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AS MINORIAS REVOLUCIONÁRIAS

JOSÉ PEDRO a·ALVAO DE SOUSA

A análise sociológica do fenômeno revolucionário tem sido


feita através de dife1·entes prismas. De Gustavo Le Bon a
Ortega y Gassett muitos a têm empreendido do po'nto d e vista da
psicologia social. De Joseph de Maistre a Berdiaeff, ela se de­
senvolve numa linha de interpretação metafísica. E outros, a
.exemplo de Taine, limitam-se aos domínios da pesquisa históric�.
Filósofos, psicólogas e historiadores vão as sim contribuindo
para esclarecei:- o assunto. Documentos oficiais, memórias e de­
poimentos diversost sem falar na experiência pessoal de muitos
de nós, presenciando revoluções ou delas participando, fornecem
material abun dante para reflexões _proveitosas.
E ·diante de tôdas essas fontes para o estudo das revol�ções,
não se pode mais hoje afirmar, como fazia Michelet em relação à
Revolução Francesa, que o povo é ó princi p al agente da revolução.
A verdade é bem outra. As revoluções têm sido obras de
minorias ilustradas. Vêtn de cima para baixo, sãÕ preparadas
por pequenos grupos organizados. Antes de s.er uma explosão
popular t a revolução é uma conj ur ação palaciana, uma fermen­
tação de idéias em salões e academias, ou um plano urdido no
recôndito das sociedades secretas.
Basta considerar, antes de mais n a da, o protótip o das revo­
l u ções modernas � a Revolução de 1789.

A REVOLUÇÃO DE CIMA PARA BAIXO

A m archa da revolução não tem um sentido ascendente.


Seu ponto de partida não é a rua, mas a intelligentzia. Assim,
o movimento revolucionário de 1789 só atingiu as instituições

depois de já subvertida a mentaii<lade das classes dirigentes.


Os reis, dominados pelo filosofismo, não reinavam nlais.
A � iteratura do século é que reinava sôbre êles. Fato semelhante
ao de D. Pedro II, um século mais tar d � , no Brasil: era o rei­
-filósofo, racionalista e cético, benevolente e quase paternal para
com a propaganda republicana. Na França, a revolução não foi
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"um fenômeno de re vol ta, operando de baix:o para o alto, mas


.um fenômeno de demissão e de. abdicação, parti ndo de cima para
baixo" ( 1).
Pondera Godefroicl Kurth que teria provocado gargalhadas
-e gri to s de indignação quem, no dia 5 de maio de 1789, ao se
i nstal ar em os Esta do s Gerais em Versalhes, dissesse que em
m en os de S anos a realeza seria s upri mi da, .o rei e a rainha seriam
executados, os nobres teriam que escolher entre a guilhot ina e o
ex ílio , a religião seria proscrita e n!ua prostituta receberia, nos
altares de Notre-Dame, o cul to tributado à d eusa Razão (2).
E o 1nesmo autor pro'ssegue numa série de reflexões que
vem a propós ito lembrar.
Primeiramente, cumpre rejeit ar as e xp l icações dos que vêem
na Revolução de 1789 uma revolta contr a os abusos elo Antigo
Regime. Seria assinalar uma causa i n s i gn i f i cante a um efeito
cuj as propor çõ es são incomensuráveis. Se a Revolução tivess e.
sido feita contra os abusos, é de se supor que teria acabado na
noite de 4 de agôst o daquele mes mo ano. Representantes do
Clero, da Nobreza e do Povo congratulavam-se então. Os
deputados nob re s eram os primeiros a propor a abolição dos
privilégios. Até às duas horas da madr ugada , entre aplausos,
lágrimas e abraços, votava-se uma série de medi das radicais que
vinham liquida r com o Antigo Regime: supressão dos vestígios
feudais, igualdade de direitos, livre acesso de qua l q u e r cidadão
a· todos os em pregos, g ratuidade da j ust iça, ab olição dos privi­
légios das corporações, das províncias, das c i dades e dos indiví­
duos. E depois disto, a Rev olução continuava, ou melhor come­
çava vércladeiramente, arrastando os seus homens até onde não
haviam de in í c io imaginado chegar, devora n do os pr ópr i os filhos
·

como Saturno.
Se a Revolução tivesse sido apenas um esfôrço de resistência
cont r a os .abusos do govêrno e das cla ss es altas, ela t e ria cessado

