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II SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA

MEDIEVAL E MODERNA:
MUNDOS IBÉRICOS EM DEBATE

A N A I S

UEG
UFG
PUC-GO
ANAIS DO II SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE
HISTÓRIA MEDIEVAL E MODERNA:
MUNDOS IBÉRICOS EM DEBATE
(Realizado nos dias 08, 09 e 10 de Junho de 2016)

Armênia Maria de Souza


Renata Cristina de Sousa Nascimento
(Orgs.)

Goiânia
Julho, 2016
ISSN 2359-0068
ANAIS DO II SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA
MEDIEVAL E MODERNA (UFG-UEG-PUC-GO):
MUNDOS IBÉRICOS EM DEBATE –
Realizado nos dias 08, 09 e 10 de Junho de 2016

Organização Geral

Dr.ª Armênia Maria de Souza (UFG/Sapientia)


Dr.ª Renata Cristina Nascimento (UFG/UEG/Puc-Go)
Grupo de Estudos em Idade Média e Moderna (UFG/Sapientia)
Grupo de Estudos e Pesquisas do Medievo (GEPEM-PUC-GO)

Comissão organizadora:
Ms. Cleusa Teixeira (UFG)
Ms. Johnny Taliateli do Couto (UFG)
Ms. Simone Cristina Schmaltz (PUC-Go)
Ms. Ivan Vieira Neto (PUC-Go)
Dr. Bruno Tadeu Salles (UEG)
Dr. Eduardo Quadros (PUC-Go/UEG)
Dr. Guilherme Queiroz de Souza (UEG)
Dr. Ademir Luiz da Silva (UEG)
Dra. Maria Dailza da C. Fagundes (UEG)

Comissão Científica:
Dr.ª Raquel Machado Campos (UFG)
Dr. José Antônio de C.R. de Souza (UFG/Universidade do Porto)
Drª. Aline Dias da Silveira (UFSC)
Dr.ª Maria Helena da Cruz Coelho (Universidade de Coimbra)
Dr. Marlon Jeison Salomon (UFG)
Dr.ª Teresinha Maria Duarte (UFG)
Dr. Flávio Ferreira Paes Filho (UFMT)
Dr. Fernando Lobo (UEG)
Dr. Eduardo José Reinato (PUC-Go)
Dr. Dirceu Marchini Neto (Faculdades Aphonsiano)
Dr. Gilberto Cézar de Noronha (UFU)
Dr. José Carlos Gimenez (UEM)
Dr.ª Ivoni Richter Reimer (PUC-Go)
Ms. Murilo Borges Silva (UFG)
Dr.ª Ana Teresa Marques Gonçalves (UFG)
Dr.ª Marcella Lopes Guimarães (UFPR)
Dr.ª Mônica Martins da Silva (UFSC)

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE GOIÁS
UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE GOIÁS

O conteúdo dos artigos é de inteira responsabilidade dos autores. Os textos foram extraídos dos
trabalhos submetidos sem que tenha havido alterações realizadas pelos organizadores desta
publicação.

MELO, Wdson C. F. de; NASCIMENTO, Renata Cristina de S.


& SOUZA, Armênia Maria de. (Orgs.). ANAIS DO II SEMINÁRIO
INTERNACIONAL DE HISTÓRIA MEDIEVAL E MODERNA
(UFG-UEG-PUC-GO): MUNDOS IBÉRICOS EM DEBATE
Goiás: Goiânia - UFG/PUC-Goiás, 2016. ISSN- 2359- 0068. 703
pgs.

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ANAIS DO II SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA
MEDIEVAL E MODERNA:
MUNDOS IBÉRICOS EM DEBATE
(UFG-UEG-PUC-GO)

***

Dr.ª Armênia Maria de Souza


Dr.ª Renata Cristina Nascimento
(Orgs.)

Realização:

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ZUMTHOR, P. A letra e a voz: a “literatura” medieval. São Paulo: Companhia das Letras,
1993.

MORTE E PODER: AS CERIMÔNIAS E OS MONUMENTOS


FÚNEBRES COMO RECURSO DE PROPAGANDA DA DINASTIA DE
AVIS (SÉC. XV)

Hugo Rincon Azevedo123

Resumo: O reinado de D. João I (1385 - 1433) foi marcado por uma intensa centralização
política e por diversas práticas de propaganda envolvendo a autoridade régia visando
legitimar a nova dinastia, o que foi reforçado por seu sucessor, D. Duarte (1433 - 1438).
Dentre os elementos de esforço do poder régio, os mais significantes utilizados pelos
monarcas de Avis relacionavam-se ao culto a memória e a morte do Rei. A Casa de Avis
apropriou-se de diversas ritualizações, celebrações e cerimônias fúnebres objetivando
idealizar a memória de seu Rei fundador e de seus descendentes, tendo como expoente o
Mosteiro de Santa Maria da Vitória, um grande monumento à memória da Batalha de
Aljubarrota (1385), e que ao receber os corpos da Rainha Dona Filipa de Lencastre (1416) e
posteriormente do Rei D. João I (1433), tornou-se o Panteão Régio da dinastia, mais do que
uma "memória em pedra", representava também o maior símbolo de poder do monarca e
desua linhagem. Nossa proposta nessa comunicação é problematizar a utilização da morte
régia em Portugal na primeira metade de quatrocentos como recurso essencial na construção
simbólica da nova dinastia.

