Flávio de Carvalho - Experiência n.2

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E X P E R I Ê N C I A N . ' 2
tuwv EXPF.tt.r13sciA (jrtiinR \J
PSYCHftl.OGIA O.VS MUI/H" %
DOES n\ Q.V.\I. Krrirí.TOU'
SEÎIIO niSTunBio
Domingo, as- ]J horas, quando
desfilava pelas ruas do centro da
cidade, a procissão de "Corpus
Chrlstl". um rapaz muito bem pos.
to. que. .«« achava na esquina da
rua Direita e praça do Patriur- ,
qha. não »e descobriu, conservan-
do ostensivamente seu chapéu na,'
cabeça. il
Os crentes, que acompanhavam
o cortejo, revoltaram-se Com es-
sa attitude e exigiram em altos'
bradog que elle se descobrisse.'
Elle, no entanto, sorrindo, para',
ft turba, não tirou o chapéu, em-
, bora o clamor da multidão já ss
tivesse transformado em franca
ameaça. Foi então que innumerns
populares tenta/am lynchal-o. in-'
vestindo contra elle. O rapaz pou-
se em fuga, occuHando-se na Lei- '
teria Campo Bello. situada á rua j
de S&o Bento, até onde foi per-,
seguido pelos mais exaltados. !
!
O sub-delesrado de plantão na j
policia Central compareceu ao lo-
cal, onde deu garantias ao moco.
protegendo-o contra a ira do po-
vo.
Na policia Central, para onde
foi conduzido, declarou a víctima
da exaltação popular, ser o enge-
nheiro Flavio d» Carvalho. de
31 annos de edíide. residente á
praça Oswaldo Cruz, 1.
Nas suas declarações, disse. que.
ha tempos, se vem dedicando a
estudos sobre a psychologia das
multidões e tem m*smo algun*
trabalhos Inéditos sobre a maté-
ria. Para melhor orientação los
seus estudos, resolvera fazer uma
"O ESTADO DE S. PAULO"
experiência sobre a "capacidade 9 de Junho de 1931
aggríssiva de uma massa religio-
sa â resistência da força das leis !
clvlg, ou determinar se a forca
da crença c maior do que a força
ji da
6n
re';giâo
ponto
procissão
pcios
ec-ndo
farto
na".
Com
Terminou
descobriu,
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E X P E R I E N
C I A N . 2
REALISADA SOBRE U M A P R O C I S S Ã O DE GORPUS-CHRISTI
UMA POSSÍVEL TEORIA
E U M A E X P E R I Ê N C I A
FLAVIO DE CARVALHO
E n g e n h e i r o civil, membro do
Instituto de Engenharia, etc.
2 . EDIÇÀO
a
S À O PAULO -1931 — EDITORES: IRMÃOS FERRAZ

A D V E R T Ê N C I A
T O D A S AS I D E A S E X P O S T A S , T O D A S AS C O N C L U -
S Õ E S , SÃO T E N T A T I V A S P A R A A T I N G I R U M A SUPOSTA
V E R D A D E . A L G U M A S D A S E X P O S I Ç Õ E S SE A P R E S E N T A M
DE UMA MANEIRA APARENTEMENTE EXAGERADA —
E' UMA AMPLIAÇÃO DA VIDA NORMAL, U M A E S P É C I E
D E VISÃO MICROSCÓPICA D A V I D A A N I M I C A , F E N Ô -
MENO ILUSÓRIO E I M P E R C E P T Í V E L A OLHO N U ' .
C C N T E U D C :
A Experiência 7
Analyse 49
O parâmetro da astucia 103
A trilogia 119
O complexo de omnipotencia 141

Instincto grega rio 151
J U J T i r i C A C Ã C :
Desta edição foram impressos 3.000 volumes nu-

merados e rubricados pelo autor.
Direitos de reprodução e tradução reservados.

A S. S a n t i d a d e o P a p a P i o X I
A S. E m i n ê n c i a D . D u a r t e L e o p o l d o
O AUTOR
A E X P E R I Ê N C I A
Era dia de Corpus Christi; um sol agradável banha-

va a cidade, h a v i a u m ar festivo por toda parte ; mulhe-
res, h o m e n s e c r e a n ç a s m o v i a m c o r e s b e r r a n t e s de t e c i -
d o o r d i n á r i o ; negras velhas de ó c u l o s e b a t i n a o u q u a l -
q u e r c o u s a d e p a r e c i d o ; g r u p o s d e h o m e n s d e c o r se-
g u r a n d o estandartes, v e l a s ; a n j i n h o s sujos enfeitados
c o m estrelas de p a p e l d o u r a d o m a l pregadas ; mulheres
g o r d a s v e s t i d a s de c o r d e r o s a c a b e l o b e m e m p l a s t a d o
o l h a v a m o m u n d o e m redor c o m i n f i n i t a piedade. U m a
s u c c e s s ã o de gaze amarela, de tecidos pretos, v e l u d o s ,
padres rendados, c r i a n ç a s engomadas, pintadas e sujas
8 EXPERIÊNCIA N.° 2 - flavio de carvalho
de p ó de arroz, o l h a v a m c o m e s p a n t o ; f r e i r a s gordas e
p á l i d a s se m e c h i a m c o m o b e z o u r o s e n o r m e s , e o t r a f e g o
p a r a d o . O l h e i p a r a a c a t h e d r a l e v i n o t o p o d a escada-
ria homens beatos que a r r a n j a v a m c o m u m cuidado
sexual r a m o s de f o l h a s , flores, p a n o s d o u r a d o s e cousas
e m t o r n o de u m a l t a r . A l u z v i v a d o sol d e s t a c a v a o p ó
d e a r r o z r o x o das n e g r a s e os e n f e i t e s s u j o s d a s f a c h a d a s .
Parecia que o v e s t u á r i o do p o v o fazia u m todo
harmonioso com a architectura em r e d o r ; o protesto
d a a l m a pelas vestes coloridas, pela s u j e i r a p i n t a d a
se c o n c i l i a v a p e r f e i t a m e n t e c o m o e x h i b i c i o n i s m o i n -
f a n t i l , c a r o l a e p a c a t o d a a r c h i t e c t u r a . A s c o r n i j a s , os
ó v u l o s , as f l e x a s d o s p r é d i o s s e m e l h a v a m ser t a m b é m
d e p a p e l d e seda e v e l u d o .
C o n t e m p l e i p o r a l g u m t e m p o este m o v i m e n t o es-
t r a n h o de f é c o l o r i d a , q u a n d o m e occorreu a i d é a de
fazer u m a e x p e r i ê n c i a , desvendar a a l m a dos c r e n t e s ;
p o r m e i o de u m r e a g e n t e q u a l q u e r q u e p e r m i t i s s e e s t u -
d a r a r e a c ç a o n a s f i s i o n o m i a s , n o s gestos, n o passo, n o
olhar, sentir e m f i m o pulso do ambiente, palpar psychi-
c a m e n t e a e m o ç ã o tempestuosa d a a l m a c o l e c t i v a , re-
g i s t a r o e s c o a m e n t o d'essa e m o ç ã o , p r o v o c a r a r e v o l t a
p a r a v e r a l g u m a cousa d o inconsciente. D é i m e i a v o l t a ,
subi rapidamente em direcção á cathedral, tomei u m
electrico, e m e i a h o r a depois v o l t a v a m u n i d o de u m
boné.
A p r o c i s s ã o f o r m a d a escoava vagarosa ao s o m de
u m c â n t i c o sem c a d ê n c i a . M a s s a s de p o v o , c a b e ç a s
descobertas, assistiam á passagem, embevecidos, satu-
r a d o s de b o n d a d e e a u t o - s a t i s f a c ç ã o . P a r e c i a q u e t o d o s
t i n h a m a l c a n ç a d o o l i m i t e do c é o ; uns o l h a v a m para
os o u t r o s s a t i s f e i t o s , saciados.
T o m e i l o g o a r e s o l u ç ã o de p a s s a r e m r e v i s t a o
cortejo, conservando o m e u c h a p é o n a c a b e ç a e andando
e m d i r e c ç ã o oposta á que elle seguia p a r a m e l h o r o b -
, servar o efeito do m e u acto i m p i o n a f i s i o n o m i a dos
Padres r e n d a d o s , c r i a n ç a s e n g o m m a d a s , p i n t a d a s e s u j a s
de p ó de a r r o z , o l h a v a m c o m e s p a n t o .
crentes. A m i n h a altura, acima do n o r m a l , m e t o r n a v a

mais visivel, destacando a m i n h a a r r o g â n c i a , e facili-
t a n d o a t a r e f a de c h a m a r a a t e n ç ã o . A p r i n c i p i o m e o l h a -
v a m com espanto — me refiro á assistência, porque
a q u e l l e s q u e e r a m d a p r o c i s s ã o se p o r t a v a m d i f e r e n t e -
m e n t e , elles e r a m os e l e i t o s de deus, os e s c o l h i d o s , e
f o r m a v a m u m a massa e m m o v i m e n t o lento, contras-
tando em qualidade com a assistência i m ó v e l ; eram,
portanto, praticamente, o único m o v i m e n t o em todo o
i m e n s o percurso d a p r o c i s s ã o , e esta s i t u a ç ã o de m o v i -
mento naturalmente exigia o m o n o p ó l i o da atenção
geral, e u m a p r e s e n ç a p e r t u r b a d o r a como era a m i n h a
deveria influir diferentemente na procissão em m o v i -
mento e na assistência.
A p r o c i s s ã o e r a o p r i n c i p a l a t r a c t i v o . E x i g i a os
o l h a r e s d e t o d o s e u m e l e m e n t o p e r t u r b a d o r se t o r n a v a
a s s i m , e m m a i o r o u m e n o r g r á o , u m r i v a l d a b e a t a a ser
desejada. I s t o e x p l i c a r á mais tarde porque a a t i t u d e da
p r o c i s s ã o p a r a c o m m i g o era b e m d i f f e r e n t e d a a t i t u d e
da assistência. A ' m e d i d a que c a m i n h a v a recebia d a
p a r t e j o v e m da a s s i s t ê n c i a olhares a g r a d á v e i s e da
parte v e l h a u m certo desagrado.
N a p r o c i s s ã o , u m g r a n d e n u m e r o d e n e g r o s edosos
m e o l h a v a p a c a t a m e n t e , r e s i g n a d o s ; as v e l h a s d e a m -
bas as cores n ã o se i n d i g n a v a m ; o l h a r d e s u b m i s s ã o e
s u p l i c a q u e d i z i a " t e n h a d ó d e m i m " , e a p a r t e de t e r
d ó d i m i n u í a e m intensidade á medida que a j u v e n t u d e
crescia.
Quando insistia na m i n h a a r r o g â n c i a muitas olha-
v a m para cima e apertavam com mais fervor o objecto
e n t r e as m ã o s ; m u i t a s vezes e r a u m a v e l a p o s s a n t e ;
p a r e c i a q u e o f e r v o r a u g m e n t a v a . A ' s vezes c o c h i c h a -
v a m á d e s c o b e r t a d a m i n h a pessoa á c o m p a n h e i r a a o
lado.
Os padres velhos e m o ç o s a f e c t a v a m u m a s u b m i s -
s ã o d i v i n a o l h a n d o p a r a c i m a e de vez e m q u a n d o m e
A E X P E R I Ê N C I A 11
e s p i a v a m s o r r a t e i r a m e n t e p a r a v e r o e f e i t o d a sua a t i -
t u d e sobre o i n s ó l i t o passante. A r u a era estreita e
a a s s i s t ê n c i a se c o m p r i m i a . L o c o m o v i a - m e c o m d i f i -
c u l d a d e , p e n e t r a n d o a m u l t i d ã o c o m o u m a f o l h a de
p a p e l , de l a d o , o n d u l a n d o - m e o m a i s p o s s í v e l .
V i u m v e l h o a m i g o a u n s m e t r o s de d i s t a n c i a e
passei p o r elle f i n g i n d o que n ã o o v i a m a s estava sciente
d e q u e ele m e h a v i a r e c o n h e c i d o , a a l g u n s passos de
distancia dei meia volta, justamente a tempo para vê-lo
m e reconhecer e v i r a r a cara. N ã o sei se e r a p o r q u e
estava a c o m p a n h a d o de u m a m o ç a o u d e v i d o á m i n h a
atitude provocadora. Parei por algum tempo contem-
p l a n d o a p a s s a g e m de u m a i r m a n d a d e de h o m e n s d e
cor, todos vestidos c o m uns panos brancos e r o x o creio,
(o b r a n c o m o s t r a n d o a s u j e i r a d o u s o ) t o d o s m e o l h a -
vam c o m curiosidade passiva, c o m incomprehensão
mesmo. Sentia, p o r e m , que c o m e ç a v a a aparecer u m a
certa i n d i g n a ç ã o geral, u m a i n d i g n a ç ã o c o n t i d a ; n i n -
g u é m se m a n i f e s t a v a m a s via-se a d u v i d a d o s assisten-
tes e a h u m i l h a ç ã o p a c a t a d a m a s s a e m m o v i m e n t o .
O s p a d r e s r e z a v a m c o m m a i s f e r v o r , as f r e i r a s i n -
c r é d u l a s n ã o c o m p r e h e n d i a m , os v e l h o s se p a r e c i a m
c o m as v e l h a s , e r a m d e u m a r e s i g n a ç ã o e f e m i n a d a , l e n d o
o b r e v i a r i o de m a i s p e r t o , a p e r t a n d o mais o t e r ç o o u
olhando para o c é o com mais afinco. Imagens coloridas
c a s t i ç a e s sujos, fitas, crucifixos, passavam e repetiam-
se c a r r e g a d o s p o r v e l h a s e v e l h o s q u e e v i d e n t e m e n t e
se s e n t i a m h u m i l h a d o s c o m a m i n h a a t i t u d e , m a s p a r e -
c i a m o r g u l h o s o s de p e r t e n c e r e m á u n i d a d e e m m o v i -
m e n t o . A e m o ç ã o desta p a r t e d o c o r t e j o era de a u t o -
c o n v i c ç ã o de superioridade m a n i f e s t a d a p o r u m a sub-
m i s s ã o e f e m i n a d a ao chefe deus.
N ã o t i n h a mais nada que observar a l i .
C o n t i n u e i o m e u c a m i n h o e m busca de u m n o v o
p a n o r a m a , v e n c e n d o c o m d i f i c u l d a d e , a t r a v e z d a assis-
t ê n c i a c o m p a c t a , recebendo o c o n t a c t o i n d e s e j á v e l de
m u l h e r e s gordas suadas, h o m e n s b o j u d o s , m a g r o s , c o m
cotovelos afiados. O l h o para a p r o c i s s ã o e v e j o u m n ã o
a c a b a r m a i s de f i l h a s d e M a r i a t o d a s de b r a n c o e p á l i -
das, t o d a s j o v e n s e m u i t a s d e l l a s b e m b o n i t a s . E r a r e a l -
mente u m novo panorama em campo diferente ; u m a
n o v a e m o ç ã o m a i s cheia de " i t " . Parecia-me q u e o cor-
t e j o se t o r n a r a m a i s v o l u p t u o s a m e n t e e f e m i n a d o , o
cheiro mesmo do ambiente tinha mudado. Mostrei-me
resoluto, e c o m enthusiasmo pervaguei o o l h a r sobre
as c a b e ç a s b r a n c a s , u m a v i s ã o de r o s t o s p á l i d o s , c a b e -
los l o u r o s e escuros, o l h o s d e t o d a s as cores r e m e c h i a m ,
umas carregavam e s t a n d a r t e s o u c r u c i f i x o s n ã o sei
bem ; a m a i o r i a n ã o fazia nada o u t i n h a n a m ã o u m bre-
v i a r i o o u u m t e r ç o . N e m sequer c a n t a v a m naquele
momento. Percorri mais demoradamente toda a exten-
ç ã o branca e observei algumas caras a q u i e a l i . A l g u -
mas j á me t i n h a m visto e c o m m u n i c a v a m o ocorrido á s
suas c o m p a n h e i r a s . N ã o p a r e c i a m d e s c o n t e n t e s c o m a
descoberta. N e n h u m a animosidade
H O cortejo tinha parado. M o v i m e n t e i - m e u m pouco
para chamar mais a atenção. A assistência continuava
passiva para comigo. Olhei em redor e v i do o u t r o lado
d a r u a u m a s e n h o r a c o n h e c i d a a c o m p a n h a d a de u m a
m o ç a b e m bonita. A m i n h a conhecida, convenientemente
e v i t a v a m e r e c o n h e c e r , p o r é m p o u c o d e p o i s , sem d u v i d a
p o s s u i d a de a r r e p e n d i m e n t o sacro, e l a m e a g r a c i o u c o m
u m sorriso quasi s a t â n i c o , em p e r f e i t a h a r m o n i a c o m
o m e u e s t a d o a v e n t u r e i r o . A g r a d e c i de l o n g e , d e u m a
maneira n ã o comprometedora, mas eu estava muito
m a i s i n t e r e s s a d o n a m o ç a ao l a d o , q u e j á c o m e ç a v a a
m e parecer atrahente.
M e u e s t a d o f i c t i c i o e x p e r i m e n t a l se a p r a z i a de
e n c o n t r a r u m o b s t á c u l o , u m a q u a l q u e r c o u s a q u e des-
tacasse a m i n h a f a n t a z i a , d a n d o - m e a i d e a d e q u e t i n h a
d e i r l o n g e p a r a m e t o r n a r m e s t r e d a s cousas. S c i e n t e
d a m i n h a o b s e r v a ç ã o , ela o c u l t a v a p u d i c a m e n t e o seu
olhar do meu, augmentando a m i n h a cota de mons-

truosidade.
M i n h a atitude atrahia e em parte monopolizava
a a t e n ç ã o . J á c o m e ç a v a m a d i s c u t i r e raciocinar sobre
o m e u gesto, padres e f r e i r a s . J á m e o l h a v a m de u m
m o d o exquisito. U m ou outro i n d i v í d u o protestava
t i m i d a m e n t e , de longe, escondendo o seu g e s t o ; as
f i l h a s d e M a r i a se e n t r e o l h a v a m t í m i d a s e m e f i x a v a m
submissas, e n c a n t a d o r a m e n t e , a p e r t a n d o n a m ã o o bre-
v i a r i o o u u m accessorio.
E m p r e h e n d i i m e d i a t a m e n t e u m a serie d e " f l i r t s " ,
escolhendo 'entre outras 2 louras bonitas, 2 morenas
b o n i t a s e 2 feias de c a d a t y p o .
P r o c u r e i m a n t e r c o m as e s c o l h i d a s u m " f l i r t " r a -
z o á v e l , t a n t o q u a n t o m e era p o s s í v e l d e n t r o de u m
a m b i e n t e q u e se t o r n a v a a c a d a i n s t a n t e m a i s h o s t i l .
F u i l e n t a m e n t e correspondido, p r i n c i p a l m e n t e pelas feias.
T r o c a m o s longas e voluptuosas mensagens, promessas
fiticias, arrependimentos, emfim toda a costumada gam-
m a amorosa humana.
A m i n h a a t i t u d e era realmente provocadora. A
a s s i s t ê n c i a , a t é e n t ã o passiva, c o m e ç o u a inquietar-se.
Os c o m e n t á r i o s j á c o r r i a m abertamente. V i o perigo da
m i n h a s i t u a ç ã o e a g r a n d e d i f i c u l d a d e de q u a l q u e r f u g a
e n t r e a massa c o m p a c t a ; p o r é m , o alcance da e x p e r i ê n -
cia era m a i o r do que parecia á p r i m e i r a vista. A s f i l h a s
de M a r i a excediam a t o d a e x p e c t a t i v a . V a l i a a pena
arriscar mais cinco minutos. E u queria realmente ver
se t o d a s se m a n i f e s t a v a m d e u m a m a n e i r a c o n q u i s t a d a
e submissa. I n i c i e i i m e d i a t a m e n t e u m vigoroso " v a m -
p i n g " c o m t o d a a massa branca, a p r i n c i p i o d a n d o pre-
d i l e c ç ã o a u m a o u a o u t r a , e aos p o u c o s a b o l i n d o a p r e -
d i l e c ç ã o e m e dedicando altruisticamente a todas. O
m e u successo n ã o f o i c o m p l e t o , m a s d e t o d a s a q u e l a s
que cederam á m i n h a a r r o g â n c i a , v a m o s dizer uns 70 %
d o t o t a l p r e s e n t e , u m a m e i a d ú z i a p a r e c i a n ã o se p r e o -
cupar c o m a p r i s ã o religiosa, m e encarando resoluta-

mente submissas. O u t r a s e r a m submissas t i m i d a m e n t e .
Via-se que g u a r d a v a m u m a certa r e c o r d a ç ã o grata do
outro delator, o Christo.
E r a evidente que o m e u m u n d a n i s m o atrahia pelo
seu c a r a c t e r a u d a c i o s o , h e r ó i c o , — as f i l h a s d e M a r i a ,
c e d e n d o s o r r a t e i r a m e n t e , se m o s t r a v a m u n i c a m e n t e m u -
lheres.
U m a delas, p o r é m , d e s t o o u c l a r a m e n t e d a s o u t r a s .
i r a u m a m o ç a alta, u m t a n t o cheia, t i n h a o n a r i z ar-
c a d o e s e g u r a v a u m e s t a n d a r t e . E l a se p a r e c i a m a i s c o m
u m sargento de c a v a l a r i a q u e c o m u m a f i l h a d a V i r g e m ,
e o seu o l h a r f r a n c a m e n t e a g r e s s i v o m e escrutava.
N ã o p o d i a o u v i r o que ela dizia e m voz b a i x a a sua c o m -
p a n h e i r a , m a s os seus l á b i o s p a r e c i a m p r o f e r i r i n j u r i a s
d o m a i s b a i x o c a l ã o . T e n h o c e r t e z a d e q u e se e s t i v e s s e
ao seu a l c a n c e s e r i a u n h a d o e m o r d i d o s e m r e s e r v a s .
Notei, t a m b é m , u m f e n ô m e n o bem curioso. A i n -
t e r f e r ê n c i a d o c a n t o n a m i n h a a c t u a ç ã o . O u a s i t o d a s se
esqueciam de m i m logo que c o m e ç a v a m a c a n t a r .
Os protestos a u g m e n t a v a m . A m u l t i d ã o m e c o m -
p r i m i a : o a m b i e n t e estava pesado e hostil. Segui o
m e u c a m i n h o c o m o p u d e , a p e r t a d o e c o t u c a d o , j á agres-
s i v a m e n t e . C o m d i f i c u l d a d e c o n s e g u i a p a s s a r ; os h o m e n s
n ã o se a r r e d a v a m u m d e d o , e e r a o b r i g a d o a e m p u r r a -
los d o c i l m e n t e ; as m u l h e r e s d a a s s i s t ê n c i a p e r m a n e c i a m
passivas, t a n t o q u a n t o m e f o i possivel observar.
E s t a v a p e n e t r a n d o u m a zona d i s t i n c t a m e n t e hos-
t i l , pois pela f r e n t e f a r t a m e n t e m u n i d o s de e s t a n d a r t e s
e f i t a s v e r m e l h a s , c a s t i ç a e s , t e r ç o s e o u t r o s accessorios,
apareceu u m a h o r d a de m o ç o s b e m vestidos, m u i t o s dos
q u a e s u s a v a m ó c u l o s . E r a m e v i d e n t e m e n t e pessoas de
colégios, universidades, profisionaes diversos. Perten-
c i a m á c h a m a d a classe b u r g u e z a e e s t a v a m c r e i o , t e n -
t a n d o c a n t a r a l g u m a cousa.
Os padres o l h a v a m p a r a o ceu c o m m a i s a f i n c o e e u a c t u a -
va sobre as f i l h a s de M a r i a .
M e u estado j á era de a g i t a ç ã o . E u p e r c e b i a clara-

mente que a m i n h a presença indesejável n ã o poderia
ser a t u r a d a p o r m u i t o t e m p o , e, a p e s a r d o s p r o t e s t o s
i r r i t a n t e s que e c o a v a m ao m e u o u v i d o c o m o u m a
a m e a ç a crescente, conservei o m e u c h a p é o n a c a b e ç a
e p r o c u r e i m a n t e r u m a a p a r ê n c i a de c a l m a .
C o m o se m a n i f e s t a r i a a p a r t e j o v e m e m á s c u l a d a
p r o c i s s ã o ? A t é que p o n t o chega o c o n t r o l e ancestral
d o deus a a b a f a r a r e v o l t a do j o v e m ? E r a m q u e s t õ e s
q u e m e p r e o c u p a v a m , apesar d o m e u estado de g r a n d e
t e n s ã o nervosa. N ã o podia n e m mesmo hesitar — o
m e u m e c a n i s m o de calculo p r e c o n c e b i d o m e f a z i a a u t o -
maticamente conservar o c h a p é o n a c a b e ç a e encarar
o m u n d o em redor c o m grande calma aparente. D e i
a l g u n s passos p a r a f r e n t e , q u a n d o m e c h a m a r a m p e l o
n o m e . V i r o - m e e v e j o u m colega, u m v e l h o a m i g o m e u ,
de f i t a v e r m e l h a n o p e s c o ç o e b r e v i a r i o n a m ã o . N ã o
m e surprehendi. E l e m e pega pelo b r a ç o e m e leva p a r a
u m recesso d a v i t r i n a d e u m a c a s a d e m o d a s a l i m e s m o
ao l a d o : " F l a v i o v o c ê p r e c i s a t i r a r o c h a p é o " m e d i z
em t o m amistoso e f i r m e .
R e s p o n d i i m e d i a t a m e n t e que n ã o perdesse o seu
t e m p o , de m o d o a l g u m t i r a r i a o c h a p é o . O m e u a m i g o ,
perante a p r e c i s ã o da m i n h a resposta, n ã o p e r d e u o
seu t e m p o e v o l t o u p a r a a p r o c i s s ã o .
Foi praticamente o primeiro protesto, o primeiro
q u e se m a n i f e s t o u a b a n d o n a n d o os l a ç o s d a p r o c i s s ã o .
A i m p o r t â n c i a d o p r o t e s t o é acrescida pelo f a c t o de
ser f e i t o p o r u m c o l e g a . C h a m o a a t e n ç ã o s o b r e este
ponto, que será amplamente discutido mais tarde.
C u r i o s o de v e r c o m o s e r i a a p r e c i a d a a d e m a r c h e
fracassada, conservei-me parado p o r alguns instantes,
p r o c u r a n d o f i x a r a m i n h a a t e n ç ã o n a massa i n q u i e t a de
j o v e n s c o m f i t a s v e r m e l h a s , m a s o t u m u l t o crescia. C o m
d i f i c u l d a d e conseguia colher o b s e r v a ç õ e s , e o m e u racio-
cinio j á n ã o f u n c i o n a v a como dantes. A e m o ç ã o do m o -
\ E X P E R I Ê N C I A 17
m e n t o c o m e ç a v a a m e i n v a d i r aos p o u c o s ; t e n t a n d o
d o m i n a r o m e u m e c a n i s m o p r e c o n c e b i d o de c a l c u l o , v i
v a g a m e n t e u m a p o r ç ã o de c a r a s m o ç a s , u m o u o u t r o
v e l h o , a p a r t e de c i m a d e v e l a s n ã o sei b e m , u m c o m e ç o
de i n d i g n a ç ã o m a i s o u m e n o s c o n t i d a , u m o u o u t r o gesto
m o d e r a d o f e i t o c o m os d e d o s d i r i g i d o s a m i m , m a i s isso
t u d o p a r e c i a crescer.
U m v e l h o n a a s s i s t ê n c i a disse q u a l q u e r c o u s a a
q u e n ã o l i g u e i m u i t o . N a p a r t e c e n t r a l u m g r u p o de
j o v e n s m e a m e a ç a v a c o m os p u l s o s . O l h e i p a r a t r a z .
A p r o c i s s ã o estava p a r a d a . T o d o s p a r e c i a m esperar
a l g u m a cousa.
Alguém grita timidamente : "tira o chapéo". E n -
d u r e c i o c o r p o e o l h e i e m r e d o r p o r c i m a d o m a r de
cabeças.
T o d o s se a g i t a v a m ; p a r e c i a m q u e f a l a v a m m u i t o e
o v o l u m e de s o m a u g m e n t a v a s e m p r e , m a s as p a l a -
vras n ã o eram dirigidas a m i m .
Olhei p a r a f r e n t e p a r a calcular a sahida, quando
a l g u é m g r i t a " t i r a o c h a p é o " ; seguem-se o u t r o s " t i r a o
c h a p é o " . A s a h i d a e s t a v a d i f í c i l — u m a b a r r e i r a de g e n t e
se i n t e r e s s a v a p e l a m i n h a s o r t e ; a t r a z d e m i m h a v i a
g r a n d e m o v i m e n t o . V i r o - m e e v e j o u m a p o r ç ã o de j o -
vens e m atitudes a m e a ç a d o r a s . A l g u é m m e e m p u r r a e
u m a p o r ç ã o de m ã o s m e a g a r r a m ; sacudo-me violen-
t a m e n t e , desprendendo-me das garras. A e m o ç ã o d o
m o m e n t o se a p o d e r a v a d e m i m c a d a v e z m a i s , q u a n d o
por detraz me arrancam o c h a p é o da cabeça. Viro-me
i n s t a n t a n e a m e n t e , m a s o personagem j á t i n h a desapa-
r e c i d o . V i a apenas u m t u m u l t o de b r a ç o s , pernas e gente
que c o n t i n u a v a m a gritar " t i r a o c h a p é o " , conservando
u m a d i s t a n c i a de 3 m e t r o s d e m i m . P a r e ç i a m q u e r e r
a v a n ç a r , m a s e s t a v a m indecisos, g e s t i c u l a v a m m u i t o ,
V i m u i t a c a r a v e r m e l h a , r o x a m e s m o , roxas de r a i v a .
C o n t e m p l e i p o r a l g u n s i n s t a n t e s e s t a scena c u r i o s a ;
u m a m a s s a d e g e n t e l e v a d a ao e x t r e m o d o o d i o dese-
jando me devorar e controlada por u m a e m o ç ã o qual-

quer que a r e t i n h a indecisa ; c o m a c a b e ç a descoberta,
a p e s a r d a t e n s ã o d o m o m e n t o , n ã o sei o q u e m e r e t i n h a
n o l u g a r , p r o v a v e l m e n t e u m resto de c u r i o s i d a d e , esta-
v a n o p o n t o de r e s o l v e r se d e v i a o u n ã o e x i g i r a e n t r e g a
do m e u c h a p é o , quando u m j o v e m que aparentava uns
15 a n o s se a p r o x i m a e m e e n t r e g a o c h a p é o d i z e n d o
" p o n h a se f o r h o m e m " .
C r e i o q u e f o i o j o v e m q u e disse, m a s n ã o t e n h o
certeza. T a l v e z t e n h a sido u m o u t r o , a t r a z o u ao l a d o .
N ã o m e sentia m u i t o seguro, e m i n h a c a l m a a p a r e n t e
e s t a v a e m p e r i g o d e ser d e s m a n t e l a d a . E m r e d o r d e
m i m r e i n a v a u m p r o f u n d o s i l e n c i o . A o l o n g e a i n d a se
o u v i a m u n s r e s t o s de c â n t i c o s ; t o d o s o l h a v a m p a r a o
r a p a z e p a r a m i m . A s i m p r e c a ç õ e s e os g e s t o s t i n h a m
cessado. A g r a d e c i o r a p a z e c o n s e r v e i - m e i n d e c i s o p o r
alguns instantes ; a e m o ç ã o do m o m e n t o m e aconselha-
v a seriamente a abandonar o terreno ; p o r é m , o m e u
desejo e x p e r i m e n t a l p r o j e c t a d o de a n t e m ã o , m e d i z i a
num sopro apenas p e r c e p t í v e l " c o n t i n u a , c o n t i n u a " .
N ã o sabia b e m o que fazer. A agressividade do p o v o ,
a i m i n ê n c i a de u m estouro n o s e n t i m e n t o de o d i o r e t i -
do, m e i n c l i n a v a a f a z e r o uso d a p a l a v r a c o m o u m m e i o
de o r i e n t a r o i m e n s o p o t e n c i a l de o d i o a c u m u l a d o .
O p a n o r a m a era realmente curioso ; u m a l t o p o t e n -
c i a l de o d i o p a i r a v a sobre u m a massa, e x i g i n d o u m a
sahida. I n s t á v e l , s a t u r a d o de a n c i ã p a r a o m o v i m e n t o ,
em baixo agitavam-se b r a ç o s , pernas e c a b e ç a s . T i n h a
a i m p r e s s ã o d e v e r u m a scena m i c r o s c ó p i c a d e b o n e c o s
desconjuntados, onde b r a ç o s e pernas debatiam-se sem
p o n t o de a p o i o e s e m l i g a ç ã o c o m c o u s a a l g u m a . P a r e -
c i a m c a s t i g a r u m a n a t u r e z a v a s i a . E u t i n h a m e esque-
c i d o que estava n a s i t u a ç ã o e m que estava. M i n h a per-
c e p ç ã o saltava f o r a da realidade, mas n e n h u m a v i s ã o
era segura e o m e u o r g a n i s m o , sem d u v i d a , descobrindo
i s t o , de u m a m a n e i r a d e f e n s i v a , i n c o n s c i e n t e , r e a g i r a ,
e m p u r r a n d o - m e d e n t r o d a realidade. Sentia que sahir

d a r e a l i d a d e e r a o m e l h o r m e i o de m e d i r a q u e d a e n t r e
o irreal e o facto concreto.
O s j o v e n s a g i t a d o s m e p a r e c e r a m de r e p e n t e m u i t o
reaes e m u i t o c o n c r e t o s ; e u m u d a v a de s i t u a ç ã o d o
m e s m o m o d o c o m o se c o s t u m a escolher u m a s i t u a ç ã o
c o n v e n i e n t e n u m s o n h o q u e s e g u i u u m c a m i n h o des-
agradável.
A p a l a v r a era a ú n i c a a r m a que p o s s u í a e fazer uso
d a p a l a v r a impunha-se, m e s m o p o r q u e o p e r í o d o de
s i l e n c i o , a p e s a r d e b e m c u r t o n ã o p o d i a se p r o l o n g a r
por mais tempo, mas dizer o que. . . E l o g i a r a atitude
d o p o v o n ã o m e p a r e c i a seguro, p o r q u e d e n t r o d o m e u
e s t a d o d e e s p i r i t o s e r i a i n c a p a z de e l o g i a r s e m r i d i c u l a -
r i z a r sem h u m i l h a r pelo sarcasmo. J á c o m e ç a v a a d e f i -
n i r u m p o u c o m e l h o r a p o s i ç ã o . R e s o l v i f a z e r uso, o u ,
m e l h o r , t e n t a r f a z e r u s o d o p o d e r de r a c i o c í n i o d a s
massas. Pensei que apelando p a r a a i n t e l i g ê n c i a talvez
conseguisse a l g u m a c o u s a ; n ã o s a b i a p a r a o q u e m a i s
apelar.
A b r i os m e u s b r a ç o s n u m g e s t o p a t r i a r c h a l e p a -
thetico e expliquei com d o ç u r a : " e u sou u m c o n t r a
mil"... a a g i t a ç ã o i m m e d i a t a m e n t e cresceu e t o d o s
p a r e c i a m d i s c u t i r indecisos entre si. R e p e t i n o v a m e n t e
o que a c a b a v a de dizer. O b a r u l h o d a d i s c u s s ã o a u g m e n -
t o u o v o l u m e . F i q u e i p a r a d o , sem saber o que fazer,
t e m e n d o m e r e t i r a r b r u s c a m e n t e p o r q u e sem d u v i d a
seria a g a r r a d o e e s t r a ç a l h a d o . V i a p e r f e i t a m e n t e que
n e m elles p o d i a m c o n t i n u a r d i s c u t i n d o , n e m e u c o n t i -
n u a r p a r a d o . A l g u m a cousa precisava acontecer. M e u
i n s t i n c t o de c o n s e r v a ç ã o m e m o s t r a v a q u e q u a n t o m a i s
c e d o acontecesse o q u e t i n h a d e a c o n t e c e r m e l h o r s e r i a
p a r a m i m ; o p o v o j á se a c u m u l a v a p o r t o d o s os l a d o s ;
g r u p o s se f o r m a v a m r e s o l v i d o s a t o m a r u m a a t i t u d e
q u a l q u e r ; e m e parecia que teria m a i o r probabilidade
de escapar i n i c i a n d o u m a acção immediata, u m a ofen-
siva, dizemos, d o que esperar pelo a t a q u e d o a d v e r s á r i o .

