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Volume 21 - 2011 - Livro Folia de Reis, Sambas Do Povo
Volume 21 - 2011 - Livro Folia de Reis, Sambas Do Povo
Alberto T. Ikeda
Digitação dos textos: Avelino Israel, Fátima Manfredini, Marieti Turco, Odete
Pereira Batista, Paulo Fabiano Pontes de Amorim
ISBN: 000-00-00000-00-00
Ikeda, Alberto T.
Folia de reis, sambas do povo / Alberto T. Ikeda - - São José dos Campos/SP:
CECP; FCCR, 2011.
CDD: 390
Para
Maria Meron, por todos esses anos, na parceria da vida.
Meus pais e irmãos: Ushimatsu Ikeda (pai, in memoriam) e Yachiro
Ikeda (mãe), e os(as) manos(as) Helena (in memoriam), Celso, Olga,
Miguel e Miriam, e também Regina (cunhada).
Os mestres e mestras e todos os(as) guardiões(ãs) dos saberes
populares, tantos, com quem aprendi muito desde a década de 1970.
Fundação Cultural Cassiano Ricardo
Cristovão Cursino
Vice-Presidente
Centro de Estudos da Cultura Popular - CECP
Sumário
Prefácio .......................................................................................................... 15
15
no mesmos espaços dos cultos, aproximando, por sua vez,
simbolicamente, os reis (magos, nesse caso) e o povo, daí o título
escolhido. Afinal, nas culturas tradicionais também os deuses estão
comumente bem mais próximos dos homens.
Todos os artigos têm Nota com os dados da publicação inicial. Foram
mantidos no formato original, inclusive no que se refere às referências
bibliográficas, apenas realizando-se a atualização ortográfica e incluindo-
se um ou outro esclarecimento, com Notas.
Não há nos artigos uma unidade temática, a não ser o fato de tratarem
de manifestações culturais populares, que é o assunto fundamental desta
coleção Caderno de Folclore. Mas, embora não exclusivas, predominam
temas de música, que é o campo de maior atuação em meus estudos, em
aproximação com as ciências sociais, sobretudo a antropologia.
Evidentemente, todo escrito revela e reflete a sua época de redação,
perdendo, muitas vezes, a sua atualidade, mas nos casos aqui elencados
acredito que poderão ter ainda algum interesse, pelo registro etnográfico,
e, talvez, por algumas reflexões de escopo sociológico-antropológico e
político em torno das expressões estudadas, que, acredito, podem ser
projetadas para outros fatos das culturas populares. Pode-se notar também
que não há nos escritos unidade no nível de tratamento, de
aprofundamento, nos enfoques, pois pertencem a diferentes tipos de
publicação, incluindo revista acadêmica, caderno de cultura e arte de jornal
diário, revista paradidática e outras. A nova publicação desses trabalhos se
faz na esperança de que ainda tenham alguma serventia. Mas isto somente
poderá ser avaliado pelo leitor.
Um segundo aspecto que merece comentário refere-se ao fato de que o
título Folia de Reis, Sambas do Povo com conteúdos de expressões da
cultura popular que envolvem música, dança e dramatizações, pode levar
o leitor a corroborar subliminarmente o senso comum de que estas são
apenas expressões de entretenimento, de lazer, de alegria
descomprometida, e de arte, ou, ainda, como manifestações “do folclore”,
o que limita bastante as possibilidades de compreensão dessas práticas
16
culturais, conforme procuro demonstrar nos artigos, sobretudo no ensaio
aqui incluído, intitulado: Manifestações tradicionais: rituais, artes,
ancestralidades ... .
Alberto T. Ikeda
(Instituto de Artes - Universidade Estadual Paulista
– UNESP – campus de S. Paulo)
17
18
Do lundu ao mangue-beat*
* “Do lundu ao mangue-beat”, original em: Revista História Viva: temas brasileiros – Presença Negra
(edição especial temática n. 3). S. Paulo: Ediouro/Duetto Editorial, março 2006 – ISSN 1808-6446, pp.
72-75.
25
A festa caipira e os santos
27
No que se refere aos santos desse ciclo: Santo Antonio (dia 13 ), São
João (dia 24) e São Pedro (dia 29) é, no geral, São João Batista aquele que
concentra em si, de maneira cabal e pelo lado mais profano, o espírito
festivo da época. O Santo se relaciona ao fogo, cujos cultos foram
praticados na maioria dos grupos humanos, desde os tempos antigos,
anteriores ao cristianismo. Por terem sido rituais de forte penetração nos
grupos praticantes, em geral acompanhados de comida, bebida, música,
dança e outras formas dionisíacas, ditas pagãs, a igreja cristã procurou
adaptá-las aos moldes mais comedidos das cerimônias cristãs. Assim,
adotou-se a crença de que a ligação do Santo com o fogo se deu porquanto
foi através do levantamento de um mastro sinalizador e de uma grande
fogueira para iluminá-lo que Santa Isabel avisou sua prima Maria
Santíssima quando do nascimento do seu filho João, no dia 24 de junho.
Mas o batizador está também relacionando a outro elemento essencial
– a água, pois São João teria batizado Jesus Cristo nas águas do Rio Jordão.
Por outro lado, pratica-se entre nós o “batismo” do Santo (lavagem da
imagem) nas águas de algum rio ou córrego. Estas passam, então, a ter
naqueles momentos rituais, poderes milagrosos, principalmente na cura de
enfermidades.
Ao Santo relacionam-se ainda, as crenças ligadas ao destino das
pessoas, ao futuro, notadamente as adivinhações relativas às questões
amorosas, à vida e à morte.
São inúmeras as formas de sorte praticadas na véspera ou na noite de
São João, para se conhecer o nome do futuro namorado ou marido, ou
saber se a pessoa estará viva até os festejos do ano seguinte. Também,
praticam-se nas regiões agrícolas os ritos propiciatórios de boas colheitas,
por exemplo, fixando se ao mastro do Santo espigas de milho e outros
produtos da terra. Em muitas localidades, às cinzas da fogueira de São João
28
se atribuem poderes de combate às pragas e de proteção contra os “maus
espíritos”. São João é tido como protetor das colheitas.
Embora adaptada para as normas religiosas cristãs, nas festas juninas,
houve com o tempo, o predomínio dos aspectos profanos, inclusive com
conotações sexuais, conforme se percebe no casamento caipira, no geral
com a noiva já grávida, embora o santo casamenteiro no Brasil seja Santo
Antônio. Isso pode estar ligado aos rituais “pagãos” antigos, de fertilidade,
tanto no sentido agrícola, da necessidade de boas colheitas, quanto no da
geração das crias dos animais e a procriação das famílias.
Juntamente com o carnaval, e, talvez, até mais que este, as festas
juninas são comemorações das mais disseminadas no Brasil, promovidas
no âmbito das instituições (escolas, clubes, igrejas, indústrias, associações
de classe, etc.), ou nos sítios, fazendas, ruas e nas residências particulares,
nos milhares de arraiás por todo o País. Evidentemente nas regiões
interioranas, os aspectos religiosos ainda são bem mais presentes do que
nos grandes centros urbanos.
Mas, independente dos aspectos da possível permanência das antigas
crenças e rituais, as festas juninas se mantêm como momentos em que as
comunidades se juntam para a prática de ações que confirmam,
identificam, e até conformam os indivíduos como partes da coletividade.
Principalmente nas grandes cidades, onde a vivência cotidiana se dá de
maneira bastante individualizada, as festas permitem, periodicamente,
além da diversão grupal, as práticas socializadoras, significativas,
importantes distintas do dia a dia.
29
Quadrilhas, Folguedos e outras Danças
* “São João no Brasil: quadrilha, folguedos e outras danças”, original em: Catálogo-programação São João no
Brasil: a cultura popular em festa, S. Paulo: SESC Pompéia, junho 1996.
32
Resumo: um enfoque sobre a cultura popular diante da chamada
modernização e os meios de comunicação de massa, tomando como
referencial o Cururu: uma modalidade de cantoria de improviso da
cultura tradicional paulista. Durante muito tempo, folcloristas têm
argumentado que a modernização é fator de destruição da cultura popular
tradicional - o folclore -, criando a expectativa da necessidade de adoção
de políticas governamentais no sentido da sua preservação.
O ensaio resgata o tema, mostrando que em muitos casos a
continuidade dessas manifestações se dá pelas condições implícitas
destas e não pela adoção de políticas preservacionistas. Traçando uma
retrospectiva do cururu, de suas origens à atualidade, o ensaio mostra o
processo dinâmico de sua preservação.
33
Verifica-se ainda em outras regiões onde se deu a "expansão paulista",
(3)
segundo explicaAntônio Cândido .
Ocupo-me apenas do cururu em São Paulo, onde se pode verificar de
forma clara as suas transformações através do tempo. O folclorista Hugo
Pedro Carradore aponta várias cidades do interior do Estado paulista como
principais centros cururueiros: Piracicaba, Ibitiruna, Salgado, Pirambóia,
Botucatu, Laras, Maristela, Laranjal Paulista, Conchas, Pereiras, Sofete ,
Porangaba, Cesário Lange, Tatuí, Boituva, Alambari, ltapetininga e
Sorocaba (4).
O trabalho enfoca apenas aspectos que mostram a adaptabilidade
dessa manifestação à vida contemporânea e estão baseados em pesquisas
realizadas entre maio e junho de 1983, em cidades de forte tradição
cururueira, como: Piracicaba, Sorocaba,Tatuí e Tietê.
Da provável adaptação de danças cerimoniais indígenas, conforme
aponta Mário de Andrade e reafirma Antônio Cândido(5), originando o
cururu religioso, chegando ao atual cururu cantoria-de-improviso e o
cururu-canção, dos discos de música sertaneja, há todo um processo de
modificações e adaptações observáveis no confronto entre as diversas
pesquisas sobre o assunto e a sua prática na atualidade.
