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ROGÉRIO BORGES

O Nascimento de Goiás

A bandeira de
300 anos
Três séculos atrás, Bartolomeu Bueno da Silva pedia ao rei de
Portugal autorização para explorar minas de ouro no sertão
brasileiro. Nascia ali a colonização que ocuparia Goiás
Rogério Borges
rogerio.borges@opopular.com.br

m 13 de janeiro de 1720, um despacho trazia o requerimento assinado pelos “capitães


Bartolomeu Bueno da Silva, João Leite da Silva Ortize Domingos Rodrigues do
Prado”. No documento, seus autores falavam em avançar “em toda parte do sertão
da América”, dando continuidade a “entradas que têm feito”, onde, segundo eles,
habitava “gentio bárbaro, em aldeias do reino deles”. Daí listavam os caiapós, caraia
phitangás, arachás, quirichás, bareris, caraiahunas e, vejam vocês, os guoiás. Mal
sabiam que estavam ali criando um Estado.

Há 300 anos, aquele pedido dirigido ao rei português d. João V ganhou dois
despachos do Conselho Ultramarino e dois pareceres de procuradores da Fazenda
e da Coroa portuguesa. O Conselho Ultramarino de Portugal comunicou, em 14
de junho de 1720, que o rei havia dado a permissão pedida, estabelecendo que
o governador da Capitania de São Paulo deveria apoiar a expedição em busca
de “pedras e tesouros que se ocultam da coroa de Vossa Majestade”. Em troca,
ganhavam o direito de explorar as passagens dos rios que descobrissem.

Goiás, tal como o conhecemos, começava a nascer ali. Ainda que muitos
exploradores já tivessem passado por aqui – inclusive o próprio Bartolomeu Bueno
da Silva, filho de um outro bandeirante de mesmo nome e que foi alcunhado de
Anhanguera, por volta de 1682 –, ninguém havia se preocupado em fundar nas
terras onde posteriormente seria Goiás um povoamento. “Goiás era um lugar de
passagem somente”, contextualiza o historiador Antônio César Caldas Pinheiro,
diretor do Instituto Pesquisas e Estudos Históricos do Brasil Central (IPEHBC).

O IPEHBC, unidade da PUC Goiás, tem um dos maiores acervos ligados àquele
período, boa parte compartilhada com instituições portuguesas, como o Arquivo
Ultramarina e a Torre do Tombo, em Lisboa. Obras raras e documentos antigos
integram esse material, incluindo uma cópia do requerimento de 1720 do chamado
Segundo Anhanguera, aquele que foi o fundador dos primeiros arraiais goianos.
Antônio Caldas mergulhou nesse universo em suas pesquisas, que levaram ao livro
Os Tempos Míticos das Cidades Goianas.

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O Nascimento de Goiás

A caminho
do ouro Parte da
expedição
seguiu para o
Norte
Confira o trajeto
atribuído ao 10
bandeirante por 8 11
historiadores 13 9

Os itinerários 12
de Anhanguera 7

Os relatos sobre as
expedições dos dois
GO 6
5
Anhangueras são variados e
discrepantes. Alguns dos mais 4
famosos são a Chronographia
Histórica da Província de
Goyaz (1824), Anais da
3 MG
Província de Goiás (1863) e
Descobrimento da Capitania
de Goyaz (1967).
2
Uma obra, porém, se destaca:
A Bandeira do Anhanguera a
Goyaz (1917), hoje raríssimo,
SP 1
composto pela reconstituição
escrita por dois integrantes da
expedição que saiu da vila de
São Paulo de Piratininga em 3
de julho de 1722.

Os relatos de José Peixoto da


Silva Braga e Urbano do Couto
dão uma noção mais clara de
como a aventura começou,
se dividiu em duas e terminou. Anhanguera
Confira no mapa:
1672 - 1740

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O Nascimento de Goiás

RIO
1 SÃO PAULO 5 PARANAÍBA 10 CAVALCANTE
“Saí da cidade de S. Paulo a O próximo rio citado é o “da Meia O encontro com os Quirixás é
3 de julho de 1722 em companhia Ponte”. Possivelmente trata-se apontado, na versão de Urbano
do Capitão Bartolomeu Bueno do Rio Paranaíba, mas é possível do Couto, nas nascentes dos rios
da Silva, o Anhanguera de que também falasse do próprio Maranhão e Paranã, no Nordeste
alcunha (...). Dos brancos, quase Meia Ponte, que deságua no goiano. A expedição teria
todos eram filhos de Portugal, um Paranaíba. Começam a surgir passado à esquerda de onde hoje
da Bahia e cinco ou seis paulistas menções à tribo dos “Guayazes” é Cavalcante. Fala também da
com os seus índios.” Relato de parte da expedição, que
José P. da Silva Braga ao padre “se desnorteou”, a de Silva Braga,
Diogo Soares e foi parar nas águas do
6 CATALÃO Rio Tocantins