Palavras-chave: Morte, Poder, Dinastia de Avis.

As mudanças de concepções na relação do homem diante da morte ao longo da Idade


Média passaram pelo processo definido por Philippe Ariés (2000) como "domesticação da
morte", que tinha como característica um modelo de comportamento que visava a superação
do medo e o aprendizado na convivência com a morte, na tentativa da consolidação do
domínio dessa por meio de uma solene ritualização. Segundo José Mattoso (2001: 109), esse
modelo de comportamento foi lentamente formado no Ocidente cristão, em sucessão a outros

123
Mestrando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás.
Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES.
Endereço eletrônico: hugo_jsk@hotmail.com
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que eram adotados por sociedades mais antigas, que deixaram crenças e concepções que
permaneceram enraizadas no imaginário coletivo, nos seus vestígios, nas práticas,
representações, costumes e rituais proferidos durante séculos, mas obviamente, sofrendo
adaptações e transformações. Essa concepção também esteve presente na relação do homem
com a "morte dos chefes". A morte do líder de um determinado grupo desde as sociedades
antigas implicava em sérias complicações para o seu povo, que permeavam na preocupação
com a sucessão, no "luto cósmico", na ideia do chefe morto continuar mesmo após o
passamento a proteger os seus subordinados, o temor de que a sua morte signifique o fim da
comunidade, e principalmente como essas questões levaram a ritualização e preservação da
memória do chefe, desde grandes cerimônias fúnebres à construção de monumentos que
tinham por objetivo não apenas a preservação da memória, mas especialmente uma forma de
propagação de poder. Se o desaparecimento de um simples indivíduo causa uma perturbação
na sociedade, principalmente aos seus familiares, o mesmo ocorrendo com alguém que exerce
autoridade sobre um determinado grupo, o atinge de maneira mais profunda, afetando a todos
os seus membros. Assim,o chefe constitui o polo visível da comunidade, assegurando a sua
persistência no tempo, ele é o responsável pela garantia da justiça, da defesa e de todo o
processo de governabilidade da sociedade que lhe concedeu a autoridade e lhe entregou o
poder. Portanto, a sua morte aparece como "uma ameaça de morte para a própria comunidade;
afeta todos os seus membros. Daí o medo e a perturbação coletiva que o falecimento do chefe
acarreta". (MATTOSO, 2001: 110).
Dessa íntima relação do chefe com a comunidade, entendemos a necessidade da
grandiosidade e da solenização dos rituais praticados em causa de seu falecimento, sempre
expressivos e de visível manifestação de poder, que exprimiam a ideia de que o chefe
permaneceria a exercer o seu poder mesmo após a morte. Dentre as soluções encontradas para
essa representação, os monumentos fúnebres e os túmulos régios parecem-nos os mais
importantes no contexto de nossa pesquisa. Esses monumentos, feitos em materiais
perduráveis como a pedra ou o bronze, em que geralmente envolviam uma grande parte da
comunidade na sua construção, apresentavam grandiosidade e imponência, além da
preservação da memória com a elaboração de epitáfios e inscrições comemorativas. Assim,
segundo Mattoso, essas construções

Com efeito, não se destinam apenas a lembrá-lo como protagonista de um


passado perdido, mas também a afirmar que ele representava qualquer coisa
que se pretenderia imortal, permanente, capaz de desafiar o tempo. Por isso,
os monumentos erguidos aos chefes não pertencem apenas aos que tomam o
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seu lugar como sucessores. Pertencem também à comunidade que julga não
poder subsistir sem o chefe. Assim, os túmulos e monumentos que o
lembram terão de constituir marcas indeléveis, capazes de desafiar a usura
do tempo e de resistir a todas as mutações. São uma referência permanente
para a própria comunidade, sinal visível de uma coesão que se pretende
indestrutível e, por isso, um apelo para que ela se mantenha apesar das
mudanças introduzidas pela chefia do sucessor. (MATTOSO, 2001: 110).

A escolha dos locais para a edificação desses monumentos fúnebres e o sepultamento