"CURURU”
(gravação em fita, 12/6/1983)
38
Que ele pediu pra mim cantá
Quero que você descurpe
Se acaso bão não tá
Você aqui na minha casa
Hora que quiser chegar
De São Paulo a Sorocaba
Meu prazer nunca se acaba
Quando você vir pra cá
39
Há, no entanto, um aspecto importante a ser considerado: por diversas
vezes, em entrevista com cururueiros, pude perceber que ao se referirem ao
desafio estavam na verdade tratando da cana-verde (uma dança de roda) e
não do cururu. Solicitados a fazer demonstração de desafio cantavam a
cana-verde. A esse respeito Sílvio Paes, de Sorocaba, explica que cana-
verde é "desafio de cana-verde". "Na cana-verde um canta uma quadrinha e
outro responde", e no cururu "um vai cantando inteiro quantos versos quisé
e outro vai escutando, depois outro entra para responder". Ainda pode-se
observar no disco CURURU -Nhô Serra e Pedro Chiquito.(Continental-
LP, 1976) que a única faixa em que se anuncia o desafio é a que corresponde
à cana-verde.
Vê-se, então, que os cantadores entendem o cururu como uma
modalidade de cantoria de improviso, que pode ou não ter o desafio. Talvez
isso se dê pelo fato de o cururueiro cantar livremente quantos versos queira
ou enquanto a platéia demonstrar interesse em sua cantoria; somente
depois ocorrendo a resposta.
40
Cana-Verde
(desafio entre Nhô Serra e Pedro Chiquito - LP Continental 1976)
Ai, Moreninha
(Refrão) Moreninha meu amor (bis)
Refrão Nas ondas dos teus cabelo
Corre água e nasce flor
Pedro Chiquito:
Aviola tá tocando
Vai tocá Pedro Chiquito
Pra você ficá sabendo
Pras coisa ficá bonito
Adonde o menino chega
Eu faço sentá mosquito
(Refrão)
Nhô Serra:
(Refrão)
Pedro Chiquito:
41
Eu nunca tive receio
o meu amigo Nhô Serra
Eu não sei dadonde veio
o negrão é negrão enxuto
E você é gordo só no meio
(Refrão)
Nhô Serra:
Me chamô eu de feio
Tudo sim mas isso não.
Ai! Meu Deus! Fiquei com raiva
Ói! que preto sem ação
Venha aqui Pedro Chiquito
Vô chamá sua atenção.
Vô avisá Pedro Chiquito
Se esse preto fô bonito
Não existe sombração
(Refrão)
(continua)
42
O Ritmo e a Melodia no Cururu
(6) A1ceu Maynard Araujo, Folclore Nacional, vol. lI, 2º ed. S. Paulo,
1973, p. 77.
(12) Macedo Dantas, Cornélio Pires: Criação e Riso. S. Paulo, 1976, p. 344.
“ Povo de Piracicaba
Deve ter recordação
Ano de quarenta e oito
Que o quinze foi campeão (20)
João Guidote que levou
Pra primeira-divisão
João Guidote levou o quinze
Dia quinze vote em João"
Notas
48
(16) José de Souza Martins, Capitalismo e Tradicionalismo. S. Paulo,
1975, p. 123.
(19) Bar “Baila Comigo”, Av. Pompeu Reale, 510, Bairro do Morro
Grande e Bar “Véio Mauá”,Av. Salles Gomes, 325, Bairro da Estação.
49
Discografia
Música Caipira - Nova Hist. da Mús. Pop. Brasileira Abril Cultural, 1978.
Entrevistas
Bibliografia
51
ARAUJO, A. M. - Cultura Popular Brasileira. 2ª ed. São Paulo,
Melhoramentos,1973.
_____________Documentário Folclórico Paulista e Instrumentos
Músicais e implementos. Revista do Arq. Municipal, 20 (152)jul/dez.,
1953.
_____________Folclore Nacional: Danças, Recreação, Música. 2ª
ed. São Paulo, Melhoramentos, 1967. V. 3.
52
FELICITAS - Danças do Brasil. Rio de Janeiro, Ouro, 1968.
* “Cururu: resistência e adaptação de uma modalidade musical da cultura tradicional paulista”, original em:
ARTEunesp, v.6, 1990, pp.47-59.
54
Um pouco de história e conceitos
1
Um dos motivos dessa deterioração foi a maneira como os fatos culturais populares tradicionais foram
concebidos, estudados e divulgados por muitos folcloristas: de modo desvinculado dos seus contextos
sociais. Isso deu às pessoas a sensação negativa de que se tratava de fatos exóticos e ultrapassados, fora do
tempo, de irrealidades, excentricidades, rusticidades ou expressões curiosas e anedóticas relacionadas a
pessoas incultas ou excêntricas, que eram, no entanto, exaltadas de modo idealizado, à distância diga-se,
dentro de uma visão nacionalista conservadora, na qual se dirigia a atenção “ao povo” apenas como
alegoria da nacionalidade.
55
As inúmeras denominações são tentativas de se conferir a essa ordem
de expressões alguma característica ou distinção, buscando singularizá-
las, diferenciando-as de outras, como por exemplo a cultura de massa, a
cultura urbana, a cultura “erudita” e a cultura indígena. Porém, a tarefa não
é simples, pois os conhecimentos abarcados nas culturas populares
tradicionais são muito diversificados, além do que comumente uma
mesma modalidade pode ter diferenças na forma, função e até nos
significados – em regiões e/ou grupos distintos. No Brasil, essas
expressões culturais tradicionais ganharam maior visibilidade diante de
um certo modismo que surgiu sobretudo a partir da década de 1990.
Entretanto, é importante lembrar que a atenção para esse conjunto de
saberes tem um lastro já histórico, vindo, de modo mais evidente, pelo
menos desde o século XIX, em alguns países da Europa. Desde então, as
anteriormente denominadas “antiguidades populares” ou “literatura
popular” passaram a ser objeto de reconhecimento. Embora o hábito de
coletar costumes populares ocorresse desde épocas bem anteriores, o
movimento teve maior impulso, de forma mais programática, a partir de
meados do século XIX, com a proposta de criação do próprio termo: folk-
lore, na Inglaterra, em 1846 2 , identificado como “o saber tradicional do
povo” ou a “sabedoria popular”. O autor da proposição, William John
Thoms, solicitava na ocasião apoio para a realização de levantamento
sobre “usos, costumes, cerimônias, crenças, romances, rifões,
superstições etc., dos tempos antigos”3 , que estavam, então,
“inteiramente perdidos” e se preocupava com o quanto “se poderia ainda
salvar...”, diante da modernização.4
2
Para mais detalhes, ver: Renato ORTIZ. Cultura Popular: românticos e folcloristas. São Paulo: Programa
de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais / PUC-SP, 1985.
3
Conf. Laura DELLAMÔNICA, Manual de folclore. São Paulo:AVB, 1976, p. 15.
4
É interessante perceber que tanto do ponto de vista conceitual, quanto em relação aos modos de
salvaguarda desses saberes, o que se propõe atualmente, em muitos aspectos, são preocupações bem
próximas a essas, desta vez, talvez, em oposição aos desdobramentos da globalização e das tecnologias, e
em sintonia, em certa medida, com as questões ambientais, uma vez que as culturas tradicionais são
entendidas como mais próximas da natureza (o acústico, o artesanal etc.).
56
Ao longo da história são muitas as tentativas de se definir a cultura popular
tradicional, sobretudo, por folcloristas. Porém, trata-se de tarefa
complexa, com resultados que sempre apresentam um ou outro senão, por
envolverem saberes e fazeres tão variados. Aqui, apenas para efeito de um
balizamento conceitual básico, podemos recuperar dois textos mais
recentes que têm grande consagração por serem emitidos por um
organismo de alcance e reconhecimento mundial, a Organização das
Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – Unesco, que tem
sido uma referência importante para os países do ponto de vista das
reflexões sobre a cultura. Em um documento de 1989, define-se:
57
Note-se que também é um conceito bastante “aberto”, podendo ser
aplicado a tantos fatos culturais, de diversos tipos de sociedades, mas que
na prática, entre nós, tem sido relacionado predominantemente aos saberes
das culturas populares e tradicionais.
Na primeira definição destacam-se idéias como: conjunto de criações
(vários fatos), emanação comunitária, embasamento na tradição,
expressão de grupo ou individual, reconhecimento comunitário,
expressão de identidade e transmissão oral, incluindo-se vários exemplos
de fatos que são abarcados na definição, aos quais se podem acrescentar
muitos mais. No segundo, ressaltam-se os aspectos intangíveis da cultura,
além dos seus correspondentes resultados materiais e os espaços físicos
nos quais ocorrem. São de fato peculiaridades que costumam ser
destacadas quando se procura identificar as manifestações da cultura
7
popular tradicional.
58
pelas culturas de povos diversos, genericamente identificados como
étnicos, e também pelas culturas populares tradicionais.
Tal envolvimento atinge sobretudo jovens e pessoas de formação mais
8.
intelectualizada (estudantes universitários e de grau médio e intelectuais)
Pode-se, inclusive, encontrar em várias cidades do Brasil conjuntos
artísticos de “projeção folclórica” de música e/ou danças/folguedos
compostos de estudantes, da mesma forma como grande quantidade de
jovens (comumente identificados como “universitários”) participam dos
próprios grupos tradicionais. No primeiro caso, podemos mencionar a
existência de maracatus, ou pelo menos de “bandas” de percussão de
maracatu em cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Campinas
e Florianópolis. No que se refere à musica, por exemplo, nunca se viu tão
grande quantidade de CDs e vídeo-documentários de música/cultura
tradicional como lançados nesses últimos anos, por instituições de
diversos tipos (departamentos e secretarias governamentais, ONGs,
fundações e associações culturais), conforme se percebe até em algumas
lojas mais especializadas “em som”, nas quais se encontram músicas de
várias partes do mundo e do Brasil, nas sessões denominadas: world music,
música étnica, música do mundo ou música internacional.
Outra vertente reveladora do interesse contemporâneo em torno das
9
“sonoridades tribais” ou música “de mundos esquecidos” pode ser vista
nas programações de algumas emissoras de televisão, sobretudo
educativas ou a cabo (que começaram a proliferar no Brasil principalmente
8
Inclusive, na vida acadêmica, pode-se notar o desdobramento de especializações relacionadas ao campo da
antropologia, como etnocenologia, etnopoesia, etnobotânica, etnomedicina, etnomatemática e outras tantas.
9
Conf. Título do CD duplo: Vozes de Mundos Esquecidos: música tradicional dos povos indígenas,
compilado e editado por Larry Blumendeld, pelas Ellipsis Arts..., Roslyn-New York, 1993, produzido “em
colaboração com o Centro para os Direitos Humanos das Nações Unidas”.
