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MELHOR NUNCA TER EXISTIDO

O prejuízo de vir à existência

David Benatar

(Capítulos 1 e 2 em português)
1

Traduzido de:
BENATAR, David. Better never to have been: The harm of coming into
existence. Oxford: Oxford University Press, 2006.

Tradução independente e sem financiamento feita por: Isaac Matheus Santos


Batista.

Meu único objetivo ao traduzir esse livro é possibilitar aos falantes de língua
portuguesa que não sabem inglês ler esse livro e aprender sobre o
antinatalismo, movimento social do qual eu faço parte e apoio.

Não possuo quaisquer direitos autorais sobre o conteúdo desse livro, e essa
tradução independente não está à venda e não pode ser vendida, por isso eu a
disponibilizo sem custo algum.

Por enquanto, apenas os dois primeiros capítulos foram traduzidos, pois é um


trabalho muito demorado e desgastante e não sei quanto tempo eu vou durar.
Espero que um dia publiquem completo em português.
2

Aos meus pais,


mesmo embora eles tenham me trazido à existência;

e aos meus irmãos,


cujas existências, embora sejam um mal para eles,
é um grande benefício para o resto de nós
3

PREFÁCIO

Cada um de nós foi prejudicado ao termos sido trazidos à existência. Esse


prejuízo não é insignificante, pois mesmo as melhores vidas ainda assim são de
qualidade bastante ruim – e consideravelmente piores do que muita gente
reconhece que são. Embora seja obviamente tarde demais para prevenir nossa
própria existência, não é tarde demais para prevenir a existência futura de
possíveis pessoas. Criar novas pessoas é, portanto, um problema moral. Neste
livro, eu argumento em favor dessas afirmações e mostro porque as respostas
comuns a elas – incredulidade, quando não a indignação – são falhas.
Dada a grande resistência contra o ponto de vista que eu defenderei, eu
não tenho nenhuma expectativa que este livro ou seus argumentos irão ter
qualquer impacto na taxa de natalidade. A procriação continuará apesar dos
argumentos, e permanecerá a causar uma grande quantidade de dor e
sofrimento. Eu escrevi esse livro, então, não sob a ilusão que ele faria (muita)
diferença no número de pessoas que haverá no mundo, mas principalmente sob
ideia de que o que eu tenho para dizer precisa ser dito seja isso aceito ou não
pela sociedade.
Muitos leitores estarão inclinados a rejeitar meus argumentos e farão isso
sem pensar duas vezes. Quando se rejeita um ponto de vista que não é popular,
é extraordinariamente fácil ficar excessivamente confiante ao dar uma resposta
contra tal ponto de vista. Em partes, isso se dá pois há uma menor necessidade
de se justificar quando se está defendendo um dogma. Também, isso se deve
porque contra-respostas feitas pelos que são contrários ao dogma, visto a
raridade delas, são difíceis de prever.
O argumento que eu desenvolvo nesse livro tem sido melhorado como
resultado de várias críticas estimulantes às versões anteriores. Revisores
anônimos da revista “American Philosophical Quarterly” me ofereceram desafios
de grande importância, me forçando a melhorar as primeiras versões. Os dois
artigos que eu publiquei na referida revista me deram a base para o Capítulo 2
deste livro e eu sou muito grato pela permissão concedida para usar os materiais
anteriores. Ambos os artigos foram consideravelmente retrabalhados e
desenvolvidos parcialmente como resultado de muitos comentários recebidos
4

nos anos que se sucederam e especialmente enquanto eu estava escrevendo


este livro. Eu sou muito agradecido à University of Cape Town pelo semestre
sabático em 2004, durante o qual quatro capítulos deste livro foram escritos. Eu
apresentei o material de vários capítulos em um grande número de fóruns,
incluindo o Departamento de Filosofia na University of Cape Town; Rhodes
University em Grahamstown, África do Sul; The Seventh World Congress of
Bioethics em Sidnei, Austrália; e nos Estados Unidos no Jean Beer Blumendeld
Center for Ethics na Georgia State University; o Center for Bioethics na University
of Minnesota, e o Departamento de Filosofia na University of Alabama em
Birmingham. Eu sou muito grato pelas discussões vívidas que ocorreram nessas
ocasiões. Pelos seus comentários e sugestões úteis, gostaria de agradecer,
entre outros, a Andy Altman, Dan Brock, Bengt Brulde, Nick Fotion, Sephen
Nathanson, Marty Perlmutter, Robert Segall, David Weberman, Bernhard Wwiss,
e Kit Wellman.
Eu sou grandemente grato aos dois revisores da Oxford University Press,
David Wasserman e David Boonin. Eles forneceram comentários extensivos e
me ajudaram a prever os tipos de respostas ou reações que os leitores críticos
deste livro poderiam ter. Eu tenho certeza que este livro se tornou muito melhor
ao considerar as possíveis objeções deles, mesmo que eles não se sintam
convencidos pelas minhas respostas. Eu estou bastante ciente, entretanto, que
há oportunidade para melhoramentos e eu só queria poder saber agora, ao invés
de depois (ou nunca), que melhoramentos eu poderia ter feito antes.
Por fim, eu queria agradecer aos meus pais e irmãos por tudo que eles
fazem e tudo que eles são. Este livro é dedicado a eles.
DB.
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1 INTRODUÇÃO

“A vida é tão terrível, que teria sido melhor nunca ter nascido. Quem é tão
sortudo assim? Nem sequer um em um milhão”.
- Ditado judeu.

A ideia central deste livro é a de que vir à existência é sempre um prejuízo


significativo. Essa ideia será defendida em detalhes, mas ideia básica é bastante
simples: embora as coisas boas na vida de alguém façam a sua vida ser melhor
do que poderia ter sido se não houvessem essas coisas boas, esse alguém
jamais poderia ser privado ou se sentir privado pela ausência dessas coisas boas
se caso esse alguém nunca tivesse existido. Entretanto, ao vir à existência, a
pessoa sofre prejuízos bastante significativos que poderiam ter sido evitados se
a pessoa não tivesse sido trazida à existência.
Dizer que a ideia básica é bastante simples não quer dizer que essa ideia
ou o que podemos deduzir dela seja indiscutível. Eu irei considerar todas as
prováveis objeções na hora certa, e eu argumentarei que tais objeções não se
sustentam. A implicação disso tudo é que, no fim das contas, vir à existência,
longe de se constituir num benefício real, sempre se constitui num prejuízo. A
maioria das pessoas, sob a influência de disposições biológicas poderosas em
direção ao otimismo, acham essa conclusão intolerável. Elas ficam ainda mais
indignadas quando descobrem que a implicação dessa conclusão é que não
deveríamos criar novas pessoas.
Criar novas pessoas, ao se ter bebês, é uma parte tão comum da vida
humana que raramente as pessoas pensam sobre isso. Fazer bebês raramente
se torna objeto de raciocínio ou requer uma justificação. De fato, a maioria das
pessoas não pensa se elas deveriam ou não deveriam fazer um bebê. Elas
simplesmente fazem um. Em outras palavras, a procriação é normalmente uma
consequência do sexo ao invés de ser o resultado de um processo de decisão
de trazer alguém à existência. Aqueles que realmente decidem ter um filho
podem fazê-lo por diferentes razões, mas entre essas razões nunca estão os
interesses da criança em potencial. Ninguém nunca vai ter um filho pelo bem
desse filho. O que eu disse até agora deveria ser claro para todo mundo, mesmo
6

para aqueles que rejeitam o ponto de vista principal pelo qual eu argumento
neste livro – o de que ninguém nunca beneficia seu filho ao trazê-lo à existência,
mas, pelo contrário, o prejudica.
Meu argumento se aplica não apenas aos humanos, mas também a todos
os outros seres sencientes. Tais seres não simplesmente existem. Eles existem
de uma forma em que há algo como uma sensação de existir. Em outras
palavras, eles não são meros objetos, mas são também sujeitos. Embora a
senciência seja um desenvolvimento evolucionário tardio e seja um estado de
existir mais complexo que a não-senciência, é mais do que certo que a não-
senciência é um melhor estado de existência. Isso se deve ao fato de que a
existência senciente vem com um custo elevado. Por serem capazes de
experienciar, os seres sencientes são capazes também de experienciar o
desagradável e de provocar experiências desagradáveis.
Embora eu acredite que vir a existência seja prejudicial a todos os seres
sencientes e às vezes eu irei falar sobre todos os seres, meu foco será sobre os
humanos. Há algumas razões para esse foco, além da simples conveniência. A
primeira é que as pessoas acham mais difícil de aceitar a conclusão dos
argumentos quando aplicada a elas mesmas. O foco nos humanos, ao invés de
em toda a vida senciente, reforça a aplicação da conclusão dos argumentos nos
humanos. A segunda razão é que, com uma exceção, o argumento encontra seu
sentido mais prático quando aplicado aos humanos, porque nós podemos agir
com base nesse argumento ao decidirmos por desistir (ou renunciar) de produzir
novos bebês. A exceção nesse caso é reprodução animal pelos humanos1, a

1
Eu trato isso como uma exceção, porque os humanos trabalham na reprodução apenas de uma
pequena porção de todas as espécies de animais sencientes. Embora seja um caso excepcional, tem
grande importância, visto a quantidade de males infligidos a estes animais que os homens reproduzem
para servirem de alimento ou outras commodities, e por isso é digno de uma breve discussão neste
momento. Um argumento particularmente pobre em defesa de comer carne é o de que se os humanos
não comessem os animais, estes animais não teriam sido trazidos à existência para começo de história.
Os humanos simplesmente não teriam reproduzido esses animais na mesma quantidade que o fazem.
Essa afirmação é a de que embora esses animais sejam mortos, esse preço que eles têm a pagar é
sobrepujado ou superado pelo benefício que lhes foi concedido de terem sido trazidos à existência. Esse
é um argumento péssimo por várias razões (algumas das quais são destacadas por Robert Nozick. Veja
seu “Anarchy, State and Utopia”). Primeiro, a vida de muitos desses animais é tão ruim que mesmo que
uma pessoa rejeite meu argumento ela ainda teria que concordar que tais animais foram prejudicados
por terem sido trazidos à existência. Segundamente, aqueles que avançam esse argumento falham em
notar que ele poderia ser aplicado facilmente à bebês humanos reproduzidos apenas para servirem de
alimento. Aqui, nós podemos verificar que ser trazido à existência apenas para ser morto e comido não
é benefício nenhum. É apenas porque matar animais é aceitável em nossa sociedade que há quem ache
que esse argumento tenha alguma força. De fato, isso não ajuda em nada a visão (errônea) de que
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qual também poderíamos desistir (ou renunciar) de fazer. Uma terceira razão
para focar nos humanos é que os humanos que não desistem (ou renunciam) de
reproduzir novos filhos causam sofrimento para aqueles que eles costumam se
importar mais, a saber: os seus próprios filhos. Isso pode tornar as questões
mais vívidas para eles do que seria de outra maneira.

1.1 QUEM É TÃO SORTUDO?

Uma versão do ponto de vista que eu defendo neste livro acaba sendo
tomada no âmbito do humor:

“A vida é tão terrível, que teria sido melhor nunca ter nascido. Quem é tão
sortudo assim? Nem sequer um em um milhão.”

Sigmund Freud descreve esse gracejo como uma “piada sem sentido”, o
que levanta a questão de se meu ponto de vista também seria sem sentido. É
pura baboseira dizer que vir à existência é um prejuízo e por isso teria sido
melhor nunca ter vindo à existência? Muitas pessoas acham que é. Boa parte do
argumento trazido no capítulo 2 mostrará que eles estão equivocados. Mas,
primeiro, algumas devemos deixar alguns fundamentos livres de confusão.
Dr. Freud diz que qualquer pessoa “que não nasce não é um homem
mortal, e não há nem bom e nem melhor para essa pessoa não-nascida.” Aqui,
Dr. Freud antecipa um aspecto do que é chamado de problema da “não-
identidade”, o qual eu discutirei em detalhes no capítulo 2. Alguns filósofos
contemporâneos oferecem uma objeção similar quando eles negam que alguém
poderia estar melhor se não tivesse nascido. Para eles, o não-existente não pode
se beneficiar e não pode estar numa condição melhor.
Eu não irei afirmar que os não-existentes estão literalmente em melhores
condições. Ao invés disso, eu devo argumentar que vir à existência é sempre
ruim para aqueles que vem à existência. Em outras palavras, embora nós não

matar animais para comê-los é aceitável. Por fim, o argumento de que animais são beneficiados por
serem trazidos à existência apenas para serem mortos ignora o argumento que desenvolverei nos
capítulos 2 e 3 – o de que vir à existência é sempre um prejuízo significativo, independentemente de
quanto o animal vai sofrer.
8

possamos dizer dos não-existentes que não existir é bom para eles, nós
podemos dizer dos existentes que a existência é ruim para eles. Não existe nada
de absurdo nisso, ou assim eu devo argumentar.
Uma vez que tivermos reconhecido que vir à existência pode ser
prejudicial, nós poderemos então falar livremente que nunca vir à existência é
algo “melhor”. Isso não significa dizer que é melhor para o não-existente, nem
que os não-existentes se beneficiam da não-existência. Eu até concordo que é
um pouco estranho falar dos “não-existentes”, porque esse termo não se refere
a nada que exista. Obviamente, não existe nenhuma pessoa “não-existente”.
Porém, esse termo é conveniente, e faz sentido para nós. Ao usar esse termo,
nós queremos nos referir àquelas possíveis pessoas que nunca se tornam reais.
Com isso em mente, considere aquele gracejo novamente. Ele pode ser
visto como fazendo duas afirmações: (1) que é melhor não nascer; e (2) que
ninguém é sortudo o bastante para não nascer. Agora, nós percebemos que há
um sentido (afrouxado) no qual alguém pode dizer que é melhor não nascer. É
uma forma indireta de dizer que vir à existência é sempre um prejuízo. E não há
nada de sem sentido em afirmar que ninguém é sortudo o bastante para nunca
ter nascido, embora seria sem sentido (mas divertido) afirmar que algumas
pessoas são sortudas o bastante para nunca terem nascido.
De qualquer modo, o fato de que alguém pode inventar uma piada acerca
do ponto de vista de que vir à existência é sempre um prejuízo, isso não quer
dizer que tal ponto de vista seja um absurdo digno de riso. Embora nós
possamos rir do que é estúpido, nós podemos rir também de questões sérias. É
nessa segunda categoria que eu coloco as piadas sobre o prejuízo que é vir à
existência. Porém, de maneira alguma deve-se pensar que os argumentos que
eu desenvolvo têm a intenção de serem meros jogos filosóficos ou piadas. Eu
devo enfatizar que eu sou completamente sério quanto aos argumentos que aqui
exponho e acredito nas conclusões que esses argumentos trazem.
Eu tenho muita seriedade ao tratar desses assuntos, pois o que se
encontra na balança é a presença ou ausência de grandes quantidades de dor
e sofrimento. Eu irei mostrar no capítulo 3 que a vida contém uma grande
quantidade de males – muito mais do que as pessoas costumam pensar. A única
forma de garantir que futuras pessoas em potencial (ou futuras possíveis
pessoas) não sofrerão esses males é garantindo que essas possíveis pessoas
9

nunca se tornem uma pessoa real. Não somente todos esses males são
prontamente evitáveis, mas são também inerentemente sem sentido (ao menos
se nós considerarmos somente os interesses da pessoa em potencial e não os
interesses que outros podem ter nessa pessoa vir à existência). Eu mostrarei, no
capítulo 2, que as características positivas da vida, embora sejam boas para
aqueles que já existem, não justificam as características negativas que as
acompanham. A ausência das coisas boas da vida não seria uma privação para
aqueles que nunca vieram a existir.
É curioso que enquanto as pessoas boas sejam capazes de grandes
esforços para livrar seus filhos do sofrimento, poucas delas parecem notar que
única forma garantida de prevenir todo o sofrimento que seus filhos possam ter
é não trazendo esses filhos à existência em primeiro lugar2. Há muitas razões
pelas quais as pessoas não notam isso, ou porque, se elas notam isso, elas não
agem conforme essa percepção; entretanto, os interesses da criança em
potencial não estão entre essas razões, como eu irei argumentar.
O prejuízo causado pela criação de uma nova criança não se restringe
apenas à criança, normalmente. A criança logo se verá motivada a procriar
também, produzindo mais crianças que, por sua vez, desenvolverão o mesmo
desejo. Deste modo, qualquer casal de procriadores pode enxergar a si mesmos
como ocupando a ponta de um iceberg geracional de sofrimento. Eles
experienciam o mal em suas próprias vidas. No curso comum dos eventos, eles
experienciarão somente uma parte do mal na vida de seus filhos e possivelmente
na vida de seus netos (porque os descentes normalmente vivem anos mais após
a morte de seus progenitores), mas debaixo da superfície das atuais gerações
espreita um número crescentemente maior de descendentes e de seus
infortúnios. Pensando que cada casal tenha três filhos, os descendentes de um
casal, passadas dez gerações, somarão 88.572 pessoas. Isso constitui uma
grande quantidade de sofrimento sem sentido e evitável. A responsabilidade por
toda essa descendência não recai apenas sobre o casal original, pois cada nova