dos reis geralmente envolviam características similares ao do passamento dos chefes. Em
relação aos monarcas cristãos do Ocidente medieval, essa escolha se dava especificamente em
espaços do sagrado, como igrejas, capelas, mosteiros, etc. Na Península Ibérica, essa era uma
prática regular desde a cristianização dos povos e reinos que constituíam a região. Nas
histórias dos reis asturianos e leoneses presentes na Crónica Geral de Espanha de 1344, a
partir de Afonso II, aparecem narrativas que apontam para referências a túmulos régios e a
sua colocação em recintos sagrados, que se tornavam panteões régios, revelando assim o
"propósito de exprimir a permanência da autoridade e de a ligar a um lugar sagrado que
aparece aos olhos dos súbditos como o testemunho da ligação do poder terreno a um poder
invisível, intocável, protegido diretamente por Deus." (MATTOSO, 200: 112-113).
No reino português na Baixa Idade Média prevalecia a concepção teocrática do poder
régio de providência divina. Assim, os reis eram reis pela "Graça de Deus". (VENTURA,
2013: 35).Os monarcas consideravam-se os representantes de Deus na terra, afirmando que
seu poder vinha de Deus, e assim, deveriam para ele devolver. Nessa concepção, viria então a
necessidade da escolha de um lugar sagrado que estivesse apto a testemunhar essa devolução
do poder à Deus. Os reis portugueses entre os séculos XII e XV, com exceção de Afonso IV,
optaram por mosteiros de ordens monásticas ou conventos de mendicantes, em que atribuíam
a função de mediadores legítimos entre os poderes divino e terreno. É importante ressaltar que
desde a formação do reino português, os mosteiros ocuparam um lugar de grande importância
na administração política do território. Além do seu papel como instituição clerical, os
mosteiros tinham funções na administração e controle dos territórios conquistados,
delimitando assim as posses do rei, servindo também como redutos de produção cultural,
artística, historiográfica, e enquanto espaços religiosos eram também locais de manifestação
do sagrado, de aconselhamento espiritual do rei e do povo, e utilizados como local de
memória dinástica e "descanso eterno" da realeza. A eleição de mosteiros como Panteões
Dinásticos também obteve um significativo lugar entre os monarcas da Dinastia Afonsina

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entre os séculos XII e XIV, como os Mosteiros de Santa Cruz de Coimbra, Alcobaça e
Odivelas. Esses panteões régios seriam, segundo Saul António Gomes,

Panteões quer enquanto estruturas sepulcrais, quer enquanto centros


topográficos simbólicos, microcósmicos de poderes régios ou aristocráticos,
caso das capelas santas que não tinham necessariamente de funcionar como
espaços cemiteriais. [...] Dos lugares de sepultura escolhida pelos
governantes. Estes podem revelar-se espaços simbólicos e de unificação do
Reino e nisso se transformam efectivamente quando as circunstâncias
históricas no-los apresentam como lugares de repouso de várias gerações de
estirpes reais e nobiliárquicos. São espaços de post-mortem e, por isso,
extremamente sagrados. Compreende-se assim, dentro de uma tradição
cristã, que os monarcas elegessem catedrais e mosteiros para instituição dos
seus panteões régios. (GOMES, 1997: 283).

O primeiro panteão régio português foi o Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, fundado
entre os anos 1131-32. Sediado na cidade de Coimbra que era desde 1130 a capital política e
administrativa do reino, o mosteiro foi ao longo do reinado de D. Afonso Henriques ganhando
grande importância político-religiosa, sendo entregue aos cuidados da Ordem de Santo
Agostinho. Ao escolher o mosteiro enquanto panteão fúnebre, D. Afonso Henriques
estabeleceu no seu reino uma prática comum aos outros reinos ibéricos. Na Hispania Cristã,
mosteiros como Santo Isidoro de Sevilha ou Sahagún já haviam se tornado grandes e
prestigiados panteões régios. Nesse local foram sepultados os dois primeiros monarcas
portugueses: D. Afonso Henriques (+1185) e D. Sancho I (+1211). Além dos reis, foram
sepultados também suas consortes e outros membros da família real.
Nos reinados seguintes, a realeza portuguesa elegeria outro mosteiro como Panteão
Fúnebre, o Mosteiro de Alcobaça, da Ordem Cisterciense. Com sua construção iniciada por
volta de 1170, ainda no reinado de D. Afonso Henriques, o Mosteiro de Santa Maria de
Alcobaça, foi aos poucos ganhando espaço e adquirindo a condição de panteão fúnebre, sendo
ali sepultado o terceiro rei da casa de Borgonha, D. Afonso II, que teve seu corpo transferido
para o local em 1223. A partir do século XIII, os monarcas passaram a escolher panteões no
espaço rural, longe das cidades, sendo um dos motivos da mudança de Santa Cruz de
Coimbra, que ficava no espaço urbano, para Alcobaça, que representava também uma maior
ligação dos reis lusitanos no século XIII em torno dos rituais litúrgicos das ordens
cistercienses, especialmente aquelas de maior teor fúnebre. No Mosteiro de Santa Maria do
Alcobaça foram sepultados os reis D. Afonso II (+1223), D. Afonso III (+1279), suas
consortes e outros membros da família real, além do rei D. Pedro I (+1367) e D. Inês de
Castro (+1357). D. Pedro I foi o último rei português a ser sepultado em um panteão da ordem
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cisterciense, em Alcobaça, o rei e sua consorte, “jazem ali em esplendorosos túmulos góticos
que constituem, simbolicamente, o último e mais luminoso dos sepultamentos reais
portugueses de baixo de abóbodas cistercienses”. (GOMES, 1997: 292).
No século XIV, acentuou-se a preferência por panteões individuais ou conjugais em
Portugal. É nesse contexto que surge o Mosteiro de S. Dinis de Odivelas enquanto Panteão
Régio de D. Dinis. Por volta de 1318, Odivelas se tornou o local que deveria acolher os
corpos e guardar a memória do rei D. Dinis e de sua linhagem, transmitir e preservar a
imagem da Coroa ao longo dos tempos, com a instituição de capelas nas quais deveriam ser
realizadas missas e cultos a família real. Diferente de seus antecessores, D. Dinis encomendou
a realização do próprio monumento funerário. Esse pioneirismo do monarca foi a primeira
representação em Portugal da tentativa consciente de um rei de construir um símbolo físico
que transmitisse para as próximas gerações o poder e imagem de seu reinado. Apesar dos
esforços de D. Dinis na consolidação de seu Panteão, essa ideia teve vida breve, não
resistindo aos conflitos que aconteceram durante o seu governo, como a guerra civil com o
filho e futuro Rei D. Afonso IV (1319 – 1324). No mosteiro de Odivelas encontram-se
sepultados o Rei D. Dinis (+1325) e outros membros da família real. Após o "pioneirismo" de
D. Dinis, seus sucessores ampliaram a necessidade de inovar no aspecto da construção da sua
memória política e de demonstração de poder régio, e os seguidos conflitos que surgem nas
próximas sucessões, entre reis e herdeiros, motivaram os novos monarcas a necessidade de
romper com o passado e consolidar seu próprio reinado. (VAIRO, 2010: 3)
Como legado da Batalha de Aljubarrota, da vitória e independência perante Castela, D.
João I mandou erguer no local de seu grande triunfo o Mosteiro de Santa Maria da Vitória. A
princípio, como forma de agradecimento a virgem pela “ajuda divina” aos portugueses
durante a batalha, o que no imaginário da época, lhes deu a vitória, como ressaltou o rei em
seu testamento: “porque nos prometemos no dia da batalha que ouvemos com el Rey de
Castela, de que Noso Senhor Deus nos deu vitoria, de mandarmos fazer aa homrra da dita
Nossa Senhora Samta Maria”. (TESTAMENTO DE D. JOÃO I in GOMES, 2002: 135). De
acordo com Saul António Gomes;