59
a partir de meados da década de 1990), que exibem documentários
10
enfocando a cultura de povos diversos, muitas vezes na forma de viagens
de aventura, retratando aspectos culturais, curiosos e exóticos (festas,
danças e músicas) de diversas regiões do mundo, incluindo a natureza e a
11
vida animal, ao mesmo tempo em que se avolumam as programações de
12
espetáculos de grupos de “cultura popular” em instituições culturais. Um
outro exemplo singular do modismo etnicista em diversos setores é o bufê
infantil Casa Tupiniquim: festas e afins (especializada em organizar
festas), inaugurada em outubro de 2000 no bairro paulistano de Vila
Madalena, que se promove como um “Centro Cultural Infantil”, voltado
para “resgatar a cultura brasileira”. Ali, nas festas infantis, Mickey
10
No que toca às televisões educativas, podemos mencionar como exemplo a série de vídeo-documentários:
Bahia, singular e plural, plural, produzida a partir de 1998 pelo Instituto de Radiodifusão da Bahia (IRDEB),
uma fundação da Secretaria da Educação do Estado, que se fez acompanhar de uma série de CDs. Os vídeos
foram veiculados pela TV Educativa da Bahia e outras como a TV Cultura de São Paulo e a TV Senado. Em
2002, os vídeos já contavam 14 títulos e continuavam sendo produzidos. Mas, a rigor, a divulgação de
documentários etno-cultural-musicais extrapola as televisões educativas. Também verificou-se em alguns casos
um interesse mais comercial por essa vertente musical, como foi o caso de uma série de quinze programas
(documentários de 30 minutos), denominada “Música do Brasil”, veiculada, sintomaticamente, pela MTV
(Music Television) brasileira, semanalmente, a partir de abril de 2000, apresentando um amplo mapeamento das
práticas musicais no Brasil, notadamente as tradicionais. Como se sabe, a MTV sempre se voltou mais para o
público jovem, dedicando-se principalmente à música pop-rock. O documentário foi produzido por iniciativa de
uma empresa privada ligada ao setor de comunicações.
11
Uma dessas emissoras é a National Geographic Channel que se anuncia: “Descobrindo o Mundo”. Por sua vez,
alguns programas revelam já no título a preocupação ambientalista e de aventura, relacionada muitas vezes aos
chamados esportes “radicais” (rapel, rafting etc.), como: Repórter Eco, Tribos e Trilhas e Expedições,
veiculadas na TV Cultura de São Paulo; Visões do Mundo, da TV SESC-SENAC e outros voltados para
esportes, relacionados com a natureza.
12
Bom exemplo são as programações realizadas nos SESCs (Serviço Social do Comércio), em todo o Brasil, e até
mesmo em algumas casas noturnas “alternativas”. Tanto se apresentam artistas que criam suas próprias
composições com base nas referências tradicionais, quanto são programados os próprios grupos tradicionais,
muitas vezes em um mesmo espetáculo, em um tipo de junção que não se concebia em outras épocas, conforme
se viu na Programação “Balaio Brasil”, organizada pelo SESC São Paulo em novembro de 2000, quando “cerca
de 150 atrações divididas entre Teatro, Dança, Música, Literatura e Artes Visuais” foram apresentadas em
diversas unidades, “desde produções emergentes até nomes já consagrados, de artistas populares aos mais
contemporâneos”. A programação inclui desde a cultura indígena, passando pelo folclore, até a “vanguarda”, e
havia no projeto editorial preocupação com a “recriação da tradiçã cultural local em relação aos valores
universais...”(conf. Programação “Balaio Brasil”, SESC – São Paulo, 2000). Na capital paulista, um outro
espaço “alternativo, de apresentação de danças tradicionais, são algumas festas anuais (três no decorrer do ano)
realizadas por integrantes de um grupo de projeção de danças/músicas maranhenses denominado Cupuaçu, que
apresenta o auto do bumba-meu-boi e outras danças em uma praça de um bairro conhecido como Morro do
Querosene, na zona Oeste da cidade. Para o local, nos dias das festas, acorrem sempre milhares de jovens, que
permanecem, muitos, por toda a noite assistindo às apresentações do Cupuaçu e de outros grupos de danças e
folguedos tradicionais existentes na cidade.
60
Mouse e outros personagens da mídia de massa “não entram”. O trabalho
de entretenimento das festas é feito com lendas (Saci, Iara e outras),
músicas, jogos/brincadeiras, danças e também com comidas “brasileiras”.
Por fim, além de tantas outras, a dinâmica do interesse voltado para as
culturas tradicionais pode ser aferida na criação, em São Paulo, do Fórum
Permanente de Cultura Popular Tradicional (FPCP), em agosto de 2002,
que com o tempo passou a reunir expressivo número de interessados em
todo o Brasil, inclusive de grupos organizados que realizam algum tipo de
trabalho voltado para ou com culturas populares. Nota-se que o Fórum
direcionou muito as preocupações para discutir e buscar meios de interferir
politicamente (nas esferas federal, estadual e municipal) com propostas de
legalização de leis de “incentivo” à cultura popular. Seus integrantes
criaram, inclusive, uma rede de comunicações via internet na qual
anunciam e trocam informações sobre eventos relacionados ao tema.
Fomento e salvaguarda
13
Os documentos são, respectivamente: Recomendação sobre Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular
(1989) e Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial (2003).
61
indicadoras da brasilidade.
Oficialmente, diversos foram os atos para documentar, estudar e
fomentar os saberes das culturas tradicionais como citar esparsamente,
alguns exemplos: a Missão de Pesquisas Folclóricas, iniciativa de Mário
de Andrade em 1938, no então Departamento de Cultura do Município de
São Paulo, que fez extenso registro (gravações, fotos, registro descritivo)
de manifestações populares no Norte e Nordeste do Brasil; a criação da
Comissão Nacional de Folclore (CNFL) em 1947, organizada no
Ministério das Relações Exteriores, como representante do Brasil na
Unesco, e a criação da Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro em
1958 (atualmente Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular, do
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan, do
Ministério da Cultura), com os seguintes objetivos: promover registro,
pesquisas e levantamento, cursos de formação e de especialização,
exposições, publicações, festivais; proteger o patrimônio folclórico, as
artes e os folguedos populares; organizar museus, bibliotecas, filmotecas,
fonotecas e centros de documentação; manter intercâmbio com entidades
congêneres; divulgar o folclore no Brasil.14 Em 1965, instituiu-se a data de
22 de agosto como o Dia do Folclore, no âmbito do Governo Federal, por
meio de decreto no qual se expunha: O Governo deseja assegurar a mais
ampla proteção às manifestações da criação popular não só estimulando
sua investigação e estudo, como ainda defendendo a sobrevivência dos
seus folguedos e artes, como elo valioso da continuidade tradicional
brasileira....15
14
Para ver detalhes do histórico dos estudos e fomento do folclore, ver: Laura DELLA MÔNICA, Manual do
Folclore, São Paulo: AVB, 1976, p.23 e Luís Rodolfo VILHENA, Projeto e Missão: o movimento folclórico
brasileiro, 1947-1964, Rio d e Janeiro: Funarte/Getúlio Vargas, 1997.
15
Conf. Laura DELLA MÔNICA, 1976, P.20. Em São Paulo existe também o Decreto n. 48.310, de 1967,
instituindo o Mês do Folclore (agosto), “Considerando que o Poder Público não deve ficar indiferente à difusão
e à defesa do folclore, pelo que ele representa como espelho da alma popular, e amálgama de conhecimentos e
práticas que contribuem inclusive para fortalecer os laços da comunidade, da Nação e da fraternidade
humana,...” e “visando divulgar, estudar e pesquisar os fatos da cultura popular brasileira, e despertar o
interesse, especialmente dos jovens para a ciência do Folclore;...”(In: Laura DELLAMÔNICA, p. 21)
62
Da legislação mais recente podemos destacar a própria Constituição
Brasileira, de 1988, que prevê no seu Art. 215, Parágrafo 1º - O Estado
protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-
brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório
nacional. No Art. 216, no que interessa para o presente enfoque, se lê:
Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e
imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de
referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos
formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I – as formas de
expressão; II – os modos de criar, fazer e viver;... E no Parágrafo 1º: O
poder público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá
o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros
vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de
acautelamento e preservação.
No desdobramento do que preconizam a Constituição Brasileira e as
decisões da Unesco, já mencionadas, no ano de 2000 foi oficializado o
Decreto n. 3.551 (Federal), de 4 de agosto, que Institui o Registro de Bens
Culturais de Natureza Imaterial que constituem o patrimônio cultural
brasileiro, cria o Programa Nacional do Patrimônio (Imaterial..., no qual
se prevê o registro nos seguintes livros: I – Livro de Registro dos Saberes,
onde serão inscritos conhecimentos e modos de fazer enraizados no
cotidiano das comunidades; II – Livro de Registro das Celebrações, onde
serão inscritos rituais e festas que marcam a vivência coletiva do trabalho,
da religiosidade, do entretenimento e de outras práticas da vida social; III
– Livro de Registros das Formas de Expressão, onde serão inscritas
manifestações literárias, musicais, plásticas, cênicas e lúdicas; IV – Livro
de Registro de Lugares, onde serão inscritos mercados, feiras, santuários,
63
praças e demais espaços onde se concentram e reproduzem práticas
culturais coletivas. ...
No sítio do Programa Nacional do Patrimônio Imaterial, do Iphan-
MinC, nas suas diretrizes, propõe-se, entre outros aspectos: Promover a
inclusão social e a melhoria das condições de vida de produtores e
detentores do patrimônio cultural imaterial, e além disso Ampliar a
participação dos grupos que produzem, transmitem e atualizam
manifestações culturais de natureza imaterial nos projetos de preservação
e valorização desse patrimônio, o que revela preocupações não somente
com os fatos culturais em si, como sempre se fez historicamente, e ainda
predomina na maioria das propostas contemporâneas de fomento às
culturas tradicionais. Nota-se, então, a preocupação com a valorização dos
16
próprios detentores desses saberes , fato esse que se confirma também em
outro sítio (dos Planos de Salvaguarda), no qual se busca atuar no sentido
da melhoria das condições sociais e materiais de transmissão e
reprodução que possibilitam sua existência, que podem ir desde a ajuda
financeira a detentores de saberes específicos com vistas à sua
transmissão, até, por exemplo, a organização comunitária ou a
17
facilitação de acesso a matérias-primas .