com a erradicação ele tais ab u s os , limitando-se a uma reforma do


reg:ime, sem chega: à Slla cle:5truição tota l . Se, velo. con tr�rio,
A .
se dcsencandeou sobre a soci e dade com ·uma força trrestsbvel,
subvertendo ilido, é porque obed e c i a a o utros 1nóveis. Nada
mais esclarecedor� neste sentido, do que consultar os famosos
cahiers do Tiers État - os documentos on de se achavam expres­
sas as que ixas , as aspi raçõe s , as reivindic.ações dü s eleitores da
classe pop u l ar, segundo o sistema eleitoral da é poca . A Revo­
lução foi muito além do que pleiteava o homem do povo e chegou

(1) - Chru.·Ies Maurras, Réflexions sur la Révolution de l'789. Paris, Les Iles
d'Or, Editions Self, 1948, pág. 21.
(2) - Godefmid Kurth, Vl!:gEse aux t01,1rnants de l'Histoil·e, Bruxeles, Lib.
Albert Dewit, pág. 161.
·
-· 47-

mesmo a violar sentimentos profundamente arraigados em tôda


a Nação f rancesa . Assim é qtte a im ens a maioria dos eleitores
nianifestava-se. dev otada à religião e à r ealeza , que seriam os
objetivos principais v i sa d o s pela R evol uç ão em marc h a na sua
fúria destruidora.
Daí o protestar Charles Maurras contra a expressão gf!ral­
rnente usada para d es i gnar a grande Revolução.
Revolução francesa?
Não. Revo lução antifrancesa. Porque veio demolir o edi­
fícioda França tradicion�l. Porque abriu as ·portas da França
aos metecos, que aí instalaram a sua dominação antifrancesa.
Porque as i déias que � impulsionaram foràm con t rá rias aos sen-
-
timentos n acionais.
O esp í rito revolucionário é muito anterior a i789. Vem do
filosofismo do século XVIII, do classicismo pagão do século
XVII, do humanismo da Renascença e do protestantismo lute­
rano-calvinista. l\i1 ui tas destas correntes de idéias, que acabaram
na ordem política gerando a R evolu ção, se desenvolveram con­
jugadas com idéias cristãs e tradicionais, i;nas traz e ndo o fer­
piento da dissolução no racionalismo, que co mprometi a a f.é; e no
entusiasmo exagerado pela cultura a n t i ga, que fazia aban donar
aos poucos os i dea i s da catolicidade.
Os filósofos e seus discípulos, muitos dos quai s nobres, não
representavam evidentemente a Naç ã o. l\tf as enq ua n tó os homen s
do povo, d epoi s de t er e m deixado, nos cadernos das eleiçõe s, a
expressão dos seu s desejos, voltavam para suas casas, para as
oficinas ou para o campo, aquêles intelectuais herdeiros de
Voltaire e Rousseau organi z avam-se, pregavam incessantemente,
falavam em no me do povo, exigiam com insolência, intimidavam
as autoridades e domi na v a m a A ssembléia elos Estados Gerais,
transformada em Constituinte sem que tivessem recebido nenhum
l;llandato pop u la r, para isto.
Entre êles até sac erdot es s e encontrav am . I gn orando a dou­
trina social do c at olicis mo t aplaudiam as idéias ele Rousseau e
não sabiam perceber nas inovações dos filósofos a deturpação de
parce las da verdade católica. Nada mais contristador do que o
es petá c ulo oferecido pelos padres revolucionários, Hpastores que ,
sendo guardas de um tes ou ro, o dei xam substituir pela moeda
falsa " ( 3),
Nos seus v o lu me s sôbre a Revolução e suas origens, Gattme
refere-se à penetração do espirita naturalis t a pré-revolucionário
no próprio clero francês. A Revolução é filha d� República das

(3 - G. Kurth, ob. cit., pág. 188.