O mosteiro resultava, pois, de um processo de maturação por parte do


monarca e de algumas personalidades influentes na corte, não nos parecendo
que tenha sido obra decidida, em definitivo, num só momento. Para sua
importância simbólica e política, que adquirirá ao ser eleito panteão real, a
partir de 1416, tornou-se necessário esperar pela evolução das condições
económicas e políticas do reino, ao mesmo tempo que se tornava objeto de

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consensos por parte dos mais diversos quadrantes sociais do poder.
(GOMES, 1990: 5)

D. João I manda edificarem em 1386, o Mosteiro da Batalha, um monumento à vitória


perante Castela e como agradecimento a virgem, por sua vitória. Com o passar dos anos, o
mosteiro foi ganhando maior importância até ser escolhido como panteão fúnebre. No século
XV, o Mosteiro da Batalha se inseriu no contexto de panteões dinásticos que se alastraram
pela Europa. Estes eram grandes necrópoles reais, de demonstração física de poder e culto à
memória e aos corpos dos reis falecidos. O marco inicial da transformação do Mosteiro da
Batalha enquanto Panteão de Avis foi a trasladação do corpo da rainha D. Filipa de Lencastre,
do mosteiro de Odivelas para a Batalha. Falecida em 1415, os restos mortais da rainha foram
levados para a Batalha no ano seguinte, em 1416, a mando do rei, onde se encontra sepultada
em um túmulo conjugal com o rei D. João I, que se juntou a sua consorte no ano de 1433. No
local, o monarca “mandou erguer para si e para sua esposa um túmulo conjugal, até então
nunca visto no reino, guardado no interior da capela que sacralizava os restos mortais de um
rei fundador, acompanhado da sua linhagem.” (COELHO, 2010: 62). Apenas na década
seguinte, o rei D. João I oficializou essa escolha, quando exigiu em seu testamento ser
sepultado junto a sua esposa naquele mosteiro, pedindo ainda, que seus corpos fossem
lançados em Santa Maria da Vitória, que mandou construir com a rainha, e dentro dele, o rei
ordenou que o sepultamento fosse realizado na Capela-mor, onde jaz Dona Filipa, e que
depois fossem transferidos para a Capela do Fundador quando esta estivesse pronta.
(TESTAMENTO DE D. JOÃO I in GOMES, 2002: 134).
Como a edificação desses panteões se relaciona a morte dos monarcas? Na análise das
fontes e da historiografia, percebemos que os registros dos momentos finais dos reis aliam-se
a um processo que passa pela ritualização do momento da morte, e depois, ao culto a sua
memória, entrelaçando-se com o espaço do sagrado onde eram realizados os rituais e a
solenização do passamento dos soberanos. Partindo dessa premissa, a morte e os momentos
finais da Rainha Dona Filipa aparecem-nos também como um dos primeiros elementos de
junção de propaganda do poder político aliada a idealização da morte régia dentro do projeto
legitimador da Dinastia de Avis. Talvez a mais importante fonte sobre o tema seja a Crónica
da Tomada de Ceuta de Gomes Eannes de Zurara. O Cronista dedicou uma boa parte da
narrativa a importância da consorte de D. João I na expedição para Ceuta. Aliás, nela, o
processo da morte de Dona Filipa aparece sempre interligado ao projeto expansionista do
marido. Em 1415, enquanto o monarca e os infantes se preparavam para a viagem à Ceuta,