Da mesma forma, multiplicaram-se no Ministério da Cultura outras
iniciativas no tocante às culturas populares, entre as quais: os Pontos de
Cultura, de repasse de recursos em dinheiro e de ações do Programa
Cultura Viva (MinC), que no primeiro Edital, de 2004, selecionou
aproximadamente 260 projetos, dos quais muitos voltados para as culturas
populares tradicionais; o I Seminário Nacional de Políticas Públicas para
16
Conf. http://www.iphan.gov.br/bens/P.%20Imaterial/imaterial.htm, em 16/4/2005.
17
http://portal.iphan.gov.br/portal/montarPaginaSecao.do?id=12553&retorno=paginaIphan, em 26/6/2006.
64
as Culturas Populares, em fevereiro de 2005 (precedido de seminários em
vários Estados), o Edital de Concurso Público n. 2, de 31 de agosto de
2005, da Secretaria da Identidade e da Diversidade Cultural
(SID)/Secretaria de Fomento e Incentivo à Cultura, para Fomento às
Expressões das Culturas Populares, que teve em torno de 630 inscrições e
18
selecionou 46 projetos de todo o País ; o Prêmio Cultura Viva, em 2006; o
Edital de Divulgação n. 001/2006, de Mapeamento e Documentação do
19
Patrimônio Cultural Imaterial, do Iphan-MinC , e , em setembro de 2006,
o II Seminário Nacional de Políticas Públicas para as Culturas Populares e
o I Encontro Sul-Americano de Culturas Populares.
Além das iniciativas de âmbito federal, existem aquelas de governos
estaduais e municipais, e, ainda de associações da sociedade civil, que de
uma forma ou outra, estão voltadas para o fomento e salvaguarda das
tradições culturais. Em São Paulo, instituiu-se, em 2001, o Dia da Cultura
Caipira (5 de agosto) e, em 2004, o Dia do Saci (31 de outubro), no âmbito
estadual. Na cidade de Botucatu, organiza-se o Festival Nacional do Saci
(onde surgiu a Associação Nacional dos Criadores de Saci); além disso o
Governo do Estado oficializou em 2006 editais de Concurso de Apoio a
Projetos de Promoção da Continuidade da Cultura Caipira, Caiçara,
20
Piraquara e Afro, e, ainda, da Cultura Quilombola . Por sua vez, o
Governo do Estado de Pernambuco, com base em Lei de 2002, promoveu
em 2005 o I Concurso Público do Registro do Patrimônio Vivo do Estado
de Pernambuco RPV-PE, para “beneficiar os artistas e mestres da cultura
21
popular e tradicional do Estado” , que passaram a ter direito a uma pensão
18
Conf. Sítio: http://www.cultpopbrasil.org/noticias/news_item.2006-01-05.0146052683, em 28/5/2006, e
publicação: Cultura Viva – Programa Nacional de Cultura, Educação e Cidadania, 2 ed., Brasília: Ministério da
Cultura /Ministério do Trabalho e Emprego, 2005.
19
Sítio: http://portal.iphan.gov.br/forum/concurso/novasede/Edital_PNPI-2006.pdf, em 30/7/2006.
20
Sítio: http://www.cultura.sp.gov.br/StaticFiles/SEC/edital/Edital_PAC_17-2006_cultura_caipira.doc, em
27/7/2006.
21
Ver FUNDARPE, sítio: http://www.cultura.pe.gov.br/. E, 26/09/2006.
65
mensal, como “Patrimônio Vivo”. Igualmente, o Governo do Estado do
Ceará, em 2003, instituiu o Registro dos Mestres da Cultura Tradicional
Popular do Estado do Ceará, cujos selecionados também obtiveram
22
direito a um auxílio financeiro mensal como “Tesouro Vivo do Ceará” .
Há de se mencionar também os empreendimentos de patrocínio, de
grande importância, da Petrobras, empresa estatal, sobretudo desde a
consolidação, em 2003, do Programa Petrobras Cultural, executado a
partir de 2004, em sintonia com o Ministério da Cultura e a Secretaria de
Comunicação de Governo e Gestão Estratégica, da Presidência da
República, que entre as suas linhas de atuação, na de Preservação e
Memória (Música e Patrimônio), teve desmembramento de incentivo para
projetos de Patrimônio (Memória das Artes e Patrimônio Imaterial), na
qual têm sido selecionados muitos projetos voltados para as culturas
populares tradicionais. Da mesma forma, outras empresas, inclusive
bancos, no sistema de renúncia fiscal, têm realizado ações de promoção
das culturas populares.
66
realizações oficiais de fomento aos grupos de práticas populares
tradicionais. Nesse prêmio puderam se inscrever, diretamente, sem
intermediários, grupos que não têm estatuto jurídico formal (exigência
burocrática), que é a realidade da grande maioria dessas iniciativas, que
embora sejam conhecidas e consagradas em suas comunidades, não
contam com tal condição institucional. Posteriormente, os grupos
premiados, quando informais, obtiveram assessoria para os trâmites
burocráticos de seus registros.
O reconhecimento das culturas tradicionais se revela, no todo, em
distintas formas de registro (gravação de CDs, vídeo-documentários,
inventários, publicação de pesquisas), programação de um sem-número de
apresentações “artísticas”, festivais, criação de fóruns, programas
televisivos, patrimonialização de “mestres” das culturas populares como
“tesouros vivos”, encontros e outras modalidades.
Pode-se crer que, em seus princípios, muitas das iniciativas estão
lastreadas em meritória preocupação com os saberes populares, sobretudo
quando voltadas também para os membros das comunidades guardiãs
desses conhecimentos (o que é uma inovação), e não somente interessada
nos fenômenos em si, de forma descontextualizada, como tem sido feito
historicamente. Mas, por outro lado, também ocorrem ainda ações (mesmo
oficiais) que se pautam em vícios e conceitos equivocados, que resultam de
23
visões reducionistas, fragmentadas, e por demais generalizadas das
culturas populares. Nestes casos, no geral, não se levam em consideração
os conceitos, as visões, os interesses, funções e sentidos mais profundos
que as próprias comunidades têm dos fenômenos que praticam.
23
Há de se reconhecer que a própria tentativa de nomear, com poucos termos (gerais), as tão variadas expressões
culturais populares revela também uma compreensão redutora, rasa, das mesmas. De fato, cultura popular é
nomenclatura muito vaga e já saturada, praticamente, sem eficácia representativa.
67
Dessa forma, o modo predominante de incorporação das expressões
populares tradicionais no cenário cultural tem se dado atualmente pela via
estética, ou seja, como arte, espetáculos para puro entretenimento, e, ainda,
como apresentações de folclore, na forma de expressões de representação
da identidade nacional (brasilidade), das regionalidades ou das
localidades24. Esse último tipo de intervenção é comum quando se elegem
algumas práticas tradicionais, notadamente as que envolvem música,
dança e dramatizações, como atrações artísticas ou turísticas das suas
localidades, compreendendo-as como fenômenos isolados dos seus
contextos históricos e sociais, que lhes dão sentido. Por exemplo, um
mestre de Folia de Reis, que é em primeiro lugar, uma espécie de líder
espiritual, religioso, devoto e representante dos Três Reis Magos (Baltazar,
Gaspar e Melchior), passa a ser visto como representante do folclore ou
incluído na categoria “artista popular”, o que é estranhável para o próprio.
Naturalmente, não se pode desconsiderar a dimensão estética que se
ressalta em tantas expressões populares tradicionais, mas na maioria das
vezes não são estas as dimensões mais significativas para os próprios
participantes, principalmente naquelas realizações lastreadas em
princípios religiosos (tão comuns na cultura tradicional), mesmo que se
expressem nas formas compreendidas como “lúdicas”, com cantorias,
danças e dramatizações, e sejam identificadas como “brincadeiras”.
Assim, nem tudo nas culturas tradicionais pode se transformar,
generalizadamente, em espetáculo artístico ou deve servir à “geração de
renda”, à maneira das preocupações utilitaristas, embora, obviamente, não
de defenda aqui qualquer visão purista ou ingênua dos grupos dessas
expressões, nem a intocabilidade destes.
24
Elas são, de fato, expressões identitárias, porém sobretudo dos próprios praticantes ou das comunidades nas
quais se inserem.
68
Há de se considerar que os fenômenos das culturas tradicionais
guardam valores morais, religiosos, políticos, lúdicos, estéticos e outros
tantos, que foram herdados e, portanto, de algum modo refletem a própria
história das suas comunidades, repondo o passado no presente, e sendo
então sempre atuais. São práticas aglutinadoras, que, repetidas
ciclicamente, reforçam os valores socialmente aceitos e importantes para
os grupos, vitalizando-os. Por serem fatos preservados e geridos
coletivamente, são instrumentos de identidade e inclusão social, e até
mesmo de resistência política diante dos problemas que as comunidades
enfrentam.
25
Então, ações de fomento e salvaguarda serão eficientes e mais
interessantes na medida em que se pautem no conhecimento profundo e
sensível das comunidades e das modalidades enfocadas, e sobretudo
quando levam em consideração as visões e essências das próprias
populações envolvidas, cuja autogestão é fundamental, desvinculando-se
de mediadores (muitas vezes, “atravessadores”, no sentido negativo), que
estabelecem com os grupos conhecedores dos saberes tradicionais
inúmeras formas de relacionamento, paternalistas ou comercialmente
exploradoras, quando das suas vorazes inserções no mundo
contemporâneo da cultura apenas como espetáculo.