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Letras e do Colégio, tal é a tese dêste autor,· compr ç wa da por


impressionantes documentos. Em tôrno do assunto po le miz aram ,
no século passado, Louis V euillot e Monsenhor Dupanloupt na
famosa questão dos clássicos. Quando aquêle grande jornalista
católico, através das colunas do Univers, se l evan ta v a con"tra a
prep otê ncia dada aos clássicos greco-romanos na educação da
mocidade de sua p á tria, não fa z.ia �nais do que sustentar a mesma
tese de Gaum�. Não se tratava de negar o altíssimo valor dos
escritores da a n ti gui dade, mas . de tomar as devidas precauções
para que o cultivo exagerado dos mesmf?S não viesse aos poucos
substituir os autores cristãos e de tal forma contríbuir para criar
uma mentalidade naturalista, afeita mais às fontes pagãs -do que
aos i deais cristãos. Tal fôra precisamente o sentido revolucio­
nário da R e nas ce nça, enquanto combatia o latim m edi ev al , qua­
lific�do de bárbaro, e a filosofia escolásti c �, exal'tando ao m es mo
tempo os modelos da antigt�idade pagã.
Dêsse menosprêzo pela cultura cristã. em favor das letra,s
clássicas, resultou aqu ela situ a ç ão que Charles Nodier, testemu n ha
ocular da Revolução de 1789, nas suas " 1"1emórias " , sintetizava:
"Franceses, não havíamos rece bido tuna educação francesa; cida­
dãos de uma monarquia, não tínhamos re cebi do uma ed ucação
monárquica; cris t ãos, não tínhamo"s recebido u m a e duc ação cristãH.
Infelizmente, não e ra apenas uma exceção um caso como o
do Padre Auger, professor de Retórica no Colégio de Rouen,
membro dà A cade m i a de Inscrições e Belas Artes de P ari s, de
tal modo ap aixon ado pelos clássicos, que o Bispo de sua Diocese
o chamava Vigário Geral in partibus Atheniensium. Fa z endo o
seu p anegíric o, o famoso revolucionário H erault de Séch elles
assim se expressava: "O Padre Auger, durante dez anos, colocou
tôda a sua f el ici dade em Demó stenes . . . A ·Revolução encon­
trou-o no meio das rep ú blicas da Grécia , e esta alma tão compe­
netrada da dign i dade do homem e do direito �terno que res ult a
Ç
da igualdade não precisava de gran de esfôr o para. se entr«;!gar
sinceramente, na sua pátria, aos mesmos goz os que sua imagina­
ção freqüentemente saboreava na História. . . Homem da natu­
reza 1 Amigo das musas ! Que os deuses concedam às tuas
.cinzas uma terra mais l ev e, flores e uma eterna primavera em
tôrno ao teu sepulcr o . Enquanto tua sombra errante no Eliseo
conversa, sem d úvida, com as de Lisias, Esq uines, Isócrates,
colocaremos tua image m entre, Demóstenes, de quem imitaste a
glóri a, e S ócrates, com quem a natureza te fêz parecido pelos
traços fisionômicos e por algumas .rel aç ões íntimas de uma sabe�
doria superior ...
,
, ( 4).

(4) - Mgr. Gaume, La Révolution, Gaume & F1·eres, Pal"is, vol.. I.


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Talleyrand e Chateaubriand reconheceram também· que a


Revolução saiu dos colégios e foi o fru to dos estudos clássicos.
E o órgão revolucionário "l\1onitor", de 15 frimá r ios do ano VII,
t r az ia esta declaração bem significativa: "Nós mesmos, se ergue­
mos nossas frontes curvadas na servidão da monarquia, foi por­
que a feliz incúria dos reis pe rmit iu que nos fonnássem.os nas
escolas de Atenas, Esparta e Roma. Crianças, freqüentávamos
os Licurgos, Solons e B rut os ; homens, não podemos senão
imitá-losn-
11as as revolucões se defendem. E aq uêle mesmo órgão
as s i m continuava: "Não teremos a estupidez dos reis. Tudo
será republicano na república. Perseguiremos os que lhe forem
contrários, exigiremos que todos lhe profes'sem amor".
Com a Revolução Francesa começava a "propagancla11 política
n� sentido moderno: a propagan_cla ideológica, o contrôle das
idéias contra-revolucionárias, o prosseguimento em maior escala
daquele sistema de le nta e insidiosa infiltração d e princípios para
formar mentalidades na linha da ideologia revolucionária.
As fôrças revolucionárias do século XVIII inaugurararn esta
técnica de dirigismo elo pensamento, mais tarde a p e rfe i çoada pelos
regimes de Estado totalitário.
O liberalisli.10 iú.i ciou o con trôle das massas pelas minorias
revolucionárias e a infusão das ideologias na viela política dos
povos..

