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Conferência realizada na Reunião

da SBPC em Belém, Pará, em


12/7/2007.

MANUELA CARNEIRO DA CUNHA

Relações e
dissensões
entre saberes
tradicionais
e saber
científico

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MANUELA CARNEIRO
DA CUNHA é professora
do Departamento
de Antropologia da
Universidade de Chicago
(EUA).

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alvez vocês estejam esperando físicas e os físicos e no que eles acreditam,
que eu diga que saberes tra- no que pensam e como agem, tudo muda.
dicionais são semelhantes ao Estes se acomodam bem com trabalhar de
saber científico. Não: eles são manhã com física quântica, de tarde com a
diferentes, e mais diferentes do newtoniana e de noite consultar um pai-de-
que se imagina. Diferentes no santo ou rezar numa igreja. A Napoleão, que
sentido forte, ou seja, não apenas lhe perguntava: “Sr. Laplace, o que é que o
por seus resultados. Às vezes se senhor faz de Deus na sua teoria?”, Laplace
acha que são incomensuráveis respondeu: “Majestade, não necessito dessa
na medida em que, por exemplo, hipótese”. Não disse que Deus não existia
um permite a uma expedição da nem que existia, disse que a teoria se sus-
Nasa (finalmente) tentar con- tentava sem admitir Sua existência. Laplace
sertar o telescópio Hubble em poderia perfeitamente acreditar em Deus.
plena órbita e o outro, não. De minha Vários físicos famosos eram e são teístas
parte, eu também acho que conhecimen- ou acreditam concomitantemente em vários
to científico e conhecimento tradicional sistemas. Newton, como é sabido, era ao
são incomensuráveis, mas que essa inco- mesmo tempo físico e alquimista. Conheço
mensurabilidade não reside primordial- outros exemplos, contemporâneos.
mente em seus respectivos resultados. Bruno Latour chamou a atenção para
As diferenças são muito mais profundas. esse problema. A ciência não passa ao lar-
Poderíamos começar notando que, de go de seus praticantes, ela se constitui por
certa maneira, os conhecimentos tradicio- uma série de práticas e estas certamente não
nais estão para o conhecimento científico se dão em um vácuo político e social. Há
como as religiões locais para as univer- também um problema de saber se a com-
sais. O conhecimento científico se afirma, paração entre saberes tradicionais e saber
por definição, como verdade absoluta até científico está tratando de unidades em si
que outro paradigma o venha sobrepujar, mesmas comparáveis, que tenham algum
como mostrou Kuhn. Essa universalidade grau de semelhança. A isso, uma resposta
do conhecimento científico não se aplica genérica mas central é que sim, ambos são
aos saberes tradicionais – muito mais tole- formas de procurar entender e agir sobre o
rantes – que acolhem freqüentemente com mundo. E ambas são também obras abertas,
igual confiança ou ceticismo explicações inacabadas, sempre se fazendo.
divergentes cuja validade entendem seja É curioso que o senso comum não as
puramente local. “Pode ser que, na sua veja assim. Para o senso comum, o conhe-
terra, as pedras não tenham vida. Aqui elas cimento tradicional é um tesouro no sentido
crescem e estão, portanto, vivas.” literal da palavra, um conjunto acabado
A pretensão de universalidade da ciência que se deve preservar, um acervo fechado
talvez seja herdeira das idéias medievais transmitido por antepassados e a que não
de uma ciência cuja missão era revelar o vem ao caso acrescentar nada. Nada mais
plano divino. Desde o século XVII, ao se equivocado. Muito pelo contrário, o conhe-
instaurar a ciência moderna, ela foi delibe- cimento tradicional reside tanto ou mais
radamente construída como una, através de nos seus processos de investigação quanto
protocolos de pesquisa acordados por uma nos acervos já prontos transmitidos pelas
comunidade. Um exemplo sintomático: gerações anteriores. Processos. Modos de
colocada diante do escândalo lógico que é a fazer. Outros protocolos.
coexistência de uma mecânica quântica e de Essas semelhanças genéricas não podem
uma mecânica newtoniana, a física é levada nos cegar sobre profundas diferenças na sua
a uma esperança quase messiânica em uma definição e no seu regime. Há pelo menos
compatibilização futura entre ambas. Mas tantos regimes de conhecimento tradicional
essa é uma distinção conceitual. Quando quanto existem povos. É só por comodida-
se passa da física como disciplina para as de abusiva, para melhor homogeneizá-lo,