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chegava a notícia de que a rainha estava doente, atingida pela peste. Zurara reforça ainda que
a senhora, em suas palavras, uma das "princesas de maior devoção do mundo", estava também
fragilizada devido aos jejuns, orações e vigílias que tinha como prática, apesar das
recomendações dos físicos de que os exagerados jejuns fariam mal para a sua saúde. No mês
de julho, Dona Filipa então partiu e retirou-se ao Mosteiro de Odivelas, onde passou seus
últimos dias de vida. Temendo o pior, a rainha mandou chamar seus filhos com a intenção de
armá-los cavaleiros. Os infantes D. João e D. Fernando, ainda muito jovens, com apenas 15 e
12 anos de idade, respectivamente, não foram permitidos permanecerem próximos à mãe,
devido ao grande risco de contágio da doença (a peste bubônica). Mas os filhos mais velhos,
D. Duarte, D. Pedro e D. Henrique permaneceram ao seu lado, especialmente o herdeiro, que
buscou os melhores físicos e cirurgiões do reino para tentar curá-la. (COELHO, 2011: 79). Na
prosa do cronista, D. Filipa, tomando conhecimento de que a morte se aproximava, mandou
trazer uma cruz de madeira, que na época acreditava-se ser o crucifixo do Lenho da Cruz, e o
partiu em quatro pedaços, dando cada parte para os três infantes e a uma restante guardou para
o marido. A rainha então teria rogado aos filhos que recebessem essa preciosa joia, que ela os
entregava com grande doação, que essa por vontade de Deus, seria um perfeito escudo e
defesa para os perigos da alma e do corpo, contra qualquer inimigo temporal ou espiritual,
especialmente os "infiéis" que enfrentariam na África. Esse ato profundamente simbólico, em
vésperas da "cruzada" de Ceuta, tornava os infantes em Cavaleiros de Cristo, com o dever de
lutar contra aqueles que o renegavam, assim, "a sua empresa militar legitima- se na defesa e
expansão da fé cristã". (COELHO, 2011: 80). Quando as espadas que a rainha encomendou
finalmente chegaram, ela armou seus filhos e designou quais seriam as "nobres" funções que
deveriam representar no reino. À D. Duarte, o herdeiro do trono, caberia a justiça para a
governança do povo português. Ao infante D. Pedro, deixou o serviço de cuidados e honra das
donas e donzelas do reino, dizendo ser uma das grandes responsabilidades de um cavaleiro. À
D. Henrique, pediu que o filho zelasse pela relação de lealdade com os vassalos e a nobreza
senhorial portuguesa. Ao herdeiro da Coroa, a soberana pede ainda que seja responsável pela
boa concórdia dos irmãos e aos outros dois que acatassem as suas ordens, insistindo na união
da linhagem como suporte do reino. Os filhos, em lágrimas, nos dizeres de Zurara, beijavam a
mão de sua mãe e recebiam as bênçãos que dela vinha, assim acatando
prontamente os seus mandamentos. (CRÓNICA DA TOMADA DE CEUTA, cap. XLI).
O discurso construído em cima do modelo de rainha exemplar em volta de D. Filipa,
tanto por D. Duarte, como Fernão Lopes, de uma virtuosa cristã, mãe, esposa e educadora,

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acumulava-se na narrativa de Zurara com "o carisma da incentivadora do projecto
expansionista e da distribuidora das missões a desempenhar pelos infantes. D. Filipa
consagrava-se como agente fundamental da legitimação da dinastia avisina". (COELHO,
2008: 238). Na narrativa do cronista, a rainha, com sua determinação e atitudes, trazia uma
predestinação da conquista que viria a ser atingida em Ceuta, dando a soberana um importante
papel também como anunciadora do sucesso da expedição. Com a sua morte, a empresa ao
norte africano foi adiada por algumas semanas, quando no começo de agosto, os portugueses
embarcariam para a sua aventura em terras marroquinas. Entre os capítulos trinta e sete a
quarenta e três, Zurara constrói uma narrativa centrada na intervenção da monarca nos
destinos do reino e da dinastia. Nos dois capítulos seguintes, o cronista narra que cumprida as
suas missões terrenas, a rainha declarou que a partida para o norte africano se realizaria no dia
de Santiago e que do Além contemplaria essa partida. O cenário de sua morte completa-se
ainda com a sua visão da Virgem, que lhe traria a certeza de sua salvação. Em seguida, Dona
Filipa comungou e foi ungida, pois os físicos determinaram que restava para a rainha apenas
mais um dia de vida.
Em seu último dia de vida, 18 de julho de 1415, a monarca ordenou que se realizasse a
reza dos ofícios dos mortos, no qual seguiu atenta, corrigindo os erros dos clérigos. Findando
o ofício, entregou sua alma à Deus, com "um sorriso nos lábios", representando a teoria dos
Doutores da Igreja de que o "homem que direitamente há-de viver, venha a este mundo
chorando e se parta dele sorrindo", levando à "enfatização da boa morte de uma rainha
exemplar e a intervenção da rainha nos destinos de Portugal e no futuro da Dinastia de Avis".
(COELHO, 2011: 82). Devido as condições climáticas, e como era prática no verão, além do
estado em que se encontrava o corpo devido aos avanços da peste, o enterro foi apressado e
feito logo na noite do dia de seu falecimento. Na narrativa do cronista, o sepultamento aparece
como feito de forma rápida e discreta, algo não condizente com a morte de uma rainha. Os
infantes e os grandes senhores do reino acompanharam a cerimônia, todos vestidos de burel
em sinal de luto e de dor. O simples cortejo justificou Zurara, "não seria tão grande em este
mundo como lhe seria feito no outro". (CRÓNICA DA TOMADA DE CEUTA, cap. XLV).
A simplicidade da cerimônia fúnebre da rainha foi um dos motivos que levariam no
ano seguinte, em 1416, o Rei D. João I mandar fazer a trasladação dos restos mortais de Dona
Filipa para o Mosteiro da Batalha. Em um momento em que já havia conquistado Ceuta e
legitimado seus filhos pelas armas, uma grande cerimônia fúnebre para a sua consorte, que
teria desempenhado um papel fundamental nessas questõese mais, utilizaria dessa