2
Rivka Weingberg faz uma afirmação similar quando ela diz que “muitos pais que estão prontos a fazer
grandes sacrifícios pelos seus filhos terrivelmente doentes podem nunca levar em consideração que o
sacrifício mais importante que eles devem fazer é não criar essas crianças terrivelmente doentes em
primeiro lugar.” (Proceative Justice: A contractualist account. Public Affairs Quaterly, 2002). Seu ponto
de vista é mais restrito que o meu, pois ela o aplica apenas às crianças terrivelmente doentes, enquanto
eu aplico a todas as crianças.
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geração tem a escolha de decidir se vai ou não continuar com a linha de


descendentes. Apesar disso, o casal original possui alguma responsabilidade
pelas gerações que se seguem. Se alguém não renuncia ter filhos, é bem difícil
de se esperar que seus descendentes renunciarão.
Embora, como temos visto, ninguém é sortudo o bastante para não
nascer, todo mundo é azarado o bastante para ter nascido – e mais
especificamente, isso é má sorte, como eu irei explicar. Com base na suposição
bastante plausível de que a origem genética é uma necessária (mas não
suficiente) condição para se ter vindo à existência, uma pessoa não poderia ter
sido formada por qualquer processo outro que não o dos gametas que produzem
o zigoto do qual a pessoa se desenvolve. Isso implica, por sua vez, que ninguém
poderia ter qualquer outro pai ou mãe além dos quais possui. Isso implica que a
chance de qualquer pessoa ter vindo à existência é bastante remota. A existência
de qualquer pessoa depende não somente dos próprios pais dessa pessoa terem
nascido e se conhecido, mas também de eles terem concebido essa pessoa na
hora em que conceberam. De fato, meros momentos podem fazer muita
diferença para qual esperma será instrumento da concepção. O reconhecimento
de quão improvável era que uma pessoa tivesse vindo à existência, combinado
com o reconhecimento de que vir para existência é um prejuízo significativo,
levam a conclusão de que uma pessoa ter vindo a existir é realmente uma má
sorte. É ruim o bastante quando alguém sofre um prejuízo. E é ainda pior quando
as chances de ter sido seriamente prejudicado eram bastante remotas.
Há algo enganoso sobre essa observação. Isso porque de todas as
trilhões de possíveis pessoas que poderiam ter vindo a existir e, com isso,
poderiam avaliar as probabilidades, todos aqueles que são capazes de avaliar
as probabilidades são azarados, enquanto que não existe ninguém que foi
favorecido pelas probabilidades. Cem por cento de quem pode fazer essa
avaliação são azarados, e nada por cento são sortudos. Em outras palavras,
dado que a procriação tinha uma excelente chance de acabar prejudicando
alguém, e embora as chances de qualquer pessoa vir à existência sejam
pequenas, as chances de qualquer pessoa existente ter sido prejudicada são de
cem por cento.
11

1.4 O ANTINATALISMO E O VIÉS PRÓ-NATALISTA

Eu devo argumentar que uma das implicações do ponto de vista de que


vir a existir é um prejuízo significativo é a de que nós não deveríamos ter filhos.
Alguns posicionamentos antinatalistas estão fundamentados numa aversão às
crianças ou no interesse dos adultos de possuir uma maior liberdade e recursos
por não possuir filhos e nem ter de cria-los. Minha visão antinatalista é diferente.
Minha visão surge, não pela aversão às crianças, mas, ao invés disso, por uma
preocupação em evitar o sofrimento de crianças em potencial e dos adultos que
eles se tornariam, mesmo se não ter essas crianças vá contra os interesses
daqueles que as teriam.
Visões antinatalistas, sejam quais forem suas fontes, se confrontam
contra o extremamente poderoso viés pró-natalista. Esse viés tem suas raízes
nas origens evolutivas da psicologia e biologia humanas (e de animais mais
primitivos). Aqueles com uma visão pró-natalista têm mais chances de passar
adiante seus genes. É parte do viés pró-natalista pressupor que passar seus
genes adiante é algo bom e um sinal de superioridade. Com pontos de vista
morais diferentes, entretanto, a sobrevivência, tanto de alguém quando dos
genes de alguém, pode não ser vista como um indicador de ser melhor ou
superior.
O viés pró-natalista se manifesta de várias maneiras. Por exemplo, há a
pressuposição que as pessoas deveriam (se casar ou simplesmente coabitar
para) produzir novos filhos, e que, tirando os inférteis, a pessoa seria atrasada
ou seria egoísta caso não tivesse filhos3. A pressuposição de ser atrasado
carrega um paradigma ontogenético ou de desenvolvimento pessoal – as
crianças não têm filhos, mas os adultos têm. Desse modo, se alguém (ainda)
não começou a procriar, esse alguém ainda não é totalmente adulto. Mas está
mais do que claro que esse é o paradigma apropriado. Primeiro, saber quando

3
Às vezes, essa pressuposição é perceptível pelo uso da palavra “já”, como em “Você já teve filhos?”.
Essa pressuposição normalmente não se estende aos homossexuais (tanto masculinos quanto
femininos) que não têm filhos, embora os homossexuais, tenham eles filhos ou não, são
frequentemente vítimas de uma censura ainda mais cruel. Eles frequentemente são tidos como
pervertidos ou repugnantes ao invés de atrasados ou egoístas.
12

não ter um filho e ter o autocontrole de seguir com esse pensamento e atitude é
um sinal de maturidade e não de imaturidade. Há demasiadas crianças que ainda
estão na puberdade e que já possuem filhos sem estarem adequadamente
preparadas para cria-los. Segundo, e este é um ponto relacionado: de uma
perspectiva filogenética, o impulso de procriar é extremamente primitivo. Se
“atrasado” for entendido como “primitivo”, logo é a procriação que é atrasada, e
a não-procriação racionalmente motivada que é evolutivamente mais recente e
avançada.
Embora a não-procriação seja algumas vezes, como eu indiquei acima,
motivada por preocupações egoístas, não é preciso que seja sempre assim.
Quando as pessoas se abstêm de procriar na intenção de evitar infligir a outros
o prejuízo que é vir à existência, suas motivações são altruísticas e não egoístas.
Além disso, qualquer motivação conscientemente altruística de ter filhos é
inteiramente equivocada quando se supõe que os beneficiários disso serão os
filhos que irão nascer, e, como eu argumentarei, são inapropriadas quando se
tem a intenção de pôr novas crianças no mundo para beneficiar outras crianças
ou o Estado.
Em algumas sociedades, há considerável pressão dos pares ou outros
tipos de pressões sociais para se produzir bebês, e algumas vezes para se
produzir tantos bebês quanto forem possíveis. Isso pode ocorrer mesmo quando
os pais não possuem a capacidade de cuidar adequadamente da grande
quantidade de filhos que estão produzindo.
Tais pressões nem sempre são informais. Não raramente, os governos
intervêm, particularmente, mas não somente, quando as taxas de natalidade
declinam, com o propósito de encorajar as pessoas a fazerem mais bebês. Isso
é verdade mesmo onde a população de referência já é alta e a preocupação é
apenas com a taxa de natalidade caindo abaixo daquela de reposição
populacional. Por exemplo, no Japão, havia a preocupação de que a taxa de
natalidade em 1.33 crianças iria reduzir a população de 127 milhões de pessoas
para 101 milhões em 2050 e para 64 milhões em 2100. O governo japonês tomou
uma atitude. Eles lançaram o “Plus One Plan” (Plano Mais Um), com o objetivo
de persuadir casais de cônjuges a ter um filho extra, e estabeleceram as sedes
da “Anti Low Birthrate Measures Promotion” (Promoção de Medidas Contra as
Baixas Taxas de Natalidade) para coordenar o plano. Uma das propostas em
13

plano era um orçamento equivalente a 3.1 bilhões de ienes (moeda japonesa)


para serem gastos com festas, cruzeiros e trilhas para homens e mulheres
solteiros, tudo com dinheiro público. O governo também prometeu suporte
financeiro para os casais que estavam à procura de tratamentos de fertilidade
caros. O “Plus One Plan” também tinha recursos para providenciar empréstimos
educacionais para ser possível colocar as crianças nas escolas. Singapura
desenvolveu planos para persuadir os cidadãos a produzir mais crianças.
Somado às propagandas, Singapura introduziu incentivos financeiros para se ter
um terceiro filho, licença maternidade paga, e centros de cuidado infantil
financiados pelo Estado. Enquanto isso, a Austrália anunciou um “pacote família”
de 13.3 bilhões de dólares a serem distribuídos durante cinco anos. De acordo
com o tesoureiro desse país, se “você pode ter filhos, isso é algo bom de se
fazer.” Além de se ter um filho para o marido e um filho para a esposa, ele
persuadia os australianos a terem mais um terceiro filho para o país deles.
É bem sabido que regimes totalitários frequentemente encorajam as
pessoas, quando não as coagem ou as forçam a fazer bebês por motivos
militares – dado o desejo por novas e numerosas gerações de soldados.
Colocado grosseiramente, esse é um pró-natalismo para gerar mais lombo para
aguentar chicotada. Democracias, particularmente aquelas não envolvidas em
conflitos prolongados, não são e não têm necessidade de ser tão brutas, mas
isso não significa, como temos visto, que elas são desprovidas do viés pró-
natalista.
Mesmo onde as democracias não tomam atitudes formais para aumentar
a taxa de natalidade, nós temos que notar que as democracias têm um viés
inerentemente direcionado ao pró-natalismo. Dado que a maioria prevalece
(mesmo se dentro de certas restrições liberais), cada setor da população de uma
democracia é incentivado a produzir uma descendência extra para seus
interesses ou agendas, seja para que prevaleçam na sociedade ou para que ao
menos se perpetuem. Note-se, por extensão, que em uma democracia, aqueles
comprometidos com a não-procriação jamais poderiam, no longo prazo,
prevalecer politicamente contra aqueles comprometidos com a procriação.
Além disso, é interessante como a democracia favorece a procriação ao
invés da imigração. A “descendência” possui um direito presumido à cidadania,
enquanto que potenciais imigrantes não possuem. Imagine um Estado
14

polarizado consistindo em dois grupos étnicos opostos. Um desses grupos


aumenta seu tamanho através da procriação e o outro através da imigração.
Dependendo de qual exerce poder, o grupo que cresce pela imigração será
impedido de crescer ou será acusado de colonialismo. Mas porque a democracia
deveria favorecer um grupo nativo ao invés de outro grupo só porque esse grupo
nativo procria ao invés de crescer em número através da imigração? Porque a
procriação tem que ser ilimitada, mas a imigração tem que ser reduzida onde os
resultados políticos são igualmente sensíveis à ambas formas de aumento
populacional? Alguns podem buscar uma resposta para essa questão ao
argumentarem que o direito de liberdade procriacional é mais importante que o
direito de imigrar. Essa pode ser, realmente, uma descrição acurada da maneira
como a lei de fato ocorre, mas nós podemos indagar se essa é a forma como as
coisas deveriam ser. O direito de alguém produzir uma nova pessoa deveria ser
mais inviolável do que a liberdade de alguém ter seu amigo ou membro familiar
imigrando para seu país?
Outra forma como o pró-natalismo opera, mesmo no domínio moral (e não
meramente no político), é que os procriadores aumentam seu valor ao terem
filhos. Pais e mães com dependentes são de alguma forma tidos como contando
para mais. Se, por exemplo, há algum recurso escasso – um doador de rim, por
exemplo – e entre os dois potenciais receptores do rim, um deles é pai de
crianças pequenas enquanto o outro não tem filhos, o pai que possui crianças
provavelmente será favorecido simplesmente por essa razão. Deixar um pai ou
mãe morrer não é apenas contrariar a preferência dessa pessoa em ser salva,
mas também a preferência que seus filhos ou filhas têm de que seus pais sejam
salvos. É verdade, obviamente, que a morte dos pais irá prejudicar mais
pessoas, mas, apesar disso, há algo a ser dito contra o favorecimento dos pais
e mães. Aumentar o valor de alguém por ter filhos é como aumentar o valor de
alguém por manter reféns. Nós podemos achar isso injusto e decidir não
recompensar isso. Isso pode tornar pior a vida das crianças, mas o preço a ser
pago para prevenir isso deveria ser colocado nos ombros daqueles que não
possuem filhos?
Nada do que foi dito acima é para negar que há algumas sociedades em
que políticas antinatalistas têm sido adotadas. O exemplo mais óbvio é a China,
onde o governo introduziu a política do filho único. Alguns pontos são dignos de
15

nota, entretanto. Primeiro, tais políticas são excepcionais. Segundamente, elas


são uma resposta a uma superpopulação extrema (ao invés de moderada). Em
terceiro lugar, elas são necessárias precisamente porque elas são uma correção
contra um viés poderosamente pró-natalista, e por isso não se constituem em
uma refutação à existência desse viés.
Eu também não nego que há algumas críticas contra o pró-natalismo que
não provêm do Estado. Há aqueles, por exemplo, que argumentam que a vida
de uma pessoa é melhor ou, ao menos, não é pior sem filhos; e também há
aqueles que se opõem à discriminação contra pessoas que são inférteis ou child-
free por escolha própria. Embora essas oposições ao pró-natalismo sejam bem-
vindas, a maioria delas são inspiradas por uma preocupação acerca das pessoas
que já existem. Muito raramente nós escutamos críticas contra o pró-natalismo
baseadas naquilo que a procriação faz àqueles que são trazidos à existência. Há
um tipo de exceção: aqueles que acreditam que o mundo é um lugar terrível
demais para se colocar novas crianças nele. Tais pessoas acreditam que há
males demais no mundo, de modo que a procriação não é razoavelmente
aceitável. Tal crença deve estar correta. Eu discordo somente em um aspecto
com aqueles que advogam esse ponto de vista. Eu acredito que mesmo se
houvesse muito menos sofrimento no mundo, ainda assim a procriação
continuaria sendo inaceitável. Na minha visão, no fim das contas, não há nenhum
benefício (ou benefício real) em vir à existência, e por isso vir à existência nunca
vale a pena, nunca vale o que custa. Eu sei que essa visão é difícil de aceitar.
Eu irei defender isso em detalhes no capítulo 2. Embora eu considere que meus
argumentos são bastante racionais, eu não poderia mais do que desejar que eu
estivesse errado.

