Você está na página 1de 4

Capítulo 2: EDOs Lineares de Segunda Ordem 73

2.9 Modelagem: Circuitos Elétricos


Obter bons modelos é uma tarefa que os computadores não são capazes de fazer, razão pela qual ela se tornou
uma importante tarefa na matemática aplicada nos dias de hoje. A melhor maneira de ganhar experiência nessa
atividade é considerar o modelo a partir de diversas áreas de interesse. Nessa linha, a modelagem de circuitos
elétricos que iremos discutir será útil para todos os estudantes, e não apenas para os de engenharia elétrica ou
de ciência da computação.
Acabamos de ver que as EDOs possuem importantes aplicações em mecânica (veja também a Seção 2.4).
Similarmente, elas também servem de modelos para circuitos elétricos, retratando o modo como eles se apre-
sentam como partes de grandes redes de computadores e outros aparelhos. Os circuitos que consideraremos aqui
são os blocos básicos de construção dessas redes. Eles contêm três tipos de componentes, a saber, resistores,
indutores e capacitores. A Fig. 60 mostra um desses circuitos RLC, como eles são chamados. Nele, um resistor
de resistência R ! (ohms), um indutor de indutância L H (henrys) e um capacitor de capacitância C F (farads)
são dispostos em série, conforme mostrado, e conectados a uma força eletromotriz E(t) V (volts) (um gerador,
por exemplo) senoidal, como na Fig. 60, ou de algum outro tipo. R, L, C e E são dados e desejamos encontrar a
corrente I(t) A (ampères) no circuito.
C

R L

E(t) = E0 sen ωωt

Fig. 60. Circuito RLC

Uma EDO para a corrente I(t) no circuito RLC da Fig. 60 é obtida a partir da seguinte lei (análoga à segunda
lei de Newton, conforme veremos mais tarde).

Lei da Voltagem de Kirchhoff (KVL).7 A voltagem (a força eletromotriz) imprimida num circuito fechado é
igual à soma da queda de tensão ao longo dos outros elementos do circuito.
Na Fig. 60, o circuito é um caminho fechado e a voltagem fornecida E(t) é igual à soma das quedas de vol-
tagem ao longo dos três elementos R, L e C do circuito.

Quedas de Tensão. Experimentos mostram que uma corrente I passando por um resistor, indutor ou capacitor
causa uma queda de tensão (diferença de tensão, medida em volts) nas duas extremidades; essas quedas são
RI (Lei de Ohm) Queda de tensão num resistor de resistência R (!),
dI
LI" # L $ Queda de tensão num indutor de indutância L henrys (H),
dt
Q
$ Queda de tensão num capacitor de capacitância C farads (F).
C
Aqui, Q coulombs é a carga no capacitor, relacionada com a corrente por
dQ
I(t) # $ ,
dt
equivalentemente, !
Q(t) # I(t) dt.

Isso está resumido na Fig. 61.

7
GUSTAV ROBERT KIRCHHOFF (1824–1887), físico alemão. Posteriormente, também necessitaremos da lei da corrente de Kirchhoff
(KCL):
Num ponto qualquer de um circuito, a soma das correntes que chegam é igual à soma das correntes que saem.
As unidades de medida das grandezas elétricas receberam os nomes de ANDRÉ MARIE AMPÈRE (1775–1836), físico francês, CHAR-
LES AUGUSTIN DE COULOMB (1736–1806), físico e engenheiro francês, MICHAEL FARADAY (1791–1867), físico inglês, JOSEPH
HENRY (1797–1878), físico norte-americano, GEORG SIMON OHM (1789–1854), físico alemão, e ALESSANDRO VOLTA (1745–1827),
físico italiano.
74 Parte A • Equações Diferenciais Ordinárias (EDOs)

Nome Símbolo Notação Unidade Queda de Tensão

Resistor ôhmico R Resistência ôhmica ohms (!) RI


dI
Indutor L Indutância henrys (H) L
dt
Capacitor C Capacitância farads (F) Q/C

Fig. 61. Elementos de um circuito RLC

De acordo com KVL, temos, portanto, na Fig. 60, para um circuito RLC com uma força eletromotriz E(t) =
E0 sen vt (E0 constante) como um modelo para “equações na forma integral e diferencial”

(1")
1
LI" % RI % $
C
!I dt # E(t) # E 0 sen &t.