A minha inferioridade n ã o permitia outra atitude.
O m e u apelo ao r a c i o c í n i o t i n h a f r a c a s s a d o p o r c o m -
p l e t o . A m a s s a t i n h a r e a g i d o p e l a e m o t i v i d a d e ances-
tral, e n ã o pelo raciocínio. A m i n h a d e m o n s t r a ç ã o n u -
m é r i c a só conseguio h u m i l h a r , me colocar n u m a posi-
ç ã o mais alta que a anterior..
O l h e i p a r a as c a r a s d a m i n h a f r e n t e , t o d a s h o m i c i -
das, v i n d i c a t i v a s , r e v o l t a d a s , t o d a s n a e x p e c t a t i v a . N ã o
p o d i a s e q u e r m e m e x e r . Se desse u m p a s s o s e r i a a g a r -
r a d o e e s t r a ç a l h a d o . U m a i d e a m e o c o r r e u , de colocar-
me n u m a posição fantástica incrível, inadmissível, pro-
v o c a r u m a c o n f u s ã o m o m e n t â n e a n o s e n t i m e n t o das
massas, u m a i n d e c i s ã o q u a l q u e r , p a r a f a c i l i t a r a m i n h a
r e t i r a d a . R e s o l v i e n t ã o , i n s u l t a r as m a s s a s í m p i e d o s a -
m e n t e . " E u sou apenas u m " . . . comecei e m voz b e m a l t a
" v o c ê s s ã o centenas. . . "
U m j o v e m de cabelos l o u r o s i n d i g n a d o p r o t e s t a
" v o c ê s . . . q u e m . . . " A natureza aparentemente pueril
do protesto me surprehendeu sumamente ; n ã o poîa
comprehender, n u m m o m e n t o de e x c i t a ç ã o m á x i m a u m
p r o t e s t o t ã o p e q u e n o ; e r a e v i d e n t e q u e o d e s e j o de n i v e -
l a m e n t o estava a l i , p o r e m o que eu n ã o comprehendia é
q u e ele se m a n i f e s t a s s e p o r u m m u n d a n i s m o t ã o b a n a l ,
t ã o i n s i g n i f i c a n t e , m u i t o m a i s p r ó p r i o aos t a g a r e l a s de
s a l ã o , e e m m a g n í f i c o c o n t r a s t e c o m a s c e n a q u e se
desenrolava naquelle m o m e n t o .
M e u h u m o r excitado n ã o pude por mais tempo
c o n t e r u m r i s o i r r e v e r e n t e . O s e n h o r l o u r o s e n t i u o sar-
casmo da s i t u a ç ã o , e aborrecido balbuciou qualquer
c o u s a , a b a n d o n a n d o a p o s i ç ã o de d e s t a q u e e i m i s c u i n d o
se n a m a s s a .
E u continuava em perfeita c o m m u n i c a ç ã o mental
c o m a m a s s a , s e n t i a t o d a s as o s c i l a ç õ e s , e r e a g i a de acor-
do com a m i n h a tendência no momento. M e u humor
f o r a p r o v o c a d o e m e passou pela c a b e ç a a i d é a de fazer
u m discurso c a t h o l i c o , e l o g i a n d o o deus e a f é , a v o n t a d e
d o p o v o , c o n c o r d a n d o c o m a a t i t u d e agressiva, e m e
entregando h u m i l d e e submisso. Por alguns m o m e n t o s
visualisei a e m o ç ã o e x t r a o r d i n á r i a que podia me pro-
p o r c i o n a r esta a t i t u d e . V i - m e o d i a d o e h u m i l h a d o e
depois christianamente perdoado e abandonado com
d e s p r e s o . V i m u l h e r e s g o r d a s m e o l h a r c o m o se fosse
mais efeminado que u m a virgem p u d i c a submissa ; ho-
m e n s c o m desejos homosexuaes e sem d u v i d a v i r i a a l -
guma mulher querendo me adoptar como ornamento
de cabeceira.
A v i s ã o era emocionante, mas terrivel. N ã o p o d i a
m e c o n f o r m a r e m m a t e r i a l i z a - l a . M e u s e n t i m e n t o de
v i r i l i d a d e e r a p r o v a v e l m e n t e a c i m a dessa s u b m i s s ã o
e e u t i n h a d e c o n t i n u a r o m e u d i s c u r s o n u m t o m agres-
sivo e h u m i l h a n t e . Sentia que o m o d o pelo q u a l a m i n h a
e m o ç ã o e s t é t i c a se t i n h a d e s e n v o l v i d o n ã o m e p e r m i -
t i r i a d i r i g i r - m e ao p o v o p o r " s e n h o r e s " .
" C o v a r d e s . . . " recomecei, " m i l c o n t r a u m " 1 E n -
t r e m entes aparece n o v a m e n t e o j o v e m senhor l o u r o ;
desta vez disposto, segundo m e declarou, a l u t a r c o m i g o
sosinho. S e m p r o f e r i r p a l a v r a , c o m u m gesto c o m p r e -
hensivel, mostrei a horda agitada em redor e a inconve-
n i ê n c i a p a r a m i m de q u a l q u e r l u t a naquelle m o m e n t o .
E n t ã o o seu h e r o í s m o r e d o b r o u d e m a g n i t u d e , e
alguns amigos bem intencionados tentaram agarra-lo.
Q u a n t o m a i s p r o c u r a v a m a g a r r a - l o , m a i s ele se d e b a t i a
c o m f u r o r h e r ó i c o . N o entanto, acabou cedendo a m á v e l -
m e n t e á s s o l i c i t a ç õ e s d o s seus a m i g o s ú t e i s .
U m a n o v a f o r m a d e t u m u l t o se e s t a b e l e c i a . Pre-
o c u p a d o , e u n ã o v i a n e n h u m a das c a r a s e m r e d o r d e
m i m , m a s s e n t i a p e r f e i t a m e n t e q u e o p o t e n c i a l de o d i o
augmentava. E r a suficiente observar o m o v i m e n t o geral
e os d e s l o c a m e n t o s p a r c i a e s d a s m a s s a s e m r e d o r , p a r a
obter u m a m e d i d a bastante exacta do perigo.
I a r e c o m e ç a r o m e u discurso, q u a n d o surge u m per-

sonagem p e q u e n o , v e s t i d o de p r e t o , m o r e n o e m a g r o ,
que t a m b é m queria l u t a r comigo. N o v a m e n t e e x p l i -
q u e i a i n c o n v e n i ê n c i a desse p r o c e d i m e n t o n u m a m b i e n t e
u n a n i m e c o n t r a m i m ; a f a s t e i - o d o c i l m e n t e ; elle n ã o
i n s i s t i u m u i t o , e v o l t o u c o n s o l a d o p a r a as f i l e i r a s d o s
seus c o m p a n h e i r o s . " E v i d e n t e m e n t e " , c o n t i n u e i , f a l a n d o
o mais alto, que podia, e c o m a voz m a i s grossa q u e
t i n h a : "coagido pela f o r ç a b r u t a , v e n c i d o pelo n u m e r o ,
vejo-me f o r ç a d o a c o n t i n u a r o m e u c a m i n h o sem c h a p é o "
u m r u m o r de d e s a g r a d o p e r c o r r e u a m u l t i d ã o , " m a t a . . .
pega. . . " gritou a l g u é m .
C o n t i n u e i a f a l a r , e ao m e s m o t e m p o tentando
u m a r e t i r a d a a n d a n d o de costas de v a g a r — e r a o ú n i c o
m e i o — n u m a r e t i r a d a b r u s c a seria i r e m e d i a v e l m e n t e
agarrado. E r a preciso fazer a m u l t i d ã o pensar, estabe-
lecer u m a d u v i d a q u a l q u e r ; p r o l o n g a r a v i n d a d a reac-
ç a o e m o t i v a - i n c o n s c i e n t e ; era t a m b é m e v i d e n t e que
quanto mais retardada a r e a c ç ã o , m a i s v i o l e n t a ela
v i r i a , e é claro t a m b é m que q u a n t o m a i s eu h u m i -
l h a v a a m u l t i d ã o , m a i o r o n u m e r o de c a r a c t e r e s d e
odio em evidencia, f e n ô m e n o p e r f e i t a m e n t e v i s í v e l .
O b s e r v e i t a m b é m q u e as o s c i l a ç õ e s d a r e a c ç ã o n ã o
estavam em c a d ê n c i a com o reagente p r o v o c a d o r ; ha-
v i a u m a d e c a l a g e m e n t r e os d o i s m o v i m e n t o s e essa
decalagem parecia depender d o t e m p o gasto p o r u m a
e m o ç ã o e m c o n t a g i a r u m a m a s s a de p o v o . P o r t a n t o
q u a n t o m a i s e u p r o l o n g a v a esse c o n t a g i o , m e l h o r p a r a
m i m ; quanto m a i o r a decalagem, m a i o r o espirito
de d u v i d a , e a c r e d i t a v a f i r m e m e n t e q u e u m a t a q u e
v i o l e n t o p o r m e i o de p a l a v r a s e s t a b e l e c e r i a , p o r c o n -
traste, u m a prolongada s e n s a ç ã o de d u v i d a . N a q u e l l e
m o m e n t o agitado me recordava c o m clareza d o resul-
t a d o c a t e g ó r i c o de a l g u m a s e x p e r i ê n c i a s q u e h a v i a f e i t o
nesse s e n t i d o . O c o n t r a s t e i m e d i a t o é u m v e r d a d e i r o
b a s b a q u e : estabelece u m a c o n f u s ã o d e e s p i r i t o r e t a r -
d a n d o o a p a r e c i m e n t o de u m a d i r e c t r i z . O m e u e s t a d o
precisava de s e m e l h a n t e c o n f u s ã o , a l g u m a cousa p a r a
d i s t r a h i r as m a s s a s e m q u a n t o e u t e n t a v a e s c a p u l i r .
Tinha j á em "stock" u m volumoso vocabulário
do mais escolhido c a l ã o , e j á h a v i a resolvido exhibir-me
nessa m o d a l i d a d e , s e n d o o u l t i m o r e a g e n t e e m p r e g a d o
na m i n h a experiência, o u l t i m o esforço para libertar-
me. E s t a v a prestes a largar o v e r b o q u a n d o a l g u é m
g r i t a " l y n c h a 1" ; v e j o q u e u m a p a r t e d a m u l t i d ã o , q u e r
se p r e c i p i t a r s o b r e m i m , m a s é a c c i d e n t a l m e n t e i m p e d i -
da pela c o n f u s ã o reinante. Os que e s t ã o n a f r e n t e pare-
c e m m a i s i n d e c i s o s d o q u e os q u e e s t ã o a t r a z ; a l g u n s
p r o c u r a m s e g u i r os o u t r o s i m p e d i n d o a s s i m u m a v a n ç o
imediato ; a parte mais p r ó x i m a da m u l t i d ã o , funciona
c o m o u m a c a m a d a p r o t e c t o r a — n ã o que ela seja paci-
f i c a , ao c o n t r a r i o , e s t a v a b e m agitada, m a s parecia que
a l g u m a cousa a d e t i n h a e a efervecencia v i n h a mesmo
detraz, daqueles que e s t a v a m p o r assim dizer e m m a i o r
s e g u r a n ç a , e ao m e s m o t e m p o t i n h a m recebido a i n -
fluencia da m i n h a actividade.
E u r e c u a v a v a g a r o s a m e n t e d e costas, m a s s e m p r e
f i n g i n d o q u e n ã o r e c u a v a . A c a m a d a p r o t e c t o r a se
a p r o x i m a v a d e m i m b a r u l h e n t a e ao m e s m o t e m p o
c o m o se estivesse n a e x p e c t a t i v a , p r o m p t a a d a r o b o t e
p o r detraz. A m u l t i d ã o b e r r a v a " l y n c h a V e u m sem
n u m e r o d e p u l s o s e s t i c a d o s , " m a t a . . . m a t a 1" g r i t a v a m .
T o d o o m e u organismo estava alerta — n ã o perdia
n a d a e m r e d o r d e m i m , m e s m o o q u e n ã o v i a , t o d o s os
meus m ú s c u l o s estavam em t e n s ã o ; v i u m a p o r ç ã o de
caras conhecidas, alguns g r i t a v a m raivosamente pelo m e u
n o m e , u m senhor de p r e t o s y m p a t i c o m e pegou pelo
b r a ç o p r o t e c t o r a m e n t e , m a s c o m receio e m u r m u r o u
q u a l q u e r cousa q u e n ã o o u v i d e v i d o ao barulho,^ mas
c r e i o q u e e m s e g u i d a ele disse " v a m o s d e p r e s s a " o u
cousa semelhante, o q u e era p e r f e i t a m e n t e i n ú t i l , pois
sentia q u e n i n g u é m m e l h o r d o q u e eu p o d i a c a l c u l a r a
velocidade a p r o p r i a d a d o m e u recuo. O senhor de preto

c o n t i n u a ao m e u l a d o , e u a n d o m a i s depressa, os b e r r o s
de " l y n c h a e m a t a " a u g m e n t a m d e v o l u m e e n u m e r o ;
n o i n i c i o e r a m apenas alguns e assim m e s m o g r i t a v a m
c o m u m a c e r t a t i m i d e z , e s t a t i m i d e z se p r o l o n g o u p o r
u m c e r t o t e m p o , p o r e m , a g o r a , j á n ã o se n o t a v a m a i s
n e n h u m a t i m i d e z : o " l y n c h a m a t a " v i n h a seco e v i g o -
roso e e c o a v a e m r e d o r . P a r a ser p r e c i s o c r e i o q u e a
t i m i d e z cessou n o m o m e n t o e m q u e a b a n d o n e i o m e u
discurso, e a i n t e n s i d a d e d o o d i o c r e s c i a á m e d i d a q u e
eu m a i s a p a r e n t a v a r e c u a r . O m e u c e r c o e r a i m i n e n t e ;
t i n h a de a g i r c o m r a p i d e z e a r r i s c a r t u d o , p o r d e t r a z
e pela frente.
A s o n d a s f e c h a v a m ; de u m l a d o os p r é d i o s i m p e -
diam qualquer fuga e do outro a procissão paralysada
se m o v i m e n t a v a t u m u l t u o s a m e n t e ; s e n t i a - m e e m p e r f e i t a
c a l m a m a s a l e r t a e s e n s í v e l a t o d a s as p e r t u r b a ç õ e s ;
" L y n c h a . . . M a t a . . . m a t a " me martelavam psychi-
c a m e n t e de t o d o s os l a d o s . F i z u m s i g n a l de a g r a d e c i -
m e n t o ao m o ç o de p r e t o q u e a i n d a e s t a v a a o m e u l a d o
e q u e ele n ã o v i u , e m e d i r i g i r a p i d a m e n t e p a r a u m a
parte da p r o c i s s ã o que t i n h a apenas u m a c a m a d a de
velhos, a l g u m a s c r i a n ç a s , m e n i n o s o u m e n i n a s n ã o sei,
e algumas freiras ; a m u l t i d ã o j u n t o u n u m c l a m o r s ó .
O b o t e e s t a v a d a d o , accelerei-me c o n s i d e r a v e l m e n t e ,
creio que d e r r u b e i o u a t r o p e l e i a l g u m a s f r e i r a s . N a
travessia da p r o c i s s ã o , f u i r á p i d o e m zig-zag, m e l e m b r o
de t e r e m p u r r a d o c o m a m ã o u m a m u l h e r g o r d a q u e
t i n h a b o t õ e s nas costas e q u e n ã o s a h i a d o c a m i n h o ;
a p r e s s ã o dos b o t õ e s m e i m p r e s s i o n o u p o i s n u n c a p u d e
s u p o r t a r essa m o d a . M e l e m b r o t a m b é m d e t e r v i s t o
u m a f r e i r a c a l m a m e n t e r e u n i r e proteger a l g u m a s cre-
a n ç a s . A d m i r e i a sua c a l m a s ó u m i n s t a n t e , e m u i t o
r á p i d o , c o r r i a e d e s v i a v a s a l t a n d o a passos l a r g o s . E s t a
u l t i m a parte da m i n h a a v e n t u r a t i n h a sido m u i t o r á p i d a .
Os e l e m e n t o s d a p r o c i s s ã o e m c o n t a c t o c o m a m i n h a
p a s s a g e m n ã o t i v e r a m t e m p o de r a c i o c i n a r n e m m e s m o
de p r e s e n t i r o m e u i n t e n t o d e a t r a v e s s a r ; o m e u gesto
surprehendeu e a t é c e r t o p o n t o a p a v o r o u alguns, m u i -
tos n e m m e v i r a m atravessar.
E s t a i d é a de a t r a v e s s a r a p r o c i s s ã o f o i r e a l m e n t e
a m e l h o r p a r t e d e t o d a a m i n h a e s t r a t é g i a de f u g a , f o i
a que mais retardou o a v a n ç o da m u l t i d ã o , e veio mais
p o r s e l e c ç ã o n a t u r a l q u e p o r o u t r a cousa. P e l o m e n o s
a s s i m m e p a r e c e u , n ã o m e r e c o r d o de t e r c a l c u l a d o m u i t o
a n t e s de e s c o l h e r esse c a m i n h o . A s m i n h a s o b s e r v a ç õ e s
sobre a q u a l i d a d e d a p a r t e a t r a v e s s a d a s ã o p o s t e r i o r e s
e f o r a m f e i t a s e m p l e n o c o n f o r t o . O que quero dizer é
o s e g u i n t e ; a escolha d a p a r t e f r a c a d a p r o c i s s ã o f o i
mais inconsciente, m e parecia ter sido dirigido para lá
p o r f o r ç a s e s t r a n h a s ao m e u c o n t r o l e . A s s i m m e s m o n ã o
posso a f i r m a r este p o n t o c o m p r e c i s ã o . C o m o o m e u
estado de c o n s c i ê n c i a f o r a a l t a m e n t e exaltado é p o s s í v e l
a d m i t i r n a o c a s i ã o u m processo de r a c i o c í n i o t ã o v e l o z
q u e n ã o d e i x o u r e s í d u o s u f i c i e n t e p a r a ser a p r e c i a d o
no m o m e n t o e m q u e escrevo.
D i s c u t i r e i este p o n t o e m m a i s d e t a l h e s n a p a r t e
que t o c a á analise. O certo p o r e m é que a m i n h a reti-
r a d a p o r a q u e l e processo, n a q u e l e p o n t o , era a m e l h o r
e s c o l h a q u e se p o d i a f a z e r c o n s c i e n t e o u i n c o n s c i e n t e -
m e n t e . A m u l t i d ã o q u e m e p e r s e g u i a , d e v i d o a sua f o r -
m a c o m p a c t a , n ã o p o d i a passar p o r aquele p o n t o c o m
a m e s m a m o b i l i d a d e q u e e u p a s s e i ; f o r ç o s a m e n t e ela
t i n h a d e se e n g a r r a f a r c o m a p r o c i s s ã o e f o i o q u e a c o n -
t e c e u . O l h a n d o p a r a t r a z v i os e l e m e n t o s d a p r o c i s s ã o ,
a t ô n i t o s , i n d e c i s o s u m t a n t o esparsos, f u n c i o n a n d o c o m o
u m a c a m a d a p r o t e c t o r a , e l o g o ao l a d o a m u l t i d ã o c o n -
f u s a b e r r a n d o " l y n c h a " , uns tentando atravessar outros
e m p u r r a n d o . I s t o d u r o u apenas alguns instantes — a
c a m a d a p r o t e c t o r a c o m o e r a de e s p e r a r n ã o t a r d o u a
se r e s t a b e l e c e r d a s u r p r e s a e d o p e r i o d o i n d e c i s o . O c o n -
t a g i o c o m a m u l t i d ã o t r a n s m i t i u logo o desejo d o mata
e l y n c h a " . Os e l e m e n t o s d a p r o c i s s ã o n ã o m a i s f u n c i o -
n a v a m c o m o c a m a d a p r o t e c t o r a , m a s i m p r e g n a d o s pelo
odio, e m m o m e n t o s e r a m absorvidos o u seleccionados e
expulsos. A g o r a t o d o s a v a n ç a v a m sem o b s t á c u l o . T o d a
a t i m i d e z v e n c i d a , a m a s s a u n a n i m e se a t i r a v a r e s o l u t a
sobre m i m , sendo a ú n i c a p r o t e c ç ã o o p e q u e n o e s p a ç o
que m e s e p a r a v a d a massa.
N u n c a me senti t ã o bem h u m o r a d o e alerta. N ã o
t i n h a n e n h u m a s e n s a ç ã o de i n s e g u r a n ç a a p e z a r de c o m -
prehender a peculiaridade da m i n h a p o s i ç ã o . Sentia-
m e l e v e apesar d a m i n h a c a t e g o r i a de peso p e s a d o e
n ã o d u v i d a v a p o r u m m o m e n t o d a p o s s i b i l i d a d e de
escapar á s a n h a s a n g r e n t a , n u n c a f u i t ã o o p t i m i s t a .
Estas e m o ç õ e s eram perfeitamente definidas; sem
duvida, a premencia do m o m e n t o exigia u m a directriz
b e m c a r a c t e r i z a d a , e c r e i o q u e esta s ó p o d i a ser p r o d u e t o
de u m a s e l e c ç ã o n a t u r a l p a r a m i m p s y c h i c a m e n t e i n -
consciente, porque creio poder a f i r m a r que o m e u racio-
c í n i o n ã o t o m a v a p a r t e consciente na s e l e c ç ã o de o p t i -
mismo e outras sensações, como por exemplo o augmento
de v e l o c i d a d e dos m o v i m e n t o s e o m o d o de s e l e c i o n a r
a minha direcção.
E ' c o m o eu s i n t o n o m o m e n t o e m que escrevo ;

visualizando a m i n h a aventura, me parece visualisar
a p a r t e de u m m u n d o e s t r a n h o a m i m , m e s i n t o m e t a d e
como u m archeologo e metade c o m o u m c y n i c o sceptico.
A c o n c a t e n a ç ã o dos f a c t o s n ã o m e t r a z s e n ã o u m p a n o -
rama ilusório e archeologicamente me sinto t ã o inseguro
c o m o se estivesse e l a b o r a n d o p o r m e i o de u m a f i c ç ã o
exaltada u m m u n d o nevrotico qualquer. U m a inter-
p r e t a ç ã o n ã o archeologica dos f a c t o s p o d e r i a p o r b a m b a
m e c o l o c a r m a i s p e r t o dos a c o n t e c i m e n t o s , m a s t a m b é m
m e a r r i s c o a c a h i r e m c o n f u s ã o d e v i d o ao g r a n d e n u m e r o
de a r r a n j o s p o s s í v e i s . D e m a n e i r a q u e o m e t h o d o a r c h e o -
E X P E R I Ê N C I A 27
l ó g i c o de p e s c a r e c l a s s i f i c a r e m o ç õ e s p o d e s i g n i f i c a r
m a i s d o q u e a p a r e n t a p o r q u e d e p o i s p o d e r i a ser c o n s i -
derado como f o r m a n d o u m c o n j u n c t o ú n i c o observador -
a v e n t u r a e p s y c h a n a l i z a d o ao m e s m o t e m p o . A a n a l i s e
p s y c h o l o g i c a r e p r e s e n t a a p e n a s u m passo a l é m d o p r o -
cesso a r ç h e o l o g i c o , m a s n a d a de d e f i n i t i v o t a l v e z esse
p a s s o s e j a , a l e m o u a q u é m , o q u e p o u c o i m p o r t a , desde
que jogamos apenas c o m p e r c e p ç ã o , raciocínio e i n -
t r o s p e c ç ã o , sem n e n h u m p o n t o de r e f e r e n c i a f o r a d o
p a s s a d o . M i n h a s e m o ç õ e s s ã o pescadas n o passado,
m u i t o d o m e s m o m o d o c o m o o s ã o os peixes. U m g r a n d e
n u m e r o e s c a p a ao m e u m e t h o d o de pescar e as q u e s ã o
c o l e c c i o n a d a s f o r m a n u m c o n j u n c t o e n i g m á t i c o des-
c o n e x o , m a s a p a r e n t e m e n t e i n t e i r o . N o e n t a n t o , as
e m o ç õ e s p e r d i d a s , se f o s s e m pescadas, n ã o p o d i a m d e i x a r
de a l t e r a r o a s p e c t o d o c o n j u n c t o . E q u e m sabe o n u -
m e r o de e m o ç õ e s p e r d i d a s . . . o u m e s m o a c a p a c i d a d e
e m o t i v a m á x i m a . A p a s s a g e m dos peixes de u m l a d o
p a r a o o u t r o pode f i g u r a r o f l u x o dos acontecimentos e
o m e u m e t h o d o de p e s c a r i n d i c a a d e f i c i ê n c i a d a m i n h a
p e r c e p ç ã o , de m a n e i r a q u e m e é a b s o l u t a m e n t e i m p o s -
s í v e l d i z e r c o m e x a c t i d ã o o q u e f o i o passado c o m o
t a m b é m m e é i m p o s s í v e l dizer o que é e x a c t i d ã o . Tenho
d e d e s c r e v e r as m i n h a s e m o ç õ e s c o m o elas m e o c e o r r e m
n o m o m e n t o e m q u e escrevo, i s t o é sujeitas a censura
o u a a p r o v a ç ã o da m i n h a psyche n o m o m e n t o . H a uns
tempos atraz, conversando c o m o dr. A . Souza Barros
s o b r e o a s s u m p t o , r e c e b i c o n s e l h o d e d e s c r e v e r os f a c t o s
s e p a r a d a m e n t e d a s m i n h a s o p i n i õ e s pessoaes, c o l o c a n d o
a analise e m separado para que outros possam t a m b é m
a p l i c a r os seus p o n t o s de v i s t a ; a c h a n d o a i d e a e x c e l e n t e
c o n c o r d e i l o g o , e q u a n d o c o m e c e i a escrever f o i c o m o
f i r m e p r o p ó s i t o de r e s e r v a r p a r a a a n a l i s e m i n h a s a p r e -
c i a ç õ e s pessoaes, m a s a m e d i d a q u e c a m i n h o v o u m e
c o n v e n c e n d o d a d i f i c u l d a d e de p r e c i s a r o q u e r e a l m e n t e
aconteceu ; a n a r r a t i v a e s t á sujeita a quatro influencias
d e f o r m a d o r a s ; l . ) perda dos acontecimentos n o mo-

a
m e n t o de o b s e r v a r ; 2 . ) d e f o r m a ç ã o d o s a c o n t e c i m e n t o s
a
c o l h i d o s p e l o m o d o de v e r p e s s o a l : 3 . ) p e r d a de a c o n -
a
t e c i m e n t o s , d u r a n t e o p r o c e s s o de r e c o r d a r p a r a es-
crever ; 4. ) d e f o r m a ç ã o pela a p r e c i a ç ã o pessoal
a
dos
a c o n t e c i m e n t o s r e c o r d a d o s . Essas q u a t r o d e f o r m a ç õ e s
c o n s t i t u e m os q u a t r o m o v i m e n t o s d o p r o c e s s o a r ç h e o -
logico que estou seguindo, e que t e r á c o m o r e s u l t a d o
u m p a n o r a m a d i s c o n e x o , c h e i o de v a s i o s , r e p r e s e n t a n d o
o que aparentemente aconteceu. Estes vasios n ã o p o d e m
ser p r e e n c h i d o s p e l a i m a g i n a ç ã o p o r q u e a i m a g i n a ç ã o
elaborando sempre n u m a l i n h a f i c t í c i a colocaria p e ç a s
r e l a c i o n a d a s á sua l i n h a de c o n d u c t a e p r o v a v e l m e n t e
a l h e i a ao m e c a n i s m o dos a c o n t e c i m e n t o s . O s v a s i o s n ã o
p o d e m ser p r e e n c h i d o s e d e v e m p e r m a n e c e r c o m o v a -
sios, m a s o processo p s y c h o l o g i c o f u n c i o n a r á c o m o u m a
e s p é c i e de gase c o n t i n u a s o b r e o p a n o r a m a a r ç h e o l o g i c o .
N ã o c r e i o q u e ele j a m a i s s e r á s u f i c i e n t e m e n t e e x a c t o
p a r a p o d e r e n c h e r os v a s i o s m a s de q u a l q u e r m a n e i r a
ele n o s d a r á u m a base h y p o t h e t i c a b a s t a n t e u t i l n a s
subsequentes m e d i t a ç õ e s .
V o l t a n d o a m i n h a e x p e r i ê n c i a ; eu c o r r i a apres-
s a d a m e n t e p r o c u r a n d o u m r e f u g i o p o i s t o d a s as l o j a s
e s t a v a m fechadas ; pensei e m arriscar a t i n g i r o I n s t i -
t u t o de E n g e n h a r i a , o n d e t i n h a o m e u " a t e l i e r " , m a s
a d i s t a n c i a era m u i t o g r a n d e e depois n ã o o f e r e c i a ne-
n h u m a s e g u r a n ç a especial. P e l a m i n h a f r e n t e m u i t o s ele-
m e n t o s espalhados pareciam agitados, p a r e c i a m querer
c o n v e r g i r e m g r u p o s . H a v i a u m c e r t o p e r i g o de t e r a f u -
ga cortada pela f r e n t e , mas o perigo n ã o era i m e d i a t o —
os p o u c o s g r u p o s j á f o r m a d o s e os q u e e s t a v a m p a r a se
f o r m a r , os esparsos e n ã o o b e d e c e n d o a n e n h u m c o m -
mando ú n i c o seriam f a c i l m e n t e evitados pela astucia.
E u t i n h a a v a n t a g e m de ser o ú n i c o d i r i g e n t e d o s m e u s
m o v i m e n t o s , e s ó p o d i a r e c e i a r ser e n g a r r a f a d o p e l a
m u l t i d ã o c o m p a c t a . M e u estado m e n t a l e o r g â n i c o era
t ã o a l e r t a q u e n ã o s e n t i a n e n h u m processo de r a c i o c í n i o
d i r i g i r os m e u s m o v i m e n t o s , c o m o j á disse a n t e r i o r m e n t e ;
o e l e m e n t o de d u v i d a q u e d e n o t a o processo de r a c i o -
c í n i o e s t a v a c o m p l e t a m e n t e a u s e n t e o u e n t ã o ele e r a
t ã o p e q u e n o o u b e m t ã o veloz que escapava á m i n h a
p e r c e p ç ã o . E u parecia me mecher como u m a u t ô m a t o
m o v i d o p e l a s e l e c ç ã o de f o r ç a s do m u n d o em redor que
a p r e s e n t a v a c o m o u m a s u c c e s s ã o de massas c o l o r i d a s
s e m d e t a l h e s . E n c h e r g a v a de u m m o d o v a g o os m o v i -
m e n t o s das p a r t e s agitadas q u a n d o b r a ç o s e o r n a m e n t o s
se d e s t a c a v a m c o n t r a o c i n z e n t o ; p e r c e b i a m a i s p s y c h i -
c a m e n t e q u e v i s u a l m e n t e ; t i n h a a i m p r e s s ã o de p o s s u i r
p o r t o d o o c o r p o m i l h a r e s de d e t e c t o r e s q u e m e m o s -
t r a v a m c o m m i n ú c i a ?> q u e se p a s s a v a . O s o m b r i a d o
das j a n e l a s , o a m a r e l o s u j o dos p r é d i o s , o escuro d a
p o p u l a ç a v i n h a e s u m i a á m e d i d a que me ausentava ra-
p i d a m e n t e ; e s t a v a sciente d a e x i s t ê n c i a do berreiro, mas
n ã o o u v i a o s o m ; m e u p e n s a m e n t o s ó se o c c u p a v a d o
c a l e i d o s c ó p i o veloz, d o que v i a e sumia. Parecia alheio
á e x p e r i ê n c i a e á s vezes m e s e n t i a t ã o l o n g e d o l o c a l
q u a n t o m e t i n h a s e n t i d o p r ó x i m o a ele e m o u t r o s m o -
m e n t o s . M a s o m e u estado m e n t a l n ã o era f a n t á s t i c o .
N e n h u m a f i c ç ã o m e preoccupava ; sentia que estava
longe das e m o ç õ e s d o m e u p r ó p r i o organismo. A con-
s c i ê n c i a da v i d a e a imensa carga inconsciente n ã o
p e s a v a m a b s o l u t a m e n t e n o m e u m o d o de v e r , p o r q u e
m e s e n t i a f o r a de q u a l q u e r p r i s ã o pessoal e f u n c i o n a n d o
c o m o p a r t e m o v e i dos acontecimentos. N o m o m e u t o
em que escrevo m e parece que f u n c i o n a v a c o m o n m
e l e m e n t o d e n t r o de u m a s e l e c ç ã o i n e v i t á v e l . A s cousas
aconteciam c o m o sahindo do i m p r e v i s t o . A s imagens
e as s e n s a ç õ e s v i n h a m e i a m sem n e n h u m a l i g a ç ã o a p a -
r e n t e , e q u a n d o d e p a r e i c o m a p r o v i d e n c i a l p o r t a de
u m a leiteria, u m a longa s o m b r a acolhedora, n ã o hesitei
u m m o m e n t o . T o d a s as m i n h a s t e n d ê n c i a s se d i r i g i a m
p a r a l á . N o e n t a n t o , c r e i o q u e passei p o r a l g u m processo
de r a c i o c í n i o p o r q u e g i r a n d o s o b r e o c a l c a n h a r v o l t e i -
m e r a p i d a m e n t e , e q u i l i b r a n d o - m e c o m os b r a ç o s e m
f o r m a de u m a v á l v u l a de e s c a p a m e n t o e v i a m u l t i d ã o
p r ó x i m a u n s Ante m e t r o s t a l v e z . U m i m e n s o r u m o r e n -
c h i a o e s p a ç o , u m a m u l t i t u d e de b r a ç o s c o m os p u l s o s
cerrados a m e a ç a v a m e a g i t a v a m , b o c a s enormes ber-
ravam raivosamente " l y n c h a " , crucifixos estandartes
coloridos estremeciam em c a d ê n c i a c o m a d i r e c t r i z de
odio. A v o n t a d e era u n a n i m e , pega. . . m a t a . . . l y n -
c h a . . . padres, velhos, m o ç a s , j o v e n s todos v i b r a v a m
de r a i v a , o r u i d o e c h o a v a p o r t o d a a p a r t e , t u d o e r a
resonador, eu s e n t i a u m v o l u m e i m m e n s o de s o m i n v a -
d i r os m e u s o u v i d o s , m e l e m b r o m u i t o b e m q u e n ã o
t i n h a medo n e n h u m , parecia azomado mas consciente
d o q u e se p a s s a v a , m e u s m ú s c u l o s e s t a v a m rígidos.
Permaneci i m ó v e l alguns instantes contemplando
a massa q u e se a p r o x i m a v a . E l e s a v a n ç a v a m a passo
de c a r g a c o n f u s o s u n s a t r o p e l a n d o os o u t r o s , os d e t r a z
s e m p r e q u e r e n d o a v a n ç a r m a i s depressa q u e os d a f r e n t e
a l g u n s destes se e r g u i a m p o r c i m a i n j u r i a n d o os d a
f r e n t e c o m gestos e d e m o n s t r a n d o g r a n d e v i o l ê n c i a e
me parece que q u a n t o m a i s p a r a t r a z m a i o r a v i o l ê n -
cia, n ã o sei se i s t o m e v e m a c a b e ç a a g o r a p e l o f a c t o
de j á t e r f e i t o a o b s e r v a ç ã o a n t e r i o r m e n t e , m a s a i m a -
g e m q u e v i s u a l i s o i n d i c a c o m c l a r e z a este f e n ô m e n o . N o
f i m da r u a a p r a ç a estava repleta. T i n h a a i m p r e s s ã o
q u e o p o v o i m p u l s i o n a d o a d h e r i a e m m a s s a ao o d i o
c o l e t i v o . G r u p o s de g e n t e s v e s t i d o s de b r a n c o c o l a -
vam-se. E era e m o c i o n a n t e s e n t i r a a g i t a ç ã o e o r u m o r
crescente, s e n t i r a d u v i d a das cousas o p o d e o u n ã o
acontecer, o ceu estava l i m p o e c l a r o e f o c a l i z a v a c o m
n i t i d e z os a c o n t e c i m e n t o s , a l u z e a s o m b r a dos p r é d i o s
a l t o s e n g a i o l a v a a scena e m p r o p o r ç õ e s d r a m á t i c a s e
os h o m e n s p a r e c i a m p i g m e o s s a c u d i d o s p o r u m a f o r ç a
e os h o m e n s p a r e c i a m pigmeos sacudidos p o r u m a
força estranha. . .
32 EXPERIÊNCIA N.° 2 - f l a v i o de carvalho
e s t r a n h a , o sol i l u m i n a v a a c a l e n t a n d o a g r a d a v e l m e n t e ,
sentia-me preso pela a g i t a ç ã o d o detalhe e pela i n d o l ê n -
c i a d a scena. A o n d a se a p r o x i m a v a .
. . . n u m m o v i m e n t o brusco p e n e t r o na lei teria
a toda, seguido pela p a r t e a v a n ç a d a da c o h o r t e . M i n h a
pausa t i n h a d u r a d o apenas alguns instantes. N a Ieite-
r i a as m u l h e r e s d e s m a i a v a m e c h i a v a m de desespero,
o local estava repleto, c r i a n ç a s c h o r a v a m todos correm
p a r a o f u n d o do p r é d i o . L e m b r o - m e de t e r v i s t o u m a s
m u l h e r e s c o r r e n d o e a b a n a n d o os b r a ç o s p a r a c i m a e
p a r a b a i x o , m u i t a s c o r r i a m c o m os b r a ç o s l e v a n t a d o s
p a r e c i a m e s t a r n o a u g e d o desespero. N ã o v i q u a s i
h o m e n s e n ã o p u d e o b s e r v a r a c a r a das m u l h e r e s p o r q u e
n e m b e m t i n h a p e n e t r a d o n a l e i t e r i a q u e t o d a s se espa-
l h a r a m p a r a o f u n d o d o p r é d i o e s ó v i u m a p o r ç ã o de
c o s t a s c o l o r i d a s d i f e r e n t e m e n t e se a f a s t a r e m m a l g e i -
tosas. E r a e v i d e n t e q u e n ã o e s t a v a m a c o s t u m a d a s a
c o r r e r . C o m o e u i a m u i t o depressa a t r o p e l e i n u m a s
c a d e i r a s e c o t u q u e i - m e v a r i a s vezes n o s c a n t o s das
mesas. A s m u l h e r e s m e e s t o r v a v a m a p a s s a g e m . T i n h a a
i m p r e s s ã o de q u e c o r r i a a t r a z d e u m b a n d o de g a l i n h a s ,
u m a o u d u a s vezes f u i f o r ç a d o a e m p u r r a - l a s docil-
m e n t e , a l g u m a s e r a m pesadas e g r i t a v a m ao m e n o r
toque, t i n h a u m a que f i c o u engasgada entre u m a mesa
e u m a c a d e i r a n o m o m e n t o m e s m o e m q u e e u i a passar,
— choquei-me com violência mas agradavelmente, —
a t r a z o t u m u l t o i n v a d i a a l e i t e r i a , b e r r o s s e l v a g e n s de
" p e g a e l e " " m a t a " g e m i d o s de m u l h e r e s , s u s p i r o s , o
a r r a s t a r de p é s , o b a r u l h o de c a d e i r a s , . t u d o t i n i a em
m o v i m e n t o ; t o d a s p r o c u r a v a m u m e s c o n d e r i j o sem saber
o n d e e n c o n t r a - l o . M i n h a a c ç ã o e r a a de u m a u t o m ó v e l
q u e a t r a v e s s a u m r e b a n h o , t i n h a pressa e m p u r r a v a
mas p r o c u r a v a n ã o m a c h u c a r n i n g u é m , agia sem racio-
cinar pelo menos e c o m o m e recordo agora. E m p u r r e i
u m a p o r t a na m i n h a f r e n t e e entro n u m a cosinha, u m a
p o r ç ã o de a v e n t a e s b r a n c o s e , b o n é s c o m p r i d o s , o b r i -
p a r e c i a m u m b a n d o de g a l i n h a :
l h o de p a n e l a s luzes f o r t e s . E s p e r a v a encontrar uma