Acredita-se que a transposição


2 MOGI-GUAÇU do Paranaíba tenha sido feita
por Anhanguera e seus homens PLANALTINA
No relato de Silva Braga, a a cerca de seis léguas do hoje 11 DE GOIÁS
expedição atravessa o Rio Tietê, município de Catalão. A Cruz do
“junto ao mato de Jundiaí”, a Anhanguera, exposta na cidade A parte da expedição onde
quatro léguas de São Paulo. de Goiás, foi encontrada estava Urbano do Couto, ao
Em seguida, passa pelo que naquela região invés de subir para o norte, saindo
chamam de Rio Mogi, onde de onde hoje está Planaltina de
hoje fica Mogi-Guaçu Goiás, desceu para o sudoeste,
chegando aos afluentes do
SANTA CRUZ
7 DE GOIÁS
Rio Corumbá, alcançando
também as margens
ATUAL DIVISA
3 SP E MG Esse caminho da bandeira
do Rio Meia Ponte
também passa por onde depois
A próxima travessia foi do seria construída Santa Cruz de
Rio Grande, que hoje divide os Goiás e nos arredores da
Estados de São Paulo e Minas
Gerais. Ali fabricaram canoas e
atual Luziânia
12 GOIÂNIA
E ANICUNS
demoraram cerca de cinco dias
na passagem, ainda segundo Segundo Urbano do Couto,
Silva Braga
8 RIO ARAGUAIA
Anhanguera teria passado nas
proximidades de Campininha,
hoje bairro de Campinas
E seguida, o relato fala em (Goiânia, portanto), chegando à
dezenas de léguas percorridas. região onde está Anicuns, onde
TRIÂNGULO
4 MINEIRO
Fala-se de desentendimento
entre os bandeirantes.
teria encontrado vestígios da
velha bandeira de pai
Depois, chegaram às margens do A expedição sem Anhanguera 40 anos antes
Rio das Velhas, um dos principais encontra o Rio Tocantins. Após
do Triângulo Mineiro. Neste este período chega ao Araguaia.
ponto, Anhanguera avança De lá, mantém comunicação
com uma tropa, na vanguarda, com o Pará
CIDADE
passando pelas imediações
de onde foi fundada Uberaba.
13 DE GOIÁS
DISTRITO
Grupos de Silva Braga
e Anhanguera se separam 9 FEDERAL
De Anicuns até a Serra Dourada,
na região da cidade de Goiás,
e à Bacia do Rio Vermelho, a
No roteiro descrito por Urbano distância não foi muito grande,
do Couto, após atravessar atravessando áreas onde hoje
o Rio Paranaíba, o grupo de se localizam cidades como
Anhanguera teria andado Mossâmedes e Americano
“oitenta e tantas léguas” até do Brasil
a Lagoa Mestre D’Armas,
nas proximidades do atual
Distrito Federal

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O Nascimento de Goiás
Fábio Lima

A expedição do primeiro Anhanguera – que teria deixado vestígios em algumas A MATRIZ de


partes do que viria a ser o território goiano e que o filho, mais tarde, garantiria Sant’Anna,
ter encontrado – foi uma das que chegaram por aqui ainda no final do século 17. ao fundo, era
Vinham em busca de riquezas, mas não se ocuparam em explorar jazidas de metais de início uma
ou pedras preciosas. Sua prioridade era mapear a região e, sobretudo, capturar capela, datada
indígenas, mão-de-obra escrava que levavam ao litoral, ao mesmo tempo que de 1743
membros da Igreja tentavam evangelizar essas comunidades nativas.

A rota para o sertão foi inaugurada bem antes de o primeiro Anhanguera e seu
filho, então com cerca de 12 anos de idade, empreenderem a primeira aventura pelo
interior brasileiro. Já em 1647, outro bandeirante, Manuel Correia, abriu os caminhos
pioneiros pelos limites traçados pelo Tratado de Tordesilhas, assinado entre
Portugal e Espanha em 1494, que dividia as novas terras. As bandeiras, sobretudo
as que saíram da modesta Vila de São Paulo de Piratininga (que viria a ser a maior
metrópole da América Latina), tiveram papel essencial nessa ocupação.

Os caminhos daquela bandeira de Manuel Correia foram trilhados várias vezes


e serviam de referência. Antes da autorização dada a Bartolomeu Bueno e seus
sócios para descobrirem novas minas de ouro no sertão, uma localidade foi fundada
às margens do Rio Cuiabá, em uma região ainda mais profunda daquele universo
desconhecido. Hoje, lá está a capital do Mato Grosso. E naquele mesmo ano de 1719,
Bartolomeu Bueno, que desde cedo envolvera-se com os negócios que exploravam as
bandeiras pelo interior, esteve em terras goianas.

Já com o pedido ao rei português na manga, ele formou um grupo e saiu do


interior paulista, onde encontrou refúgio após disputas políticas e comerciais – ele
chegou a morar em Sabará, Minas Gerais –, Bartolomeu Bueno enveredou pelo
interior e alcançou a chamada Lagoa Mestre d’Armas. Esse ponto é conhecido hoje
como Lagoa Bonita, no município de Planaltina de Goiás. Na época, não se poderia
imaginar que todo aquele território intocado pelo colonizador abrigaria, três séculos
depois, metrópoles e a sede do poder nacional.

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O Nascimento de Goiás

EXPEDIÇÕES MISTERIOSAS
Sobre a expedição do primeiro Anhanguera, que começou por
volta de 1682, há muitas hipóteses. Uma delas afirma que teria se
arranchado nas proximidades de onde hoje está a cidade de Jaraguá,
deixando inscrições na grande serra que existe na região. Outros
acreditam que seria difícil encontrar tais rastros tanto tempo depois,
havendo outras explicações para essas pistas. Ao anunciar suas
descobertas, porém, Bartolomeu Bueno, o filho, assegurou que havia
localizado os lugares em que estivera quando adolescente com o pai
bandeirante.

Os mistérios e incoerências que cercam aquela primeira bandeira


de Bartolomeu Bueno, o pai, são muitos, uma vez que tais expedições,
muitas vezes, se perdiam no sertão, tendo diversos de seus integrantes
um final trágico, por doenças ou embates com povos indígenas. “A
história muito conhecida de se colocar fogo na bateia com aguardente
para ameaçar os indígenas de incendiar os rios era um subterfúgio
usado muito antes do Anhanguera. Os bandeirantes faziam isso com
frequência”, explica o historiador Antônio Caldas, do IPHEBC.

Outra narrativa corrente é a de que o Ribeirão João Leite teria


esse nome em razão de nos três anos da expedição do segundo
Anhanguera, o filho, um dos líderes da empreitada, João Leite da Silva
Ortiz, ter passado por ali. Genro do segundo Anhanguera, João Leite e
todo o grupo teriam se arranchado em um lugar próximo às margens
do curso d’água. “Isso também não procede. Havia na região uma
família Leite e é provável que seja por essa razão. Não há provas cabais
que haja relação com os bandeirantes”, diz Antônio Caldas.