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para melhor contrastá-lo ao conhecimento científico repousam ambos sobre as mesmas
científico, que podemos usar no singular operações lógicas e, mais, respondem ao
a expressão “conhecimento tradicional”. mesmo apetite de saber. De onde vêm então
Pois enquanto existe, por hipótese, um as diferenças patentes nos seus resultados?
regime único para o conhecimento cientí- As diferenças, afirma Lévi-Strauss, provêm
fico, há uma legião de regimes de saberes dos níveis estratégicos distintos a que se
tradicionais. Em cada sociedade, inclusive aplicam. O conhecimento tradicional opera
na nossa, contemporânea, o que vem a ser, com unidades perceptuais, o que Goethe de-
só de início de conversa, “conhecimento” fendia contra o iluminismo vitorioso. Opera
ou “saber”? Em que campo se enquadra? com as assim chamadas qualidades segun-
Quais são suas subespécies, seus ramos, das, coisas como cheiros, cores, sabores…
suas especialidades? E como se produz? A No conhecimento científico, em contraste,
quem é atribuído? Como é validado? Como acabaram por imperar definitivamente
circula? Como se transmite? Que direitos unidades conceituais. A ciência moderna
ou deveres gera? Todas essas dimensões hegemônica usa conceitos, a ciência tradi-
separam já de saída o conhecimento tradi- cional usa percepções. É a lógica do conceito
cional e o conhecimento científico. Nada em contraste com a lógica das qualidades
ou quase nada ocorre no conhecimento sensíveis. Enquanto a primeira levou a gran-
tradicional da mesma forma como ocorre no des conquistas tecnológicas e científicas, a
conhecimento científico. Não há dúvida, no lógica das percepções, do sensível, também
entanto, de que o conhecimento científico é levou, afirma Lévi-Strauss, a descobertas
hegemônico. Essa hegemonia manifesta-se e invenções notáveis e a associações cujo
até na linguagem comum em que o termo fundamento ainda talvez não entendamos
“ciência” é não-marcado, como dizem os completamente. Lévi-Strauss, portanto, sem
lingüistas. Isto é: quando se diz simples- nunca negar o sucesso da ciência ocidental,
mente “ciência”, “ciência” tout court, está sugere que esse outro tipo de ciência, a
se falando de ciência ocidental; para falar tradicional, seja capaz de perceber e como
de ciência tradicional, é necessário acres- que antecipar descobertas da ciência tout
centar o adjetivo. court. Reflexão profunda que encontra eco
Se estamos de acordo em que saberes em posições de cientistas contemporâneos,
tradicionais e saber científico são diferentes, como veremos adiante.
o passo seguinte é se perguntar sobre quais Note-se que as reflexões que precedem
são as pontes entre eles. Há várias maneiras, são elas próprias puramente conceituais: ao
novamente, de se colocar essa questão. Uma contrastarem ciência e ciências tradicionais,
é perguntar se as operações lógicas que esquecem a práxis dessas atividades e fazem
sustentam cada um deles são as mesmas abstração das dimensões institucionais,
ou não e, caso sejam, de onde provêm suas legais, políticas, econômicas, além de boa
diferenças. Sobre isso, os antropólogos parte das idéias de si mesmos e de outros que
Evans-Pritchard, no final dos anos 30 do estão no imaginário das pessoas. Ora, ciên-
século passado, e Claude Lévi-Strauss, no cia, já se viu, não se faz em um vácuo.
início dos anos 60, deram respostas inci- Voltando às pontes: o que as ciências
sivas. Não há lógicas diferentes, mostrou tradicionais podem aportar à ciência? A
Evans-Pritchard com seu estudo sobre a bru- questão, utilitarista, é antiga e muito con-
xaria e oráculos entre os azandes do Sudão, trovertida. Na farmacologia, é um sub-ramo
o que há são premissas diferentes sobre o de uma controvérsia maior, a que opõe a
que existe no mundo. Dada uma ontologia pesquisa baseada em produtos existentes
e protocolos de verificação, o sistema é na natureza àquela que parte de combina-
de uma lógica impecável a nossos olhos. ções sintéticas. Com efeito, há um ramo
Quanto a Lévi-Strauss, ele também afirma, forte da farmacologia que nega qualquer
em seu livro O Pensamento Selvagem, de vantagem em se partir de produtos naturais,
1962, que saber tradicional e conhecimento sobretudo desde que métodos de testes em

