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Sogyal Rinpoche

A Prática de P'howa

no Buddhismo Tibetano

Agora que o estado intermediário da morte desponta sobre mim,

Abandonarei toda possessividade, anseio e apego

Entrarei sem distração na lúcida experiência do ensinamento,

E lançarei minha consciência no espaço do estado desperto não-criado;

Ao deixar este corpo formado de carne e de sangue

Saberei que ele é uma ilusão transitória.

"Lançarei minha consciência no espaço do estado desperto não-criado" refere-se à


transferência da consciência, a prática de P'howa, que é a prática mais comumente usada [no
buddhismo tântrico tibetano ou Vajrayana] para morrer e a instrução especial associada ao
estado intermediário da morte. P'howa é uma prática de ioga e meditação que foi usada por
séculos para preparar-se para a morte e visando ajudar os que estão morrendo. O princípio é
que no instante da morte o praticante ejeta sua consciência e a funde na mente de sabedoria
do Buddha, naquilo que Padmasambhava designava como "o espaço do não-criado estado
desperto". Essa prática pode ser conduzida pelo indivíduo ou efetuada por um mestre
qualificado ou um bom praticante, em benefício de quem morre.

Há muitas categorias de P'howa, que correspondem às capacidades, experiências e


treinamento de diferentes indivíduos. Mas a prática de P'howa mais usual é aquela conhecida
como "P'howa dos três reconhecimentos": reconhecimento do nosso canal central como o
caminho; reconhecimento da nossa consciência como o viajante, e reconhecimento do
ambiente de um reino búdico como o destino.
O tibetano comum, com responsabilidades de trabalho e família, não pode devotar toda a sua
vida ao estudo e à prática, ainda que tenha imensa fé e confiança nos ensinamentos. Quando
seus filhos crescem e chega ao fim de sua vida — o que no Ocidente se chamaria de
"aposentadoria" — ele normalmente faz uma peregrinação ou encontra mestres e se concentra
na prática espiritual. É freqüente, então, que seja treinado em P'howa para preparar-se para a
morte, P'howa é referido nos ensinamentos como um método de obter a iluminação sem a
experiência de uma vida de prática meditativa.

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Na prática de P'howa, a presença central invocada é a do Buddha Amitabha, o Buddha da Luz


Sem Limites. Amitabha goza de grande popularidade entre as pessoas comuns na China e no
Japão, bem como no Tibete e nos Himalaias. Ele é o Buddha primordial da família Padma ou
Lótus, que é a família búdica a que pertencem os seres humanos. Ele representa a nossa
natureza pura e simboliza a transmutação do desejo, a emoção predominante do reino
humano. Mais intrinsecamente, Amitabha é a natureza ilimitada e luminosa da nossa mente.
Na morte, a verdadeira natureza da mente se manifestará no momento em que surge
Luminosidade Base, embora a maioria de nós não tenha familiaridade com ela a ponto de
reconhecê-la. Quão habilidosos e compassivos são os Buddhas por nos terem dado um método
como esse para invocar a verdadeira corporificação da luminosidade, na presença radiante de
Amitabha!

Seria inadequado explicar aqui os detalhes da prática tradicional de P'howa, que deve sempre e
em todas as circunstâncias ser feita sob a orientação de um mestre qualificado. Nunca
experimente fazer essa prática por sua própria conta, sem a orientação apropriada.

Na morte, explicam os ensinamentos, nossa consciência, que cavalga um "vento" e assim


precisa de uma abertura para deixar o corpo, pode fazê-lo por qualquer uma das nove
aberturas. A rota que ela toma determina exatamente em que reino da existência nós vamos
renascer. Quando ela deixa o corpo pela abertura da fontanela, no alto da cabeça, vamos
renascer, conforme diz, numa terra pura, onde podemos gradualmente seguir para a
iluminação.
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Essa prática, quero enfatizar mais uma vez, só pode ser feita sob a supervisão de um mestre
qualificado, que tem a bênção para dar a transmissão correta. Não é necessário ter vasto
conhecimento intelectual ou profundidade de realização para fazer P'howa com sucesso, mas
somente devoção, compaixão, visualização focalizada e um profundo sentimento da presença
do Buddha Amitabha. O estudante recebe as instruções e então as coloca em prática até que os
sinais de realização apareçam. Entre esses sinais estão: coceira no alto da cabeça, dores-de-
cabeça, surgimento de um fluido claro e inchaço ou uma espécie de maciez em torno da
fontanela — ou até a abertura de um pequeno orifício ali, onde tradicionalmente coloca-se a
ponta de um pequeno feixe de ervas como teste ou medida do sucesso da prática.
Recentemente um grupo de tibetanos idosos instalou-se na Suíça sob a orientação de um
mestre de P'howa. Seus filhos, que tinham sido educados no país, eram céticos sobre os efeitos
da prática. No entanto, eles se admiraram com a transformação de seus pais, que depois de um
retiro de P'howa de dez dias mostraram alguns dos sinais de realização mencionados acima.