25
Sobre o assunto, ver: Márcia SANT'ANNA. “Políticas públicas e salvaguarda do patrimônio cultural
imaterial”. In Registro e Políticas de Salvaguarda para as Culturas Populares (Série: Encontros e Estudos,
n.6). Rio de Janeiro: CNFCP-Iphan-MinC, 2005; Letícia VIANNA, “Patrimônio Imaterial: legislação e
inventários culturais. A experiência do Projeto Celebrações e Saberes da Cultura Popular”. In Celebrações e
Saberes da Cultura Popular: pesquisa, inventário, crítica, perspectivas (Série: Encontros e Estudos, n. 5). Rio
de Janeiro: CNFCP -Iphan-MinC, 2004 (pp.15-24); e José Jorge de CARVALHO, “Metamorfoses das tradições
performáticas afro-brasileiras: de patrimônio cultural a indústria de entretenimento”. In: Celebrações e saberes
da cultura popular: pesquisa, inventário, crítica, perspectivas (Série Encontros e Estudos, n. 5). Rio de
Janeiro: CNFCP-Funarte/IPHAN/MinC, 2004, pp. 65-83).
* Manifestações Tradicionais: rituais, artes, ancestralidades ... (Prêmio Cultura Viva, do MinC), original em:
Prêmio Cultura Viva: um prêmio à cidadania, Ana Regina CARRARA (coord.). S. Paulo: CENPEC, 2007,
ISBN 978-85-85786-65-6, pp. 50-54.
69
*
72
Evidentemente, não se pode fazer a relação direta entre os bairros da cidade
e a quantidade desses grupos, pois a maioria das folias fazem andanças por
vários bairros, e alguns possuem até três grupos distintos, conforme se
pode constatar.
Pelo menos três tipos diferentes de folias são encontradas em Goiânia:
(7)
sistema mineiro, sistema baiano e sistema misto .
As considerações deste artigo estão baseadas em contatos realizados
com oito grupos, sendo: três folias de sistema mineiro, duas folias que
incorporam tradições goianas/mineiras e baianas, e três folias de sistema
baiano.
As folias de Reis - Trata-se de grupos de devotos dos Três Reis Magos
(8)
que, normalmente no período entre 24 de dezembro e 6 de janeiro ,
anualmente, portando instrumentos musicais e um estandarte alusivo à
devoção, fazem visitação nas casas, onde realizam louvações cantadas ao
Menino Deus e aos Reis Magos (Baltazar, Melchior e Gaspar). O
estandarte ou bandeira traz sempre a figura dos “ Reis Santos” e/ou cenas
(9)
da natividade, sendo o símbolo representativo das folias . O número de
componentes do grupo é variado, na média entre 8 a 12 elementos. Além,
das cantorias louvativas, as folias angariam contribuições (“esmolas”)
para a realização da Festa de Reis (6 de janeiro). Naturalmente,
comunicam e convidam os donos das casas visitadas para os festejos. As
“esmolas” variam de acordo com as possibilidades de cada casa visitada;
no geral são contribuições em dinheiro (pequenas quantias) ou a doação de
gêneros alimentícios (arroz, feijão, farinha, macarrão) e até mesmo
(10)
pequenos animais (galinha, pato etc.), que são utilizados no dia da festa .
O ciclo de visitações (jornada ou giro) consiste, basicamente, de: saída
de determinada casa (pouso de saída); visitações e pedidos de esmolas em
inúmeras casas, durante vários dias, em trajeto previamente estabelecido;
chegada à casa onde se encerra o ciclo (pouso ou casa da entrega).
73
Simbolicamente as folias representam a história bíblica. Concretamente,
trata-se de uma pequena unidade volante de evangelização e manutenção
das tradições católico-populares.
75
Ai, eles foram girá o mundo
Ai, entre caxas (caixas) e viola bis=coro
Ai, entre caxas e viola
76
Ai, senhores dono da casa
Oi, adeus até outro dia bis=coro
Oi, adeus até outro dia
78
· Cantoria de chegada e pedido de entrada na casa
· Cantoria de saudação aos moradores e pedido de esmola
· Entrega da bandeira ao (s) morador(es)
· Cantoria versando sobre a Natividade (quando há presépio na casa
faz-se a “Adoração do Presépio”, cantada)
· Devolução da bandeira à folia
· Recebimento da esmola
· Cantoria de agradecimento e despedida.
Comumente, de uma única vez, faz-se o “pedido de entrada”,
“saudação aos moradores” e o “pedido de esmolas”, assim como não há
rigor na cantoria de “adoração do presépio” ou o momento específico do
recebimento da esmola.
No tocante ainda aos aspectos rituais, a bandeira por ser o símbolo
máximo do culto aos Reis Magos é sempre o centro das atenções e
reverências, sendo comum que seja levada (pelos próprios moradores) aos
vários aposentos da casa, sendo passada por cima dos mobiliários, como
forma de benzimento. Da mesma forma, nas ruas é normal que transeuntes
a beijem e se benzam tomando nas mãos as fitas que sempre pendem dela.
Nos pousos “de almoço” e “de janta” os foliões sempre cantam em
agradecimento pela refeição recebida, assim como costumam ovacionar
(vivas) aos Reis Magos, aos donos da casa, à cozinheira etc; além de
realizarem rezas à mesa antes de iniciarem a refeição. Podem ocorrer após
o repasto momentos de “brincadeiras”, principalmente depois do jantar,
com a realização de danças e cantorias profanas. Os foliões de tradição
mineira/goiana costumam dançar o Catira (dança com palmeados e
sapateados) enquanto os grupos baianos executam principalmente o samba
de roda e a chula (pautas musicais e considerações no final).
Além da bandeira, a toalha é implemento presente e importante nos
grupos de folia, sendo usada por todos os seus membros. São sempre
79
brancas e, na maioria das vezes, trazem bordadas inscrições alusivas à
devoção. Usam-na dobrada em quatro (no comprimento). Por ser também
um símbolo sagrado, não pode ser utilizada na forma convencional.
Alguns depoimentos sobre o significado dessas toalhas mostram bem sua
importância:
· Atoalha “significa, quando São José e Nossa Senhora saíram com a
toalha para embrulhar e esconder o Menino Deus, quando os
judeus estavam caçando ele.”
· “a toalha é uma corrente para livrar negócio maligno”.
· “a toalha é divisa (identidade) dos Treis Reis Magos, é os soldados
(guardiães).
· “a toalha é divisa de folião” (distingue aqueles que fazem parte do
grupo).
· “há de se respeitá esse manto que enxugou Jesus Cristo no
padecimento dele”.
81
madeira ou um chicote. A eles cabem papéis cômicos (dançam
desengonçadamente o “lundum”, dirigem gracejos aos transeuntes e aos
donos das casas), e ainda, ficam encarregados de proteger os membros da
folia quando estes são ameaçados por cachorros ao se aproximarem das
casas; também vão à frente da folia para indagar os moradores sobre o
interesse ou não em receberem o grupo. Para as crianças, principalmente as
menores, os palhaços são sempre motivo de medo, pelo uso da máscara
(em geral aterradora) e por estarem o tempo todo em atitudes de grande
agitação; correndo atrás das crianças ou perturbando os animais
domésticos das casas. Os palhaços têm simbologia variada dentro das
folias, sendo na maioria das vezes identificados com “o mal” (espião do
(11)
Rei Herodes ou representantes do diabo); mas existem também
declarações inversas, de que são os “guias da bandera” ou que “os palhaços
são dois: um dançou pra distraí o Rei Herode e o outro fugiu com o Menino
(Deus)”, portanto, representando o “bem” (12).
Apesar da liderança “natural” dos mestres, pelos aspectos já
apontados, alguns reforçam este ponto através da ordem estabelecida
vigente (estrutura oficial de poder), como por exemplo, a aplicação do
“Regulamento da Folia”, com base no Alvará (autorização) Policial a que
as folias estiveram submetidas na cidade em tempos anteriores. Segundo
alguns depoimentos, os alvarás eram obrigatórios “antigamente”, não o
sendo mais. Percebe-se, no entanto, que alguns líderes fazem questão de
colocar aos foliões as regras disciplinares, muito em função do que
constava nos alvarás, conforme exemplo a seguir:
(Regulamento lido por um “capitão” de folia, no dia da saída).
1) “Não é permitido a presença (na folia) de pessoas armadas ou
embriagadas.”
2) “Não é permitida a presença de menores desacompanhados de seus
pais ou responsáveis.”
3) “Fazer silêncio quando chegar a noite... A Partir das 19 horas
82
...porque 18 horas o sol ainda tá alto...então caladinho igual aos
Reis Magos.”
4) “Dar ciência às autoridades. Se as autoridade procurá o que nóis
tamo fazendo, nóis tamo girando com a folia pra cumpri uma
missão. As autoridades são a polícia civil ou militar ou do
exército.”
5) “Fulião não pode sair antes de agradecer a mesa, na hora da
refeição.”
6) “Fulião não pode sair com a toalha no pescoço para o buteco
(bar). Se for comprá um cigarro ou fósforo, pega a toalha e dá pra
outro soldado, outro irmão dele, comprá o fósforo. Se o público
vê o fulião num buteco...pode pensá que ele tá bebendo. E as vez
ele tá lá bebendo.”
7) “Não fazer algazarra. Agarra...achou uma menina (mulher)
bonita, deixa pra depois da folia. Respeitá esse manto que
enxugou Jesus Cristo no padecimento dele.”
8) “Não perturbar o sossego público.”
9) “Não chegar atrasado.”
10) “Não mexer nas coisa alheia. Não emprestar os instrumento.”
(“Capitão Amantino”_ Argemiro Isidoro de Macedo - Folia do
Setor Pedro Ludovico, 1/1/1988
83
Ai, os Treis Reis, ai, procurô
Que é pra todos fulião bis
Respondeu Nossa Senhora
Pois o Filho tem benção bis
84
Ai, a garça que avuô
Nos aros (ares) bateu traveis (outra vez) bis
Vai voando e vai dizendo
Viva o nosso Santo Reis bis
Os foliões
85
vários dias de jornada. Alguns foliões conseguem soluções como: pedido
prévio de férias na época das jornadas ou a simples falta ao trabalho
enquanto outros têm participação na Folia em determinados dias ou horas,
que intercalam com o trabalho profissional. Tudo no sentido de “cumprir a
devoção”. Enquanto alguns grupos conseguem a participação permanente
de todos os seus membros, outros recorrem à substituição de alguns
elementos no decorrer das jornadas em função de problemas com o
trabalho. Os líderes são sempre fixos, dificilmente ocorrendo a
substituição.