261
cerimonialização como propaganda do poder político de forma a inaugurar o seu precioso
panteão da Batalha.
A ligação do D. João I com o mosteiro é de suma importância na construção simbólica
e legitimação da nova dinastia, realizada principalmente por meio da forte propagação política
de sua memória. Feito a contextualização do processo de construção da escolha do Mosteiro
da Batalha como panteão régio, como este se inseriu nas vontades póstumas do rei em seu
testamento? Escrito no ano de 1426, o testamento se inicia com D. João explicando os
motivos de se testar. O rei que naquele momento tinha em torno de 69 anos, reforça que
devido à finitude da vida humana, e sabendo da fragilidade de sua idade, deveria estabelecer
em testamento as suas vontades para que estas fossem cumpridas após o seu falecimento.
Após exigir que seu corpo fosse sepultado ao lado da rainha D. Filipa na Capela Mor do
panteão, o rei definiu a sua sucessão. D. João ordenou ao herdeiro, D. Duarte e aqueles que
viessem a se tornar reis e senhores de Portugal, que cumprissem as suas vontades
estabelecidas no documento. Em seguida, D. João legitimou o seu herdeiro, estabelecendo
além dos outros infantes, D. Pedro e D. Henrique, na linha de sucessão régia.
O rei reforçou a importância dos cultos e missas a serem realizadas no mosteiro, em
sua memória e da rainha D. Filipa. A preocupação do monarca com a realização dessas
missas, provavelmente, transcende os cuidados com os destinos de sua alma, envolve também
a memória e ato de cultuar o seu reinado. O ato de se realizar missas para propagar a memória
dos reis falecidos também era comum no mosteiro, de modo que esta solenização da morte
dos reis representava uma afirmação pública do poder monárquico e de propaganda política.
(MATTOSO, 2001: 145).
D. Duarte encarregou-se de reforçar e manter a memória dos seus pais e da Dinastia de
Avis, ocupando-se "meticulosamente, da cerimonialização e ritualização do tempo de luto e
de dó – da linhagem e família para com o seu progenitor e parente; e de toda a população do
reino para com seu chefe e rei.” (COELHO, 2010: 77). Desse modo, entendemos que o papel
do sucessor na realização da cerimônia de luto do seu rei antecessor e seu pai (como ocorreu
com os reis de Avis até D. João II), representava também uma afirmação de que o poder do
rei não acaba com a sua morte, mas continuava na sua sucessão. Assim, a grandiosidade e a
expressividade do espetáculo funerário, realizado pelo sucessor, tinha um papel primordial:
afirmava que “a morte do rei não significava a morte do poder; a morte do rei tornava-se, pelo
contrário, no momento da sua demonstração mais inesquecível.” (MATTOSO, 2001: 123).