Pesquisas sobre os efeitos psicofisiológicos da prática de P'howa foram realizadas pelo cientista
japonês Dr. Hiroshi Motoyama. Mudanças fisiológicas precisas no sistema nervoso, no sistema
metabólico e no sistema de meridianos da acupuntura foram registradas ao longo desta prática.
Uma das descobertas do Dr. Motoyama ao estudar o funcionamento do corpo do mestre de
P'howa que ele estava observando foi que os padrões de fluxo da energia pelos meridianos do
corpo eram semelhantes aos verificados em pessoas com forte capacidade de percepção extra-
sensorial. Ele também descobriu, através do uso de eletroencefalograma, que as ondas do
cérebro durante a prática de P'howa são muito diversas daquelas encontradas em iogues
praticando outros tipos de meditação. Os resultados mostraram que P'howa envolve a
estimulação de certa parte do cérebro, o hipotálamo, e também interrompe a atividade mental
consciente ordinária, permitindo que um profundo estado de meditação seja experimentado.

Às vezes dá-se o caso de pessoas comuns terem, através da bênção de P'howa, experiências de
visões muito fortes. Esses vislumbres da paz e da luz do reino do Buddha, e as visões que essas
pessoas têm de Amitabha, lembram certos aspectos das experiências de quase-morte. E, como
nestas últimas, o sucesso na prática de P'howa também traz confiança e destemor ao enfrentar
o momento da morte.
A prática essencial de P'howa é tanto uma prática de cura para os vivos como uma prática para
o momento da morte, e pode ser levada a efeito sempre, sem qualquer perigo. No entanto, a
ocasião adequada para a prática tradicional de P'howa é de suma importância. Por exemplo,
diz-se que tentar transferir a consciência de alguém antes do momento da morte natural é
equivalente a um suicídio. O momento em que se faz P'howa é quando a respiração externa já
cessou e a interna ainda continua. Mas talvez seja mais seguro começar durante o processo de
dissolução e repetir a prática várias vezes.

Assim, quando um mestre que aperfeiçoou o método tradicional de P'howa faz a prática para
alguém que está morrendo, visualizando a consciência dessa pessoa e ejetando-a para fora pela
fontanela, é essencial que a ocasião seja exata e não cedo demais. Um praticante avançado e
com conhecimento do processo da morte pode examinar detalhes como os canais, o
movimento dos ventos e o calor do corpo para sentir quando esse momento chegou. Para pedir
a um mestre que faça a transferência para alguém que está morrendo, deve-se contatá-lo o
mais cedo possível, porque pode-se fazer P'howa mesmo a uma certa distância.

Podem se apresentar muitos obstáculos a um P'howa bem sucedido. Visto que qualquer
aspecto enfermo da mente, ou mesmo o menor desejo de posse, será um obstáculo quando
chega a hora da morte, você deve tentar não ser dominado nem pelo mais leve anelo ou
pensamento negativo. Acreditava-se no Tibete que fica muito difícil fazer P'howa quando no
quarto onde está a pessoa que vai morrer há produtos feitos de pele animal ou derivados.
Também o cigarro — ou qualquer tipo de droga — tem o efeito de bloquear o canal central,
tornando essa prática mais difícil.

Diz-se que "mesmo um grande pecador" pode ser liberado no momento da morte, se tiver a
sua consciência transferida para um reino búdico por um mestre poderoso e realizado. E este
ainda pode influir sobre o futuro da pessoa através de P'howa, ajudando-a a renascer num
reino mais elevado, mesmo se falta a ela mérito ou prática, ou se a execução de P'howa não foi
totalmente bem-sucedida. Para que P'howa tenha sucesso, no entanto, as condições devem ser
realmente perfeitas. O P'howa pode ajudar alguém com forte karma negativo, mas só se ele ou
ela tem uma ligação próxima e pura com o mestre que faz a prática, se tem fé nos
ensinamentos e se pediu, de todo coração, a purificação.

Num cenário ideal, no Tibet, membros da família normalmente convidariam muitos lamas para
fazer P'howa até que sinais de realização se manifestassem. Eles poderiam fazer isso por horas
a fio, centenas de vezes, talvez um dia inteiro. Alguns dos que estão para morrer não precisam
de mais do que uma ou duas sessões para que se manifeste um sinal. Para outros, mesmo um
dia inteiro de prática não é bastante. Isso, é desnecessário dizer, depende muito do karma
daquele que morre.

Adaptado de Sogyal Rinpoche, O livro tibetano do viver e do morrer. Tradução de Luiz Carlos
Lisboa. Revisão técnica de Arnaldo Bassoli, Lamara Bassoli e Manoel Vidal. São Paulo: Talento e
Palas Athena, 1999. Pág. 295-300. Para adquirir o livro, clique aqui.

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