Outra versão refutada pelo historiador envolve um dos símbolos


daquelas expedições. “A chamada Cruz do Anhanguera, que está
na cidade de Goiás, é considerada como aquela que foi cravada em
solo goiano quando os bandeirantes aqui chegaram. Só que ela foi
encontrada em Catalão e o território a ser explorado, na época, incluía
o Triângulo Mineiro. Por que colocar a cruz num novo território
apenas depois do Rio Paranaíba. Além disso, na cruz há a inscrição do
ano de 1746. A bandeira do Anhanguera chegou em 1722”, argumenta.

O professor vê mais sentido, porém, na possibilidade de que


as bandeiras paulistas tenham tido um impulso externo para sua
aprovação pela Capitania de São Paulo. Em 22 de agosto de 1719, a
área que mais recursos dava à capitania paulista tornou-se autônoma,
passando a chamar-se Minas Gerais. “Isso enfraqueceu São Paulo, que
deixou até de ser capitania por 15 anos, passando para a gestão do
Rio de Janeiro”, relata Antônio Caldas. Descobrir novas riquezas no
território passou, assim, a ser questão de sobrevivência.

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O Nascimento de Goiás
Fábio Lima

O primeiro
IGREJA NOSSA
SENHORA DO

Arraial
ROSÁRIO DA
BARRA, na vila
de Buenolândia,
conhecida
como Vila dos
Garimpeiros ou
antigo Arraial
No encontro dos rios Vermelho e do Bugre, da Barra, no
município da
Bartolomeu Bueno da Silva abriu lavras de ouro. cidade de Goiás
Seguindo os passos do Anhanguera, chegamos
ao Arraial da Barra, povoado pioneiro

Dona Maria de Almeida da Silva tem 93 anos e deu à luz 11 filhos. “Todos
eles criados aqui na Barra”, esclarece, com uma vitalidade incomum para a uma
senhora de sua idade. “Já me esqueci quantos anos eu moro aqui”, admite. Sempre
no mesmo lugar. Sua casa, que já passou por muitas reformas e mudanças no
decorrer das décadas, fica colada ao muro do cemitério que ladeia a pequena e
bela Igreja Nossa Senhora do Rosário, a primeira erguida na região, logo quando o
lugar foi ocupado por um bandeirante paulista que vinha atrás de ouro.

Hoje distrito da cidade de Goiás – está a cerca de 30 km da antiga capital goiana


–, o lugar onde Maria de Almeida mora foi o primeiro povoamento fundado por

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O Nascimento de Goiás
Fábio Lima

MARIA DE
Bartolomeu Bueno da Silva, o Segundo Anhanguera, em sua missão de ocupar
ALMEIDA DA
os sertões brasileiros quase 300 anos atrás. Por se encontrar no local onde o Rio
SILVA, 93 anos:
do Bugre despeja suas águas no leito do Rio Vermelho, a localidade foi batizada
“Todos os
em 1726 de Arraial da Barra. Ali, Anhanguera abriu sua primeira lavra fixa para
meus 11 filhos
explorar o ouro da região. Ali estaria enterrado.
foram criados
aqui na Barra.
O distrito, atualmente chamado de Buenolândia em homenagem ao seu
Já me esqueci
fundador, preserva o mesmo ar pacato há décadas. Com poucas ruas e moradores
quantos anos
que se conhecem a vida toda, chega-se a ele por estrada de chão e é cercado por
eu moro aqui”
propriedades rurais. A Igreja do Rosário é sua construção mais imponente e, após
ser reformada, ganha manutenção periódica dos moradores. Uma delas guarda a
chave da porta do templo e do portão do cemitério, que costuma ser aberto apenas
quando alguém precisa ser ali sepultado.

Uma versão corrente é a de que Anhanguera, que morreu na cidade de Goiás


em 1740, teria encontrado seu último repouso naquele pequeno campo santo,
onde túmulos em ruínas dividem espaço com sepulturas mais recentes, com
nomes conhecidos de famílias da região. “Pode ser ali, mas ele também pode
estar enterrado no subsolo da igreja. Não há uma informação precisa sobre isso”,
informa o historiador Antônio César Caldas Pinheiro, diretor do IPEHBC,
da PUC Goiás.

A data de fundação da Barra, 1726, diz um pouco da peregrinação que aquela


expedição de bandeirantes, que saiu de São Paulo em 1722, fez até fincar as

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O Nascimento de Goiás

primeiras bases nas terras que depois seriam Goiás. Crônicas históricas dizem
que o lugar foi escolhido por Anhanguera para se estabelecer porque ali teria
encontrado vestígios da primeira expedição, de 1682, liderada por seu pai,
também alcunhado de Anhanguera. O nome do território a ser explorado por
quem vinha do litoral se deveria ao fato de ali haver um aldeamento da tribo
dos guoiases.

NO CORAÇÃO DO BRASIL
Muitas lendas cercam essa iniciativa pioneira de vir ao coração brasileiro
não apenas para capturar ou evangelizar indígenas, mas para tomar posse do
território, erguendo os primeiros povoamentos fixos. Construções precárias
foram erguidas em pontos onde se esperava que houvesse ouro. “Em 1725, havia
ranchos onde depois seriam povoados, como Ouro Fino, Ferreiro e a própria
Barra”, diz o pesquisador Antônio Caldas, consultando documentos. Mas um
povoado mesmo só foi efetivado em 1726, data oficial de sua fundação.

Dona Maria de Almeida não sabe detalhes dessa narrativa. Olha para a
igreja onde vai aos domingos assistir à missa como quem olha para um espelho,
reconhecendo- se em cada detalhe e já nem prestando atenção aos sinais que
passaram a fazer parte de sua rotina. “Vem tomar café, meu filho”, convida. “Eu
moro aqui com uma filha e ainda faço tapetes”, revela, mostrando sua produção
de peças coloridas. A arrumação é impecável e a comida está no fogão. Ela leva
sua vida no ritmo de Buenolândia, sem se importar muito com o fato de ser
vizinha da história.