86
refere à parte harmônica. Instrumentos musicais de registro agudo, como o
cavaquinho e a rabeca, costumam realizar solos paralelos às vozes, assim
como as introduções, os interlúdios e as finalizações, juntamente com a
sanfona.
No geral as folias mineiras têm a participação só de homens.
Sistema Baiano - Pode-se dizer que em Goiânia existem dois tipos de
folias praticadas por migrantes do interior da Bahia: "Folia de Gaita" e
(13)
"Folia de Música" .
A Folia de Gaita baseia-se no uso de duas flautas de bico (pífanos)
denominadas "gaitas" ou "pifes" e instrumentos de percussão: “bumba",
"tambor" ou "caxa", além de outros como o "requi-requi" (reco-reco),
pandeiro, triângulo e o "maracaxá" (chocalho). Trata-se do tradicional
"Terno de Pifes" ou "Zabumba", comum na região nordestina do Brasil. O
bumba e o tambor são tambores de tamanhos variados, denominando-se
Bumba ao maior deles.
A música da folia de gaita tem andamento entre M.M. =100 a 138,
notando-se ênfase no aspecto rítmico, sendo comum na melodia o uso de
células rítmicas sincopadas, conferindo-lhes caráter dançável
contrapondo-se à dolência e ao quadradismo rítmico-melódico das folias
mineiras. As gaitas realizam introduções, interlúdios (melodia
instrumental entre as estrofes cantadas) e os encerramentos, nas cantorias.
São executadas predominantemente em terças paralelas, enquanto as
vocalizações se fazem também em duplas (em oitavas, uníssono ou em
terças). Sempre se intercalam solo-instrumental e cantoria vocal. As
melodias nesses grupos fogem à tradição tonal tradicional, existindo
predominante uso de escalas defectivas (escalas não completas, com 3, 5
ou 6 notas), embora, tendo base tonal. Os solos das gaitas tanto podem
(I4)
repetir a melodia vocal quanto realizar solo diverso desta .
A Folia de Música se caracteriza pelo uso de instrumentos harmônicos
87
convencionais como a sanfona, viola, violões, além da percussão, porém,
mantendo cantos da tradição baiana, conforme apontado anteriormente.
Assim, também, tem andamento mais rápido que as folias mineiras.
Verifica-se nestas a mesma forma de intercalação entre canto e solo
instrumental.
Segundo depoimentos de vários foliões baianos, os grupos daquela
região não costumam ter bandeira, porém adotaram-na em Goiânia em
(15)
função da tradição local .
Nas folias baianas é comum a participação de mulheres, muitas vezes,
tendo liderança no grupo, inclusive nas cantorias; havendo também
grupos só de homens.
Sistema Misto - São Folias que incorporaram músicas dos diversos
sistemas (mineiro, goiano e baiano), muitas vezes, por reunirem foliões de
tradições diferentes. Geralmente têm predomínio do sistema mineiro na
parte instrumental. Percebe-se nelas influências mútuas, como é o caso de
(16)
uma das folias pesquisadas (Jardim Guanabara) cujo embaixador
nasceu em Goiás, mas conhece e pratica formas de cantorias dos sistemas
goiano, mineiro e baiano.
Sistema Goiano – Segundo a pesquisadora Yara Moreira, "consiste
em quatro cantores, dois homens e dois meninos. Estes cantam “por cima”
das vozes masculinas, ou seja, o canto é realizado por duas vozes
(17)
dobradas” . Desse tipo não pude contatar nenhum grupo em Goiânia. A
própria pesquisadora diz não ser comum encontrarem-se grupos desse tipo
atualmente em Goiás, assim como também vários participantes das folias
pesquisadas declararam não terem conhecimento de folias goianas na
(18)
cidade. Segundo informações de um deles , o sistema goiano consiste de
"tirar música em três pessoas e responde com três também", depoimento
este que diverge do da pesquisadora citada.
88
Exemplo 3: CANTORIA DE AGRADECIMENTO PELO
ALMOÇO E HOMENAGEM À PESSOA
FALECIDA.
(Pauta musical: O mesmo do ex. 1, no final)
94
aparece sob forma camuflada em certas fases desse campo de atividades
específico. A relação entre o festeiro, que, tradicionalmente redistribui o
que foi recolhido dos promesseiros pela folia, e seus convivas, geralmente
a gente mais pobre das localidades, acentua ritualmente os padrões morais
de relação entre patrões e lavradores, entre ricos e pobres, entre poderosos
(21)
e dependentes" .
95
Os Treis Reis pede uma oferta
Os Treis Reis pede uma oferta
Se ele for merecedor bis=coro
Se ele for merecedor
Considerações Finais
96
com que ocorrem na cidade. Enquanto determinados grupos se mostram
desfalcados de certos elementos que caracterizam historicamente as folias
de reis, outros mantêm-se integrais e estabeleceram tradição nos bairros da
cidade, demonstrando grande vigor a cada ano.
Percebe-se, grosso modo, a aceitação das várias formas de folias por
parte da população; apesar, naturalmente, do maior ou menor agrado que
alguns possam demonstrar diante dos grupos aos quais estão mais
acostumados.
Entre as folias baianas percebem-se adaptações e a adoção de alguns
procedimentos da tradição local (goiana/mineira, basicamente), como o
uso da bandeira, que estes não praticavam em suas regiões de origem.
Porém, estes migrantes têm conseguido manter elementos fundamentais
das suas próprias tradições, como se nota nos aspectos musicais, que atuam
nestes grupos como uma espécie de amálgama que alinhava a unidade
grupal assim como é o elo de acesso com as divindades e a coletividade.
Há, inclusive, casos inversos onde, por exemplo, um embaixador nascido
em Goiás passou a adotar formas de cantoria do sistema baiano, além
daquelas da sua própria vivência original. Podemos lembrar, ainda, que
prevalecem na cidade as folias do tipo mineira e não do sistema goiano
como seria de se supor. Naturalmente, este quadro se verifica por ser
Goiânia uma cidade de formação relativamente recente onde não havia,
quando do processo inicial das migrações, uma tradição já cristalizada
nesse campo, o que possibilitou aos que para lá se dirigiram, em número
significativo, a manutenção de suas tradições. Por outro lado, a grande
quantidade de folias na cidade se verifica, muito, em função da aceitação e
prática que a população migrante das diversas regiões e a população local
mais antiga cultivava e mantém em relação a esta forma religiosa.
Alguns aspectos mostram adaptações das folias à vivência da "cidade
grande" e com a chamada "modernidade", como:
97
· Não realização do pouso de dormida, pelos foliões;
· uso de veículos (carros) para alguns deslocamentos mais longos da
folia;
· mutabilidade de alguns membros (foliões) no decorrer das
jornadas, em função de problemas com o trabalho profissional;
· diminuição, em algumas folias, do número de estrofes cantadas nas
casas, diante da grande quantidade de visitas que realizam;
· presença comum de gravadores e máquinas fotográficas entre os
foliões (para registro das cerimônias), assim como figuras de
plástico nos presépios, altares e bandeiras;
· intervenção policial com a exigência do Alvará (embora não mais
necessária atualmente);
· distanciamento maior entre a população que realiza e vive
diretamente a prática das folias com as elites da cidade
(proprietários, profissionais de formação universitária etc.). (Nas
regiões rurais, embora as classes econômicas sejam distintas,
muitas vezes as tradições culturais podem ser mais próximas);
· diminuição, em muitas folias, dos dias de jornadas em função de
problemas com o trabalho;
· convivência dos foliões com os meios de comunicação de massa
(TV, rádio, toca-discos);
· o exercício por parte dos foliões de profissões subalternas típicas
das grandes cidades e não mais ligadas às atividades agrárias.
98
(23)
"ordem de relações e de sujeitos sociais” têm-se verificado nos bairros
onde circulam as folias em Goiânia, possibilitando, provavelmente por
bom tempo ainda, a continuidade destas, que podem, inclusive, ser
entendidas como fator de identificação dos marginalizados da grande
cidade e, ainda, como elemento de mediação moderadora entre o tipo de
viver das pequenas cidades interioranas e da vida do campo com o novo
cotidiano do grande centro urbano, já que na maioria das vezes trata-se de
migrantes dessas condições.
Estudos mais aprofundados, no entanto, poderão apontar contra -
posições internas de ordem social, porquanto é revelador que as folias
evitam o giro em áreas coincidentes, fugindo à aproximação com outros
grupos e, ainda, as folias de migrantes baianos, sem ser regra absoluta,
foram localizadas em bairros distantes, junto à população mais carente,
enquanto nas regiões mais centrais circulam predominantemente folias da
tradição mineira/goiana. Naturalmente, essa distribuição geográfica das
folias se dá diante da própria conformação histórica da cidade, onde a
população migrante pobre da Bahia se estabeleceu por último, ocupando
os seus espaços periféricos.
Acompanhando uma folia baiana (Parque Santa Cruz(24), pude
presenciar momentos reveladores, sutis, dessas contraposições
intergrupos na cidade, como os registrados num dia de forte chuva,
enquanto os foliões aguardavam melhores condições para prosseguimento
do giro.
Passaram a se propor adivinhas, entre os foliões:
a) Pergunta: Você sabe qual a diferença entre o eucalipto e o Goiano?
Resposta: O eucalipto, quando você, planta, ele cresce, cresce e
depois ele fica grosso, ... o goiano já nasce grosso.
b) Pergunta: Sabe como é a "Ave Maria" dos Pentecostes?
(religiosos das Igrejas Pentecostais)
Resposta: Alvenaria, cheia de massa
99
O senhor come rosca
Bendito é o revólver
Atira na gente e apaga a luz
(dentro da estrutura recitativa tradicional desta oração)
Outra cantoria:
Obrigado meu senhor
Pela oferta que não deu
Pela oferta que não deu
Dá um cheiro (beijo) no bambu
Que a bandeira o boi comeu
(cantam imitando as formas musicais das folias mineiras).
100
interioranas, e combatem muito as manifestações do catolicismo
tradicional popular, evidentemente, trazendo conflitos sutis de ordem
social.
