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David Benatar
(Capítulos 1 e 2 em português)
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Traduzido de:
BENATAR, David. Better never to have been: The harm of coming into
existence. Oxford: Oxford University Press, 2006.
Meu único objetivo ao traduzir esse livro é possibilitar aos falantes de língua
portuguesa que não sabem inglês ler esse livro e aprender sobre o
antinatalismo, movimento social do qual eu faço parte e apoio.
Não possuo quaisquer direitos autorais sobre o conteúdo desse livro, e essa
tradução independente não está à venda e não pode ser vendida, por isso eu a
disponibilizo sem custo algum.
PREFÁCIO
1 INTRODUÇÃO
“A vida é tão terrível, que teria sido melhor nunca ter nascido. Quem é tão
sortudo assim? Nem sequer um em um milhão”.
- Ditado judeu.
para aqueles que rejeitam o ponto de vista principal pelo qual eu argumento
neste livro – o de que ninguém nunca beneficia seu filho ao trazê-lo à existência,
mas, pelo contrário, o prejudica.
Meu argumento se aplica não apenas aos humanos, mas também a todos
os outros seres sencientes. Tais seres não simplesmente existem. Eles existem
de uma forma em que há algo como uma sensação de existir. Em outras
palavras, eles não são meros objetos, mas são também sujeitos. Embora a
senciência seja um desenvolvimento evolucionário tardio e seja um estado de
existir mais complexo que a não-senciência, é mais do que certo que a não-
senciência é um melhor estado de existência. Isso se deve ao fato de que a
existência senciente vem com um custo elevado. Por serem capazes de
experienciar, os seres sencientes são capazes também de experienciar o
desagradável e de provocar experiências desagradáveis.
Embora eu acredite que vir a existência seja prejudicial a todos os seres
sencientes e às vezes eu irei falar sobre todos os seres, meu foco será sobre os
humanos. Há algumas razões para esse foco, além da simples conveniência. A
primeira é que as pessoas acham mais difícil de aceitar a conclusão dos
argumentos quando aplicada a elas mesmas. O foco nos humanos, ao invés de
em toda a vida senciente, reforça a aplicação da conclusão dos argumentos nos
humanos. A segunda razão é que, com uma exceção, o argumento encontra seu
sentido mais prático quando aplicado aos humanos, porque nós podemos agir
com base nesse argumento ao decidirmos por desistir (ou renunciar) de produzir
novos bebês. A exceção nesse caso é reprodução animal pelos humanos1, a
1
Eu trato isso como uma exceção, porque os humanos trabalham na reprodução apenas de uma
pequena porção de todas as espécies de animais sencientes. Embora seja um caso excepcional, tem
grande importância, visto a quantidade de males infligidos a estes animais que os homens reproduzem
para servirem de alimento ou outras commodities, e por isso é digno de uma breve discussão neste
momento. Um argumento particularmente pobre em defesa de comer carne é o de que se os humanos
não comessem os animais, estes animais não teriam sido trazidos à existência para começo de história.
Os humanos simplesmente não teriam reproduzido esses animais na mesma quantidade que o fazem.
Essa afirmação é a de que embora esses animais sejam mortos, esse preço que eles têm a pagar é
sobrepujado ou superado pelo benefício que lhes foi concedido de terem sido trazidos à existência. Esse
é um argumento péssimo por várias razões (algumas das quais são destacadas por Robert Nozick. Veja
seu “Anarchy, State and Utopia”). Primeiro, a vida de muitos desses animais é tão ruim que mesmo que
uma pessoa rejeite meu argumento ela ainda teria que concordar que tais animais foram prejudicados
por terem sido trazidos à existência. Segundamente, aqueles que avançam esse argumento falham em
notar que ele poderia ser aplicado facilmente à bebês humanos reproduzidos apenas para servirem de
alimento. Aqui, nós podemos verificar que ser trazido à existência apenas para ser morto e comido não
é benefício nenhum. É apenas porque matar animais é aceitável em nossa sociedade que há quem ache
que esse argumento tenha alguma força. De fato, isso não ajuda em nada a visão (errônea) de que
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qual também poderíamos desistir (ou renunciar) de fazer. Uma terceira razão
para focar nos humanos é que os humanos que não desistem (ou renunciam) de
reproduzir novos filhos causam sofrimento para aqueles que eles costumam se
importar mais, a saber: os seus próprios filhos. Isso pode tornar as questões
mais vívidas para eles do que seria de outra maneira.
Uma versão do ponto de vista que eu defendo neste livro acaba sendo
tomada no âmbito do humor:
“A vida é tão terrível, que teria sido melhor nunca ter nascido. Quem é tão
sortudo assim? Nem sequer um em um milhão.”
Sigmund Freud descreve esse gracejo como uma “piada sem sentido”, o
que levanta a questão de se meu ponto de vista também seria sem sentido. É
pura baboseira dizer que vir à existência é um prejuízo e por isso teria sido
melhor nunca ter vindo à existência? Muitas pessoas acham que é. Boa parte do
argumento trazido no capítulo 2 mostrará que eles estão equivocados. Mas,
primeiro, algumas devemos deixar alguns fundamentos livres de confusão.
Dr. Freud diz que qualquer pessoa “que não nasce não é um homem
mortal, e não há nem bom e nem melhor para essa pessoa não-nascida.” Aqui,
Dr. Freud antecipa um aspecto do que é chamado de problema da “não-
identidade”, o qual eu discutirei em detalhes no capítulo 2. Alguns filósofos
contemporâneos oferecem uma objeção similar quando eles negam que alguém
poderia estar melhor se não tivesse nascido. Para eles, o não-existente não pode
se beneficiar e não pode estar numa condição melhor.
Eu não irei afirmar que os não-existentes estão literalmente em melhores
condições. Ao invés disso, eu devo argumentar que vir à existência é sempre
ruim para aqueles que vem à existência. Em outras palavras, embora nós não
matar animais para comê-los é aceitável. Por fim, o argumento de que animais são beneficiados por
serem trazidos à existência apenas para serem mortos ignora o argumento que desenvolverei nos
capítulos 2 e 3 – o de que vir à existência é sempre um prejuízo significativo, independentemente de
quanto o animal vai sofrer.
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possamos dizer dos não-existentes que não existir é bom para eles, nós
podemos dizer dos existentes que a existência é ruim para eles. Não existe nada
de absurdo nisso, ou assim eu devo argumentar.
Uma vez que tivermos reconhecido que vir à existência pode ser
prejudicial, nós poderemos então falar livremente que nunca vir à existência é
algo “melhor”. Isso não significa dizer que é melhor para o não-existente, nem
que os não-existentes se beneficiam da não-existência. Eu até concordo que é
um pouco estranho falar dos “não-existentes”, porque esse termo não se refere
a nada que exista. Obviamente, não existe nenhuma pessoa “não-existente”.
Porém, esse termo é conveniente, e faz sentido para nós. Ao usar esse termo,
nós queremos nos referir àquelas possíveis pessoas que nunca se tornam reais.