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O Nascimento de Goiás

O VAI E VEM DE ANHANGUERA


Weimer Carvalho Um desencontro quase comprometeu o sucesso da expedição de
Bartolomeu Bueno da Silva, o segundo Anhanguera, aos sertões goianos.
Autorizado a partir pelo rei de Portugal em 1720, ele precisou de algum
tempo para conseguir os recursos para a jornada. Rodrigo César de
Meneses, que fazia as vezes de governador da Capitania de São Paulo,
demorou quase dois anos para entregar ao bandeirante o que ele pedia para
a viagem e que o rei D. João V ordenara que lhe fosse disponibilizado. Em
1722, aquela aventura temerária começou.

Três anos e dois meses depois, uma mensagem enviada por Anhanguera
chegou a São Paulo de Piratininga, a vila que se tornaria depois a maior
metrópole da América Latina. E as notícias não eram boas. Segundo o relato,
haviam “perdido 22 escravos para os gentios” e falava de males e doenças no
meio da mata, ainda que “as áreas não serem tão contagiosas como Cuiabá”,
comparava, fazendo referência ao povoado fundado em 1719 e que viria a
ser a capital do Estado do Mato Grosso. A carta implorava por mais recursos
para a empreitada.
ANTÔNIO CÉSAR
CALDAS PINHEIRO,
Essa correspondência, que consta dos Anais da Província de Goiás,
historiador, sobre o
publicados por José Martins Pereira de Alencastro em 1863, revela que a
movimento inicial das
carta, ao chegar ao governador Rodrigo de Meneses, em 27 de outubro de
bandeiras a Goiás
1725, já fazia pouco sentido. Três dias antes, o próprio Anhanguera e seu
nos anos 1720: “Há
companheiro de bandeira, seu genro João Leite Ortiz, surpreendentemente
discrepâncias de datas,
apareceram em carne e osso em São Paulo para dizer que a missão havia
dependendo do autor
sido um sucesso, informando pessoalmente que existiam muitas minas de
que se consulte”
ouro na bacia do Rio Vermelho.

“Há discrepâncias de datas, dependendo do autor que se consulte”, pondera o historiador Antônio César
Caldas Pinheiro, do IPEHBC. Se José Martins Pereira de Alencastro fala no retorno dos bandeirantes em
24 de outubro de 1725, Americano do Brasil, em Súmula da História de Goiás, crava esta data em 21 de
outubro, afirmando que a volta do Anhanguera se deu após “três anos, dois meses e três dias”. As boas novas
foram dadas à Corte Portuguesa e a resposta veio em uma carta do rei, de 29 de abril de 1726, autorizando o
retorno ao sertão.

O grupo formado por Bartolomeu Bueno da Silva, pelo Padre Antônio de Oliveira Gago e pelos sócios João
Leite Ortiz e Manoel Pinto Guedes, segundo José Martins de Alencastro, saiu de São Paulo em maio de 1726,
já sabendo exatamente aonde queria chegar. Aquela primeira lavra aberta na barra do Rio do Bugre com o Rio
Vermelho se transformaria no primeiro arraial do território que viria a ser Goiás. Ouro Fino e Ferreiro, ranchos
que também foram montados por Anhanguera na região, também seriam alçados a arraiais entre 1726 e 1727.

Anhanguera seria, por um bom tempo, senhor e dono de muitos destinos por aqui. Exerceu cargos
de poder e fundaria, em 1727, o Arraial de Sant’Anna, que seria promovido a freguesia (ganhando uma
paróquia) em 1729 e considerado um povoado em 1739. Nascia ali a cidade que depois se chamaria Vila
Boa de Goiás, futura sede de capitania. Mais correspondências revelam que Anhanguera, ainda em 1728,
fez mais uma viagem a São Paulo, para prestar contas do ouro retirado das minas goianas e conseguir mais
recursos para tal exploração.

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O Nascimento de Goiás
Fábio Lima

JOÃO GONÇALVES PINHEIRO, 92 anos: “Aqui


a gente fazia o garimpo, nesses barrancos.
Era puro garimpeiro na minha época. Depois
proibiram por causa do meio ambiente”

O SONHO NÃO ACABOU


Sobre a ponte que atravessa o Rio do Bugre, pertinho de sua barra
com o Rio Vermelho, João Gonçalves Pinheiro, 92, mostra onde um dia
procurou e encontrou riquezas, onde cavou na esperança de achar a sorte
grande em forma de um metal precioso. “Aqui a gente fazia o garimpo,
nesses barrancos aqui. Era puro garimpeiro na minha época. Depois
proibiram por causa do meio ambiente”, relata, com travo de frustração
na voz.

Este velho garimpeiro, que todos conhecem como Inocêncio, gostaria


de ter tentado mais. “Trabalhei 70 anos no garimpo. Tirei bastante ouro.
Muita gente chegou a trabalhar para mim”, recorda, com gestos largos e
andar dificultoso. “Cheguei a ter 22 peões. Eram dois cozinheiros para
fazer comida.” Nascido em Jaraguá, ele teve garimpo nas antigas lavras de
Lua Nova e Ferreiro antes de Buenolândia. “Aqui, na verdade, só consegui
trabalhar por dois anos, mas decidi ficar.” Ele e toda a família de nove
filhos. “Comprei uma casa pra cada um e uma pra mim.”

Ele também é vizinho da Igreja do Rosário, mas não a frequenta. “Sou


evangélico da Assembleia de Deus”, explica, apontando para o fim da
rua, onde fica o templo. Homem que viveu envolvido com garimpo, ele
conhece a história de Anhanguera que ali chegou quase 300 anos atrás.
“E olha que ainda tem muito ouro por aqui. Não acabou. Só que não
pode mais tirar”, resigna-se. Na Barra, o sonho dourado não acabou.