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laboratório (high through put screening) medicina tradicional brasileira têm efeito no
foram exponencialmente acelerados. É combate aos rotavírus que causam diarréia
verdade, admitem os desse ramo, que os e são o maior fator de mortalidade infantil;
produtos naturais são fruto de adaptações o barbatimão realmente contém moléculas
que já se provaram viáveis e eficientes, mas com efeitos cicatrizantes, etc. Portanto,
a possibilidade de simplesmente testar, em dizem esses farmacólogos refratários aos
tempo curtíssimo, a atividade de milhões conhecimentos tradicionais, mesmo que
de combinações inventadas em laboratório os conhecimentos tradicionais tenham
teria reduzido se não anulado a vantagem mostrado a existência de princípios ativos,
comparativa de produtos naturais. eles raramente são úteis para os mesmos fins
Passando-se agora para produtos na- para que foram tradicionalmente usados. A
turais conhecidos da ciência tradicional, atividade tradicional não é a que acaba sendo
verificou-se que a diferença de rendimento a “verdadeira” ou a mais importante.
entre etnomedicina e produtos naturais em A isso outros farmacólogos retrucam
geral está na ordem de centenas, ou seja, no que, mesmo que assim fosse, a existência
mínimo, se se partir da etnomedicina, ganha- de princípios ativos em si mesma é uma
se um rendimento de várias centenas de vezes contribuição importante a ser valorizada. O
mais acertos em média, dependendo do tipo exemplo clássico disso é uma planta nativa
de afecção. Isso partindo-se de produtos natu- de Madagascar e que chamamos no Brasil
rais em geral, não de moléculas sintéticas. Se de “beijo”. Usada em diferentes partes do
se partir de moléculas sintéticas, a diferença mundo como medicina tradicional, em 1950
aumenta exponencialmente. Mas, argumenta passou a ser objeto de pesquisa científica.
a grande indústria, essa diferença de rendi- Por um lado, confirmaram-se as proprie-
mento entre produtos usados na etnomedicina dades antidiabéticas que eram conhecidas,
e moléculas sintéticas tornou-se negligível por exemplo, na Jamaica e na Europa. Por
diante da velocidade dos métodos atuais de outro, descobriram-se várias substâncias
testes. Há, portanto, um argumento tecno- com propriedades anticancerígenas que
lógico aqui presente. No entanto, há fortes desembocaram em drogas para tratar leu-
indícios – passados sob silêncio porque se cemia infantil e mal de Hodgkins. Como o
reverencia a tecnologia e a ciência – de que câncer não constava entre as aplicações do
problemas políticos, jurídicos e econômicos beijo na medicina tradicional, farmacólogos
estão em ação aqui. em geral não reconheceram a dívida que
Mesmo de farmacólogos brasileiros que tinham em relação à medicina tradicional.
partem de substâncias existentes na natu- Outra forma ainda de diminuir a ciên-
reza ouvem-se juízos extraordinariamente cia tradicional é dizer que, contrariamente
arrogantes. Geralmente argumentam que os à ciência tout court, ela não procede por
conhecimentos tradicionais em nada contri- invenção, somente por descoberta e até,
buem para o “progresso da ciência” porque quem sabe, por imitação de outros prima-
a atividade que eles apontam, os seus usos tas, macacos que usam plantas medicinais.
tradicionais, não coincide necessariamente Bastaria lembrar o ayahuasca, uma mistura
com a atividade que a ciência descobre. Há de duas plantas, em que uma só tem efeito
muitos contra-exemplos dessa assertiva e por via oral na presença da outra, para
mencionarei alguns, embora isso nem me desmontar esse argumento. Há vários ou-
pareça ser uma questão central. Artigos tros argumentos e estudos que sustentam
científicos recentes sobre plantas amazô- a utilidade e valor econômico da ciência
nicas e do cerrado, por exemplo, mostram tradicional (por exemplo, o fato de que o
que o sangue de drago (Croton lechleri), uso tradicional prolongado de uma substân-
usado por índios amazônicos no Peru como cia dá indicações quanto à sua toxicidade)
cicatrizante, contém um alcalóide, taspina, mas, como veremos adiante, o x da questão
precisamente com esse efeito; várias plantas é outro. Mais interessante é a posição de
medicinais usadas como antidiarréicos na etnofarmacólogos como a da professora