p o r t a n o f u n d o e a l c a n ç a r o telhado, desejo que m e ocor-
r e u sem r a c i o c í n i o p r o p r i a m e n t e , m a s n ã o t i n h a p o r t a
a l g u m a s ó u m a p a r e d e h o s t i l z o m b a v a a m a r e l a . O s co-
z i n h e i r o s m e o l h a v a m receiosos e i m ó v e i s c r e i o q u e m e
t o m a r a m p o r a l g u m l a d r ã o p e r s e g u i d o . T i v e u m sen-
timento de p r o f u n d a t r i s t e z a , n ã o e n c o n t r a r uma
sahida s i g n i f i c a v a entregar-me ; pela p r i m e i r a vez n a
e x p e r i ê n c i a senti a e m o ç ã o exacta do perigo. Parecia
e s t a r d e n t r o de u m a g a i o l a ; n a s o u t r a s vezes q u e h a v i a
p r e s e n t i d o o p e r i g o t i n h a s e m p r e u m m e i o de e s c a p a r .
O l h e i e m r e d o r p a r a c i m a c o m o se p r o c u r a s s e a l g u m a
c o u s a q u e e u s a b i a n ã o e x i s t i r ; os c o s i n h e i r o s m e enca-
r a v a m e m s i l e n c i o , p a r e c i a m b o n e c o s sem v i d a s u s p e n -
sos n o e s p a ç o . E n o a l t o d a p a r e d e v e j o u m a c l a r a b o i a .
S e m h e s i t a r p u l o s o b r e u m a p i a e c o m d o i s socos re-
b e n t o a c l a r a b o i a q u e e r a de t e l a de a r a m e e g u a r n i ç õ e s
de m a d e i r a . A t e l a de a r a m e e s t a v a grossa de p o e i r a
a c u m u l a d a e p o r u m c u r t o i n s t a n t e h e s i t e i , c o m receio de
sujar a m i n h a roupa, a abertura pequena f o r ç a v a a tela
s u j a sobre os m e u s cabelos. A p e s a r de c a l m o , sem d u v i d a ,
a h o r a d o p e r i g o e as c i r c u n s t a n c i a s g u i a v a m os m e u s
m o v i m e n t o s ; c o n t r a h i - m e c o m o p u d e , disse u m a o u
duas palavras i m p r ó p r i a s para r e p r o d u c ç ã o e atraves-
sei a c l a r a b o i a , e m q u a n t o a l g u é m e m b a i x o o b s e r v o u
"eh. . . j á tem trene. . . macaco v e l h o " . . . O barulho,
os g r i t o s e os g e m i d o s c o n t i n u a v a m m a s c o m m e n o s
intensidade. C a h i do outro lado, examinei rapidamente
a m i n h a s i t u a ç ã o : e s t a v a d e n t r o de u m p e q u e n o s a g u ã o
de q u a l q u e r c o u s a c o m o d o i s p o r u m e m e i o m e t r o s r o -
d e a d o p e l a s s u p e r f í c i e s a l t a s dos p r é d i o s . S ó p o d i a esca-
p a r saltando u m m u r o liso que t i n h a uns q u a t r o metros
de a l t u r a e q u e p a r e c i a d a r p a r a u m o u t r o s a g u ã o i g u a l
ao m e u . O b a r u l h o v i n h a n o v a m e n t e , vozes g r i t a v a m
" p e g a e l e " . . . " n ã o d e i x a e s c a p a r " , s e n t i a o s o m dos
passos e d o a t r o p e l o q u e se a p r o x i m a v a , o l h e i p a r a o
m u r o c o m u m a v o n t a d e l o u c a de p u l a r , m a s e r a u m
pouco a l t o ; c o m certeza escorregaria p a r a traz. A o lado
d o m u r o n u m a j a n e l a t i n h a u m a s grades de f e r r o q u e
n ã o e r a m m u i t o geitosas, m a s c o n s i d e r a n d o o m o m e n t o
p o d e r i a m c o m b o a v o n t a d e servir. A s vozes e s t a v a m
cada vez m a i s p e r t o . O l h e i p a r a t r a z e v i u m a p o r t a
pequena que n ã o t i n h a ainda visto. I n s t i n c t i v a m e n t e pre-
c i p i t e i - m e p a r a a p o r t a ; o m e u s e n t i m e n t o de s e g u r a n ç a
tinha me abandonado por completo. N ã o me sentia
b e m ; f e c h a n d o a p o r t a e n c o n t r o - m e d e n t r o de u m a
l a t r i n a ; o trinco n ã o oferecia n e n h u m a s e g u r a n ç a ; a l i
m e e r a i m p o s s í v e l r e s i s t i r ; se o s a g u ã o fosse i n v a d i d o ,
o q u e p o d i a se d a r de u m e m u m p o r q u e a a b e r t u r a d a
c l a r a b o i a e r a p e q u e n a , t e r i a t e m p o de e s c a p a r m a s . . .
e s c a p a r p o r o n d e : e s t a v a e s c u r o . T a c t e e i c o m as m ã o s
e m r e d o r , n u m gesto r i d í c u l o e c o m p l e t a m e n t e i n ú t i l ,
estava sciente do r i d í c u l o .
D o l a d o de f o r a g r i t a v a m , m a s n ã o sei o q u e g r i -
t a v a m . P e n s e i q u e t a l v e z pudesse e s c a p a r p e l o t e l h a d o .
O l h e i p a r a c i m a e v i q u e m e s e r i a f á c i l e s c a p a r m a s , ao
m e s m o t e m p o , s e n t i q u e n ã o p o d i a escapar, t i n h a a
s e n s a ç ã o d o i n e v i t á v e l , de f a t a l i d a d e : as c i r c u n s t a n c i a s
m e f o r ç a r i a m a e n t r e g a r - m e . P e n s e i e m s a h i r p a r a o sa-
g u ã o e escalar o m u r o . . . m a s a l g u m a c o u s a m e r e t i n h a
p a r e c i a v i v e r n u m m u n d o i n t e n s a m e n t e pessoal ; n ã o
o u v i a n a d a das v o z e s d o l a d o de f o r a m a s s a b i a d a sua
existência. Permanecendo imóvel, em c o n t e m p l a ç ã o i n -
trospectiva, c o m e ç a v a a ter m e d o e sabia que estava
c o m medo. Sabia que era m e l h o r sahir p a r a o s a g u ã o ,
a f u g a era fácil, m a s o m e u estado m e n t a l t i n h a rela-
xado meus m ú s c u l o s ; sentia, t a m b é m , o ridiculo da
m i n h a s i t u a ç ã o mas n ã o m e i m p o r t a v a m u i t o .
E s t a v a e m p l e n o f e n ô m e n o de m e d o , eu n ã o t i n h a
notado o inicio do f e n ô m e n o , mas naquele m o m e n t o
e s t a v a p e r f e i t a m e n t e s c i e n t e d o m e u e s t a d o e p o r assim
dizer m e t r a n s p o r t a v a n u m dos meus caracteres c r í t i c o s
i
1
f o r a de m i m e c o n t e m p l a v a a m i m m e s m o . M e r e c o r d o
que nesta p a r t e critica n ã o fazia n e n h u m a t e n t a t i v a p a r a
m e r e t i r a r desse e s t a d o m a s ao c o n t r a r i o p a r e c i a a p r e -
ciar diagnosticar e f o r m a r opinião, t i n h a u m a perfeita
i m a g e m m e n t a l de m i m m e s m o , e u e r a d u a s p e r s o -
n a l i d a d e s s e m p r e u m a se m a n i f e s t a n d o d e p o i s d a o u t r a ,
e c r e i o q u e n u n c a s e n t i as d u a s ao m e s m o t e m p o ,
u m a era a c r i t i c a que j á m e n c i o n e i e a o u t r a era o
m e u eu d o m i n a d o pelo m e d o . N ã o creio que t o d o o
f e n ô m e n o de m e d o t e n h a d u r a d o m a i s de d o i s o u t r e z
m i n u t o s e a personalidade critica d u r o u menos t e m p o
q u e a o u t r a , m a s d u r a n t e esse t e m p o se m a n i f e s t o u
claramente critica.
D e u m a pequena d i s t a n c i a eu m e v i a a m i m m e s m o ,
u m a creatura.estranha, c o m p l e t a m e n t e diferente do que
eu c o s t u m o ser. N ã o t i n h a r o u p a e a c o r d o m e u c o r p o
e r a e n t r e o a m a r e l o e s c u r o e c o r de c h o c o l a t e . C o m a es-
c u r i d ã o e n c h e r g a v a - m e d i f u s o , T i n h a os q u a t r o d e d o s de
u m a m ã o mergulhados n a boca, e a o u t r a aberta enter-
r a v a os dedos* n a c a r n e d a p e r n a , os m e u s o l h o s e s b u -
galhados o l h a v a m para c i m a e do lado. E r a a imagem
d o t e r r o r ; c o n t e m p l e i - m e d e m o r a d a m e n t e , m e d i t e i , mes-
mo, a m i n h a pessoa c r i t i c a n ã o se o p u n h a á v i s ã o ,
escrutava e gosava o e s p e t á c u l o e creio a i n d a que i n -
conscientemente desejava prolongal-o. D i g o isto porque
l o g o d e p o i s , c o n s t r u í a u m a serie de i m a g e n s e m q u e
me v i a transportado n u m f u t u r o h y p o t e t i c o , entregue
á s a n h a d a m u l t i d ã o , m a s nesse f u t u r o n ã o v i a a m u l t i -
d ã o , c o m o s o m e n t e os e f e i t o s d e l a sobre m i m .
O m e u corpo n ã o t r e m i a ; estava m a i s do lado i m ó -
v e l ; c r e i o q u e s e n t i a u m a p a r t e se d e s l i s a r l e n t a m e n t e
sobre a o u t r a . E s t a v a e m p l e n o e s t a d o de p â n i c o , t i n h a
a i m p r e s s ã o de q u e i a m e d e s m a n c h a r q u e d e s i n t e g r a -
v a - m e , as p o s t a s de c a r n e e m m o v i m e n t o m o r o s o se
s e p a r a v a m e m t o d a s as d i r e c ç Õ e s , a g r a v i d a d e n ã o p a r e -
cia i n f l u i r , c o m o mesmo d e s e m b a r a ç o m e c h i a m p a r a
U m a c r e a t u r a e s t r a n h a , c o m p l e t a m e n t e d i f f e r e n t e do q u «
e u c o s t u m o ser . . . Era a i m a g e m do t e r r o r . . .
c i m a e p a r a os l a d o s , i m p o t e n t e , p r e s o p o r u m a a n g u s -
t i a p r o f u n d a assistia e m o c i o n a d o ao m e u d e s m a n c h a r .
N ã o sentia f r i o n e m calor, parecia n ã o ter t e m p e r a t u r a ;
os ossos sem d u v i d a e s t a v a m a u s e n t e s p o i s n ã o m e e r a
p o s s í v e l a c r e d i t a r q u e t i n h a ossos m a s c o n t u d o n ã o
t o m b a v a ; o r o ç a r da m i n h a pele era que n e m p a n o ;
n ã o sentia o c o n t a c t o dos m e u s dedos n a boca, m e i m a -
g i n a v a sem p u l s o e s e m s a n g u e e as p a r t e s e m m o v i m e n -
t o se p a r e c i a m c o m p e p i n o s e m c o n s e r v a . C o u s a c u r i o s a ,
n o e n t a n t o , eu n ã o conseguia acabar-me, apesar do
desmanchar, estava sempre inteiro, o m e u c é r e b r o n ã o
t i n h a n e n h u m c o n t r o l e sobre as cousas, e r a e s p e c t a d o r
p a s s i v o ; as p a r t e s e m m o v i m e n t o p e n s a v a m p o r s i .
L o g o d e p o i s de c o m e ç a r a d e s m a n c h a r - m e e e m -
q u a n t o o processo c o n t i n u a v a , s e n t i a u m o u t r o f e n ô m e -
n o n ã o menos curioso e e m o c i o n a n t e ; b r a ç o s dedos e
m ã o s s u r g i n d o de u m a m u l t i d ã o a u s e n t e m e r a s g a v a m
aos p o u c o s , s e n t i a l g u é m e n f i a r o d e d o n u m d o s m e u s
olhos e p u c h a r a pele rasgando, m ã o s m e p e g a v a m e
p u x a v a m , m i n h a c a r n e c e d i a , e r a b r a n c a e sedosa e
e s t r i a d a c o m o e r y s t a e s de gesso e n ã o t i n h a s a n g u e .
O u v i g r i t o s , p a r e c i a o s o m de u m a m u l t i d ã o v e l o z
que sumia.
N ã o h a v i a d u v i d a n e n h u m a sobre a i m a g e m m e n -
tal e a s e n s a ç ã o t á c t i l da m i n h a d e s t r u i ç ã o , e que ambas
a p a r e c e r a m c o m o c o n s e q ü ê n c i a i m e d i a t a de u m s e n t i -
m e n t o p r o f u n d o de i n s e g u r a n ç a , e r a a u l t i m a v i s ã o
d a m i n h a p e r s o n a l i d a d e c o m o u m ser i n t e i r o . N u m
m o m e n t o e m q u e o p e r i g o j á t i n h a p o r c o m p l e t o desa-
parecido, a m i n h a psyche visualisava u m a cousa que
s a t i s f a z i a as c o n d i ç õ e s d e p â n i c o l o g o , a n t e r i o r , e ao
mesmo t e m p o u m a cousa que logicamente devia ter
a c o n t e c i d o antes, p o r q u e e s t a s e n s a ç ã o e e s t a i m a g e m
n ã o a p a r e c e r a m n o m o m e n t o de v e r d a d e i r o p e r i g o .
O que p o d i a significar esta i m a g e m n o m o v i m e n t o do
m e u mecanismo psychico ? Assim pensava no m o -
assistia e m o c i o n a d o ao m e u desmanchar.
m e n t o m e s m o e m q u e assistia á scena de m i n h a des-

truição. E s t a v a p e r f e i t a m e n t e sciente de a m b o s os
meus estados e o m e u r a c i o c í n i o parecia f u n c i o n a r i n -
dependente da ficção t e m p o r á r i a .
O u v i u m a voz do lado de f o r a ; a v o z repetiu-se
e f u i i n f o r m a d o q u e e s t a v a preso. A s i m a g e n s d a m i n h a
f i c ç ã o desapareceram. Sahi para o s a g u ã o e v i a c a b e ç a
de u m g u a r d a n a c l a r a b o i a q u e m e r e c o m e n d a v a n ã o
f u g i r , assegurando-me que a policia me protegia. Pro-
m e t i n ã o f u g i r e ele d e s a p a r e c e u d o o u t r o l a d o . O s a g u ã o
e r a o m e s m o ; r e v i o m u r o , a j a n e l a , a a l t u r a dos p r é d i o s
e m r e d o r , t u d o c o m o d a n t e s ; p o r e m h a v i a a l i u m a cousa
q u e eu n ã o t i n h a v i s t o a n t e s , e r a u m a escada de p a r e d e
e n c o s t a d a á c l a r a b o i a . Nesse m o m e n t o , o p o l i c i a a p a -
receu de n o v o , e d i r i g i n d o - s e p a r a o l a d o de d e n t r o :
" n ã o p r e c i s a n ã o , a q u i t e m u m a o p t i m a e s c a d a " e es-
c a l a n d o a c l a r a b o i a desceu p e l a escada, o l h o u - m e c u i -
d a d o s a m e n t e , q u e r i a saber se e u t i n h a a r m a s , d e i x e i -
me revistar.
S e m d u v i d a ele e s p e r a v a a l g u m a r e s i s t ê n c i a , p a r e -
c i a s u r p r e s o de m e e n c o n t r a r t ã o p a c i f i c o ; t r o c a m o s
algumas palavras cordiaes. E l l e s u b i u n o v a m e n t e a
escada e i n f o r m o u a u m s u p e r i o r ; " n ã o h a p e r i g o ne-
n h u m , ele n ã o q u e r f u g i r " , e m e r e c o m e n d a n d o c a l m a
ausentou-se o u t r a v e z .
N ã o p o d i a m e c o n f o r m a r e m v e r u m a escada a l i
n o I o g a r m e s m o o n d e e u t i n h a m e a t i r a d o ao c h ã o . Se
a tivesse v i s t o q u a n d o d a m i n h a p r i m e i r a e s t a d a n o
s a g u ã o m e u destino teria sido o u t r o , p r o v a v e l m e n t e
t e r i a escalado o m u r o , p r o l o n g a n d o a s s i m a e x p e r i ê n c i a
e sem d u v i d a a d i a n d o o a d v e n t o d o m e u e s t a d o de
pânico.
A p r e s e n ç a d a escada i n d i c a v a q u e o m e u m e c a -
n i s m o de p e r c e p ç ã o t i n h a f a l h a d o j u s t a m e n t e n o m o -
m e n t o e m q u e ele s e r i a d e m a i o r u t i l i d a d e , t i n h a d e i -
x a d o de p e r c e b e r p r e c i s a m e n t e a q u e l e e l e m e n t o de q u e
e u m a i s n e c e s s i t a v a , a escada, e, n o e n t a n t o , q u a n d o
p r i m e i r o penetrei no s a g u ã o estava c o m p e r f e i t a luci-
dez de e s p i r i t o , sem n e n h u m m e d o . E ' verdade que
os m e u s m o \ i m e n t o s m e p a r e c i a m m a i s g u i a d o s p e l o
7
a m b i e n t e que pelo m e u r a c i o c í n i o , pelo m e n o s o m e u

r a c i o c í n i o n ã o era p e r c e p t í v e l ; mas que s e l e c ç ã o deter-
m i n a v a q u e e u despercebesse p r e c i s a m e n t e o objecto
de q u e m a i s n e c e s s i t a v a ?
A n t e s de e n t r a r n a l e i t e r i a t i n h a o b s e r v a d o o c o n -
t r a r i o ; u m a s e l e c ç ã o n a t u r a l parecia m e g u i a r sempre
para o melhor caminho, para a melhor solução possível.
E ' v e r d a d e q u e e u n ã o posso a f i r m a r q u e n ã o d e s p r e z e i
n e n h u m elemento d u r a n t e esta c h a m a d a s e l e c ç ã o n a t u -
r a l , m a s a m b o s os e s t a d o s f o r a m o b s e r v a d o s p e l a m e s m a
pessoa, i s t o é, d e n t r o de u m a c o n t i n u i d a d e p s y c h i c a
n ã o m e s u r p r e h e n d e r i a se tivesse d e i x a d o de o b s e r v a r
u m a j a n e l a o u b e m t r o c a d o a c o r de u m a p a r e d e .
Q u e l i g a ç ã o p o d e r i a existir entre esta f a l h a e o
f e n ô m e n o de m e d o i m e d i a t o ? M e s e n t i a a b a t i d o p e l a
ironia aparentemente mysteriosa da o c o r r ê n c i a e olha-
v a p a r a a escada, q u e rígida e e r e c t a p a r e c i a z o m b a r
de m i m .
O policial v o l t o u , iniciamos n o v a conversa. Soube
q u e ele n ã o t i n h a r e l i g i ã o , q u e m e c o n s i d e r a v a u m r a p a z
e d u c a d o , e q u e p e r t e n c i a á g u a r d a de t h e a t r o s . I n f o r -
mou-me t a m b é m que o dono da leiteria t i n h a abaixado
as p o r t a s de f e r r o e q u e u m a g u a r d a de seis o u o i t o p o l i -
cias c o n t i n h a o p o v o q u e a p r i n c i p i o se m o s t r a r a a m e a -
ç a d o r , m a s q u e c o m a o r d e m de s e g u i r o a n d o r , d a d a
n a p r o c i s s ã o , e c o m o r e i n i c i o dos c â n t i c o s , v o l t a v a aos
p o u c o s p a r a as f i l e i r a s ; m e a f i r m o u m a i s a i n d a q u e a
m i n h a s a l v a ç ã o t i n h a sido r e a l m e n t e o reinicio dos
c â n t i c o s ; " v i o p o v o se d i s p e r s a r l o g o q u e c o m e ç o u o
c â n t i c o . Parece que a c a n ç ã o a t r a h e " , e logo e m seguida
m e aconselhou a a b a n d o n a r o s a g u ã o antes de t e r m i -
n a r a p r o c i s s ã o p o r q u e , m e disse ele, " n o f i m , ao d i s -
N ã o p o d i a m e c o n f o r m a r e m ver u m a escada a l i . . .
persar, o p o v o v o l t a r á p a r a c á . S e r á m a i s f á c i l s a h i r
e m q u a n t o eles e s t ã o o c u p a d o s " .
N ã o hesitei e m seguir o conselho do m e u i n t e l i -
g e n t e a m i g o d e p o i s de e n t e n d i m e n t o c o m o s u p e r i o r
q u e c o m a n d a v a a g u a r d a , e q u e n o i n i c i o se r e c u s a v a
a ceder. G a l g a m o s a escada e d e s c e m o s n a c o s i n h a .
Os c u r i o s o s m e o l h a v a m . U m a das g a r ç o n e t e s m e a f i r -
m o u que t i n h a v i a j a d o i n v o l u n t a r i a m e n t e " u m a dis-
t a n c i a c o m o d a q u i a l i " , q u a n d o e u passei " f e i t o u m a
b a l a " , m a s q u e " n ã o se s e n t i a m a c h u c a d a " . E s o r r i n d o
a m a v e l m e n t e se a p a l p o u p e l o c o r p o . E s p i e i p e l a p o r t a
da cosinha. A leiteria parecia ter voltado á normalidade,
estava cheia e animada. O guarda m e a d v e r t i u para
esperar u m p o u c o que a " v i u v a alegre" a i n d a n ã o t i n h a
chegado, e depois de conferenciar c o m u m o u t r o g u a r d a
m e a v i s o u q u e t í n h a m o s de e s p e r a r o s i g n a l d o o u t r o
d o l a d o de f o r a , a n t e s de a t r a v e s s a r a l e i t e r i a .
F i n a l m e n t e veio o signal, sahimos da cosinha e
a t r a v e s s a m o s a sala d e b a i x o de u m r u m o r de e s p a n t o .
N a p o r t a e s t a c i o n a v a u m p u n h a d o de c u r i o s o s . E n t r e i
n u m c a r r o a m a r e l o de c h a p a de a ç o , o c h a m a d o " v i u v a
a l e g r e " , as m u l h e r e s o l h a v a m , os h o m e n s z o m b a v a m ,
u n s se r e f e r i a m a cousas de a r c h i t e c t u r a sem d u v i d a
d e v i d o a m i n h a q u a l i d a d e die a r c h i t e c t o "e a f a c h a d a
f u t u r i s t a " . . . o u b e m " c o m o vae a f a c h a d a " etc. O
c a r r o c u s t o u a se m o v i m e n t a r . E s t a v a e s p e r a n d o o
d e l e g a d o , d i z i a m , e p o r m u i t o t e m p o e s p e r a m o s o de-
l e g a d o . F i n a l m e n t e e m m o v i m e n t o a t r a v e s s a m o s as r u a s
mais centraes da cidade, seguindo vagarosamente na
r a b e i r a d a p r o c i s s ã o q u e d u a s h o r a s a n t e s se a g i t a v a
raivosa contra m i m .
Os detalhes n a delegacia de p o l i c i a s ã o pouco i n -

teressantes. E ' s u f i c i e n t e dizer que f u i logo acusado
de ser c o m m u n i s t a e d e a t i r a r b o m b a s n a p r o c i s s ã o .
A q u e l e q u e m e a c u s a v a e r a c a t h o l i c o de m e d a l h i n h a s
na c a r t e i r a e era precisamente o que t i n h a c o m a n d a d o
o d e s t a c a m e n t o de p r o t e ç ã o .
Tinha-se a impressão de que ser com-

m u n i s t a e r a c r i m e , a l g u m a c o u s a de m o n s t r u o s o e p r o -
h i b i d o . P r o t e s t e i v i o l e n t a m e n t e , c o n t r a a h i s t o r i a das
b o m b a s e ele l o g o se r e t r a t o u a l e g a n d o q u e " e r a o p o v o
que dizia". Fiz u m depoimento no qual me concederam
" c o n t u z õ e s " e "diversos ferimentos leves". F u i exami-
n a d o p o r u m m e d i c o q u e se r e c u s a v a a e n c o n t r a r f e r i -
m e n t o s leves e n e m m e s m o a r r a n h õ e s , s e g u i d o d o deses-
p e r o d o e s c r i p t u r a r i o q u e a l e g a v a ser p r e c i s o h a v e r
f e r i m e n t o s leves. O d e l e g a d o m e m a n d o u e m p a z . S a h i
receioso, t e m e n d o ser r e c o n h e c i d o p o r a l g u é m , as r u a s
cheias t i n h a m u m aspecto festivo, estava f r i o . . . o
cahir da tarde. . .
A N A L Y S E
O c o m p o r t a m e n t o de u m a p r o c i s s ã o sobre o d o m í -
n i o de u m c h e f e i n v i s í v e l é p a r e c i d o c o m o c o m p o r t a -
m e n t o de o u t r a s a g l o m e r a ç õ e s chefiadas. O s e n t i m e n t o
religioso i n f l u e apenas n o aspecto da procissão e na
m a g n i t u d e das r e a c ç õ e s p r o d u z i d a s . N o f u n d o , u m a
p r o c i s s ã o em m o v i m e n t o é parecida com u m a parada
nacionalista. A m b a s possuem u m chefe invisível, o
Christo e a p á t r i a . A p á t r i a n u m a parada nacionalista
funcciona como o Christo numa procissão. A pátria é
a q u e l e i d e a l q u e p e r t e n c e a t o d o s e q u e é o i g u a l de t o -
dos, c a d a i n d i v í d u o c o m o s e n t i m e n t o d a p á t r i a se c o n -
s i d e r a c o m u m c e r t o d i r e i t o sobre ela, se c o n s i d e r a m e s -
m o o i g u a l d a p á t r i a , a p á t r i a a s s u m e o c a r a c t e r de u m
e m b l e m a t o t e m i c o o n d e t o d o s os e l e m e n t o s d a n a ç ã o e o
i g u a l d o e m b l e m a . O m e s m o a c o n t e c e c o m o C h r i s t o ; ele
é u m chefe i n v i s i v e l representando u m a idea, d o m i n a n d o
u m a m u l t i d ã o u n i d a p o r u m a c e r t a o r d e m de l a ç o s . A i d e a
e m s i p o u c o i m p o r t a , e m e s m o a m a i o r i a das pessoas s u b -
missas n ã o c o n h e c e m o u n ã o se p r e o c u p a m c o m a i d e a
de u m a m a n e i r a c o n s c i e n t e . O m e c a n i s m o r e l i g i o s o f u n c i o -
na do mesmo m o d o que o mecanismo p a t r i ó t i c o , p r o d u z u m
s e n t i m e n t o p r o f u n d o de i g u a l d a d e , m a s n ã o e n t r e os
e l e m e n t o s d a massa : s o m e n t e e n t r e o i n d i v í d u o e o
C h r i s t o . O g r a n d e d e s e j o dos c o m p o n e n t e s d a m a s s a
é de se i g u a l a r ao C h r i s t o , e i n c o n s c i e n t e m e n t e o C h r i s t o
é t i d o c o m o o seu i g u a l pelos e l e m e n t o s . C a d a i n d i v í d u o
se s e n t e c o m d i r e i t o s sobre o p e r s o n a g e m d i v i n o e o
g r a n d e c o n f o r t o d a r e l i g i ã o c o n s i s t e e m se n i v e l a r a
ele, e m f i c a r p a r e c i d o c o m ele. D a h i o h a b i t o de d e v o r a r
periodicamente o C h r i s t o na c o m m u n h ã o da missa. E s t a
i d e a de n i v e l a m e n t o é m u i t o i m p o r t a n t e p o r q u e r e p r e -
s e n t a u m a a s p i r a ç ã o g e r a l d o h o m e m e m t o d a s as suas
a c t i v i d a d e s . Q u a n d o o c a t ó l i c o e n g o l e o c o r p o de C h r i s -
t o e as vezes b e b e o seu sangue e m f o r m a de v i n h o , ele
p r e t e n d e p o r esse a c t o a b s o r v e r as q u a l i d a d e s d o C h r i s t o .
F i c a r sendo i g u a l d o C h r i s t o . E ' u m h a b i t o m u i t o
antigo originado com a revolta do j o v e m contra o
p a t r i a r c h a d a h o r d a q u e e r a u m a e s p é c i e de h o m e m
deus e q u e p r a t i c a v a o m o n o p ó l i o s e x u a l das m u l h e r e s .
A s a u t o r i d a d e s sobre o assumpto geralmente concor-
d a m q u e este s e n h o r e r a q u a s i s e m p r e assassinado
e d e v o r a d o pelos j o v e n s dissidentes. E s t e processo
de c o m p o r t a m e n t o é p r e c i s a m e n t e o m e s m o u s a d o
pelas r e l i g i õ e s h o j e c o m m e n o r o u m a i o r g r á o de
a g r e s s ã o ; era o ú n i c o m e i o conhecido d o h o m e m
p a r a se n i v e l a r ao c h e f e , a f o r m a de r e v o l t a p r i m i t i v a
q u e logo f i c o u s a n t i f i c a d a n a sua a n t i t h e s e a a d o r a ç ã o
A N A L Y S E 51
ao c h e f e m o r t o . E ' p r o v á v e l q u e este processo de r e v o l t a

e a d o r a ç ã o seja t ã o a n t i g o q u a n t o o p r ó p r i o h o m e m ;
o v e l h o c h e f e a n t e s o d i a d o e q u e d e p o i s de m o r t o e r a
adorado.
IDE'A DE DEUS E
DE PÁTRIA
A fase de deificação do chefe corresponde ao pe-

r í o d o t o t e m i c o p o r q u e o c h e f e d e p o i s de m o r t o e r a o
i g u a l d o s r e v o l t a d o s . O a c t o de m a t a r c o n s i s t i a n u m
cebaixamento do chefe. O c o n t a c t o p r o v o c a v a o nivela-
mento. O par antitetico odio e adoração, funcionando
c o m o u m c y c l o a n c e s t r a l é o v e r d a d e i r o e i x o dos d e t e r -
m i n i s m o s dos povos p r i n c i p a l m e n t e do d e t e r m i n i s m o
e c o n ô m i c o . A idfea de r e l i g i ã o e de p á t r i a h o j e i n s t i t u e
esse m e s m o l a ç o e x i s t e n t e e n t r e as h o r d a s t o t e m i c a s
e o c h e f e m o r t o , s o m e n t e q u e n o caso das h o r d a s t o -
t e m i c a s o c h e f e m o r t o j á f o i de h a m u i t o e s q u e c i d o , e m -
q u a n t o q u e a i d e a de d e u s e de p á t r i a a i n d a p e r m a -
nece m a s sem d u v i d a d e s a p a r e c e r á c o m o n o m o d e l o
t o t e m i c o das c i v i l i s a ç õ e s d a Á f r i c a , d a Austrália e
outras.
O d e u s e a p á t r i a s ã o as d u a s cousas m a i s m a l e a -
v e i s q u e o h o m e m possue. C o m f a c i l i d a d e ele m o l d a a
p á t r i a e o d e u s a sua i m a g e m e s e p r o s t r a c o n t r i c t o e m
a d o r a ç ã o a s i m e s m o . N i v e l a d o a o d e u s e á p á t r i a ele
se c o n s i d e r a u m ser p r i v i l e g i a d o . P a t r i o t a s e i r m ã o s e m
d e u s o u C h r i s t o n ã o d e v e m ser m o l e s t a d o s . E s t a e x h i -
b i ç ã o de n a r c i s i s m o é s e m p r e l e v a d a a serio s e n d o m e s m o
o p o n t o mais sensível do h o m e m , u m a sensibilidade
parecida c o m u m nariz m u i t o comprido o u u m a defor-
m i d a d e física qualquer n u m a mulher. U m a ridiculari-
z a ç ã o d o deus o u d o n a r i z t r a z u m r e b a i x a m e n t o n a sua
p e r s o n a l i d a d e , u m a d i m i n u i ç ã o d e sua i m p o r t â n c i a e
u m a p e r d a n o goso de n a r c i s i s m o .
O l a ç o entre o h o m e m e o deus que é o m e s m o entre
o p a t r i a r c h a m o r t o e os j o v e n s , r e p r e s e n t a u m e s t a d o
m u i t o importante no desenvolvimento da humanidade ;
o estado pretotemico, a t e n d ê n c i a para a a f i r m a ç ã o do
E u ; n o c o m e ç o , se p o r t a n d o n a s u a f o r m a e l e m e n t a r
p r i m i t i v a , obedecendo a s e l e c ç ã o de u m pequeno n u m e -
r o de necessidades, e l o g o aos p o u c o s deslocando-se a t é
nossos d i a s n a s f o r m a s m a i s c o m p l e x a s das r e l i g i õ e s
actuaes, refugiando-se t a m b é m n o t u r b i l h ã o d o comer-
cio e da sciencia. E ' a t e n d ê n c i a p a r a a democracia
p r o d u z i d a p e l o d e s m a n c h a r d o e s t a d o de d e s p o t i s m o
e r e l i g i ã o (1) e u s a n d o as p a l a v r a s e x p r e s s i v a s d e S i r
J a m e s F r a z e r a p l i c a d a s ao e s t a d o a n á l o g o d a s t r i b u s
selvagens t o t e m i c a s , é o p e r i o d o de d e m o c r a c i a e m a g i a
( 2 ) . O p e r i o d o t o t e m i c o das r e l i g i õ e s a c t u a e s n ã o é p r o -
p r i a m e n t e u m p e r i o d o r e l i g i o s o , n ã o o b e d e c e ao despo-
t i s m o de u m c h e f e . E ' a p e n a s u m p e r i o d o de i n t e n s i f i -
c a ç ã o narcisista, c o n s e q ü ê n c i a da r e p r e s s ã o despokca d o
c h e f e e d o d e s e j o i n t e n s o de n i v e l a m e n t o , o a c t o de
m a t a r . P o r t a n t o a p l i c a d a ao c a t o l i c i s m o e o u t r a s seitas,
a palavra religião é a m b í g u a e tende a augmentar a
c o n f u s ã o n a t e r m i n o l o g i a a c t u a l . P a r a os nossos f i n s
c h a m a r e m o s ao c a t o l i c i s m o de t o t e m i s m o c a t ó l i c o .
(1) M u d a n ç a entre o estado de patriarchismo para o totemismo