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O Nascimento de Goiás

Duas Lavras
pioneiras
Chegamos em mais dois arraiais fundados por
Anhanguera. Ferreiro e Ouro Fino sumiram no
tempo e hoje restam apenas pequenos traços
Fábio Lima

IGREJA SÃO JOÃO BATISTA, na região


de Ferreiro, antigo arraial, onde hoje
está o município da cidade de Goiás:
resquício de outra era na história goiana

Fizemos a última viagem. Foi lá pro sertão de Goiás. Não fomos acompanhados
dos boiadeiros e tropeiros que percorriam aquelas paragens cerca de um século
atrás, não fomos com nenhum capataz. Não viajamos muitos dias para chegar em
Ouro Fino, nem “passemo” a noite numa festa do Divino. Em uma das canções
mais clássicas da música caipira, uma tragédia durante este festejo é narrada. Um
tiroteio, a morte de Chico Mineiro por um homem desconhecido, a amargura do
amigo que descobre tarde demais que a vítima é seu irmão.

O palco de acontecimento tão funesto e que inspirou a canção imortalizada


nas vozes da dupla Tonico & Tinoco guarda muito pouco do que já foi um dia.
Na época da descrição do episódio da música, Ouro Fino ainda era um ponto
importante de parada de tropas, ainda havia movimento, as festas de louvor se
davam em torno da Igreja Nossa Senhora do Pilar, que dominava a paisagem.
Hoje, aquele arraial fundado em 1727 por Bartolomeu Bueno da Silva, o segundo
Anhanguera, ficou na lembrança e transformou-se em ruínas.

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O Nascimento de Goiás

Quem sai da cidade de Goiás para o município vizinho de Calcilândia,


tomando a GO-429 – estrada de terra que agora tornou-se trilha turística em razão
da criação do Caminho de Cora, que passa por pontos simbólicos nos arredores
da antiga capital goiana –, percorre um pedaço de nossa história. No emaranhado
de pequenos ribeirões que deságuam no Rio Vermelho e desenham uma geografia
particular em meio à moldura de morros, quase 300 anos atrás bandeirantes
passaram e decidiram criar alguns dos primeiros povoamentos fixos do sertão.

No meio desse caminho entre a cidade de Goiás e Ouro Fino há uma outra
construção, que remete a tempos passados que deixaram poucos registros físicos.
Na beira da estrada, caiadas de branco e azul, construções destoam da paisagem.
A Igreja de São João Batista e o pequeno cemitério anexo são as únicas edificações
que restaram do Ferreiro, outro arraial fundado por Bartolomeu Bueno da
Silva, também em 1727, a partir de uma aglomeração de garimpeiros que ali se
arrancharam em busca das riquezas no subsolo da região.

Esse templo religioso passou por uma ampla restauração do Instituto do


Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), em 2012. A porta fica fechada,
mas não trancada durante o dia. Quem chega à pequena igreja, construída em
1761, pode empurrar e entrar, vendo o altar com imagens simples, o piso de
madeira, um mezanino ao fundo, onde estão as duas janelas que dão para a
estrada. Segundo o Iphan, a igreja ficava na entrada do antigo arraial e ainda
conserva na lateral um pequeno sino, que gerações passadas devem ter ouvido
muitas vezes.

O Ferreiro se perdeu no meio do pasto, em propriedades rurais que foram se


formando ao seu redor. Em frente, por exemplo, há a entrada de uma granja. Mas
a igreja, mandada erguer pelo tenente José Gomes e que é considerada a segunda
mais antiga da província de Goiás, manteve-se no correr dos séculos, ao contrário
do destino dado a Ouro Fino. Da Igreja Nossa Senhora do Pilar ainda é possível
reconhecer o espaço onde uma imagem da santa que dava nome ao templo ficava,
mas quase tudo em seu entorno foi consumido pelo tempo.

Recentemente, o governador Ronaldo Caiado prometeu agir para a conservação


das ruínas do arraial, transformando-as em ponto de visitação. Atualmente, na
beira de uma mata e no meio de uma invernada, o que restou da construção
imponente são pedaços de parede construídas em pau a pique e vestígios do antigo
cemitério que a ladeava, sendo possível ver antigas sepulturas. Nas adjacências,
alicerces de casas que não existem mais, mas que ainda formam um desenho tênue
de onde Chico Mineiro, de acordo com a música, encontrou seu fim.

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O Nascimento de Goiás

Fábio Lima

CAVALEIRO percorre estrada


no antigo Arraial de Ouro Fino,
o mesmo imortalizado na
música por Tonico & Tinoco

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O Nascimento de Goiás

ENTRE OURO FINO E


FERREIRO, UMA ROMARIA
A Romaria de São Sebastião da Pedreira não é uma das manifestações religiosas
mais conhecidas de Goiás, como as do Divino Pai Eterno, em Trindade, ou a de
Nossa Senhora d’Abadia do Muquém, na região de Niquelândia, mas, pelo menos
na região da cidade de Goiás, ela é conhecida e continua a ser realizada. No
primeiro domingo de setembro de cada ano, os fiéis se concentram na Pedreira
de São Sebastião, entre os antigos arraiais de Ouro Fino e Ferreiro, para louvar o
santo, popular em vários rituais parecidos no Brasil e na Europa.

Lucinete Morais, mestre em Antropologia Social pela UFG, escreve em um de


seus artigos que a pedreira fica hoje em uma propriedade particular e mantém sua
importância local, chegando a ser incluída no dossiê apresentado para a defesa do
título de Patrimônio Cultural da Humanidade da cidade de Goiás. De acordo com
a tradição oral, a romaria começou quando alguém encontrou a imagem de São
Sebastião nos arredores e levada a uma pequena capela. Depois, ela sumiu, tendo
sido reencontrada na pedreira.

A aura de santidade do evento teria se consolidado quando o fenômeno, aos


olhos de todos, se repetiu. A imagem era levada para a igrejinha e logo depois
desaparecia, voltando a ser encontrada na pedreira. Era uma espécie de retorno
que o santo fazia ao seu lugar de origem. A pesquisadora Lucinete Morais chega
a brincar com a lenda, chamando-o de “Santo Fujão”, reproduzindo um apelido
carinhoso que lhe foi dado na própria região. Segundo ela, “a festividade é o ponto
social de grande relevância para a comunidade”.

