismo fantástico”, no segundo, sem estabelecer, para tanto,
aproximações com a literatura brasileira. Por outro lado, é válido atrelar a localização e
distribuição do tipo restrito à ausência de análises textuais comparativas; PCIS03 e PLC09,
175
No decorrer de nossa análise ficou evidente que eventuais capítulos exclusivos costumam atender somente às
literaturas africanas, de modo que a presença das literaturas indígenas e afro-brasileira ocorre nos livros
didáticos de forma necessariamente articulada, isto é, relacionada a algum conteúdo canônico. Portanto, a
classificação da macroestrutura da coleção como sendo “articulada”, “restrita” ou “tangencial” tem como
parâmetro determinante a localização que as literaturas africanas assumem dentro da coleção.
176
Interessa-nos aqui as aproximações entre Brasil e África. Por conseguinte, não consideramos em nossos
apontamentos finais eventuais propostas comparativas abrangendo Portugal e África, ainda que elas tenham sido
descritas/mencionadas no decorrer de nossas análises.
348

ao trabalharem as literaturas de matriz africana em uma seção exclusiva, não propõem, de


fato, nenhuma atividade de comparação.
Já na coluna “Número de produções artístico-literárias relacionadas às leis”, da
Tabela 16, ficam evidentes algumas discrepâncias bastante significativas entre o repertório
das coleções analisadas. Desconsiderando que 40% (LPLI04, PLC05, SPLP06 e PLC09)
dos livros didáticos apresentam a média de 15 textos concernentes aos conteúdos postulados
pelas leis, e que 20% (PCIS03 e VM10) contam com 25 referências afins, sobram-nos quatro
coleções de perfil peculiar. NP02 é a coleção com o repertório menos expressivo, contendo
apenas duas produções africanas, enquanto LP07 destoa do restante do nosso corpus ao trazer
66 produções, entre as quais encontramos autores representativos de todas as literaturas
postuladas pelas leis. Acerca desta, nos parece adequado recordar o perfil de suas autoras,
Roberta Hernandes Alves e Vima Lia Martin, ambas doutoradas na área de Literatura pela
USP, sendo a segunda pesquisadora e docente da área de Estudos Comparados de Literaturas
em Língua Portuguesa. Ao se ter em vista que a formação e atuação profissional de uma das
autoras de LP07 vinculam-se, diretamente, aos conteúdos preconizados pela lei 10.639/03, é
compreensível que o presente material tenha ganhado acentuado destaque, a nível tanto
quantitativo e quanto qualitativo, em nosso levantamento. Em relação a NP02, por sua vez,
não foi possível elaborar hipóteses que justificassem a pouca atenção dada às literaturas afro-
brasileira, africanas e indígenas, mas entendemos ser produtivo registrar comentários acerca
de outros pontos.
Primeiramente, é interessante apontar que, mesmo se tratando da única coleção que
atende, exclusivamente, ao tipo tangencial de localização e distribuição de conteúdos, NP02
se vale de seu escasso repertório de matriz africana para sugerir leituras comparativas entre
Brasil e África. Ainda sim, ao realizarmos uma análise de cunho mais qualitativo que
quantitativo, julgamos correto enquadrar NP02, dotada de duas produções, no tipo tangencial,
e LP01, dotada também de um número de produções bem abaixo da média, a saber, sete
produções, no tipo articulado e restrito. No decorrer das nossas análises, expomos que, além
de trazer apenas dois autores e de introduzir superficialmente o contexto sócio-histórico e a
diversidade dessas literaturas, a coleção confere um tratamento diferenciado às literaturas
africanas se comparado ao detalhamento que acompanha o estudo da literatura portuguesa
contemporânea. Na contramão dessa perspectiva, LP01 exerce um trabalho detalhado e
349

aprofundado na introdução das literaturas africanas de língua portuguesa, não a deixando à


margem de seu repertório literário.
Outro dado curioso refere-se à classificação da localização e distribuição de
conteúdos em VP08, segunda coleção com o menor número de referências, a saber, quatro
produções relacionadas às leis. Embora a obra de Mia Couto seja inserida, pela coleção, no
capítulo de introdução do eixo literário e no capítulo dedicado à apresentação e à produção do
gênero romance, o tratamento dado às literaturas de matriz africana no capítulo restrito foi
por nós considerado muito breve e superficial. Com base nisso, trata-se da única coleção cuja
macroestrutura foi classificada como articulada e tangencial, simultaneamente. Finalmente,
como último comentário sobre tais dados quantitativos, informamos que o número de
produções não reflete, necessariamente, o número de atividades; PCIS03, por exemplo, traz
25 fragmentos, mas um número veementemente reduzido de propostas analíticas, sendo,
portanto, um livro mais expositivo-descritivo, enquanto que PL01 disponibiliza apenas sete
textos, os quais, porém, são em grande parte acompanhados de solicitações interpretativas.
Acerca do predomínio das literaturas africanas no nosso corpus, frisamos que a
presença de atividades de leitura comparada não implicou, necessariamente, em uma chave de
leitura que privilegiasse os diálogos literários firmados entre Brasil e África. Devido à
variedade de abordagens que encontramos nas coleções (“literatura engajada”; “literatura
memorialística”; “literatura fantástica”, entre outros), a Tabela 17 , disponibilizada a seguir,
tem a finalidade de listar os enquadramentos de leitura mais enfatizados por cada coleção,
bem como os países que integram seus repertórios literários.
350

Chaves de leitura privilegiadas no estudo das Países de origem dos


COLEÇÃO
literaturas de matriz africana autores estudados
 Literatura brasileira como inspiração para as
literaturas africanas de língua portuguesa;
Angola, Cabo Verde e
LP01  Literaturas memorialísticas/ de resistência,
Moçambique.
mas igualmente atentas a outros temas e
estéticas, sobretudo nos dias atuais.
 Literatura brasileira como inspiração para as
literaturas africanas de língua portuguesa; Cabo Verde e
NP02
 Literatura Contemporânea em língua Moçambique.
portuguesa.
Angola, Cabo Verde,
 Literaturas engajadas, mas igualmente
Guiné Bissau,
PCIS03 atentas a outros temas e estéticas;
Moçambique e São
 Oratura.
Tomé e Príncipe.
 Literatura portuguesa como “fonte
Angola, Cabo Verde,
primordial” para estas e paras as demais
Guiné Bissau,
LPLI04 literaturas em língua portuguesa;
Moçambique e São
 Literaturas relacionadas à tradição oral;
Tomé e Príncipe.
 Literaturas engajadas.
 Literaturas que dialogam com o Realismo
Fantástico;
 Literaturas diversas, porém próximas, entre Angola e
PLC05
outros aspectos, no que concerne a um Moçambique.
transitar entre o passado colonial e a
identidade das atuais sociedades africanas.
 Literaturas marcadas pela violência do
Angola, Cabo Verde,
passado colonial (memorialística) e por
SPLP06 Guiné Bissau e
questões identitárias;
Moçambique.
 Oratura.
 Literatura brasileira como inspiração para as
literaturas africanas de língua portuguesa;
Angola, Cabo Verde,
 Literaturas focadas no projeto nacional
Guiné Bissau,
LP07 (com consciência histórica), mas, cada vez
Moçambique e São
mais, interessadas por temas
Tomé e Príncipe.
contemporâneos diversos;
 Literaturas relacionadas à tradição oral.
 Literaturas engajadas, que ecoam os
processos e os reflexos das lutas pela
independência; Angola e
VP08
 Prosa contemporânea em língua portuguesa; Moçambique.
 Literaturas relacionadas com as línguas
locais.
 Literaturas marcadas tanto pelo Angola, Cabo Verde,
engajamento político quanto pela Guiné Bissau,
PLC09
diversidade de temas e estéticas, que tratam Moçambique e São
do local e do global. Tomé e Príncipe.
 Literatura brasileira como inspiração para as
literaturas africanas de língua portuguesa;
Angola, Cabo Verde,
 Literaturas de resistência e engajadas, mas
VM10 Guiné Bissau e
igualmente atentas a outros temas e
Moçambique.
estéticas, que transitam entre o local e o
global.
Tabela 17. Chaves de leitura e países que integram o repertório de matriz africana nas coleções do PNLD 2015.
351