1.3 ESBOÇO DO LIVRO

No restante dessa introdução, eu farei um esboço dos próximos capítulos


deste livro e oferecerei algumas diretrizes aos leitores.
O segundo e o terceiro capítulos constituem o coração do livro. No
capítulo 2, eu argumentarei que vir à existência é sempre um prejuízo. Para isso,
eu mostrarei, primeiro, que vir a existência às vezes é um prejuízo – uma
afirmação que pessoas comuns prontamente apoiariam, mas a qual deve ser
16

defendida contra um famoso desafio filosófico. O argumento de que vir à


existência é sempre um prejuízo pode ser resumido como se segue: tanto as
coisas boas quanto as coisas ruins só acontecem para aqueles que existem.
Entretanto, há uma assimetria crucial entre as coisas boas e as coisas ruins. A
ausência das coisas ruins, como a dor, é boa mesmo se não há ninguém para
aproveitar esse bem; enquanto que a ausência de coisas boas, como o prazer,
é ruim apenas se existe alguém que é privado dessas coisas boas. A implicação
disso é que evitar o mal através da não-existência é uma vantagem real sobre a
existência, enquanto que a perda de certas coisas boas devido nunca ter existido
não é uma desvantagem real sobre a não-existência.
No terceiro capítulo, eu argumento que mesmo as melhores vidas não
somente são muito piores do que as pessoas pensam, mas também são muito
ruins. Para essa finalidade, eu argumentarei primeiro que a qualidade da vida
não é a diferença entre o que nela há de bom e de ruim. Determinar a qualidade
de vida é algo muito complicado. Desse modo, eu irei discutir três visões sobre
qualidade de vida – visões hedonistas, visões sobre a realização dos desejos, e
visões relacionadas a listas objetivas – e mostrarei porque a vida é ruim
independente de qual dessas três visões a pessoa adota. Finalmente, nesse
mesmo capítulo, eu descreverei o mundo de sofrimento em que habitamos e
argumentarei que esse sofrimento é um dos custos de se produzir novas
pessoas. Os argumentos do terceiro capítulo, visto isso, fornecem suas próprias
motivações para que mesmo aqueles que não são persuadidos pelos
argumentos do segundo capítulo passem a aceitar a afirmação de que vir à
existência é sempre um prejuízo (significativo).
No quarto capítulo, eu irei argumentar que não existe nenhum dever de
procriar e que, mais do que isso, existe um dever (moral) de não procriar. Isso
parece entrar em conflito com um direito largamente reconhecido de liberdade
de procriação. Eu examinarei esse direito e suas possíveis bases, argumentando
que ele pode ser melhor entendido como um direito legal e não um direito moral.
Visto isso, não há conflito com o dever moral de não produzir filhos. Eu, então,
me volto à questão da vida injusta e com deficiência. Eu considerarei vários
argumentos dos direitos de pessoas portadoras de deficiências e irei mostrar
como minha perspectiva, curiosamente, dá suporte a esses argumentos contra
seus opositores habituais, mas no fim das contas enfraquece tanto a perspectiva
17

dos direitos das pessoas com deficiências quanto a perspectiva de seus


opositores. Após isso, eu irei dar atenção às implicações do meu ponto de vista
sobre a reprodução artificial ou assistida, antes de concluir com uma discussão
sobre se a produção de filhos os trata como meros meios.
No quinto capítulo, eu mostrarei de que forma combinar a perspectiva da
pró-escolha acerca do status moral do feto com minhas conclusões sobre o
prejuízo de vir à existência acaba por gerar uma perspectiva “pró-morte” do
aborto. Mais especificamente, eu irei argumentar que se o feto, nos estágios
iniciais da gestação, ainda não veio à existência no sentido moralmente
relevante, e vir à existência é sempre um prejuízo significativo, seria melhor se
nós abortássemos os fetos nesses estágios iniciais. Ao decorrer das páginas, eu
irei distinguir quatro tipos de interesses e indagarei qual deles é moralmente
significante, eu discutirei a questão de quando a consciência começa, e então
defenderei a perspectiva pró-escolha e a minha própria perspectiva acerca do
aborto contra as perspectivas desafiadoras de Richard Hare e Don Marquis.
O sexto capítulo analisará dois conjuntos relacionados de
questionamentos: aqueles sobre a população e aqueles sobre a extinção. Os
questionamentos populacionais são aqueles sobre quantas pessoas deveriam
haver no mundo. Os questionamentos extintivos são aqueles sobre se haverá
arrependimento caso ocorra uma futura extinção humana e se seria pior se a
extinção humana ocorresse mais cedo do que mais tarde. Minha resposta ao
questionamento populacional é que idealmente não deveria haver (mais)
pessoas. Entretanto, eu considerarei argumentos que podem permitir uma
extinção em fases. Ao responder o questionamento extintivo, eu sugerirei que
embora a extinção seja ruim para aqueles que precedem sua ocorrência,
principalmente para aqueles que a precedem imediatamente, o estado de
extinção humana em si não é mau. De fato, eu argumentarei que seria melhor,
considerando que todos os fatores permaneçam iguais, se a extinção humana
ocorresse mais cedo do que mais tarde no tempo. Somado a esses argumentos
de interesse geral, eu mostrarei como minha perspectiva resolve muitos
problemas conhecidos na teorização moral acerca do tamanho da população.
Aqui, o foco será na parte quatro do livro de Derek Parfit, chamado “Reasons
and Persons”, mostrando como meu ponto de vista resolve o “problema da não-
18

identidade”, evita a “conclusão absurda” e a “mera adição de problema”, e explica


a “assimetria”.
No capítulo da conclusão, eu discutirei várias questões. Considerarei a
questão de se a implausibilidade das minhas conclusões implica na rejeição aos
meus argumentos; e eu irei argumentar contra a insistência otimista de que eu
devo estar errado em minha visão. Eu demonstrarei que meus argumentos não
são incompatíveis com os pensamentos religiosos, como muitos podem pensar.
Eu irei examinar questões sobre a morte e o suicídio. Mais especificamente, eu
argumentarei que uma pessoa pode considerar que vir à existência é sempre um
prejuízo sem necessariamente ter que pensar que continuar existindo é pior do
que a morte. Assim, a morte pode ser ruim para nós ao mesmo tempo em que
vir à existência também é ruim. Segue-se disso que o suicídio não é uma
implicação inevitável da minha perspectiva, mesmo que possa ser uma
consequência possível, ao menos em alguns casos. Por fim, a conclusão
mostrará que embora a visão de mundo antinatalista tenha motivações
filantrópicas, há muitos argumentos misantrópicos convincentes para a mesma
conclusão.

1.4 UM GUIA PARA O LEITOR

Nem todos os leitores terão vontade ou tempo de ler o livro inteiro, por
isso eu ofereço algumas dicas para ajudar a priorizar o que se acha necessário
ler. Os capítulos mais importantes são o capítulo 2 (e mais especificamente a
seção intitulada “Porque vir à existência é sempre um prejuízo” e o capítulo 3. A
seção de abertura do capítulo de conclusão, o capítulo 7, também é importante
para aqueles que pensam que minhas conclusões deveriam ser rejeitadas por
serem profundamente contra-intuitivas.
Os capítulos 4, 5 e 6, todos eles pressupõem as conclusões trazidas nos
capítulos 2 e 3, e por não podem ser lidos lucrativamente sem os capítulos
anteriores em mente. Enquanto que o capítulo 5 não se baseia no capítulo 4, o
capítulo 6 pressupõe as conclusões do capítulo 4 (mas não as conclusões do
capítulo 5). Essa ordenação lógica dos capítulos se aproxima de uma outra
ordenação. O capítulo 2 traz as “más notícias”; o capítulo 3 traz “notícias piores
19

que aquelas”; os capítulos 4, 5 e 6 (dependendo da perspectiva de quem lê)


contêm as “piores notícias de todas”.
Boa parte desse livro será facilmente acessível ao leitor inteligente sem
conhecimento prévio em Filosofia. Há algumas seções que, por necessidades,
são de alguma forma mais técnicas. Mesmo embora seja difícil compreender
todos os mínimos detalhes dessas seções, a essência dos argumentos será
compreensível. Porém, há algumas seções as quais podem ser puladas pelo
leitor que não tenha tanto interesse assim pelos detalhes mais técnicos. Isso é
verdade quanto aos parágrafos que por caso aparecem pelo livro, e também
quanto a seções mais densas.
No capítulo 5, os seis primeiros parágrafos de “Quatro tipos de interesse”
são cruciais para o capítulo. Aqueles leitores que não estejam interessados em
como tais taxonomias se conectam com taxonomias concorrentes na literatura
da filosofia moral, podem pular todo o restante da seção.
As partes mais técnicas do livro se encontram no capítulo 6, na seção
intitulada “resolvendo problemas na teoria moral acerca da população”. Nessa
seção, eu mostro como minha perspectiva resolve problemas que têm sido
discutidos na longa literatura filosófica acerca das futuras pessoas e do perfeito
tamanho da população. Aqueles sem conhecimento ou sem interesse sobre essa
literatura podem pular essa seção. Fazer isso irá tornar mais difícil entender boa
parte da minha discussão, mais à frente no capítulo 6, sobre a extinção em fases.
Parte dessa discussão é bastante técnica e, assim, poderia ser pulada também.
Qualquer leitor que decidir por pular essas partes, precisa compreender que eu
argumento que minha visão se abre, sob algumas condições, à extinção em
fases, na qual cada vez menos crianças são trazidas à existência em cada uma
das próximas gerações até que as gerações findem, ao invés de uma imediata
interrupção de toda a produção de bebês de uma vez só no mundo todo.
20

2 PORQUE VIR A EXISTÊNCIA É SEMPRE UM PREJUÍZO

Nunca ter nascido é melhor


Mas se temos de ver a luz do dia, a segunda coisa melhor
É retornar rapidamente para o lugar de onde viemos.
Quando a juventude se vai, com todas as suas loucuras,
Quem é que não cambaleia sob os males? Quem é que escapa dos males?
(Sófocles)

Dormir é bom, a morte é melhor; mas, é claro,


O melhor seria nunca ter nascido à princípio.
(Heinrich Heine)

2.1 É POSSÍVEL QUE VIR À EXISTÊNCIA SEJA UM PREJUÍZO TODAS AS


VEZES EM QUE OCORRE (OU SEMPRE QUE OCORRE)?

Antes que se possa argumentar que vir à existência é sempre4 um


prejuízo (no sentido de ser um prejuízo o tempo todo, eternamente), é preciso
mostrar primeiro que vir à existência por ser um prejuízo sempre5 que ocorre (no
sentido de todas as vezes que ocorre isoladamente). Alguns podem indagar o
porquê isso seria necessário. Eu explico que é porque o senso comum sugere
que, às vezes, a vida de alguém pode ser tão ruim que vir à existência com tal
vida ruim foi certamente um prejuízo para a pessoa. Essa perspectiva,
entretanto, enfrenta um forte desafio – o qual tem sido frequentemente chamado
“problema da não-identidade” ou “paradoxo dos indivíduos futuros”. Por isso, eu
começo por explicar esse problema e mostrar como ele pode ser resolvido.
O problema surge naqueles casos onde a única alternativa fora trazer uma
pessoa para uma existência com baixa qualidade de vida é justamente não trazer
essa pessoa à existência para começo de história. Em tal circunstância,

4
Nota do tradutor: O autor usou “Always”.
5
Nota do tradutor: O autor usou “ever”.
21

considera-se que é impossível trazer tal pessoa à existência sem a condição que
se considera ser prejudicial. Isso pode ocorrer, por exemplo, quando futuros pais
carregam desordens genéticas graves, as quais, por alguma razão, serão
transmitidas aos descendentes. A escolha está entre, de um lado, trazer a
criança à existência com deficiências e, de outro, não trazer a criança à
existência de maneira nenhuma. Em outras ocasiões, a deficiência não seria
atribuível à constituição da pessoa, seja genética ou qualquer outra, mas ao
ambiente em que a pessoa estará inserida. Esse é o caso, por exemplo, da
garota de quatorze anos que têm um bebê, mas que, por causa da sua jovem
idade, é incapaz de garantir oportunidades e condições adequadas ao seu filho.
Se essa jovem menina tiver um filho quando ela for mais velha e mais capaz de
cuidar da criança, seu filho não será o mesmo que poderia ter sido caso ela
engravidasse na pré-adolescência (pois seu filho seria formado por diferentes
gametas). Desse modo, a alternativa que existe fora trazer uma criança
socialmente comprometida à existência sob os cuidados de uma mãe de
quatorze anos é não trazer a criança à existência de forma alguma, independente
se ela terá um filho no futuro.
Enquanto que a afirmação de que vir à existência é sempre um prejuízo
vai contra a pensamento da maioria das pessoas (mas não de todas elas), a
afirmação de que vir à existência nos casos que eu citei é um prejuízo está em
sintonia com o senso comum. Apesar disso, muitos juristas e filósofos pensam,
por motivos que ainda explicarei, que existe um obstáculo lógico em afirmar que
as pessoas cujas limitações e deficiências são inseparáveis de suas existências
são prejudicas por terem sido trazidas à existência com limitações e deficiências.

2.1.1 VIDAS QUE VALEM A PENA SER VIVIDAS E VIDAS QUE NÃO VALEM
A PENA SER VIVIDAS

Há uma distinção bastante comum, na literatura sobre esse problema,


entre deficiências que fazem a vida não valer a pena de ser vivida e deficiências
que, embora graves, não são tão ruins assim que façam a vida não valer a pena
ser vivida. Alguns fizeram a forte afirmação que mesmo quando as deficiências
fazem a vida não valer a pena ser vivida, nós não podemos afirmar que aqueles
cuja existência é inseparável de tais deficiências são prejudicados por terem sido
22

trazidos à existência. Para apoiar esse pensamento, normalmente são usados


argumentos dos tipos que eu mostro à baixo:
a) Para algo prejudicar alguém, esse algo deve deixar a pessoa em estado
pior que outro.
b) Esse “pior que outro” é uma relação entre dois estados.
c) Assim, para uma pessoa estar pior num estado (como a existência), o
outro estado, com o qual se compara, deve ser um tal que a pessoa esteja
menos pior ou melhor nele.
d) Porém, a não-existência não é um estado onde uma pessoa pode estar,
e por isso a não existência não pode ser comparada com a existência.
e) Visto isso, vir à existência não tem como ser pior do que nunca vir à
existência.
f) Portanto, vir à existência não tem como ser um prejuízo.