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O Nascimento de Goiás
Fábio Lima

RUÍNAS
da velha
Igreja Nossa
Senhora do
Pilar, na região
de Ouro Fino

16
O Nascimento de Goiás

AS DESCRIÇÕES DE OURO FINO


“A Igreja, o Largo, quase que quadrado, grande, com o cruzeiro ao centro; o
seminário de férias de Santa Cruz [...] bem comprido, com suas árvores frondosas
ao fundo.” Essa breve descrição é feita por Laura Ludovico de Melo, mestre
em Gestão do Patrimônio Cultural pela PUC Goiás, no artigo Ouro Fino: Um
Arraial… Uma Igreja… Um Largo… E Uma Vaga Lembrança na Paisagem, estudo
publicado na Revista Habitus. No estudo, ela busca descrições de como fora Ouro
Fino e como se encontra na atualidade.

Tomando um relato de 1929, época em que a decadência do arraial chegou com


mais força ao local, ela consegue reconstituir aquele lugar antes de ser tomado
por capim e cupins. “Victor Coelho de Almeida registrou sua passagem por lá,
relatando o declínio social, informando contemplar o arraial com não mais do
que ‘a matriz e umas 16 casinhas’”. Ainda havia a matriz, hoje quase totalmente no
chão. Ainda havia 16 casinhas, todas desaparecidas. Ainda havia arraial, hoje um
ponto perdido no mato, ainda que as árvores frondosas permaneçam lá.

Segundo a pesquisadora, o destino de Ouro Fino foi traçado por alguns vetores.
“Um fator que impactou fortemente para o abandono do local foi a saída do
Seminário de Santa Cruz, que se instalou em Bonfim – hoje Silvânia – e também a
queda da ponte sobre o Rio Uru, fazendo com que a estrada para a cidade de Goiás
(antiga Vila Boa, capital), fosse desviada, passando por fora de Ouro Fino”, escreve.
De acordo com o relato de Victor Almeida, de 1929, “o povoado de Ouro Fino
ocupa uma área retangular de 600 por 200 metros”.

Como se percebe, Ouro Fino, em seu fim, já era modesto em tamanho, mas
nem sempre foi assim. Tanto que sua localização consta de mapas antigos da
capitania de Goiás. Na tese de doutorado Urbanização Em Goiás no Século XVIII,
defendida na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, a pesquisadora
Deusa Maria Rodrigues Boaventura recupera documentação da época depositada
no Arquivo Histórico Ultramarino, de Lisboa. São registros que mostram arraiais,
como Ouro Fino e Ferreiro, com certa importância.

Em 1750, o então governador Marcos de Noronha incumbiu um engenheiro


militar italiano, chamado Tosi Colombina, a elaboração de um trabalho cartográfico
inédito até então, um mapa de Goiás mais detalhado. Professor de Geografia em
Lisboa, Colombina baseou seu desenho em cartas e mapas anteriores, acrescentando
informações quanto a rios, serras e núcleos urbanos. No ano seguinte, em 1751,
o italiano entregou a encomenda. Os desenhos vêm com cartas com descrições a
respeito do que consta no mapa, incluindo o arraial de Ouro Fino.

17
O Nascimento de Goiás

“Ouro Fino é um arraial que junto a córrego deste nome três léguas de
distância de Vila Boa, com caminho a Leste, e não ao Sul; e o Rio Cabra, onde os
descobridores de Goiás acharam o primeiro ouro, atravessa o caminho de Vila Boa
para Meia Ponte[PIRENÓPOLIS], porque nascendo ao Norte deste vai cair ao Sul
no Rio Uruú e não Irou; este Rio Uruú nasce nas fraldas ao Sul da Serra Dourada,
e não em 19 graus de latitude, onde põem Mato Grosso, porque este Mato Grosso
atravessa o caminho que vai de Meia Ponte a Vila Boa”, diz a carta.

Segundo Deusa Boaventura, as igrejas de Nossa Senhora do Pilar, em Ouro


Fino, e de São João Batista, no Ferreiro, foram fundamentais. “Na Capitania de
Goiás, as capelas foram se levantando paralelamente à formação dos aglomerados
urbanos decorrentes de descobrimentos auríferos, caracterizando uma estreita
relação com o desenvolvimento econômico e populacional da região. Ferreiro,
Ouro Fino e Barra (hoje Buenolândia) foram os arraiais iniciais dos ‘guayazes’,
formados praticamente a partir do soerguimento de suas capelas.”

Uma dessas igrejas permanece de pé e está restaurada. A outra caiu por terra
e mal pode ser vista da beira da estrada. Ambas testemunham os tempos iniciais
de Goiás. Ambas estão fincadas em localidades que o próprio Anhanguera ajudou
a fundar, onde bandeirantes das primeiras levas de exploradores fixaram suas
ambições, onde as terras goianas começaram a ser ocupadas de uma maneira
até ali inédita. Arraiais que expandiram as fronteiras do Brasil conhecido, que
ajudaram a abrir caminhos até o litoral, que também contam a história de Goiás.

Fábio Lima

INTERIOR DA IGREJA São João


Batista: templo restaurado pelo
Iphan em 2012

18
O Nascimento de Goiás

O arraial de
Todos nós
Das lavras de ouro iniciais de
Anhanguera, só uma persistiu
para se tornar capital e, depois,
Patrimônio da Humanidade
Weimer Carvalho

Em cada uma das curvas do Rio Vermelho, que serpenteia nas bordas da Serra
Dourada, uma promessa de riqueza aguardava quem chegou com o sonho de
encontrar ouro. Uma corrida de ambições, violências e histórias quase inacreditáveis,
em que se misturam destemor quanto ao desconhecido e uma mentalidade de
dominação que vitimou incontáveis pessoas. Aqueles bandeirantes que fizeram as
picadas iniciais por essas paragens, ainda no final do século 17, e os que retornaram
para fixar seus ranchos, depois de 1720, eram motivados por tais objetivos.
Quase 300 anos depois de expedições cheias de escravos e que combatiam os
povos indígenas nativos – muitas vezes, exterminando-os ou os subjugando –, os
vestígios daquelas aventuras lideradas por homens barbudos e moldados pelas piores
condições de sobrevivência ainda podem ser vistos. Mas não há nada que se compare
ao antigo Arraial de Sant’Anna, depois Vila de Sant’Anna, em seguida Vila Boa de
Goiás, apelidada posteriormente de Goiás Velho e, enfim cidade de Goiás. Muitos
nomes para uma história cheia de versões e mistérios.