Para ficarmos livres dessa integral, derivamos (1") com relação a t, obtendo

1
(1) LI ' % RI" % $ I # E"(t) # E0& cos &t.
C

Isso mostra que a corrente num circuito RLC é obtida como a solução dessa EDO não-homogênea de segunda
ordem com coeficientes constantes (1).
De (1"), usando I # Q", obtemos I" # Q'; também obtemos diretamente
1
(1') LQ' % RQ" % $ Q # E0 sen &t.
C
Porém, na maioria dos problemas práticos, a corrente I(t) é mais importante do que a carga Q(t), e por essa razão,
iremos nos concentrar em (1) ao invés de (1').

Resolvendo a EDO (1) para a Corrente. Discussão da Solução


Uma solução geral de (1) é a soma I # Ih % Ip, onde Ih é uma solução geral da EDO homogênea correspondente
a (1) e Ip é uma solução particular de (1). Primeiro, encontramos o valor de Ip pelo método dos coeficientes a
determinar, procedendo como na seção anterior. Substituímos
(2) Ip # a cos &t % b sen &t
I"p # &((a sen &t % b cos &t)
I p' # &2((a cos &t ( b sen &t)
em (1). Então, agrupamos os termos com os cossenos e os igualamos a E0 cos vt no lado direito, fazendo ao
mesmo tempo os termos com os senos serem iguais a zero, visto que não há termo senoidal no lado direito,
L&2((a) % R&b % a/C # E0& (Termos de cossenos)
2
L& ((b) % R&((a) % b/C # 0 (Termos de senos).
Para resolver esse sistema para a e b, primeiro introduzimos uma combinação de L e C, chamada de reatância
1
(3) S L .
C
Dividindo as duas equações anteriores por v, ordenando os termos e substituindo S, temos
(Sa % Rb # E0
(Ra ( Sb # 0.
Agora, eliminamos b multiplicando a primeira equação por S e a segunda por R, e fazendo a soma. Então, elimi-
namos a multiplicando a primeira equação por R e a segunda por –S, e somando. Isso fornece
((S2 % R2)a # E0 S, (R2 % S2)b # E0 R.
Em qualquer situação prática, a resistência R é diferente de zero, de modo que podemos resolver as equações
para a e para b,
Capítulo 2: EDOs Lineares de Segunda Ordem 75

(E0 S E0 R
(4) a#$
R2 % S2 , b#$ .
R2 % S2
A Equação (2) com coeficientes a e b dados por (4) é a solução particular desejada Ip da EDO não-homogênea
(1) que governa a corrente I num circuito RLC com uma força eletromotriz senoidal.
Utilizando (4), podemos escrever Ip em termos de grandezas “fisicamente visíveis”, a saber, a amplitude I0 e
a defasagem u da corrente em relação à força eletromotriz, ou seja,
(5) Ip(t) # I0 sen (&t ( ))
onde [veja (14) no Apêndice A3.1]
E0 a S
I0 a2 b2 , tan .
R S 2 2 b R
A quantidade R2 S2 é chamada de impedância. Nossa fórmula mostra que a impedância é igual à razão
E0/I0. Isso é algo análogo à razão E/I = R (lei de Ohm).
Uma solução geral da equação homogênea correspondente a (1) é
*1t *2t
I h # c 1e % c2 e
onde l1 e l2 são as raízes da equação característica
R 1
*2 % $ * % $ # 0.
L LC
Podemos escrever essas raízes na forma *1 # (+ % , e *2 # (+ ( ,, onde

R R2 1 1 4L
, R2 .
2L 4L2 LC 2L C
Agora, num circuito real, R nunca é zero (logo, R > 0). Disso, segue-se que Ih se aproxima de zero, teoricamente
à medida que t , mas, na prática, após um tempo relativamente curto. (Ocorre algo semelhante com o movi-
mento visto na seção anterior.) Daí, a corrente transiente I # Ih % Ip tende a se igualar à corrente de regime
permanente Ip e, após algum tempo, a saída será praticamente uma oscilação harmônica, que é dada por (5) e
cuja freqüência é a mesma da entrada (da força eletromotriz).

E XE MP LO 1 Circuito RLC
Encontre a corrente I(t) num circuito RLC com R = 11 (ohms), L = 0,1 H (henry) e C = 10–2 F (farad), que está conectado a uma fonte de
voltagem E(t) # 100 sen 400t (logo, 63 _32 Hz 63 _32 ciclos/s , pois 400 63_32 2 ). Suponha que a corrente e a carga sejam zero quando
t = 0.
Solução. Etapa 1. Solução geral da EDO homogênea. Substituindo R, L, C e a derivada E"(t) em (1), obtemos
0,1I ' % 11I" % 100I # 100 ! 400 cos 400 t.
Logo, a EDO homogênea é 0,1I ' % 11I" % 100I # 0. Sua equação característica é

0,1*2 % 11* % 100 # 0.