O SlHCíDIO DAS ELITE�

É freqüente, em nossos dias, êsse espetáculo contristador,


para não dizer grotesco, de certos espíritos que, com a preocnpa�
ção .de serem homens do seu tempo e acompanharem o que
chamam a "revolução social", se atiram ao encontro das massas
revolucionárias. Alguns o fazem pensando ingenuamente que
poderão assim gara nt ir se no futuro, caso típic o dos industriais
-

que dão dinheiro para o Partido Comunista, ou que procuram


entrar em entendimentos com demagogos de pres tígio e estabe-:
lecer assim um modus v1vend.i entre as classes abastadas e os
elementos políticos que representa� as reivindicações populares.
Tudo is to é conseqüência da desorganização social em que
vivemos há mais de um século. As sociedades políticas, tendo
perdido o sentido da sua formação corporativa, passam do indi­
vidualismo para o socialismo mais avançado con10 quem vai
escorregando por uma rampa sem conseguir deter-se cm meio
do caminho. Por fim todos saem ludibriados : as massas dei­
xan).-se levar pelos demagogos, caudilhos ou chefes - tenham
lá o nome que tiverem - e as classes das quais até há pouco
·�-
50 -

tempo eram extraídas as elites d ir ige ntes vão perdendo a prepon­


derância na direção nC?s negóci os públicos.
Com o crescimento das populações, num rítmo geométrico,
as gra ndes concentrações op erá r ias urbanas, o aumento do eleito­
rado e a propaganda comunista mundialmente organizada tor­
nou-se mais agudo o conflito entre as classes so ci ais, iniciado
com o liberalismo econômico e político, ao substituir a orga n iz a­
ção corporativa pel� sistema individualista da concorrência e do
sufrágio universal. Assim o fator massa passou a representar
muito mais hoje do que na época da Revôlução de 1789. D epoi s
dos movimentos revolucionários de 1848 - ano do Manifesto
Comunista - entraram os países europeus em p len a sistemática
de "massas versus elites", no que diz resp eito às iutas políticas.
Tornou-se, por tudo isso, muito mais fácil apresentar a revolução
mundial como sendo um surto espontâneo das massas, impositiv o
duma nova era e fatalidade inexorável.
Em proporç ões menores e sem o sentido trágico da revol u çã o
em nossos dias, era já êsse, aos olhos das elites dirigen tes da
França no século XVIII, o aspecto das transformações sociais
que então se anunciavam, ou melhor, da revolu ção que se pre­
para va .
Esperavam-se melhores dias para a humanidade, caminhando
na senda do progresso, traçada pela filosofia das " lu z e s". O
homem da natureza de Rousseau e do romantismo fascinava os
'
espíritos bien pensants da época. Como posteriormente o comu-·
nismo, anunciando um "paraíso na terran, os escritores da Enci­
clopédia acenavam uma era mais feliz, despidos os nobres dos
velhos privilégios e libertos todos das restrições procedentes das
aut orida d es sociais, cuja ruina se saudava com a l e gria .

Em suas "Memórias", o Conde de Ségttr escrevia: "Quanto


a nós, da jovem nobreza de França, sem saudades do passado e

sem preocupação pelo futuro, caminhávamos aleg remente sôbre


um tapete de flo res que nos ocultava u1n abismo. . Rindo-119s
com escárneo das modas antigas, do orgu lho feudal de nossos
pais e das suas solenes etiquetas,. tudo quanto era antigo nos
p arec ia incômodo e r idículo . As antigas doutrinas, com a. sna
sisudez, eram um pêso para nós. A lib erd ade, fôs se q u al fôsse
a sua linguagem, .agradava-nos pela sua coragem, como a. igual­
dade nos agr adav a pela sua comocliclacle. Encontra-se prazer em
descer, desde que se acredite que se pode t orn a r a subir até ao
ponto desejado; e nós, sem q u al quer espé ci e de previdência, des­
frutávamos, ao mesmo tempo, as vantagens, os patriciados e as
doçuras de uma filosofi a JJlebéia. Assin11 embora nos n1inassem
sob os pés os nossos privilégios, rufo.as do nosso antigo poder,
esta pequena guerra agradava-nos. Não lhe exper�n1entáva1nos
- 51-

os golpe s nem outra coisa t í n h amos dela senão o espetáculo.