Uma maneira de responder a esse argumento é negando a afirmação da


primeira premissa de que para alguma coisa causa prejuízo a alguém, essa coisa
deve (isto é, sempre) deixar a pessoa em estado pior que outro. Para algo causar
prejuízo a uma pessoa, talvez baste que esse algo seja ruim para a pessoa e
que a alternativa a esse algo não fosse ruim. Se a vida é ruim para a pessoa que
foi trazida à existência, como realmente deve ser se sua vida não vale a pena
ser vivida, então o fato de essa pessoa ter vindo à existência é um prejuízo (dado
que a alternativa a isso não teria sido ruim).
Joel Feinberg oferece uma resposta diferente ao argumento de que vir à
existência nunca pode ser considerado um prejuízo. Ao invés de negar que
prejudicar é deixar a pessoa em estado pior que outro, ele contesta a suposição
de que para estar em estado pior numa determinada condição, deve ser
necessário que a pessoa tenha existido na condição alternativa com a qual se
compara. O que queremos dizer quando falamos que alguém estaria melhor
se não tivesse vindo à existência é que a não-existência teria sido preferível
(grifo do tradutor). O professor Feinberg oferece a analogia dos julgamentos
sobre deixar de existir. Quando uma pessoa afirma que sua vida é tão ruim que
ela estaria melhor morta, ela não quer dizer literalmente que se ela morresse ela
estaria existindo num estado melhor que o atual (embora algumas pessoas
pensem realmente dessa forma). Ao invés disso, a pessoa pode estar querendo
23

dizer que ela prefere não mais “ser”, não mais “existir”, do que continuar vivendo
na condição em que vive. Ela determinou que sua vida não vale a pena ser vivida
– que não vale a pena continuar existindo. Assim como a vida pode ser tão ruim
que deixar de existir é preferível, do mesmo modo a vida pode ser tão ruim que
nunca sequer vir à existência é preferível. Comparar a existência de alguém com
sua não-existência não é comparar duas condições possíveis da pessoa. Na
verdade, é comparar sua existência com um estado alternativo de coisas no qual
esse alguém não existe.
Tem sido pensado geralmente que aqueles casos onde as deficiências,
embora graves, não são tão ruins que façam a vida não valer a pena de ser vivida
são mais difíceis que os quais em que as deficiências são tão grandes que fazem
a vida não valer a pena. Tem sido dito que porque os primeiros casos, por
definição, são casos de vidas que valem a pena ser vividas, ninguém pode
afirmar que nunca existir é preferível a existir em uma vida em tais condições de
deficiências. A força desse argumento, entretanto, se baseia numa ambiguidade
crucial presente na expressão “uma vida que vale a pena ser vivida” – uma
ambiguidade que eu irei examinar.

2.1.2 Vidas que valem a pena ser iniciadas e vidas que valem a pena ser
continuadas

A expressão “uma vida que vale a pena ser vivida” tem uma ambiguidade
entre “uma vida que vale a pena ser continuada” – vamos chamar isso de “o
sentido da vida-presente” – e uma “vida que vale a pena ser iniciada” – vamos
chamar isso de “o sentido da vida-futura”. “Uma vida que vale a pena ser
continuada”, assim como “uma vida que não vale a pena ser continuada”, ambos
são julgamentos que alguém pode fazer sobre uma pessoa que já existe no
mundo. “Uma vida que vale a pena ser iniciada”, assim como “uma vida que não
vale a pena ser iniciada”, ambos são julgamentos que alguém pode fazer sobre
uma pessoa em potencial, mas não-existente. O problema é que muitas pessoas
têm empregado o sentido da vida-presente e o aplicado para casos da vida-
futura, os quais são bastante diferentes. Quando eles diferenciam entre
deficiências que fazem a vida não valer a pena ser vivida e deficiência que,
embora graves, não são tão ruins ao ponto de fazer a vida não valer a pena ser
24

vivida, eles estão fazendo esses julgamentos nos casos da vida-presente. Essas
vidas que não valem a pena ser vividas são aquelas que não vale a pena ser
continuadas. Similarmente, aquelas vidas que valem a pena ser vividas são
aquelas que valem a pena ser continuadas. Mas o problema é que essas
mesmas noções são aplicadas equivocadamente aos casos da vida-futura.
Desse modo, somos levados a fazer julgamentos sobre os casos da vida-futura
pelos padrões dos casos da vida-presente.
Apesar disso, padrões bastante diferentes se aplicam nos dois tipos de
casos. O julgamento de que uma deficiência é tão ruim que faz a vida não valer
a pena ser continuada normalmente é feito em um limiar muito mais alto do que
o julgamento de que uma deficiência é suficientemente ruim para fazer a vida
não valer a pena ser iniciada. Ou seja, se uma vida não vale a pena ser
continuada, conclui-se que ela não vale a pena ser iniciada. Isso não permite
pensar, entretanto, que se uma vida vale a pena ser continuada ela também vale
a pena ser iniciada ou que se uma vida não vale a pena ser iniciada ela também
não vale a pena ser continuada. Por exemplo, enquanto que muitas pessoas
acham que viver uma vida sem um dos membros do corpo não torna a vida tão
ruim ao ponto de fazer valer a pena acabar com a vida, a maioria das pessoas
também pensa que é melhor não trazer à existência alguém que tem a falta de
um membro do corpo. Nós exigimos uma justificativa muito mais forte para findar
uma vida do que para não dar início a uma vida.
Agora, estamos numa posição de entender como pode ser preferível não
iniciar uma vida que vale a pena ser vivida. A aparência paradoxal dessa
perspectiva está no entendimento de “uma vida que vale a pena ser vivida” no
sentido da vida-futura. Claramente, seria estranho afirmar que é preferível não
iniciar uma vida que vale a pena ser iniciada. Entretanto, o sentido da vida-futura
não é o sentido relevante nesse contexto, pois estamos considerando o contraste
à vida que não vale a pena continuar – ou seja, estamos considerando a vida
que vale a pena ser continuada. Não há nada paradoxal acerca da afirmação de
que é preferível não iniciar uma vida que valeria a pena ser continuada.
Meu argumento até aqui se baseia na visão de que há uma distinção
moralmente importante entre os casos da vida-futura e os casos da vida-
presente. Há algumas linhas de argumentos que ameaçam diminuir a
25

importância de tal distinção e, desse modo, enfraquecer as minhas ideias. Eu


darei uma resposta a cada uma dessas linhas de argumentos.
Primeiro, eu levo em consideração o argumento de Derek Parfit. Ele
sugere que se eu sou beneficiado por ter minha vida salva logo após ela ter
iniciado (mesmo com a consequência de ficar com deficiências graves, mas não
catastróficas), então não é implausível afirmar que eu sou beneficiado por ter
minha vida iniciada (com tais deficiências graves). Esse argumento tem como
objetivo minimizar a significativa distinção entre os casos da vida-futura e da
vida-presente. Nessa perspectiva, não é irracional pensar que as deficiências
que são infligidas no processo de salvar uma vida são moralmente comparáveis
a deficiências similares que são inseparáveis de trazer uma vida à existência.
Uma objeção a esse argumento é que ele se baseia numa premissa
instável – a saber, a de que alguém é beneficiado por ter sua vida salva logo
após ela ter sido iniciada, se isso implica que esse alguém terá uma deficiência
grave, mas não catastrófica, pelo resto de sua vida. Embora, à primeira vista,
essa premissa possa parecer firme e amplamente aceita, ao ser sondada ela
revela suas fraquezas. O problema é que está implicitamente pressuposto que
há algum ponto, mesmo que aproximado, no qual um ser vem à existência num
sentido moralmente relevante – ou seja, no sentido de ter um interesse digno de
uma consideração moral. Entretanto, como a extensiva literatura acerca do
aborto sugere, vir à existência no sentido moralmente relevante está mais para
um processo longo do que para um evento em particular. Muito tempo atrás, eu
era um óvulo fecundado. Sem dúvida, o momento em que virei um embrião foi o
momento em que eu vim à existência num sentido estritamente ontológico. Mas
é muito menos claro que esse foi também o momento em que eu vim à existência
num sentido moralmente relevante. Embora a maioria das pessoas concordem
que se para salvar minha vida sob o custo de perder uma perna seria um
benefício para mim, poucas pessoas iriam pensar que seria um benefício real
salvar a vida de um embrião sob o custo de ele ter que viver uma vida sem uma
das pernas. É por isso que muitas pessoas apoiam abortos “terapêuticos”
mesmo para casos onde não há possíveis deficiências catastróficas piores do
que arrancar a perna de um adulto para salvar sua vida. Muitas pessoas chegam
a apoiar infanticídio ou ao menos eutanásia passiva para os recém-nascidos com
deficiências graves, mas não-catastróficas, mesmo embora essas mesmas
26

pessoas não julguem apropriada essa conduta para crianças que não são recém-
nascidas ou para adultos que possuam as mesmas deficiências. Aqueles que
existem (no sentido moralmente relevante) possuem interesses na existência.
Esses interesses, uma vez totalmente desenvolvidos, são normalmente muito
fortes e por isso, quando houver um conflito, os interesses em existir prevalecem
sobre os interesses em não ficar deficiente. Entretanto, onde não há interesses
na existência ou onde esses interesses são muito fracos, provocar deficiências
(ao trazer pessoas deficiências à existência) não pode ser justificado pela
proteção aos interesses na existência. O escopo dos seres sem interesses na
existência ou com interesses muito fracos na existência ainda são
problematizados. (O escopo desses seres incluiria embriões, zigotos, bebês?).
No capítulo 5, eu argumento que ao menos os zigotos, embriões e fetos até bem
tarde na gestação não começaram a existir num sentido moralmente relevante,
e digo também que vir à existência num sentido moralmente relevante é um
processo gradual.
Esses pensamentos enfraquecem a noção que há um estágio “logo após
a pessoa ter vindo à existência” (no sentido moralmente relevante de “vir à
existência”). Se nós enxergarmos o vir a existência (no sentido moralmente
relevante) como o processo extenso que ele é, então nós estaremos mais
inclinados a permitir sacrifícios cada vez maiores com o objetivo de salvar a vida
de um ser vivo na medida em que o interesse do ser vivo na existência também
se desenvolve. O contraste entre iniciar uma vida e salvar uma vida logo após
ela ter iniciada desaparece. Se torna cada vez menos plausível fazer uma
dedução a partir do caso de salvar uma vida após ela ter sido iniciada para o
caso de começar uma vida, uma vez que tais casos são vistos como estando
distantes um do outro.
Alguns podem pensar que a visão gradualista acerca de vir à existência
enfraquece a distinção que faço entre casos da vida-futura e casos da vida-
presente. Entretanto, isso não é verdade. Dizer que a distinção entre os dois
casos é gradual não significa esvaziar o sentido dessa distinção. Nada do que
eu disse exclui a possibilidade de um meio-campo ligando os dois tipos de casos.
O sentido moral da distinção também não é comprometido conquanto não se
rejeite, como eu não rejeito, uma sensibilidade moral ao gradualismo do
27

continuum que liga óbvios casos da vida-futura com óbvios casos da vida-
presente.
Uma outra ameaça possível contra a distinção entre casos da vida
presente e casos da vida-futura vem de uma linha de raciocínio construída por
Joel Feinberg. Ele sugere, como eu indiquei anteriormente, que nós entendemos
a afirmação que uma pessoa estaria melhor se não tivesse vindo à existência
como equivalente a dizer que a não-existência desse ser seria preferível. Essa
afirmação, ele defende corretamente, não sofre nenhuma dificuldade lógica.
Entretanto, ele prossegue para desenvolver uma consideração sobre quando é
preferível não vir à existência, de modo que, em quase todos os casos, a não-
existência não pode ser tida como preferível. Ele pega julgamentos proferidos
por adultos competentes e por crianças mais velhas e maduras de que seria
melhor que elas nunca tivessem existido, e os distingue de julgamentos
parecidos feitos por procuradores em nome daqueles que estão tão debilitados
que já não podem fazer julgamentos por si próprios. No caso dos extremamente
debilitados, Feinberg pensa, é insuficiente que o julgamento de que a não-
existência é preferível seja consistente com a razão. Para o autor, tal julgamento
deve ser ditado ou exigido pela razão. Ele acha que esses requisitos são
atendidos apenas por pouquíssimas condições incapacitantes – aquelas onde a
morte é preferível. No caso de seres competentes que fazem o julgamento de
que nunca ter existido seria preferível, ele diz que isso é meramente consistente
com a razão (ou seja, não é irracional). Embora é muito mais fácil para um
julgamento satisfazer a condição de ser consistente com a razão, é um fato da
psicologia humana que muito raramente as pessoas – mesmo aquelas
enfrentando dificuldades consideráveis – preferem nunca ter existido. O
resultado é que na visão do Professor Feinberg, a maioria dos seres que são
trazidos à existência com deficiências e incapacidades graves, mas não tão
graves ao ponto de fazer vale a pena acabar com a vida, não podem ser tidos
como sendo prejudicados. Uma pessoa só pode ser tida como prejudicada se
tivesse sido preferível que ela nunca tivesse vindo à existência, e, na
interpretação de Feinberg, essa exigência só é atendida muito raramente.
A razão pela qual a perspectiva de Feinberg conflita com minha distinção
entre casos da vida-presente e casos da vida-futura está implícita na exigência
de que façamos julgamentos acerca da vida-futura pelas lentes dos casos da
28

vida-presente. Para ele, a vida tem que ser tão ruim que não valeria a pena ser
continuada – esse seria o modelo para decisões feitas por procuradores no caso
de pessoas não competentes para decidir – ou teria de ser o caso que as
pessoas já existentes e com debilidades desejassem nunca ter vindo à existência
– esse seria o modelo para aqueles cujas debilidades não impedem sua
competência para decidir (retrospectivamente!) por si próprios.
Entretanto, é precisamente porque a consideração do Professor Feinberg
requer que adotemos a perspectiva de pessoas já existentes que ela é
inadequada. Ao se considerar se a vida vale a pena ser iniciada, não deveríamos
considerar se vale ou não a pena que ela seja continuada. Nem muito menos
nós deveríamos apelar às preferências de pessoas já existentes sobre suas
próprias vidas para fazermos julgamentos sobre as vidas futuras. Como eu
mostrarei na segunda seção do próximo capítulo, auto-afirmações da qualidade
de vida de alguém não são confiáveis.
Embora eu rejeite a consideração do Professor Feinberg sobre quando é
preferível não vir à existência, eu concordo que nós podemos entender a noção
de prejudicar alguém por trazê-lo à existência nos termos da preferência que há
entre existir ou nunca ter existido. Ou seja, uma pessoa prejudica a outra por
trazê-la a existência se sua existência é tal que nunca ter existido seria preferível.
De maneira parecida, uma pessoa não é prejudicada por ter sido trazida à
existência se sua existência é tal que é preferível ao invés de nunca ter existido.
A questão a qual nós temos que voltar nossos olhares, então, é: “Quando nunca
ter existido é preferível?” Em outras palavras: “Quando vir à existência é um
prejuízo?” Ou ainda, podemos indagar: “Quando vir à existência é ruim enquanto
que nunca vir à existência não é ruim?” A resposta, eu argumentarei, é “Sempre”.