Observamos, em linhas gerais, que Moçambique é o país comum a todos os livros


didáticos, devido, sobretudo, a certo protagonismo assumido por Mia Couto. Com exceção de
NP02, Angola se faz presente em todas as demais obras didáticas, seguida de Cabo Verde,
que se faz ausente apenas em PLC05 e em VP08; produções artístico-literárias de Guiné
Bissau constam em 50% dos títulos do PNLD, enquanto São Tomé e Príncipe, em 40%.
Trata-se de um dado que, a nosso ver, reflete a atual condição das relações editoriais do Brasil
com os países africanos de língua portuguesa, as quais são marcadas, justamente, por um
maior acesso às narrativas de Angola e de Moçambique. Ou seja, para alterarmos o repertório
dos livros didáticos, visando tornar mais variado o estudo das literaturas do continente
africano, parece ser necessário, de antemão, que ocorram mudanças no próprio mercado
literário nacional e/ou nas demandas bibliográficas da academia brasileira.
No tangente ao estudo qualitativo das escolas literárias que compõem nosso recorte
de análise, notamos, por sua vez, que coexistem abordagens pouco críticas e abordagens que
vão ao encontro, em alguma medida, de uma leitura pós-colonial. Nos capítulos reservados ao
Quinhentismo, é possível afirmar que observamos três tipos de ocorrência: (i) abordagem
bastante crítica ao projeto colonial português (atenta, por exemplo, ao etnocentrismo, à
contraposição da visão do colonizador à visão do indígena e/ou ao legado colonial no Brasil
atual), perceptível, em maior ou menor medida, em PCIS03, SPLP06 e LP07, VM10; (ii)
abordagem crítica, mas pontual e/ou limitada a um gancho com a condição dos povos
indígenas e/ou com a temática do preconceito na atualidade, à qual associamos as coleções
LP01, LPLI04 e VP08; (ii) abordagem pouco crítica, restrita a análises intratextuais das
narrativas do Descobrimento, constitutiva principalmente de NP02, PLC05 e PLC09. Quanto
ao Indianismo, destacamos duas coleções que, a partir do estudo dos textos românticos,
levam os alunos a pensarem, de forma significativa, a condição indígena na atualidade, a
saber, PCIS03 e LP07, sendo que esta insere, no referido capítulo, um texto literário de
autoria indígena. A nosso ver, apenas PL01, VP08 e PLC09 realizam uma abordagem
superficial/ pouco crítica dessa escola literária, pois até mesmo a idealização da figura do
índio nas produções românticas é, por elas, pouco explorada se comparada aos demais livros
do nosso corpus. No Condoreirismo, PLC09 figura, uma vez mais, como a coleção que trata
desse repertório de forma superficial/ sem inovações; no mais, merecem destaque PCIS03 e
SPLP06 por conjugarem o estudo das narrativas condoreiras a um debate atualizado sobre o
racismo no Brasil, e, principalmente, LP07 e PLC05, por introduzirem, no fechamento de tal
352

escola, diversos autores da poesia negra/afro-brasileira (cabe citar que NP02, apesar de não
apresentar escritores negros nesse capítulo, propõe uma pesquisa complementar sobre o
movimento negro e a poesia negra).
Por fim, é importante retomar aquilo que, em alguns momentos das análises,
denominamos de «quebra coesiva», isto é, a um descompasso entre o enquadramento de
leitura dado pela coleção no Caderno do Aluno e o teor das orientações específicas ou das
propostas complementares fornecidas ao Professor177. No caso do estudo do Quinhentismo em
PLC05 e do Romantismo em PL01 e em LPLI04 essa discrepância mostra-se muito evidente.
Não observamos um gancho coesivo sólido entre a forma como se conduzem os alunos e as
instruções que são dadas ao docente. De forma simplificada, é como se, por vezes, o Manual
do Professor contasse com uma perspectiva inclinada ao pós-colonialismo enquanto que o
Caderno do Aluno parece estar preso a um modelo mais clássico de ensino. É certo que a
prática e a mediação docente são indispensáveis e centrais no tipo de uso e no lugar a ser
ocupado pelo livro didático na prática pedagógica, porém, ainda sim, entendemos ser
relevante articular o tom didático-pedagógico do Manual do Professor com o tom que
constitui o Caderno do Aluno. Ademais, não raro, acusamos como ocorrências de «quebra
coesiva» a inscrição de propostas alinhadas aos conteúdos das leis 10.639/03 e 11.645/08 no
rol das “atividades complementares”, e não entre as propostas principais dos livros didáticos
(isto é, entre as propostas que dão forma ao Caderno do Aluno). Apesar de esse tipo de
ocorrência não se mostrar muito frequente ou determinante aos resultados por nós obtidos, ela
demanda atenção em futuros estudos sobre o lugar da diversidade cultural nos materiais
escolares, dado seu potencial de se configurar, talvez, um novo viés de tangenciamento de
repertórios multiculturais.
Além dos dados mais diretamente ligados ao nosso foco analítico, é necessário
discutir alguns pontos de convergência e de divergência de determinadas ocorrências que, por
vezes, escaparam ou extrapolaram as nossas categorizações, e que, por conseguinte, ampliam

177
As razões que, eventualmente, poderiam explicar a ocorrência de tais “quebras coesivas” escapam ao alcance
do nosso estudo, pois elas podem (ou devem) envolver decisões editoriais conhecidas apenas pelos próprios
editores e/ou autores. Sabe-se, por exemplo, que, por vezes, as editoras contratam profissionais para a elaboração
de atividades ou de seções específicas da obra, uma prática que dá margem à participação de um número
significativo de autores em um único livro (os quais, devido à compra-venda de direitos autorais, nem sempre
têm seus nomes estampados nas capas dos materiais). Esses e outros pontos elencados no decorrer de nossas
análises evidenciam a necessidade e a importância de se realizarem pesquisas etnográficas focadas nas nuances
dos processos de produção de livros didáticos, que sejam, entre outras possibilidades, compostas de entrevistas
com editores e autores.
353

o debate sobre a aplicação das leis 10.639/03 e 11.645/08 nos livros didáticos. Optamos por
apresentá-los em tópicos:

 LITERATURA FEMININA: encontramos em mais de uma coleção (com destaque a


NP02, PLC05 e LP07) propostas ou seções que chamam a atenção para a autoria
feminina, as quais reconhecemos, igualmente, como estratégias descoloniais.
Entretanto, de encontro a essas ocorrências, o repertório das leis, em geral, conta com
poucas escritoras mulheres, a exemplo de NP02, que, a despeito de rememorar o lugar
das mulheres na literatura, não disponibiliza excertos de autoras negras nem africanas;
ainda que 60% das coleções apresentem ao menos uma escritora negra e/ou africana, é
acentuada a desproporção entre a autoria feminina e a autoria masculina no número
total de produções artístico-literárias relacionadas às leis nas coleções estudadas: das
191 produções listadas na Tabela 16, apenas 23 correspondem a textos de escritoras
mulheres.

 AS LEIS E OS EIXOS DE CONHECIMENTOS LINGUÍSTICOS E DE


PRODUÇÃO TEXTUAL: notamos que, em maior ou menor medida, a
descolonização dos livros didáticos de Português extrapola, no PNLD 2015, o eixo
literário, visto que as literaturas postuladas pelas leis (ou, ainda, temas que tocam
questões étnicorraciais) integram, em mais de uma coleção, atividades do eixo de
gramática, bem como seções relativas ao estudo dos gêneros textuais. Por um lado, foi
possível identificar ocorrências inovadoras e/ou interessantes (vide, por exemplo,
PCIS03, LPLI04 ou SPLP06), tal qual a sugestão de leitura de entrevistas com
escritores indígenas como etapa integrante do trabalho com o gênero “entrevista”
(PLC09) ou com o gênero “debate” (LP07), ou ainda a presença de produções de
autores africanos na abertura de capítulos voltados ao estudo dos diferentes tipos de
narrativas, como a introdução de um texto de José Luandino Vieira como texto-chave
no estudo da narrativa de suspense (LPLI04). Em nossa percepção, essas estratégias
favorecem a inserção das literaturas e/ou das vozes afrodescendente, africana e
indígena em espaços usualmente ocupados pelo cânone ou por temas pertencentes a
uma agenda hegemônica, bem como contribuem para um trabalho que encare essas
literaturas como fenômenos estéticos e linguísticos, afastando-as de um olhar
estritamente antropológico. Por outro lado, também verificamos atividades
354

superficiais, sobretudo nos casos em que o texto literário serve apenas de pretexto para
perguntas pouco reflexivas que visam somente validar as características do gênero a
ser trabalhado ou ressaltar, descontextualizadamente, seus aspectos linguísticos (na
análise de LP01 e de NP02, por exemplo, destacamos algumas ocorrências desse
tipo). Ao encontro do que defendemos em um artigo publicado durante o Doutorado
(vide DE SÁ, 2016), não se trata de questionar a pertinência de se usar o texto literário
para estudos de viés linguístico, mas de observar de que modo isso é feito. Em suma, a
análise linguística, quando crítico-reflexiva, se somada (e não sobreposta) a propostas
de análise literária dos textos de autoria indígena, afro-brasileira e africana (dado que
as leis enfatizam, de fato, o ensino de literatura, o qual não pode ser deixado de lado),
só tem a corroborar a ideia de descolonização da educação.

 LITERATURAS INDÍGENAS E A QUESTÃO DA AUTORIA: ao iniciar esta


pesquisa, assim como ao preencher a coluna “Número de produções artístico-literárias
relacionadas às leis”, da Tabela 16, entendemos por “literatura indígena” as literaturas
escritas por indígenas que se assumem, publicamente, autores literários. No entanto,
durante as análises, encontramos em NP02 e LP07 excertos referentes a transcrições,
realizadas por etnógrafos e antropólogos, de mitos/ de narrativas orais de
determinados povos indígenas. Essas referências estão registradas nas tabelas de
referências bibliográficas de cada coleção (respectivamente, Tabela 6 e Tabela 11),
mas não são contabilizadas na coluna supracitada. Julgamos ser mais adequado
levantar essa questão do que fechá-la. Assim, pensando o atendimento à lei 11.645/08,
lançamos algumas reflexões: qual é o lugar de textos resultantes da coleta de
narrativas orais realizada por pesquisadores, e em que medida esse tipo de repertório
favorece o deslocamento de um “falar sobre/falar por” para a fala do próprio indígena?
Especificamente nos casos mencionados, avaliamos como produtivas e positivas as
atividades propostas, mas com uma ressalva: em LP07 há, além desse material,
também textos literários de Daniel Munduruku, enquanto que em NP02 tal excerto
afirma-se como presença única da “voz” indígena, o que não nos parece suficiente ao
cumprimento da lei. Por ora, reconhecendo que há na academia uma gama de
trabalhos sociológicos e antropológicos bastante sérios e comprometidos, inclinamo-
nos a admitir esse tipo de texto como mais uma possibilidade, como mais um caminho
355

para abrir o livro didático às culturas indígenas, desde que, com isso, as literaturas
indígenas não percam o lugar que ainda nem conquistaram.