Continuando intactas as ·formas do edífício , não percebíamos que
o estavÇJ..m a minar no 1 nterio r . E ri amo -n os dos graves alarmes
da ·velha Côrte e do Clero, que trovej avam contnL êsse espírito
de i n o v ação . Aplandía·mos as cenas republicanas elos nossos
teatro s , os discursos filosóficos das nossas Academ i a s e as obras
ous ada s dos nosso literatos... " ( 5).
A r eação dà Côrte e do Clero não era, entretanto, suficiente.
A v ida síbarita ele Versalhes tirava à Côrte a capacid ade para
resistir. Os reis fraquejavam e p e rmi ti a m a propaganda revolu­
cionária. O própri? Clero deixava-se infiltrar. E assim, quando
as idéias novas circulavam pelos salões da n obreza, onde se
reuniam os filósofos - os célebres salões da lV[arquesa. <lu
Deffand, de Ma.clame Geoffrin, de 1'1:1le. Lespinasse e outros -
era a Revolução que se incubava no ·espírito da q ueles q_uc iam
ser as suas primeiras v i tim a s . A aristocracia inconsciente não.
só não percebia que o edifício estava sendo m inad o . mas ajudava
a miná-lo. Dos salões, a Revolução passou para as ntas. E
aquelas minorias que inteligentemente a preparavan:, e que teriam
mais tarde o contrôlc das massas, com eçaram por manobrar as
elites dirigentes. Da parte destas elites, não houve apenas omis­
são, ou negligência.. Demitiram-se -da função que deviam desem­
penhar, e f oram ao encontro da Revolução. Basta le mbrar que
três quartos dos emigrados franceses eram maçons, e aprendiam
nas lojas as doutrinas cuja aplicação pr ática ·haveria de lhes
custar a cabe ça ou o exílio.
E s petácülo semelhante ao do suicídio da.s elites burguesas
em nossos dias.
Donde o concluir P ierr e Gaxotte: "O drama do século
XVIII não está, verdadeiramente, nas guerras nem nas jornadas
da RcvoluÇão, mas na dissolução e na reviravolta das idéias que
tinham iluminado e domin ado o século XVII. Os motins e as
ca rnifi c ina s não �crão outra coisa senão a expressão retumbante

e sa11grcnta dessa dissolução. Qua.ndó elas rebentarem, já o


verdadeiro mal estará realizado há mtt1to" (6).

OS LABORATÓRIOS DA IDEOLOGlA
REVOL.UCIONARIA

Por sua vez, Augustin Cochin escreve: "os ratos lá estavam


ant es do queijo, os jacobinos antes da Revolução. Não é <le 89,

(5) - Apud, Piel'l'e Gaxotte, La Révolution F1·ançaise, cap. IV: .La cl'ise de
l'autorité.
(6) - Pierre Gaxotte, ob. cit., cap, UI: La doctrine i·évolutiorinah"e.
52 -

é de 1770, de mais longe ainda, que datam êstcs costumes e êstes


pr in c í pios estranhos. Considerai o gr a n d e fato histórico do
s éculo XVIII: a vinda ao m un do e ao poder das sociedades de
pensamento " (7) ..
Dando busca a docnmentos que lhe permitiram reconstruir
a hi stór ia das sociedades de p en s a m ento na B r et a nh a , Cochin
veio completar a revisão elo estudo elas origens revoll1cionárias,
iniciada por Taine. Para êste últ im o ainda existia a ccanarquia
espontânea" 1\Ias depois de Cochin, m e lh or esclarecido o assun­
to, ficot1 devidamente averiguada a existência desta pretensa
espontaneidade nos movimentos revolucionários. Tltclo prepara­
do, tudo articulado, através da rêde de sociedades de p ensamento
e das lojas maçônicas espa1hadas pela França. Por sua vez,
Bernard Fay mostrou, na atuação das seitas secretas, o papel
desempenhado por aquêles qtte me11erent la danse atrás dos bas­
·ti<lores (8). Os trabalhos dêstcs e de outros autores vieram
refazer a história revolucionária, d eturpada pelas versões oficiais,
e firmaram a tese da revolução como obra da intelligentzia e n_ão