2.2 PORQUE VIR A EXISTÊNCIA É SEMPRE UM PREJUÍZO

Há uma pressuposição na literatura acerca das possíveis futuras pessoas


que, considerando que as coisas permaneçam inalteradas, um indivíduo não faz
nada de errado ao trazer à existência pessoas cujas vidas serão boas no fim das
contas. Essa suposição se baseia em uma outra – a saber, a de que ser trazido
à existência (com boas perspectivas de vida) é um benefício (mesmo que não
ser trazido à existência não seja um prejuízo). Eu argumentarei que a
29

pressuposição fundamental é errônea. Ser trazido à existência não é um


benefício, mas é sempre um prejuízo. Quando eu digo que vir à existência é
sempre um prejuízo, eu não quero dizer que seja necessariamente um prejuízo.
Como vai ser perceptível, meu argumento não se aplica àqueles casos
hipotéticos nos quais a vida contém apenas o bem e não o mal. Acerca dessa
existência, eu digo que ela não é nem um prejuízo e nem um benefício, e que
nós deveríamos ser indiferentes entre tal existência e a não-existência. Porém,
não existe nenhuma vida que seja assim, não existe nenhuma vida que contenha
apenas o bem. Todas as vidas contêm o mal. Vir à existência com uma vida
que contém o mal é sempre um prejuízo (grifo do tradutor). Muitas pessoas
irão considerar que essa inquietante afirmação é contra-intuitiva e irão querer
rejeitá-la. Por essa razão, eu me proponho não somente a defender essa
afirmação, mas também a sugerir o porquê de as pessoas serem resistentes a
ela.
De fato, coisas ruins acontecem com todos nós. Nenhuma vida existe sem
sofrimento. É fácil pensar nos milhões de pessoas que vivem uma vida de
pobreza ou naqueles que vivem a maior parte de suas vidas com alguma
debilidade ou deficiência. Alguns de nós são sortudos o bastante para serem
poupados desses destinos, mas, apesar disso, ainda sofrerão de alguma
condição ruim de saúde em algum momento no decorrer de suas vidas.
Normalmente o sofrimento é excruciante, mesmo se ocorre nos nossos últimos
dias. Alguns são condenados pela natureza a anos de fragilidade. Todos nós
enfrentamos a morte. Nós não costumamos pensar sobre os prejuízos que
esperam qualquer recém-nascido – dor, frustação, ansiedade, luto e morte. Não
é possível prever como esses prejuízos vão acontecer ou quão graves eles
serão, mas podemos ter certeza que ao menos alguns deles irão ocorrer.
Nenhum desses prejuízos ocorre na não-existência. Apenas os existentes
podem sofrer prejuízo (grifo do tradutor).
Os otimistas rapidamente irão dizer que eu não contei a história toda. Não
apenas coisas ruins, mas também coisas boas acontecem apenas para aqueles
que existem. Prazer, alegria e satisfação só podem ser obtidas pelos existentes.
Visto isso, os alegres vão dizer, devemos pesar os prazeres da vida contra os
males. Enquanto o primeiro pesar mais que o segundo, a vida vale a pena ser
vivida. Vir à existência, nessa perspectiva, é um benefício.
30

2.2.1 A ASSIMETRIA ENTRE O PRAZER E A DOR

A conclusão da referida perspectiva, entretanto, não se segue


logicamente das afirmações que levaram a ela. Isso porque existe uma diferença
crucial entre prejuízos (tais como a dor) e benefícios (tais como os prazeres),
diferença essa que implica que a existência não possui vantagem sobre a não-
existência, mas possui desvantagens em relação à não-existência6. Considere
as dores e os prazeres como exemplos de prejuízos e benefícios. É
incontroverso dizer que:

(1) a presença de dor é ruim,

e que

(2) a presença de prazer é boa.

Entretanto, tal avaliação simétrica não parece se aplicar à ausência de dor


e sofrimento, pois me parece verdadeiro que:

(3) a ausência de dor é boa, mesmo se esse bem não por desfrutado por
ninguém,

enquanto que

6O termo “não existência” possui múltiplas ambiguidades. Ele pode ser aplicado
àqueles que nunca existem e aqueles não existem atualmente. Esses últimos podem
ser divididos entre os que ainda não existem e os que já não mais existem. No
contexto atual, eu uso a palavra “não-existência” para me referir àqueles que nunca
existem. Joel Feinberg argumentou que os que ainda não existem e os que já não mais
existem podem ser prejudicados. Eu concordo nesse ponto. O que eu tenho a dizer
aqui se aplica apenas aos nunca existentes.
31

(4) a ausência do prazer não é ruim ao menos que exista alguém para
quem essa ausência seja uma privação.

Pode ser indagado como a ausência de dor poderia ser boa se esse bem
não é desfrutado por ninguém. A ausência de dor, pode ser dito, não pode ser
boa para alguém, se ninguém existe para quem essa ausência de dor seja boa.
Falar isso, entretanto, é rejeitar o ponto (3) rápido demais.
O julgamento feito no ponto (2) é feito com referência aos (potenciais)
interesses de uma pessoa, quer ela exista, quer ela não exista. A isso, poderia
ser contraposto que por que (3) é parte de um cenário sob o qual essa pessoa
nunca existe, (3) não pode dizer nada sobre uma pessoa existente. Tal
contraposição seria equivocada porque (3) pode dizer algo sobre um caso
contrafatual no qual a pessoa que de fato existe nunca existiu. Sobre a dor de
uma pessoa existente, (3) diz que a ausência dessa dor teria sido boa, mesmo
se isso pudesse ser alcançado apenas pela ausência da pessoa que sofre essa
dor. Em outras palavras, julgado nos termos dos interesses de uma pessoa que
existe atualmente, a ausência de dor teria sido boa, mesmo se isso significasse
que essa pessoa não tivesse existido. Considere agora o que (3) fala sobre a
ausência de dor de quem nunca existe – ausência que é garantida por não tornar
uma pessoa em potencial em uma pessoa real. A afirmação (3) diz que a
ausência de dor é boa quando julgada nos termos dos interesses da pessoa que
de outra maneira teria existido. Nós podemos não saber quem essa pessoa teria
sido, mas ainda assim nós podemos dizer que seja lá quem essa pessoa fosse,
a ausência de suas dores é algo bom quando julgado nos termos de seus
potenciais interesses. Se há qualquer sentido (obviamente afrouxado) no qual a
ausência de dor é boa para a pessoa que poderia ter existido, mas que não
existe, esse é o sentido. Claramente, (3) não implica o absurdo que é dizer de
maneira literal que há uma pessoa real para quem a dor ausente é boa.
Em apoio à assimetria entre (3) e (4), pode ser mostrado que ela possui
um considerável poder explicativo. Essa assimetria explica ao menos quatro
outras assimetrias que são bastante plausíveis. Os céticos, quando eles veem
onde isso leva, podem começar a questionar a plausibilidade dessas outras
32

assimetrias e podem querer saber que suporte (além da assimetria acima) pode
ser oferecido para elas. Estivesse eu a oferecer tal suporte, os céticos então
pediriam por uma defesa dessas novas considerações de apoio. Todo
argumento deve ter algum fim justificativo. Eu não posso esperar convencer
quem toma a rejeição à minha conclusão como algo axiomático. Tudo que eu
posso mostrar é que aqueles que aceitam algumas perspectivas bastante
plausíveis são levados à minha conclusão. Essas perspectivas plausíveis
incluem quatro outras assimetrias, as quais eu agora destaco.
Primeiro, a assimetria entre (3) e (4) é a melhor explicação para a visão
de que enquanto há um dever de evitar trazer pessoas sofredoras à existência,
não há dever nenhum de trazer pessoas felizes à existência. Em outras palavras,
a razão pela qual nós pensamos que há um dever de não trazer pessoas
sofredoras à existência é porque a presença desse sofrimento seria ruim (para
os sofredores) e a ausência desse sofrimento é boa (mesmo que não haja
ninguém para desfrutar a ausência de sofrimento). Em contraste a isso, nós
pensamos que não há dever de trazer pessoas felizes à existência, porque
enquanto os prazeres delas seriam bons para elas, a ausência desses prazeres
não seria ruim para elas (dado que não haveria ninguém que seria privado de
tais prazeres).
Pode ser contestado que há uma explicação alternativa para a visão
acerca dos nossos deveres procriacionais – uma explicação que não apela a
minha afirmação acerca da assimetria entre (3) e (4). Pode ser sugerido que a
razão pela qual nós temos um dever de evitar trazer pessoas sofredoras à
existência é porque nós temos deveres negativos de evitar prejuízo, mas não
possuímos deveres positivos correspondentes de trazer felicidade. Julgamentos
sobre nossos deveres procriacionais são então similares aos julgamentos acerca
de todos os outros deveres. Eu concordo que para aqueles que pensam que nós
não temos quaisquer deveres positivos, essa seria uma explicação alternativa
para aquela que eu tenho oferecido. Entretanto, mesmo entre aqueles que
pensam que nós temos deveres positivos, apenas alguns deles também pensam
que entre esses deveres está um dever de trazer pessoas felizes à existência.
Nesse momento, poderia ser sugerido que há também uma explicação
alternativa do porquê aqueles que aceitam deveres positivos normalmente não
pensam que isso inclui um dever de trazer pessoas felizes à existência.
33

Normalmente, é pensado que nossos deveres positivos não podem incluir um


dever de criar prazeres se isso incluir um sacrifício significante da nossa parte.
Dado que ter filhos envolve um sacrifício considerável (ao menos para a mulher
grávida), essa, e não a assimetria, é a melhor explicação do porquê não há dever
de trazer pessoas felizes à existência.
O problema, porém, com essa explicação alternativa é que ela implica que
se esse sacrifício não existisse, nós teríamos um dever de trazer pessoas felizes
à existência. Em outras palavras, seria errado não procriar pessoas felizes se
nós pudéssemos criá-las sem causar grandes custos à nós mesmos. Mas isso
pressupõe que esse dever é (no final das contas) um dever. Entretanto, levando
em consideração os interesses das pessoas em potencial, tais interesses não
fundamentam sequer um dever inviável de trazê-las à existência. Em outras
palavras, a assimetria dos deveres procriacionais se baseia em uma outra
assimetria – uma assimetria de razões morais procriacionais. De acordo com
essa assimetria, embora tenhamos uma forte razão moral, fundamentada nos
interesses de pessoas em potencial, de evitar criar pessoas infelizes, nós não
temos nenhuma forte razão moral (fundamentada nos interesses das pessoas
em potencial) de criar pessoas felizes. Disso, segue-se que embora o grau do
sacrifício possa ser relevante para outros possíveis deveres, isso é discutível no
caso de um suposto dever de trazer pessoas felizes à existência.
Há um segundo suporte à minha afirmação sobre a assimetria entre (3) e
(4). Enquanto que é estranho (se não incoerente) dar como motivo de se ter um
filho a afirmação de que esse filho que alguém vai ter será beneficiado por vir à
existência; não é estranho citar os interesses da criança em potencial como base
para evitar trazer uma criança à existência. Se o ato de ter filhos fosse executado
com o propósito de, por meio disso, beneficiar esses filhos, então haveria uma
razão moral maior para ao menos muitas pessoas terem mais filhos. Em
contraste a isso, nossa preocupação com o bem-estar das crianças em potencial
que viriam a sofrer é uma base sólida para decidir não ter essas crianças. Se a
ausência de prazeres fosse ruim independente se ela seria ruim para alguém,
então ter filhos para o bem deles mesmos não seria algo estranho. E se não
fosse o caso de que a ausência de dores fosse boa mesmo quando não há
ninguém para desfrutar desse bem, então nós não poderíamos dizer que seria
bom evitar trazer crianças sofredoras à existência.
34

Em terceiro lugar, apoio à assimetria entre (3) e (4) pode ser extraído da
assimetria relacionada, dessa vez em nossos julgamentos retrospectivos. Trazer
pessoas à existência assim como não trazer pessoas à existência, ambas as
ações podem ser objeto de arrependimento. Entretanto, apenas trazer pessoas
à existência pode ser objeto de arrependimento por se levar em consideração o
bem da pessoa cuja existência dependeu de nossa decisão. Isso não ocorre
porque os que nunca foram trazidos à existência são indeterminados. Isso ocorre
porque eles nunca existem. Nós podemos nos sentir tristes pelo bem de pessoas
indeterminadas, mas existentes, que um benefício não tenha sido concedido a
elas; mas nós não podemos ficar tristes pelo bem de quem nunca existe e que,
portanto, não pode, por isso, ser privado de um bem que esse ser nunca
existente nunca experiencia. Alguém pode lamentar sobre não ter tido filhos, mas
não porque os filhos que esse alguém poderia ter tido foram privados da
existência. O remorso por não ter tido filhos é um remorso por nós mesmos – a
tristeza de não ter tido a experiência de carregar um bebê na barriga ou de criar
uma criança. Entretanto, nós realmente lamentamos ter trazido à existência uma
criança com uma vida infeliz, e nós nos arrependemos disso levando em
consideração o bem da criança, mesmo que também por nosso próprio bem. A
razão pela qual nós não lamentos não ter trazido alguém à existência é porque
a ausência de prazeres não é ruim.
Por último, apoio para a assimetria entre (3) e (4) pode ser encontrado
nos julgamentos assimétricos sobre (a) sofrimento (distante) e (b) porções não
habitadas da Terra ou do universo. Se por um lado, ao menos quando pensamos
neles, nós certamente ficamos tristes pelos habitantes de um país estrangeiro
cujas vidas são caracterizadas pelo sofrimento; por outro lado, quando nós
ouvimos falar de uma região inabitada, nós não ficamos tristes pelas pessoas
felizes que, tivessem elas existido, teriam habitado essa região. Do mesmo
modo, ninguém lamenta de fato por aqueles que não existem em Marte, ninguém
se sente mal pelos seres em potencial por eles não poderem desfrutar da vida 7.