nas tribus, é discutida com certa habilidade por Freud — "Totem
• Tabú".
(2) "Origens da família e do clan", Sir James Frazer.
A N A L Y S E 53
ADORAÇÃO
EODIO
A presença de um reagente provocador e humi-

l h a n t e c o m o era a m i n h a p r e s e n ç a p e r t u r b a v a de m a -
neira d e p l o r á v e l a piedosa e x u l t a ç ã o narcisista mais d o
que em qualquer o u t r a a g l o m e r a ç ã o , e destacava com
m a i s c o n t r a s t e o s e n t i m e n t o a n t i t e t i c o de a d o r a ç ã o e
o d i o . E s t a m a n i f e s t a ç ã o deste p a r a n t i t e t i c o f o i obser-
v a d a de u m a m a n e i r a p r e c i s a e m t o d o s os e l e m e n t o s
d a p r o c i s s ã o , se m a n i f e s t a n d o n a sua f o r m a m a i s v i o -
l e n t a de p r o t e s t o v i r i l q u a n d o , e m p r e s e n ç a dos j o v e n s ,
h o u v e u m m o m e n t o e m q u e a v o n t a d e de m a t a r s u r g i a
como o único m e i o de p r e s e r v a r a personalidade
a m e a ç a d a d e r e b a i x a m e n t o . A i n t e n s i d a d e das l i g a ç õ e s
narcisistas d o desejo d i v i n o , t r a z c o m m a i s f a c i l i d a d e á
t o n a o p a r a n t i t e t i c o , d e s e j o de m a t a r o u de a d o r a r .
O s l a ç o s a f e c t i v o s de u m a m a s s a de c r e n t e s , n a d a
t ê m q u e v e r c o m ideaes t e o l ó g i c o s , m a s s ã o r e c o r d a ç õ e s
dos l a ç o s patriarcaes da f a m í l i a p r i m i t i v a , e o c o m p o r -
t a m e n t o de u m a m a s s a de c r e n t e s r e c o r d a as fases d a
historia emocional do homem, revivendo psychicamente
a e v o l u ç ã o social p r i m i t i v a , m o s t r a n d o sempre sentimen-
t o s f o r m a d o s n a s r e c o r d a ç õ e s d a serie : c h e f e de g r u p o ,
m o n o p ó l i o s e x u a l - r e v o l t a d o s j o v e n s , assassinato che-
f e - d e u s a n t r o p o m o r f i c o , i n i c i o de e s t a d o p r e t o t e m i c o -
e s q u e c i m e n t o d o deus, t o t e m i s m o . v
E s t a c i n e m a t o g r a f i a d a h i s t o r i a e m o t i v a social d o
h o m e m n ã o se m a n i f e s t a n o s e l e m e n t o s d a m a s s a c r e n t e
d e u m a f o r m a c o n t i n u a e c r o n o l ó g i c a , m a s as m u d a n ç a s
d e r e a g e n t e s o u a s e c c e s s ã o de cousas e m r e d o r p r o v o c a
u m a serie de r e p e t i ç õ e s , e s ó a f o c a l i z a ç ã o n u m d a d o rea-
g e n t e p e r m i t e o b s e r v a r u m a p a r t e d o processo e v o l u t i v o .
O b s e r v a m o s e m t o d a s as fases d a serie e m o c i o n a l o
m e c h a n i s m o de n i v e l a m e n t o ; o m o n o p ó l i o s e x u a l d o
c h e f e d o g r u p o e n v o l v e o d e s e j o de l e v a n t a r o seu n i v e l ;
a r e v o l t a dos j o v e n s i m p l i c a u m a u g m e n t o n a c o t a d o s
j o v e n s e o assassinato d o c h e f e c o n c r e t i z a este a u g m e n t o
p r o v o c a n d o o e s t a d o p r e t o t e m i c o de u m d e u s a n t r o p o -
m o r f i c o , c o m o q u a l o h o m e m r e p e t e , e m f o r m a de r i t o s ,
os seus desejos de n i v e l a m e n t o . Segue-se o e s q u e c i m e n -
t o do deus o u o a b a n d o n o d o o b j e c t o sexual, e o desejo
se d e s l o c a aos p o u c o s se f i r m a n d o n a c a l m a r i a d o i g u a l
totemico.
U m a p r o c i s s ã o de C o r p u s C h r i s t i e m m o v i m e n t o c'
p o r t a n t o u m a m a s s a de c r e n t e s q u e a s p i r a m a se n i v e l a r
ao C h r i s t o o u b e m q u e i n c o n c i s e n t e m e n t e j á se n i v e l a -
r a m a ele. U m a p e r t u r b a ç ã o nessa m a s s a s i g n i f i c a per-
t u r b a r os l a ç o s e x i s t e n t e s e n t r e e l a e o C h r i s t o s i g n i f i c a
d e s v i a r a a t e n ç ã o d o C h r i s t o i s t o é, d e s v i a r a a t e n ç ã o
de s i m e s m o , r e t a r d a n d o a s s i m a e x u l t a ç ã o narcisista
de se v e r i g u a l a o C h r i s t o .
T o m a n d o a massa e m c o n j u n c t o , observamos cla-
r a m e n t e d u r a n t e a e x p e r i ê n c i a q u e os g r u p o s d o c o r t e j o
r e a g i a m c o n f o r m e o sexo e a i d a d e , as m o ç a s , as v e l h a s ,
os v e l h o s , os m o ç o s n ã o se p o r t a v a m d a m e s m a m a n e i r a
p a r a u m dado reagente, e o c o m p o r t a m e n t o v a r i a v a
t a m b é m c o m a classe s o c i a l e p r o f i s s i o n a l . A a s s i s t ê n c i a
t a m b é m t i n h a u m c o m p o r t a m e n t o p e c u l i a r seu.
TOTEMISMO
Como a palavra totemismo vae aparecer com fre-

q ü ê n c i a , a n t e s de e n t r a r n a s r e a ç õ e s c o n v é m n ã o d e i x a r
d u v i d a s sobre a sua s i g n i f i c a ç ã o . O t o t e m é o i g u a l d o
i n d i v í d u o . O i n d i v í d u o t r a n s p o r t a a sua personalidade
p a r a o o b j e c t o o u a n i m a l t o t e m ; as p a l a v r a s de S p e n c e r
e G i l l e n s ã o b a s t a n t e s i g n i f i c a t i v a s . " O t o t e m de u m
homem é aqui como em toda a parte identificado c o m
A N A L Y S E 55
o h o m e m . U m i n d í g e n a n o s disse u m d i a , q u a n d o dis-
c u t í a m o s a c o i s a c o m ele, n o s m o s t r a n d o u m a sua f o t o -
g r a f i a q u e t í n h a m o s t i r a d o : i s t o se p a r e c e c o m i g o t a n t o
q u a n t o u m k a n g u r u (o k a n g u r u e r a o seu t o t e m ) ( 1 ) "
o C h r i s t o da procissão é precisamente o k a n g u r u do
s e l v a g e m i s t o é , o p o n t o de r e p o u s o f i n a l d o E u das
m a s s a s c r e n t e s . C h r i s t o e k a n g u r u p r e e n c h e m as mes-
m a s f u n ç õ e s , s e r v e m de e s t r u c t u r a p a r a receber o E u
d e s l o c a d o e de a p o i o e r ó t i c o p a r a a a c t u a ç ã o n a r c i s i s t a .
A m b o s s ã o objectos symbolicos, i n t i m a m e n t e ligados
ao v e l h o c h e f e , o h o m e m - d e u s . E ' de s u p o r q u e a esco-
l h a de u m k a n g u r u c o m o t o t e m n ã o s e j a f e i t a ao acaso.
S e m d u v i d a o k a n g u r u e s t a v a l i g a d o ao c h e f e m o r t o m a i s
o u m e n o s c o m o C h r i s t o e s t á l i g a d o a deus. O p r o b l e m a
d a s cousas d a s e l e c ç ã o d o t o t e m n ã o s e r á d i s c u t i d o
aqui.
N o s y s t e m a t o t e m i c o das t r i b u s selvagens n ã o exis-
t e m i m a g e n s d o v e l h o chefe m o r t o . A s imagens repre-
s e n t a m s e m p r e os d i v e r s o s t o t e m s . O m e s m o a c o n t e c e
c o m o c a t h o l i c i s m o , n o q u a l o v e l h o c h e f e , o deus, n ã o
possue u m a i m a g e m . A s i m a g e n s s ã o d e s t i n a d a s a a p o i a r
a i m e n s a l e g i ã o de s a n t o s o u heroes d a i g r e j a . E ' p o s s í v e l
q*ue n o caso d a s t r i b u s a s e l e c ç ã o dos t o t e m s t e n h a
a l g u m a c o u s a q u e v e r c o m os a c t o s o u a pessoa d o s
heroes.
O c a t h o l i c i s m o possue a i n d a a l e m b r a n ç a d o pae
d a h o r d a p r i m i t i v a , as r e l a ç õ e s e n t r e o deus e os c r e n t e s
s ã o r e l a ç õ e s d e t e m o r , de m e d o e d e r e s p e i t o . N e n h u m
c r e n t e sabe b e m c o m o ele p o d e a d o r a r u m deus e q u a n d o
apela p a r a " o pae q u e e s t á n o c é o " , sendo h o m e m , sente
u m a e s p é c i e de i n d e c i s ã o n a sua o r g a n i z a ç ã o libidinosa,
" u m a c e r t a v e r g o n h a " c o m o m e disse a l g u é m .
(1) Annaes do Museu Guimet. "Origens da família e do clan"

Sir Jamw Frazer. Pag. 13 da ed. franceza.
E s t a l e m b r a n ç a d o v e l h o pae d a h o r d a , coloca o
c a t h o l i c i s m o n u m e s t a d o de e v o l u ç ã o m e c h a n i c a e m o c i o -
n a l a n t e r i o r ao e s t a d o de e v o l u ç ã o das t r i b u s t o t e m i c a s .
A o q u e p a r e c e , a m a i o r i a das t r i b u s t o t e m i c a s j á
se e s q u e c e r a m d o p a e d a h o r d a . E n c o n t r a m o s , p o r t a n t o ,
o catholicismo, em pleno caminhar para a c o n c r e t i z a ç ã o
t o t e m i c a . C a d a s a n t o c o m o seu g r u p o de c r e n t e s , c a d a
c r e n t e m u n i d o de u m a i n f i n i t a p i e d a d e p a r a c o m o
m u n d o e m r e d o r , i n d i c e s e g u r o de n a r c i s i s m o , c o l o -
c a n d o n o seu s a n t o , n o seu t o t e m , t o d a a sua f é , o seu
E u . P r o c u r a n d o f a z e r d o seu s a n t o o seu i g u a l , o seu
t o t e m . Podemos, assim, v i s u a l i z a r n o f u t u r o u m chris-
t i a n i s m o sem C h r i s t o e sem deus, p a r e c i d o c o m o t o -
t e m i s m o dos selvagens. P r i m e i r o d e s a p a r e c e r á a r e c o r -
d a ç ã o d o d e u s p a e e d e p o i s a i m a g e m de C h r i s t o , e f i -
n a l m e n t e a n o ç ã o d o C h r i s t o . E ' de s u p o r q u e a i m a g e m
desaparecerá antes da idea de C h r i s t o , caso c o n -
t r a r i o t e r í a m o s u m a i m a g e m sem i d e a , condemnada
sem d u v i d a a a c t u a r c o m o s o l d a d o d e s c o n h e c i d o , o u
u m o u t r o s y m b o l o de n a c i o n a l i s m o s o f r e d o r e m uso n a
época.
E s t e f e n ô m e n o de t o t e m i s a ç ã o é c o m m u m a todas
as o r g a n i s a ç õ e s sociaes. E l e a c o n t e c e c o m t o d a s as
massas d o m i n a d a s p o r u m c h e f e d e s p o t i c o e é s e m p r e o
resultado da revolta contra o m o n o p ó l i o .
TOTEMISMO POLÍTICO
ACTUAL
Actualmente, a Hespanha atravessa o periodo ini-

c i a l d o t o t e m i s m o . T e n d o - s e r e b e l a d o c o n t r a o despo-
t i s m o de P r i m o de R i v e r a , os j o v e n s r e b e l d e s se a c a u -
t e l a m , c l a m a n d o pela i n d e p e n d ê n c i a de certas p r o v í n -
cias, c a d a p r o v í n c i a c o m o seu t o t e m i d e a l i s t i c o .
A N A L Y S E 57
A I t á l i a parece que n ã o t a r d a r á m u i t o a e l i m i n a r
o seu d i t a d o r e e n t r a r e m p e r i o d o t o t e m i c o . O c o n f l i c t o
e n t r e o p a p a e o d i c t a d o r m o s t r a a i m p o s s i b i l i d a d e de
haver, n o c o m m a n d o dois chefes c o m p r e t e n ç õ e s v i r i s .
P a r a q u e a d i t a d u r a possa ser m a n t i d a , o p a p a o u o
s í m b o l o c r i s t ã o t e r á de se s u j e i t a r a u m p a p e l p u r a m e n t e
f e m i n i n o de c o m p l e t a s u b m i s s ã o . A i n t e r f e r ê n c i a de
u m p a p a b i p o l a r i z a os e s f o r ç o s de u m p a i z , d i m i n u i n d o
o p o t e n c i a l d o c h e f e , i n t r o d u z i n d o u m a f o r m a de e s t a d o
p r e t o t e m i c o , o n d e a m a s s a e os c h e f e s se c o m p o r t a m
polyandricamente. Esta polyandria tende a reforçar
os c a r a c t e r e s d o s l a ç o s t o t e m i c o s , e a c e l e r a r o processo
de t o t e m i s m o .
Desde o i n i c i o da era c h r i s t ã assistimos n a I t á l i a
ao d r a m a do c y c l o p a t r i a r c h i s m o - p r e t o t e m i s m o - t o t e m i s -
m o . A l i n o t a - s e q u e o p e r i o d o p r e t o t e m i c o , t o r n a n d o os
l a ç o s t o t e m i c o s m a i s f o r t e s que nas o u t r a s n a ç õ e s d a
E u r o p a , r e f o r ç a n d o o m e c h a n i s m o de f e t i c h e , a u g m e n -
t a s e m p r e a i m e n s a l e g i ã o de s a n t o s e heroes.
O e s t a d o a c t u a l d o B r a s i l a p ó s a r e v o l u ç ã o é de
i n i c i o de t o t e m i s m o . O p o v o p a r e c e n ã o q u e r e r t o l e r a r
a c o n t i n u a ç ã o da velha dictadura, pois realmente u m a
r e v o l t a p e r d e a s u a s i g n i f i c a ç ã o q u a n d o ela n ã o d i s p e r s a
o d e s p o t i s m o . A u n i ã o d o s i m p é r i o s , a s u b d i v i s ã o das
n a ç õ e s e m feudos, demonstram o f u n c i o n a m e n t o do
cyclo histórico patriarchismo-totemismo. O m u n d o actu-
a l m e n t e inclina-se p a r a o t o t e m i s m o , c l a m a n d o a sub-
d i v i s ã o dos i m p é r i o s . A s s i m a E u r o p a encontra-se n u m a
transição nacionalista-totemica.
A f o r m a ç ã o e e v o l u ç ã o da familia é um exemplo
do cyclo despotismo-totemismo.
A FIGURA DO
CHRISTO
A figura de Christo aparece rio scenario das reli-

giões c o m o u m p r o l o n g a m e n t o d o v e l h o deus-pae,
u m prolongamento que veio incentivar, reavivar a ima-
g e m e as q u a l i d a d e s d o v e l h o c h e f e j á q u a s i e s q u e c i d o .
E l a a p a r e c e p r e c i s a m e n t e n u m m o m e n t o de i n t e n s i f i -
c a ç ã o t o t e m i c a n u m m o m e n t o em que o m u n d o co-
n h e c i d o d e l l e a m e a ç a v a se e s q u e c e r d a personalidade
do velho chefe.
Ele v e i o c o m o o p r o t e s t o v i r i l de u m a r e c o r d a ç ã o
quasi apagada, c o m o o pretendente do t r o n o de u m chefe
e s q u e c i d o . F i l h o d o d e u s p a e ele r e l e m b r a a a n t i g a p o t ê n -
c i a d o p a e , e a s u a m i s s ã o é de i n c a r n a r a v i r i l i d a d e d o
pae, p s y c h i c a m e n t e r e p r i m i d a p e l a s a g r a ç ã o d o d e u s
a n t r o p o m o r f i c o ; ele a p a r e c e a s s i m n ã o s o m e n t e c o m o
u m p r o l o n g a m e n t o c a r n a l d o pae, m a s c o m o o ú n i c o
r e b e n t o d o c h e f e , c a p a z de r e v i v e r as scenas de l u x u r i a
d o v e l h o b l a z é , o ú n i c o que a i n d a pode reacender n o
rebanho a chama archaica da v o l ú p i a paterna, provocar
a fé a s u b m i s s ã o incondicional do rebanho, como fazia
o chefe deus n a s u b m i s s ã o das f ê m e a s . E l e estava n o
m u n d o p a r a r e l e m b r a r aos h o m e n s q u e o p a e a i n d a
t i n h a p o d e r , q u e c o n q u a n t o a f a s t a d o a i n d a p o d i a des-
t r u i r e c a s t i g a r ; a s u a h u m i l h a ç ã o , a m e n s a g e m de a m o r
d o deus pae, e r a m apenas u m m e i o astucioso de r e c a p t u -
r a r o p r e s t i g i o p e r d i d o . A f u n c ç ã o a n t r o p o l ó g i c a de
C h r i s t o e r a de r e l a t a r as p r o e s a s r e l e m b r a n d o a p o t ê n c i a
s e x u a l d o v e l h o d e u s , e se ele t i v e s s e s a h i d o v e n c e d o r
s e m d u v i d a t e r i a r e p e t i d o essas p r o e s a s c o m o o fez
M a h o m e t seiscentos a n n o s d e p o i s .
A m o r t e de C h r i s t o i n t e r r o m p e u u m a c a r r e i r a que
c o n t i n u a d a , p r o v a v e l m e n t e , n ã o t e r i a o successo d a
A N A L Y S E 59
de M a h o m e t e seria o b s c u r a c o m o a dos o u t r o s p r o f e -
tas d a é p o c a .
Christo é para o christianismo a ultima manifes-
t a ç ã o de v i r i l i d a d e d o d e u s p a e ; ele é o p r o t e s t o v i r i l ,
u m s í m b o l o , a a m e a ç a sexual do velho, que v e m trazer
aos p o v o s a p o t ê n c i a d o deus, ele f u n c i o n a c o m o u m
ó r g ã o sexual e c o m o u m a r e p r e s á l i a , actuando c o m o
p a r a n t i t e t i c o s a d i s m o - m a s o q u í s m o . U m a vez a s u a
• i m a g e m d e s t r u í d a , ele d e s a p a r e c e r á n o e s q u e c i m e n t o ,
a r r a s t a n d o c o m s i g o as s o m b r a s d o p a s s a d o p a t r i a r c h a l ,
deixando a humanidade livre para u m totemismo
imediato.
A p e s a r de i n ú m e r a s a m e a ç a s , u m a p s e u d o r e i n c a r -
n a ç ã o , é p o u c o p r o v á v e l , d e v i d o ao e s t a d o a d i a n t a d o
d o q u e b r a r t o t e m i c o . O s deuses i d e o l ó g i c o s d a f a n t a s i a
h u m a n a f a b r i c a d o s pela sciencia a i n d a n ã o f o r a m b e m
recebidos pelos p o v o s m a i s acostumados a obedecer
a c h e f e s p a t r i a r c a e s . P a r e c e q u e o c u l t o n a r c i s i s t a de
santo e heroe, precedera m e s m o a q u a l q u e r ideologia
u n i t i v a . . .o desaparecimento da personalidade do Chris-
t o s e r á o i n i c i o de u m a n o v a o r i e n t a ç ã o n a l i b i d o de u m a
b o a p a r t e d o s p o v o s d a t e r r a . . . t a l v e z s e j a ele a u l t i m a
e r e c ç ã o d o c o n t i n u m deus-pae, a n t e s de m e r g u l h a r a
humanidade c h r i s t ã na democracia e magia do totemismo.
A INTERFERÊNCIA
NO CORTEJO
Evidentemente que um cortejo em movimento,

d o m i n a d o p e l o p r o c e s s o de i n t e g r a ç ã o t o t e m i c a c o m
u m chefe i n v i s i v e l , recebe q u a l q u e r i n t e r f e r ê n c i a c o m o
u m o b s t á c u l o a o c u m p r i m e n t o d o g o z o n a r c i s i s t i c o e,
como vimos na narrativa, o obstáculo é tratado como
inimigo indesejável por u m a parte da procissão, e como
amigo aspirado p o r o u t r a parte. Podemos a d m i t t i r ,

c o m o p r i m e i r a t e n t a t i v a , q u e as d i v e r s a s p a r t e s d a p r o -
cissão pensavam diferentemente da m i n h a atitude, e
podemos a v e n t u r a r mais que a m i n h a qualidade psychica
e r a d i f e r e n t e p a r a c a d a p a r t e , i s t o é, e u f u n c i o n a v a c o m o
chefe i n v i s í v e l , c o m o m o n o p o l i s a d o r sexual, c o m o p a t r i -
a r c h a - d é s p o t a , e, c o m o o b j e c t o t o t e m i z a d o , c o n f o r m e
o momento e a parte em reacção.
E n t r e i p r i m e i r o e m c o n t a c t o c o m u m a c o l u m n a de
v e l h o s e v e l h a s . A p i e d o s a s u b m i s s ã o das v e l h a s t i n h a
o c a r a c t e r de u m a r e c o r d a ç ã o a g r a d á v e l , r e c o r d a ç ã o de
c u l p a b i l i d a d e sexual, a l g u m a cousa q u e r e l e m b r a v a a
p o t ê n c i a p a t r i a r c h a l v i v i d a , e, n o m o m e n t o , s e n t i d a .
C o m r e f e r e n c i a aos l a ç o s q u e as p r e n d i a m a o C h r i s t o ,
q u a n d o m u i t o p o d i a m ser de u m a i d e n t i f i c a ç ã o inces-
tuosa, a d m i t i n d o q u e incestuoso a q u i s i g n i f i c a apenas
a escolha d o o b j e c t o m a i s p r ó x i m o a p r o p r i a d o ao p r o -
t e s t o v i r i l . N e s t e caso, C h r i s t o e r a t o m a d o c o m o o o b -
jecto mais p r ó x i m o , a t é o m o m e n t o em que a m i n h a
p r e s e n ç a oferecia u m a v i s ã o m a i s p a l p á v e l e mais a
mão, e p o r t a n t o a p r o p r i a d a a estabelecer a d u v i d a .
V i a - s e c l a r a m e n t e n o o l h a r q u e o s e n t i m e n t o de d u v i d a
oscilava.
P a r a os v e l h o s , C h r i s t o e r a e v i d e n t e m e n t e u m m e i o
de m o s t r a r v i r i l i d a d e , u m o b j e c t o de o r g u l h o c o m o
s e m p r e s ã o os o r g a n s sexuaes. O v e l h o e r a , ao m e s m o
t e m p o , o dono, o pae de u m t o t e m . C o m o u m aspirante
i n v e r t i d o a ser o i g u a l d o t o t e m , ele se u t i l i s a v a d o
C h r i s t o p a r a ostentar u m a v i r i l i d a d e j á desaparecida,
a s s o c i a n d o - o a s i c o m o u m s y m b o l o d a sua p o t ê n c i a
perdida. A m i n h a a p a r ê n c i a j o v e m me colocava f o r a
de c o n c u r s o . E u n ã o p a r t i l h a v a d a o s t e n t a ç ã o . A m i n h a
acção não era h u m i l h a d o r a , p o r q u e a m i n h a ati-
t u d e e m n a d a d i m i n u i a o p r o t e s t o v i r i l dos velhos. E u
n ã o p e r t u r b a v a n e m p o r u m m o m e n t o os l a ç o s a f e c t i v o s
e n t r e eles e o C h r i s t o ; e u n ã o p e r t e n c i a á m e s m a c a t e -
A N A L Y S E 61
g o r i a dos v e l h o s e n ã o p o d i a p o r t a n t o r i v a l i z a r c o m eles;
a minha imagem e a m i n h a a c t u a ç ã o estavam fora do
m u n d o e m q u e eles e s t a v a m i n t e g r a d o s , e p o r t a n t o n ã o
a f e c t a v a m , o u m u i t o p o u c o , os m o v i m e n t o s n o s seus
systemas libidinosos. E ' possível que a m i n h a p r e s e n ç a ,
q u a n d o n o t a d a , s u b s t i t u í s s e a de C h r i s t o n o p a p e l de
o r g a m sexual. A pacatez observada no olhar corrobora.
M a s creio que esta s u b s t i t u i ç ã o se d a v a de m a n e i r a
i n c o n s c i e n t e , sem q u e e u , c o m o o b j e c t o e x t e r i o r , per-
turbasse o m o v i m e n t o da libido.
Agora, se eu fosse um velho, provavelmente seria

d e s r e s p e i t o s a m e n t e e m p u r r a d o de l a d o , e t a m b é m se
q u a l q u e r u m dos velhos d a p r o c i s s ã o adoptasse u m a
a t i t u d e d e s r e s p e i t o s a , seria r e c h a s s a d o caso c o n t i n u a s s e ,
o u castigado " i n l o c o " . O castigo f u n c c i o n a r i a como meio
de r e n i v e l a - l o á m a s s a , r e b a i x a r a sua p r e t e n ç ã o á
superioridade.
CONDUCTA FEMININA
A r e a c ç ã o e n t r e as f i l h a s de M a r i a f o i d i f e r e n t e
das d u a s j á d e s c r i p t a s . A f o r m a ç ã o p a s s i v a e s u b m i s s a
da m u l h e r c o n t r a s t a v a c o m a m i n h a agressividade, e
a m i n h a a t i t u d e c o m r e l a ç ã o a esta p a r t e do c o r t e j o
e r a d e n a t u r e z a h e r ó i c a . I s t o é, e u h u m i l h a v a o c o n -
j u n c t o da procissão, arriscando u m a grande d i f e r e n ç a
n u m é r i c a contra m i m . C o m o f o i visto na experiência,
a m i n h a a t i t u d e de a u d á c i a n ã o provocou nenhuma
r e v o l t a c o n t r a m i m , m a s ao c o n t r a r i o , u m a c e r t a t e n -
d ê n c i a geral a u m a a d m i r a ç ã o submissa. E s t e f e n ô m e n o
é facilmente comprehendido quando consideramos o
d e s e n v o l v i m e n t o s o c i a l d a m u l h e r desde as é p o c a s m a i s
remotas.
F r e u t l , d i s c u t i n d o o assumpto, diz " O heroe era

a q u e l l e q u e s e m a u x i l i o n e n h u m t i n h a m a t a d o o pae,
o q u a l aparece e n t ã o n o m y t h o c o m o u m m o n s t r o t o -
t e m i c o . A e l a b o r a ç ã o p o é t i c a das r e a l i d a d e s destas é p o -
cas, p r o v a v e l m e n t e t r a n s f o r m o u a m u l h e r , q u e a n t e s
n ã o e r a s e n ã o o p r ê m i o d a l u t a , e a c a u s a d o assassinato,
e m i n s t i g a d o r a e c ú m p l i c e a ç t i v a d o m e s m o . (1)
D u a s c o n c l u s õ e s b e m a d m i s s i v e i á , u m a causa d i -
recta do m o n o p ó l i o sexual do velho e a o u t r a d e d u ç ã o
lógica da fantasia do poeta. A m u l h e r n ã o somente tor-
na-se a r e c o m p e n s a d o h e r o í s m o , m a s e l a m e s m o soli-
c i t a ser u s a d a d e s t a m a n e i r a . O s c a r a c t e r í s t i c o s f e m i -
n i n o s p a s s i v o s , s u b m i s s o s , i n d i c a m o d e s e j o de ser c o n -
quistada, dominada pela força. E l a é o atractivo-engodo
q u e a t é h o j e t e m p o s t o as f o r ç a s g i g a n t e s c a s d a h u m a n i -
dade e m m o v i m e n t o e ao m e s m o t e m p o o receptaculo
dessas f o r ç a s .
O homem nunca é o inimigo da mulher emquanto
m o s t r a f o r ç a e p o d e r . S ó q u a n d o ele se t o r n a e f e m i n a d o
e i g u a l d a m u l h e r é que é despresado e t i d o c o m o i n i -
migo. Este f e n ô m e n o excepcionalmente importante,
c a r a c t e r i z a o m e c h a n i s m o b á s i c o d e t o d a s as classes
e m t o d a s as e d a d e s c o m o s e r á m o s t r a d o d e p o i s .
A n t e s de v o l t a r á p r o c i s s ã o , m a i s u m a c o u s a i m -
p o r t a n t e s o b r e a c o n d u c t a f e m i n i n a a esclarecer : a
m a n i f e s t a ç ã o d a a s t u c i a . A a s t u c i a , u m m e i o de defesa
usado por todos, é o c a r a c t e r í s t i c o principal da mulher.
O m o d o de f u n c i o n a r d a a s t u c i a é o m o d o d a sub-
m i s s ã o , a passividade, o que e q ü i v a l e a dizer que astu-
cia é i g u a l a f e m i n i l i d a d e , o u u m e x i b i c i o n i s m o d a emo-
ç ã o d a d u v i d a , o n d e as f o r ç a s se a n u l a m u m a s á s o u t r a s .
Sempre s i n t o a v o n t a d e de i m a g i n a r a m u l h e r
d i a g r a m a t i c a m e n t e c o m o u m pequeno n ú c l e o especifi-
(1) "Psychologia das massas e analyse do E u " , Freud, Pgs.

95, 96 da ed. hespanhola.
A N A L Y S E 63
camente t u m u l t u o s o protegido por u m grande p a r â m e -

t r o de a s t u c i a , p a r â m e t r o de c a r a c t e r e s f e m i n i n o s . V e r e -
m o s l o g o , q u e este p a r â m e t r o a p p a r e c e c o m o o p r o d u c t o
de u m a s e l e c ç ã o d e f e n s i v a n u m m o m e n t o de l u t a , f a z e n -
do c o m que u m elemento f e m i n i n o seja em u l t i m a ana-
l y s e i g u a l a u m e l e m e n t o m a s c u l i n o ; se d i f e r e n c i a n d o
a p e n a s p e l o a r r a n j o de f o r ç a s , o m a s c u l i n o i n d i c a n d o
u m a f o r ç a em m o v i m e n t o , e o f e m i n i n o caracterizado
p o r u m a p o r ç ã o de f o r ç a s e m e q u i l i b r i o .
D e m a n e i r a q u e os l a ç o s a f e c t i v o s e n t r e a m u l h e r
e os o b j e c t o s e x t e r n o s s ã o f o r t e m e n t e g o v e r n a d o s p e l o
p a r a n t i t e t i c o a s t u c i a - a g r e s s i v i d a d e , o n d e a a s t u c i a re-
p r e s e n t a u m c o n j u n c t o de f o r ç a s e m e q u i l i b r i o e a agres-
sividade u m m o v i m e n t o qualquer procurando perfu-
r a r a c r o s t a a s t u c i o s a . E s t e p a r â m e t r o de a s t u c i a , p a r â -
m e t r o de d u v i d a , c o n c e d e á m u l h e r u m a capacidade
p o l y a n d r i c a , i s t o é, e l a se m a n i f e s t a r e c e p t o r a a e s t a
ou à q u e l l a agressividade, c o m q u a n t o que a agressivi-
d a d e c o n s i g a v e n c e r as r e s i s t ê n c i a s f e m i n i n a s .
EU E O CHRISTO
Tal fenômeno era aparentemente visível durante

a m i n h a a c t u a ç ã o c o m as f i l h a s de M a r i a ; v i s í v e l n a
f o r m a de u m a b i p o l a r i z a ç ã o que parecia oscilar e n t r e o
C h r i s t o e eu, c o m o t a m b é m a f f e c t a v a o C h r i s t o e a m i m
c o n j u n c t a m e n t e ao m e s m o t e m p o , e t a n t o a m i n h a
personalidade audaciosa-heroica, como o sexualismo i n v i -
s í v e l d o C h r i s t o , r e c e b i a m os f a v o r e s d o a j u n t a m e n t o
de c a r a s p á l i d a s e vios brancos. N o t e i mesmo em certo
momento u m a porcentagem mais alta do m e u lado,
t a l v e z d e v i d o a o m e u e s t a d o m a i s p a l p á v e l , m a i s aces-
sível que o C h r i s t o , pois a natureza f e m i n i n a passiva
d á preferencia à s cousas m a i s a c e s s í v e i s . A sua i m o -
bilidade n ã o procura pesquizar.
N o entanto, n ã o m e era p o s s í v e l diferenciar entre

a oscilação e a a c ç ã o em c o n j u n c t o . O m e u julgamento
é h y p o t e t i c o , r e s u l t a n t e d a p o s s i v e l i n c a p a c i d a d e de
m e i d e n t i f i c a r c o m p r e c i s ã o ao C h r i s t o .
A n e c e s s i d a d e s e x u a l i n c o n s c i e n t e , o C h r i s t o , apaga-
va-se o u f o c a l i s a v a - s e c o n f o r m e a a c t u a ç ã o d o m u n d o
e x t e r i o r . O s o b j e c t o s d o e x t e r i o r e r a m : os accessorios
d a p r o c i s s ã o , a a s s i s t ê n c i a e eu. A a s s i s t ê n c i a fazia o
p a p e l de m e t r o sexual m a s c u l i n o recebendo apenas a
o s t e n t a ç ã o , a vaidade f e m i n i n a do c o n j u n c t o do cortejo.
O m e u c o m p o r t a m e n t o , c o m o j á f o i d i t o , e r a de r i v a l i -
d a d e ao C h r i s t o , p o r e s t a r i d e n t i f i c a d o c o m ele. Os ac-
cessorios e r a m as v e l a s , e s t a n d a r t e s , f i t a s , i m a g e n s ,
breviarios, t e r ç o s , e t c , e f u n c i o n a v a m c o m o fetiches
cada u m relembrando o todo o u u m a parte do drama
l i b i d i n o s o p a t r i a r c a l , de m a n e i r a q u e q u a n d o e u i m p u -
n h a a m i n h a personalidade, identificando-me com o
Christo, notava imediatamente a reação. As moças,
as v e l h a s , os p a d r e s , l i a m o b r e v i a r i o c o m m a i s a f i n c o ,
a p e r t a v a m as v e l a s c o m m a i s f e r v o r (os p a d r e s se p o r -
tavam femininamente). C o m u m p o u c o de e s f o r ç o
de i m a g i n a ç ã o p o d e r í a m o s a s s o c i a r v e l a s e c a b o s de
estandartes c o m o o r g a m sexual masculino, mas isto
n ã o é u m a necessidade. O i m p o r t a n t e é n o t a r o m o v i -
m e n t o r e a c t i v o , p r o v o c a d o p e l a m i n h a a c t u a ç ã o . Os
a c e s s o r i o s - f e t i c h e s r e c l a m a v a m l o g o o seu l u g a r s y m b o l i -
co n a f a m i l i a p a t r i a r c h a l d i v i n a , sem d u v i d a estimu-
l a n d o as necessidades i n c o n s c i e n t e s c a u s a n d o a recons-
t r u c ç ã o t e m p o r á r i a da lenda-imagem primitiva. Esta
v o l t a a o C h r i s t o o u a m i m p o s s u í a o c a r a c t e r de u m a
a c ç ã o r e f l e x a , t e n d o c o r n o base i n c o n s c i e n t e a s u b m i s -
s ã o ao f o r t e . C h r i s t o aparece apenas c o m o o o b j e c t o
i n v i s í v e l , r e l e m b r a d o p e l o s acessorios-fetiches. O p o d e r
dos a c e s s ó r i o s n ã o era n o e n t a n t o m u i t o f o r t e , pois c o m
pouco esforço consegui a t r a h i r e d o m i n a r a a t e n ç ã o ,
n ã o c o m o o l h a r , m a s n o s e n t i d o de ser a c a u s a d o i n -
LAÇOS AFECTIVOS = PARES ANTITETICOS
TENDÊNCIA POLYANDRICA
p a r â m e t r o de P f o r m a d o p o r caricias sobre a c e s s ó r i o s
£ procissão
FEITfCISMO : E deprecia D c o m apoio sobre P
mae acessórios
TOTEMISMO : E deseja ser i g u a l a D para c o n q u i s t a r P
P " " " " m ã e " receber D e E
p a r t e b r a n c a = caracteres f e m i n i n o s
p r e t a =• masculinos.
t e r r o r n p e r d a s c a r i c i a s aos a c e s s ó r i o s , i s t o é p r o v o c a r
u m a e s p é c i e de p â n i c o p s y c h i c o , d u r a n t e o q u a l elas
p e r d i a m a d i r e c ç ã o e n ã o se d e d i c a v a m n e m a o C h r i s t o
n e m a m i m ; o q u e p r o v a v e l m e n t e m o s t r a q u e os aces-
sórios n ã o eram bastante simbólicos, n ã o representavam
c o m e f i c i ê n c i a a sua c o n t r a p a r t e sexual, e n ã o e s t a v a m
suficientemente apropriados para conservar relações com
o par antitetico astucia-agressividade.
O OBJECTO MAIS
PRÓXIMO
Esta acção reflexa é commum á vida da humani-