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gaúcha Elaine Elizabetsky (2004), que vê
na ciência tradicional um potencial de re-
novação dos próprios paradigmas de ação
das substâncias ativas. De fato, escreve ela,
“a compreensão dos conceitos de medicina
tradicional em geral, e de suas práticas mé-
dicas em particular, pode ser útil na gênese de
verdadeira inovação nos paradigmas de uso
e desenvolvimento de drogas psicoativas”.
Essa postura é particularmente importante:
não se trata aqui, como muitos cientistas
condescendentemente pensam, de simples
validação de resultados tradicionais pela
ciência contemporânea, mas do reconheci-
mento de que os paradigmas e práticas de
ciências tradicionais são fontes potenciais de
inovação da nossa ciência. Um dos corolários
dessa postura é que as ciências tradicionais
devem continuar funcionando e pesquisando.
Não se encerra seu programa científico quan-
do a ciência triunfante – a nossa – recolhe
e eventualmente valida o que elas afirmam.
Não cabe a esta última dizer: “daqui para a
frente, podem deixar conosco”.
Um exemplo em outra área é elucidati-
vo. Costuma-se chamar de saber ecológico
tradicional ao conhecimento que populações
locais têm de cada detalhe do seu entorno, do
ciclo anual, das espécies animais e vegetais,
dos solos, etc. A relevância desse saber em
geral não é disputado. Mais controverso é o
problema da validade dos modelos locais. O
que tenho visto é biólogos – mesmo aqueles
que se dispõem a ouvi-los – “ensinarem” a
seringueiros e índios qual é o modelo cien-
tífico. Vejam o modelo de sustentabilidade
da caça (estou me baseando em Mauro
Almeida, Glenn Shepard Jr. e Rossano Ra-
mos e simplificando o exemplo): no início
da década de 90, dois biólogos importan-
tes, Redford e Robinson, produziram um
modelo largamente aceito de “produção
sustentável” que previa quantos indivíduos
de cada espécie poderiam ser caçados de
forma sustentável baseado nas suas taxas de
reprodução. Os seringueiros do Alto Juruá
tinham um modelo diferente: a quem lhes
afirmava que estavam caçando acima do
sustentável (dentro do modelo Redford e
Robinson), eles diziam que não, que o nível
da caça dependia da existência de áreas de

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refúgio em que ninguém caçava. Ora, esse
acabou sendo o modelo batizado de “fonte-
ralo” (source-sink) proposto dez anos após
o primeiro por Novaro, Bodmer e o próprio
Redford e que suplantou o modelo anterior.
Em suma, os seringueiros não somente ti-
nham uma prática sustentável como também
um modelo teórico adequado, ou pelo menos
tão bom quanto o estado da arte hoje.
Qual o ambiente legal que rege essas
questões? Até 1992, tal qual o que acon-
tecia em relação aos recursos genéticos, o
conhecimento tradicional era considerado
patrimônio da humanidade. Com o advento
da Convenção da Diversidade Biológica,
aberta para adesões em 1992, no Rio de
Janeiro, e hoje com quase 200 países ade-
rentes, instaurou-se um escambo. A Con-
venção, no seu artigo 8j, reza que cada parte
contratante deve, na medida do possível e
conforme o caso,

“Em conformidade com sua legislação nacio-


nal, respeitar, preservar e manter o conheci-
mento, inovações e práticas das comunidades
locais e populações indígenas com estilos de
vida tradicionais relevantes à conservação
e à utilização sustentável da diversidade
biológica e incentivar sua mais ampla apli-
cação com a aprovação e a participação dos
detentores desse conhecimento, inovações e
práticas; e encorajar a repartição eqüitativa
dos benefícios oriundos da utilização desse
conhecimento, inovações e práticas”.