19
O Nascimento de Goiás
Fábio Lima

O LOCAL onde hoje está o Museu da Boa


Morte foi, antes, morada de Bartolomeu
Bueno, o segundo Anhanguera

O historiador Antônio César Caldas Pinheiro, diretor do IPEHBC, da PUC-


GO, salienta que a atual cidade de Goiás surgiu ao mesmo tempo que os outros
arraiais mais antigos fundados por Bartolomeu Bueno da Silva, entre 1726 e
1727. “Eram ranchos de garimpeiros que se tornaram aglomerados urbanos”,
afirma, referindo-se aos arraiais da Barra (Buenolândia), Ouro Fino, Ferreiro e
Anta (hoje extintos).
No livro As Bandeiras e o Anhanguera , o escritor Benedito Rosa informa
que o estabelecimento da expedição na região foi favorável para os recém-
chegados. “A exploração do ouro funcionou sob o modelo original durante sete
anos. Aparentemente, o governador (da capitania de São Paulo, à qual os sertões
goianos eram ligados na época) (Rodrigo de) Menezes não tinha do que reclamar
quanto ao volume arrecadado proveniente da nova frente de mineração intensiva”,
escreve. Muitas arrobas de ouro rumavam ao litoral.
Quem comandava as operações era o próprio Anhanguera e seus sócios. E se
seu pai ganhou o apelido de Diabo Velho, tudo leva a crer que o filho não deixou
de corresponder ao que se esperava da descendência do antigo bandeirante que
veio a Goiás escravizar indígenas. Concentrava poder, lidando diretamente com o
governador paulista, assinando documentos oficiais, tendo seu nome conhecido
no Brasil e na Corte. E uma de suas primeiras ações foi construir uma capela à
beira do Rio Vermelho.

20
O Nascimento de Goiás

De acordo com o historiador Antônio Caldas, no livro Os Tempos Míticos das


Cidades Goianas , “o segundo Anhanguera, após vagar anos pelo sertão” – mais
exatamente, três anos desde que saiu de São Paulo rumo a Goiás –, “faz novo
arranchamento que, segundo a tradição, seria no lugar em que se construiu a
Igreja da Lapa, destruída por uma enchente em 1839, onde hoje se encontra a cruz
do Anhanguera”. Isso quer dizer que, em frente à ponte da Lapa, onde está a casa
de Cora Coralina, o bandeirante ergueu uma das primeiras construções do lugar.
A capela da Lapa foi suficiente para iniciar o arraial, fundado entre 1726 e 1727,
alçado ao status de freguesia em 1729, tornando-se uma espécie de paróquia. Dez
anos depois, em 1739, o local foi promovido a povoado. Anhanguera participou
ativamente das mudanças. Tinha uma casa no Arraial de Sant’Anna, onde depois
foi construída a Igreja da Boa Morte, na Praça do Coreto, ao lado de onde seria o
Palácio Conde dos Arcos, sede do governo, e a Matriz de Sant’Anna.
Todos esses prédios ajudam a contar a história não só de um homem e de uma
cidade, mas de um Estado, de uma mentalidade, de um tempo que acabou, mas
que deixou pegadas. A Matriz de Sant’Anna, por exemplo, advém de uma capela
erguida em 1743 pelo ouvidor-geral de Goiás, Manoel Antônio da Fonseca, três
anos após a morte do fundador da cidade. Essa igreja desabaria em 1759, para ser
reconstruída e modificada algumas vezes no decorrer do tempo. Em 1779, a Igreja
da Boa Morte passou a fazer parte da paisagem.

REQUERIMENTO dos
capitães Bartolomeu
Bueno da Silva, João
Leite da Silva Ortis e
Domingos Rodrigues
do Prado, pedindo
a D. João V provisão
para irem ao sertão do
Brasil, em 13 de janeiro
de 1720

21
O Nascimento de Goiás
Weimer Carvalho

A CRUZ do Anhanguera
é o marco de onde
foram erguidas as
primeiras construções
da cidade de Goiás

A CONTROVERSA
CRUZ DO BANDEIRANTE
Cartão-postal da cidade de Goiás, na entrada da ponte da Lapa, à beira do
Rio Vermelho, a Cruz do Anhanguera tem uma história cheia de percalços e que
provoca discussões entre estudiosos. Encontrada em 1914, o objeto é considerado
vestígio da chegada dos bandeirantes. Assim que passaram do atual Triângulo
Mineiro, eles a teriam fincado para marcar a conquista. Uma inscrição no pé da
cruz indicaria uma data, segundo os primeiros relatos, incerta: 172... Essa versão
foi contestada posteriormente. Segundo a revista A Informação Goyana , que
circulou no Rio de Janeiro em 1927, quem achou a cruz foi um trabalhador da
estrada de ferro em Goiás. A referida inscrição trazia a data de 1746. O historiador
Antônio Caldas tende a acreditar que a cruz não foi trazida a Goiás por
Anhanguera e argumenta. “Os limites da capitania de São Paulo com Goiás eram
fixados antes no Rio Grande e não no Rio Paranaíba. Até 1816, todo o Triângulo
Mineiro pertencia a Goiás. Por que Anhanguera fixaria o novo território só depois
do Paranaíba?”, pondera. Ele pontua que a elevação da cruz como um símbolo
dos tempos iniciais ocorreu quando Vila Boa, já um aglomerado urbano regional,
estava prestes a comemorar cem anos. Houve polêmica sobre a cruz quando ela foi
descoberta, sobre sua transferência de Catalão para Goiás. Já em 2001, ela quase
foi perdida numa enchente. Dias depois, foi reencontrada Rio Vermelho abaixo, e
resguardada no Museu das Bandeiras. A que está no pedestal hoje é uma réplica.