d a d e . 0 h o m e m s e m p r e p r o c u r a se r e f u g i a r sob a p r o -
t e ç ã o d o o b j e c t o m a i s p r ó x i m o n o i n s t a n t e de p e r i g o
o u d e i n s e g u r a n ç a : o g e s t o de q u e r e r c o b r i r a c a b e ç a
c o m u m l e n ç o l o u u m a c a p a , n u m i n i c i o de c a t á s t r o f e ,
o u d e t a p a r os o u v i d o s , a p e r t a r u m o b j e c t o n a m ã o o u
c e r r a r os p u l s o s , e n t e r r a r o c h a p é o n a c a b e ç a de r a i v a ,
a c e n d e r u m c i g a r r o n a h o r a d o p e r i g o o u e m s i g n a l de
d e s p r e s o ; t a m b é m o h a b i t o de a s s o b i a r o u c a n t a r p a r a
e v i t a r o medo, todos mostram como o h o m e m procura
sempre u m a companhia, mesmo quando pouco palpável,
u m a a m i g a que a t u r e e descarregue u m a c o n c e n t r a ç ã o
d e e n e r g i a . E s t e h o r r o r á s o l i d ã o , a o i s o l a m e n t o , este
uso c o n s t a n t e d o m u n d o o b j e c t i v o c o m o fetiche para
r e c e b e r o c a p r i c h o m o v i m e n t a d o d a sua l i b i d o , m o s t r a
c o m o f u n c i o n a o m e c h a n i s m o d o i n s t i n c t o gregario,
m o s t r a o m o d o p e l o q u a l ele se i n t e r e s s a p e l o seu v i s i -
n h o , o m o d o p e l o q u a l ele se u t i l i s a d o a m b i e n t e p a r a
c o n s t r u i r a s u a f a n t a s i a . A s s i m p r o c e d e n d o elle se c o l -
l o c a e m s e g u r a n ç a s o b a p r o t e ç ã o desses o b j e c t o s , ele
t r a n s f o r m a o c i g a r r o , a c a p a , os seus p r ó p r i o s o r g a n s
e m f e t i c h e s associados á a c ç ã o d o p a r a n t i t e t i c o astucia-
A N A L Y S E 67
a g r e s s i v i d a d e , e i d e n t i f i c a d o s e á s vezes associados ao
r e a g e n t e o b j e c t i v o . O h a b i t o de f u m a r p r o v e m de u m a
s e n s a ç ã o de i n s e g u r a n ç a : o f u m a n t e p r o c u r a n o c i g a r r o
u m r e f u g i o o n d e c o l o c a r u m a i n f e r i o r i d a d e de m o m e n t o .
T o d o o nosso m u n d o e x t e r i o r f u n c i o n a de u m a m a -
n e i r a i d ê n t i c a e m r e l a ç ã o ao E u ; e v i t a n d o a i n s e g u r a n ç a ,
o h o m e m se a p o i a n o seu m u n d o o b j e c t i v o p a r a r e a l i s a r
a s a t i s f a c ç ã o p s y c h i c a de o m n i p o t e n c i a , s e n d o a escolha
d o o b j e c t o apenas acidental, o u melhor, o que está
m a i s a m ã o . O o b j e c t o f e t i c h e serve de p o n t o de a p o i o
e de c o m p e n s a ç ã o p a r a as suas necessidades. E l e se
apoia sobre o o b j e c t o c o m o u m n a u f r a g o ; u m a e s p é c i e
de ú n i c o recurso, onde o r a c i o c í n i o n a d a d e t e r m i n a . O
tacto o u a s e n s a ç ã o do objecto-fetiche compensa plena-
m e n t e a e m o ç ã o s o f r i d a e o s e n t i m e n t o de c u l p a b i l i -
d a d e , o r i u n d o d e t e r h u m i l h a d o o u de t e r se s e n t i d o
i n f e r i o r ao r e a g e n t e o b j e c t i v o . Q u a n d o o s u j e i t o h u m i l h a
o r e a g e n t e o b j e c t i v o , o o b j e c t o f e t i c h e f o r n e c e ao s u j e i -
t o o p e r d ã o do reagente, o u e n t ã o consegue sempre
d e s c u l p a r o seu a c t o . Q u a n d o o s u j e i t o é h u m i l h a d o p e l o
reagente, a caricia, ou o m a l t r a t o do objecto fetiche, indica
o d e s e j o d o s u j e i t o de e n t r a r e m c o n t a c t o c o m o r e a g e n t e
se n i v e l a n d o a ele p e l a a s t u c i a o u c a r i c i a , o u p e l o cas-
tigo. O o b j e c t o fetiche é apenas o s i m b o l o do reagente
s e m p r e c a p a z de s a t i s f a z e r as necessidades i n c o n s c i e n -
tes d o p a r a n t i t e t i c o a s t u c i a - a g r e s s i v i d a d e . O movi-
m e n t o deste p a r a n t i t e t i c o t e n d e a d i s p o r t o d o o m u n d o
o b j e c t i v o e m f e t i c h e , p a r a a c a l m a r o desejo do h o m e m ,
deste m o d o m o l d a n d o o p o n t o de v i s t a n a t o n a d a c o n -
s c i ê n c i a . E x i s t e , p o r t a n t o , u m processo de n i v e l a m e n t o
f u n c i o n a n d o entre o reagente e o sujeito, onde o objecto
fetiche e o transmissor, o vehiculo, do mesmo m o d o
c o m o o e t e r é t i d o c o m o o m e n s a g e i r o , o p o n t o de a p o i o
q u e s u p o r t a a l u z , d a f o n t e l u m i n o s a ao m u n d o e m r e d o r
A a c ç ã o r e f l e x a das f i l h a s de M a r i a , p a d r e s e v e l h a s ,
a p e r t a n d o e a c a r i c i a n d o os acessorios-fetiches, n o m o -
m e n t o de p e r i g o , n ã o s o m e n t e s i g n i f i c a u m a v o l t a a o
Christo, como f o i explicado, mas t a m b é m u m a m a n i -
f e s t a ç ã o sentimental para commigo, pois tendo-me iden-
t i f i c a d o c o m o C h r i s t o e u os h u m i l h a v a s e x u a l m e n t e
c o m agressividade, e a caricia o u o castigo do f e t i c h e
i n d i c a v a o d e s e j o q u e t i n h a m de e n t r a r e m c o n t a c t o
c o m i g o . E r a u m a m a n i f e s t a ç ã o de a s t u c i a de f e m i n i -
l i d a d e p r ó p r i a a receber a m i n h a a g r e s s ã o , era p o r assim
dizer o em'ssario da paz, passivo em p l e n o engodo da
d u v i d a , a c a t a n d o o m e u m o d o de a g i r .
O a b a n d o n o de u m o b j e c t o n e c e s s a r i a m e n t e i m p l i c a
u m a d i m i n u i ç ã o d a necessidade de p o s s u i r , d i m i n u e o
s e n t i m e n t o de i n s e g u r a n ç a , f a z d e s a p p a r e c e r a agressi-
v i d a d e , e o h o m e m m u d a l e v a n d o c o n s i g o a s e n s a ç ã o de
tempo.
N o caso d a p r o c i s s ã o os a c e s s ó r i o s n ã o e r a m s u f i -
c i e n t e m e n t e s u g e s t i v o s p a r a c o n s e r v a r v i v a a agressi-
v i d a d e d o C h r i s t o . Q u a n d o u m c o r t e j o c o m o este entra
e m p e r i o d o de m e d o , l o g o a n t e r i o r a o e s t a d o de p â n i c o ,
é de s u p o r q u e as m u l h e r e s e os h o m e n s e f e m i n a d o s se
a g a r r e m aos acessorios-fet i c h e s e m q u a n t o q u e os h o m e n s
que e m p u n h a r a m fetiches apenas c o m o o s t e n t a ç ã o v i r i l ,
a b a n d o n e m estes se c o l o c a n d o e m s e g u r a n ç a . E x c l u í d o s
n a t u r a l m e n t e os h o m e n s e f e m i n à d o s o u i d e n t i f i c a d o s
c o m o e l e m e n t o f e m i n i n o , p a d r e s e t c . ; estes se c o m p o r -
t a r i a m c o m o as m u l h e r e s . N ã o p u d e o b s e r v a r a p a r t e
do m e d o nos velhos, n e m nos padres e h o m e n s e f e m i n a -
d o s , p o r q u e o p e r i o d o de m e d o destes s e m d u v i d a c o i n -
c i d i u o u f o i logo depois do m o m e n t o d o " l y n c h a " em
que eu estava preocupado c o m a m i n h a f u g a , mas u m
m e u a m i g o , t e s t e m u n h a ocular, m e assegurou que a
u m k i l o m e t r o de o n d e e u e s t a v a " a n e g r a d a j o g a v a n o
c h ã o c a s t i ç a e s , opas, c r u c i f i x o s , b r e v i a r i o s e a b r i a n o
p é " , ele n ã o t i n h a c e r t e z a se a " n e g r a d a " e r a s ó h o m e n s
o u se i n c l u i a t a m b é m m u l h e r e s e t a m b é m n ã o p o u d e
p r e c i s a r se i s t o a c o n t e c e u d u r a n t e o m e d o o u o p â n i c o .
A N A L Y S E 69
T e s t e m u n h a g e m ocular n u n c a f o i u m b o m m e t h o d o de
observação.
O cântico t a m b é m funcionava como u m fetiche,
p a r e c i a ser u m p o n t o de a p o i o s u p e r i o r aos o u t r o s f e -
t i e h e s . P r o v a v e l m e n t e a a s s o c i a ç ã o das p a l a v r a s c o m
imagens r e v i v i a u m d r a m a esquecido, p r o d u z i n d o talvez
u m m o v i m e n t o m a i s r á p i d o nas necessidades ' n c o n s c i -
entes. N ã o é t o t a l m e n t e r e p u g n a n t e a d m i t i r que a l i -
b i d o seleccione de p r e f e r e n c i a p a r a as suas a s s o c i a ç õ e s
os o b j e c t o s c a p a z e s de p r o v o c a r os m o v i ? n e n t o s m a i s
r á p i d o s n a s necessidades i n c o n s c i e n t e s , e s c o l h e n d o a s s i m
o m e i o m a i s c u r t o p a r a realisar u m t r a b a l h o . A l g u m a
c o u s a de p a r e c i d o c o m o m o d o p o r q u e a l u z escolhe s e m p r e
o mais r á p i d o percurso para atravessar ambientes dife-
rentes.
N a a s s o c i a ç ã o de i m a g e n s c o m as p a l a v r a s d o c â n -
tico, a i m a g e m n ã o precisa corresponder á p a l a v r a .
P o d e t a m b é m dar-se u m a a s s o c i a ç ã o s e c u n d a r i a fictí-
cia v a r i a n d o com o sujeito mas c u j a c o n s t r u c ç ã o quando
t e r m i n a d a m o v i m e n t e m a i s o u m e n o s as m e s m a s neces-
s i d a d e s i n c o n s c i e n t e s q u e m o v i m e n t o u n o caso d a asso-
c i a ç ã o simples. E v i d e n t e m e n t e quanto m a i o r o n u m e r o
de a s s o c i a ç õ e s i n t e r m e d i á r i a s m e n o s p a r e c i d o é o r e s u l -
t a d o c o m o caso d a a s s o c i a ç ã o s i m p l e s . E s t e processo
i n t e r m e d i á r i o se a p l i c a aos o u t r o s f e t i c h e s .
E s t u d a n d o os l a ç o s a f e c t i v o s e n t r e as f i l h a s de
M a r i a e o c o n t i n u m a n c e s t r a l deus-pae, encontramos
as m e s m a s l i g a ç õ e s o b s e r v a d a s p o r F r e u d n o seu com-
p l e x o i n c e s t u o s o . D e d u z i n d o de A d l e r : p r o t e s t a ç ã o v i r i l
= s e n t i m e n t o de i n f e r i o r i d a d e + p r o t e ç ã o c o m p e n s a -
d o r a (1).
Aplicando o mechanismo do objecto-fetiche ; quando
a f i l h a p r o c u r a n o pae u m a p r o t e ç ã o compensadora, ela
e s t á t r a n s f o r m a n d o o pae em objecto-fetiche c o m rela-
(1) O Temperamento Nervoso — Alfredo Adler.

ç ã o a m ã e , i s t o é e l a se s e n t e v i r i l m e n t e i n f e r i o r a m ã e
e se a p o i a n o t a c t o d a s c a r i c i a s d o p a e p a r a l e v a n t a r
o seu p r e s t i g i o c o m r e l a ç ã o a m ã e , p r o c u r a n d o a s s i m
se n i v e l a r a ela e c o l o c a n d o - s e e m s e g u r a n ç a . A s s i m p r o -
c e d e n d o e l a f a z d o pae u m o b j e c t o f e t i c h e e d a m ã e
una o b j e c t o t o t e m . O p a p e l d o t o t e m e d o o b j e c t o f e t i -
c h e s ã o i n v e r t i d o s n o caso d o f i l h o .
AS FILHAS DE
MARIA
A formula totemismo-feiticismo torna-se assim uma

r e l a ç ã o de t o d a s as a c t i v i d a d e s d a v i d a d o h o m e m ;
o n d e t o t e m i s m o f o r n e c e o m o v i m e n t o de n i v e l e d e s n í -
v e l , e f e i t i c i s m o r e p r e s e n t a o p o n t o de a p o i o q u e c a r r e g a
o desespero e a a l e g r i a d o h o m e m . C h r i s t o f u n c i o n a n d o
c o m o o o r g a m s e x u a l d o d e u s - p a e t o r n a v a - s e assim o
p r i m e i r o o b j e c t o de o s t e n t a ç ã o d a f a m i l i a d e u s pae-
f i l h a s de M a r i a - m ã e d e s c o n h e c i d a . O f a c t o d e ser des-
c o n h e c i d a i n f l u e a p e n a s n o processo de t o t e m i s a ç ã o . E s t a
p o s i ç ã o de d e s t a q u e d o m e m b r o e r a u m i n d i c e de m u n -
d a n i s m o , u m a m o s t r a de p o d e r . O m o n o p ó l i o s e x u a l
era n a f a m i l i a d o deus a n t r o p o m o r f i c o o m e i o de d e s n í -
v e l e de a d q u i r i r a d m i r a ç ã o e o d i o , u m a m o s t r a de m o v i -
m e n t o n o s g r u p o s h u m a n o s . Q u a n d o a f i l h a se a f e i ç o a
ao p a e e se c o l o c a e m s e g u r a n ç a ao seu l a d o , d e d u z i n d o
de A d l e r é u m p r o c e s s o de e x a l t a ç ã o d o s e n t i m e n t o de
p e r s o n a l i d a d e , u m a a f i r m a ç ã o v i r i l . N e s t e caso esta
e x a l t a ç ã o do E u e a f i r m a ç ã o v i r i l conservam-se sempre
i n s a c i á v e i s d e v i d o á i n a c e s s í v e l qualidade desconhecida
do objecto t o t e m i c o , a m ã e . Este desconhecido e i n a t i n -
g í v e l t o t e m p r o v o c a u m m o v i m e n t o de s u p e r e x a l t a ç ã o
d o E u e u m desejo insano de u m a v i r i l i d a d e i n f i n i t a ,
e l e v a n d o as c a r i c i a s s o b r e o s í m b o l o s e x u a l , o C h r i s t o ,
TENDÊNCIA POLYGAMICA
" " M " " " " D
FEIT1 CISMO : P deprecia M c o m apoio sobre a c e s s ó r i o s
M " m u n d o o b j e c t i v o c o m apoio sobre D
TOTEMISMO : P deseja ser i g u a l a M p a r a receber D

M " m u n d o o b j e c t i v o p a r a receber
p a r t e p r e t a = caracteres m a s c u l i n o s
" branca = femininos.
a u m p o n t o de m a r t y r i z a ç ã o s á d i c a , e c o l o c a n d o o E u
n o m u n d o s u p e r p o p u l a d o e f a n t á s t i c o dos santos i s t o
é n o p l a n o das e r u p ç õ e s p s i c o n e u r o t i c a s , g e r a n d o u m a
t e n d ê n c i a p r o n u n c i a d a p a r a m i l a g r e s e o b r a s de g ê n i o .
A a c t u a ç ã o das f i l h a s de M a r i a p e r a n t e o d e u s - p a e
e r a a p e n a s u m a m o s t r a d e v a i d a d e , de s e r e m p o s s u í d a s
p o r u m p o d e r o s o ; as e l e i t a s e as p r e f e r i d a s q u e i n c i t a m
a i n v e j a d o seu sexo, se e l e v a n d o m u n d a n a m e n t e p e l o
m o n o p ó l i o , p e l o p r i v i l e g i o de s e r e m i g u a l a u m a m ã e
i n v i s í v e l e e s t r a n h a m e n t e m a l e a v e l , de a c o r d o c o m a
i m a g i n a ç ã o f i c t í c i a . O d e u s p a e e o seu o r g a m s e x u a l
f u n c i o n a m c o m o f e t i c h e s . E m r e l a ç ã o á s o u t r a s d o mes-
m o sexo, s ã o o r e c e p t a c u l o do desejo de mono-
p ó l i o m u n d a n o , de s u p e r s e g u r a n ç a , e são conside-
r a d o s c o m o r e f u g i o s u f i c i e n t e p a r a t o d a s as emoções,
sendo dispensado o resto d o m u n d o o b j e c t i v o n o m o -
m e n t o de ê x t a s e . E eu t a m b é m estava sendo usado
c o m o f e t i c h e p a r a e x a l t a r a v i r i l i d a d e e o E u das f i l h a s
d e M a r i a . Se essas m o ç a s p o s s u í s s e m s í m b o l o s b a s t a n t e
s u g e s t i v o s e i n t e l i g e n t e m e n t e p r o j e c t a d o s p a r a conser-
v a r v i v a a i m a g e m d o deus-pae c o m a s u a f u n c ç ã o v i r i l
n o C h r i s t o , se t o r n a r i a m l o g o c r e a t u r a s i n s u p o r t á v e i s ,
i n a c e s s i v e i s ao h o m e m e m a i s o u m e n o s o d i a d a s e n t r e s i .
Se eu fosse uma filha de Maria procurando humi-

l h a r as m i n h a s c o m p a n h e i r a s , s e r i a t r a t a d o b e m d i v e r -
s a m e n t e d o q u e f u i , n ã o t e r i a r e c e b i d o as a s t u c i o s a s
caricias inconscientes, n e m t ã o p o u c o seria o f e t i c h e
querido transmitindo u m m o v i m e n t o nivelador insaciá-
v e l ; m a s seria considerado c o m o u m a u s u r p a d o r a , que-
r e n d o se i d e n t i f i c a r c o m a m ã e d e s c o n h e c i d a ; m e u gesto
p r o v o c a r i a u m a b i p o l a r i z a ç ã o i n d e s e j á v e l p o r q u e eu t a m -
b é m era p r e t e n d e n t e a t o t e m , seria t r a t a d o c o m o i g u a l
e i n i m i g a pela m i n h a a r r o g â n c i a pretenciosa, receberia
o c o n t a c t o d o c a s t i g o e o t a l h o das u n h a s a f i a d a s , seria
lynchado e m o r t o impiedosamente, para manter em
LAÇOS AFECTIVOS - PARES ANTITETICOS
parâmetro de C formado por caricias sobre acessórios ou armamentos

" A " " " " chiste
FEITICISMO : A deprecia D c o m apoio sobre chiste
C m ã e desconhecida c o m a p o i o sobre a c e s s ó r i o s
C o u t r a s n a ç õ e s c o m apoio sobre a r m a m e n t o
TOTEMISMO : A deseja ser i g u a l a D p a r a c o n q u i s t a r C
C " " m ã e desconhecida p a r a c o n q u i s t a r D
C " " outras n a ç õ e s para conquistar D
p a r t e p r e t a = caracteres m a s c u l i n o s
" branca = femininos.
s e g u r a n ç a a cota m u n d a n a , e conservar a e x a l t a ç ã o do
Eu como c a m p e ã única perante a mãe desco-
nhecida.
TOTEMISMO
E MULHER
O totemismo na mulher procura sempre elevar a

s u a c o t a m u n d a n a e m r e l a ç ã o a seu sexo e é j u s t a m e n t e
esta a m a n i f e s t a ç ã o a f e c t i v a p a r a c o m o h o m e m . E '
o l a ç o a m o r o s o q u e a u g m e n t a de m a g n i t u d e á m e d i d a
que o h o m e m consegue l e v a n t a r o n i v e l de m u n d a n i s m o
da mulher. O ho n e m funeciona como objecto-fetiche,
acariciado e t o r t u r a d o para transmitir a obcessão por
u m a s a n t a c e l e b r e o u u m a a t r i z n o t á v e l , ele s e r v e de
t r a p e z i o p a r a o s a l t o t o t e m i c o , b o a p a r t e d a s vezes
recebendo o c o n t a c t o sexual c o m o u m a necessidade
secundaria.
A s e s t r e l l a s de c i n e m a s ã o os t o t e m s d e s e j a d o s p o r
g r a n d e p a r t e das m u l h e r e s de h o j e . A s s a n t a s n ã o c o n -
seguem conservar p r e s t i g i o s o b r e t u d o d e v i d o á i n h a b i l i -
d a d e d o c l e r o de n ã o i n t r o d u z i r n o c u l t o e l e m e n t o s p r ó -
prios para franquear o erotismo ; o m o n o p ó l i o do
C h r i s t o n ã o a g r a d a aos h o m e n s c r e n t e s , q u e quando
s u b m i s s o s s ã o f o r ç a d o s ao p a p e l de r i v a l f e m i n i n o .
Se a s a n t a conseguisse d o m i n a r s e x u a l m e n t e g r a n d e
n u m e r o de a d m i r a d o r e s a s u a p o s i ç ã o s e r i a d e s e j a d a e
os h o m e n s e n c h e r i a m as i g r e j a s ; n a t u r a l m e n t e o C h r i s t o
n ã o t e m a f o r ç a n u m é r i c a d o s a d m i r a d o r e s de u m a
G r e t a G a r b o ( 1 ) . Se este e s t a d o de i n c o m p r e h e n s ã o d o
c l e r o se p r o l o n g a r , a s a n t a s e r á o p r i m e i r o t o t e m a des-
aparecer.
O e s f o r ç o d e r e p r e s e n t a r t o d a s as s a n t a s c o m o j o -
vens bonitas e apetitosas n ã o é suficiente. Torna-se
(1) — Estreita de cinema, celebre.

n e c e s s á r i o q u e os e l e m e n t o s h o m e n s d a congregação
f u n c i o n e m v i r i l m e n t e c o m r e l a ç ã o a santa para que o
l u g a r de s a n t a s e j a d e s e j a d o .
O ORGANISMO VIVO
DO CORTEJO
Com relação aos espectadores, o conjuncto da pro-

c i s s ã o se c o m p o r t a v a c o m o u m o r g a n i s m o f e m i n i n o a
ser d e s e j a d o , o q u e n a t u r a l m e n t e i n d i c a q u e este o r g a -
n i s m o e r a c o m p o s t o n a s u a m a i o r p a r t e de c a r a c t e r e s
a s t u c i o s o s c o n c e n t r a d o s n a f o r m a de u m p a r â m e t r o
p r o t e c t o r espesso, c o m o a p a r e n t e m e n t e a c o n t e c e c o m a
m u l h e r . E s t e s c a r a c t e r e s p r o t e c t o r e s a s t u c i o s o s s ã o as i m a -
gens, os s a n t o s , os accessorios s a g r a d o s , as opas, o ves-
t u á r i o r e n d a d o d o s p a d r e s , q u e j u n c t a m e n t e c o m o ele-
m e n t o v i v o d a p r o c i s s ã o f o r m a m u m c o n j u n c t o de f o r ç a s
a c t u a n d o sobre a a s s i s t ê n c i a e o chefe i n v i s i v e l e o t o -
t e m a ser a l c a n ç a d o . T o d o o a p a r a t o , accessorios, e s t a n -
d a r t e s , e t c . . . f u n c i o n a c o m o f e t i c h e s o u c o m o p o n t o s de
a p o i o e de s e g u r a n ç a p a r a q u e o c o n j u n c t o d a p r o c i s -
s ã o possa a l c a n ç a r o seu t o t e m : a m ã e d e s c o n h e c i d a .
Q u a n t o mais aparatosa é a procissão, mais efeminada
ela é , e m a i s s u b m i s s a a o c o m p l e x o de p o d e r d o c h e f e .
M a i o r a sua o s t e n t a ç ã o de v a i d a d e e m a i s i n s a c i á v e l o
seu m u n d a n i s m o , m a i s a f a s t a d o se e n c o n t r a o seu t o t e m .
Para o organismo v i v o da procissão, o m u n d o ob-
j e c t i v o consiste p r i n c i p a l m e n t e nos acessorios-fetiches ;
m a s a a s s i s t ê n c i a ê t a m b é m usada c o m o f e t i c h e , ela
f u n c i o n a c o m o f e t i c h e , e m r e l a ç ã o ao t o t e m (a m ã e )
se i d e n t i f i c a n d o c o m o C h r i s t o de u m a m a n e i r a s e x u a l ,
m a s ela n ã o é a c a r i c i a d a c o m o s ã o os a c e s s ó r i o s , suas
l i g a ç õ e s c o m o c o r t e j o - f ê m e a s ã o de e x p e t a t i v a , i d ê n -
t i c a s á s de u m p o s s í v e l f u t u r o a m a n t e .
A N A L Y S E 77
E x a m i n a n d o os l a ç o s a f e c t i v o s d e n t r o d a c a m a d a
protectora f e m i n i n a do cortejo o p a r â m e t r o da astucia,
e n c o n t r a m o s o s e g u i n t e m e c h a n i s m o : os a c e s s o r i o s - f e t i -
ches q u e r e p r e s e n t a m p a r t e s o u o t o t a l d o c o n t i n u m
deus-pae s u g e r e m u m a a n t i g a s e x u a l i d a d e restaurada
n a pessoa d o C h r i s t o e q u e portanto actua como u m a
força agressiva. E s t a r e c o r d a ç ã o agressiva é acal-
mada pelas c a r i c i a s d o e l e m e n t o v i v o (a m a s s a de
crentes) que c o m o j á v i m o s usam o fetiche c o m o p o n t o
de a p o i o p a r a u m a s u p o s t a s e n s a ç ã o d e i n s e g u r a n ç a .
A a c t u a ç ã o psychologica do E u no m u n d o o b j e c t i v o
e x t e r i o r é de p r o c u r a r s e m p r e u m p o n t o d e a p o i o , u m
objecto fetiche adequado (geralmente o que e s t á mais
a m ã o ) p a r a receber a carga a f e c t i v a , o t o q u e d o i n -
c o n s c i e n t e ; este c o n t a c t o , a c a r i c i a , é s e m p r e u m a f o r ç a
agressiva p o r q u e m o v i m e n t a - s e do E u , apoiando-se n o
o b j e c t o - f e t i c h e , c o n t a n d o c o m ele p a r a u m a s a t i s f a ç ã o .
O l h a n d o c o m os o l h o s ,de u m t e r c e i r o , o b s e r v a m o s q u e
t a n t o a f o r ç a s i m b ó l i c a d o o b j e c t o - f e t i c h e c o m o as c a r i -
cias e m a n a d a s d o e l e m e n t o v i v o s ã o f o r ç a s a g r e s s i v a s
q u e se a n u l a m , o f e t i c h e e o e l e m e n t o v i v o f u n c i o n a m
conjunctamente como apoio u m para o outro, produ-
z i n d o o c a r a c t e r í s t i c o f e m i n i n o d e c a l m a s u m p t u o s a de
e s t a d o de d u v i d a c r e a n d o o p a r â m e t r o d a a s t u c i a .
A m a s s a de e s p e c t a d o r e s se c o m p o r t a e m e s p e c t a -
t i v a , r e c e b e n d o a o s t e n t a ç ã o g a r b o s a , p r e s e n c i a n d o ao
j o g o de astucia da c a m a d a p r o t e c t o r a encantada c o m
o exibicionismo. Q u a n t o menos â p a r a t o s a a o s t e n t a ç ã o
do c o r t e j o , m e n o r o e n c a n t a m e n t o d a a s s i s t ê n c i a . N u m a
p a r a d a m i l i t a r de g r a n d e s o b r i e d a d e , de g r a n d e d e m o n s -
t r a ç ã o de f o r ç a m á s c u l a , a a s s i s t ê n c i a p r o c u r a f a z e r
d a p a r a d a o seu t o t e m o seu i g u a l , se i d e n t i f i c a c o m o
e n t h u s i a s m o d a p a r a d a . Q u a n d o este d e s e j o de i g u a l -
d a d e e n c o n t r a u m a serie de o b s t á c u l o s , c o m o , p o r e x e m -
p l o , a c e r t e z a de q u e ele n ã o p o d e ser r e a l i z a d o , a assis-
t ê n c i a p r o c u r a u m p o n t o de s e g u r a n ç a n o chiste, ela
rebaixa o t o t e m desejado pela r i d i c u l a r i z a ç ã o e regosija-

se a u t o - s a t i s f e i t a . P a r a u m a a s s i s t ê n c i a de e l e m e n t o s
f e m i n i n o s o processo é i n v e r t i d o .
D e m a n e i r a q u e os e s p e c t a d o r e s s o f r e m d o i s p r o -
cessos, u m de t o t e m i s m o e o u t r o d e f e i t i c i s m o . Quando
eles a s s i s t e m e n c a n t a d o s á o s t e n t a ç ã o f e m i n i n a d o c o r -
t e j o , eles f a z e m d a v i r i l i d a d e d o d e u s - p a e u m t o t e m
desejado e q u a s i sempre r i d i c u l a r i z a m o deus-pae (em
s i l e n c i o ) r e b a i x a n d o - o , i s t o é se u t i l i s a n d o de u m a f o r m a
q u a l q u e r d o r i d i c u l o c o m o p o n t o de a p o i o c o m o o b j e c t o -
f e t i c h e p a r a receber a c a r i c i a castigo. P a r a a a s s i s t ê n c i a
a m ã e d e s c o n h e c i d a n ã o e x i s t e o u b e m , e m caso de g r a n d e
o s t e n t a ç ã o p o r p a r t e d o c o r t e j o , se c o n f u n d e c o m o
cortejo.
N o caso d a p a r a d a m i l i t a r m á s c u l a a s s i s t i r í a m o s a
n
m processo d e t o t e m i s m o e n t r e a p a r a d a e a a s s i s t ê n -
c i a ; u m d e s e j o de m o s t r a r p o d e r v i r i l . A m ã e - p a t r i a , os
objectos-fetiches s ã o o chiste e o ridiculo.
A m ã e - p a t r i a p o d e ser r e p r e s e n t a d a p o r u m d i a -
grama parecido c o m o da procissão possuindo u m p a r â -
m e t r o da astucia nacionalista, ostentando a d u v i d a ,
d e f e n s i v a . . . e q u a n t o m a i s p a t r i o t a m a i s espesso o
parâmetro.
QUANDO U M PAO
MACHUCA...
A assistência desenvolve sempre um parâmetro qual-

q u e r de a s t u c i a q u e s e m d u v i d a v a r i a c o n f o r m e o ele-
m e n t o sexual d o m i n a n t e . Este p a r â m e t r o é f o r m a d o da
c a r i c i a a g r e s s i v a d o E u e d o p o n t o de a p o i o o b j e c t i v o
q u e f u n c i o n a c o m o f e t i c h e . Q u a n d o as c a r i c i a s s ã o a p l i -
c a d a s a u m f e t i c h e r e p r e s e n t a n d o pae, m ã e , m a r i d o o u
a m a n t e desejada, p á t r i a , C h r i s t o o u q u a l q u e r f o r m a do
TENDÊNCIA POLIGAMICA
parâmetro de A formado por caricias sobre chiste

" C " acessórios ou armamento
FEITICISMO : A deprecia C c o m a p o i o sobre chiste
C m ã e desconhecida c o m a p o i o sobre a c e s s ó r i o s
C o u t r a s n a ç õ e s c o m a p o i o sobre a r m a m e n t o
TOTEMISMO : A deseja ser i g u a l a C p a r a receber D