 DESCOLONIZAÇÃO DE OUTROS REPERTÓRIOS DO EIXO LITERÁRIO


(artes plásticas, artes visuais, cinema etc.): antes de dar início às análises, não
havíamos pensado a necessidade de se descolonizar outros repertórios artísticos
comumente presentes nos livros de Português, em geral, e no eixo literário, em
particular, como pinturas, esculturas, histórias em quadrinhos, produções
cinematográficas (geralmente indicadas nos paratextos dos capítulos, por exemplo). A
rara presença desse tipo de produção no que envolve a autoria negra, africana e
indígena chama-nos a atenção para a sua importância. Destacamos, nesse sentido, a
presença de telas e de desenhos do artista moçambicano Malangatana Valente
Ngwenya nas coleções SPLP06, LP07 e VM10; da imagem de uma escultura do
artista plástico afrodescendente Rubem Valentim em PLC05; dos quadrinhos do
artista negro Marcelo D’Salete em VM10; e, por fim, da fotografia do moçambicano
Ricardo Rangel e de imagens da obra do artista negro Arthur Bispo do Rosário, ambas
em LP07. A título de registro, enfatizamos que também o estudo do gênero dramático
“carece” de descolonização. A despeito de o Teatro Negro ser rememorado pelos
documentos regulatórios da lei 10.639/03, como vimos em seções anteriores, apenas
LP07 integra essa vertente ao estudo do Teatro no Brasil.

Para encerrar nossa síntese, reforçamos nossas apreciações sobre a presença e/ou
ausência de enquadradores discursivos extratextuais e de solicitações interpretativas
cursivas178. Em pontuais momentos das nossas análises, classificamos como negativa a
eventual escassez dos primeiros, por entendermos que o atendimento efetivo às leis demanda,
também, a recuperação de aspectos relativos aos contextos sociais, históricos e culturais das
produções indígenas, afro-brasileira e africanas. Isso porque, a nosso ver, análises textuais
totalmente descoladas de tal chave de leitura podem até trazer contributos à formação de
leitores, na medida em que servem ao exercício de determinadas habilidades e competências,
mas, no que concerne ao cumprimento de leis de recorte multicultural, o fazem sem responder
aos pressupostos de uma formação cidadã anti-discriminatória e descolonizadora, o que pode,

178
A título de registro, cabe reconhecer que a subcategoria “enquadrador intertextual” mostrou-se pouco
revelante durante o levantamento e a análise de dados, mas, ainda sim, optamos por não excluí-la de nosso
quadro analítico tendo em vista a possibilidade de ela ser produtiva a outros estudos.
356

inclusive, reafirmar o viés eurocêntrico dos currículos. Entre as obras aprovadas pelo PNLD
2015, registramos nas análises das coleções SPLP06 e LP07 algumas ocorrências que
ilustram com clareza o papel e os sentidos dos enquadradores discursivos extratextuais  e,
recuperando a ideia de “quebra coesiva”, PCIS03 constitui-se, por exemplo, uma coleção que
opta por incluir enquadradores extratextuais mais no Manual do Professor e menos no
Caderno do Aluno.
Já em relação às solicitações cursivas  as quais ocupam, em nossa percepção, um
lugar central tanto no questionamento de imaginários e de preconceitos que os alunos possam
ter frente a certos povos e culturas, quanto na promoção de uma postura ativa diante da leitura
do texto literário , percebemos que as coleções reservam, no geral, pouco espaço a esse tipo
de exercício interpretativo ou, no caso de investirem nele, limitam-se a dar o indicativo de
“resposta pessoal” no Manual do Professor, enfraquecendo, pois, a mediação de leitura de
perguntas de cunho mais subjetivo. Nas análises de LPLI04 e de SPLP06, por exemplo,
levantamos interessantes solicitações cursivas, ainda que especificamente no trabalho com as
literaturas indígenas brasileiras, afro-brasileira e africanas elas não se façam tão presentes;
PLC05 e LP07 destacaram-se, por sua vez, pela presença um pouco mais sistemática de
questões voltadas às apreciações e experiências pessoais dos alunos sobre determinados temas
e textos, mas principalmente sobre temas. Em suma, esses dados indiciários sobre o
reconhecimento e/ou a desconsideração da leitura subjetiva em livros didáticos, se lidos
conjuntamente, indicam que a relação entre “formação do leitor multicultural” e “leitura
subjetiva” merece ser mais bem pensada e explorada.
357

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No decorrer do Doutorado, ao compartilharmos esta pesquisa com pessoas de áreas e


de perfis diversos, deparamo-nos mais de uma vez com a seguinte pergunta: “por que essas
leis?”. De forma mais bastante simplificada, foi possível notar a recorrência de dois
significados nesses questionamentos: de um lado, havia aqueles que, reconhecendo a
importância da ampliação e da revisão do repertório escolar, questionavam o fato de ser
necessária uma medida legal para que a pluralidade cultural viesse a ocupar seu lugar nos
currículos, ou, em outras palavras, perguntavam, bastante surpresos, “mas por que precisamos
de uma lei para que isso seja feito?”; de outro, cruzamos com pessoas que, contestando, a
priori, a pertinência de uma educação orientada pela diversidade de saberes e de culturas,
questionavam nas entrelinhas “mas por que precisamos desse repertório?”, quase que
afirmando, retoricamente, “eu acho que nós não precisamos”. Finalizado este estudo,
consideramos válido repensar algumas possibilidades de resposta.
Ao primeiro grupo, cabe recordar muito do que discutimos em nossa fundamentação
teórica (Capítulo 1) e no capítulo em que exploramos o movimento que denominados de
transposição política (Capítulo 2). Ao admitirmos a existência de um legado colonial na
educação brasileira  responsável pela perspectiva eurocêntrica que ainda orienta, em maior
ou menor grau, a inclusão e a exclusão de conteúdos e de práticas didático-pedagógicas na
esfera escolar, bem como a violência simbólica e as relações de poder que o acompanham,
a necessidade de se impor (legalmente) a diversificação dos currículos começa a fazer sentido.
Nota-se, assim, uma conquista envolta em muitos conflitos, haja vista o projeto educacional
brasileiro ser ancorado num modelo de educação que, por séculos, tratou como natural a
marginalização física e simbólica dos povos indígenas e da população afrodescendente. Nesse
contexto, a introdução (/a imposição) do ensino escolarizado de suas histórias e estórias
advém, como vimos, de múltiplas lutas e ações dos movimentos sociais em prol da educação
democrática, em geral, e da desnaturalização da branquitude nas escolas brasileiras, em
específico, motivo pelo qual ela não poderia ter sido alcançada de outra forma. Portanto,
parafraseando a expressão usada pelo primeiro grupo de interlocutores, “foi preciso uma lei
para que isso fosse feito” porque foi/é necessário descolonizar a nossa forma de pensar e de
fazer políticas. Sem a lei, a questão da diversidade em sala de aula permaneceria ainda mais
refém de iniciativas pessoais e/ou de ações informais de ensino; com ela, por sua vez, tem-se
358

um passo favorável a um questionamento mais aprofundado das estruturas sociais e estatais


capazes de reproduzir ou de frear o eurocentrismo por nós herdado.
Voltando-nos ao grupo contestatório dos conteúdos postulados pelas 10.639/03 e
11.645/08 (“Mas por que precisamos desse repertório? Eu acho que não precisamos”), nossa
resposta, hoje, se mostra mais articulada às reflexões que tecemos durante a leitura dos
documentos oficiais de educação (Capítulo 3) e nas seções voltadas, justamente, às análises
da coleção do PNLD 2015 (Capítulo 4). A nosso ver, esses capítulos evidenciam que a
inserção das literaturas indígenas brasileiras, afro-brasileira e africanas nas escolas alinha-se à
formação de leitores críticos e autônomos, tal como defendido pelos documentos oficiais, pois
ampliam o repertório e as experiências literárias dos estudantes, ao inseri-los em novos
universos de leitura. Dessarte, entendemos que os apontamentos da pesquisadora Janice
Cristine Thiél (2016) sobre as contribuições que as literaturas indígenas podem trazer para a
“promoção do letramento multicultural”, servem, em alguns aspectos, também aos efeitos
positivos do trabalho com as literaturas africanas de língua portuguesa:

A literatura indígena, por sua vinculação à tradição oral e construção


multimodal, entre outros aspectos, desafia o leitor. Os textos indígenas
possuem uma complexidade em termos de gênero, autoria,
multimodalidades, além de percepções culturais da realidade, que exigem do
leitor um reposicionamento cultural, ao mesmo tempo em que motivam a
interação com o outro a partir da literatura. (THIÉL, 2016, p. 89).

Ademais, muitas das propostas por nós encontradas nos livros didáticos atestam que,
para além de expandir os currículos, essas literaturas oferecem novas percepções sobre as
literaturas brasileira e portuguesa, abrindo caminho a exercícios mais dialógicos, os quais são,
muitas vezes, mais desafiadores. Desse modo, elas corroboram a nossa premissa inicial de que
um ensino multicultural não pressupõe a substituição do cânone literário, mas sua abertura.
Outrossim, não bastassem tais contributos ao exercício de múltiplas habilidades e
competências de leitura, esse deslocamento de um currículo eurocêntrico para um currículo
multicultural vai ao encontro de diretrizes e de debates internacionais sobre os direitos das
crianças e dos jovens, como nos explica, uma vez mais, Thiél:

Cerca de 20 anos após a aprovação da Declaração Universal dos Direitos da


Criança (1959), foram redigidos Os Direitos Universais das Crianças a
Escutar Contos, pelo Centro Regional para o Fomento do Livro na América
Latina e no Caribe (Cerlalc). Segundo este documento, resumido e discutido
por Giardinelli (2010, p. 153), “Toda criança/jovem goza a plenitude do
direito de conhecer os contos, poemas e lendas de seu país”. Com base nesta
359

afirmação, percebemos que conhecer a literatura nacional implica conhecer


não só os textos considerados canônicos, mas também textos provenientes da
diversidade cultural do país. A literatura de um povo é, na verdade,
composta pela literatura de muitos povos. Quando falamos sobre o contato
das crianças e jovens com a literatura brasileira, estamos falando de muitas
literaturas, culturas e vozes [...]. (THIÉL, 2013, p. 1176).