Com isso em mente, considere aquele gracejo novamente. Ele pode ser
visto como fazendo duas afirmações: (1) que é melhor não nascer; e (2) que
ninguém é sortudo o bastante para não nascer. Agora, nós percebemos que há
um sentido (afrouxado) no qual alguém pode dizer que é melhor não nascer. É
uma forma indireta de dizer que vir à existência é sempre um prejuízo. E não há
nada de sem sentido em afirmar que ninguém é sortudo o bastante para nunca
ter nascido, embora seria sem sentido (mas divertido) afirmar que algumas
pessoas são sortudas o bastante para nunca terem nascido.
De qualquer modo, o fato de que alguém pode inventar uma piada acerca
do ponto de vista de que vir à existência é sempre um prejuízo, isso não quer
dizer que tal ponto de vista seja um absurdo digno de riso. Embora nós
possamos rir do que é estúpido, nós podemos rir também de questões sérias. É
nessa segunda categoria que eu coloco as piadas sobre o prejuízo que é vir à
existência. Porém, de maneira alguma deve-se pensar que os argumentos que
eu desenvolvo têm a intenção de serem meros jogos filosóficos ou piadas. Eu
devo enfatizar que eu sou completamente sério quanto aos argumentos que aqui
exponho e acredito nas conclusões que esses argumentos trazem.
Eu tenho muita seriedade ao tratar desses assuntos, pois o que se
encontra na balança é a presença ou ausência de grandes quantidades de dor
e sofrimento. Eu irei mostrar no capítulo 3 que a vida contém uma grande
quantidade de males – muito mais do que as pessoas costumam pensar. A única
forma de garantir que futuras pessoas em potencial (ou futuras possíveis
pessoas) não sofrerão esses males é garantindo que essas possíveis pessoas
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nunca se tornem uma pessoa real. Não somente todos esses males são
prontamente evitáveis, mas são também inerentemente sem sentido (ao menos
se nós considerarmos somente os interesses da pessoa em potencial e não os
interesses que outros podem ter nessa pessoa vir à existência). Eu mostrarei, no
capítulo 2, que as características positivas da vida, embora sejam boas para
aqueles que já existem, não justificam as características negativas que as
acompanham. A ausência das coisas boas da vida não seria uma privação para
aqueles que nunca vieram a existir.
É curioso que enquanto as pessoas boas sejam capazes de grandes
esforços para livrar seus filhos do sofrimento, poucas delas parecem notar que
única forma garantida de prevenir todo o sofrimento que seus filhos possam ter
é não trazendo esses filhos à existência em primeiro lugar2. Há muitas razões
pelas quais as pessoas não notam isso, ou porque, se elas notam isso, elas não
agem conforme essa percepção; entretanto, os interesses da criança em
potencial não estão entre essas razões, como eu irei argumentar.
O prejuízo causado pela criação de uma nova criança não se restringe
apenas à criança, normalmente. A criança logo se verá motivada a procriar
também, produzindo mais crianças que, por sua vez, desenvolverão o mesmo
desejo. Deste modo, qualquer casal de procriadores pode enxergar a si mesmos
como ocupando a ponta de um iceberg geracional de sofrimento. Eles
experienciam o mal em suas próprias vidas. No curso comum dos eventos, eles
experienciarão somente uma parte do mal na vida de seus filhos e possivelmente
na vida de seus netos (porque os descentes normalmente vivem anos mais após
a morte de seus progenitores), mas debaixo da superfície das atuais gerações
espreita um número crescentemente maior de descendentes e de seus
infortúnios. Pensando que cada casal tenha três filhos, os descendentes de um
casal, passadas dez gerações, somarão 88.572 pessoas. Isso constitui uma
grande quantidade de sofrimento sem sentido e evitável. A responsabilidade por
toda essa descendência não recai apenas sobre o casal original, pois cada nova
2
Rivka Weingberg faz uma afirmação similar quando ela diz que “muitos pais que estão prontos a fazer
grandes sacrifícios pelos seus filhos terrivelmente doentes podem nunca levar em consideração que o
sacrifício mais importante que eles devem fazer é não criar essas crianças terrivelmente doentes em
primeiro lugar.” (Proceative Justice: A contractualist account. Public Affairs Quaterly, 2002). Seu ponto
de vista é mais restrito que o meu, pois ela o aplica apenas às crianças terrivelmente doentes, enquanto
eu aplico a todas as crianças.
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Às vezes, essa pressuposição é perceptível pelo uso da palavra “já”, como em “Você já teve filhos?”.
Essa pressuposição normalmente não se estende aos homossexuais (tanto masculinos quanto
femininos) que não têm filhos, embora os homossexuais, tenham eles filhos ou não, são
frequentemente vítimas de uma censura ainda mais cruel. Eles frequentemente são tidos como
pervertidos ou repugnantes ao invés de atrasados ou egoístas.
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não ter um filho e ter o autocontrole de seguir com esse pensamento e atitude é
um sinal de maturidade e não de imaturidade. Há demasiadas crianças que ainda
estão na puberdade e que já possuem filhos sem estarem adequadamente
preparadas para cria-los. Segundo, e este é um ponto relacionado: de uma
perspectiva filogenética, o impulso de procriar é extremamente primitivo. Se
“atrasado” for entendido como “primitivo”, logo é a procriação que é atrasada, e
a não-procriação racionalmente motivada que é evolutivamente mais recente e
avançada.
Embora a não-procriação seja algumas vezes, como eu indiquei acima,
motivada por preocupações egoístas, não é preciso que seja sempre assim.
Quando as pessoas se abstêm de procriar na intenção de evitar infligir a outros
o prejuízo que é vir à existência, suas motivações são altruísticas e não egoístas.
Além disso, qualquer motivação conscientemente altruística de ter filhos é
inteiramente equivocada quando se supõe que os beneficiários disso serão os
filhos que irão nascer, e, como eu argumentarei, são inapropriadas quando se
tem a intenção de pôr novas crianças no mundo para beneficiar outras crianças
ou o Estado.
Em algumas sociedades, há considerável pressão dos pares ou outros
tipos de pressões sociais para se produzir bebês, e algumas vezes para se
produzir tantos bebês quanto forem possíveis. Isso pode ocorrer mesmo quando
os pais não possuem a capacidade de cuidar adequadamente da grande
quantidade de filhos que estão produzindo.
Tais pressões nem sempre são informais. Não raramente, os governos
intervêm, particularmente, mas não somente, quando as taxas de natalidade
declinam, com o propósito de encorajar as pessoas a fazerem mais bebês. Isso
é verdade mesmo onde a população de referência já é alta e a preocupação é
apenas com a taxa de natalidade caindo abaixo daquela de reposição
populacional. Por exemplo, no Japão, havia a preocupação de que a taxa de
natalidade em 1.33 crianças iria reduzir a população de 127 milhões de pessoas
para 101 milhões em 2050 e para 64 milhões em 2100. O governo japonês tomou
uma atitude. Eles lançaram o “Plus One Plan” (Plano Mais Um), com o objetivo
de persuadir casais de cônjuges a ter um filho extra, e estabeleceram as sedes
da “Anti Low Birthrate Measures Promotion” (Promoção de Medidas Contra as
Baixas Taxas de Natalidade) para coordenar o plano. Uma das propostas em
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Nem todos os leitores terão vontade ou tempo de ler o livro inteiro, por
isso eu ofereço algumas dicas para ajudar a priorizar o que se acha necessário
ler. Os capítulos mais importantes são o capítulo 2 (e mais especificamente a
seção intitulada “Porque vir à existência é sempre um prejuízo” e o capítulo 3. A
seção de abertura do capítulo de conclusão, o capítulo 7, também é importante
para aqueles que pensam que minhas conclusões deveriam ser rejeitadas por
serem profundamente contra-intuitivas.