O Brasil foi um dos primeiros a assina-


rem, em 5 de junho de 1992, a Convenção
ratificada pelo Congresso em 28/2/1994.
É na regulamentação, no entanto, que os
conflitos aparecem. Em conseqüência,
apesar de vários projetos de lei tramitarem
no Congresso desde 1994, inspirados pela
ministra Marina Silva, até hoje, a regula-
mentação continua se dando através de me-
dida provisória datada de 2001 e reeditada
sucessivamente.
Depois de vários anos de debates e de
impasses, a Casa Civil tomou a matéria para
si e tenta costurar com vários ministérios e
a SBPC um projeto de lei a ser enviado ao
Congresso. Esse anteprojeto de lei, entre

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outras coisas, quer conciliar as posições As populações indígenas e tradicionais
da Embrapa e as do Ministério do Meio em geral (entendam-se ribeirinhos, caiça-
Ambiente promovendo uma divisão que ras, seringueiros e extrativistas em geral,
se quer salomônica: a agrobiodiversidade por exemplo) estão para o Brasil como o
não estará sujeita às mesmas regras da Brasil está para os países do G-8, os países
biodiversidade em geral. mais completamente industrializados. Ou
Tem-se dado muita importância nos seja, enquanto o Brasil protesta, com razão,
debates ao valor financeiro potencial dos contra a biopirataria, o acesso indevido
aportes da ciência tradicional para a far- a recursos genéticos e ao conhecimento
macologia. Mas tão ou mais significativo tradicional, enquanto ele arregimenta as
é o aporte da ciência tradicional para a populações tradicionais para serem vigi-
agronomia, em particular no que se refere lantes contra os biopiratas, estas, por sua
a defensivos naturais e à variedade de es- vez, depois de serem por cinco séculos
pécies cultivadas ou semicultivadas pelas desfavorecidas, não percebem grande dife-
populações tradicionais in situ. Na versão rença entre biopirataria por estrangeiros e o
atual do projeto de lei, a contribuição das que consideram biopirataria genuinamente
populações tradicionais para a agrobiodi- nacional. Estamos (mal-)habituados em
versidade terá um reconhecimento mais nosso colonialismo interno a tratar os ín-
restrito do que em outras áreas. dios e seringueiros no Brasil como “nossos
Em relação ao conhecimento tradicional, índios”, “nossos seringueiros”, sem nos
o Brasil encontra-se, como vários países darmos conta de que isso é um indício de
megadiversificados, entre dois fogos. O que os consideramos como um patrimônio
Brasil é dos membros mais ativos, para interno, comum a todos os brasileiros (exa-
não dizer o líder do chamado Disclosure tamente aquilo contra o que protestávamos
Group, ou seja, o grupo de países mega- quando nossos recursos eram “patrimônio
diversificados (Brasil, China, Colômbia, da humanidade”).
Cuba, Índia, Paquistão, Peru, Tailândia, O Brasil se encontra em uma situação
Tanzânia, Equador, África do Sul e, agora, muito especial: se por um lado é um país
desde junho de 2007, contando também com megadiversificado em recursos genéticos
Venezuela, o grupo africano e o grupo dos e conhecimentos tradicionais, é também,
países menos desenvolvidos) que postulam, contrariamente a vários outros desses países,
junto à Organização Mundial do Comércio, suficientemente equipado cientificamente
que a origem e a legalidade do acesso aos para desenvolver e valorizar esses recur-
recursos genéticos e/ou ao conhecimento sos internamente. Em suma, encontra-se
tradicional sejam um requisito internacional em uma posição privilegiada. Mas está
para patentes. Ou seja, que não se possam perdendo uma oportunidade histórica, a
obter patentes em lugar algum sem fornecer de instaurar um regime de colaboração e
a prova de que o eventual acesso aos recursos intercâmbio respeitoso com suas populações
genéticos ou ao conhecimento tradicional tradicionais.
foi feito de forma legal. Da mesma forma, É sabido que a tecnologia que foi desen-
o Brasil tem se destacado junto a órgãos da volvida pela Embrapa dirigiu-se sobretudo
ONU, por exemplo, a Organização Mundial ao setor agropecuário. O avanço desastroso
para a Proteção Intelectual (Ompi), na de- em termos ecológicos da soja valeu-se dessa
fesa dos direitos intelectuais que resultam tecnologia. Está mais do que na hora, con-
de conhecimentos tradicionais. Essa é a forme Bertha Becker e Carlos Nobre têm
posição do Brasil no âmbito internacional. insistido, de se desenvolver uma ciência e
Mas, internamente, o governo está dividido, tecnologia para a floresta em pé. A valoriza-
e um dos mais ferrenhos opositores a que se ção dos recursos genéticos e conhecimentos
reconheçam direitos intelectuais aos saberes tradicionais é uma oportunidade-chave
tradicionais é, curiosamente, o Ministério dentro desse programa. Mas, para que ele
de Ciência e Tecnologia. deslanche, algumas coisas são necessá-