Traçando, por fim, uma avaliação geral dos levantamentos feitos neste estudo, é
correto afirmar que as coleções do PNLD 2015 apontam avanços no cumprimento da lei
10.639/08 e alguns passos, ainda que bastante tímidos, em direção à aplicação da lei
11.645/08. A diversidade de estratégias editoriais adotadas pelos livros que integram o nosso
corpus é um sinal de que o cânone literário escolar tem sido, em alguma medida e de certa
forma, repensado. Ao depreendermos que processos de descolonização situados no plano
simbólico são tão ou mais lentos que os processos de independência geográfica e política,
bem como que eles são atravessados por constantes negociações e renegociações, por
incessantes movimentos de tentativa e erro, os livros didáticos (alguns mais, outros menos)
parecem estar no caminho certo. É notório, contudo, que a consolidação do ensino-
aprendizagem das produções artístico-literárias indígenas (e não da temática indígena) em
escolas convencionais requer mais estudos, medidas e diretrizes que elucidem e viabilizem o
atendimento à alteração legal de 2008 no que engloba, em particular, a educação literária.
Notamos por meio tanto na análise da transposição política quanto no estudo da transposição
didática, que a construção de uma ponte entre as culturas dos povos originários e a cultura
escolar convencional ainda demanda muitos esforços e muitas reflexões. Esta se configura,
portanto, a maior lacuna para a qual nossa pesquisa chama a atenção.
A título de fechamento, e reafirmando os elos estabelecidos entre Educação,
Sociedade e Política que tanto ecoamos no desenrolar desta pesquisa, não podemos nos
esquivar de registrar que no momento de conclusão deste trabalho muitas políticas e similares
e/ou transversais a leis como a 10.639/03 e a 11.645/08 encontram-se ameaçadas. Diversos
órgãos, secretarias e programas, como a Fundação Nacional do índio (FUNAI), a Secretaria
Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) e o próprio PNLD, vêm
passando por reconfigurações que, talvez, os afastem de alguns ou de muitos dos pressupostos
por nós debatidos. Com base nessa conjuntura, propomos duas leituras possíveis para o teor
do nosso estudo: para o caso de futuras revogações ou do enfraquecimento de políticas afins,
que ele sirva de documento-arquivo dos produtivos fundamentos e resultados de leis de
recorte multicultural que chegaram a ser efetivamente implantadas no país, revelando-se,
360

assim, uma espécie de contra-argumento a eventuais retrocessos; para o caso de tais políticas
serem mantidas, mesmo que com menor atenção ou que marcadas por um hiato, que nosso
estudo alerte quanto à constante necessidade de aperfeiçoamento de sua transposição
didática, de modo a fazer valer todos os esforços empreendidos pelos movimentos sociais no
contexto de sua transposição política.
361

REFERÊNCIAS

Coleções Didáticas
ABAURRE, Maria Luiza M.; ABAURRE, Maria Bernadete M.; PONTARA, Marcela.
Português – Contexto, Interlocução e Sentido (Livro do Professor), 2ª ed., Volumes 1, 2 e 3,
São Paulo: Moderna, 2013.
ABREU-TARDELLI, Lília Santos; ODA, Lucas Sanches; CAMPOS, Maria Tereza Arruda
(Coord.); TOLEDO, Salete. Vozes do Mundo (Livro do Professor), Volumes 1, 2 [2ª ed.] e 3,
São Paulo: Saraiva, 2013.
AMARAL, Emília; FERREIRA, Mauro; LEITE, Ricardo; ANTÔNIO, Severino. Novas
Palavras (Livro do Professor), 2ª ed., Volumes 1, 2 e 3, São Paulo: FTD, 2013.
CAMPOS, Elizabeth; CARDOSO, Paula Marques; ANDRADE, Silvia Letícia de. Viva
Português (Livro do Professor), 2ª ed., Volumes 1, 2 e 3, São Paulo: Editora Ática, 2014.
CEREJA, William Roberto; MAGALHÃES, Thereza Anália Cochar. Português Linguagens
(Livro do Professor), 9ª ed., Volumes 1, 2 e 3, São Paulo: Saraiva, 2013.
______. Português Linguagens, Volume único, São Paulo: Atual, 2003.
______. Português Linguagens - 2º Grau (Livro do Professor), 2ª ed. revista e ampliada,
Volumes 1, 2 e 3, São Paulo: Atual , 1994.
FARACO, Carlos Alberto. Português: Língua e Cultura (Livro do Professor), 3ª ed., Volumes
1, 2 e 3, Curitiba: Base Editorial, 2013.
FARACO, Carlos Emílio; MOURA, Francisco Marto de; MARUXO JR., José Hamilton.
Língua Portuguesa – Linguagem e Interação (Livro do Professor), 2ª ed., Volumes 1, 2 e 3,
São Paulo: Editora Ática, 2014.
HERNANDES, Roberta; MARTIN, Vima Lia. Língua Portuguesa (Livro do Professor),
Volumes 1, 2 e 3, Curitiba: Positivo, 2013.
RAMOS, Rogério de Araújo. Ser protagonista – Língua Portuguesa (Livro do Professor), 2ª
ed., Volumes 1, 2 e 3, São Paulo: Edições SM, 2014.
SARMENTO, Leila Lauar; TUFANO, Douglas. Português – Literatura, Gramática e
Produção de Texto (Livro do Professor), Vol. 3, São Paulo: Moderna, 2010.
SETTE, Maria das Graças Leão; TRAVALHA, Márcia Antônia; BARROS, Maria do Rozário
Starling de. Português – Linguagens em Conexão (Livro do Professor), Volumes 1, 2 e 3, São
Paulo: Leya, 2013.
TUFANO, Douglas. Estudos de Língua e Literatura, Vol. 2, 4ª ed. reformulada, São Paulo:
Moderna, 1990.

Legislação e Documentos oficiais da Educação Básica


BRASIL. Lei n. 11.645 de 10 de março de 2008. Altera a Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de
1996, modificada pela Lei n. 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e
bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a
362

obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. D.O.U. de 11 de


mar. de 2008.
______. Lei n. 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de
1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo
oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”,
e dá outras providências. D.O.U. de 10 de jan. de 2003.
______. Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (LDBEN-96). Estabelece as diretrizes e
bases da educação nacional. D.O.U. de 23 dez. 1996.
______. Lei n. 5.692, de 11 de agosto de 1971 (LDBEN-71). Fixa diretrizes e bases para o
ensino de 1° e 2º graus, e dá outras providências. D.O.U. de 12 ago. 1971.
______. Lei n. 4.024, de 20 de dezembro de 1961 (LDBEN-61).. Fixa as diretrizes e bases
da educação nacional. D.O.U. de 27 dez. 1961.
______. Decreto-Lei nº 8.460, publicado em 1945. Consolida a legislação sobre as
condições de produção, importação e utilização do livro didático, 1945.
______. Decreto-Lei nº 1.006, de 30 de Dezembro de 1938. Estabelece as condições de
produção, importação e utilização do livro didático, 1938.
BRASIL. Congresso Nacional. Câmara dos Deputados. Projeto de lei nº 259/99. Autoria de
Esther Grossi e Ben-Hur Ferreira. Brasília, 1999.
______. Projeto de lei nº 678/88. Autoria de Paulo Paim. Brasília, 1988.
______. Projeto de lei nº PL 1332/1983. Autoria de Abdias do Nascimento. Brasília, 1983.
BRASIL. Senado Federal. Projeto de lei nº 75/97. Autoria de Abdias do Nascimento.
Brasília, 1997.
______. Projeto de lei nº 18/95. Autoria de Benedita da Silva. Brasília, 1995.
BRASIL/MEC. Base Nacional Comum Curricular – Ensino Médio. Brasília: MEC/SEB,
2018. Disponível em: <http://basenacionalcomum.mec.gov.br/wp-
content/uploads/2018/04/BNCC_EnsinoMedio_embaixa_site.pdf>. Acesso em: 30/08/2018.
______. Base Nacional Curricular Comum (Proposta preliminar) - 2ª versão revista.
Brasília-DF: MEC, 2016. Disponível em: <http://movimentopelabase.org.br/biblioteca/>.
Acesso em: 30/08/2018.
______. Base Nacional Curricular Comum. Brasília-DF: MEC, 2015. Disponível em:
<http://movimentopelabase.org.br/biblioteca/>. Acesso em: 30/08/2018.
BRASIL-MEC/CNE. Parecer do Conselho Nacional de Educação (CNE) - Câmara Plena
(CNE/CP) nº 03, de 10 de março de 2004. Institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para
a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-
Brasileira e Africana, 2004a.
______. Parecer do Conselho Nacional de Educação (CNE) - Câmara Plena (CNE/CP) nº 01,
de 17 de junho de 2004. Institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das
Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana,
2004b.
______. Parecer Homologado n. 14/99. Institui as Diretrizes Curriculares Nacionais da
Educação Escolar Indígena, Brasília: MEC/CEB, 1999.
363