Os capítulos 4, 5 e 6, todos eles pressupõem as conclusões trazidas nos
capítulos 2 e 3, e por não podem ser lidos lucrativamente sem os capítulos
anteriores em mente. Enquanto que o capítulo 5 não se baseia no capítulo 4, o
capítulo 6 pressupõe as conclusões do capítulo 4 (mas não as conclusões do
capítulo 5). Essa ordenação lógica dos capítulos se aproxima de uma outra
ordenação. O capítulo 2 traz as “más notícias”; o capítulo 3 traz “notícias piores
19
4
Nota do tradutor: O autor usou “Always”.
5
Nota do tradutor: O autor usou “ever”.
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considera-se que é impossível trazer tal pessoa à existência sem a condição que
se considera ser prejudicial. Isso pode ocorrer, por exemplo, quando futuros pais
carregam desordens genéticas graves, as quais, por alguma razão, serão
transmitidas aos descendentes. A escolha está entre, de um lado, trazer a
criança à existência com deficiências e, de outro, não trazer a criança à
existência de maneira nenhuma. Em outras ocasiões, a deficiência não seria
atribuível à constituição da pessoa, seja genética ou qualquer outra, mas ao
ambiente em que a pessoa estará inserida. Esse é o caso, por exemplo, da
garota de quatorze anos que têm um bebê, mas que, por causa da sua jovem
idade, é incapaz de garantir oportunidades e condições adequadas ao seu filho.
Se essa jovem menina tiver um filho quando ela for mais velha e mais capaz de
cuidar da criança, seu filho não será o mesmo que poderia ter sido caso ela
engravidasse na pré-adolescência (pois seu filho seria formado por diferentes
gametas). Desse modo, a alternativa que existe fora trazer uma criança
socialmente comprometida à existência sob os cuidados de uma mãe de
quatorze anos é não trazer a criança à existência de forma alguma, independente
se ela terá um filho no futuro.
Enquanto que a afirmação de que vir à existência é sempre um prejuízo
vai contra a pensamento da maioria das pessoas (mas não de todas elas), a
afirmação de que vir à existência nos casos que eu citei é um prejuízo está em
sintonia com o senso comum. Apesar disso, muitos juristas e filósofos pensam,
por motivos que ainda explicarei, que existe um obstáculo lógico em afirmar que
as pessoas cujas limitações e deficiências são inseparáveis de suas existências
são prejudicas por terem sido trazidas à existência com limitações e deficiências.
2.1.1 VIDAS QUE VALEM A PENA SER VIVIDAS E VIDAS QUE NÃO VALEM
A PENA SER VIVIDAS
dizer que ela prefere não mais “ser”, não mais “existir”, do que continuar vivendo
na condição em que vive. Ela determinou que sua vida não vale a pena ser vivida
– que não vale a pena continuar existindo. Assim como a vida pode ser tão ruim
que deixar de existir é preferível, do mesmo modo a vida pode ser tão ruim que
nunca sequer vir à existência é preferível. Comparar a existência de alguém com
sua não-existência não é comparar duas condições possíveis da pessoa. Na
verdade, é comparar sua existência com um estado alternativo de coisas no qual
esse alguém não existe.
Tem sido pensado geralmente que aqueles casos onde as deficiências,
embora graves, não são tão ruins que façam a vida não valer a pena de ser vivida
são mais difíceis que os quais em que as deficiências são tão grandes que fazem
a vida não valer a pena. Tem sido dito que porque os primeiros casos, por
definição, são casos de vidas que valem a pena ser vividas, ninguém pode
afirmar que nunca existir é preferível a existir em uma vida em tais condições de
deficiências. A força desse argumento, entretanto, se baseia numa ambiguidade
crucial presente na expressão “uma vida que vale a pena ser vivida” – uma
ambiguidade que eu irei examinar.
2.1.2 Vidas que valem a pena ser iniciadas e vidas que valem a pena ser
continuadas
A expressão “uma vida que vale a pena ser vivida” tem uma ambiguidade
entre “uma vida que vale a pena ser continuada” – vamos chamar isso de “o
sentido da vida-presente” – e uma “vida que vale a pena ser iniciada” – vamos
chamar isso de “o sentido da vida-futura”. “Uma vida que vale a pena ser
continuada”, assim como “uma vida que não vale a pena ser continuada”, ambos
são julgamentos que alguém pode fazer sobre uma pessoa que já existe no
mundo. “Uma vida que vale a pena ser iniciada”, assim como “uma vida que não
vale a pena ser iniciada”, ambos são julgamentos que alguém pode fazer sobre
uma pessoa em potencial, mas não-existente. O problema é que muitas pessoas
têm empregado o sentido da vida-presente e o aplicado para casos da vida-
futura, os quais são bastante diferentes. Quando eles diferenciam entre
deficiências que fazem a vida não valer a pena ser vivida e deficiência que,
embora graves, não são tão ruins ao ponto de fazer a vida não valer a pena ser
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vivida, eles estão fazendo esses julgamentos nos casos da vida-presente. Essas
vidas que não valem a pena ser vividas são aquelas que não vale a pena ser
continuadas. Similarmente, aquelas vidas que valem a pena ser vividas são
aquelas que valem a pena ser continuadas. Mas o problema é que essas
mesmas noções são aplicadas equivocadamente aos casos da vida-futura.
Desse modo, somos levados a fazer julgamentos sobre os casos da vida-futura
pelos padrões dos casos da vida-presente.
Apesar disso, padrões bastante diferentes se aplicam nos dois tipos de
casos. O julgamento de que uma deficiência é tão ruim que faz a vida não valer
a pena ser continuada normalmente é feito em um limiar muito mais alto do que
o julgamento de que uma deficiência é suficientemente ruim para fazer a vida
não valer a pena ser iniciada. Ou seja, se uma vida não vale a pena ser
continuada, conclui-se que ela não vale a pena ser iniciada. Isso não permite
pensar, entretanto, que se uma vida vale a pena ser continuada ela também vale
a pena ser iniciada ou que se uma vida não vale a pena ser iniciada ela também
não vale a pena ser continuada. Por exemplo, enquanto que muitas pessoas
acham que viver uma vida sem um dos membros do corpo não torna a vida tão
ruim ao ponto de fazer valer a pena acabar com a vida, a maioria das pessoas
também pensa que é melhor não trazer à existência alguém que tem a falta de
um membro do corpo. Nós exigimos uma justificativa muito mais forte para findar
uma vida do que para não dar início a uma vida.