7
O fato de que a maioria das pessoas nem sequer pensa sobre a ausência de vida em Marte é revelador
por si mesmo. Uma vez que são forçados a pensar nesses assuntos, alguns vão dizer que lamentam a
ausência de prazeres em Marte. Quer eles lamentem, quer não, eu não vejo como alguém possa
lamentar isso pelo bem dos próprios (não-existentes) marcianos que iriam, de outra maneira, desfrutar
tais prazeres. É interessante, entretanto, como algumas pessoas irão começar a dizer que elas se sentem
tristes pela ausência de marcianos a partir do momento em que elas percebem que não se sentir triste
por isso dá suporte à assimetria que eu defendo e, consequentemente, à conclusão de que vir à
35

Apesar disso, se soubéssemos que havia vida senciente em Marte, mas que os
marcianos estivesses sofrendo, nós iríamos lamentar por eles estarem nessa
condição de sofrimento. A afirmação aqui não precisa ser (mas poderia ser)
aquela forte de que nós lamentaríamos a própria existência deles. O fato de que
nós lamentaríamos o sofrimento existente na vida deles é suficiente para dar
suporte à assimetria que eu estou defendendo. O ponto é que nós lamentamos
o sofrimento dos que existem, mas não lamentamos a ausência de prazeres
daqueles que poderiam ter existido.
Nesse momento, alguém pode protestar contra isso ao dizer que da
mesma forma que nós não lamentamos a ausência de prazer daqueles que
poderiam ter existido, nós também não nos alegramos na ausência de dor
daqueles que poderiam ter existido. Porque se assim o fizéssemos, o protesto
prossegue, nós deveríamos estar excessivamente felizes pela quantidade de dor
que é evitada, visto quão poucas de todas as pessoas possíveis se tornam reais,
e, por isso, quão muita dor é evitada. Mas alegria não é o apropriado contraste
ao lamento8. Embora nós lamentemos o sofrimento de pessoas distantes, ao
menos quando pensamos nelas, nós normalmente não nos afundamos em
melancolia por conta disso. Por isso, a questão não é se sentimos alegria – o
contrário de melancolia – pela ausência de dor, mas se ausência de dor é o
oposto de lamentável – ou seja, se ela é, podemos dizer, “bem-vinda”9 (ou
“desejável”) ou simplesmente “boa”. A resposta a essa questão, como sugeri, é
afirmativa. Se nos perguntassem se a ausência de sofrimento é uma
característica boa da não-existência, nós teríamos de dizer que sim.
Eu tenho mostrado que a assimetria entre (3) e (4) explica outras quatro
assimetrias. Dado que essas outras assimetrias são amplamente apoiadas, nós
temos boas bases para pensar que a assimetria entre (3) e (4) também é
amplamente aceita. Que isso seja assim não é evidência de sua verdade, visto
que muitas coisas podem ser amplamente aceitas e ainda assim estarem
incorretas. Entretanto, isso de fato mostra que meu ponto de partida pode ter um
apelo amplo.

existência é sempre um prejuízo. Entretanto, dizer que se sente triste por isso é uma coisa, mas se isso
faz sentido é algo completamente diferente.
8
Nota do tradutor: o autor usa o termo “regret”, que também significa “arrepender-se”, “remorso”,
“tristeza”.
9
Nota do tradutor: o autor usa o termo “welcome”.
36

Os julgamentos apoiados pela assimetria entre (3) e (4) não são


universalmente compartilhados. Por exemplo, os utilitaristas positivos – que são
interessados não somente em minimizar a dor, mas também em maximizar o
prazer – tenderiam a lamentar a ausência de possível prazer adicional mesmo
se não houvesse ninguém privado de tal prazer. Na visão deles, há um dever de
trazer pessoas à existência se isso for aumentar a felicidade. Isso não quer dizer
que todos os utilitaristas positivos devem rejeitar a visão acerca da assimetria
entre (3) e (4). Utilitaristas positivos que simpatizam com a assimetria poderiam
construir uma distinção entre (i) promover a felicidade das pessoas (que existem
ou que existirão independente das escolhas de alguém) e (ii) aumentar o nível
de felicidade através da produção de novas pessoas. Essa é a famosa distinção
entre (i) deixar as pessoas felizes e (ii) produzir pessoas felizes. Utilitaristas
positivos que fazem essa distinção poderiam então, consistentemente com o
utilitarismo positivo, julgar apenas (i) como sendo uma exigência da moralidade.
Essa é a versão preferível do utilitarismo positivo. Tomar (ii) como sendo também
uma exigência da moralidade erroneamente pressupõe que o valor da felicidade
é primário e que o valor dos indivíduos seriam derivativos do valor da felicidade.
Entretanto, não é o caso de que as pessoas vão valiosas porque elas adicionam
felicidade extra no mundo. Ao invés disso, a felicidade extra é valiosa porque é
boa para as pessoas – porque isso faz a vida das pessoas melhorar. Pensar de
outra forma é pensar que as pessoas são simplesmente meios de produzir a
felicidade. Ou, para usar outra representação famosa, é tratar as pessoas como
meros vasos de felicidade. Mas, diferentemente de um mero vaso, o qual é
indiferente acerca da quantidade de substância preciosa que contém, uma
pessoa se importa acerca da quantidade de felicidade que ela possui.
Se os argumentos que eu trouxe até agora são sólidos, então a visão
sobre a assimetria entre prejuízo e benefício é tanto atraente quanto
generalizada. Meu argumento vai continuar por mostrar como, dada a assimetria
entre prejuízo e benefício, isso resulta em que vir à existência é sempre um
prejuízo. No capítulo conclusivo (capítulo 7), eu irei considerar a objeção
daqueles que, quando veem para qual conclusão a assimetria nos leva, preferem
renunciar a assimetria do que aceitar a conclusão de que vir à existência é
sempre um prejuízo. A objeção é que as conclusões do meu argumento são mais
contraintuitivas do que renunciar a assimetria seria, e por isso se alguma delas
37

tem que ser sacrificada, sacrificaria-se a assimetria. Eu posponho a discussão


sobre essa objeção para o capítulo final, pois ela se aplica não somente à
contraintuitividade da minha conclusão até agora, mas também para outras
conclusões contraintuitivas pelas quais eu argumentarei nos capítulos que estão
por vir. (Aqueles que estão ansiosos para ver essa objeção ser considerada
podem se direcionar à seção de abertura do capítulo 7, chamada “Contrariando
a objeção acerca da contraintuitividade”).
Para mostrar porque, dada a assimetria que eu tenho defendido, é sempre
um prejuízo vir à existência, é necessário comparar dois cenários, um cenário
(A) no qual X existe e um cenário (B) em que X nunca existe. Isso, juntamente
com as visões que já mencionei, está representado no diagrama da figura abaixo
na figura 2.1.

Figura 2.1

Cenário A Cenário B
( X existe ) ( X nunca existe )

(1) (3)

Presença de dor Ausência de dor

( Ruim ) ( Bom )

(2) (4)

Presença de prazer Ausência de prazer

( Bom ) ( Não ruim )

Se eu estiver correto, não há controvérsias de que (1) é ruim e (2) é bom.


Entretanto, em concordância com as considerações feitas anteriormente, (3) é
bom mesmo que não haja ninguém para desfrutar desse bem, mas (4) não é
ruim, pois não há ninguém que é privado dos benefícios ausentes.
38

Partindo da defesa que fiz anteriormente sobre a assimetria, nós temos


que notar que as maneiras diferentes de avaliar (3) e (4), de acordo com as quais
a simetria entre dor e prazer é preservada, não se sustentam, ao menos se
importantes julgamentos comuns forem preservados. A primeira opção está
mostrada na figura 2.2.
Aqui, para preservar a simetria, a ausência de prazer (4) tem que ser
colocada como “ruim”. Esse julgamento é muito pesado, pois se a ausência de
prazer no cenário B é “ruim” ao invés de “não ruim”, então deveríamos lamentar,
pelo bem de X, que X não veio à existência. Mas isso não é digno de lamento.

Figura 2.2

Cenário A Cenário B
( X existe ) ( X nunca existe )

(1) (3)

Presença de dor Ausência de dor

( Ruim ) ( Bom )

(2) (4)

Presença de prazer Ausência de prazer

( Bom ) ( Ruim )

A segunda maneira de efetuar uma avaliação simétrica do prazer e da dor


é mostrada na figura 2.3.
Para preservar a simetria nesse caso, a ausência de dor (3) tem que ser
colocada como “não ruim” ao invés de “bom”, e a ausência de prazer (4) tem que
ser colocada como “não bom” ao invés de “não ruim”. Na interpretação de alguns,
“não ruim” é equivalente a “bom”, e “não bom” é equivalente a “ruim”. Mas essa
não é a interpretação que se opera nessa matriz, pois se assim o fosse, não
39

haveria diferença nenhuma da matriz anterior e, visto isso, teria as mesmas


falhas que a matriz anterior. “Não ruim”, na figura 2.3, portanto deve ser
interpretado como “não ruim, mas não bom também”. Essa interpretação, porém,
é fraca demais. Evitar as dores da existência é mais do que simplesmente “não
ruim”. É bom.
Julgar a ausência de prazer como sendo “não bom” também é algo muito
fraco e que não diz o bastante. Claro que a ausência de prazer não é algo que
chamaríamos de bom. Entretanto, a questão importante, quando a ausência de
prazer não envolve privação para ninguém, é se se isso é “não ruim” ou “ruim”.
A resposta, eu sugiro, é que é “não é bom, mas não é ruim também” ao invés de
“não bom, mas ruim”. Visto que “não ruim” é uma avaliação mais informativa que
“não bom”, logo esse é o termo que eu prefiro. Entretanto, mesmo aqueles que
preferem ficar com o termo “não bom” não irão com isso conseguir restaurar a
simetria. Se dor é “ruim” e prazer é “bom”, mas a ausência de dor é “bom” e a
ausência de prazer é “não bom”, então é perceptível eu não há simetria entre
prazer e dor.

Figura 2.3

Cenário A Cenário B
( X existe ) ( X nunca existe )

(1) (3)

Presença de dor Ausência de dor

( Ruim ) ( Não ruim )

(2) (4)

Presença de prazer Ausência de prazer

( Bom ) ( Não bom )


40

2.2.1 COMPARANDO EXISTIR COM NUNCA EXISTIR

Tendo rejeitado as avaliações alternativas, eu retorno ao meu diagrama


original (Figura 2.1). Para determinar as relativas vantagens e desvantagens de
vir à existência e nunca vir a existir, nós precisamos comparar (1) com (3), e (2)
com (4). Na primeira comparação, nós vemos que a não-existência é preferível
à existência. A não-existência tem uma vantagem sobre a existência. Na
segunda comparação, entretanto, os prazeres do existente, embora sejam bons,
não representam vantagem sobre a não-existência, pois a ausência de prazeres
é não ruim. Para que o bem que o prazer proporciona fosse uma vantagem sobre
a não-existência, seria necessária que a ausência desse prazer fosse ruim (o
que não é o caso).
Contra isso, pode se fazer uma objeção dizendo que “bom” é uma
vantagem sobre “não ruim” porque uma sensação prazerosa é melhor que um
estado neutro. O erro escondido nessa objeção, entretanto, é que ela trata a
ausência de prazer no Cenário B como se ela fosse semelhante à ausência de
prazer no Cenário A – uma possibilidade não refletida na minha matriz, mas a
qual está implícita no (4) da minha descrição original da assimetria. Lá, eu disse
que a ausência de prazer é não ruim ao menos que haja alguém para quem essa
ausência seja uma privação. A implicação aqui é que onde a ausência de prazer
for uma privação a alguém que existe, essa ausência de prazer é ruim. Claro,
quando eu digo que é ruim, eu não quero dizer que é ruim do mesmo modo que
a presença de dor é ruim10. O que se quer dizer é que a ausência de prazer é
relativamente ruim (ao invés de intrinsicamente ruim). Em outras palavras, é pior
que a presença de prazer. Mas isso é porque X existe no Cenário A. No Cenário
A, teria sido melhor se X tivesse tido o prazer do qual ele é privado; mas invés
de um estado mental prazeroso, X tem um estado neutro. Os prazeres ausentes
no Cenário B, em contraste, não são um estado neutro de alguma pessoa. Eles
não são estado nenhum de nenhuma pessoa de maneira nenhuma. Embora os

10
O único momento em que seria ruim nesse sentido é quando a ausência de prazer é na verdade
dolorosa.
41

prazeres em A sejam melhores que os prazeres ausentes em A, os prazeres em


A não são melhores que os prazeres ausentes em B.
Isso pode ser dito de outra maneira. Assim como eu não estou falando de
uma ruindade intrínseca quando eu digo que os prazeres ausentes que causam
privação são ruins, do mesmo modo eu não estou falando de uma intrínseca
“não ruindade” – neutralidade – quando eu me refiro aos prazeres ausentes que
não causam privação a ninguém. Assim como prazeres ausentes que provocam
privação são “ruins” no sentido de “piores”, do mesmo modo prazeres ausentes
que não provocam privação são “não ruins” no sentido de “não piores”. Eles não
são piores do que a presença de prazeres. Segue-se disso que a presença de
prazeres não é melhor e, portanto, que a presença de prazeres não é uma
vantagem sobre a ausência de prazeres que não provoca privação a ninguém.
Algumas pessoas têm dificuldade em entender como (2) não é uma
vantagem sobre (4). Elas deveriam considerar uma analogia que, por envolver a
comparação entre duas pessoas existentes, é diferente da comparação entre a
existência e a não-existência nesse ponto, mas que pode ser instrutiva apesar
de tudo. Sr. D (Doente) está sujeito a crises regulares de doença. Felizmente
para ele, ele é também tão forte que rapidamente ele se recupera. Sra. S
(Saudável) não possui a capacidade para se recuperar rapidamente das
doenças, mas ela nunca fica doente. É ruim para o Sr. D que ele fica doente, e
é bom para ele que ele se recupera rapidamente. É bom para a Sra. S que ela
nunca fica doente, mas é não ruim que ela não tem capacidade de se curar
rapidamente. A capacidade de recuperação rápida, embora seja boa para o Sr.
D, não é uma vantagem real sobre a Sra. S. Isso se deve ao fato de que a
ausência dessa capacidade não é ruim para Sra. S. Isso, por sua vez, é porque
a ausência de tal capacidade não é uma privação para a Sra. S. A Sra. S não
está em situação pior do que estaria se ela tivesse os poderes de recuperação
rápida do Sr. D. O Sr. D não está em situação melhor que a Sra. S de maneira
nenhuma, mesmo embora o Sr. D. esteja melhor do que ele próprio estaria caso
ele não tivesse a capacidade de se curar rapidamente.
Alguém pode levantar uma objeção ao dizer que essa analogia é
tendenciosa. É óbvio que é melhor ser a Sra. Saudável do que o Sr. Doente. A
objeção é que se eu tratar essas personagens como analogias para nunca existir
e existir respectivamente, então eu envieso a discussão para minha conclusão
42

de preferência. Mas o problema com essa objeção, se tomada sozinha, é que


ela poderia aplicada a todas as analogias. O sentido de uma analogia é
justamente encontrar um caso (como o do Sr. D e da Sra. S) onde a situação é
clara e por isso permite facilitar o entendimento de um outro caso em disputa (tal
como o caso dos Cenários A e B na figura 2.1). A tendenciosidade da analogia,
desse modo, não é a questão. Ao invés disso, a questão é se a analogia é ou
não é boa.
Uma razão pela qual pode ser pensado que não seja uma boa analogia é
que enquanto o prazer (na figura 2.1) é um bem intrínseco, a capacidade de
rápida recuperação não é mais que um bem instrumental. Poderia ainda ser dito
que seria impossível fornecer uma analogia envolvendo duas pessoas existentes
(tais como a Sra. S e o Sr. D) que pudesse mostrar uma das pessoas não
estando em desvantagem por não ter um bem intrínseco que o outro possui.
Uma vez que os únicos casos inequívocos de uma pessoa real que não possui
um bem e nem por isso está em desvantagem são casos envolvendo bens
instrumentais, a diferença entre bens intrínsecos e bens instrumentais pode ser
pensada como sendo relevante.
Isso, entretanto, é pouco convincente, pois há uma explicação mais
profunda de porquê de bens intrínsecos ausentes podem sempre ser tidos como
ruins em analogias envolvendo apenas pessoas existentes. Dado que essas
pessoas existem, a ausência de qualquer bem intrínseco poderia sempre ser tida
como constituindo uma privação para essas pessoas. Em analogias que
comparam duas pessoas existentes, a única forma de simular a ausência de
privação é considerando bens instrumentais.
Note, em qualquer evento, que a analogia precisa ser lida como provando
que o quadrante (2) é bom e o quadrante (4) é não ruim. Essa assimetria foi
estabelecida na seção anterior. Ao invés disso, a analogia poderia ser
interpretada como mostrando de que forma, dada a assimetria, (2) não é uma
vantagem sobre (4), enquanto que (1) é uma desvantagem relativa a (3). Isso
mostraria, portanto, que o Cenário B é preferível ao Cenário A.
Nós podemos verificar as vantagens e desvantagens relativas da
existência e da não-existência de outra maneira, ainda na minha matriz original,
mas comparando (2) com (3) e (4) com (1). Há benefícios tanto para o existir
quanto para o não-existir. É bom que os existentes desfrutem de seus
43

prazeres. É também bom que as dores sejam evitadas pela não-existência.