Portanto, em que pese as críticas de ordem ideológica que alguns
estudiosos (25) fazem às práticas culturais populares como instrumentos de
alienação (com as quais pode-se concordar, pelo menos em parte), há de se
reconhecer nelas, neste caso específico, diante do reformismo reacionário
proposto no crescimento dessas igrejas pentecostais, um instrumento de
resistência e identidade dessas populações, ao mesmo tempo que, sob a
ótica mais ampla, transformam-se intuitivamente em resistência à cultura
hegemônica de caráter "modernizante". Entretanto, não se pode, por outro
lado, radicalizar a visão "dionisíaca" de, partindo desses exemplos ou das
culturas populares como um todo, ver nestas uma tendência
transformadora (estrutural) inata do social, já que as pesquisas, até o
momento, não permitem tanto.
Quando muito será possível uma perspectiva de eventual
potencialidade transformadora, conforme aponta Marilena Chauí quando
diz que "a prática da Cultura Popular pode (grifo meu) tomar a forma de
resistência e introduzir a 'desordem' na ordem, abrir brechas, caminhar
pelos poros e pelos interstícios da sociedade brasileira: ...” porquanto, no
caso aqui estudado, cantam-se "folias aos Reis" mas também praticam-se
os sambas do povo (26).
Em Goiânia, as Folias de Reis, pela quantidade e pelo dinamismo, não
refletem no momento apenas a transposição isolada do viver do campo
para a cidade, mas constitui fenômeno de maior amplitude, diferentemente
do que vimos assistindo na maioria das cidades brasileiras nos seus
processos de crescimento, onde comumente se observa grande
desagregação social e perda das identidades culturais dessas populações
dos excluidos.
101
TRANSCRIÇÕES MUSICAIS (Anexo)
FOLIA DE REIS
Exemplo 1: CANTORIA DE SAÍDA
Folia do Setor Pedro Ludovico (Folia mineira)
Embaixador:Argemiro Isidoro de Macedo - "CapitãoAmantino"
Apesar de esta folia ter todos os seus componentes baianos, não havia
a presença das "gaitas", pois o Embaixador não conseguiu quem as
executassem; usam apenas um violão, dois tambores e um pandeiro
vazado. O violão serve apenas como elemento de marcação da pulsação
rítmica, sem qualquer afinação. Observe-se a melodia, que transportada
para a pauta sem acidentes (dó) resulta no modo de Si Natural, sem o 6º
grau, portanto baseada em sistema modal, em série defectiva. Uma outra
análise será possível, qual seja: se considerarmos que esta melodia pode ter
sido executada originalmente em terças (abaixo, neste caso), tão comum
no nosso folclore musical - até em execução das "gaitas"', então, a
interpretação passa a ser outra, ou seja, tratar-se-á de melodia sob a escala
maior com o 7º grau rebaixado ré bemol, ou modo de Sol Natural
(Mixolídio litúrgico ou eclesiástico) que tem grande ocorrência na região
nordeste. Nesse caso a indicação dos acidentes na armadurada clave
deverá ser: si bemol, mi bemol, lá bemol, ré bemol e sol bemol, ficando o
dó bemol como acidente ocorrente (7ª nota rebaixada, do modo maior).
Como a melodia foi interpretada nesse grupo apenas em uníssono, sem o
acompanhamento de qualquer instrumento de reforço harmônico, esta
segunda interpretação fica impossibilitada de confirmação apesar de
bastante lógica.
103
Sambas de Roda
104
A CASA CAI
Acasa cai, cai,cai (solo)
Em cima de mim ela não cai (coro)
EU VI, EU VI
Eu vi, eu vi, solo
Eu vi meu bem dormir solo
Mas eu vi o pa'sso (pássaro) preto
Namorando a juriti coro
105
PIABA Ê
Piaba ê, piaba ê (solo)
Eu não sou piaba não (coro)
Piaba ê, piaba ê (solo)
Sou piaba e sei nadá (coro)
PIAU NADÔ
Piau nadô, nadô (solo) .
Piau nadô no má (mar) (coro)
Piau nadô, nadô (solo)
Quero ver piau nadá (coro)
106
TAVA DEBAIXO DO PAU
Tava debaixo do pau (solo)
Asariemas (siriema) vuô (voou).
O gafanhoto caiu (coro)
Asariema pegô
Ô EMA, Ô EMA
Ô ema, Ô ema, (solo)
Ô ema corredera
Nunca vi pa'sso (pássaro) de pena (coro)
Pra corrê dessa manera
Chula
As informações obtidas sobre a chula são variadas. Pude observar dois
tipos, que denominavam chula: a) cantoria de improvisação de versos, que
chamam: "Jogar verso" (solo), intercalada, com refrão fixo (coro), sem
dança; b) movimento circular dos foliões, ao som de música instrumental
(gaitas e percussão) em andamento bastante rápido (M.M = 160); que
poderíamos considerar uma espécie de dança em movimento andante, em
círculo. Em alguns momentos houve a presença de um par (duas mulheres)
dançando no centro da roda, ao mesmo tempo em que os foliões giravam.
107
Alguns informantes afirmam que a chula "não é dança", porém,
Oswaldo de Souza, que pesquisou a música na região do (rio) Médio São
(28)
Francisco-Bahia diz: "Na maioria dos sambas, as melodias são curtas,
embora em alguns casos note-se um maior desenvolvimento melódico,
recebendo, então, a melodia, a denominação de ‘chula de samba’.
Conforme pude observar, não existe diferença coreográfica entre as duas"
(chula e samba). Diz, ainda, o autor que a chula ocorre no samba, "embora
tenha vida cancionável independente."
Ritmo no tambor:
CHULA
(solo) O Janaína
Pra que você feiz assim bis.
(coro) Eu vim de lá
Para te ver, você escondeu de mim bis
(solo) Quem tem dois anel no dedo
Um é grande outro é pequeno
Eu tem (nho) dois amor no mundo
Um é branco outro é moren (no)
Eu vim ...
O senhor diga o seu nome
Que eu também, eu digo o meu
Eu me encanto fazendo ...(verso incerto; ininteligível)
Daquele terninho seu
Eu vim...
108
Água pra cima não corre
Pra baixo ela tem carrera
Viva quem tem amorzin (nho)
Na fazenda Gamelê (ra) ..
Eu vim...
Afoiá (folha) da bananera
De tão alto foi o chão
Quem tivé língua comprida
Faça dela um currião
Eu vim ...
Lá no céu tem treis estrela
Toda as treis encarreá (da)
Uma é minha e outra é sua
Outra é do meu namorá (do)
Eu vim ...
Obrigado seu Simão
Pelo verso em mim rogô (incerto)
Na sola do seu sapato
Correu água e nasceu flô
Eu vim ..
(Observe-se que esta melodia não tem clareza tonal, sendo preferível
considerá-la no modo de mi natural, transposta para dó sustenido)
109
CHULA
110
Notas
111
6) A mesma publicação, p.1, aponta a existência de "273
bairros, setores e vilas" na cidade.
7) Yara Moreira tratando das folias no Estado de Goiás
menciona a existência de: "Folia 'maranhense' ", de Guaraí,
constituída somente de mulheres e da "Folia De Reis
'Piauiense' ", na cidade de Pedro Afonso (atual Estado de
Tocantins), "uma Folia de Reis urbana com elementos do
Bumba meu Boi", além de mencionar também as folias de
sistema goiano, in "Música nas Folias de Reis 'Mineiras' de
Goiás”, Revista Goiana de Artes, 4(2) (jul/dez.1983), p.
174.
8) Embora a tradição geral seja a de realização das visitações
(giro) entre 24 de dezembro a 6 de janeiro, em Goiânia
existem grupos que seguem tradições particulares: de 1 a 6
de janeiro, de 25 de dezembro a 2 de janeiro etc., podendo
ocorrer até cantorias de reis fora deste ciclo, quando há
"voto" (promessa).
9) Carlos Rodrigues Brandão, idem, p. 49, diz que "a Folia de
Reis é um grupo ritual do catolicismo popular incluído
dentro de um campo de relações e de representações entre
deuses e homens, e entre tipos de homens, mediador de
dádivas."
10) O procedimento usual das folias é de receber "esmolas" em
nome dos Reis Magos, mas há casos em que ocorre o
processo inverso, conforme documenta Yara Moreira: "A
Folia chega e pede; se a pessoa tem condições dá aquilo que
pode. E os foliões vão levando muitas coisas na sua jornada,
para o dia do festejo: frango, arroz, tudo isso sai. Mas já
112
aconteceu, e acontece sempre, da gente chegar numa casa
que tem escassez daquilo. Aí palhaço já dá a busca, olha e
vem avisar. O Capitão autoriza, a Folia canta pr'aquele povo
e deixa algo prá eles. Oferece o que tem, comida ou
dinheiro. Eles recebem, não dão", op. cit., p. 150.
11) Rei Herodes - Segundo a Bíblia Sagrada, o rei na tentativa
de matar o Menino Deus mandou sacrificar todos os
meninos que havia em Belém e em todos os seus arredores,
da idade de dois anos para baixo.
12) Creio ser possível, aqui, na compreensão da figura do
palhaço (simbolicamente representando a "desordem") nas
folias de reis (a "ordem") uma reflexão correlata ao que faz
Renato Ortiz em relação ao Exu na Umbanda e a cultura
popular frente a cultura hegemônica, in A consciência
fragmentada (Rio de Janeiro, 1980), pp. 67-89.
13) Os migrantes baianos entrevistados são das cidades:
Barreiras, Correntina, Santana dos Brejos, Santa Maria da
Vitória e Carinhanha.
14) Também no interior do Estado de S. Paulo foram registradas
folias baianas (de gaita) em Votuporanga e em Olímpia. A
Folia Baiana de Olímpia tem música gravada no disco-
compacto: Folguedos Populares do Brasil, 1972, que fez
parte do Calendário Philips. (Pesquisa da folclorista Laura
Della Monica). Esta folia, porém, é musicalmente distinta
das folias baianas registradas em Goiânia.
15) Sobre o uso da bandeira nas folias de reis, diz Signeis
Pereira dos Santos (50 anos, nascido em Barreiras, Bahia,
residente em Goiânia desde 1970), cuja folia sai apenas
113
durante três dias: "Lá na Bahia só sai bandeira do Divino,
São Sebastião, São João e Coração de Jesus, que só
caminham de dia. Folia baiana (de reis) não tem bandeira.
Esse povo daqui parece tudo doido, que sai com bandeira de
reis. Folia que sai de noite não pode ter bandeira"(Goiânia,
2/1/1988).