do povo.
O encadeamento das idéias revolucionárias no mundo .mo­
derno é u1n longo p roc e ss o que tem início com o protestantismo
e vem até ao comnnísmo e aos movimentos socialistas de nossos
dias. Em seu estudo sôbre as or i ge ns ela d em oc ra c i a totalitáriaJ
T alm on mostrou no jacobinismo do século XVIII os primdros
elemen t o s dos sistemas coletivistas de hoje (9). E a êste res­
peito cumpre notar qne t a nt o se pode falar de coletivismo da
esquerda como da dir e ita (fascismo, nacional-socialis1110). É um
engano identificar a Revolução com os movimentos enquadrados
na "esquerda" e atrib uir às " di rei tas " um caráter reacionário,
contra-revolucionário. Estas denominações precisan1 ser cu�da7
dosamente- re vistas, pois têm dado margem a 1-tma série de equí­
vocos. Nos mesmos princípios do naturalismo po lític o , denun­
ci ados por Leão XIII, na Encíclica Humanum genus, e ncon tra m
sua gênese filosófica tanto as ideologias esquerdistas como as

(7-) � Augustin Cochin, Les societés de pensée et la démocratie moderne,


Paris, Plon, pág. 102�103.
(8) - Bernard Fay, La Franc�Ma(!onnerie et la révolution intellectuelle
du XVIIIe. siêcle, lí:: dition s de Cluny, Paris, 1935.
(9) - Obra importantíssima, a de J. L. Talmon, The origins of totalitarian
d'.emocracy, Londres, Secker & Warbm·g, 1952. Em reéente tradução
castelhana, Los orig-enes de la democri;tcia totalitaria, Aguilar, Ma­
drid-Mexico-Buenos Aires, 1956. Aprofundando ainda mais o assun­
to, El'ic Voegelin indica na. gnose a 01·igem do democratismo moder­
no: Of. E. Voegelin, The New Science of Politics, The University of
Chicago Pre ss, Chicago Ilinois, especialmente cap. IV, Gnosticism -
The Natm·e of Modernity, e cap. V, Gnostic Revolution - the Pu�
ritan Case.
- 53-

das ch am a das "direitas" desenvolvidas ultimamente e que tiveram


o seu apogeu pouco antes da S egu nda Guerra Mundial. Um
dêsscs princípios, reconh e cidos por Talmon na citada obra e
apontado por \l\T erner S0 111b art como característico básico do
Estado 1�1oder110, é a secular ização da vida ( 10). O E sta do deixa
de se subordinar ao fi111 transcendente do homem e em lugar de
Deus surgem outros valores como "absolutos", determinando
tôda a sistemática sócio-política: a liberdade, para o liberalismo ;
a classe, para o comunismo ; a raç a, para o na z ismo, etc.

:Mas o simples desenvolvimento dial ético das id éias - desde


a pseudo-reforma protestante até os coletivismos da atualidade
- não bastam para explicar a dinâmica revolucionária. As i d éias
não brotam espontâneamente como cogumelos e o seu influxo
não é su ficiente para nos dar a causalida de última do processo
revolucionário. Nem a ai:iarquia revolucionár ia é espontânea,
como pensava Taine, nem tão-pouco a fermentação ideológica.
A.s ideologia s atuam precisamente através daqueles organismos
associativos que as propagam, e também promovem o de senca­
deamento da ação revolucionária.
Percebeu-o com muita lucide z George Uscate scu, ao analisar
o processo revolucionário m oderno. A partir d e 1789, as ideo­
logias assumem uma função capital nas revoluções. Mas para­
lelamente ao papel das idéias , e como seu elemento propu lso r,
devemos considerar as <).ssociaçõ es rcvol�tcíonárias, de um modo
especial as socieda des secretas. Alem das sociétés de pensée e
dos clubes j acobinos da F r ança, cumpre lembrar seitas religiosa s
ou místicas, como a dos ''iluminados" da Baviera e uma série de
sociedades entr egues ao ocu ltismo e até mesmo ao satanismo.
Vemos assim conjug arem-se idéias religiosa·s, s1stemas raciona­
listas e até práticas de magia. Em meio a tais manifestações
de fôrças ocultas, as camad as intelectuais operam a s eu modo,
d irigindo as massas , e, no mais pro fun do ele todo êste processo,
se constitu i a "caterva" dos iniciados no oculti smo e nos ritos
m á gicos.
"Todo êste processo, por ser um processo de crise, é um
fenôme no de paradoxos" - pondera o re f erido autor - ªe nêle
se enco ntram , ao lado de dogm as intelectuais e racionalistas,
turvas irru ç9es de baixos f undos , fôrças sombrias, contamina­
p
ções irrefreáveis, q ue a crise .reune e que caminham juntas na
torrente revolucionária, sem que se possa separar uns eleme ntos
dos dem ais. A revolu ç ão é como um vulcão em erupçã o , arras..
tando tudo e formando um conglomerado ca da vez m aior e mais