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rias, entre elas encontrar uma forma para o encarar as dificuldades de implementação,
conhecimento científico e o conhecimento como por exemplo a de se estabelecer a
tradicional viverem juntos. Viverem juntos legalidade (sem falar da legitimidade) de
não significa que devam ser considerados contratos com populações tradicionais.
idênticos. Pelo contrário, seu valor está jus- Um dos problemas que se colocam de
tamente na sua diferença. O problema, então, saída, com efeito, é a ausência, nos siste-
é achar os meios institucionais adequados mas costumeiros, de representantes com
para, a um só tempo, preservar a vitalidade autoridade sobre toda a população. Nas
da produção do conhecimento tradicional, sociedades indígenas no Brasil, a regra é,
reconhecer e valorizar suas contribuições antes, que cada chefe de aldeia tenha alguma
para o conhecimento científico e fazer autoridade sobre sua aldeia e que, havendo
participar as populações que o originaram dissensões, as aldeias se cindam. Criam-se,
nos benefícios que podem decorrer de seus para atender ao problema da legalidade de
conhecimentos. Essa tríplice condição parece contratos, associações civis cuja legitimi-
mais fácil de dizer do que fazer, sobretudo a dade pode ser freqüentemente contestada.
primeira. A confidencialidade e o monopólio, Nessas condições, entende-se que poucas
por exemplo, que fazem parte do sistema indústrias queiram se expor aos riscos para
ocidental contemporâneo de direitos de sua imagem pública de se ver confrontadas
propriedade intelectual, se estendidos a todos com acusações de biopirataria e que poucos
os regimes de conhecimentos tradicionais, cientistas queiram ter de negociar acesso e
podem ser causa de sérias distorções. Não repartição de benefícios com populações
que estes, por definição, sejam considerados que, além do mais, se tornaram extrema-
coletivos, muito pelo contrário. Os sistemas mente desconfiadas, entre outras coisas,
tradicionais têm suas próprias regras de pela sua arregimentação na luta contra a
atribuição de conhecimentos, que podem ou biopirataria. Por sua parte, as sociedades
não ser coletivos, esotéricos ou exotéricos. tradicionais, bombardeadas que foram
Mas essas regras freqüentemente entram em por campanhas que as acautelavam contra
conflito com exigências de confidencialida- qualquer pesquisador, suspeito a priori
de ou de monopólio. Introduzi-las pode ter de biopirataria, foram levadas a alimentar
conseqüências sérias, e o uso e desenvol- expectativas muitas vezes excessivas em
vimento dos resultados do conhecimento relação ao potencial econômico de seus
tradicional não pode se dar de forma que o conhecimentos tradicionais, expectativas
paralise e destrua. que só podem provocar desapontamentos.
As outras duas condições são relativa- Há, em suma, muitos obstáculos a trans-
mente mais fáceis de ser implementadas, por, mas, se não soubermos construir novas
desde que se abandone o arraigado paterna- instituições e relações eqüitativas com as po-
lismo do colonialismo interno e a arrogância pulações tradicionais e seus saberes, estaremos
da ciência ocidental. É preciso também desprezando uma oportunidade única.

BIBLIOGRAFIA

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