Agora, estamos numa posição de entender como pode ser preferível não
iniciar uma vida que vale a pena ser vivida. A aparência paradoxal dessa
perspectiva está no entendimento de “uma vida que vale a pena ser vivida” no
sentido da vida-futura. Claramente, seria estranho afirmar que é preferível não
iniciar uma vida que vale a pena ser iniciada. Entretanto, o sentido da vida-futura
não é o sentido relevante nesse contexto, pois estamos considerando o contraste
à vida que não vale a pena continuar – ou seja, estamos considerando a vida
que vale a pena ser continuada. Não há nada paradoxal acerca da afirmação de
que é preferível não iniciar uma vida que valeria a pena ser continuada.
Meu argumento até aqui se baseia na visão de que há uma distinção
moralmente importante entre os casos da vida-futura e os casos da vida-
presente. Há algumas linhas de argumentos que ameaçam diminuir a
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pessoas não julguem apropriada essa conduta para crianças que não são recém-
nascidas ou para adultos que possuam as mesmas deficiências. Aqueles que
existem (no sentido moralmente relevante) possuem interesses na existência.
Esses interesses, uma vez totalmente desenvolvidos, são normalmente muito
fortes e por isso, quando houver um conflito, os interesses em existir prevalecem
sobre os interesses em não ficar deficiente. Entretanto, onde não há interesses
na existência ou onde esses interesses são muito fracos, provocar deficiências
(ao trazer pessoas deficiências à existência) não pode ser justificado pela
proteção aos interesses na existência. O escopo dos seres sem interesses na
existência ou com interesses muito fracos na existência ainda são
problematizados. (O escopo desses seres incluiria embriões, zigotos, bebês?).
No capítulo 5, eu argumento que ao menos os zigotos, embriões e fetos até bem
tarde na gestação não começaram a existir num sentido moralmente relevante,
e digo também que vir à existência num sentido moralmente relevante é um
processo gradual.
Esses pensamentos enfraquecem a noção que há um estágio “logo após
a pessoa ter vindo à existência” (no sentido moralmente relevante de “vir à
existência”). Se nós enxergarmos o vir a existência (no sentido moralmente
relevante) como o processo extenso que ele é, então nós estaremos mais
inclinados a permitir sacrifícios cada vez maiores com o objetivo de salvar a vida
de um ser vivo na medida em que o interesse do ser vivo na existência também
se desenvolve. O contraste entre iniciar uma vida e salvar uma vida logo após
ela ter iniciada desaparece. Se torna cada vez menos plausível fazer uma
dedução a partir do caso de salvar uma vida após ela ter sido iniciada para o
caso de começar uma vida, uma vez que tais casos são vistos como estando
distantes um do outro.
Alguns podem pensar que a visão gradualista acerca de vir à existência
enfraquece a distinção que faço entre casos da vida-futura e casos da vida-
presente. Entretanto, isso não é verdade. Dizer que a distinção entre os dois
casos é gradual não significa esvaziar o sentido dessa distinção. Nada do que
eu disse exclui a possibilidade de um meio-campo ligando os dois tipos de casos.
O sentido moral da distinção também não é comprometido conquanto não se
rejeite, como eu não rejeito, uma sensibilidade moral ao gradualismo do
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continuum que liga óbvios casos da vida-futura com óbvios casos da vida-
presente.
Uma outra ameaça possível contra a distinção entre casos da vida
presente e casos da vida-futura vem de uma linha de raciocínio construída por
Joel Feinberg. Ele sugere, como eu indiquei anteriormente, que nós entendemos
a afirmação que uma pessoa estaria melhor se não tivesse vindo à existência
como equivalente a dizer que a não-existência desse ser seria preferível. Essa
afirmação, ele defende corretamente, não sofre nenhuma dificuldade lógica.
Entretanto, ele prossegue para desenvolver uma consideração sobre quando é
preferível não vir à existência, de modo que, em quase todos os casos, a não-
existência não pode ser tida como preferível. Ele pega julgamentos proferidos
por adultos competentes e por crianças mais velhas e maduras de que seria
melhor que elas nunca tivessem existido, e os distingue de julgamentos
parecidos feitos por procuradores em nome daqueles que estão tão debilitados
que já não podem fazer julgamentos por si próprios. No caso dos extremamente
debilitados, Feinberg pensa, é insuficiente que o julgamento de que a não-
existência é preferível seja consistente com a razão. Para o autor, tal julgamento
deve ser ditado ou exigido pela razão. Ele acha que esses requisitos são
atendidos apenas por pouquíssimas condições incapacitantes – aquelas onde a
morte é preferível. No caso de seres competentes que fazem o julgamento de
que nunca ter existido seria preferível, ele diz que isso é meramente consistente
com a razão (ou seja, não é irracional). Embora é muito mais fácil para um
julgamento satisfazer a condição de ser consistente com a razão, é um fato da
psicologia humana que muito raramente as pessoas – mesmo aquelas
enfrentando dificuldades consideráveis – preferem nunca ter existido. O
resultado é que na visão do Professor Feinberg, a maioria dos seres que são
trazidos à existência com deficiências e incapacidades graves, mas não tão
graves ao ponto de fazer vale a pena acabar com a vida, não podem ser tidos
como sendo prejudicados. Uma pessoa só pode ser tida como prejudicada se
tivesse sido preferível que ela nunca tivesse vindo à existência, e, na
interpretação de Feinberg, essa exigência só é atendida muito raramente.
A razão pela qual a perspectiva de Feinberg conflita com minha distinção
entre casos da vida-presente e casos da vida-futura está implícita na exigência
de que façamos julgamentos acerca da vida-futura pelas lentes dos casos da
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vida-presente. Para ele, a vida tem que ser tão ruim que não valeria a pena ser
continuada – esse seria o modelo para decisões feitas por procuradores no caso
de pessoas não competentes para decidir – ou teria de ser o caso que as
pessoas já existentes e com debilidades desejassem nunca ter vindo à existência
– esse seria o modelo para aqueles cujas debilidades não impedem sua
competência para decidir (retrospectivamente!) por si próprios.
Entretanto, é precisamente porque a consideração do Professor Feinberg
requer que adotemos a perspectiva de pessoas já existentes que ela é
inadequada. Ao se considerar se a vida vale a pena ser iniciada, não deveríamos
considerar se vale ou não a pena que ela seja continuada. Nem muito menos
nós deveríamos apelar às preferências de pessoas já existentes sobre suas
próprias vidas para fazermos julgamentos sobre as vidas futuras. Como eu
mostrarei na segunda seção do próximo capítulo, auto-afirmações da qualidade
de vida de alguém não são confiáveis.
Embora eu rejeite a consideração do Professor Feinberg sobre quando é
preferível não vir à existência, eu concordo que nós podemos entender a noção
de prejudicar alguém por trazê-lo à existência nos termos da preferência que há
entre existir ou nunca ter existido. Ou seja, uma pessoa prejudica a outra por
trazê-la a existência se sua existência é tal que nunca ter existido seria preferível.
De maneira parecida, uma pessoa não é prejudicada por ter sido trazida à
existência se sua existência é tal que é preferível ao invés de nunca ter existido.