16) Aladaris Brasil de Morais [50 anos, nascido em Goiás
(Velho); embaixador de folia doJardim Guanabara], diz que
canta três músicas em sistema goiano, uma em sistema
baiano e uma em sistema mineiro.
17) Yara Moreira, op. cit., p.174.
18) Benedito Pereira dos Santos, nascido em Jaraguá-Goiás, da
Folia do Setor Jardim Novo Mundo.
19) Aladaris Brasil de Morais- ver nota 16.
20) Em uma das cerimônias presenciadas, a festeira usava uma
coroa dourada (de papel). Realizou-se ali o "encontro das
bandeiras" do ano anterior (conduzida de dentro da casa)
com a bandeira do ano (que chegava),Vila Concórdia.
21) Alba Zaluar: Os homens de Deus (Rio de Janeiro, 1983), p.
118.
22) Yara Moreira, op. cit., p. 159.
23) Carlos Rodrigues Brandão, op. cit., p. 107.
24) Dos diversos grupos de folias contatados, apenas esta tinha
os seus elementos usando mesma roupa (uniforme): camisa
amarela, calça verde e quepe verde.
25) Alguns estudiosos brasileiros, sensíveis às contradições
sociais do País, vêem nessas práticas religiosas
instrumentos de alienação, conforme se vê em Francisco
114
Assis Fernandes, analisando os cantos das romarias de
Aparecida-SP: "Os cantos de Aparecida longe de terem uma
função libertadora tornaram-se parte de ideologia
reconciliadora dos contrastes que medeiam nossa
sociedade. Desempenham papeI de analgésico
marginalizador"., conf. "O canto nas romarias de Aparecida
: opressão ou alienação" in Comunicação e Classes
Subalternas, coord. José Marques de Melo (São Paulo,
1980), p. 184.
Da mesma forma, baseados principalmente no pensamento
gramsciano, movimentos políticos no Brasil, na década de
60, como os dos CPCs: Centros Populares de Cultura,
tenderam a ver as culturas populares sob o prisma da
alienação, conf. Renato Ortiz, op. cit., p. 64.
26) Marilena Chauí, Conformismo e resistência (3 ed., S. Paulo,
1989), p.178. Sobre o assunto, diz Renato Ortiz, op. cit, pp.
10-11: "Os, fenômenos populares (...) encerram sempre
uma dimensão onde se desenvolve uma luta de poder,
porém, seria impróprio considerá-los como expressão
imediata de uma consciência política ou de um programa
partidário".
27) Pela interpretação praticamente rezada desta melodia
realizei a transcrição indicando barras pontilhadas de
divisão de compasso, apenas para facilitar a leitura; também
a fórmula do compasso está entre parênteses (quatro por
quatro), com base no motivo rítmico da percussão que
ocorre em quatro tempos. Esta melodia foi publicada
originalmente no D.O. Leitura, S. Paulo, 8 (94) março de
1990, p. 9, in "'Andanças dos Reis Magos no Brasil",
115
Américo Pellegrini Filho & Alberto T. Ikeda, tendo sido
questionada, por carta, pelo musicólogo Dr. José Geraldo
de Souza. A transcrição anterior foi realizada com
sustenidos ocorrentes, na mesma altura (a partir da nota fá),
e não com os bemóis fixos como se vê nesta versão,
conforme sugestão do referido estudioso. Pela forma como
foi cantada esta melodia pelos foliões pode-se concluir que
a melodia ocorre flagrantemente em sistema modal,
baseada em série defectiva (sem o 6º grau). Pode-se, assim,
questionar o uso da armadura fixa da clave do sistema tonal,
porquanto há inexistência do ré bemol na melodia. Ainda, o
mesmo estudioso interpreta esta melodia como sendo
baseada em "série pentafônica", baseada no "menor
natural".
28) Oswaldo de Souza, Música folclórica do Médio São
Francisco, v. II (Rio de Janeiro, 1980), p.171. Ver também:
Oneyda Alvarenga, Música popular brasileira (Porto
Alegre, 1950), pp. 158-159.
Bibliografia
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Possessão e Procissão: religiosidade popular no Brasil, org. H. Nakamaki e Américo Pellegrini Filho, Osaka-
Japan: National Museum of Ethnology, 1994, pp.167-207; 210 pp.
119
*
121
vistas por muitos como local de brigas e desordens.
Esta segunda versão realmente soa ter boa lógica, porquanto nesse
caso o fato teria ocorrido na segunda metade do século XIX, antes do
registro dos estudiosos para a palavra forrobodó, pois já em 1858 estava
(8)
inaugurada a E.F. Recife ao São Francisco , assim como em 1879
(9)
inaugurava-se a E.F. de Limoeiro , pela The Great Western of Brazil
Railway Co. Ltd. Particularmente, no entanto, creio que a palavra se
originou mesmo de forrobodó, que é termo expressivo até hoje usual,
podendo estar no linguajar popular muito antes do seu registro pela
imprensa; além do que for all num primeiro momento resultaria em foró,
não sendo natural que desta se passasse para uma palavra de maior
impedância que seria forró. Por outro lado, será difícil crer-se que forró
desse origem a forrobodó, o que, da mesma forma, contraria frontalmente
a prática popular de simplificação das palavras (pelo menor esforço) tão
comum no Brasil. (Teria ocorrido uma fantástica concomitância de
fatos?!) Bem...deixamos para os etimólogos o aprofundamento dessa
questão que em nada interfere na importância do forró enquanto fenômeno
cultural popular, que conta atualmente até com um 'forródromo' em
Campina Grande-Paraíba e uma Praça do Forró, no bairro de São Miguel
(10)
Paulista, em São Paulo .
126
Embora o público dos forrós seja predominantemente de jovens e
pessoas de meia idade, é comum a frequência de indivíduos mais idosos,
notadamente nas casas localizadas nos bairros mais populares. Nessas
casas, tradicionalmente as mulheres pagam a metade, ou menos, do preço
(19)
de ingresso pago pelos homens . Um fato notório nos forrós é a
preocupação com a segurança do ambiente, como se nota logo à entrada
pela revista feita pelos seguranças, principalmente nos homens. Em alguns
(20)
deles os seguranças circulam até em meio aos casais dançantes .
Os músicos e as estrelas
129
dos seus maiores recursos técnicos. Os “oito baixos” no geral executam
músicas bastante simples, praticamente variações melódicas sobre o
ritmo, já que para a dança não será necessário muito mais do que isso.
130
Os gêneros de música
132
nacional a partir daquela época, via profusão dos forrós nas grandes
cidades do Sudeste. Assim, apesar de inúmeros os ritmos nordestinos, nos
forrós predominam o xote, o baião e o forró, principalmente o primeiro e o
último, que num primeiro momento se distinguem em relação ao
andamento, do mais lento para o mais rápido.
Notas
139
8 – Ferrovias do Brasil, separata de O Observador Econômico e
Financeiro (Dez. 1947).
10 – No campo das conjecturas podemos supor ainda que forró, possa vir
de forro (liberto, alforriado) ou de farriá, farra (deturpação de farrear),
por aproximação com: alegria, festa, dança; assim como de forrado
(cheio, tomado de empréstimo de cobrir, à maneira de: festa forrada de
gente ou: o baile forrô de gente (oxítona, fechada). Há, inclusive, no Rio de
Janeiro (Botafogo, rua do Catete) um forró com o sugestivo nome: Forró
Forrado.
11 – José Ramos TINHORÃO. Os sons que vêm das ruas (São Paulo,
1976), p.185. O autor faz interessante análise sociológica em torno dos
forrós nas cidades do Sul.
140
17 – Discothèque: moda das “disco dance” iniciada nos Estados Unidos
por volta de 1972 e teve grande repercussão no Brasil entre 1976 a 1979,
com o surgimento de centenas dessas danceterias, filmes, discos,
concursos de dança e até telenovela na TV Globo (“Dancing Days”).
142
Bibliografia Complementar:
* “Forró: dança e música do povo”, original em: D.O. Leitura - Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 9
(101) outubro 1990, pp.10-12.
143
Sobre o autor
147
Caburé/SID-MinC, 2008, pp. 120-131. ISBN 978-85-99314-04-3.
Assessorias/consultorias: regularmente, presta assessoria/consultoria
a instituições culturais e científicas diversas (Sescs e outras), universidades
públicas e privadas, agências de fomento à pesquisa (Capes-Brasília),
Fapesp-SP) e associações científicas, para assuntos de cultura e música
brasileira, além de realizar entrevistas para empresas de comunicação,
como rádios, jornais e televisões (Rádio e Televisão Bandeirantes, TV
UOL e TV Cultura, rádios Jovem Pan, Eldorado, CBN, Radiobrás,
Cultura; jornais O Estado de S. Paulo, Folha de S. Paulo, Diário de S.
Paulo e outros). Por 10 anos foi Júri do Troféu Nota 10, do Jornal Diário de
S. Paulo, de premiação das Escolas de Samba do Grupo Especial e de
Acesso de S. Paulo, realizando também consultorias para órgãos como:
Petrobras-MinC; Sescs-S. Paulo; Capes – Fundação Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, Ministério da Educação –
Brasília; Fapesp – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de S. Paulo,
Ministério da Cultura (SID-MinC-Brasília (DF); Centro Nacional de
Cultura Popular (CNCP)–IPHAN-MinC-RJ/Fundação Euclides da Cunha-
UFF-Niterói-RJ (Plano de Salvaguarda do Jongo); Secretaria de Estado da
Cultura de São Paulo; e Secretaria de Cultura do Município de S. Paulo –
Biblioteca Temática em Cultura Popular “Belmonte”.
148
Fundação Cultural Cassiano Ricardo
Uma grande fábrica de ações culturais
149
Centro de Estudos da Cultura Popular - CECP
151
Fundação Cultural Cassiano Ricardo
Coleção Cadernos de Folclore
Volumes anteriores:
153
Cobras e Crendices - Maria do Rosário de Souza Tavares de Lima
8.º Volume - 1995 - Comissão Municipal de Folclore
154
Anexo - Pág. 71
Folia de Reis, Sambas do Povo:
Ciclo de Reis em Goiânia: Tradição e Modernidade
Fotos de Alberto T. Ikeda
155