22
O Nascimento de Goiás

ANHANGUERA, ENTRE
O CÉU E O INFERNO
Em sua época, um homem duro, que teria exercido sua autoridade com a
força que aqueles tempos sem lei pediam a quem estava em sua atividade. Após
sua morte e por muitos anos, a figura mítica do desbravador, destemido em suas
conquistas, o patriarca de um Estado. Com o tempo, essa imagem idealizada
foi perdendo força e não só ele, como todos os bandeirantes, passaram por uma
revisão histórica, com seus atos violentos do passado, como mortes e escravização
de indígenas, sendo enfatizados. Verdadeiros demônios surgiram daí.
“Acho que Anhanguera foi um homem de seu tempo. Isso precisa ser levado
em conta em qualquer avaliação. Não é correto ver suas ações de 300 anos atrás
apenas com os parâmetros de hoje. Houve muita violência, sim, mas é inegável
a importância do que ele desempenhou no período”, opina o historiador e
pesquisador Antônio Caldas Pinheiro. Ele, porém, acredita que houve muita
imprecisão em torno do retrato de Bartolomeu Bueno da Silva e que isso prejudica
leituras.
“Você tem narrativas desencontradas, de pessoas que teriam tido contato com
pessoas que o teriam conhecido, que viveram em seu tempo. Observamos uma
tendência a fazer dele um mito. Há relatos de que morreu com 106 anos e que,
adivinhando a própria morte, teria ido a pé à igreja para receber a extrema-unção
e visitado vários moradores do então arraial de Sant’Anna para se despedir”,
menciona. No livro Os Tempos Míticos das Cidades Goiana, Antônio Caldas
reúne algumas dessas versões.
Uma delas consta em O Descobrimento da Capitania de Goyaz, de Luiz
Antônio da Silva e Souza, publicada em 1849. Compilando relatos orais, o autor
afirma que, ao chegar à bacia do Rio Vermelho, “aqui se preencheram os fins do
Anhanguera, chegou à meta dos seus trabalhos, viu e venceu”. “Percebam que
remete à clássica frase de Júlio César participando ao Senado romano sua vitória
sobre Farnaces, rei do Ponto. Há significado em torno da figura do Anhanguera
nesse sentido”, destaca Antônio Caldas.

23
O Nascimento de Goiás
Diomício Gomes

O RIO VERMELHO e a ponte


da Lapa: um dos pontos
onde tudo começou

DIABO VELHO
Até mesmo a adoção do apelido Anhanguera – Diabo Velho na língua dos
indígenas que seu pai aqui encontrou 40 anos antes da fundação dos arraiais – traz
muito dessa aura de mitificação. “O apelido teria advindo da prática de colocar
fogo em aguardente e fazer crer que poderia incendiar as águas. Só que esse
subterfúgio era comum entre os bandeirantes muito antes”, informa. O historiador
Sérgio Buarque de Holanda chega a cogitar que a alcunha se devia a Anhanguera
ter um “olho estragado” e não ao truque do usado pelo garimpeiro.
Em outro momento, Antônio Caldas recorre a uma carta de 15 de abril 1755,
enviada pelo secretário da Capitania de Goyaz, Ângelo dos Santos Cardoso, ao
secretário da Marinha e de Ultramar de Portugal, Diogo de Mendonça Corte Real,
em que dá informações sobre a retirada do ouro na região e recorda Bartolomeu
Bueno da Silva com os mais altos elogios, mesmo 15 anos após a sua morte,
ocorrida em 19 de setembro de 1740. “Tudo cingia a seu mando e tinha a fortuna
de ser obedecido daqueles primitivos com unanimidade”, descreve.
Para quem estava enfronhado em um ofício em que sobravam conflitos,
possibilidades de roubos e desvios, traições e tocaias no meio do sertão, ter
esse poder de liderança era um predicado especialmente útil. Isso foi criando e
reforçando essa figura mítica. “A sua força e robustez, sua religiosidade, coragem
e camaradagem para com os moradores da vila que fundara, são elementos, nesse
caso, constitutivos do caráter do herói que o narrador quer construir”, argumenta
Antônio Caldas sobre algumas narrativas em torno de Anhanguera.

24
O Nascimento de Goiás

POBREZA
O final da vida do personagem histórico, porém, não teria
sido nada parecido com o poder que gozou por quase duas
décadas nas minas goianas. Velho e pobre, teria morrido sob
a caridade dos outros, segundo relatos de cronistas da época,
coletados por Luiz Antônio da Silva Souza. “É de admirar
que o descobridor de tanta riqueza, que possuiu as melhores
lavras e extraiu grossas somas na primeira abundância, caísse
por demasiada fraqueza em decadência tal”, diz o cronista,
falando no recebimento apenas de “uma arroba de ouro da
real fazenda”.
Antônio Caldas não duvida que esse mergulho vertical na
miséria tenha acometido aquele que detivera tanto prestígio e
tirou do solo verdadeiras fortunas, mas o historiador ressalta
que a condição de injustiçado ajuda a consolidar o mito. Uma
construção simbólica que tem rachado mais recentemente,
a ponto de haver um movimento que pede a retirada de sua
estátua na Praça do Bandeirante, no Centro de Goiânia,
tratando-o como um genocida dos indígenas. Entre o céu e o
inferno viveu Anhanguera. Entre o céu e o inferno continua
sua figura histórica.

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O Nascimento de Goiás

O Nascimento
de Goiás
Matéria originalmente publicada na edição
do jornal O POPULAR entre os dias
21 de março e 11 de abril de 2020

REPORTAGEM
Rogério Borges

EDIÇÃO
Rodrigo Alves

EDIÇÃO DE FOTOGRAFIA
Weimer Carvalho

ARTE
André Rodrigues
Luiz Antena
Roberto Castejon

CAPA
André Rodrigues

FOTO DA CAPA
Cláudio Reis

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