A questão a qual nós temos que voltar nossos olhares, então, é: “Quando nunca
ter existido é preferível?” Em outras palavras: “Quando vir à existência é um
prejuízo?” Ou ainda, podemos indagar: “Quando vir à existência é ruim enquanto
que nunca vir à existência não é ruim?” A resposta, eu argumentarei, é “Sempre”.
e que
(3) a ausência de dor é boa, mesmo se esse bem não por desfrutado por
ninguém,
enquanto que
6O termo “não existência” possui múltiplas ambiguidades. Ele pode ser aplicado
àqueles que nunca existem e aqueles não existem atualmente. Esses últimos podem
ser divididos entre os que ainda não existem e os que já não mais existem. No
contexto atual, eu uso a palavra “não-existência” para me referir àqueles que nunca
existem. Joel Feinberg argumentou que os que ainda não existem e os que já não mais
existem podem ser prejudicados. Eu concordo nesse ponto. O que eu tenho a dizer
aqui se aplica apenas aos nunca existentes.
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(4) a ausência do prazer não é ruim ao menos que exista alguém para
quem essa ausência seja uma privação.
Pode ser indagado como a ausência de dor poderia ser boa se esse bem
não é desfrutado por ninguém. A ausência de dor, pode ser dito, não pode ser
boa para alguém, se ninguém existe para quem essa ausência de dor seja boa.
Falar isso, entretanto, é rejeitar o ponto (3) rápido demais.
O julgamento feito no ponto (2) é feito com referência aos (potenciais)
interesses de uma pessoa, quer ela exista, quer ela não exista. A isso, poderia
ser contraposto que por que (3) é parte de um cenário sob o qual essa pessoa
nunca existe, (3) não pode dizer nada sobre uma pessoa existente. Tal
contraposição seria equivocada porque (3) pode dizer algo sobre um caso
contrafatual no qual a pessoa que de fato existe nunca existiu. Sobre a dor de
uma pessoa existente, (3) diz que a ausência dessa dor teria sido boa, mesmo
se isso pudesse ser alcançado apenas pela ausência da pessoa que sofre essa
dor. Em outras palavras, julgado nos termos dos interesses de uma pessoa que
existe atualmente, a ausência de dor teria sido boa, mesmo se isso significasse
que essa pessoa não tivesse existido. Considere agora o que (3) fala sobre a
ausência de dor de quem nunca existe – ausência que é garantida por não tornar
uma pessoa em potencial em uma pessoa real. A afirmação (3) diz que a
ausência de dor é boa quando julgada nos termos dos interesses da pessoa que
de outra maneira teria existido. Nós podemos não saber quem essa pessoa teria
sido, mas ainda assim nós podemos dizer que seja lá quem essa pessoa fosse,
a ausência de suas dores é algo bom quando julgado nos termos de seus
potenciais interesses. Se há qualquer sentido (obviamente afrouxado) no qual a
ausência de dor é boa para a pessoa que poderia ter existido, mas que não
existe, esse é o sentido. Claramente, (3) não implica o absurdo que é dizer de
maneira literal que há uma pessoa real para quem a dor ausente é boa.
Em apoio à assimetria entre (3) e (4), pode ser mostrado que ela possui
um considerável poder explicativo. Essa assimetria explica ao menos quatro
outras assimetrias que são bastante plausíveis. Os céticos, quando eles veem
onde isso leva, podem começar a questionar a plausibilidade dessas outras
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assimetrias e podem querer saber que suporte (além da assimetria acima) pode
ser oferecido para elas. Estivesse eu a oferecer tal suporte, os céticos então
pediriam por uma defesa dessas novas considerações de apoio. Todo
argumento deve ter algum fim justificativo. Eu não posso esperar convencer
quem toma a rejeição à minha conclusão como algo axiomático. Tudo que eu
posso mostrar é que aqueles que aceitam algumas perspectivas bastante
plausíveis são levados à minha conclusão. Essas perspectivas plausíveis
incluem quatro outras assimetrias, as quais eu agora destaco.
Primeiro, a assimetria entre (3) e (4) é a melhor explicação para a visão
de que enquanto há um dever de evitar trazer pessoas sofredoras à existência,
não há dever nenhum de trazer pessoas felizes à existência. Em outras palavras,
a razão pela qual nós pensamos que há um dever de não trazer pessoas
sofredoras à existência é porque a presença desse sofrimento seria ruim (para
os sofredores) e a ausência desse sofrimento é boa (mesmo que não haja
ninguém para desfrutar a ausência de sofrimento). Em contraste a isso, nós
pensamos que não há dever de trazer pessoas felizes à existência, porque
enquanto os prazeres delas seriam bons para elas, a ausência desses prazeres
não seria ruim para elas (dado que não haveria ninguém que seria privado de
tais prazeres).
Pode ser contestado que há uma explicação alternativa para a visão
acerca dos nossos deveres procriacionais – uma explicação que não apela a
minha afirmação acerca da assimetria entre (3) e (4). Pode ser sugerido que a
razão pela qual nós temos um dever de evitar trazer pessoas sofredoras à
existência é porque nós temos deveres negativos de evitar prejuízo, mas não
possuímos deveres positivos correspondentes de trazer felicidade. Julgamentos
sobre nossos deveres procriacionais são então similares aos julgamentos acerca
de todos os outros deveres. Eu concordo que para aqueles que pensam que nós
não temos quaisquer deveres positivos, essa seria uma explicação alternativa
para aquela que eu tenho oferecido. Entretanto, mesmo entre aqueles que
pensam que nós temos deveres positivos, apenas alguns deles também pensam
que entre esses deveres está um dever de trazer pessoas felizes à existência.
Nesse momento, poderia ser sugerido que há também uma explicação
alternativa do porquê aqueles que aceitam deveres positivos normalmente não
pensam que isso inclui um dever de trazer pessoas felizes à existência.
33
Em terceiro lugar, apoio à assimetria entre (3) e (4) pode ser extraído da
assimetria relacionada, dessa vez em nossos julgamentos retrospectivos. Trazer
pessoas à existência assim como não trazer pessoas à existência, ambas as
ações podem ser objeto de arrependimento. Entretanto, apenas trazer pessoas
à existência pode ser objeto de arrependimento por se levar em consideração o
bem da pessoa cuja existência dependeu de nossa decisão. Isso não ocorre
porque os que nunca foram trazidos à existência são indeterminados. Isso ocorre
porque eles nunca existem. Nós podemos nos sentir tristes pelo bem de pessoas
indeterminadas, mas existentes, que um benefício não tenha sido concedido a
elas; mas nós não podemos ficar tristes pelo bem de quem nunca existe e que,
portanto, não pode, por isso, ser privado de um bem que esse ser nunca
existente nunca experiencia. Alguém pode lamentar sobre não ter tido filhos, mas
não porque os filhos que esse alguém poderia ter tido foram privados da
existência. O remorso por não ter tido filhos é um remorso por nós mesmos – a
tristeza de não ter tido a experiência de carregar um bebê na barriga ou de criar
uma criança. Entretanto, nós realmente lamentamos ter trazido à existência uma
criança com uma vida infeliz, e nós nos arrependemos disso levando em
consideração o bem da criança, mesmo que também por nosso próprio bem. A
razão pela qual nós não lamentos não ter trazido alguém à existência é porque
a ausência de prazeres não é ruim.