Entretanto, isso é só parte da história. Porque não há nada de ruim em
nunca vir à existência, mas há algo de ruim em vir à existência. Parece que,
no fim das contas, considerando-se tudo, a não-existência é preferível.
(Grifo do tradutor).
Uma das percepções que surge de algumas das reflexões que fizemos
até agora é que a análise de custo-benefício do alegre – na qual se pesa (1) os
prazeres da vida contra (2) os males da vida – é pouco convincente enquanto
uma comparação entre a desejabilidade da existência e da nunca existência. A
análise do alegre é equivocada por várias razões.
Primeiro, ela faz a comparação errada. Se queremos determinar se a não-
existência é preferível à existência, ou vice-versa, então nós temos que comparar
os lados esquerdo e direito do diagrama, os quais representam os cenários
possíveis onde X existe e onde X nunca existe. Comparar o quadrante superior
e o quadrante inferior do lado esquerdo do diagrama não diz nada sobre se o
Cenário A é melhor que o Cenário B ou vice-versa. Isso só faria sentido se os
quadrantes (3) e (4) fossem irrelevantes. Uma maneira em que isso se daria é
se tanto o (3) quanto o (4) fossem equivalentes a “zero”. Nesse pensamento, A
pode ser tido como melhor que B se (2) é maior que (1), ou para dizer de outra
forma), se (2) menos (1) for maior que zero. Mas isso evidencia um segundo
problema. Dar valor zero aos quadrantes (3) e (4) significa não colocar valor
positivo nenhum ao (3) e isso é incompatível como a assimetria pela qual eu
tenho argumentado. (Isso significaria adotar a simetria da figura 2.3).
Um outro problema em calcular se A ou B é melhor olhando-se apenas
para (1) e (2), subtraindo o primeiro pelo último, é que isso parece ignorar a
diferença, mencionada anteriormente, entre uma “vida que vale a pena ser
iniciada” e uma “vida que vale a pena ser continuada”. O alegre nos dirá que a
existência é melhor que a não existência se (2) for maior que (1). Mas o que se
quer dizer aqui ao usar o termo “não-existência”? Isso quer dizer “nunca existir”
ou “cessar de existir”? Aqueles que olham apenas para (1) e (2) parecem não
distinguir entre nunca existir e cessar de existir. Para eles, a vida vale a pena ser
vivida (tanto no sentido de ser iniciada quanto no sentido de ser continuada) se
(2) é maior que (1), de outra forma não se vale a pena viver (tanto no sentido de
não iniciar a vida quanto de não a continuar). O problema com isso, eu já
44

argumentei, é que há uma boa razão para fazer uma distinção entre as duas.
Isso porque para uma vida não valer a pena ser continuada, ela deve ser pior do
que o que é preciso para ela não valer a pena ser iniciada. Aqueles que
consideram não apenas o Cenário A mas também o Cenário B claramente estão
considerando quais vidas valem a pena serem iniciadas. Para determinar quais
vidas valem a pena ser continuadas, o Cenário A teria de ser comparado com
um terceiro cenário, no qual X cessa de existir11.
Finalmente, a qualidade de uma vida não é determinada simplesmente ao
se subtrair o mau do bom. Como eu mostrarei na primeira seção do próximo
capítulo, avaliar a qualidade de uma vida é muito mais complicado que isso.
Agora, algumas pessoas podem aceitar a assimetria representada na
Figura 2.1, concordar que precisamos comparar o Cenário A com o Cenário B,
mas negar que isso leva a concluir que B é sempre preferível a A – isto é, negar
que vir à existência é sempre um prejuízo. O argumento é que nós devemos
atribuir valores positivos ou negativos (ou neutros) a cada quadrante, e que se
nós fazemos essa atribuição da maneira que os que defendem essa visão acham
que é a mais razoável, nós encontramos que vir à existência é às vezes preferível
(veja Figura 2.4).

Figura 2.4

Cenário A Cenário B
( X existe ) ( X nunca existe )

(1) (3)

Presença de dor Ausência de dor


- +
( Ruim ) ( Bom )

(2) (4)

Presença de prazer Ausência de prazer


+ 0
( Bom ) ( Não ruim )

11
Nesse cenário, o qual podemos chamar de Cenário C, a ausência de dor seria “bom” e a ausência de
prazer seria “ruim”.
45

O quadrante (1) deve ser negativo, pois ele é ruim, e os quadrantes (2) e
(3) devem ser positivos pois eles são bons. (Eu suponho que (3) deve ser tão
bom quanto (1) é ruim. Ou seja, se (1) = - n, então (3) = + n). Uma vez que (4) é
não ruim (e não bom também), ele não seria nem positivo e nem negativo, mas
neutro.
Empregando a atribuição de valores da Figura 2.4, nós somamos (1) e (2)
para determinar o valor de A, e então comparamos isso com a soma de (3) e (4),
que é o valor de B. Fazendo isso, nós encontramos que A é preferível a B quando
(2) for mais do que duas vezes o valor de (1)12. Há numerosos problemas com
isso. Por exemplo, como eu mostrarei na primeira seção do próximo capítulo,
não é apenas a proporção de prazer em relação à dor que determina a qualidade
de vida, mas também a quantidade absoluta de dor. Uma vez que um certo limiar
de dor é ultrapassado, nenhuma quantidade de prazer é bastante para poder
compensar isso.
Mas a melhor maneira de mostrar que a Figura 2.4 está errada é aplicar
o raciocínio por trás da Figura 2.4 à analogia da Sra. S (Saudável) e do Sr. D
(Doente) mencionada anteriormente.

Figura 2.5

Sr. D (Doente) Sra. S (Saudável)

(1) (3)

Presença de doença Ausência de doença


- +
( Ruim ) ( Bom )

(2) (4)

Presença da Ausência da

+
capacidade de capacidade de 0
recuperação rápida recuperação rápida

( Bom ) ( Não ruim )


12
Quando (2) é apenas duas vezes o valor de (1), A e B tem o mesmo valor e, por isso, nem vir à
existência nem nunca vir à existência é preferível.
46

Conforme a Figura 2.5 acima, seria melhor ser o Sr. D do que a Sra. H se
o valor de (2) fosse mais que o dobro do valor de (1). (Esse presumidamente
seria caso onde a quantidade de sofrimento que (2) evita o Sr. D de sofrer é mais
que o dobro da quantidade que o Sr. D de fato sofre). Mas isso não pode estar
correto, porque certamente é sempre melhor ser a Sra. S (uma pessoa que
nunca fica doente e, por isso, não está em desvantagem por não possuir a
capacidade de recuperação rápida). A questão é que (2) é bom para o Sr. D,
mas (2) não constitui uma vantagem sobre a Sra. S. Ao se atribuir uma carga
positiva ao (2) e um “0” ao (4), a Figura 2.5 sugere que (2) é uma vantagem sobre
(4), mas está bem claro que não é uma vantagem. A atribuição de valores na
Figura 2.5, e em consequência também na Figura 2.4, devem estar erradas.
Agora, pode ser perguntado quais seriam as corretas atribuições de
valores, mas eu quero resistir a essa pergunta, porque ela é a pergunta errada
a ser feita. A Figura 2.1 teve a intenção de mostrar porque é sempre preferível
não vir à existência. Ela mostra que vir à existência tem desvantagens relativas
a nunca vir à existência, enquanto que as características positivas do existir não
são vantagens sobre o nunca existir. O Cenário B é sempre melhor que o
Cenário A por praticamente a mesma razão que é sempre preferível ser a Sr. S
do que ser o Sr. D. A Figura 2.1 não tem a intenção de ser um guia para
determinar quão ruim é vir à existência.
Há uma diferença, eu tenho indicado, entre (a) dizer que vir à existência
é sempre um prejuízo e (b) dizer quão grande prejuízo isso é. Até aqui eu tenho
argumentado apenas acerca da primeira informação. A grandiosidade do
prejuízo da existência varia de pessoa para pessoa, e no próximo capítulo eu irei
argumentar que o prejuízo é bastante considerável para todas as pessoas.
Entretanto, deve ser notado que uma pessoa pode apoiar a visão de que vir à
existência é sempre um prejuízo, mas ainda assim negar que o prejuízo seja
enorme. Similarmente, se uma pessoa pensa que o prejuízo da existência não é
enorme, não pode por isso inferir que a existência é preferível à não-existência.
Reconhecer isso é bem importante por afastar uma outra potencial
objeção contra meu argumento. Uma das implicações do meu argumento é que
uma vida repleta do bom e contendo apenas a menor quantidade do mau – uma
47

vida de absoluta felicidade contaminada apenas pela dor de uma única picada
de alfinete – é pior, de qualquer maneira, do que vida nenhuma. A objeção que
poderia ser levantada seria a de que isso é implausível. Entender a distinção
entre (1) vir à existência ser um prejuízo e (b) quão grande prejuízo isso é,
permite à pessoa compreender porque essa implicação não é tão implausível
como se pensa. É verdadeiro, sobre a pessoa desfrutando essa vida encantada
estragada somente por uma breve dor aguda, que seja sua vida boa como for,
ela não possui vantagem nenhuma sobre nunca existir. Apesar de tudo, vir à
existência tem a desvantagem daquela única dor. Nós podemos reconhecer que
o prejuízo de vir à existência é minúsculo sem negar que seja um prejuízo.
Colocando de lado a questão de se vir à existência é um prejuízo, quem negaria
que uma dor aguda é um prejuízo, mesmo se um prejuízo pequeno? Pense outra
vez na analogia do Sr. D e da Sra. S. Se o Sr. D fica doente apenas uma vez na
vida, tendo somente uma dor de cabeça que rapidamente passa, ainda assim é
melhor ser a Sra. S (mesmo que não seja muito melhor assim). Se todas as vidas
fossem tão livres de sofrimento como a da pessoa que inventamos, que sofreu
apenas uma picada de alfinete, os prejuízos de vir à existência seriam facilmente
ultrapassados pelos benefícios que seriam provocados aos outros (incluindo os
pais em potencial) por uma pessoa vir a existir. Na vida real, porém, não existe
nenhuma vida nem sequer próxima de ser tão encantada como a que inventamos
nesse parágrafo.

2.2.2 OUTRAS ASSIMETRIAS

Eu tenho argumentado que prazer e dor são assimétricos de forma tal que
vir à existência é sempre um prejuízo. Após argumentar, no capítulo a seguir,
que esse prejuízo é significativo, eu irei discutir, no capítulo 4, as implicações de
tudo isso para a procriação. Deveria estar claro agora, entretanto, que a ideia de
que vir à existência é sempre um prejuízo significativo levanta um problema para
a procriação. A procriação pode ser desafiada de muitas outras maneiras
48

também, mas os argumentos de Christoph Fehige13 e Seana Shiffrin14 possuem


paralelos interessantes com meus argumentos.
Consideremos primeiro o argumento de Seana Shiffrin. O entendimento
de benefício e prejuízo implícito em meu argumento é similar ao que ela deixa
explícito no argumento dela. Ela entende benefício e prejuízo não
comparativamente. Ou seja, ela entende-os não como duas pontas de uma
escala ou à medida que sobem e descem tal escala. Ao invés disso, ela entende-
os como duas condições absolutas de tipo positivo e negativo, respectivamente.
Além disso, no argumento dela, como o meu, há uma assimetria entre benefícios
e prejuízos, embora seja uma assimetria diferente. Ela diz que na ausência de
evidência do desejo de uma pessoa pelo contrário, é permissível, talvez até
obrigatório, infligir um prejuízo menor à essa pessoa no objetivo de prevenir um
prejuízo maior. Em contraste, seria errado infligir um prejuízo que fosse render
um benefício (puro)15 maior. Visto isso, nós temos como aceitável quebrar o
braço de uma pessoa inconsciente (que não pode dar consentimento) com o
objetivo de prevenir prejuízo maior, como a morte, a essa pessoa. (Isso pode
acontecer em casos em que a pessoa precisa ser resgatada – “casos de
resgate”). Entretanto, nós condenaríamos o ato de quebrar o braço de alguém
com o objetivo de garantir benefícios maiores, como “memória sobrenatural, um
grande acervo de conhecimentos enciclopédicos, 20 pontos a mais no QI para
ter mais habilidade intelectual, ou a habilidade de consumir quantidades sem
moderação de álcool ou gordura sem os efeitos colaterais”. (Chame isso de
“casos de benefício puro”).
Uma vez que todos os existentes sofrem prejuízo, a procriação sempre
causa prejuízo. A professora Shiffrin está pronta para dizer (pelo bem do
argumento?) que “ser criado pode beneficiar uma pessoa”. Entretanto, conforme
a assimetria que acabamos de mencionar, nós não devemos infligir um prejuízo
para garantir um benefício. Embora pessoas existentes possam às vezes

13
Fehige, Christoph, ‘A Pareto Principle for Possible People’, in Fehige, Christoph, and Wessels, Ulla,
eds., Preferences (Berlin: Walter de Gruyter, 1998) 508–43.
14
Shiffrin, Seana Valentine, ‘Wrongful Life, Procreative Responsibility, and the Significance of Harm’,
Legal Theory, 5 (1999) 117–48.
15
Por “benefício puro” ela quer dizer “benefícios que são apenas bons e que não são remoções de
prejuízos ou prevenções de prejuízos” (p. 124 do livro dela). Os prazeres intrínsecos aos quais me refiro
no capítulo 3 seriam instância de “benefício puro”, enquanto que os prazeres de alívio aos quais me
refiro são instâncias de “remoções de prejuízos”.
49

autorizar que lhes seja infligido um prejuízo para lhes garantir um benefício, nós
nunca podemos obter o consentimento daqueles que trazemos à existência
antes de nós os criarmos. Nem podemos presumir um consentimento hipotético,
ela argumenta. Há quatros razões para isso. Primeiro, uma pessoa não está
prejudicada se nós nunca a criamos. Segundo, os prejuízos da existência podem
ser muito severos. Terceiro, os prejuízos da existência não podem ser evitados
sem um custo considerável. Por último, o consentimento hipotético não se baseia
nos valores ou atitudes do indivíduo com relação ao risco.
Há algumas diferenças interessantes entre o argumento da professora
Shiffrin e o meu. O argumento dela, ao menos na superfície, não impede de tratar
as coisas boas da vida como vantagens sobre a não-existência (embora, como
eu mostrarei, seu argumento não exige que sejam tratadas dessa forma). Na
visão dela, mesmo se os prazeres e demais coisas boas desfrutadas pelos
existentes forem vantagens sobre a não-existência, não são vantagens que
podemos garantir aos custos da existência16.
Seu argumento básico também não pressupõe a assimetria que eu tenho
defendido. Nós podemos perceber isso ao comparar dois cenários que envolvem
pessoas existentes e que não são caracterizados pela assimetria da Figura 2.1.
O primeiro desses cenários é um no qual um benefício puro é concedido ao custo
de um prejuízo e o outro cenário é um no qual aquele prejuízo é evitado ao custo
de um benefício puro. Seguindo o padrão das matrizes anteriores, podemos
representar isso como mostrado na figura 2.6.
Minha assimetria não se aplica a tal caso, mas na assimetria da
professora Shiffrin nós não estaríamos assegurados para infligir (1) no objetivo
de garantir (2). Dito de outra forma, nós não podemos provocar o Cenário A
sobre o Cenário B (ausente o consentimento da pessoa). Mesmo quando
aplicado aos casos de procriação, onde (eu tenho arguido) minha assimetria se
aplica, a priorização de B sobre A não é baseada na minha assimetria, mas na
assimetria dela.