C " " m ã e desconhecida p a r a receber D
C " " o u t r a s n a ç õ e s p a r a receber D
p a r t e p r e t a — caracteres m a s c u l i n o s
" b r a n c a <• femininos
so EXPERIÊNCIA N.° 2 - f l a v i o de carvalho
m u n d o objectivo, ou mesmo ideológico, n ã o somente

elas e n c o n t r a m u m p o n t o de a p o i o d e s e j a d o p e l o sen-
t i m e n t o de a g r e s s i v i d a d e e i n s e g u r a n ç a , m a s este p o n t o
de a p o i o é u m m e i o de a l i v i a r a c a r g a d a s necessidades
e m m o v i m e n t o , de d e s c a r r e g a r u m e s t a d o de i n s a t i s f a ç ã o
do organismo psychico, provocando u m nivelamento
e n t r e u m d a d o e s t a d o de a l m a e o a s p e c t o s u g e s t i v o
d o f e t i c h e . P a r e c e q u e o e s t a d o de a l m a i s o l a c e r t a s
p r o p r i e d a d e s a p a r e n t e s d o f e t i c h e p a r a v i v e r exn c o m -
m u m c o m estas p r o p r i e d a d e s . O s e n t i m e n t o d e i n s e g u -
r a n ç a p r o v o c a u m a f u g a para u m refugio onde todos
os e l e m e n t o s se i d e n t i f i c a m e o n d e a f o r m u l a f r a t e r n i -
dade e igualdade é aplicada dentro do mais perfeito
c o m u n i s m o , o r e f u g i o escolhido torna-se o p e r f e i t o t o t e m
d o s e n t i m e n t o de i n s e g u r a n ç a . E s t e m u n d o h o m o g ê n e o
d u r a apenas a t é h a v e r u m a m u d a n ç a n o estado a f e c t i v o
do sujeito aparentemente provocada por u m a m u d a n ç a
ou alteração no panorama objectivo ou subjectivo.
Q u a n d o u m p a o m a c h u c a u m s u j e i t o e ele r e s p o n d e c o m
u m p o n t a p é n o p a o , a c a r i c i a a p l i c a d a ao p á o p r o c u r a
a f e c t a r u m o u t r o o b j e c t o , u m a t e r c e i r a pessoa p o s s i v e l -
m e n t e u m credor o u u m a sogra, o u b e m u m estado ideo-
l ó g i c o q u a l q u e r . N ã o é o p á o q u e ele e s t á c a s t i g a n d o ;
o p á o f o i e s c o l h i d o e n t r e os m u i t o s o u t r o s o b j e c t o s s i m -
p l e s m e n t e p o r q u e se c o l o c o u e m e v i d e n c i a p o r t a n d o - s e
a g r e s s i v a m e n t e . O p á o se t r a n s f o r m a e n t ã o e m f e t i c h e
p a r a receber a s e n s a ç ã o de i n s e g u r a n ç a p r o v o c a d a p o r
u m e s t a d o de a l m a o r i u n d a de u m a serie de a s s o c i a ç õ e s
c o m p l e t a m e n t e a l h e i a s ao p á o . A p a r t e insegurança
t r a n s p o r t a d a p a r a o p á o se i r m a n i z a c o m ele, o q u e s i g n i -
f i c a q u e o p á o p r e e n c h e d o i s f i n s : ele é o f e t i c h e u s a d o
para alcançar u m totem e é t a m b é m o totem da parte
s e n t i m e n t o de i n s e g u r a n ç a considerada isoladamente.
T e m o s d o i s processos u m de t o t e m i s m o e u m de f e i t i -
c i s m o ; a c a r i c i a apoia-se ao p á o p a r a a l c a n ç a r a f i c ç ã o
o u o o b j e c t o d e s e j a d o ; t o t e m i s m o e m r e l a ç ã o ao o b j e c t o
A N A L Y S E 81
e f e i t i c i s m o e m r e l a ç ã o ao p á o q u a n d o o s u j e i t o é t o m a -
d o n a sua t o t a l i d a d e e temos t a m b é m t o t e m i s m o de
u m a p a r t e d o s u j e i t o e m r e l a ç ã o ao p á o . E s t e s t r e s p r o -
cessos n u n c a d e i x a m d e a c o n t e c e r n a s r e l a ç õ e s d o
h o m e m com o m u n d o objectivo ou mesmo ideológico
interno, e talvez u m mechanismo i d ê n t i c o possa e x -
p l i c a r os a c o n t e c i m e n t o s d o i n c o n s c i e n t e .
PENETRANDO NA
ZONA JOVEM
Os primeiros protestos dos espectadores na minha

experiência, apareceram durante a m i n h a a c t u a ç ã o com
as f i l h a s d e M a r i a , e q u a n d o os l a ç o s a f e c t i v o s e n t r e e u
e elas a u g m e n t a v a m de i n t e n s i d a d e , o q u e significa
q u e n a q u e l e m o m e n t o a a s s i s t ê n c i a p r o c u r a v a se n i v e -
lar a m i m , f a z e n d o d o p r o t e s t o o p o n t o de apoio e m e
t r a n s f o r m a n d o n u m r i v a l a m e d i d a q u e os p r o t e s t o s
a u g m e n t a v a m e q u e e u m e t o r n a v a o seu i g u a l . N o
e n t a n t o esta igualdade era p r a t i c a m e n t e i m p o s s í v e l devi-
d o a m i n h a » a t i t u d e d e d e s t a q u e de c o n t r a s t e c o m os
o u t r o s , d e y i d o ao f a c t o de e u m o n o p o l i z a r a a t e n ç ã o
a c u m u l a n d o m u n d a n i s m o . F o r ç o s a m e n t e q u e t i n h a de
c o n s e r v a r o m e u e m p r e g o de f e t i c h e e s c o l h i d o d a s f i l h a s
de M a r i a ; a m i n h a f u n c ç ã o de h e r o e m e c o n c e d i a este
p r i v i l e g i o e d e p o i s os p r ó p r i o s p r o t e s t o s d a a s s i s t ê n c i a
s e r v i a m p a r a a u g m e n t a r a m i n h a c o t a de m u n d a n i s m o
t o r n a n d o - m e assim m a i s inacessivel ainda. D e m a n e i r a
q u e q u a n t o m a i s f o r t e s os p r o t e s t o s , m a i o r o n u m e r o
de fetiches e m a i s m u n d a n i s m o eu a c u m u l a v a , e q u a n t o
mais m u n d a n i s m o eu a c u m u l a v a menos a c e s s í v e l era.
U m a s i t u a ç ã o realmente complicada, pois aparentemente
c o n t i n u a n d o a acumular m u n d a n i s m o eu acabaria me
t o r n a n d o i n a c e s s i v e l , e m q u a n t o q u e ao m e s m o t e m p o
a c a r g a de o d i o , o c h i s t e , o a b u s o , o r i d i c u l o , c r e s c i a
c o m o n u m e r o de f e t i c h e s , f o r m a n d o u m p o t e n c i a l assus-
tador, procurando i n v a d i r o vasio do m e u m u n d a n i s m o ,
romper c o m a r e s i s t ê n c i a do ambiente saturado pela
m i n h a o s t e n t a ç ã o a s t u c i o s a . A c a r g a de m u n d a n i s m o
em m e u redor renderia qualquer contacto t a b u , rodeado
p o r u m p a r â m e t r o de s a n t i d a d e e asco. A c a b a r i a m e
i d e n t i f i c a n d o c o m o v e l h o deus-pae p o d e r o s o e o d i a d o
ao m e s m o t e m p o e d e t e n t o r d o s e x u a l i s m o a p r o v e i t á -
v e l , s ó o m e u assassinato p o d e r i a s a c i a r o d e s e j o de t o t e -
m i z a ç ã o d o s e s p e c t a d o r e s , d o m e s m o m o d o q u e os j o -
v e n s d a h o r d a p r i m i t i v a r e p r i m i d o s n o s seus i n s t i n c t o s
sexuaes m a t a v a m o p a e se n i v e l a n d o a ele.
D e m a n e i r a que q u a n d o eu penetrei n a zona ocupa-
da pelo elemento u n i v e r s i t á r i o j o v e m j á carregava c o m -
m i g o u m a g r a n d e c o t a de m u n d a n i s m o , m e s m o p o r q u e
este e l e m e n t o t i n h a e m p a r t e p r e s e n c i a d o a m i n h a a c t u a -
ç ã o c o m as f i l h a s de M a r i a . O m e u gesto desrespeitoso
m e c o l o c a v a n o p a p e l de r i v a l d o d e u s ; e u p r o c u r a v a
m e t o t e m i z a r ao d e u s m a n t e n d o p a r a este f i m o m e u
p a r â m e t r o de a s t u c i a a d q u i r i d o d u r a n t e a m i n h a a c t u a -
ç ã o e r e f o r ç a d o p o r u m o u t r o p r o c e s s o de f e i t i c i s m o , p e l o
q u a l eu t r a n s f o r m a v a o elemento j o v e m e m fetiche -
apoio p a r a m e l h o r m e colocar em s e g u r a n ç a c o m rela-
ç ã o a o deus. S e m e l h a n t e m e c h a n i s m o m e c o l o c a n o
p a p e l de c o n q u i s t a d o r h o m o s e x u a l , r i v a l d o deus, m a s
a o m e s m o t e m p o o p r o c e s s o de t o t e m i z a ç ã o p r o v e n i e n t e
d o e l e m e n t o j o v e m e s t a b e l e c e e n t r e e u e este e l e m e n -
t o u m e s t a d o de r i v a l i d a d e p a r a a c o n q u i s t a d o t o t e m
d e s e j a d o , o deus. O m e u m o d o d e a g i r h u m i l h a v a e
diminuia o poder viril do elemento j o v e m , provocando
c o m o r e a ç ã o , o a p a r e c i m e n t o neste de u m p a r â m e t r o de
s e g u r a n ç a o u astucia, apoiado nos acessórios s i m b ó l i c o s
d o d e u s p a e e d a n d o a s s i m aos l a ç o s a f e c t i v o s d o c o n -
j u n c t o u m caracter homosexual. Vemos que o elemento
j o v e m d i m i n u í d o n o seu s e n t i m e n t o v i r i l , d e s e j a n d o se
p a r â m e t r o de P f o r m a d a p o r caricias sobre a c e s s ó r i o s
tL procissão
" A " e n d u r e c i m e n t o de corpo não
deixar passar e t c .
FEITICISMO A deprecia E c o m a p o i o sobre fetiches do p a r â m e t r o de A
E deus pae c o m apoio sobre P
P m ã e c o m a p o i o sobre a c e s s ó r i o s
TOTEMISMO A deseja ser i g u a l a E p a r a c o n q u i s t a r P
E " a deus pae p a r a c o n q u i s t a r P
P " m ã e p a r a receber A e P
p a r t e branca = caracteres f e m i n i n o s
" preta = masculinos
n i v e k r ao deus, p r o c u r o u f a z e r d o p r ó p r i o d e u s o seu
f e t i c h e , e m v e z de b u s c a r n o m u n d o o b j e c t i v o u m o u t r o
p o n t o de apoio.
Creando u m a situação i n s u s t e n t á v e l em relação
ao deus, p o i s o d e u s r e p r e s e n t a m a s c u l i n i d a d e m á x i m a
s e m n e n h u m p a r â m e t r o de a s t u c i a , p a r â m e t r o q u e ele
a b a n d o n o u l o g o q u e a s s u m i u o c a r g o de r e c o r d a ç ã o
antropomorfica com virilidade em C h r i s t o logo que
f i c o u i n f i n i t a m e n t e poderoso ; t e r í a m o s e n t ã o o absurdo
de v e r u m d e u s t o d o p o d e r o s o e sem p a r â m e t r o f e m i n i n o
d e a s t u c i a se s u b m e t e r ao c a p r i c h o s e x u a l d o e l e m e n t o
j o v e m c o m caracteres f e m i n i n o s . O que quer dizer, u m
i m p o s s í v e l e s c o a m e n t o de e n e r g i a de u m p o t e n c i a l m a i s
baixo a u m mais alto. O elemento j o v e m masculino
se v ê p o r t a n t o f o r ç a d o a receber a a g r e s s i v i d a d e d o deus,
de se c o m p o r t a r e f e m i n a d a m e n t e e m r e l a ç ã o a ele, o q u e
n a t u r a l m e n t e era agravado pela m i n h a o s t e n t a ç ã o v i r i l
p e r a n t e as f i l h a s de M a r i a e p e l o f a c t o q u e , c o n t i n u a n d o
n o m e u p r o c e d i m e n t o , e u i d e n t i f i c a v a os j o v e n s u n i v e r -
s i t á r i o s c o m essas m o ç a s a u g m e n t a n d o a s s i m o seu p a r â -
m e t r o de f e m i n i l i d a d e . O m e u g r a n d e m u n d a n i s m o a d -
q u i r i d o p e l o c o n t a c t o i n d i r e c t o c o m as f i l h a s de M a r i a ,
f o r m a v a t a m b é m u m p a r â m e t r o de a s t u c i a de c a r a c t e -
res f e m i n i n o s , p r o v o c a n d o a s s i m u m a r i v a l i d a d e n ã o
sexualmente mas sim mechanicamente. Sexualmente eu
p r o c u r a v a m e i d e n t i f i c a r c o m o deus sem e n c o n t r a r
o b s t á c u l o s d i r e c t o s , p o i s a l e m das f i l h a s d e M a r i a c u j o
a p o i o aos p o u c o s d e s a p a r e c i a , e u m e a p o i a v a s o b r e t u d o
nos p r ó p r i o s elementos j o v e n s que d e v i d o ao c o n t a c t o
f u n c i o n a l c o m o deus j á t i n h a m a d q u i r i d o o p a r â m e t r o
de a s t u c i a i n d i s p e n s á v e l ao m e u a p o i o . T u d o i s t o e r a
a g r a v a d o p e l o f a c t o de p e r t e n c e r e m os j o v e n s e m q u e s -
t ã o á m i n h a classe, i s t o é é r a m o s a m b o s c l a s s i f i c a d o s
s o c i a l m e n t e c o m o d a m e s m a c a t e g o r i a de universitário
burguez. M a s , cousa curiosa, os o u t r o s elementos
j o v e n s de o u t r a s c a t e g o r i a s sociaes n ã o p r o t e s t a r a m
SITUAÇÃO POUCO ANTES DO LYNCHA
TENDÊNCIA HOMOSEXUAL
" E " " " " elem. fem.° procissão
FEITICISMO E d e p r e c i o u D c o m a p o i o sobre f i l h a s de M a r i a
P deprecia E " " acessórios
TOTEMISMO P deseja ser i g u a l a E para c o n t u i s t a r D

P D " m ã e desconhecida
E D " P
E desejou " " " D " f i l h a s de Maria
p a r t e b r a n c a = caracteres f e m i n i n o s
" preta = masculinos.
contra a m i n h a a c t u a ç ã o . O primeiro protesto, como

v i m o s , f o i de u m c o l e g a m e u e t o d a a r e a ç ã o d o l y n c h a
v e i o de pessoas d a m i n h a classe.
DUAS PESSOAS
DISCUTINDO
Deste facto importantíssimo e de outros factos

a n á l o g o s d e d u z i r e m o s o s e g u i n t e a r g u m e n t o : d u a s pes-
soas d a m e s m a classe q u a n d o d i s c u t e m u m a s s u m p t o
c o m m u m a ambos disputam u m a a outra a p r e p o t ê n c i a ;
c a d a u m a coloca-se e m s e g u r a n ç a p r o c u r a n d o n o m u n d o
objectivo em redor fetiches para apoio, creando e m redor
de s i u m p a r â m e t r o d e a s t u c i a , u m a c a m a d a e f e m i n a d a ,
p r o m p t a a s u b m i s s ã o para galgar em s e g u r a n ç a a u m a
i l u s ã o de s u p e r i o r i d a d e , a u m a o m n i p o t e n c i a q u a l q u e r .
A d i s c u s s ã o se p r o l o n g a c o m e n g o d o e f e m i n a d o e
c a d a pessoa r e c e b e f a m i l i a r m e n t e a s u a c o t a de e l o g i o s .
C a d a u m a p r o c u r a s a c i a r de u m c e r t o m o d o o m u n d a n i s -
m o d a o u t r a p o r q u e a s s i m f a z e n d o e l a se c o l o c a e m m a i o r
s e g u r a n ç a , subindo no conceito da outra, augmentando
o seu p a r â m e t r o p r o t e c t o r , t o r n a n d o - s e m a i s i n s o n d a v e l
e menos m á s c u l a , impermeabilizando-se c o m o que o
vulgo chama "vaselina", magnífica expressão popular
que e x p r i m e p e r f e i t a m e n t e a d i m i n u i ç ã o d a agressivi-
dade e do a t r i t o .
A d i s c u s s ã o q u a n d o se p r o l o n g a a u g m e n t a s e m p r e
o p a r â m e t r o da astucia. C a d a i n d i v i d u o p r o c u r a alcan-
ç a r o seu t o t e m q u e n e s t e caso é o m e s m o t o t e m p a r a
ambos, a proeza transforma-se logo n u m a corrida peri-
gosa e m q u e u m p r o c u r a r i v a l i z a r c o m o o u t r o conser-
v a n d o sempre o p a r â m e t r o é t i c o , tateando n o m u n d o
o b j e c t i v o e i d e o l ó g i c o , s e l e c c i o n a n d o os p o n t o s de se-
g u r a n ç a c o n f o r m e a i n d o l e , crescendo e m o m n i p o t e n c i a
A N A L Y S E 87
p e r a n t e si m e s m o , c o n f i a n t e e s u p e r a l i m e n t a d o d e
i l u s ã o ; c o n t i n u a n d o a r r i s c a m e s g o t a r os f e t i c h e s d o
m u n d o em redor e a conduzir a bandeira para o m u n d o
i d e ó l o g o v a g o . E ' o r e c u r s o d o c h i s t e , d o r i d i c u l o das
injurias, do calão, é o periodo " p r e - m o r t e m " em que a
r e s i s t ê n c i a psichica e s t á prestes a ceder p e r a n t e a imensa
s o b r e c a r g a de f e t i c h e s e o n d e o n i v e l a m e n t o e m conse-
q ü ê n c i a d a c o r r i d a ao t o t e m , s ó p o d e se d a r p e l o c o n -
tacto, pelo toque da morte. A m b o s f i c a m demasiados
o m n i p o t e n t e s , a t i n g e m a u m g r á o de t a b u d i s s o l u v e l s ó
n a o r g i a d o sangue, sagrados p o r a u t o - i m p o s i ç ã o , odiados
porque s ã o rivaes c o n s e q ü e n t e s da igualdade, e porque
n ã o p o d e m a m b o s a g a r r a r o t o t e m ao m e s m o t e m p o .
A s s e m e l h a m - s e a d u a s c r i a n ç a s q u e l u t a m p a r a a posse
d e u m b a l ã o o u d e u m b r i n q u e d o . O t o t e m é e n t ã o des-
t r u í d o e cada u m conserva u m a r e l í q u i a c o m proprie-
dades milagrosas exclusivas ; a r e l í q u i a v e m . sempre
c o m o resultado de u m a r e p r o d u ç ã o da t r a g é d i a p r i m i -
t i v a do h o m e m . O u e n t ã o o r i v a l destroe o poder do
o u t r o , r o m p e n d o o t a b u , se i d e n t i f i c a n d o c o m o t o t e m ,
a b s o r v e n d o os p o d e r e s , f i c a n d o o i g u a l d o t o t e m .
O t o t e m n e s t e caso é u m p e r s o n a g e m fantástico
creado p o r cada u m dos disputadores e que satisfaz
as n e c e s s i d a d e s i n c o n s c i e n t e s .
A r i v a l i d a d e escoa s e m p r e de c i m a p a r a b a i x o ;
é sempre o que e s t á e m c i m a que considera o que e s t á
e m b a i x o o s e u r i v a l e a t o t e m i z a ç ã o escoa d e b a i x o
para cima. N a t u r a l m e n t e que n ã o pode haver totemi-
z a ç ã o sem r i v a l i d a d e . A r i v a l i d a d e é a f o r ç a que p r o v o c a
o d e s n í v e l constante, estabelece o contraste d e n t r o de
u m q u a d r o h o m o g ê n e o , é e n f i m a causa da necessidade*
de totemização.
Pessoas d e c a t e g o r i a m e n t a l d i f e r e n t e n ã o p o d e m
entreter relações com o par antitetico t o t e m i z a ç ã o - r i v a -
l i d a d e , p o r q u e os seus m u n d o s o b j e c t i v o s n ã o se asso-
ciam. C o n t u d o , logo que qualquer a s s o c i a ç ã o c o m e ç a ,
é o inicio da c o m u n h ã o , e da rivalidade, é o enthusiasmo

q u e c o l o c a o h o m e m e m e s t a d o de e n c a n t a m e n t o , q u e
aponta uma nova visão, engodando com u m erotismo
h u m i d o e vigoroso. O e n c a n t a m e n t o é o c o m e ç o de u m
n o v o m u n d o . O f u t u r o r i v a l recebe c a d a a s s o c i a ç ã o
c o m o u m a g r a n d e d e s c o b e r t a ; aos p o u c o s ele c o n s t r o e
o seu t o t e m , t a t e a n d o e m r e d o r , a m o n t o a n d o e des-
cartando fetiches e c o r r i g i n d o a i m a g e m espantalho
d o seu i n i m i g o de a m a n h ã . S e m p r e h a u m a t r i l o g i a
nesse processo ; o f e t i c h e , o t o t e m e o s u j e i t o ; e o c o n -
t a c t o c o m o f e t i c h e t r a z a s e n s a ç ã o de p o d e r , f o r m a
o p a r â m e t r o a s t u c i o s o n e c e s s á r i o ao s a l t o m o r t a l ; efe-
m i n a e p a r a l y s a e m s e g u r a n ç a a n t e s de r o m p e r a t r i -
logia da v i d a a f e c t i v a e e x u l t a r a u n i ã o c o m o t o t e m .
O processo m u l t i p l i c a - s e a s s u m i n d o c a d a o b j e c t o e m
si m e s m o n o v o s a t r i b u t o s s u c e s s i v a m e n t e e ao m e s m o
t e m p o ; u m t o t e m p o d e ser a o m e s m o t e m p o u m f e t i -
che e u m s u j e i t o e p o d e c o n t e r e m s i e l e m e n t o s c o m
esses a t r i b u t o s , o u b e m o s u j e i t o de u m a d a d a t r i l o g i a
p o d e t a m b é m ser o f e t i c h e o u o t o t e m de o u t r a s t r i l o -
gias. O u b e m as t r i l o g i a s se e s p e c i a l i z a m n a s suas f u n -
ç õ e s c o n s e r v a n d o os seus a t r i b u t o s .
PROCESSO DE
FEITICISMO
A rivalidade proveniente do nivelamento está em

t o d a p a r t e , e m t o d a s as classes d a s o c i e d a d e , e m t o d a s
as p r o f i s s õ e s ; n a a m i s a d e , os m a i o r e s a m i g o s se c o n s i -
d e r a m m u t u a m e n t e os m a i o r e s rivaes. . . E m toda a
parte onde h a igualdade é assim. Parece que o estado
d e i g u a l d a d e é i n s t á v e l n a s m a s s a s h u m a n a s . O ele-
m e n t o h o m e m n ã o p o d e c o n t e r a s u a a l e g r i a de posse,
o seu desejo de i m m i s c u i r - s e n a m i r a g e 1 m a r a v i l h o s a
A N A L Y S E 89
da novidade. A s f o r ç a s afectivas da trilogia orientam

o seu f u n c i o n a m e n t o ; o f e t i c h e é o seu a p o i o , o t r a n s -
p o r t e d e seu c a r i n h o , o r e c e p t a c u l o d o seu a m o r , o seu
c o n s o l o . E o t o t e m é o seu d e s t i n o q u a s i s e m p r e re-
cuando, é o movimento.
E u c a m i n h a v a p a r a u m deus e a m i n h a i l u s ã o m e
f a z i a e f e m i n a d o . O m e u r i v a l , ao m e s m o t e m p o q u e
r e c e b i a a a g r e s s i v i d a d e d o deus t o t e m i z a v a - s e c o m m i g o .
O m e u l i n c h a m e n t o era o c o n t a c t o n e c e s s á r i o p a r a dis-
s o l v e r o m e u p a r â m e t r o f e m i n i n o de a s t u c i a , e l e v a n d o -
m e á c a t e g o r i a de h e r ó e o n d e deus é e s q u e c i d o ; e o
r i v a l , t e n d o - s e n i v e l a d o a m i m , c o n s e r v a o seu p a r â m e -
t r o e f e m i n a d o , p r o c e d e n d o c o m o deus c o m o a n t e s c o m
outros fetiches e outros totems.
E u a c t u a v a n o e l e m e n t o j o v e m c o m o se fosse u m a
f o r ç a r e b e l d e a ser d o m i n a d a , u m dos seus, e n g o d a d o
p e l a n o v i d a d e ; t r a n s f o r m a v a os j o v e n s d a m i n h a classe
em meus rivaes, p r o v o c a n d o i m m e d i a t a m e n t e a tote-
m i z a ç ã o e o f e i t i c i s m o . O processo de f e i t i c i s m o desta-
cava-se b e m : p u l s o s c e r r a d o s , i n j u r i a s a m e a ç a s caras
v e r m e l h a s e r o x a s as c a r i c i a s n o s y m b o l o d o deus, aces-
s ó r i o s e f i t a s o p r ó p r i o c h ã o e m que p i s a v a m recebia
v i o l ê n c i a , o ar t a m b é m era castigado, a r e s p i r a ç ã o f o r t e
os b e r r o s , o q u e r e r e o n ã o q u e r e r , p o i s a d u v i d a a p a r e -
c i a e f e m i n a d a a s t u c i o s a , os e l e m e n t o s h e s i t a v a m e m
p a r â m e t r o i s o l a n d o a f ú r i a i n t e r n a , os j o v e n s se segu-
r a v a m u n s aos o u t r o s .
D o m e u l a d o , t a m b é m o f e i t i c i s m o era grande. M e
a p o i a v a c o m o j á f o i d i t o nos elementos d a p r o c i s s ã o
p a r a t o t e m i z a r - m e c o m o deus, l e v a n t a n d o e m r e d o r
de m i m u m p a r â m e t r o a f e t i v o . E s t á v a m o s u m e m f r e n t e
ao o u t r o cada u m c o m u m p a r â m e t r o e m p e r f e i t a cal-
m a r i a e s e m d u v i d a t e r í a m o s p e r m a n e c i d o nessa p o s i -
ç ã o p o r m u i t o t e m p o , se e u n ã o t i v e s s e p r o c u r a d o u m
n o v o p o n t o de a p o i o , a f u g a . D e s l o c a n d o - m e , deslo-
c a v a t a m b é m o r i v a l , p o i s d o c o n t r a r i o o processo de
SE E U F O S S E U M A M U L H E R BONITA
A N A L Y S E 91
t o t e m i s a ç a o seria i n t e r r o m p i d o . Q u a n t o m a i s apres-
s a v a a f u g a , m a i s depressa e r a p e r s e g u i d o . U m a p e q u e -
na a c e l e r a ç ã o da m i n h a parte provocava u m a m a i o r
n o r i v a l . P a r e c i a q u e elle a c u m u l a v a f e t i c h e s , a p o i a n d o -
se e m t u d o d e s e s p e r a d a m e n t e , p r o c u r a n d o a t i n g i r - m e
c o m o c o n t a c t o n i v e l a d o r . Se n ã o fosse a serie de o b s t á -
culos, c o m o p o r e x e m p l o a travessia da p r o c i s s ã o , teria
sido totemisado pelo rival.
O f e n ô m e n o de n i v e l a m e n t o c o n s i s t i a p r i n c i p a l m e n -
t e n u m f e n ô m e n o de i m i t a ç ã o ; f a z e r o q u e o t o t e m f a z i a ,
p a r a ser i g u a l a ele ; — os f e t i c h e s r e p r e s e n t a v a m re-
c e p t a c u l o s desses desejos, u m a e s p é c i e de alicerce c a p a z
de a t u r a r a i m i t a ç ã o ao t o t e m . A m b o s m a n t i n h a m u m
passo m a i s o u m e n o s i d ê n t i c o de a f a s t a m e n t o e a p r o -
x i m a ç ã o , e a carnificina c o m e ç a r i a no m o m e n t o em que
o t o t e m (eu) p r o d u z i s s e u m a m a n i f e s t a ç ã o i m p o s s í v e l
de ser i m i t a d a p e l a m a s s a r i v a l , e é p o r isso m e s m o q u e
o m e u discurso n ã o podia dar n e n h u m resultado preven-
tivo. Q u a n d o demonstrei com palavras a covardia da
massa, e l a n a t u r a l m e n t e n ã o p o u d e i m i t a r a m i n h a
d e m o n s t r a ç ã o , r e s u l t a n d o u m g r a n d e g a n h o de t e r r e n o
da m i n h a p a r t e . A massa distanciada psychicamente
só v i u c o m o recurso p a r a recuperar o p e r d i d o , o g r i t o
d o " l y n c h a " . T e n d o - s e d e b a t i d o de r a i v a e de h u m i -
l h a ç ã o , parecia que a m u l t i t u d e de p o n t o s de a p o i o
se d e s m a n t e l a v a , c e d i a , p a r e c i a q u e t i n h a m m o l a s i n f i -
n i t a m e n t e compressiveis, e que a a g i t a ç ã o era atoa.
O g r i t o d o " l y n c h a " apareceu c o m o u m salvador, como
u m u l t i m o e ú n i c o recurso, e f o i acolhido c o m o u m heroe
e b r a d a d o p o r t o d a s as b o c a s n u m m a g n í f i c o s u r t o de
p r o t e s t o v i r i l . E r a a p a r e n t e m e n t e o ú n i c o m e i o de re-
baixar o totem.
Se e u fosse u m a m u l h e r b o n i t a p e r t u r b a n d o c o m
o m e u e n c a n t o , s e m d u v i d a seria t r a t a d o d i f e r e n t e m e n t e
p e l o s j o v e n s colegiaes. S e r i a m o u t r o s os l a ç o s a f e c t i v o s
e n t r e o d e u s e os j o v e n s , eles f a r i a m de m i m u m f c -
92 EXPERIÊNCIA n.° 2 - flavio de carvalho
tiche para a l c a n ç a r o poder d o t o t e m - deus e c o m

t o d a c e r t e z a r e c e b e r i a as m a i s doces d e m o n s t r a ç õ e s d e
e n c a n t a m e n t o , e m q u a n t o q u e os a c e s s ó r i o s , as f i t a s ,
os b r e v i a r i o s p r o v a v e l m e n t e s e r i a m e s c o n d i d o s o u a b a n -
d o n a d o s c o m o i n ú t e i s , i n c a p a z e s de l e v a n t a r o sen-
timento da virilidade. Por toda parte rigidez m á s c u l a ,
a v e n t u r a , d e s p r e n d i m e n t o , o d e s e j o de h e r o í s m o t ã o
a l h e i o s á s f i t a s e aos a c e s s ó r i o s d a s u b m i s s ã o . O p a r â -
m e t r o d a a s t u c i a d i m i n u e , c o n s e r v a n d o a p e n a s o ne-
c e s s á r i o e n c a n t a m e n t o . E q u e m sabe m e s m o u m a t r a n s -
f o r m a ç ã o no par o s t e n t a ç ã o astucia - encantamento
para agressividade - encantamento. O deus seria
e n t ã o o inimigo do j o v e m .
POSSÍVEIS
EQUAÇÕES
A experiência e a narrativa mostram que os episó-

d i o s m a i s velozes c o m o o l y n c h a , a f u g a , o m e d o , f o r a m
os q u e d e i x a r a m i m p r e s s õ e s m a i s d e t a l h a d a s , m a s i m -
pressões provenientes do m o v i m e n t o do inconsciente,
porque me parecia que q u a n t o m a i o r a rapidez m e n o r
a p e r c e p ç ã o visual.
Se i s t o é v e r d a d e c o m o p a r e c e , e n t ã o —
I OC V i (1)
n
Onde, I = intensidade do m o v i m e n t o inconsciente.

V = velocidade do sujeito.
n
i = e x p o e n t e a ser d e t e r m i n a d o
Foi também observado que quanto menor a velo-

cidade do sugeito m e n o r o m o v i m e n t o inconsciente e
m a i o r a o b s e r v a ç ã o consciente,
A N A L Y S E
Onde, C = intensidade do m o v i m e n t o consciente.

n
2 = expoente a ser determinado.
Tomando n
i = n
2 c o m o p a r e c e ser v e r d a d e e sub-
stituindo
K
<5>
I
Onde, K — constante dependendo do systema de

medidas etc...
Não tenho muita certeza sobre a relação (1) devido

a d e f o r m a ç ã o p r o v o c a d a por diversos factores como
o l a p s o de t r e z d i a s e n t r e a e x p e r i ê n c i a e a n a r r a t i v a ,
m a s a r e l a ç ã o (2) p a r e c e ser m a i s j u s t i f i c a d a . T o m a n d o
c o m o c o n s c i e n t e s as i m p r e s s õ e s d o m u n d o o b j e c t i v o e
as a s s o c i a ç õ e s c o m este, a d m i t i n d o - s e q u e o m o v i m e n t o
i n c o n s c i e n t e se m a n i f e s t e p o r u m a s é r i e de a s s o c i a ç õ e s
c o m o c o n s c i e n t e j á v i v i d o , c o m o a c o n t e c e n o s sonhos,
isto é a m o v i m e n t a ç ã o d o inconsciente seleccionando
imagens do j á v i v i d o , construindo u m conto censurado
dos d e s e j o s d a l i b i d o . D e m a n e i r a q u e n a e x p e r i ê n c i a o
i n c o n s c i e n t e a p a r e c e c o m o u m a s é r i e de desejos o u t e n -
d ê n c i a s censuradas pelo j á v i v i d o e m u i t o pouco i n f l u -
enciada pelo m u n d o objectivo, porque a p e r c e p ç ã o visual
d o m u n d o o b j e c t i v o era pouco detalhada para a grande
v e l o c i d a d e , e a s o n o r a se associando c o m i m a g e n s f o r -
necia u m pequeno q u a d r o m o v i m e n t a d o do t u m u l t o .
Quando escrevi a narrativa procurei reviver a

v c e n a c o m t o d a s as e m o ç õ e s q u e t i n h a s e n t i d o . C o n s e r -
sei-me t a m b é m n u m a m b i e n t e u n i f o r m e , r e c o l h e n d o - m e
o mais possível no meu m u n d o interior.
A t e r c e i r a e q u a ç ã o t o m a d a e m si ê b a s t a n t e s i g n i -
f i c a t i v a , vemos que q u a n t o mais intenso o m o v i m e n t o
i n c o n s c i e n t e m e n o r o m o v i m e n t o c o n s c i e n t e , i s t o e,
q u a n t o menos associações c o m o m u n d o o b j e c t i v o ime-
m e d i a t o m a i o r e s as a s s o c i a ç õ e s do inconsciente c o m
o j á v i v i d o . Q u a n d o I é m u i t o grande, C praticamente
desaparece, se a p r o x i m a d a m o r t e . E s t e f e n ô m e n o p a r e -
cia t a m b é m c o n f i r m a d o p e l a e x p e r i ê n c i a m a s c o m u m
c e r t o e s p a ç a m e n t o . O p e r i o d o e m q u e eu e s t a v a m a i s
a m e a ç a d o de m o r t e e r a p r e c i s a m e n t e o p e r i o d o de m a i o r
m o v i m e n t o i n c o n s c i e n t e . O p e r i o d o de p â n i c o , s e g u n d o
a n a r r a t i v a , parecia m o s t r a r u m a r e a l i z a ç ã o n o incon-
s c i e n t e ( o u t a l v e z n o p r e c o n s c i e n t e d e F r e u d ) de u m a
cousa q u e m e t e r i a a c o n t e c i d o se o e s c o a m e n t o n o r m a l
das cousas c o n t i n u a s s e .
Parece q u e o i n c o n s c i e n t e , e m b a l a d o j u n t a m e n t e
com o consciente e o sujeito, n ã o p o u d e p a r a r q u a n d o
o sujeito reduziu bruscamente a velocidade. O incon-
s c i e n t e c o n t i n u o u n a sua c o r r i d a e m d i r e c ç ã o ao " l y n -
c h a " r e a l i z a n d o p o u c o d e p o i s esse " l y n c h a " n a f o r m a
de u m e s t a d o de p â n i c o c o m s u b s e q u e n t e i m a g e m
v i s u a l e s e n s a ç ã o d o t r á g i c o d e s f e c h o . P o d e t a l v e z ser
a r g u m e n t a d o q u e o p â n i c o é a n t e r i o r ao m o m e n t o d a
m o r t e e q u e r e p r e s e n t a u m e s t a d o e x a l t a d o de s u p e r
inconsciencia.
Para poder debater mais vamos a d m i t i r que a
t e r c e i r a e q u a ç ã o é v e r d a d e i r a . D e q u e m a n e i r a se c o m -
p o r t a o c o n s c i e n t e c o m r e l a ç ã o ao m u n d o o b j e c t i v o a
medida que augmenta a e x a l t a ç ã o do inconsciente ?
A e x p e r i ê n c i a m o s t r o u que q u a n t o m a i s eu m e
a p r o x i m a v a do " l y n c h a " , e q u a n t o m a i o r a velocidade,
menos detalhada a p e r c e p ç ã o o b j e c t i v a e m a i o r a emo-
ç ã o proveniente do inconsciente. A esperiençia mostrou
mais, ainda, h a v e r u m a s e l e ç ã o d o m u n d o o b j e c t i v o que
' p a r e c i a ser i n c o n s c i e n t e " , i s t o é, q u a n t o m a i s e u m e
a p r o x i m a v a do perigo e mais veloz ia, m e n o r o numero
A N A L Y S E 95
dos o b j e c t o s u s a d o s p o r m i m c o m o a p o i o . A o s p o u c o s
a b a n d o n e i o a p o i o q u e t i n h a sobre a e x p r e s s ã o f i s i o n ô -
m i c a d a p r o c i s s ã o , d e i x e i de v e r os c a s t i ç a e s e u m a p o r -
ç ã o de d e t a l h e s d o s accessorios, passei l o g o a conside-
r a r a p r o c i s s ã o c o m o u m a massa h o m o g ê n e a a g i t a d a ,
e n o m o m e n t o d a f u g a n ã o v i a m a i s a massa. A o s p o u -
cos e u s e l e c c i o n a v a os m e u s p o n t o s de a p o i o e i n t e n s i -
f i c a v a a m i n h a a c t u a ç ã o n o s p o n t o s seleccionados, p o r
e x e m p l o n o m o m e n t o e m q u e a c t u a v a c o m as f i l h a s de
M a r i a , o c h ã o e r a u m a p o i o i n s i g n i f i c a n t e sob o p o n t o
de v i s t a p s y c h i c o , m a s n a o c a s i ã o de f u g a ele recebeu
g r a n d e p a r t e d a m i n h a a t t e n ç ã o , p o r ser a p a r t e d o
m u n d o o b j e c t i v o q u e m a i s se f a z i a s e n t i r n a m i n h a
percepção.
NOS MOMENTOS
DO PERIGO
Na oceasião do perigo, um objecto antes tido como