BRASIL-MEC/FAE. Definição de critérios para a avaliação de livros didáticos – 1ª a 4ª


séries - Português, Matemática, Estudos Sociais e Ciências, Brasília: MEC/FAE, 1994.
BRASIL-MEC/FNDE. Edital de convocação para o processo de inscrição e avaliação de
obras didáticas para o Programa Nacional do Livro Didático - PNLD 2015 (Edital 01/2013 –
CGPLI). Brasília: MEC/SEB, 2013. Disponível em:
<http://www.fnde.gov.br/programas/programas-do-livro/consultas/editais-programas-
livro/item/4032-pnld-2015>. Acesso em: 02/07/2018.
______. Dados Estatísticos FNDE: PNLD 2015 - Coleções mais distribuídas por componente
curricular Português, s/d (a). Disponível em: <http://www.fnde.gov.br/programas/programas-
do-livro/livro-didatico/dados-estatisticos>. Acesso em: 02/07/2018.
______. Dados Estatísticos FNDE: PNLD 2013 - Coleções mais distribuídas por
componente curricular Alfabetização e Letramento, s/d (b). Disponível em:
<http://www.fnde.gov.br/component/k2/item/3010?Itemid=1296>. Acesso em: 02/07/2018.
______. Dados Estatísticos FNDE: mais distribuídos no PNLD 2012, s/d (c). Disponível em:
<http://www.fnde.gov.br/component/k2/item/3010?Itemid=1296>. Acesso em: 02/07/2018.
______. Catálogo do Programa Nacional do Livro para o Ensino Médio. PNLEM/2006,
Brasília: MEC, 2006.
BRASIL-MEC/SEB. Guia de livros didáticos PNLD 2018 (Ensino Médio) – Língua
Portuguesa. Brasília: MEC/SEB, 2017.
______. Guia de livros didáticos PNLD 2015 (Ensino Médio) – Apresentação. Brasília:
MEC/SEB, 2014a. Disponível em: <http://www.fnde.gov.br/programas/programas-do-
livro/livro-didatico/guia-do-livro-didatico/item/5940-guia-pnld-2015>. Acesso em:
02/07/2018.
______. Guia de livros didáticos PNLD 2015 (Ensino Médio) – Língua Portuguesa. Brasília:
MEC/SEB, 2014b. Disponível em: <http://www.fnde.gov.br/programas/programas-do-
livro/livro-didatico/guia-do-livro-didatico/item/5940-guia-pnld-2015 >. Acesso em:
02/07/2018.
______. Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (DCEM). Brasília:
MEC/SEB, 2012.
______. Orientações Curriculares para o Ensino Médio (OCEM) – Volume I: Linguagens,
códigos e suas tecnologias. Brasília: MEC/SEB, 2006.
______. PCN+ Ensino médio: orientações educacionais complementares aos Parâmetros
Curriculares Nacionais – Volume: Linguagens, códigos e suas tecnologias. Brasília:
MEC/SEB, 2002.
______. Parâmetros Curriculares Nacionais: ensino médio (PCNEM) – Parte II: Linguagens,
códigos e suas tecnologias. Brasília: MEC/SEB, 1999.
______. Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (DCEM). Brasília:
MEC/SEB, 1998.
BRASIL-MEC/SECAD. Orientações e Ações para a Educação das Relações Étnico-Raciais,
Brasília: MEC/SECAD, 2006. Disponível em:
<http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/orientacoes_etnicoraciais.pdf>. Acesso em:
06/05/2018.
364

BRASIL-MEC/SECADI. Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares


Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para ensino de História e Cultura
Afro-brasileira e Africana. Brasília: MEC/SECADI, 2013. Disponível em:
<http://etnicoracial.mec.gov.br/images/pdf/diretrizes_curric_educ_etnicoraciais.pdf>. Acesso
em: 06/05/2018.
BRASIL-MEC/SEF. Parâmetros curriculares nacionais: Pluralidade Cultural. Brasília:
MEC/SEF, 1998.
BRASIL-MEC/SEF/DPEF. Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas,
Brasília: MEC/SEF/DPEF, 1998.
BRASIL-DCD. Diário da Câmara dos Deputados. ANO LVIII, n. 044, Brasília-DF, Abril
de 2003.
BRASIL-MEC/SEPPIR. Contribuições para Implementação da Lei 10.639/2003. Brasília:
MEC/SEPPIR, 2008. Disponível em:
<http://www.acordacultura.org.br/sites/default/files/documentos/contribuicoes_para_imple-
mentacao_da_lei.pdf>. Acesso em: 06/05/2018.
______. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e
para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília: MEC/SEPPIR,
2004. Disponível em: <http://www.acaoeducativa.org.br/fdh/wp-
content/uploads/2012/10/DCN-s-Educacao-das-Relacoes-Etnico-Raciais.pdf>. Acesso em:
06/05/2018.

Bibliografia Geral
ABDALA JUNIOR, Benjamin. “Eurocentrismo & Racismo”. Suplemento Literário (Minas
Gerais), v. 1343, pp. 11-12, 2012.
______. Literatura, história e política: literaturas de língua portuguesa no século XX. 2. ed.
Cotia, SP: Ateliê, 2007.
______. “História literária e o ensino das literaturas de língua portuguesa”, in.: De vôo e ilhas.
Literatura e comunitarismos. Cotia, SP: Ateliê, 2003, pp. 33-48.
ALBERTI, Verena; PEREIRA, Amilcar Araujo. Histórias do movimento negro no Brasil:
depoimentos ao CPDOC. Rio de Janeiro, RJ: Pallas: CPDOC/FGV, 2007.
ALMEIDA, Cristina Maria Sena. “Implantação da disciplina ‘Introdução aos estudos
africanos no Estado da Bahia’”, in.: MELO, Regina Lúcia Couto de; COELHO, Rita de
Cássia Freitas (Orgs.). Educação e discriminação dos negros, Belo Horizonte: IRHJP, 1988,
pp. 73-90.
ALMEIDA, Maria Inês de. Ensaios sobre a literatura indígena contemporânea. Tese de
Doutorado - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Programa de Pós-graduação em
Comunicação e Semiótica, São Paulo: PUC-SP, 1999.
AMÂNCIO, Iris Maria da Costa; GOMES, Nilma Lino; JORGE, Miriam Lúcia dos Santos
(Orgs.) Literaturas africanas e afro-brasileira na prática pedagógica. Belo Horizonte:
Autêntica, 2008.
365

ANDRADE, Michely Peres. “A contribuição da literatura africana para a descolonização dos


currículos escolares no Brasil”. Interdisciplinar • Ano VIII, v.19, nº 01, jul./dez. 2013, pp.
41-52.
BALSALOBRE, Sabrina Rodrigues Garcia. “Sócio-história do processo de escolarização dos
redatores e leitores da Imprensa Negra paulista: fundamentos para uma pesquisa Linguística”.
Estudos Linguísticos (São Paulo. 1978), v. 38, 2009a, pp. 223-237.
______. Língua e sociedade nas páginas da Imprensa Negra paulista: um olhar sobre as
formas de tratamento. Dissertação de Mestrado em Linguística e Língua Portuguesa.
Araraquara: UNESP, 2009b.
BANKS, James A. (Org.). The Routledge international companion to multicultural education.
New York &amp; Oxon: Routledge, 2009.
BARROS, Surya Aaronovich Pombo de. “Discutindo a escolarização da população negra em
São Paulo entre o final do século XIX e início do século XX”, in.: ROMÃO, Jeruse; SECAD
(Orgs.). História da Educação do Negro e outras histórias, Brasília: Ministério da Educação,
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade 2005, pp. 79-92.
BASTIDE, Roger. O negro na imprensa e na literatura. São Paulo: Escola de Comunicações
e Artes – ECA/USP, 1972.
BATISTA, Antônio Augusto Gomes; ROJO, Roxane. “Livros escolares no Brasil: a produção
científica”, in.: VAL, Maria da Graça Costa; MARCUSCHI, Beth (Orgs.). Livros didáticos de
Língua Portuguesa: letramento e cidadania, Belo Horizonte: Ceale; Autêntica, 2005, pp. 13-
46.
BATISTA, Antônio Augusto Gomes; ROJO, Roxane; ZÚÑIGA, Nora Cabrera. “Produzindo
livros didáticos em tempo de mudança (1999-2002)”, in.: VAL, Maria da Graça Costa;
MARCUSCHI, Beth (Orgs.). Livros didáticos de Língua Portuguesa: letramento e cidadania,
Belo Horizonte: Ceale; Autêntica, 2005, pp. 47-72.
BERND, Zilá. Introdução à Literatura Negra. São Paulo, SP: Brasiliense, 1988.
BHABHA, H. O Local da Cultura, trad. Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis,
Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2007.
BIAZZETTO, Flávia Cristina Bandeca. As confluências das tradições literárias escritas e
orais nos livros didáticos: um estudo das representações das literaturas africanas, afro-
brasileiras indígenas nos materiais do PNLD 2014, Tese (Doutorado em Estudos
Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa) - Universidade de São Paulo, 2012.
BISPO, Erica Cristina Bispo; BEZERRA JR., Heleno Álvares. “Por um novo currículo no
ensino de literatura: fundamentos, leis, caminhos”. Abril - Revista do Núcleo de Estudos de
Literatura Portuguesa e Africana da UFF, Vol. 8, n° 17, 2° sem., pp. 93-112, dez. 2016.
BONIN, Iara Tatiana. “Educação escolar indígena” - Encarte Pedagógico VI (Patrícia Bonilha
[Ed.]), Revista PORANTIM (Cimi), agosto 2015.
BONNICI, Thomas. “Capítulo I: Aspectos de teoria pós-colonial”, in.: ______. (Org.) O pós-
colonialismo e a literatura: estratégias de leitura (1990-2001) [online]. 2nd ed. Maringá:
Eduem, 2012. Scielo Books <http://books.scielo.org>.
______. “Introdução ao estudo das literaturas pós-coloniais”. Mimesis, Bauru, v. 19, n. 1, pp.
07-23, 1998.
366