Por último, apoio para a assimetria entre (3) e (4) pode ser encontrado
nos julgamentos assimétricos sobre (a) sofrimento (distante) e (b) porções não
habitadas da Terra ou do universo. Se por um lado, ao menos quando pensamos
neles, nós certamente ficamos tristes pelos habitantes de um país estrangeiro
cujas vidas são caracterizadas pelo sofrimento; por outro lado, quando nós
ouvimos falar de uma região inabitada, nós não ficamos tristes pelas pessoas
felizes que, tivessem elas existido, teriam habitado essa região. Do mesmo
modo, ninguém lamenta de fato por aqueles que não existem em Marte, ninguém
se sente mal pelos seres em potencial por eles não poderem desfrutar da vida 7.
7
O fato de que a maioria das pessoas nem sequer pensa sobre a ausência de vida em Marte é revelador
por si mesmo. Uma vez que são forçados a pensar nesses assuntos, alguns vão dizer que lamentam a
ausência de prazeres em Marte. Quer eles lamentem, quer não, eu não vejo como alguém possa
lamentar isso pelo bem dos próprios (não-existentes) marcianos que iriam, de outra maneira, desfrutar
tais prazeres. É interessante, entretanto, como algumas pessoas irão começar a dizer que elas se sentem
tristes pela ausência de marcianos a partir do momento em que elas percebem que não se sentir triste
por isso dá suporte à assimetria que eu defendo e, consequentemente, à conclusão de que vir à
35
Apesar disso, se soubéssemos que havia vida senciente em Marte, mas que os
marcianos estivesses sofrendo, nós iríamos lamentar por eles estarem nessa
condição de sofrimento. A afirmação aqui não precisa ser (mas poderia ser)
aquela forte de que nós lamentaríamos a própria existência deles. O fato de que
nós lamentaríamos o sofrimento existente na vida deles é suficiente para dar
suporte à assimetria que eu estou defendendo. O ponto é que nós lamentamos
o sofrimento dos que existem, mas não lamentamos a ausência de prazeres
daqueles que poderiam ter existido.
Nesse momento, alguém pode protestar contra isso ao dizer que da
mesma forma que nós não lamentamos a ausência de prazer daqueles que
poderiam ter existido, nós também não nos alegramos na ausência de dor
daqueles que poderiam ter existido. Porque se assim o fizéssemos, o protesto
prossegue, nós deveríamos estar excessivamente felizes pela quantidade de dor
que é evitada, visto quão poucas de todas as pessoas possíveis se tornam reais,
e, por isso, quão muita dor é evitada. Mas alegria não é o apropriado contraste
ao lamento8. Embora nós lamentemos o sofrimento de pessoas distantes, ao
menos quando pensamos nelas, nós normalmente não nos afundamos em
melancolia por conta disso. Por isso, a questão não é se sentimos alegria – o
contrário de melancolia – pela ausência de dor, mas se ausência de dor é o
oposto de lamentável – ou seja, se ela é, podemos dizer, “bem-vinda”9 (ou
“desejável”) ou simplesmente “boa”. A resposta a essa questão, como sugeri, é
afirmativa. Se nos perguntassem se a ausência de sofrimento é uma
característica boa da não-existência, nós teríamos de dizer que sim.
Eu tenho mostrado que a assimetria entre (3) e (4) explica outras quatro
assimetrias. Dado que essas outras assimetrias são amplamente apoiadas, nós
temos boas bases para pensar que a assimetria entre (3) e (4) também é
amplamente aceita. Que isso seja assim não é evidência de sua verdade, visto
que muitas coisas podem ser amplamente aceitas e ainda assim estarem
incorretas. Entretanto, isso de fato mostra que meu ponto de partida pode ter um
apelo amplo.
existência é sempre um prejuízo. Entretanto, dizer que se sente triste por isso é uma coisa, mas se isso
faz sentido é algo completamente diferente.
8
Nota do tradutor: o autor usa o termo “regret”, que também significa “arrepender-se”, “remorso”,
“tristeza”.
9
Nota do tradutor: o autor usa o termo “welcome”.
36
Figura 2.1
Cenário A Cenário B
( X existe ) ( X nunca existe )
(1) (3)
( Ruim ) ( Bom )
(2) (4)
Figura 2.2
Cenário A Cenário B
( X existe ) ( X nunca existe )
(1) (3)
( Ruim ) ( Bom )
(2) (4)
( Bom ) ( Ruim )
Figura 2.3
Cenário A Cenário B
( X existe ) ( X nunca existe )
(1) (3)
(2) (4)
10
O único momento em que seria ruim nesse sentido é quando a ausência de prazer é na verdade
dolorosa.
41
argumentei, é que há uma boa razão para fazer uma distinção entre as duas.
Isso porque para uma vida não valer a pena ser continuada, ela deve ser pior do
que o que é preciso para ela não valer a pena ser iniciada. Aqueles que
consideram não apenas o Cenário A mas também o Cenário B claramente estão
considerando quais vidas valem a pena serem iniciadas. Para determinar quais
vidas valem a pena ser continuadas, o Cenário A teria de ser comparado com
um terceiro cenário, no qual X cessa de existir11.
Finalmente, a qualidade de uma vida não é determinada simplesmente ao
se subtrair o mau do bom. Como eu mostrarei na primeira seção do próximo
capítulo, avaliar a qualidade de uma vida é muito mais complicado que isso.
Agora, algumas pessoas podem aceitar a assimetria representada na
Figura 2.1, concordar que precisamos comparar o Cenário A com o Cenário B,
mas negar que isso leva a concluir que B é sempre preferível a A – isto é, negar
que vir à existência é sempre um prejuízo. O argumento é que nós devemos
atribuir valores positivos ou negativos (ou neutros) a cada quadrante, e que se
nós fazemos essa atribuição da maneira que os que defendem essa visão acham
que é a mais razoável, nós encontramos que vir à existência é às vezes preferível
(veja Figura 2.4).
Figura 2.4
Cenário A Cenário B
( X existe ) ( X nunca existe )
(1) (3)
(2) (4)
11
Nesse cenário, o qual podemos chamar de Cenário C, a ausência de dor seria “bom” e a ausência de
prazer seria “ruim”.
45
O quadrante (1) deve ser negativo, pois ele é ruim, e os quadrantes (2) e
(3) devem ser positivos pois eles são bons. (Eu suponho que (3) deve ser tão
bom quanto (1) é ruim. Ou seja, se (1) = - n, então (3) = + n). Uma vez que (4) é
não ruim (e não bom também), ele não seria nem positivo e nem negativo, mas
neutro.
Empregando a atribuição de valores da Figura 2.4, nós somamos (1) e (2)
para determinar o valor de A, e então comparamos isso com a soma de (3) e (4),
que é o valor de B. Fazendo isso, nós encontramos que A é preferível a B quando
(2) for mais do que duas vezes o valor de (1)12. Há numerosos problemas com
isso. Por exemplo, como eu mostrarei na primeira seção do próximo capítulo,
não é apenas a proporção de prazer em relação à dor que determina a qualidade
de vida, mas também a quantidade absoluta de dor. Uma vez que um certo limiar
de dor é ultrapassado, nenhuma quantidade de prazer é bastante para poder
compensar isso.