262
Vejamos o que Rui de Pina registrou sobre os últimos momentos de vida do Rei D.
João I, a sua morte e o seu sepultamento no Mosteiro da Batalha, no primeiro capítulo da
Crônica de D. Duarte. No ano de 1433, o monarca já em idade avançada, aos 76 anos,
estando doente, foi aconselhado pelos físicos e infantes que permanecesse em Alcochete,
Riba-Tejo para descansar e se tratar. D. João, sentindo-se com as fraquezas e sintomas da
doença que o afligia e temendo a proximidade da morte, afirmou que para ele enquanto rei
não caberia morrer em vilarejos ou aldeias, mas sim na sua amada cidade, e na melhor casa de
seus reinos, que assim o levassem para Lisboa e que passasse seus momentos finais em seu
castelo. Passados alguns dias e a melhora em seu estado de saúde, os infantes a seu pedido, o
levaram a Capela maior da Sé de Lisboa, no Altar do Mártir São Vicente, de quem era muito
devoto, para que pudesse se despedir. Ali ouviu uma solene missa e encomendou à Deus a sua
alma. Depois, visitou a Igreja de Santa Maria da Escada, que assim como o Mosteiro de São
Domingos, mandou construir, despedindo-se da imagem de Nossa Senhora e encomendo-a a
sua alma. Posteriormente, retornou ao castelo, onde poucas horas antes de seu falecimento, já
estando sob os cuidados de religiosos, preocupado com a sua aparência, pediu que aparassem
sua barba, pois não convinha ao "Rey, que muytos aviam de vêr, ficar despois de morto
espantoso e difforme" (CHRONICA DE EL-REI D. DUARTE, cap. I).
Observemos os significados presentes na atitude atribuída ao rei pelo cronista.
Nela, D. João aparece completamente lúcido e sereno em seus últimos momentos de vida,
como devem estar aqueles que são eleitos por Deus. A preocupação com a aparência retrata o
sinal de luto e dó, quando "renascerá" em outra vida na presença do "Rei dos reis". Enquanto
soberano daquele povo, não quer se apresentar "espantoso e disforme", características do
medo e do pecado, mas por outro lado, pretende acabar como o rei, em todo estado da realeza
que muitos haveriam de ver, na consciência do espetáculo da morte régia. Nota-se também
uma contraposição da sua morte com a do irmão e antecessor Rei D. Fernando, que segundo
Fernão Lopes obteve uma "morte escura", solitária, com aparência distante do homem que
fora, e uma cerimônia fúnebre muito pouco representativa ao estado de rei. (COELHO, 2008:
376).
Em seguida, Rui de Pina narra o momento do falecimento de D. João. Em uma
narrativa repleta de um simbolismo cronológico, escreveu que;

O dicto glorioso Rey acabou logo sua bemaventurada vida com mui claros
sinaaes de Salvaçam de sua alma, a quatorze dias d'Agosto, vespera
d'Assumpçam da Virgem Maria Nossa Senhora do anno do Nascimento de
Nosso Senhor Jesu Christo de mil quatrocentos e trinta e tres: e foi cousa

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assaz maravilhosa, e de singular exempro de sua devaçam, e de grande
pronostico de sua bemaventurança, que em tal dia taõ bem naceo, e nelle,
comprîa entam hidade de setenta e sete annos; e em tal dia, em batalha
campal, em que se compriam quorenta e oyto annos, vencêo neste Regno
ElRey Dom Joham de Castella, com que segurou seus Regnos e Estado: por
cuja memoria mandou alli novamente edificar o Moesteiro de Santa Maria
da Vitoria, que vulgarmente se diz da Batalha; e em tal dia, em que se
compriam dezoito annos partiu de Lixboa, quando em Africa passou e tomou
aos imygos da Fee a muy nomeada cidade de Cepta; no qual dia do seu
fallecimento ho Sol crys em grande parte de sua claridade; e assi tambem foy
ho Sol crys, ho dia em que a Rainha Dona Felipa sua molher falaceu
primeiro que elle em Sacavem; e assi ho dia em que seu filho ElRey D.
Duarte seu filho mayor, e herdeiro falleceo depois em tomar. E como quer
que ha memoria de suas muy Reeas exequias deve mais propriamente em
sua Cronica sêr registrada: porem porque foram as mais excellentes e mais
cerimoniadas que atee seu tempo nestes Regnos a Rey delles se fezeram.
(CHRONICA DE EL-REI D. DUARTE, cap. I).

Nota-se no discurso do cronista a apresentação de cronologias referentes ao dia do


nascimento do monarca, da sua idade, da data da conquista de Ceuta, do falecimento da
Rainha e da vitória em Aljubarrota, ou seja, os principais "feitos" do rei coincididos com a
data de sua morte. Muitas dessas datas não batem, mas o importante aqui é a utilização dessa
retórica pelo cronista como discurso legitimador e de propaganda da Dinastia de Avis. Nesse
discurso, D. João morreu no dia em que nasceu, fechando um ciclo. A data de sua morte
coincidiria com as duas grandes conquistas de sua vida, a batalha de Aljubarrota, a
independência e a conquista do trono português, e a partida para a conquista de Ceuta. Sabe-
se que D. João teria falecido no dia 13 de agosto, mas levando-se em conta a problemática dos
diferentes calendários, e a forma como essa questão aparece em diferentes documentos, e
principalmente a oficialização da data por D. Duarte, o registro feito pelo monarca marcaria o
dia 14 de Agosto como a data da morte do Rei D. João I, unindo assim o simbolismo do
passamento do rei com a grande conquista de Aljubarrota (1385). Assim, D. João partiria
desse mundo no dia mais "glorioso" de sua vida, exatos 48 anos após a vitória frente à
Castela, que trouxe a independência ao reino e lhe garantiu o trono.
Seguido o falecimento do rei, D. Duarte, os infantes e o conselho régio se reuniram
para decidir sobre a cerimônia e o sepultamento de D. João. O conselho primava pelo
cumprimento da vontade registrada em testamento pelo monarca, de ser sepultado no
Mosteiro da Batalha, mas parte dos membros sugeriram que o fizessem na Sé de Lisboa,
devido ao estado do corpo e a preocupação com a sua deterioração, e que depois fizessem a
trasladação para o mosteiro. Depois de um intenso debate, decidiram que o corpo do rei fosse
colocado em um ataúde de chumbo bem soldado que garantiria a sua conservação.