BUNZEN, Clecio. “Construção de um objeto de investigação complexo: o livro didático de


língua portuguesa”. Estudos Lingüísticos XXXIV, pp. 557-562, 2005.
CANDAU, Vera Maria Falcão. “'Ideias-força' do pensamento de Boaventura de Sousa Santos
e a educação intercultural”, Educação em Revista, Belo Horizonte|v.32|n.01|, pp. 15-34,
Janeiro-Março 2016.
CAPACLA, Marta Valéria (Org.). O debate sobre educação indígena no Brasil (1975-1995) -
resenhas de teses e livros. Brasília: MEC/MARI-USP, 1995.
CARREIRA, Nara Lasevicius. “A abordagem da temática racial no ensino da literatura
canônica: Algumas reflexões”. Revista Crioula, (21), pp. 264-290, 2018.
https://doi.org/10.11606/issn.1981-7169.crioula.2018.143174
CASSIANO, Célia Cristina de Figueiredo. “Materiais didáticos e ensino na escola básica:
impactos no currículo e na produção editorial brasileira”. Remate de Males, v. 34, pp. 376-
396, 2014.
______. Mercado do Livro Didático no Brasil: do Programa Nacional do Livro Didático à
entrada do capital internacional espanhol (1985 a 2007). Tese (Doutorado em Educação) –
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo: PUC/SP, 1997.
______. “Reconfiguração do mercado editorial brasileiro de livros didáticos no início do séc.
XXI: história das principais editoras e suas práticas comerciais”. Em Questão (UFRGS.
Impresso), Porto Alegre, v. v.11, n. 2, pp. 281-312, 2005.
CHALHOUB, Sidney; PINTO, Ana Flávia Magalhães. (Org.). Pensadores negros –
pensadoras negras: Brasil séculos XIX e XX. Cruz das Almas: EDUFRB; Belo Horizonte:
Fino Traço, 2016.
CHEVALLARD, Yves. La transposition didactique du savoir savant au savoir enseigne.
Coautoria de Marie-Alberte Johsua. [Paris]: La Pensee Sauvage, 1998.
CONTE, Cora. Análise Linguística em Livros Didáticos de 9º ano: atividades em foco.
Monografia de Final de Curso (Letras). Universidade Estadual de Campinas, Campinas:
IEL/UNICAMP, 2015.
CRUZ, Mariléia dos Santos. “Uma abordagem sobre a história da educação dos negros”, in.:
ROMÃO, Jeruse; SECAD (Orgs.). História da Educação do Negro e outras histórias,
Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e
Diversidade 2005, pp. 21-34.
CRUZ, Manoel de Almeida. “Pedagogia Interétnica”, Cadernos de Pesquisa, n. 63, 1987, pp.
74-76.
CUTI, Luiz Silva. A consciência do impacto nas obras de Cruz e Sousa e de Lima Barreto.
Belo Horizonte: Autêntica, 2009.
______. ... E disse o velho militante José Correia Leite: depoimentos e artigos. São Paulo:
Secretaria Municipal da Cultura, 1992.
D'ANGELIS, Wilmar. Aprisionando sonhos: a educação escolar indígena no Brasil,
Campinas, SP : Curt Nimuendaju, 2012.
DA SILVA, Aracy Lopes. “Uma 'Antropologia da Educação' no Brasil? Reflexões a partir da
escolarização indígena”, in.: DA SILVA, Aracy Lopes, FERREIRA, Mariana Kawall Leal
367

(Orgs.). Antropologia, História e Educação - A questão indígena e a escola, São Paulo:


Global, 2001, pp. 29-70.
DA SILVA, Mário Augusto Medeiros. A descoberta do insólito: literatura negra e literatura
periférica no Brasil (1960-2000). Tese de Doutorado - Universidade Estadual de Campinas,
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Campinas: UNICAMP, 2011.
DA SILVA, Geraldo; ARAÚJO, Márcia. “Da interdição escolar às ações educacionais de
sucesso: escolas dos movimentos negros e escolas profissionais, técnicas e tecnológicas”, in.:
ROMÃO, Jeruse; SECAD (Orgs.). História da Educação do Negro e outras histórias,
Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e
Diversidade 2005, pp. 65-78.
DA SILVA, Aracy Lopes; GRUPIONI, Luís Donisete Benzi (Orgs.). A temática indígena na
escola - novos subsídios para professores de 1º e 2º graus, Brasília-DF:
MEC/MARI/UNESCO, 1995.
DA CONCEIÇÃO, Manoel Vitorino. Das reivindicações à lei: caminhos da lei nº 10.639/03.
Dissertação de Mestrado em História Social. São Paulo: PUC/SP, 2011.
DALCASTAGNÈ, Regina. Literatura brasileira contemporânea: um território contestado. 1.
ed. Rio de Janeiro/Vinhedo: Editora da UERJ/ Editora Horizonte, 2012.
DE OLIVEIRA, Rosana Medeiros. “Descolonizar os livros didáticos: raça, gênero e
colonialidade nos livros de educação do campo”. Revista Brasileira de Educação, v. 22, n.
68, pp. 11-33, jan-mar 2017.
DE OLIVEIRA, Márcia Andrea Almeida. O ensino de Língua Portuguesa: usos do livro
didático, objetos de ensino e gestos profissionais. Tese de Doutorado (Linguística Aplicada),
Campinas: UNICAMP, 2013.
DE OLIVEIRA, Ana Gita; SERRA, Olympio Trindade (Orgs.). Atas indigenistas. Brasília,
DF: Ministério da Educação e Cultura/Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional/Fundação Nacional Pró-Memória, 1988.
DE SÁ, Ana Paula dos Santos. Por que (não) ensinar o cânone escolar: a(s) literatura(s) nas
versões preliminares da BNCC. CADERNOS DE LETRAS DA UFF, v. 27, pp. 209-236,
2017. DOI http://dx.doi.org/10.22409/cadletrasuff.2017n55a494
______. “As dicotomias da leitura na educação básica: reflexões sobre o literário e o não
literário”, Leitura. Teoria & Prática, 2016, pp. 111-124.
DE SOUSA SANTOS, Boaventura. “Para além do Pensamento Abissal: Das linhas globais a
uma ecologia de saberes”. Revista Crítica de Ciências Sociais, 78, Outubro 2007, pp. 3-46.
______. “Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências”. Revista
Crítica de Ciências Sociais, 63, Outubro 2002, pp. 237-280.
______.; MENESES, Maria Paula. (Orgs.) Epistemologias do Sul. São. Paulo; Editora Cortez,
2010.
DIONÍSIO, Maria de Lourdes da Trindade. A construção escolar de comunidades de leitores
– leituras do manual de Português. Coimbra: Livraria Almedina, 2000.
DOMINGUES, Petrônio. “Um ‘templo de luz’: Frente Negra Brasileira (1931-1937) e a
questão da educação”, Rev. Bras. Educ., vol.13 n.39 Rio de Janeiro Sept./Dec. 2008, pp.
517-534.
368

DOS SANTOS, Joel Rufino. “Livro didático: um mal necessário?”. Cad. Pesq., n. 63, nov.
1987, pp. 99-100.
DUARTE, Eduardo de Assis. “Por um conceito de literatura afro-brasileira”. Revista de
Crítica Literaria Latinoamericana, v. 81, 2015, pp. 19-43.
______. (Org.). Machado de Assis afro-descendente: escritos de caramujo, (antologia), 2. ed.
rev. ampl. Belo Horizonte, MG; Rio de Janeiro, RJ: Crisálida: Pallas, 2007.
______. Literatura Afro-brasileira: abordagens na sala de aula. Rio de Janeiro: Pallas, 2014.
ECO, Umberto. Lector in Fabula - la cooperacion interpretativa en el texto narrativo, trad.
Ricardo Pochtar. Barcelona: Editorial Lumen, 1993.
FERRARA, Miriam Nicolau. “A imprensa negra paulista (1915/1963)”, Rev. Bras. de Hist.,
São Paulo, v. 5, n. 10, março/agosto 1985, pp. 197-207.
FERREIRA, Mariana Kawall Leal. “A educação escolar indígena: um diagnóstico crítico da
situação no Brasil”, in.: DA SILVA, Aracy Lopes, FERREIRA, Mariana Kawall Leal
(Orgs.), Antropologia, História e Educação - A questão indígena e a escola, São Paulo:
Global, 2001, pp. 71-111.
FERREIRA JR., Amarilio. História da Educação Brasileira: da Colônia ao século XX, São
Carlos: EDUFSCar, 2010.
FIDELIS, Ana Cláudia e Silva. Do cânone literário às provas de Vestibular: canonização e
escolarização da literatura. Tese de Doutorado (Linguística Aplicada), Campinas:
UNICAMP, 2008.
FONSECA, Marcus Vinicius. “As primeiras práticas educacionais com características
modernas em relação aos negros no Brasil” in.: ANPEd & Ação Educativa (Orgs.). Negro e
educação: presença do negro no sistema educacional brasileiro, São Paulo/Rio de Janeiro:
ANPEd & Ação Educativa, 2001, pp. 11-36.
______.; DE BARROS, Surya Aaronovich Pombo (Orgs.). A história da educação dos negros
no Brasil. Niterói: EdUFF, 2016.
FONTAN, Daiane de Fátima Soares. Educação escolar indígena: estudo sociojurídico da
política estatal a partir de Pierre Bourdieu, Curitiba, PR : Juruá, 2017.
FRASER, NANCY. “Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça numa era 'pós-
socialista'”, trad. Julio Assis Simões. Cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, 2006, pp.
231-239.
FREIRE, Paulo. Cartas à Guiné-Bissau: registros de uma experiência em processo. 2ª ed.,
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
______. Pedagogia do oprimido. 17ª ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987 [1968].
FREITAS, Ivana Silva. A cor da metáfora: o racismo no livro didático de Língua Portuguesa.
Dissertação de Mestrado. Universidade Federal da Paraíba: João Pessoa, 2009.
GOMES, Nilma Lino. “Políticas públicas para a diversidade”. Sapere aude – Belo Horizonte,
v. 8, n. 15, Jan./jun. 2017a, pp. 7-22.
______. O movimento negro educador – saberes construídos nas lutas por emancipação.
Petrópolis: Vozes, 2017b.
369