Mas a melhor maneira de mostrar que a Figura 2.4 está errada é aplicar
o raciocínio por trás da Figura 2.4 à analogia da Sra. S (Saudável) e do Sr. D
(Doente) mencionada anteriormente.
Figura 2.5
(1) (3)
(2) (4)
Presença da Ausência da
+
capacidade de capacidade de 0
recuperação rápida recuperação rápida
Conforme a Figura 2.5 acima, seria melhor ser o Sr. D do que a Sra. H se
o valor de (2) fosse mais que o dobro do valor de (1). (Esse presumidamente
seria caso onde a quantidade de sofrimento que (2) evita o Sr. D de sofrer é mais
que o dobro da quantidade que o Sr. D de fato sofre). Mas isso não pode estar
correto, porque certamente é sempre melhor ser a Sra. S (uma pessoa que
nunca fica doente e, por isso, não está em desvantagem por não possuir a
capacidade de recuperação rápida). A questão é que (2) é bom para o Sr. D,
mas (2) não constitui uma vantagem sobre a Sra. S. Ao se atribuir uma carga
positiva ao (2) e um “0” ao (4), a Figura 2.5 sugere que (2) é uma vantagem sobre
(4), mas está bem claro que não é uma vantagem. A atribuição de valores na
Figura 2.5, e em consequência também na Figura 2.4, devem estar erradas.
Agora, pode ser perguntado quais seriam as corretas atribuições de
valores, mas eu quero resistir a essa pergunta, porque ela é a pergunta errada
a ser feita. A Figura 2.1 teve a intenção de mostrar porque é sempre preferível
não vir à existência. Ela mostra que vir à existência tem desvantagens relativas
a nunca vir à existência, enquanto que as características positivas do existir não
são vantagens sobre o nunca existir. O Cenário B é sempre melhor que o
Cenário A por praticamente a mesma razão que é sempre preferível ser a Sr. S
do que ser o Sr. D. A Figura 2.1 não tem a intenção de ser um guia para
determinar quão ruim é vir à existência.
Há uma diferença, eu tenho indicado, entre (a) dizer que vir à existência
é sempre um prejuízo e (b) dizer quão grande prejuízo isso é. Até aqui eu tenho
argumentado apenas acerca da primeira informação. A grandiosidade do
prejuízo da existência varia de pessoa para pessoa, e no próximo capítulo eu irei
argumentar que o prejuízo é bastante considerável para todas as pessoas.
Entretanto, deve ser notado que uma pessoa pode apoiar a visão de que vir à
existência é sempre um prejuízo, mas ainda assim negar que o prejuízo seja
enorme. Similarmente, se uma pessoa pensa que o prejuízo da existência não é
enorme, não pode por isso inferir que a existência é preferível à não-existência.
Reconhecer isso é bem importante por afastar uma outra potencial
objeção contra meu argumento. Uma das implicações do meu argumento é que
uma vida repleta do bom e contendo apenas a menor quantidade do mau – uma
47
vida de absoluta felicidade contaminada apenas pela dor de uma única picada
de alfinete – é pior, de qualquer maneira, do que vida nenhuma. A objeção que
poderia ser levantada seria a de que isso é implausível. Entender a distinção
entre (1) vir à existência ser um prejuízo e (b) quão grande prejuízo isso é,
permite à pessoa compreender porque essa implicação não é tão implausível
como se pensa. É verdadeiro, sobre a pessoa desfrutando essa vida encantada
estragada somente por uma breve dor aguda, que seja sua vida boa como for,
ela não possui vantagem nenhuma sobre nunca existir. Apesar de tudo, vir à
existência tem a desvantagem daquela única dor. Nós podemos reconhecer que
o prejuízo de vir à existência é minúsculo sem negar que seja um prejuízo.
Colocando de lado a questão de se vir à existência é um prejuízo, quem negaria
que uma dor aguda é um prejuízo, mesmo se um prejuízo pequeno? Pense outra
vez na analogia do Sr. D e da Sra. S. Se o Sr. D fica doente apenas uma vez na
vida, tendo somente uma dor de cabeça que rapidamente passa, ainda assim é
melhor ser a Sra. S (mesmo que não seja muito melhor assim). Se todas as vidas
fossem tão livres de sofrimento como a da pessoa que inventamos, que sofreu
apenas uma picada de alfinete, os prejuízos de vir à existência seriam facilmente
ultrapassados pelos benefícios que seriam provocados aos outros (incluindo os
pais em potencial) por uma pessoa vir a existir. Na vida real, porém, não existe
nenhuma vida nem sequer próxima de ser tão encantada como a que inventamos
nesse parágrafo.
Eu tenho argumentado que prazer e dor são assimétricos de forma tal que
vir à existência é sempre um prejuízo. Após argumentar, no capítulo a seguir,
que esse prejuízo é significativo, eu irei discutir, no capítulo 4, as implicações de
tudo isso para a procriação. Deveria estar claro agora, entretanto, que a ideia de
que vir à existência é sempre um prejuízo significativo levanta um problema para
a procriação. A procriação pode ser desafiada de muitas outras maneiras
48
13
Fehige, Christoph, ‘A Pareto Principle for Possible People’, in Fehige, Christoph, and Wessels, Ulla,
eds., Preferences (Berlin: Walter de Gruyter, 1998) 508–43.
14
Shiffrin, Seana Valentine, ‘Wrongful Life, Procreative Responsibility, and the Significance of Harm’,
Legal Theory, 5 (1999) 117–48.
15
Por “benefício puro” ela quer dizer “benefícios que são apenas bons e que não são remoções de
prejuízos ou prevenções de prejuízos” (p. 124 do livro dela). Os prazeres intrínsecos aos quais me refiro
no capítulo 3 seriam instância de “benefício puro”, enquanto que os prazeres de alívio aos quais me
refiro são instâncias de “remoções de prejuízos”.
49
autorizar que lhes seja infligido um prejuízo para lhes garantir um benefício, nós
nunca podemos obter o consentimento daqueles que trazemos à existência
antes de nós os criarmos. Nem podemos presumir um consentimento hipotético,
ela argumenta. Há quatros razões para isso. Primeiro, uma pessoa não está
prejudicada se nós nunca a criamos. Segundo, os prejuízos da existência podem
ser muito severos. Terceiro, os prejuízos da existência não podem ser evitados
sem um custo considerável. Por último, o consentimento hipotético não se baseia
nos valores ou atitudes do indivíduo com relação ao risco.
Há algumas diferenças interessantes entre o argumento da professora
Shiffrin e o meu. O argumento dela, ao menos na superfície, não impede de tratar
as coisas boas da vida como vantagens sobre a não-existência (embora, como
eu mostrarei, seu argumento não exige que sejam tratadas dessa forma). Na
visão dela, mesmo se os prazeres e demais coisas boas desfrutadas pelos
existentes forem vantagens sobre a não-existência, não são vantagens que
podemos garantir aos custos da existência16.
Seu argumento básico também não pressupõe a assimetria que eu tenho
defendido. Nós podemos perceber isso ao comparar dois cenários que envolvem
pessoas existentes e que não são caracterizados pela assimetria da Figura 2.1.