16
Ou ao menos não sem estar preparado para compensar os prejuízos. Seana Shiffrin é um pouco
reticente em descartar a procriação inteiramente, embora seu argumento parece implicar essa
conclusão e alguns consideram que ela aceitaria isso. Ela explicitamente só defende a fraca afirmação de
que a procriação não é uma atitude moralmente inocente.
50

Isso não significa que minha assimetria está desconectada do argumento


dela, e certamente não quer dizer que minha assimetria é incompatível com seu
argumento. Nota-se, primeiramente, que ao menos uma característica da minha
assimetria torna o caso dela contra a procriação ainda mais forte do que o caso
dela contra outras concessões de benefício puro que causam prejuízo. A
professora Shiffrin nota que a procriação não é como os casos onde se inflige
um prejuízo no objetivo de resgatar alguém, pois “se o benefício concedido pela
criação não for conferido, a pessoa não-existente não irá experienciar sua
ausência.” Ela pode ter acrescentado que com relação a isso, a procriação é
diferente não somente do caso de regaste, mas também de casos não-
procriacionais de concessão de benefícios puros ao custo de um prejuízo. Está
implicitamente reconhecido aqui que o benefício ausente quando alguém não é
trazido à existência não é ruim (quadrante 4 da Figura 2.1). É menos óbvio a
forma como a professora Shiffrin enxerga a afirmação do quadrante (3) da Figura
2.1 – a qual diz que a ausência de prejuízo quando alguém não existe é boa.
Entretanto, eu sugiro que essa afirmação também fortaleceria o caso dela contra
a procriação (embora eu reconheça que ela poderia não ter como objetivo
fortalecer esse caso). A procriação seria mais ameaçada se os prejuízos
ausentes fossem bons e não simplesmente nem ruins e nem bons.

Figura 2.6

Cenário A Cenário B

Benefício puro Benefício puro


concedido não concedido

(1) (3)

Presença de prejuízo Ausência de prejuízo

( Ruim )

(2) (4)
51

Presença do Ausência o benefício


benefício
( Ruim )
( Bom )

Em resposta ao argumento da professora Shiffrin, tem sido objetado que


a sua assimetria não é necessária para explicar o caso do puro benefício – o
caso em que um benefício é concedido, mas ao custo de um prejuízo. Tem sido
sugerido que no caso do puro benefício que Seana Shirffrin descreve, os direitos
de alguém têm sido violados (ao se ter o braço quebrado sem sua permissão), e
isso explica porque o benefício não pode ser concedido. Ele só pode ser
concedido ao se violar um direito de não ser prejudicado. A pressuposição
implícita aqui é que no caso da procriação o direito de ninguém tem sido violado,
pelo menos enquanto a vida resultante for uma vida que vale a pena ser vivida.
Uma base comum para negar que a procriação viola os direitos da pessoa
criada é que antes da procriação essa pessoa não existe e, portanto, não pode
ser o portador do direito de não ser criado. Mas essa pode ser uma visão
excessivamente estreita da atribuição de direitos – uma visão que ignora
características especiais da procriação. Se, como eu argumentei na seção de
abertura deste capítulo, uma pessoa pode ser prejudicada por ser trazida à
existência, alguém pode argumentar que o direito que protege contra esse tipo
de prejuízo é um tipo especial de direito – um direito que só tem um portador na
violação. Em outras palavras, podemos dizer que alguém viola um direito ao
performar algum ato se, como um resultado de performar esse ato, existe alguma
pessoa que é injustamente prejudicada. Eu reconheço que esse é um tipo
incomum de direito, mas vir à existência é um caso incomum. Se alguém
pudesse entender tal direito, então não poderia ser usado como objeção ao
argumento de que uma pessoa é injustamente prejudicada a afirmação de que
não havia nenhum direito de não ter sido prejudicada.
Aqueles que concordam que não há nenhum obstáculo lógico para um
direito de não ser criado podem ainda argumentar que o caso do benefício puro
falha em dar suporte à (não qualificada) assimetria que Sean Shiffrin quer
defender. Isso se deve ao fato de que há dois tipos de casos de puro benefício
(os quais ela não distingue). Primeiro, há aqueles envolvendo seres autônomos.
52

Eles possuem o direito de não serem prejudicados sem seu consentimento,


mesmo que seja para o benefício deles. Segundo, há aqueles envolvendo seres
não-autônomos. Embora eles pudessem (logicamente) também ter um direito
desse tipo, poderia ser plausivelmente argumentado que eles (moralmente) não
possuem um direito assim. Embora haja limites nos prejuízos que os pais e mães
podem infligir à um filho pelo bem do filho, há certamente casos onde os
melhores interesses da criança (considerando os benefícios e prejuízos) podem
assegurar a imposição de um prejuízo. Defensores da procriação podem
argumentar que embora nós não possamos infligir um prejuízo a um ser
autônomo sem seu consentimento mesmo que seja para garantir um benefício
maior para ele, nós às vezes podemos fazer o contrário no caso das crianças e,
em consequência, das crianças em potencial. É em resposta à tal criticismo que
se torna útil para Sean Shiffrin apelar à minha assimetria ou, como ela
implicitamente faz, ao menos à parte dela. Ao negar que os melhores interesses
de uma pessoa podem ser atendidos ao ser, essa pessoa, trazida à existência,
ela pode mostrar a distinção entre crianças e crianças em potencial, e, portanto,
afastar a objeção paternalista de que os pais podem infligir os prejuízos da vida
à criança em potencial pelo bem da criança. Eu argumentei que fazer pessoas
em potencial se tornarem reais não está no interesse delas.
O argumento de Christoph Fehige é discutivelmente ainda mais próximo
do meu do que o de Seana Shiffrin. Ele defende e então ordena em detalhes as
implicações de uma visão que ele chama de “antifrustracionismo” (mas que as
vezes é chamado de forma que parece ser seu oposto – “frustracionismo”). De
acordo com essa visão, uma preferência satisfeita e nenhuma preferência são
igualmente boas. Apenas uma preferência não satisfeita é ruim. Em outras
palavras, ele argumenta que embora seja bom ter satisfeito seja lá o desejo que
alguém possa ter, uma pessoa não está em melhor condição tendo um desejo
satisfeito do que não tendo nenhum desejo. Para dar um exemplo, considere um
caso no qual nós “pintamos de vermelho a árvore próxima à casa de Ópera de
Sidnei e damos à Catarina uma pílula que faz ela desejar que a árvore perto da
casa de Ópera de Sidnei fosse vermelha”. O professor Fehige plausivelmente
nega que nós fazemos qualquer favor ao agir dessa maneira. Ela não está
melhor do que estaria caso nós não tivéssemos feito nada. O que importa não é
se as pessoas possuem desejos satisfeitos, mas que elas não possuam desejos
53

insatisfeitos. É o evitar da frustração que é importante. Existe uma assimetria


escondida aqui, conforme mostra a Figura 2.7.

Figura 2.7

Cenário A Cenário B

Preferência existe Preferência não existe

(1)

Insatisfeita

( Ruim )

Bom
(2)

Satisfeita

( Bom )

O antifrustracionismo implica que seria melhor não criar pessoas. As


preferências satisfeitas das pessoas não serão melhores do que a ausência de
suas preferências caso elas não viessem à existência. Entretanto, as suas
preferências insatisfeitas – as quais serão muitas – são piores do que a ausência
de suas preferências no caso de que nunca tivessem sido procriadas. (1) é pior
do que B, mas (2) não é melhor do que B.
Nós podemos adaptar a Figura 2.7 para mostrar mais claramente sua
relação com a assimetria que eu tenho defendido (veja a Figura 2.8).
54

Figura 2.8

Cenário A Cenário B

( X existe ) ( X nunca existe )

(1) (3)

Preferência Ausência de
insatisfeita preferência que teria
sido insatisfeita (em
( Ruim ) A)

( Bom )

(2) (4)

Preferência satisfeita Ausência de


preferência que teria
( Bom ) sido satisfeita (em A)

( Bom )

Nessa adaptação, eu tomei a liberdade de fazer uma diferenciação entre


(3) e (4), mesmo embora o professor Fehige não faça isso. Ele trata todas as
preferências ausentes da mesma maneira. Entretanto, não parece que essa
diferenciação é incompatível com o argumento dele. Eu também rotulei (2), (3) e
(4) como “bom”. Isso porque o professor Fehige diz que preferências ausentes e
preferências satisfeitas são “igualmente boas”. Se essa é a correta leitura do
professor Fehige, então sua assimetria é um pouco diferente da minha, mesmo
55

embora ela produza o mesmo resultado – que o Cenário A é pior que o Cenário
B.
Entretanto, pode haver outras maneiras de ler o texto dele. Quando ele
diz que (2) e o Cenário B são “igualmente bons”, pode ser que ele não queira
descrever (3) e (4) como bons. Ele pode querer dizer apenas que (2) não é
melhor que o Cenário B. Isso é exatamente o que eu quero dizer quando eu
descrevo (4) na Figura 2.1 como “não ruim”. Eu quis dizer que não era pior que
(2). O problema em descrever (4) na Figura 2.8 como “não ruim” é que porque o
professor Fehige parece tratar (3) e (4) como equivalentes, (3) também teria de
ser rotulado como “não ruim”. Se “não ruim” em (3) significasse o mesmo que
em (4) – ou seja, “não pior” – então (3) não seria pior que (1). Entretanto, isso
parece fraco demais, como eu indiquei anteriormente. (3) é melhor que (1). A
alternativa, então, é postular que se o professor Fehige diferenciasse (3) e (4)
ele os entenderia diferenciadamente. Ele pode entender “não ruim” como
significando algo diferente no terceiro e quarto quadrantes da figura 2.8. Em (3),
significaria melhor do que (1); enquanto que em (4), significaria “não pior” do que
(2). Nessa leitura, nós podemos rotular (3) como “bom”, porque “bom” é
(suficientemente) melhor do que “ruim”. Dessa maneira, a assimetria de
Christoph Fehige poderia ser interpretada da mesma maneira que a minha.
Seja lá qual das duas leituras alguém venha a adotar, (3) é melhor do que
(1), e (4) não é pior do que (2). O mesmo é verdade na Figura 2.1. Em ambas,
vir à existência (Cenário A) é pior do que nunca vir à existência (Cenário B).

2.2.2 CONTRA NÃO LAMENTAR A EXISTÊNCIA DE ALGUÉM

Aqueles que pensam (como Alfred Lord Tennyson) que é melhor ter
amado e perdido do que nunca ter amado podem imaginar que eles podem
aplicar semelhante raciocínio ao caso de vir à existência. Eles podem querer
dizer que é melhor ter existido e perdido (tanto pelo sofrimento que há na vida
quanto por deixar existir depois) do que nunca ter existido. Eu não irei julgar se
de fato é melhor ter amado e perdido do que nunca ter amado. É suficiente dizer
que mesmo se essa afirmação for verdade, ela não traz nenhuma implicação
acerca de vir à existência. Isso porque há uma diferença crucial entre amar e vir
à existência. A pessoa que nunca ama existe sem amar e, por isso, é privada do
56

amor. Isso, no meu ver, é “ruim”. (Se isso é pior do que amar e perder é uma
outra questão). Em contraste, alguém que nunca vem à existência não sofre
privação de nada. Isso, eu tenho argumentado, é “não ruim”.
Dizer que vir à existência é um prejuízo é uma conclusão difícil para
muitas pessoas engolirem. Muitas pessoas não lamentam suas próprias
existências. Muitas são felizes em ter vindo à existência, porque elas desfrutam
suas vidas. Mas essas avaliações são erradas precisamente por causa das
razões que eu tenho traçado. O fato que uma pessoa desfruta de sua própria
vida não faz com que a existência de tal pessoa seja melhor que a não-
existência, porque se essa pessoa não tivesse vindo à existência, então não
haveria ninguém para ter sentido falta da alegria que teria sido conduzir essa
vida e, portanto, a ausência da alegria não seria ruim. Note, em contraste, que
faz sentido lamentar ter vindo à existência se uma pessoa não desfruta de sua
vida. Nesse caso, se uma pessoa não tivesse vindo à existência, então ninguém
teria sofrido a vida que essa pessoa leva. Isso é bom, mesmo embora não
haveria ninguém que teria desfrutado desse bem.
Nesse momento, pode ser objetado que uma pessoa não pode estar
errada sobre se sua existência é preferível à não-existência. Pode ser dito que
assim como uma pessoa não pode estar errada sobre se está ou não sentindo
dor, da mesma forma uma pessoa não pode estar errada sobre se ela está feliz
em ter nascido. Portanto, se “eu estou feliz por ter nascido”, uma afirmação com
a qual muitos concordariam, é equivalente à “é melhor ter vindo à existência”,
então uma pessoa não pode estar errada acerca se a existência é melhor do que
a não-existência. O problema com essa linha de raciocínio é que essas duas
proposições não são equivalentes. Mesmo se uma pessoa não possa estar
errada sobre se ela está atualmente feliz em ter nascido, não se conclui disso
que uma pessoa não pode estar errada sobre se é melhor ter vindo à existência.
Nós podemos imaginar alguém estando feliz, em um estágio de sua vida, por ter
vindo à existência, e depois (ou antes), talvez no meio de uma extrema agonia,
lamentar ter vindo à existência. Nesse caso, não se pode dizer que
(considerando-se a vida toda dessa pessoa imaginária) seja ao mesmo tempo
melhor ter vindo à existência e melhor nunca ter vindo à existência. Porém, é
exatamente o que teríamos que afirmar se fosse verdade que estar feliz ou infeliz
de ter vindo à existência é equivalente à de fato ser melhor ou pior que uma
57

pessoa tenha vindo à existência. Isso é verdadeiro mesmo naqueles casos onde
as pessoas não mudam suas mentes sobre se elas estão felizes por terem
nascido. O porquê de tão poucas pessoas mudarem suas mentes é explicado,
ao menos em parte, por que as pessoas erroneamente enxergam a qualidade
de suas vidas em cor-de-rosa. No capítulo a seguir, eu mostro que (com exceção
de verdadeiros pessimistas, os quais podem ter uma visão mais acurada sobre
quão ruim suas vidas são) a vida das pessoas é muito pior do que elas pensam.

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