______. “Relações étnico-raciais, educação e descolonização dos currículos”. Currículo sem


Fronteiras, v.12, n.1, Jan/Abr 2012, pp. 98-109.
GOMES, Nilma Lino; MIRANDA, Shirley Aparecida. “Dossiê: Educação na Década
Internacional dos Afrodescendentes (2015-2024)”. EDUCAÇÃO EM REVISTA
(ONLINE), v. 34, 2018, pp. 1-6.
GONÇALVES, Luiz Alberto Oliveira. “A discriminação Racial na Escola”, in.: MELO,
Regina Lúcia Couto de; COELHO, Rita de Cássia Freitas (Orgs.). Educação e discriminação
dos negros, Belo Horizonte: IRHJP, 1988a, pp. 59-72.
______. “Encaminhamentos propostos”, in.: MELO, Regina Lúcia Couto de; COELHO, Rita
de Cássia Freitas (Orgs.). Educação e discriminação dos negros, Belo Horizonte: IRHJP,
1988b, pp. 121-122.
GONÇALVES, Luiz Alberto Oliveira; SILVA, Petronilha Beatriz Gonçalves e. “Movimento
Negro e Educação”, Rev. Bras. Educ., n.15 Rio de Janeiro Sept./Dec. 2000, pp. 134-158.
______. “Multiculturalismo e educação: do protesto de rua a propostas e políticas”.
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.29, n.1, jan./jun. 2003, pp. 109-123.
GOULARTE, Raquel da Silva; DE MELO, Karoline Rodrigues. “A lei 11.645/08 e a sua
abordagem nos livros didáticos do ensino fundamental”. Entretextos, Londrina, v.13, nº 02,
jul./dez. 2013, pp. 33- 54.
GRAÚNA, Graça. “Literatura Indígena no Brasil contemporâneo e outras questões em
aberto”. Educação & Linguagem, v. 15, n. 25, 2012, pp. 266-276.
______. “Educação, literatura e direitos humanos: visões indígenas da lei 11.645/08”.
Educação & Linguagem • v. 14 • n. 23/24 • jan.-dez. 2011, pp. 231-260.
______. Contrapontos da literatura indígena no Brasil. Belo Horizonte: Mazza Edições,
2003.
GRUPIONI, Luís Donisete Benzi. “Livros didáticos e fontes de informações sobre as
sociedades indígenas no Brasil”, in.: DA SILVA, Aracy Lopes; GRUPIONI, Luís Donisete
Benzi (Orgs.). A temática indígena na escola - novos subsídios para professores de 1º e 2º
graus, Brasília-DF: MEC/MARI/UNESCO, 1995, pp. 481-526.
HALL, Stuart. Da Diáspora: identidades e mediações culturais, trad. Adelaine La Guardia
Resende, Ana Carolina Escosteguy, Claudia Alvares, Fracisco Rudiger e Sayonara Amaral.
Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2003.
HOFLING, Eloisa de Mattos. “Notas para discussão quanto à implementação de programas
de governo: em foco o Programa Nacional do Livro Didático”. Educação & Sociedade, vol.
XXI, núm. 70, pp. 159-170, abril 2000.
HOOKS, Bell. Ensinando a transgredir – a educação como prática da liberdade, trad.
Marcelo de Brandão Cipolla. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2ª ed., 2017.
LADEIRA, Maria Elisa. “De ‘povos ágrafos’ a ‘cidadãos analfabetos’: as concepções teóricas
subjacentes às propostas educacionais para os povos indígenas no Brasil”, in.: CUNHA,
Manuela Carneiro; CESARINO, Pedro de Niemeyer (Orgs.), Políticas Culturais e Povos
Indígenas, São Paulo: Cultura Acadêmica, 2014, pp. 435-454.
370

LANGLADE, Gérard. “O sujeito leitor, autor da singularidade da obra”, trad. Neide Luzia de
Rezende, in.: ROUXEL, Annie; GÉRARD, Langlade; REZENDE, Neide Luzia de. (Orgs.)
Leitura subjetiva e ensino de literatura. São Paulo: Alameda, 2013, pp. 25-38.
LEITE, Ana Mafalda. Literaturas africanas e formulações pós-coloniais. Lisboa: Edições
Colibri, 2013.
LIMA, Amanda Machado Alves de. O livro indígena e suas múltiplas grafias. Dissertação de
Mestrado - Universidade Federal de Minas Gerais, Programa de Pós-Graduação em Letras:
Estudos Literários. Belo Horizonte: UFMG, 2012.
LUCIANO, Gersem José dos Santos. “A história e cultura indígena no contexto da Lei
11.645/08: reflexos na educação brasileira” (Entrevista). Revista de Educação do Cogeime –
Ano 25, n. 49, julho/dezembro 2016, pp. 11-23. DOI
http://dx.doi.org/10.15599/cogeime.v25n49
______. Entrevista concedida a Maria Aparecida Bergamaschi. Revista História Hoje, v. 1,
n. 2, pp. 127-148, 2012.
MAGALHÃES JÚNIOR, Raimundo. Machado de Assis desconhecido. 3.ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1957.
MARTIN, Vima Lia de Rossi. “Algumas propostas para o ensino das literaturas africanas e
afro-brasileira no Ensino Médio”. Revista do Núcleo de Estudos de Literatura Portuguesa
e Africana da UFF, Vol. 8, n° 17, 2° sem., pp. 125-132, dez. 2016.
MATA, Inocência. “A crítica literária africana e a teoria pós-colonial: um modismo ou uma
exigência?”. O Marrare, n. 8, pp. 20-34, 2008.
MELO, Regina Lúcia Couto de; COELHO, Rita de Cássia Freitas. “Apresentação”, in.:
______. (Orgs.). Educação e discriminação dos negros, Belo Horizonte: IRHJP, 1988, pp. 7-
10.
MENDES, Algemira Macêdo. Maria Firmina os Reis e Amélia Beviláqua na história da
literatura brasileira: representação, imagens e memórias nos séculos XIX e XX. Tese
(doutorado) - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Faculdade de Letras.
Porto Alegre - RS, 2006.
MIGNOLO, Walter. “Colonialidade: o lado mais escuro da modernidade”, trad. Marco
Oliveira, RBCS, Vol. 32 n° 94 junho/2017: p. 1-18. DOI 10.17666/329402/2017
______. “Os esplendores e as misérias da 'ciência': colonialidade, geopolítica do
conhecimento e pluri-versalidade epistêmica”, in.: DE SOUSA SANTOS, Boaventura. (Org.)
Conhecimento prudente para uma vida decente: 'um discurso sobre ciências' revisitado, São
Paulo: Cortez, 2004, pp. 667-710.
MOEHLECKE, Sabrina. “O ensino médio e as novas diretrizes curriculares nacionais: entre
recorrências e novas inquietações”. Revista Brasileira de Educação, v. 17, n. 49 jan.-abr.
2012, p. 39-58.
MOITA LOPES, Luiz Paulo (Org.) Por uma Linguística Aplicada Indisciplinar, 3ª ed., São
Paulo: Parábola Editorial, 2013.
MOITA LOPES, Luiz Paulo; ROJO, Roxane. “Linguagens, códigos e suas tecnologias”, in.:
BRASIL-MEC/SEB. Orientações curriculares de ensino médio. Brasília: MEC/SEB, 2004.
pp. 14-56.
371