(10) - Werner Sombart, Der moderne Kapitalismus, III: Das Wb·tschafts�


lebem ini Zeitalter des Hochkapiialismus, I, cap. IV, n.0 3, Dun­
cker & Humblot, Berlim, pág, 49.
- 54 -

avassalante, rtô qual ninguém poderá distingt.tir os elemerttos


derrubados da lava 1ançada do seio da terra incendiada.
"O mesmo papei preparador de fâtos e otgartizaçõe� revõlu�
cionári as foi dese111penhado p elo s . "ca:tbonáriô�;,, rta:dbrtálistas do
século XI X; pre lúdio das. fôrças révolticionárias nacionalistas de
mais tarde; e pelas numerosas seitas teligfo s as tiihiljstas e an.at'"
quistas ; e aindá pelas drganiZações sindicaisj opetârias e sócia�
listas; que,. clerttro ou fora da Rússia; nos ultimas cetn anos.
prepararam a revo_lüçâo: con:Ittnista'' ( 11).
A orgaiifaaçã.o da III.ª Internacional e o µiétodo das células.
pôsto em prática p elos bolchevistas· vieram dar ttm no vo sentido
à direção revolucionária; procedente dos aghtpamentos mais ou
menos s ec retos e e�calonados segundo unia forte hierarquia. Daí
por diante começou a se distinguir tatil bém: entre o programa
revolucionário completo ou "maximalista" e às concessões táfiéas.
Finalmente, s urgiram os f�mifos", segundo · a linguagem de Sor.el,
como el eme nto s imprescindíveis na ação revbhtdortária . . (12) .
A técnica revolucionária é, . sem dúvida,. uma das mais aper­
feiço adas neste mundo de planejamentos e tac:ion:alizações den­
tífkas. Tôda feita ao me sm o tempo d e violência e de sutileza,
de ferocidade e de astúcia. Considerar as multidões amotinadas
capazes de manej ar essa técnica, é mais do que ingenuidade, é
ttmá estupidez.
Por isso mesnio, Ortega y Gass.et, onze. anos depdi.s de. haver
pli blicado àquela série de artigos reúrtidos em VólUrti€ sob 6. fÍt ttÜl.
La · rebelión de· la� triasas, toi:riándo n9Vámeúte <13; pena em 1937
·

pata escrever unt prólogo especial. dirigido aos foitóres .Jranc:eses;


advertia que os fatos haviam féitó. dêste livro uma> obra uftra·
passada., � ponto de ficar o. seu autor duvidando d(t qportttnidâde
de uina. n ova tradução..
Em no�sos dias ninguéili melhor do que Uscatescu véio com�.
pletar e; ao mesmo terhpó, corrigir. a interpretação ortegu,ilana . do
fenômeno revolucionário. Uma retificaçãó· semelhante à Iêfta por
Augustin Co ch in , quando completou Taine rta explicação d�s
o rig e ns da Revolução de 89.

Em face da E.evolução Francesa é das teheHões dê massas


em nossos dias, a n1esma conclusão se impõe :
- Rebelião das massas ?
-. Não. Rebeliãa: das 1ninorfas,

(11) - George Uscatescli., RebelicSil de t'asmiilorias, EldltoraNácfonât Ma-


drid 1955, pág. 101-102; . . .. .
(12) - As "Reflexões sôbre a vioiência" de déorges. Sôrel füspil;ârairi füovi�
mentas revolucío11áríos · da "esquerda" e das falsas "direitas;·� preten�
samente contra-revolucionárias.. Entre às ''ni·ito8'1 qtié Sofol realça�
estão o mito da "greve geral" · (sihdiCalismo) é dá "tevolU.Çãó catas;o
trófica" (Marx) .

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