264
Posteriormente, os infantes, condes e grandes senhores do reino, em uma procissão solene,
carregaram sobre os seus ombros o ataúde do castelo até a Sé de Lisboa, o deixando sob o
cuidado de religiosos, de toda a clerezia da Sé e ordens da cidade, no altar de São Vicente e
ali se realizaram várias cerimônias, missas e orações pela sua alma durante os dois meses que
se seguiram. (CHRONICA DE EL-REI D. DUARTE, cap. I).
Após dois meses de exposição para os súditos na Sé de Lisboa, iniciava-se nos últimos
dias de outubro o processo de trasladação do corpo do monarca para o Mosteiro da Batalha.
No dia 26, liderados por D. Duarte, os infantes, alguns senhores e religiosos escoltaram o
ataúde pelas ruas de Lisboa, para que os da cidade se despedissem do seu rei que tinha forte
ligação com ela. Partindo da cidade, o cortejo fúnebre seguiu em itinerário por outros
importantes espaços do sagrado no reino, como os mosteiros de Alcobaça e Odivelas até em
um período de quatro dias chegar ao Mosteiro de Santa Maria da Vitória. No panteão
batalhino, o cortejo foi recebido por todos os bispos em trajes pontificais e os demais
membros da clerezia munidos de suas vestes mais ricas e hasteando cruzes. A tumba de D.
João foi carregada novamente nos ombros dos infantes. (CHRONICA DE EL-REI D.
DUARTE, cap. V). O sermão da cerimônia principal ficou ao cargo do confessor de D.
Duarte, o dominicano Frei Fernando de Arroteia, que seguiu as recomendações do novo
monarca para essas exéquias. A parte da pregação baseada em escritos duartinos focou na
idealização da família de Avis, principalmente no exemplo que deveria se retirar das virtuosas
vidas de D. João I e Dona Filipa, além de ressaltar também seus descendentes, o rei herdeiro,
os infantes, netos e bisnetos. O sucessor do trono pretendia, sobretudo reforçar a imagem da
família real e da nobreza senhorial portuguesa.
Como ordenado pelo pai no seu testamento, D. Duarte cumpriu a risca as suas
obrigações para com as cerimônias fúnebres do casal real e os cuidados dedicados ao
Mosteiro da Batalha. Mais ainda, seria o novo rei o responsável pela preservação e construção
da memória da Dinastia de Avis. D. Duarte contratou Fernão Lopes para registrar a vida e
feitos de seu pai, e o próprio também tratou de registrar memórias e escritos que nos chegam
hoje como fontes muito importantes para os estudos sobre a dinastia e o reino português no
período. No túmulo conjugal que abrigou os corpos do rei e da rainha, compôs e mandou
colocar dois epitáfios, unindo memória escrita e memória em pedra, um em latim e outro em
português. Nesses epitáfios, registrou os feitos virtuosos de seus pais: D. João, o rei invicto,
primeiro rei cristão que depois da perda de Espanha foi senhor da famosa cidade de Ceuta na
África, ressaltou também a vitória no Cerco de Lisboa e a grande vitória em Aljubarrota,

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reforçando as suas qualidades enquanto pai, não apenas da virtuosa linhagem de Avis, mas
como "pai do povo português". Assim o monarca também escreveu sobre a sua mãe,
destacando a sua nobre origem de uma poderosa Casa inglesa, depois reforçando as suas
virtudes e importância no molde dos costumes da corte e do reino, além de sua grande
devoção e religiosidade. O registro do monarca exprime a sacralização pela sua progenitora,
sacralidade que mais tarde alia-se na pessoa do rei fundador. Portanto, "santa e invicta, a
dinastia de Avis projectava-se para a imortalidade. Na terra e no Além". (COELHO, 2008:
391).
Devido a sua origem ilegítima, os monarcas da Casa de Avis buscaram na
representação e na propaganda do poder régio a sua maior ferramenta para a legitimação.
Ainda em vida, D. João I utilizou vários recursos para a idealização da sua autoridade, como
nota-se já antes mesmo de ser rei com a sua eleição nas Cortes de Coimbra (1385). Aliado aos
diversos elementos desse reforço da autoridade régia e do poder simbólico da dinastia avisina,
estaria o monumento, ou melhor, o Mosteiro da Batalha, como a memória em pedra que
representaria a grandeza da sua dinastia, tanto no aspecto físico quanto simbólico. O Panteão
da Batalha tornou-se a necrópole real, relacionando morte e poder, e, portanto, espaço da
sacralização e local de cultuar os reis de Avis e membros da família real, representando o
testamento fúnebre, a memória pétrea e o símbolo-mor de um rei e sua nova dinastia.

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