MOTA NETO, João Colares de. “Por uma pedagogia decolonial na América Latina:
Convergências entre a educação popular e a investigação-ação participativa”. Arquivos
Analíticos de Políticas Educativas, 26(84), pp. 1-21, 2018. DOI
http://dx.doi.org/10.14507/epaa.26.3424
MUNAKATA, Kazumi. Produzindo livros didáticos e paradidáticos. 1997. Tese (Doutorado
em História da Educação) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo:
PUC/SP, 1997.
MUNANGA, Kabengele. Estratégias e políticas de combate a discriminação racial. São
Paulo, SP: USP/Estação Ciência, 1996.
MUNDURUKU, Daniel. O caráter educativo do movimento indígena brasileiro (1970-1990),
São Paulo: Paulinas, 2012.
NOBRE, Felipe Nunes. Nos meandros do (re)conhecimento: a temática indígena em livros
didáticos de História no contexto de implementação da Lei 11.645/08 (2008-2014).
Dissertação de Mestrado em História. Pelotas: UFPel, 2017.
OLIVEIRA, Ines B. “Itinerant Curriculum Theory against Epistemicides: a dialogue between
the thinking of Santos and Paraskeva”. Journal of the American Association for the
Advancement of Curriculum Studies, Summer, Vol. 12(1), pp. 1-22, 2017.
OLIVEIRA, Ivanilde Apoluceno de; SOUZA, Sulivan Ferreira de. “Colonialidade
pedagógica: outras epistemologias e insurgências pedagógicas”. in.: _____. (Orgs.).
Diferentes olhares epistemológicos sobre a educação. Belém: CCSE-UEPA, 2017, pp. 83-99.
OLIVEIRA, Natália Franzoni Oliveira. Análise linguística em LDs do Ensino Médio: estudo
comparativo das edições de 2006 e 2015 do PNLD-EM. Monografia de Final de Curso
(Letras). Universidade Estadual de Campinas, Campinas: IEL/UNICAMP, 2016.
PASSOS, MARTA. Resenha de Livro didático de língua portuguesa, letramento e cultura da
escrita, de Roxane Rojo & Antônio Augusto Batista (Orgs.). Revista Portuguesa de
Educação, vol. 17, núm. 2, 2004, pp. 307-319.
PEREIRA, Amauri Mendes. Trajetória e perspectivas do Movimento Negro Brasileiro. Belo
Horizonte, MG: Nandyala, 2008.
PEREIRA, Amilcar Araujo. O mundo negro: relações raciais e a constituição do movimento
negro contemporâneo no Brasil, Rio de Janeiro: Pallas/FAPERJ, 2013.
______. “A Lei 10.639/03 e o movimento negro: aspectos da luta pela 'reavaliação do papel
do negro na história do Brasil'”, Cadernos de História, Belo Horizonte, v.12, n. 17, 2º sem.
2011, pp. 25-45.
PETIT, Michèle. Leituras: do espaço íntimo ao espaço público, trad. Celina Olga de Souza.
São Paulo: Editora 34, 2013.
PINTO, Ana Flávia Magalhães. Fortes laços em linhas rotas: literatos negros, racismo e
cidadania na segunda metade do século XIX. 2014. 326 p. Tese (doutorado) - Universidade
Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Campinas, SP, 2014.
PINTO, Regina PAHIM. “Movimento Negro e educação do negro: a ênfase na identidade”.
Cad. Pesq., São Paulo, n. 86, ago/1993, pp. 25-38.
______. “A educação do negro: uma revisão bibliográfica”. Cad. Pesq., São Paulo, n. 62,
ago/1987, pp. 3-34.
372

QUIJANO, Aníbal. “Colonialidade do poder, Eurocentrismo e América Latina”, in.: A


colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas.
Buenos Aires: CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, 2005. Disponível
em: <http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/clacso/sur-sur/20100624103322/12_Quijano.pdf>.
Acesso em: 30/08/2018.
RAZZINI, M. P. G. O espelho da nação: a antologia nacional e o ensino de portugues e de
literatura (1838-1971). Tese de Doutorado – Universidade Estadual de Campinas, Programa
de Pós-Graduação em Letras, Campinas: UNICAMP, 2000.
RISERIO, Antonio. Textos e tribos: Poéticas extraocidentais nos trópicos brasileiros. Rio de
Janeiro: Imago, 1993.
ROMÃO, Jeruse. “Educação, instrução e alfabetização no Teatro Experimental do Negro”,
in.: ROMÃO, Jeruse; SECAD (Orgs.). História da Educação do Negro e outras histórias,
Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e
Diversidade 2005, pp. 117-138.
ROUXEL, Annie. “A tensão entre utilizar e interpretar na recepção de obras literárias em sala
de aula; reflexão sobre uma inversão de valores ao longo da escolaridade”, trad. Marcello
Bulgarelli, in.: ROUXEL, Annie; GÉRARD, Langlade; REZENDE, Neide Luzia de (Orgs.)
Leitura subjetiva e ensino de literatura. São Paulo: Alameda, 2013, pp. 151-164.
______. “Práticas de leitura: quais rumos para favorecer a expressão do sujeito leitor?”, trad.
Neide Luzia de Rezende e Gabriela Rodella de Oliveira. Cadernos de Pesquisa, v. 42, n.
145, jan./abr. 2012a, pp. 272-283.
______. “Mutações epistemológicas e o ensino da literatura: o advento do sujeito leitor”, trad.
Samira Murad. Revista Criação & Crítica, n.9, nov. 2012b, pp. 13-24.
SANTOMÉ, Jurjo Torres. “As culturas negadas e silenciadas no currículo”, trad. Tomaz
Tadeu Silva, in.: SILVA, Tomaz Tadeu (Org.). Alienígenas na sala de aula – Uma introdução
aos estudos culturais na educação, Petrópolis: Editora Vozes, 3ª reimpressão, pp. 155-172,
2017.
SANTOS, Eloína Prati. “A autoinclusão da literatura indígena contemporânea no cânone
brasileiro: uma herança cultural a ser reconhecida”. Revista Literatura em Debate, v. 12,
2018, pp. 107-121.
SANTOS, Natasha Magno Francisco dos. “África em debate no IEL/Unicamp:
ressignificando perspectivas e caminhos literários”, in.: ALVES, Cláudia (Org.). Blog Marca
Páginas - Um blog sobre estudos literários. 2018, s/p. Disponível em:
<https://www.blogs.unicamp.br/marcapaginas/2018/04/16/africa-em-debate-no-iel-unicamp-
ressignificando-perspectivas-e-caminhos-literarios-por-natasha-magno/>. Acesso em:
30/08/2018.
SARTESCHI, Rosangela. “O ensino de literatura: perspectivas comparatistas e a formação de
professores à luz da Lei 11.645/08”. Revista Crioula, (18), pp. 13-30, 2016.
https://doi.org/10.11606/issn.1981-7169.crioula.2016.124553
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Lima Barreto – um triste visionário. São Paulo: Companhia das
Letras, 2017.
SEMPRINI, Andrea. Multiculturalismo, trad. Laureano Pelegrin. Bauru: EDUSC, 1999.
373

SILVA, Ana Célia. “A discriminação racial nos livros didáticos - estereótipos e preconceitos
em relação ao negro no livro de Comunicação e Expressão”, in.: MELO, Regina Lúcia Couto
de; COELHO, Rita de Cássia Freitas (Orgs.). Educação e discriminação dos negros, Belo
Horizonte: IRHJP, 1988, pp. 91-96.
SILVA, Paulo Vinicius Baptista da. Relações raciais em livros didáticos de língua
portuguesa. 2005. 246 f. Tese (Doutorado em Psicologia) - Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo, São Paulo, 2005.
SILVA, Sofia Robin Ávila da. "Com a flecha engatilhada” : rap e textualidades indígenas
descolonizando as aulas de literatura. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do
Rio Grande do Sul (UFRGS). Instituto de Letras. Programa de Pós-Graduação em Letras,
2017.
SILVA, Tomaz Tadeu. “Currículo e identidade social: territórios contestados”, in.: ______.
(Org.). Alienígenas na sala de aula – Uma introdução aos estudos culturais na educação,
Petrópolis: Editora Vozes, 3ª reimpressão, pp. 185-202, 2017.
______. O currículo como fetiche: a poética e a política do texto escolar. Belo Horizonte:
Autêntica, 2001.
SILVA, Petronilha Beatriz Gonçalves e; OLIVEIRA, Sonia Stella Araújo. “Achieving quality
education for Indigenous peoples and Blacks in Brazil”, in.: BANKS, James A. (Org.). The
Routledge international companion to multicultural education. New York &amp; Oxon:
Routledge, 2009, pp. 526-539.
SILVEIRA, Rosa Maria Hessel; BONIN, Iara Tatiana. “A temática indígena em livros
selecionados pelo PNBE: análises e reflexões”. Educação (Porto Alegre), v. 35, n. 3, 2012,
pp. 329-339.
SILVÉRIO, Valter Roberto. “Relações étnico-raciais e educação: Entre a política de
satisfação de necessidades e a política de transfiguração”. Revista Eletrônica de Educação
(São Carlos), v. 9, 2015, pp. 35-66. DOI http://dx.doi.org/10.14244/%25198271991219
______.; TRINIDAD, Cristina Teodoro. “Há algo novo a se dizer sobre relações raciais no
Brasl contemporâneo?”. Educ. Soc., Campinas, v. 33, n. 120, jul.-set. 2012, pp. 891-914.
THIÉL, Janice Cristine. “A literatura infanto-juvenil indígena brasileira e a promoção do
letramento multicultural”. Literartes, v. 1, 2016, pp. 88-99. DOI http://orcid.org/0000-0001-
6257-7997
______. “A Literatura dos Povos Indígenas e a Formação do Leitor Multicultural”. Educação
& Realidade, Porto Alegre, v. 38, n. 4, 2013, pp. 1175-1189.
______. Pele silenciosa, pele sonora: a literatura indígena em destaque. Belo Horizonte:
Autêntica, 2012.
UFU. Processo Seletivo UFU/2018/2 – 2ª Prova Comum, Tipo 1, Questão 18, 2018. Acesso
em <https://vestibular.mundoeducacao.bol.uol.com.br/noticias/ufu-divulga-provas-gabaritos-
1-a-fase-vestibular-2018-2/336754.html>. Disponível em 30/08/2018.
ZILBERMAN, Regina. “Leitura na escola - entre a democratização e o cânone”. Revista
Literatura em Debate, v. 11, n. 21, jul./dez. 2017. pp. 20-38.
374

WALSH, Catherine. “Lo pedagógico y lo decolonial: Entretejiendo caminos”. In C. Walsh


(Ed.), Pedagogías decoloniales: Prácticas insurgentes de resistir, (re)existir y (re)vivir.
Quito: Ediciones Abya-Yala, 2013.

Você também pode gostar