i n s i g n i f i c a n t e , a s s u m e p r o p o r ç õ e s gigantescas. A pessoa
c o l o c a t o d a a s e g u r a n ç a d a sua v i d a e m o t i v a s o b r e
esse o b j e c t o e p a r e c e q u e o m e s m o , q u e á s vezes p o d e
ser u m l á p i s o u u m a f o l h a de p a p e l amassado, é s u f i -
ciente para compensar o sentimento de inferio-
r i d a d e e c o l o c a r a pessoa e m s e g u r a n ç a ; p a r e c e q u e é
s u f i c i e n t e p a r a r e d i m i r o s e n t i m e n t o de c u l p a , e a pessoa
e m p e r i g o , c o m o u m n a u f r a g o , agarra-se ao o b j e c t o ,
p o r q u e é o q u e se a p r e s e n t a m a i s a m ã o , c o n f i a n d o a
ele t o d a a s u a v i d a e m o t i v a .
D e m a n e i r a q u e e m v e z de d i s t r i b u i r a sua v i d a
e m o t i v a sobre m u i t o s o b j e c t o s c o m o n o m o m e n t o de
c a l m a , n a h o r a d o p e r i g o ela c o n c e n t r a t o d a a sua e m o -
ç ã o sobre u m o u p o u c o s o b j e c t o s , d i m i n u i n d o a s s i m o
seu c o n t a c t o n u m é r i c o c o m o m u n d o o b j e c t i v o . E s t a
d i m i n u i ç ã o no contacto n u m é r i c o acarreta u m a d i m i -
n u i ç ã o n a v a r i e d a d e das a s s o c i a ç õ e s . A o q u e p a r e c e ,
a s u g e s t i b i l i d a d e de u m s ó o b j e c t o n ã o p o d e p r o v o c a r
o m e s m o n u m e r o de a s s o c i a ç õ e s q u e t o d o o m u n d o
o b j e c t i v o conhecido antes.
O objecto agarrado f u n c i o n a c o m o u m a caixa cine-
m a t o g r á f i c a d o j á v i v i d o , ele r e l e m b r a t o d a s as fases
d a v i d a d o s u j e i t o e m c o n t a c t o c o m o b j e c t o s dessa cate-
goria, mas p r i n c i p a l m e n t e f u n c c i o n a como fetiche, como
receptaculo d a i n s e g u r a n ç a do h o m e m o u do estado
de m o v i m e n t o , ele t r a n s p o r t a o m o v i m e n t o d o h o m e m
p a r a a sua m e t a .
O e s t a d o de i n s e g u r a n ç a se c o n f u n d e c o m a idea
de m o v i m e n t o , q u a n d o o s e n t i m e n t o de i n s t a b i l i d a d e
d o m i n a a e m o ç ã o d o h o m e m . E l e se s e n t e c o m o se t i v e s -
se p e r d i d o a l g u m a c o u s a c o m r e f e r e n c i a ao m u n d o q u e
o cerca, é c o m o se a s u a p e r s o n a l i d a d e p a i r a s s e f o r a d o
a m b i e n t e . A a n c i ã de m o v i m e n t o v e m i n s t i n c t i v a m e n t e
e p r o c u r a u m receptaculo compensador (no m u n d o ob-
j e c t i v o possivelmente u m a m u l h e r ) , mas é sempre o
fetiche que o t r a n s p o r t a n o v a m e n t e e m p r e s e n ç a da
sua f i c ç ã o f a n t á s t i c a .
Esta fatalidade, o movimento, confere ao homem a

i l u s ã o de p o d e r , é o b r i n q u e d o l u m i n o s o q u e c o n t r a s t a
com o j á v i v i d o , que focalisa a sua e m o ç ã o desligando-o
d o a m b i e n t e , c o n c e n t r a n d o o seu e s f o r ç o p a r a a t i n g i r
essa l u m i n o s i d a d e e a m e d i d a q u e a u g m e n t a o m u n d o
o b j e c t i v o a u g m e n t a o c a m p o de a c ç ã o d o m o v i m e n t o ,
m a i s se a f a s t a a m e t a l u m i n o s a o t o t e m .
Inseguro ele se agita no mundo procurando imitar

o p o n t o f o c a i dos m u n d a n i s m o s e m seu r e d o r ; ele usa
os h o m e n s e as cousas p a r a o seu a p o i o e e n t r e o o d i o
e o a m o r segue esse e s t r a n h o c a m i n h o d o u t e r o ao
nada.
. . . e e n t r e o odio e o a m o r segue esse estranho c a m i n h o
do u t e r o ao n a d a .
QUANDO O HOMEM
MORRE
A sua juventude é o periodo de maior ligação com

o m u n d o o b j e c t i v o , é o p e r i o d o e m q u e ele se u t i l i z a
de m a i o r n u m e r o de f e t i c h e s p a r a a t i n g i r o seu m u n d a -
n i s m o . A ' m e d i d a q u e ele e n v e l h e c e o b s e r v a - s e u m a
c o n c e n t r a ç ã o de e s f o r ç o s sobre u m n u m e r o m a i s r e s t r i -
c t o d e f e t i c h e s ; p a r e c e q u e a d e c r e p i t u d e d o seu o r g a -
n i s m o n ã o o p e r m i t e m a i s de a l c a n ç a r , d e se p ô r e m
contacto com um mundo objectivo tão extenso.
D e p r e c i a d o n a sua a c t u a ç ã o , ele p r o c u r a concen-
t r a r a sua necessidade i n c o n s c i e n t e de m o v i m e n t o
sobre u m pequeno numero de objectos ou ima-
gens, q u e e s t e j a m ao seu a l c a n c e , contando com
estes p o u c o s f e t i c h e s p a r a t r a n s p o r t a - l o ao seu t o -
t e m . P o r t a n t o , o v e l h o d e p r e c i a d o se c o m p o r t a c o m o
o n a u f r a g o n a h o r a d o perigo. C o n c e n t r a a sua e m o ç ã o
sobre a p e n a s u m o u p o u c o s o b j e c t o s , e s p e r a n d o se colo-
c a r e m s e g u r a n ç a . E m a m b o s os casos v e m o s u m a b a n -
dono do m u n d o o b j e c t i v o n a l u t a p a r a conservar o
poder.
U m h o m e m m o r i b u n d o a p a r e n t e m e n t e f u n c i o n a pelo
m e s m o processo ; aos p o u c o s ele d e i x a de reconhecer
as cousas e as pessoas e m seu r e d o r e a b a n d o n a o m u n d o
o b j e c t i v o , c o n c e n t r a n d o o m o v i m e n t o d o seu i n c o n s c i -
e n t e sobre a p e n a s a l g u n s o b j e c t o s , d i m i n u i n d o sempre
o c o n t a c t o e as a s s o c i a ç õ e s c o m o m u n d o o b j e c t i v o a t é
o m o m e n t o em que u m a religião qualquer coloque uma
vela o u u m c r u c i f i x o n a sua m ã o , e e n t ã o , c o m o o nau-
f r a g o , ele se a g a r r a á v e l a o u a o c r u c i f i x o , t r a n s p o r t a
t o d a a i n s e g u r a n ç a d a sua v i d a e m o t i v a sobre a vela
e o c r u c i f i x o , f a z e n d o desses accessorios o vehiculo
p a r a t r a n s p o r t a - l o a u m ceo o u a u m e s t a d o de i g u a l -
d a d e c o m deus.
A N f A L Y S E 99
O m o m e n t o da m o r t e produz e x a l t a ç ã o do incon-
sciente e o d e s a p a r e c i m e n t o g r a d u a l d o c o n s c i e n t e . E s t e
m o v i m e n t o i n c o n s c i e n t e t r a z u m a c e r t a o r d e m de asso-
ciações com o j á v i v i d o , e isto provavelmente justifica
a i d é a de u m p r e c o n s c i e n t e s u g e r i d a p o r F r e u d . ( O
p e r i o d o de p â n i c o n a n a r r a t i v a p a r e c e d e m o n s t r a r t a m -
b é m a e x i s t ê n c i a de u m p r e c o n s c i e n t e ) .
Q u a n d o eu t i n h a q u a t o r z e a n n o s e e s t i v e p a r a
a f o g a r - m e n u m b a n h o de m a r , c e r t a v e z , l e m b r o - m e
de t e r e x p e r i m e n t a d o o p â n i c o ; v i a ao l o n g e a t e r r a
c o m t o d o s os seus a t r a t i v o s ; aos p o u c o s a v i s ã o d a
t e r r a se a p a g a v a , os d e t a l h e s se c o n f u n d i a m e m massas
u n i f o r m e s ; s ó a agua m e era real, e m e s m o esta r e t i r a v a -
m e o seu a p o i o , p e r d i a c o n t a c t o c o m o m u n d o o b j e c t i v o ;
e m desespero r e c i t e i t r e z A v e M a r i a , (nesse o c a s i ã o e r a
crente), e m e l e m b r o que em dado m o m e n t o encalhei
n a r e z a ; n ã o c o n s e g u i a de g e i t o n e n h u m m e l e m b r a r
das p a l a v r a s , e o m e u desespero crescia, p o i s t i n h a c o l o -
c a d o n a r e z a t o d a a m i n h a e m o ç ã o , t o d a a m i n h a espe-
r a n ç a , e as p a l a v r a s v i n h a m e p a r a v a m . . . A p e z a r de
e s t a r a i n d a n a s u p e r f í c i e , v i s u a l i s a v a t o d a s as i m a g e n s
de u m a f o g a m e n t o ; a m i n h a v i d a i n t e r n a p a r e c i a e s t a r
terrivelmente agitada e a v i d a consciente q u a s i des-
aparecida.
O VELHO E SUA
SAUDADE
A pessoa normal, á medida que envelhece, concen-

t r a a sua e m o ç ã o n u m m u n d o o b j e c t i v o c a d a vez m e n o r ,
s e l e c c i o n a n d o os o b j e c t o s d e a c o r d o c o m a c a p a c i d a d e
de m o s t r a r p o d e r , de se i d e n t i f i c a r c o m u m p o s s í v e l
ideal. O s v e l h o s m a i s senis se d e d i c a m a n a r r a t i v a s
amorosas i m p o s s í v e i s , r e l e m b r a m c o m i n s i s t ê n c i a os
e p i s ó d i o s m a i s v i r i s d a m o c i d a d e , se c o n f e r e m t í t u l o s
h o n o r í f i c o s o u s c i e n t i f i c o s i m a g i n á r i o s , b u s c a m as s i t u a -
ç õ e s p o l í t i c a s de d o m í n i o , e se u t i l i s a m s e m p r e d a m o c i -
d a d e c o m o p o n t o de a p o i o p a r a o s t e n t a r p o d e r a t r i b u i n -
d o a si f e i t o s d o s o u t r o s . A s v e l h a s p r o c u r a m c o m p e n -
sar a s u a d e p r e c i a ç ã o c o m a c t o s de c a r i d a d e , e n c h e m
as i g r e j a s p a r a receber a c o n d e s c e n d ê n c i a g r a c i o s a do
d e u s i n f i n i t a m e n t e v i r i l , g u a r d a m c o m c i ú m e s os segre-
d o s d e c o s i n h a , r e c e i t a s de b o l o s , doces, cousas gostosas,
capazes de assegurar a l g u m d o m í n i o s o b r e a m o c i d a d e .
D i m i n u e m a l i g a ç ã o c o m o m u n d o o b j e c t i v o concen-
t r a n d o a a f e i ç ã o sobre alguns objectos.
O n e v r o t i c o , e m m u i t o s a s p e c t o s , se p a r e c e c o m
so v e l h o s , v i v e u m a v i d a i r r e a l i n t e n s a , abandonando
o m u n d o o b j e c t i v o , f o c a l i z a n d o o seu c o n t a c t o c o m o
m u n d o o b j e c t i v o em poucos o b j e c t o s , despresando a
e x i s t ê n c i a de o u t r o s e d i r i g i n d o as suas m a n i f e s t a ç õ e s
n a v i d a n a d i r e c ç ã o d a s u a f i c ç ã o . O p r o t e s t o v i r i l dos
n e v r o t i c o s é p a r e c i d o c o m o p r o t e s t o v i r i l d o s velhos,
sendo que o n e v r o p a t h a p r o c u r a " r e a l i z a r " sua ficção,
e m q u a n t o q u e o v e l h o se s a t i s f a z c o m a f o r m a i l u s ó r i a
de f a z e r o u t r o s " a c r e d i t a r e m " n a s u a v i r i l i d a d e .
T e n h o o b s e r v a d o c o m m i g o m e s m o q u e q u a n d o eu
v i v o u m a v i d a real m u i t o intensa, m u i t o em contacto
com u m v a r i a d o m u n d o o b j e c t i v o , especialmente do
p o n t o de v i s t a s e x u a l , d i m i n u e s e n s i v e l m e n t e a i n t e n -
s i d a d e de m i n h a v i d a i n c o n s c i e n t e , n ã o c o n s i g o fazer
associações c o m o j á v i v i d o c o m bastante intensidade,
sinto-me m u i t o mais e s t ú p i d o .
T o d a s essas m a n i f e s t a ç õ e s t e n d e m a m o s t r a r que
a e q u a ç ã o (3) é p r o v a v e l m e n t e v e r d a d e i r a .
A c o n s c i ê n c i a , assim, torna-se u m a f u n c ç ã o do
c o n t a c t o c o m o m u n d o e x t e r i o r q u e aos p o u c o s se t r a n -
f o r m a n u m a p r i s ã o , l i g a n d o o h o m e m aos seus o b j e c t o s ,
moldando-o n a rotina do convencional, cada objecto
c o m u m a s i g n i f i c a ç ã o , s u g e r i n d o a u m a p a r t e d a sua
A i n s e g u r a n ç a do velho.
f a n t a s i a , s a t i s f a z e n d o a u m a p a r t e d a s u a necessidade
i n c o n s c i e n t e . E l e se a p o d e r a d o m u n d o o b j e c t i v o c o m o
ele se a p o d e r a d a m u l h e r , o c o n t a c t o s a t i s f a z u m a neces-
sidade, a p r o x i m a - o d a sua f a n t a s i a idealista, " f a z b e m
a a l m a " , c o m o se c o s t u m a d i z e r p o p u l a r m e n t e . E l e
selecciona n o o b j e c t o e m c o n t a c t o os c a r a c t e r í s t i c o s
q u e l h e a g r a d a m e q u e s e r v e m p a r a r e f o r ç a r a sua f i c -
ç ã o , a b a n d o n a n d o os o u t r o s . O m u n d o torna-se u m
i m m e n s o c a m p o de f e t i c h e s p a r a a p r o x i m a - l o d o m o d e l o
f a n t á s t i c o d a sua i m a g i n a ç ã o . E s t e a m o r e n t r e o h o m e m
e o m u n d o o b j e c t i v o é o seu c ó d i g o m o r a l p o r q u e eleva
a s u a p e r s o n a l i d a d e a p r o x i m a n d o - o d o seu t o t e m .
D a s u a a c t u a ç ã o c o m o a m b i e n t e crea-se e m r e d o r
delle u m e s t a d o de v e n e r a ç ã o e d e s r e s p e i t o , u m p a r â -
m e t r o de astucia.
O P A R Â M E T R O
D A A S T U C I A
Q u a n d o u m a m u l h e r se a g a r r a p r o t e c t o r a m e n t e ao
seu a m a d o e m p e r i g o , e l a c r i a e m r e d o r dele u m a s i t u a -
ç ã o de d u v i d a p e l o c o n t a c t o ; ela f o r m a u m p a r â m e t r o
de s e g u r a n ç a , e l a t r a n s f o r m a o a m a d o e m a p o i o p a r a
s a t i s f a z e r u m a p a r t e de s u a f a n t a s i a . U s a o h o m e m
como u m fetiche para a l c a n ç a r u m a i m a g e m c o n s t r u í -
d a p e l o seu "já vivido". O seu c o n t a c t o c o m o
a m a d o f o r m a u m a z o n a de c a l m a r i a , u m a p r o t e c ç ã o
contra a agressividade. E l a n e u t r a l i z a a sugestividade
d o seu a m a d o , s a t i s f a z e n d o a u m a p a r t e d a s u a a m b i ç ã o ,
se a p r o x i m a n d o d o seu t o t e m ; ela c r i a o p a r â m e t r o d a
a s t u c i a . A s u a p r e s e n ç a t r a z ao a m a d o a s e n s a ç ã o de
c o n t a c t o r e a l c o m o m u n d o o b j e c t i v o , t r a z p a r a ele a
r e a l i z a ç ã o d o m i l a g r e d a c o n s c i ê n c i a , ele c o m p e n s a a
sua i n s e g u r a n ç a e e n c o n t r a n a m u l h e r u m excelente
f e t i c h e c a p a z de r e f a z e r a s u a c o m p o s t u r a .
U m a n a ç ã o e m p e r i g o c r i a e m r e d o r de si u m p a r â -
m e t r o de a s t u c i a , m o v i m e n t a n d o u m e f e m i n a d o ser-
v i ç o d i p l o m á t i c o , t r a t a d o s de p a z o u c o m e r c i a e s c o n f e -
r ê n c i a s o n d e d i p l o m a t a s se a c u m u l a m c o m elogios,
a l i a n ç a s de c o r d i a l i d a d e , j o g o de t a r i f a s , e t o d a u m a
serie de c a r i c i a s p r a t i c a d a s p o r p e r s o n a g e n s q u e se u t i -
l i s a m d a m a s s a de p o v o c o m o p o n t o de a p o i o , c o m o f e t i -
che, p a r a a l c a n ç a r o c é o m a i s p r ó x i m o e r e a l i s a r p a r t e
de u m a f a n t a s i a de u m i d e a l q u a l q u e r i m e d i a t o , q u e osr
tente mundanamente, qualquer e n f e i t e c a p a z de cha-
m a r a a t e n ç ã o . Nasce em redor u m a orla nacionalista
m a r c i a l m e n t e efeminada, ostentando poder e oferecendo
a paz, e l o g i a n d o o i n i m i g o , o i g u a l , m a s se c o l o c a n d o
sempre p o r c i m a , armando-se, usando d a astucia, para
ser s u p e r i o r .
T r a t a d o s c o m e r c i a e s , t r a t a d o s e c o n f e r ê n c i a s de
p a z , acordos, a l i a n ç a s , s ã o f e t i c h e s - a p o i o s p a r a saciar
u m a s e n s a ç ã o de i n s e g u r a n ç a e a j u d a r a c o n s t r u i r a
i m a g e m f a n t á s t i c a de u m t o t e m - p a t r i a o r n a m e n t a d o
de u m a f i c ç ã o i n a c e s s i v e l . I n t e r n a m e n t e o t u m u l t o ,
as i n j u r i a s p e l a i m p r e n s a , p r o c u r a m c a s t i g a r o i g u a l -
i n i m i g o , rebaixando-o. N o exterior o p a r â m e t r o da astu-
c i a e l o q ü e n t e , e f e m i n a d o , e s t e n d e as suas g a r r a s sobre
o m u n d o objectivo, exibindo a consciência da n a ç ã o
p r e n d e n d o - s e ao m u n d o c o n v e n c i o n a l . N a ç ã o e p a r â -
m e t r o f o r m a m u m c o n j u n c t o f a t a l i s t a atheu, talvez só
c o m u m a v i s ã o m á x i m a de d u z e n t o s a n o s . A a s t u c i a
n ã o consegue c o n s t r u i r u m a i m a g e m m a i s d u r á v e l , a
sua S a t i s f a ç ã o d e v e ser i m e d i a t a .
. . . como sensoriaes
ambiente.
O p r o g r a m a p o l í t i c o é o p a r â m e t r o de a s t u c i a d o
partido político, é o enfeite querido do totem-patria
q u e o p o l í t i c o o f e r e c e ao p o v o . N u m a a s s o c i a ç ã o de
classe, o p a r â m e t r o a p a r e c e n a f o r m a de r e g u l a m e n t o s
e imposições q u e se a p o i a m s o b r e o m u n d o e x t e r i o r
p a r a m a n t e r o p r e s t i g i o de i m a g i n a ç ã o i n t e r n a , é a
defeza da a s s o c i a ç ã o .
P o r t o d a a p a r t e e s t a e x h i b i ç ã o de a s t u c i a c o m o
c a m a d a p r o t e c t o r a c o n t r a o m u n d o e x t e r i o r , e n t r e os
h o m e n s , e n t r e as n a ç õ e s , n o m e c h a n i s m o i n t e r n o das
sociedades e x i s t e a a s t u c i a n a s u p e r f í c i e d e f e n s i v a , c o m o
se fosse e x p u r g a d a p o r s e l e c ç ã o i n t e r n a .
Quando u m a n a ç ã o , u m h o m e m o u u m grupo entra
e m a c t i v i d a d e , p a r e c e h a v e r u m a s e p a r a ç ã o e n t r e os
e l e m e n t o s p s y c h i c o s , p a r e c e q u e estes s a l t a m d e u m
t u m u l t o p a r a a p a r t e e x t e r i o r , f u n c i o n a n d o c o m o sen-
soriaes p r i m á r i o s , a p a l p a n d o a m o r o s a m e n t e o a m b i e n t e ,
s a c i a n d o os seus desejos. P a r e c e q u e o d e s e j o a m o r o s o
d o g r u p o e o a m o r d o h o m e m c o n s i s t e m e m se apoiar
sobre o m u n d o o b j e c t i v o p a r a a t i n g i r aos p o u c o s u m
t o t e m . E s t e s sensoriaes p r i m á r i o s f o r m a m a c o n s c i ê n c i a
d o g r u p o o u d o h o m e m , s ã o a p a r t e c a p a z de a m a r o
m u n d o o b j e c t i v o , de e n t r a r e m c o n t a c t o c o m ele, e pelo
c o n t a c t o f o r m a r a p a r t e a s t u c i o s a o m o l e j o q u e absorve
os c h o q u e s .
Vimos na experiência que o p a r â m e t r o formado
n o i n s t a n t e a n t e s d o " l y n c h a " e r a c o m p o s t o dos mesmos
elementos que o i n t e r i o r t u m u l t u o s o ; a p a r t e mais p r ó -
x i m a á m i n h a pessoa, a p a r t e c o n s c i ê n c i a d o g r u p o de
crentes, e que l u t a v a e n t r e si, era p r o v e n i e n t e do inte-
r i o r d a m a s s a , e a p a r e c e u c o m o r e s u l t a d o de s e l e c ç ã o
n a t u r a l . O s e n t i m e n t o de i n f e r i o r i d a d e p r o v o c o u esta
selecção, fazendo da massa crente u m g r u p o contorna-
d o d e n a c i o n a l i s m o , c o m h e r o e s e d i p l o m a t a s se a n u -
l a n d o m u t u a m e n t e . E m aspecto heroes e d i p l o m a t a s
se i g u a l a m , p o r q u e a m b o s f u n c i o n a m c o m o e l e m e n t o s
realisar o ideal do Eu.
psychicos para a f o r m a ç ã o da c o n s c i ê n c i a . A f u n c ç ã o
d o d i p l o m a t a é a de receber os p r i m e i r o s m u r r o s dos he-
roes. E l e é u m f e t i c h e f o r n e c i d o ao p a r â m e t r o p e l o m e c h a -
n i s m o i n t e r i o r . N o h o m e m seria p e l o inconsciente em
m o v i m e n t o , p a r a c o o p e r a r c o m os o u t r o s f e t i c h e s . Os
d i p l o m a t a s s e r v e m p a r a s u s t e n t a r a f i c ç ã o d o heroe e
s ã o utilisados c o m o transmissores da f a n t a s i a naciona-
l i s t a , e a j u d a m a c o n s e r v a r de p é a e s t r u c t u r a q u e sus-
t e n t a o i d e a l d o E u , a n t e s de a n i q u i l a r o r i v a l p e l a m o r t e
eliminando a concorrência.
N a v i d a n o r m a l d o h o m e m , d e n t r o de u m a socie-
d a d e , os d i p l o m a t a s s ã o i n ú t e i s , n ã o a p a r e c e m p o r q u e
o t o t e m d o h o m e m é accessivel e o seu c o n t a c t o a m o r o s o
com todo o m u n d o o b j e c t i v o f o r m a logo u m p a r â m e t r o
suficientemente astucioso p a r a consolidar a i m a g e m fan-
t á s t i c a d o t o t e m , f o r n e c e n d o a s s i m a i l u s ã o de poder.
Portanto, o m u n d o o b j e c t i v o só t e m utilidade directa
p a r a o s u j e i t o q u a n d o o t o t e m a ser a t i n g i d o j á existe
n a sociedade ; o seu p a r â m e t r o de a s t u c i a é f o r m a d o
de u m a l i g a ç ã o i m e d i a t a e m u i t o r e a l c o m o m u n d o
exterior, o sujeito v i v e u m a v i d a intensa e medíocre
de s a t i s f a ç ã o , s e n d o a sua f a n t a s i a f a c i l m e n t e a c e s s í v e l .
E l e e n c o n t r a n o m u n d o o b j e c t i v o u m a a n a l y s e d o seu
m o t i v o de v i d a ; o seu p a r â m e t r o e f e m i n a d o cresce,
e cresce o seu a m o r p a r a o m u n d o o b j e c t i v o , á m e d i d a
q u e os seus desejos se s a t i s f a z e m . A v e l h i c e t r a z u m a
d i m i n u i ç ã o desse m u n d o o b j e c t i v o e m v i r t u d e d a de-
p r e c i a ç ã o física, com u m a c o n s e q ü e n t e concentração
de e s f o r ç o .
O c o n t a c t o c o m o m u n d o o b j e c t i v o r e a v i v a no
s u j e i t o u m a serie de a s s o c i a ç õ e s , de i d e a i s ; ele se l e m -
b r a d o j á v i v i d o q u e de u m c e r t o m o d o , n u m a c e r t a
o r d e m , é a s u a t e o r i a s o b r e a v i d a . E ele m a n e j a o m u n -
d o o b j e c t i v o d e a c o r d o c o m essa t e o r i a , p e r p e t u a n d o
a r o t i n a . A t e o r i a é i m p o s t a ao s u j e i t o p e l o m u n d o o b -
j e c t i v o , c o m o c o n d i ç ã o d e v i d a , e as suas a s s o c i a ç õ e s
s ã o produzidas p o r auto-defesa, para m a n t e r a i l u s ã o

de s u a v i r i l i d a d e e e v i t a r u m a d e p r e c i a ç ã o q u e r e s u l t a -
r i a , caso ele a b a n d o n a s s e a r o t i n a . R e p e t i n d o a t e o r i a
ele se i n t e g r a a g r a d a v e l m e n t e n o a m b i e n t e s t a n d a r d i -
zado, é acolhido pelo i n i m i g o c o m o u m i g u a l p r o m p t o
a ser d e v o r a d o , e segue c o r d i a l m e n t e o passo d e reza
da vida.
A t e o r i a q u e ele o s t e n t a e m d e f e s a p r ó p r i a é a sua
c o n s c i ê n c i a , e m f u n c ç ã o de u m a g l o m e r a d o h e t e r o g ê n e o
de h o m e n s . E l a s ó p o d e s o b r e v i v e r p e l a s t a n d a r d i z a ç ã o
e p e l a a f i n i d a d e g e r a l p a r a c o m ele.
A base de t o d a c o n s c i ê n c i a é a defesa p r ó p r i a .
C o l o c a r - s e e m s e g u r a n ç a , t e m a c e i t a ç ã o g e r a l , e todas
as vezes q u e p e n s a m o s " m i n h a c o n s c i ê n c i a m e d i z que
e u d e v o f a z e r i s t o . . ." ê p a r a n o s c o l o c a r e m s e g u r a n ç a
c o m r e l a ç ã o á r o t i n a , n ã o p e r d e r o p r e s t i g i o d a nossa
p e r s o n a l i d a d e , n u m m o v i m e n t o de a s t u c i a p a r a nos
garantir no futuro.
A c o n s c i ê n c i a a c t u a e f e m i n a d a m e n t e p e l o engodo
e p e l a a s t u c i a . E l a ê o p r o d u c t o d o e n a m o r a m e n t o pelo
m u n d o o b j e c t i v o , d o c a p r i c h o p e l a r o t i n a . U m a separa-
ç ã o d o m u n d o o b j e c t i v o d i m i n u e o p a r â m e t r o de astu-
cia, u m i s o l a m e n t o t r a z e m p o u c o t e m p o a p e r d a c o m -
pleta da c o n s c i ê n c i a . M e s m o nos homens que vivem
d e n t r o de u m a d a d a r o t i n a , a c o n s c i ê n c i a d i m i n u e á
m e d i d a que envelhecem, d e v i d o a u m c o n t a c t o mais
restricto com o m u n d o objectivo, u m encantamento
m e n o r e e m g e r a l u m d e s p r e n d i m e n t o m a i o r , u m desejo
m e n o s a c e n t u a d o d e se m a n t e r n e l e .
O que caracteriza a parte f e m i n i n a da mulher é
a s u a p r i s ã o ao c o n v e n c i o n a l ; a m u l h e r é e x t r e m a m e n t e
conscienciosa; a sua v i d a consciente é m a i o r que a
d o h o m e m , o seu c o n t a c t o e x t r e m a m e n t e a m o r o s o c o m
o a m b i e n t e r e f o r ç a a sua l i g a ç ã o c o m a r o t i n a , provo-
c a n d o u m g r a n d e m o v i m e n t o de a s t u c i a e m seu redor,
n e c e s s á r i o p a r a a t i n g i r ao t o t e m m a i s p r ó x i m o p r e s c r i p t o
O P A R Â M E T R O D A A S T U C I A 111
pela r o t i n a o f i c i a l . A s m u l h e r e s e f e m i n a d a s v i v e m vaga-
r o s a m e n t e , presas á r o t i n a , s u b m i s s a s ao j u g o d a t e o r i a
em uso, se a r r a s t a m l a n g o r o s a s p e l o m u n d o o b j e c t i v o ,
fazendo da m o d a e da rotina o totem apropriado e con-
v e n i e n t e , v i v e n d o n a e x p e c t a t i v a d o d o m i n i o sexual.e
d e s e n v o l v e n d o u m a g r a n d e q u a n t i d a d e de a s t u c i a p a r a
a s s e g u r a r esse d o m i n i o .
A mulher efeminada procura sempre entrar em

contacto directo com o m u n d o objectivo. E l a quer tocar.
A c a r i c i a ao f e t i c h e a g r a d a a sua v a i d a d e : m a r t i r i z a r
p a r a e l e v a r o E u ao n i v e l d o t o t e m r e b a i x a d o .
Uma diminuição da consciência traz logo um aug-

m e n t o n a masculinidade. Q u a n t o menos preso pela
r o t i n a , q u a n t o m e n o r o e n c a n t a m e n t o pela teoria social,
m a i s m á s c u l o se t o r n a o s u j e i t o ; t o d o o m u n d o sabe q u e
os h o m e n s de p o u c a c o n s c i ê n c i a s ã o t i d o s c o m o os m a i s
m á s c u l o s , a masculinidade do bandido depreciado, o pro-
t e s t o v i r i l d o h o m e m de g ê n i o se a f a s t a n d o das t e o -
rias em uso. Astucia e audácia n ã o podem ser
m a n i f e s t a d a s ao m e s m o tempo. U m elemento pode
se t o r n a r m a i s ou menos astucioso, á m e d i d a que
ele se a p r o x i m a o u se a f a s t a d o m u n d o o b j e c t i v o .
Muitos imaginam que os bandidos são astuciosos,

p u r o e n g a n o — s ã o i n d i v i d u o s sem c o n s c i ê n c i a que
l a b o r a m p o r u m a o u t r a t e o r i a , f u n c i o n a m sobre u m a
base de r e s e n t i m e n t o e p o s s u e m u m a c o n s c i ê n c i a p r e -
c o n s c i e n t e e e m m u i t o s r e s p e i t o s se p a r e c e m c o m os
grandes scientistas.
Quando os bandidos se tornam astuciosos, ficam

logo fazendo parte reconhecida da sociedade onde
operam. A d q u i r e m consciência.
Houve épocas em que os donjuans eram tidos como

m á s c u l o s ; p o r e m agora, aceitos pela r o t i n a social, se
c o m p o r t a m e f e m i n a d a m e n t e , c o n s c i e n c i o s a m e n t e . A co-
t a ç ã o d o m e r c a d o de d o n j u a n s d i m i n u e c o m o a c r e c i m o
da acessibilidade.
Q u a n t o m a i o r o p a r â m e t r o de a s t u c i a , m a i o r o
s e n t i m e n t o de c o n s c i ê n c i a , m a i s l i g a d o f i c a a o a m b i e n t e ,
m a i s f o r t e s os l a ç o s a f e c t i v o s e n t r e a n e c e s s i d a d e e o
a m b i e n t e , e p o r t a n t o m a i s preso á r o t i n a , p o r q u e só
p e l a r o t i n a ele consegue f i r m a r c o n t a c t o . O a b a n d o n o
da r o t i n a i m p l i c a u m a r e o r g a n i z a ç ã o dos l a ç o s afectivos
e n t r e os o b j e c t o s d o m u n d o . A r o t i n a p a r e c e f a c i l i t a r
a f o r m a ç ã o d o p a r â m e t r o n o sentido de estabelecer u m a
astucia oficial, u m engodo f e m i n i n o aceito c o m o tra-
d i ç ã o . M a s a base d a r i v a l i d a d e c o n s e r v a - s e i n t a c t a ;
o p a r â m e t r o de a s t u c i a de c a d a r i v a l cresce, á m e d i d a
q u e ele l u t a c o n t r a o s e n t i m e n t o d e i n s e g u r a n ç a apo-
iando-se nos fetiches p a r a elevar o E u á f a n t a s i a tote-
m i c a . A r o t i n a l i m i t a e prestabelece a f a n t a s i a i m p o n d o
u m a r e s t r i c ç ã o n a f o r m a e n o n u m e r o d e f a n t a s i a s dis-
poníveis.
Estas restricções da rotina tendem a augmentar a
m a g n i t u d e dos l a ç o s a f e c t i v o s d a c o n s c i ê n c i a ; parecem
r e f o r ç a r a c o n s c i ê n c i a , fazendo delia n ã o somente o
c o n t a c t o e as a s s o c i a ç õ e s c o m o m u n d o o b j e c t i v o , mas
t a m b é m u m a d e t e r m i n a d a o r d e m de contactos, isto é
faz a c o n s c i ê n c i a mais conscienciosa ainda.
D a e s c r a v i d ã o , a m o d a das m u l h e r e s é u m b o m
e x e m p l o d e c o n s c i ê n c i a c o n s c i e n c i o s a , os deveres d o
c a s a m e n t o , a é t i c a e s p o r t i v a e s o c i a l , e t o d a s as é t i c a s ,
s ã o exemplos.
O a b a n d o n o d a r o t i n a v i r i a l i b e r t a r a a f e i ç ã o amo-
rosa d o h o m e m ; ele n ã o se a p o i a r i a m a i s sobre os o b -
j e c t o s r e p e t i n d o a m e s m a s e q ü ê n c i a — os o b j e c t o s seriam
s u g e s t i v o s de o u t r a m a n e i r a , p o s s i v e l m e n t e a l t e r a n d o o
m o d o de f u n c i o n a r d o i n c o n s c i e n t e e as a s s o c i a ç õ e s e
imagens do preconsciente.
T o m a n d o c o m o d e f i n i ç ã o que astucia é u m estado