As raízes são *1 # (10 e *2 # (100. A solução geral correspondente da EDO homogênea é

Ih(t) # c1e!10t % c2 e!100t.


Etapa 2. Solução particular Ip de (1). Calculamos a reatância S # 40 ( 1/4 # 39,75 e a corrente de regime permanente

Ip(t) # a cos 400t % b sen 400t


com os coeficientes obtidos de (4)
(100 ! 39,75 100 ! 11
a # $$ # (2,3368, b # $$ # 0,6467.
112 % 39,752 112 % 39,752
Logo, no presente caso, uma solução geral da EDO não-homogênea (1) é

(6) I(t) # c1e!10 t % c2 e!100t ( 2,3368 cos 400t % 0,6467 sen 400t.
Etapa 3. Solução particular satisfazendo as condições iniciais. Como usar Q(0) = 0? Finalmente, determinamos c1 e c2 a partir das condições
iniciais I(0) = 0 e Q(0) = 0. Da primeira condição e de (6), temos

(7) I(0) # c1 % c2 ( 2,3368 # 0, logo, c2 # 2,3368 ( c1.

Além disso, usando (1") com t = 0 e observando que a integral se iguala a Q(t) (veja a fórmula antes de (1"), obtemos
1
LI (0) R 0 0 0, logo I (0) 0.
C
76 Parte A • Equações Diferenciais Ordinárias (EDOs)

Derivando (6) e fazendo t = 0, obtemos, portanto,

I"(0) # (10c1 ( 100c2 % 0 % 0,6467 ! 400 # 0, logo, (10c1 # 100(2,3368 ( c1) ( 258,68.

A solução desta equação e de (7) é c1 # (0,2776, c2 # 2,6144. Daí, a resposta é

I(t) # (0,2776e!10t % 2,6144e!100t ( 2,3368 cos 400t % 0,6467 sen 400t.

A Fig. 62 mostra I(t) e também Ip(t), que praticamente coincidem, excetuando-se num curto período de tempo próximo de t = 0, porque os
termos exponenciais vão a zero muito rapidamente. Portanto, após um intervalo de tempo muito curto, a corrente praticamente executará
oscilações harmônicas com a freqüência de entrada 63 _32 Hz 63 3_2 ciclos/s. Sua amplitude máxima e de sua defasagem podem ser vistas por
meio de (5), que aqui toma a forma

Ip(t) # 2,4246 sen (400t ( 1,3008). !

0 0,01 0,02 0,03 0,04 0,05 t

–1

–2

–3

Fig. 62. Correntes transiente e de regime permanente, no Exemplo 1

Analogia entre as Grandezas Elétricas e Mecânicas


Sistemas inteiramente diferentes, de natureza física ou outra, podem ter esse mesmo modelo matemático. Por
exemplo, vimos isso nas diversas aplicações da EDO y" # ky no Cap. 1. Outra demonstração de grande impacto
desse poder unificador da matemática é dada pela EDO (1), referente aos circuitos RLC, e pela EDO (2) da
última seção, referente ao sistema massa–mola. Ambas as equações
1
LI' % RI" % $ I # E0& cos &t e my ' % cy" % ky # F0 cos &t
C
são da mesma forma. A Tabela 2.2 mostra a analogia entre as diversas grandezas envolvidas. A indutância L cor-
responde à massa m e, de fato, um indutor se opõe a uma alteração na corrente, exercendo um “efeito de inércia”
similar ao que ocorre com uma massa. A resistência R corresponde à constante de amortecimento c, e um resistor
provoca perda de energia, do mesmo modo que um amortecedor o faz. E assim por diante.
Essa analogia é estritamente quantitativa, no sentido em que, para um dado sistema mecânico, é possível
construir um circuito elétrico cuja corrente dará os mesmos valores do deslocamento no sistema mecânico, desde
que se introduzam fatores de escala adequados.
A importância prática dessa analogia é quase óbvia. A analogia pode ser utilizada para construir um “modelo
elétrico” de um dado modelo mecânico, resultando numa considerável economia de tempo e dinheiro, visto que
os circuitos elétricos são fáceis de montar e as grandezas elétricas podem ser mensuradas de modo muito mais
rápido e acurado do que as grandezas mecânicas.

Tabela 2.2 Analogia entre Grandezas Elétricas e Mecânicas


Sistema Elétrico Sistema Mecânico
Indutância L Massa m
Resistência R Constante de amortecimento c
Recíproco 1/C da capacitância Constante elástica da mola k
Derivada E0v cos vt da força eletromotriz } Força motriz F0 cos vt
Corrente I(t) Deslocamento y(t)

Você também pode gostar