O primeiro desses cenários é um no qual um benefício puro é concedido ao custo
de um prejuízo e o outro cenário é um no qual aquele prejuízo é evitado ao custo
de um benefício puro. Seguindo o padrão das matrizes anteriores, podemos
representar isso como mostrado na figura 2.6.
Minha assimetria não se aplica a tal caso, mas na assimetria da
professora Shiffrin nós não estaríamos assegurados para infligir (1) no objetivo
de garantir (2). Dito de outra forma, nós não podemos provocar o Cenário A
sobre o Cenário B (ausente o consentimento da pessoa). Mesmo quando
aplicado aos casos de procriação, onde (eu tenho arguido) minha assimetria se
aplica, a priorização de B sobre A não é baseada na minha assimetria, mas na
assimetria dela.
16
Ou ao menos não sem estar preparado para compensar os prejuízos. Seana Shiffrin é um pouco
reticente em descartar a procriação inteiramente, embora seu argumento parece implicar essa
conclusão e alguns consideram que ela aceitaria isso. Ela explicitamente só defende a fraca afirmação de
que a procriação não é uma atitude moralmente inocente.
50
Figura 2.6
Cenário A Cenário B
(1) (3)
( Ruim )
(2) (4)
51
Figura 2.7
Cenário A Cenário B
(1)
Insatisfeita
( Ruim )
Bom
(2)
Satisfeita
( Bom )
Figura 2.8
Cenário A Cenário B
(1) (3)
Preferência Ausência de
insatisfeita preferência que teria
sido insatisfeita (em
( Ruim ) A)
( Bom )
(2) (4)
( Bom )
embora ela produza o mesmo resultado – que o Cenário A é pior que o Cenário
B.
Entretanto, pode haver outras maneiras de ler o texto dele. Quando ele
diz que (2) e o Cenário B são “igualmente bons”, pode ser que ele não queira
descrever (3) e (4) como bons. Ele pode querer dizer apenas que (2) não é
melhor que o Cenário B. Isso é exatamente o que eu quero dizer quando eu
descrevo (4) na Figura 2.1 como “não ruim”. Eu quis dizer que não era pior que
(2). O problema em descrever (4) na Figura 2.8 como “não ruim” é que porque o
professor Fehige parece tratar (3) e (4) como equivalentes, (3) também teria de
ser rotulado como “não ruim”. Se “não ruim” em (3) significasse o mesmo que
em (4) – ou seja, “não pior” – então (3) não seria pior que (1). Entretanto, isso
parece fraco demais, como eu indiquei anteriormente. (3) é melhor que (1). A
alternativa, então, é postular que se o professor Fehige diferenciasse (3) e (4)
ele os entenderia diferenciadamente. Ele pode entender “não ruim” como
significando algo diferente no terceiro e quarto quadrantes da figura 2.8. Em (3),
significaria melhor do que (1); enquanto que em (4), significaria “não pior” do que
(2). Nessa leitura, nós podemos rotular (3) como “bom”, porque “bom” é
(suficientemente) melhor do que “ruim”. Dessa maneira, a assimetria de
Christoph Fehige poderia ser interpretada da mesma maneira que a minha.
Seja lá qual das duas leituras alguém venha a adotar, (3) é melhor do que
(1), e (4) não é pior do que (2). O mesmo é verdade na Figura 2.1. Em ambas,
vir à existência (Cenário A) é pior do que nunca vir à existência (Cenário B).
Aqueles que pensam (como Alfred Lord Tennyson) que é melhor ter
amado e perdido do que nunca ter amado podem imaginar que eles podem
aplicar semelhante raciocínio ao caso de vir à existência. Eles podem querer
dizer que é melhor ter existido e perdido (tanto pelo sofrimento que há na vida
quanto por deixar existir depois) do que nunca ter existido. Eu não irei julgar se
de fato é melhor ter amado e perdido do que nunca ter amado. É suficiente dizer
que mesmo se essa afirmação for verdade, ela não traz nenhuma implicação
acerca de vir à existência. Isso porque há uma diferença crucial entre amar e vir
à existência. A pessoa que nunca ama existe sem amar e, por isso, é privada do
56
amor. Isso, no meu ver, é “ruim”. (Se isso é pior do que amar e perder é uma
outra questão). Em contraste, alguém que nunca vem à existência não sofre
privação de nada. Isso, eu tenho argumentado, é “não ruim”.
Dizer que vir à existência é um prejuízo é uma conclusão difícil para
muitas pessoas engolirem. Muitas pessoas não lamentam suas próprias
existências. Muitas são felizes em ter vindo à existência, porque elas desfrutam
suas vidas. Mas essas avaliações são erradas precisamente por causa das
razões que eu tenho traçado. O fato que uma pessoa desfruta de sua própria
vida não faz com que a existência de tal pessoa seja melhor que a não-
existência, porque se essa pessoa não tivesse vindo à existência, então não
haveria ninguém para ter sentido falta da alegria que teria sido conduzir essa
vida e, portanto, a ausência da alegria não seria ruim. Note, em contraste, que
faz sentido lamentar ter vindo à existência se uma pessoa não desfruta de sua
vida. Nesse caso, se uma pessoa não tivesse vindo à existência, então ninguém
teria sofrido a vida que essa pessoa leva. Isso é bom, mesmo embora não
haveria ninguém que teria desfrutado desse bem.
Nesse momento, pode ser objetado que uma pessoa não pode estar
errada sobre se sua existência é preferível à não-existência. Pode ser dito que
assim como uma pessoa não pode estar errada sobre se está ou não sentindo
dor, da mesma forma uma pessoa não pode estar errada sobre se ela está feliz
em ter nascido. Portanto, se “eu estou feliz por ter nascido”, uma afirmação com
a qual muitos concordariam, é equivalente à “é melhor ter vindo à existência”,
então uma pessoa não pode estar errada acerca se a existência é melhor do que
a não-existência. O problema com essa linha de raciocínio é que essas duas
proposições não são equivalentes. Mesmo se uma pessoa não possa estar
errada sobre se ela está atualmente feliz em ter nascido, não se conclui disso
que uma pessoa não pode estar errada sobre se é melhor ter vindo à existência.
Nós podemos imaginar alguém estando feliz, em um estágio de sua vida, por ter
vindo à existência, e depois (ou antes), talvez no meio de uma extrema agonia,
lamentar ter vindo à existência. Nesse caso, não se pode dizer que
(considerando-se a vida toda dessa pessoa imaginária) seja ao mesmo tempo
melhor ter vindo à existência e melhor nunca ter vindo à existência. Porém, é
exatamente o que teríamos que afirmar se fosse verdade que estar feliz ou infeliz
de ter vindo à existência é equivalente à de fato ser melhor ou pior que uma
57
pessoa tenha vindo à existência. Isso é verdadeiro mesmo naqueles casos onde
as pessoas não mudam suas mentes sobre se elas estão felizes por terem
nascido. O porquê de tão poucas pessoas mudarem suas mentes é explicado,
ao menos em parte, por que as pessoas erroneamente enxergam a qualidade
de suas vidas em cor-de-rosa. No capítulo a seguir, eu mostro que (com exceção
de verdadeiros pessimistas, os quais podem ter uma visão mais acurada sobre
quão ruim suas vidas são) a vida das pessoas é muito pior do que elas pensam.