de c a l m a r i a p r o v o c a d o p e l o c o n t a c t o d o s u j e i t o c o m
o m u n d o o b j e c t i v o e i d e o l ó g i c o , á p r i m e i r a v i s t a parece
que a r o t i n a n ã o pode i n f l u i r no p a r â m e t r o da astucia
p o r q u e a i d e a de r o t i n a v e m de r e p e t i ç ã o , de u m a se-
q ü ê n c i a , e aparentemente n ã o ha nada que f a ç a supor
que a r e p e t i ç ã o só seja o bastante p a r a i n c r e m e n t a r
u m a t e n d ê n c i a inconsciente, augmentando o esforço
na f o r m a ç ã o do p a r â m e t r o . M a s o conhecimento da
r o t i n a preconcebida, em si, j á f o r m a u m a idea, u m apoio
poderoso suficiente para augmentar a astucia ; é como
u m u l t i m a t u m q u e i m p õ e u m " m o d u s v i v e n d i " sob
p e n a de e l i m i n a ç ã o .
P a r a a m a i o r p a r t e das pessoas, a r o t i n a de u m
ambiente é u m fetiche i n e v i t á v e l , e f o r m a u m a grande
p a r t e d a a s t u c i a e d a c o n s c i ê n c i a c o m o m e i o de defesa
para poder viver.
O a b a n d o n o da r o t i n a deveria d i m i n u i r considera-
v e l m e n t e a a s t u c i a d a v i d a , a necessidade de e n g o d o , e
c o n s e q u e n t e m e n t e de u m a m a n e i r a g e r a l o s e n t i m e n t o
de i n s e g u r a n ç a . O s e n t i m e n t o de i n s e g u r a n ç a e x i s t e
por c o m p a r a ç ã o c o m a m a i o r i a que fornece o p a d r ã o
e o m o d o da rotina. Sem u m a maioria e u m a rotina o
m u n d o o b j e c t i v o torna-se menos " p r o x i m o " e m r e l a ç ã o
á s a s s o c i a ç õ e s d o j á v i v i d o ; o s e n t i m e n t o de i n s e g u r a n ç a
d i m i n u e e o h o m e m seria e m p a r t e , l i b e r t a d o d a sua
c u r i o s a p r i s ã o , a p a r e n t e m e n t e o seu t o t e m t o m a r - s e -
ia menos acessível.
N a p r i s ã o d a r o t i n a o seu t o t e m s ó e r a a c e s s í v e l
pelo d e s e n v o l v i m e n t o da astucia e do engodo isto é
de u m a g r a n d e q u a n t i d a d e de c o n s c i ê n c i a ; a a l t e r a ç ã o
na sugestividade do m u n d o objectivo, quebrando a ro-
t i n a e t o r n a n d o este m e n o s c o n s p i c u o d i m i n u e a q u a n t i -
d a d e de c o n s c i ê n c i a e o s e n t i m e n t o de i n s e g u r a n ç a q u e
é p r o d u c t o d a i d e a de p a d r ã o r e c o l h e n d o o h o m e m a
u m a v i d a i n t e r n a m a i o r o n d e ele se associa c o m m a i s
a f i n c o ao j á v i v i d o .
D e m a n e i r a que todo o conceito da c o n s c i ê n c i a
v e m a ser u m a f u n c ç ã o d o e n a m o r a m e n t o d o m u n d o
o b j e c t i v o e dos l a ç o s a f e c t i v o s d a r o t i n a ; o c o n t r a s t e
humilhante da r o t i n a provocando a i n s e g u r a n ç a produz
o e n a m o r a m e n t o pelos fetiches que o a j u d a m a a l c a n ç a r
o seu t o t e m , o h o m e m a m a o o b j e c t o q u e o c o l o c a em
s e g u r a n ç a p e r t o d o seu i d e a l f a n t á s t i c o .
O a m o r t o r n a - s e u m a c o n s e q ü ê n c i a de necessidade
de se c o l o c a r e m s e g u r a n ç a p a r a o p r a z e r n a r c i s i s t a de
e x a l t a r a p e r s o n a l i d a d e e a c o n s c i ê n c i a cresce á m e d i d a
q u e o a m o r a u g m e n t a p e l a s cousas d o m u n d o , enla-
ç a n d o o h o m e m e m f o r m a s de m ú m i a , f a z e n d o - o escravo
de u m a é t i c a c o m o m e i o de d e f e z a p a r a m a n t e r - s e v i v o
e a d q u i r i r m u n d a n i s m o . E q u a n t o m a i s s u b m i s s o ele
é á r o t i n a d a é t i c a m a i s c e d o ele a l c a n ç a o seu t o t e m
mundano.
A i d e a de l u t a p e l a v i d a e s t á l i g a d a á i d e a de con-
sciência ; lutando com a natureza, apalpando o ambi-
ente, ele c o n s t r o e a sua p e r s o n a l i d a d e c o n f o r m e a rea-
ç ã o das f o r ç a s d a n a t u r e z a , t o d o o seu m o d o é de sub-
m i s s ã o , ele se c o l o c a n a d e f e n s i v a a s t u c i o s o e s u b m i s s ã o
ao • n ã o f a ç a i s s o " e m r e d o r ; n a l u t a p a r a v i v e r ele selec-
c i o n a a p e n a s os o b j e c t o s q u e l h e t r a z e m m u n d a n i s m o ,
q u e s a t i s f a z e m a s u a f i c ç ã o t o t e m i c a , é o desejo de se
n i v e l a r ao seu t o t e m q u e d e t e r m i n a a s e l e c ç ã o . A f a t a -
l i d a d e dos a c t o s d o h o m e m e s t á p r e c i s a m e n t e neste
desejo de n i v e l a m e n t o . E x i s t e f a t a l i d a d e n o f a c t o de
s e r e m seleccionados s o m e n t e a q u e l e s o b j e c t o s capazes
de a p r o x i m a - l o d a s u a f a n t a z i a . A l u t a p e l a v i d a n ã o
e a m e s m a c o u s a q u e o m o m e n t o de p e r i g o , q u a n d o ele
se a g a r r a ao o t j j e c t o m a i s p r ó x i m o c o m o r e f u g i o p a r a
a s u a i n s e g u r a n ç a ; o m o m e n t o de p e r i g o se c a r a c t e r i z a
pelo afastamento do m u n d o o b j e c t i v o , pela diminuição
d a c o n s c i ê n c i a , p e l a d i f i c u l d a d e o r g â n i c a de a l c a n ç a r
o m u n d o o b j e c t i v o , pela a p r o x i m a ç ã o da m o r t e . N ã o ha
l u t a pela v i d a no m o m e n t o da m o r t e ou do grande peri-
go, p o r q u e n ã o h a s e l e c ç ã o . E l e s ó p o d e c o l o c a r a- sua
i n s e g u r a n ç a no objecto mais perto ; a d m i t i n d o está
claro que l u t a pela v i d a envolve u m a selecção mesmo
quando f o r ç a d a pela fantasia.
Mo m o m e n t o do grande perigo o h o m e m abandona
t o d a a é t i c a e a f i c ç ã o m u n d a n i s m o - c o n s c i e n t e des-
aparece e é p r o v a v e l m e n t e s u b s t i t u í d a p o r u m m u n d a -
n i s m o preconsciente. E n q u a n t o a l u t a pela v i d a oferece
u m m u n d o variado, impondo uma rotina, sujeitando a
s e l e c ç ã o dos objectos á o r d e m da r o t i n a . O efeito da
r o t i n a é de g u i a r o h o m e m n a sua f a n t a s i a ; ela m o d e l a
os successivos t o t e n s q u e o h o m e m p r e c i s a a t r a v e s s a r
m a i s o u m e n o s c o m o a c o n t e c e n o e x e r c i t o c o m as p r o -
m o ç õ e s ; o t o t e m p r e d e t e r m i n a d o é a t i n g i d o d e p o i s de
u m a l u t a c o m o m u n d o o b j e c t i v o n a q u a l os f e t i c h e s
s ã o d i s p u t a d o s ; a s e l e ç ã o se d á d u r a n t e a l u t a de u m a
m a n e i r a m a i s o u m e n o s c o n v e n c i o n a l , c o n f o r m e as neces-
sidades da f a n t a s i a e possivelmente a sugestibilidade dos
objectos. O conceito " l u t a pela v i d a " diferencia-se do
m o m e n t o de g r a n d e p e r i g o c o n f o r m e a a c e s s i b i l i d a d e
do m u n d o objectivo.
Pode-se a r g u m e n t a r t a m b é m q u e a r o t i n a é u m
f e n ô m e n o g e r a l d a n a t u r e z a e q u e ela é f o r m a d a p o r
u m a s i m p l e s i l u s ã o o u c o n v i c ç ã o d a nossa p a r t e e p o d e
ser s u b s t i t u í d a p e l a d e s c o b e r t a de n o v o s f e n ô m e n o s .
P o r e x e m p l o , a r o t i n a d e ser r e l i g i o s o s e r á d e s i e m b r a d a
l o g o q u e a d e s c o b e r t a de n o v o s f e n ô m e n o s e x p l i c a r
c o n v e n i e n t e m e n t e a i n u t i l i d a d e de ser r e l i g i o s o , l o g o
que f o r p o s s í v e l d e m o n s t r a r que a r e l i g i ã o n ã o oferece
nenhuma s e g u r a n ç a o u c o m p e n s a ç ã o pelo m u n d a n i s m o
p e r d i d o ; e m q u a n t o isso os t e m p l o s c o n t i n u a r ã o a f u n -
c i o n a r c o m o g r a n d e s c o m p a n h i a s de s e g u r o .
A r o t i n a p a r e c e ser u m f e n ô m e n o d e i l u s ã o a l t e r a -
vel c o m a p e r c e p ç ã o do h o m e m ; é o d o g m a da percep-
ç â o que orienta a fantasia do h o m e m n a f o r m a ç ã o de

sua c o n s c i ê n c i a .
As m u d a n ç a s rápidas na percepção mostram a fra-
gilidade da consciência do h o m e m .
A r o t i n a é s e m p r e u m a a n t i g a t e o r i a q u e se c o n s e r v a
f u n c i o n a n d o p o r q u e c r e a n o h o m e m a i l u s ã o de p o d e r .
D e s a p a r e c e n d o a i l u s ã o d e p o d e r e de s e g u r a n ç a desa-
p a r e c e a r o t i n a . A s r o t i n a s r e l i g i o s a s s ã o restos das
velhas teorias sobre a vida. A isca da i m o r t a l i d a d e d á
a o h o m e m a i l u s ã o de p o d e r , ele se d e l e i t a e m p o d e r c o n -
t i n u a r as suas p e r i p é c i a s d e p o i s d a m o r t e .
" T u d o o que sabemos do m u n d o exterior a l c a n ç a
a nossa m e n t e p o r i n t e r m é d i o d o s c i n c o s e n t i d o s . E s t e s
s ã o i m p e r f e i t o s p o r q u e s ó c o n s e g u e m t r a n s m i t i r ao c é r e -
b r o u m a p e q u e n a f r a c ç ã o de t o d a s as s e n s a ç õ e s p o s s í -
veis. E s t a s t a m b é m s ã o i m p e r f e i t a s , e v i d e n t e m e n t e que
m a l r e p r e s e n t a m m u i t a s das i m p r e s s õ e s q u e conseguem
transmitir — ou, como diz Petronius : "Somos iludidos
p e l o s nossos o l h o s , os nossos s e n t i d o s errantes pesam
sobre a razão mentindo. U m a t o r r e de quatro lados
v i s t a d e u m a c e r t a d i s t a n c i a t e m os seus c a n t o s apaga-
d o s e t o r n a - s e r e d o n d a " " E n t r e t a n t o , c o m estes s e n t i d o s
r e c o l h e m o s os s u p o s t o s f a c t o s d o a m b i e n t e , e t e n d o reco-
lhido bastante, procuramos construir u m a imagem men-
t a l q u e possa e x p l i c a r as nossas o b s e r v a ç õ e s . E s t a i m a -
g e m m e n t a l é a t e o r i a . Q u a n t o m a i s as o b s e r v a ç õ e s c o n -
c o r d a m c o m as d e d u ç õ e s d a t e o r i a , m a i s s a t i s f e i t o s f i -
camos e mais temos c o n f i a n ç a n a e x a t i d ã o da imagem
mental.
Uma teoria n ã o deve ser considerada como uma

descripção final e verdadeira das causas das nossas
s e n s a ç õ e s , mas s i m c o m o u m a bolsa conveniente onde
c o n s e r v a m o s os r e s u l t a d o s as i n ú m e r a s o b s e r v a ç õ e s que
do contrario seriam abandonadas em confusão pelo

m u n d o " (1).
A instabilidade das teorias e da r o t i n a d e p e n d e
de u m a f r o u x a m e n t o d a c o n s c i ê n c i a , de u m a l i g a ç ã o
amorosa menos intensa c o m o m u n d o e x t e r i o r e i m p l i -
ca u m a d i m i n u i ç ã o n o p a r â m e t r o de a s t u c i a .
O afroxamento da c o n s c i ê n c i a desorienta a f a n t a -
sia d o h o m e m ele f i c a sem t o t e m d e f i n i d o o u o seu t o t e m
é situado f o r a do m u n d o consciente f o r a da r o t i n a que
ele a b a n d o n o u ; ele c o n s t r o e u m m u n d o p a r a s i n o seu
p r e c o n s c i e n t e c o m u m a p a r e l h a m e n t o c o m p l e t o de f e t i -
ches e deuses. O t o t e m é i n a c e s s i v e l f o r a d o c o n s c i e n t e ;
o p a r â m e t r o de a s t u c i a d o c o n s c i e n t e d i m i n u e e s e m
d u v i d a aparece u m o u t r o p a r â m e t r o de a s t u c i a c o l o -
c a d o n o p r e c o n s c i e n t e , r e p e t i n d o e m o u t r a escala e n o
m u n d o i d e o l ó g i c o o m e s m o m e c a n i s m o de a n t e s . T o t e m s
s e r ã o c o n s t r u í d o s c o m o a p o i o de i d e a s ; deuses s ã o des-
t r u í d o s p a r a s a c i a r o m o v i m e n t o de n i v e l e d e s n í v e l e
o drama da v i d a continua do mesmo m o d o apoiado
sobre u m a o u t r a t e o r i a e f o r a d o m u n d o o b j e c t i v o . A
vida i n t e r n a do h o m e m parece seguir o m e s m o processo
que a v i d a e x t e r n a .
Toda a humanidade e s t á mais ou menos amorosa-

m e n t e submissa ao m u n d o o b j e c t i v o , e s t a s u b m i s s ã o é
a f o r ç a m o t r i z do m u n d a n i s m o e dela resulta a idea de
a s t u c i a g e r a d a n a l u t a p e l a a f i r m a ç ã o d o E u , d|o c o n t a c t o
c o m os f e t i c h e s ; s ã o os c a r a c t e r e s f e m i n i n o s d o ele-
m e n t o h o m e m , o m e i o de defesa, a f o r ç a a c u m u l a d a
h a b i l m e n t e n o p r o t e s t o v i r i l c a m u f l a g e , as a r m a s e as
m u n i ç õ e s d a p a z , a c o r d i a l i d a d e d o a r g u m e n t o , as c a r i -
cias p a r a r o m p e r o a s p e c t o d o i n t o c á v e l , d o t a b u e g a l -
g a r ao d o m i n i o .
(1) "Matéria e radiação", John Buckingham.

P a r e c e q u e e m r e d o r das n a ç õ e s , d o s g r u p o s dos
h o m e n s , dos o b j e c t o s d o m u n d o , das c o u s a s d o u n i -
v e r s o , se f o r m a u m a t e n s ã o d e s u p e r f í c i e , a l g u m a cousa
de defensivo, p r o t e c t o r a , que e v i t a a d e s i n t e g r a ç ã o e
protege contra o desmanchar, contra u m a m u d a n ç a no
aspecto.
A T R I L O G I A
Sujeito, fetiche e totem formam a trilogia da huma-

n i d a d e , o m o d o de f u n c i o n a r d o h o m e m e m r e l a ç ã o a o
seu m u n d o . O f e t i c h e é o v e h i c u l o q u e recebe e t r a n s -
p o r t a o desejo p r o c u r a n d o a l c a n ç a r a m e t a t o t e m i c a ,
é a e s t r u c t u r a q u e s e g u r a as p a r t e s s o l t a s d a i m a g e m
f a n t á s t i c a r e c e b e n d o o c o n t a c t o a m o r o s o das c a r i c i a s ,
é o m o l e j o q u e sacia a v o n t a d e d e b r i n c a r , o r e c e p t a c u l o
d o goso, a l g u m a c o u s a p a r a c a r r e g a r o desespero e a
alegria do h o m e m .
O t o t e m ê a fantasia do h o m e m , producto do con-
t a c t o c o m o o b j e c t o - f e t i c h e e c a u s a desse c o n t a c t o .
Fantasia composta do j á v i v i d o , do contacto com u m

m u n d o o b j e c t i v o a n t e r i o r , o u b e m das a s s o c i a ç õ e s desse
j á v i v i d o c o m os o b j e c t o s p r e s e n t e s . V e m á t o n a c o m o
u m a a s p i r a ç ã o , u m a f o r m a de enthusiasmo d o E u , e
q u a s i s e m p r e s u b m i s s a á r o t i n a o u á t e o r i a e m uso. S u -
g e r i d a p e l o a m b i e n t e recebe d e s t e u m a d i r e c t r i z , f u n -
c i o n a n d o a s t u c i o s a m e n t e ; p r o d u c t o de u m a r e v o l t a c o n -
cede a o a m b i e n t e u m a d i r e c t r i z s e m a s t u c i a . A r e v o l t a
v e m de u m a r e p u l s ã o e n t r e o j á v i v i d o e o m u n d o em
r e d o r . O j á v i v i d o n ã o c o n s e g u e se associar c o m o m u n d o
o b j e c t i v o de u m a m a n e i r a c o n s c i e n t e ; o m u n d o o b j e -
c t i v o repele o c o n t a c t o c o m o j á v i v i d o d o s u j e i t o r e v o l -
t a d o , n ã o aceita a sua f a n t a s i a , a f a s t a n d o - o d a r o t i n a ,
e ele c o n s t r o e o seu m u n d o s o b r e r e s e n t i m e n t o , a p o i a n -
do-se n u m m u n d o o b j e c t i v o d e n t r o d o p r e c o n s c i e n t e ,
a b a n d o n a n d o a a s t u c i a e a c o n s c i ê n c i a . O seu p r o t e s t o
v i r i l f o r a d a t e o r i a e m uso, a p a r e c e c o m o u m i n t r u s o
i n d e s e j á v e l , f a z o e f e i t o de u m l e ã o a p a r e c e n d o r e p e n t i -
n a m e n t e n u m s a l ã o de c h á , o u de u m l o u c o r e c é m esca-
p a d o de u m h o s p í c i o . O s l o u c o s , q u a n d o e m l o n g o c o n -
t a c t o c o m o m u n d o , d e i x a m de c a u s a r e s p a n t o .
A sua fantasia, apoiando-se sobre u m m u n d o f o r a
da r o t i n a , torna-se e m si u m t o t e m p a r a o m u n d o da
r o t i n a , a l g u m a c o u s a d e d e s e j á v e l e o d i a v e l ao m e s m o
tempo. Desejável porque contrastando com a rotina
atrae a t e n ç ã o , p r o m o v e m u n d a n i s m o ; odiavel porque
v e i o p e r t u r b a r e a l t e r a r a r o t i n a , c o n c o r r e r c o m os t o t e n s
j á existentes e t o r n a r o m u n d a n i s m o m a i s difícil. A
r e v o l t a a m a i o r p a r t e das vezes a p a r e c e a p o i a d a sobre
u m s e n t i m e n t o de i n f e r i o r i d a d e ; o d e s e j o de possuir
torna-se u m a o b c e s s ã o , u m a necessidade p a r a o revol-
tado, que só pode a t i n g i r a m e t a pela violência ; o mono-
p ó l i o a b u s i v o das a c t i v i d a d e s e x i g e esse p r o c e d i m e n t o
— é o caso d a r e v o l t a p r i m i t i v a c o n t r a o m o n o p ó l i o
s e x u a l — as r e v o l t a s p o l í t i c a s s ã o q u a s i t o d a s dessa
natureza, nascem do despotismo e da h u m i l h a ç ã o e
A T R I L O G I A 121
s ã o c o n t r a o m o n o p ó l i o d o i n t e r c â m b i o s o c i a l . O s seus
p r o g r a m m a s e p r o p a g a n d a s s ã o a p e n a s p o n t o s de a p o i o
p a r a c o m p e n s a r essa i n f e r i o r i d a d e , e f o r m a m e m r e d o r
d o r e v o l t a d o o seu m e i o de defesa, a sua a s t u c i a i n d i s -
p e n s á v e l , o seu m o d o f e m i n i n o . A f a n t a s i a d o r e v o l t a d o
o p r i m i d o f a z p a r t e d a t e o r i a e m uso, e s t á d e n t r o d a
r o t i n a e 6 acessivel p e l o processo c o m m u m d a r o t i n a .
A v i o l ê n c i a a p e n a s acelera a t o t e m i s a ç ã o , n ã o é u m a
fantasia fora do m u n d o objectivo imediato, pertencendo
ao j á v i v i d o . E m t o d a s as c a m p a n h a s p o l i t i c a s , o b s e r v a -
se esse processo d e r e b a i x a m e n t o , de c a s t i g o : o o p r i m i d o
p r o c u r a se n i v e l a r ao q u e e s t á e m c i m a , se a p o i a n d o e m
i n j u r i a s pela imprensa, no ridiculo, no chiste, apelando
pela honradez, d i v u l g a n d o detalhes da v i d a do i g u a l
i n i m i g o f o r a da f o r m u l a social aceita. O r e v o l t a d o polí-
t i c o t e m s e m p r e u m a g r a n d e p r e o c u p a ç ã o de se conser-
v a r n a r o t i n a f a z e n d o d a r o t i n a o seu p a d r ã o de h o n r a .
A medida que o abuso augmenta t a m b é m augmenta
o s e n t i m e n t o de i n f e r i o r i d a d e e o o p r i m i d o p r o c u r a
s u b s t i t u i r a r o t i n a p o r u m a o u t r a t e o r i a , n a q u a l ele
t o m a p r e c a u ç ã o c o n t r a possiveis despotismos. Neste
caso, a f a n t a s i a se a f a s t a d a o r d e m e s t a b e l e c i d a , é f o r -
mada por associações do j á v i v i d o com o m u n d o objec-
t i v o e m uso, e é acessivel p e l o c o n t a c t o d i r e c t o c o m o
m u n d o o b j e c t i v o p e l a c a r i c i a a g r e s s i v a . O processo de
a s c e n ç ã o á fantasia é o mesmo que o d a velha r o t i n a ;
d e p r e c i a ç ã o do que e s t á em c i m a e e l e v a ç ã o do E u , da
p e r s o n a l i d a d e , o p r o c e s s o de m u n d a n i s m o . A f a n t a s i a
d o r e v o l t a d o f o r a d a r o t i n a t e m a v a n t a g e m de ser crea-
d o r a . N a s c i d a de u m a p r e s s ã o p r o f u n d a e l a t r a z n a
sua i m a g e m e l e m e n t o s de d e f e s a c o n t r a a e x t i n c ç ã o ,
ela selecciona n o seu p r e c o n s c i e n t e o q u e h a de m a i s
v i r i l de m a i s v i o l e n t o e m a i s g e n i a l p a r a m a n t e r v i v o
o p r o t e s t o ; é a s e l e c ç ã o n a t u r a l d o ser o p r i m i d o , o m o d o
de c o m p e n s a r p e l a e x c l u s ã o de c o n v i v i o p e l a r e c u s a d a
r o t i n a se a l t e r a r .
O aparelho psychico aparentemente f u n c i o n a como

u m t r a n s f o r m a d o r ; recebe d o m u n d o o b j e c t i v o e d o
j á v i v i d o s e n s a ç õ e s arranjadas n u m a certa ordem, trans-
f o r m a a o r d e m destas s e n s a ç õ e s c o n s t r u i n d o u m a f a n -
t a s i a c o n f o r m e a s u a n e c e s s i d a d e , e d e v o l v e ao m u n d o
objectivo as s e n s a ç õ e s , c o l o c a n d o a f a n t a s i a n o m e r -
c a d o m u n d a n o p a r a ser u s a d a e d i s p u t a d a , e c o n c o r r e n d o
com u m a parte da rotina f u t u r a .
A fantasia é a e x h i b i ç ã o do m o v i m e n t o psychico,
aparece c o m o resultado de um movimento, como
u m c o n t r a s t e á c a l m a r i a , p e r t e n c e a t o d a s as a c t i v i d a -
des e é o e n g o d o p a r a o m o v i m e n t o d a v i d a e m o t i v a ,
a a m b i ç ã o , o p a d r ã o de p o d e r , o i n d i c e q u e m o s t r a a
d i f e r e n ç a de n i v e l , t r a z e n d o p a r a a m e n t e d o h o m e m o
c o n t r a s t e das cousas. E m s u m a é s i m p l e s m e n t e u m
e s t a d o d a n a t u r e z a q u e se d e s t a c a p o r c o m p a r a ç ã o ,
indicando que houve m o v i m e n t o e que h a v e r á m o v i -
mento.
Q u a n d o p r e s a a r o t i n a ê á s vezes a r e c o n s t i t u i ç ã o
m e n t a l d a f o r m a de u m v e l h o c h e f e , u m p a d r ã o de he-
r o í s m o a ser s e g u i d o , c o m o n o caso d a r e c o r d a ç ã o d o
deus-pae e d o f u t u r o e s t a d o t o t e m i c o d o c h r i s t i a n i s m o ,
onde a palavra t o t e m f o i t o m a d a em sentido restricto.
N o s l a ç o s a f e c t i v o s d a t r i l o g i a : s u j e i t o se a p o i a n d o
sobre f e t i c h e p a r a a l c a n ç a r t o t e m , e n c o n t r a m o s d o i s
processos, u m de t o t e m i s a ç ã o e o u t r o de f e i t i c i s m o . O
processo de f e i t i c i s m o é o c o n t a c t o d i r e c t o o u i n d i r e c t o
com o objecto-fetiche, o vehiculo, e produz como laços
afectivos o par a n t i t e t i c o agressividade - astucia. A
c a r i c i a a p l i c a d a ao f e t i c h e p e l o s u j e i t o é i g u a l á agres*
s i v i d a d e e p o r sua v e z o f e t i c h e r e s p o n d e c o m u m p a r â -
m e t r o de a s t u c i a e este p a r â m e t r o d e a s t u c i a c o r r e s p o n -
de á r e s i s t ê n c i a á s caricias. S e n d o o o b j e c t o - f e t i c h e u m
e l e m e n t o v i v o , a r e s i s t ê n c i a á s c a r i c i a s se m a n i f e s t a
p e l a s u g e s t i b i l j d a d e d o o b j e c t o ; o o b j e c t o resiste a
q u a l q u e r t e n t a t i v a , q u e possa p e r t u r b a r o seu e q u i l i -
l i b r i o p s y c h i c o , e á s vezes o seu e q u i l i b r i o f i s i o l ó g i c o , e
a r e s i s t ê n c i a se m a n i f e s t a p o r m e i o de a s t u c i a .
Q u a n d o u m a m u l h e r estranha é tocada, ela t e m
u m a t e n d ê n c i a de se r e t i r a r d o c o n t a c t o , p a r e c e q u e o
c o n t a c t o v e i o p e r t u r b a r a l g u m a c o u s a n o seu e q u i l i -
b r i o ; ela p r o c u r a m e s m o e v i t a r o c o n t a c t o ; q u a n d o ela
e s t á v e s t i d a e p r o m p t a p a r a s a h i r , e x i b i r - s e , ela é abso-
l u t a m e n t e i n t o c á v e l ; t e n d o - s e a r r e a d o de a c o r d o c o m
u m ideal, o t o q u e t r a z u m a a l t e r a ç ã o n o aspecto que
ela p r o c u r a e v i t a r p e l a a s t u c i a . Em suma, qualquer
caricia que perturbe o ideal o u a fantasia do fetiche
e n c o n t r a c o m o r e s i s t ê n c i a a a s t u c i a . O f e t i c h e se d e f e n d e
c o n t r a a a g r e s s ã o d o s u j e i t o , se a p o i a n d o s o b r e o u t r o s
fetiches e i n i c i a n d o u m o u t r o processo de t o t e m i s a ç ã o
f o r a daquelle que estamos considerando.
Q u a n d o o f e t i c h e é u m o b j e c t o sem v i d a , a r e a c ç ã o
astuciosa e s t á n a p r ó p r i a r e s i s t ê n c i a d o m a t e r i a l , t á c t i l
e o u t r a s . 0 f e t i c h e e n c o n t r a e m si m e s m o o seu a p o i o ,
p o i s p a r e c e e x i s t i r u m a t e n s ã o de s u p e r f í c i e s u f i c i e n t e
p a r a p r o t e g e - l o c o n t r a as c a r i c i a s . Quando o fetiche
é u m a i d e a , u m a i n j u r i a , p o r e x e m p l o , — n ã o sei q u a l
é a t e n s ã o de s u p e r f í c i e d a i n j u r i a c a p a z de r e s i s t i r ao
toque psychico, mas a i n j u r i a é u m a t r i b u t o concedido
a o p e r s o n a g e m a ser r e b a i x a d o e p o r t a n t o p o d e ser
r e p r e s e n t a d a p o r u m a i m a g e m q u e se t o r n a o t o t e m
i n v o l u n t á r i o d o i g u a l - i n i m i g o a ser r e b a i x a d o .
Q u a n d o o h o m e m d e s f i a u m r o s á r i o de i n j u r i a s
s o b r e o seu i n i m i g o , c a d a u m a das i n j u r i a s p o d e ser
representada p o r u m a n i m a l d o m esticado e pacato ou
p o r u m a s i t u a ç ã o q u a l q u e r despresada d o m u n d o objec-
t i v o . N i n g u é m c h a m a o i n i m i g o de' l e ã o . O f i m d o h o -
m e m é r e b a i x a r o i n i m i g o p e l a c o m p a r a ç ã o , e e n t ã o faz-se
d a i n j u r i a o t o t e m d o i n i m i g o . N a r e a l i d a d e ele se r o d e a
de u m v e r d a d e i r o , j a r d i m z o o l ó g i c o p a c a t o e d a c h a m a d a
e s c o r i a s o c i a l , u m q u a d r o d e p r i m e n t e d e m i s é r i a e de
c a l m a c o m ele n o c e n t r o g a r b o s o e s a c i a d o . A g r a n d e
ELEMENTO TRILOGIA
TOTEMÍSAÇÂO E FEITICISMO
astucia consiste e m estabelecer a c o m p a r a ç ã o ; o h o m e m

se c o m p a r a a c a d a u m d o s a n i m a e s q u e o r o d e a m e se
s e n t e s a t i s f e i t o c o m o c o n t r a s t e ; ele se s e n t e s u p e r i o r
e m e s t r e d o seu d o m i n i o ; e c o m o c a d a u r a d o s a n i m a e s
r e p r e s e n t a t a m b é m o i n i m i g o ele se s e n t e o v e n c e d o r
de m u i t o s i n i m i g o s .
E s t a e x t r a o r d i n á r i a f a l t a de m o d é s t i a é o p r i n c i -
p a l c a r a c t e r í s t i c o d a v i d a p s y c h i c a d o h o m e m e aparece
e m t o d a s as a c t i v i d a d e s s o b v a r i a s f o r m a s e m a i s o u
menos aparente, sempre o mesmo q u a d r o : o h o m e m
r o d e a d o p o r c u r i o s o s f a n t a s m a s d e s a b r i g a d o s e cons-
t r u í d o s p o r ele m e s m o á i m a g e m d o i n i m i g o .
A s i t u a ç ã o de s u p e r i o r i d a d e é p o r d e m a i s e v i d e n t e .
Q u e f a z ele e m f a c e de t a n t a m i s é r i a ? — d i s t r i b u e p o n -
t a p é s a t o d o s , e m p u r r a n d o p a r a f r e n t e c o m o se c o s t u m a
e m p u r r a r soldados n a guerra.
Cada i m a g e m - i n j u r i a o u cada r e p r o d u c ç ã o do ini-
m i g o é t r a t a d a c o m o fetiche, recebendo a caricia indis-
p e n s á v e l á t o t e m i z a ç ã o do sujeito. D e m a n e i r a que a
r e a c ç ã o d a i m a g e m - i n j u r i a torna-se u m a cousa vaga,
admitida como u m a c o n s e q ü ê n c i a lógica por compa-
ração com outras reacções.
Esta idiosincrasia pelo toque p o r parte do fetiche
tende a t r a n s f o r m a - l o n u m o b j e c t o sagrado, a l g u m a
c o u s a d e o d i a v e l e a d o r á v e l , ao m e s m o t e m p o de i n t o -
c á v e l e r u i n o s o , c a p a z de p r e n d e r , de a g r a d a r , de des-
truir a acção niveladora — o fetiche fica tabu.
O toque tende a p e r t u r b a r o aspecto d o fetiche,
p r o d u z i r u m d e s a r r a n j o n o e q u i l i b r i o p s y c h i c o . Parece
q u e a pessoa a ser t o c a d a r e p e l e o t o q u e p o r m e d o de
ser d e s c o b e r t a , de t e r d e a b a n d o n a r o seu segredo, e
este f a c t c d e ser d e s c o b e r t a p r o d u z i r i a u m a c o n d i ç ã o de
inferioridade. O toque parece desvendar u m mysterio,
d e s c o b r i r a l g u m a c o u s a q u e d e v i a ter-se c o n s e r v a d o
s e c r e t a , p r o v a v e l m e n t e a l g u m c a r a c t e r í s t i c o de i n f e r i o -
ridade astuciosamente ocultado. A s mulheres detestam
o toque q u a n d o e s t ã o p i n t a d a s e penteadas, porque u m

desarranjo n o cabello e n a p i n t u r a r e v e l a r i a a sua ver-
d a d e i r a pessoa q u e é c o n s i d e r a d a p o r e l a c o m o i n f e r i o r
ao seu i d e a l c o m p o s t o . O t o q u e p e r t u r b a o a s p e c t o desse
ideal, e t r a n s f o r m a - a n u m personagem r i d i c u l o ; o toque
tem o efeito do chiste, desorienta e rebaixa decompondo
a i m a g e m d o i d e a l , n i v e l a n d o a pessoa a o v u l g a r d a
vida. U m a m u l h e r pintada e enfeitada adquire o status
de u m s a n t o de i g r e j a , repele o t o q u e e a v i o l ê n c i a , t o r n a -
se t a b u , p r ó p r i a p a r a ser a d o r a d a e o d i a d a ao mes-
m o t e m p o , se d e s t a c a p o r ser i n a c e s s i v e l e m y s t e r i o s a e
evita o efeito chistoso do toque para n ã o desmanchar
o encantamento, torna-se sagrada-santificada.
O t o q u e se c o n f u n d e c o m o c h i s t e , p r o d u z o m e s m o
e f e i t o de r e b a i x a m e n t o , d e s m a n t e l a a i m a g e m p s y c h i c a
d o t o c a d o ; o f e t i c h e , a l e m de s e r v i r a o s u j e i t o c o m o
escada p a r a a l c a n ç a r u m d a d o t o t e m , reage a s t u c i o s a -
m e n t e ao t o q u e d o s u j e i t o , p r o c u r a n d o p r e s e r v a r a s u a
p e r s o n a l i d a d e , c o n s e r v a r o seu m y s t e r i o . A a c ç ã o d o
f e t i c h e é de d e f e n s i v a e m r e l a ç ã o ao s u j e i t o . D e s e n -
v o l v e a s t u c i a ao s e n t i r a g r e s s i v i d a d e . O s y s t e m a f e t i c h e
com ideal, pertence a u m a o u t r a trilogia onde o fetiche
funcciona como sujeito.
N u m a dada trilogia o contacto do sujeito c o m o
f e t i c h e n ã o é p a r a se n i v e l a r ao f e t i c h e , m a s s i m a u m
i d e a l , a u m f u t u r o t o t e m ; este i d e a l ê a i m a g e m i d e a -
listica d o E u , o s ó s i a i m p a l p a v e l d o E u ; o s u j e i t o le-
v a n t a e m r e d o r d e s i u m a l t a r , á s vezes b e m m o d e s t o
p a r a a d o r a r a s i m e s m o ; o a l t a r é c o m p o s t o d o s seus
f e t i c h e s e de u m m o d o g e r a l d o m u n d o o b j e c t i v o . A o s
p o u c o s ele se e l e v a n o a l t a r s u s t e n t a d o p e l o s f e t i c h e s .
O contacto do h o m e m com o m u n d o objectivo e
puramente egoista e a r e a c ç ã o do m u n d o o b j e c t i v o con-
t r a esse c o n t a c t o é de p r e s e r v a r a p e r s o n a l i d a d e de c a d a
f e t i c h e , c r e a n d o u m a d e f e s a d e a s t u c i a , t e n t a n d o se
isolar d o c o n t a c t o , p r o c u r a n d o ser t a b u . O p r o c e s s o de
f e i t i c i s m o p o r t a n t o resolve-se n a a p l i c a ç ã o d a c a r i c i a
pelo s u j e i t o e n a defesa d o f e t i c h e c r e a n d o u m p a r â m e -
t r o de astucia e m r e d o r de si. A defesa visa n ã o s o m e n t e
preservar a personalidade do fetiche como t a m b é m a
se n i v e l a r a u m o u t r o i d e a l n u m a o u t r a t r i l o g i a . O f e t i -
c h e f u n c i o n a a s t u c i o s a m e n t e e m r e l a ç ã o ao s u j e i t o e
mundanamente em relação a u m o u t r o fetiche. O pro-
cesso de c o n s e r v a r a p e r s o n a l i d a d e d e q u a l q u e r o b j e c t o
envolve a astucia e a agressividade m u n d a n a . D e f o r m a
q u e astucia e agressividade, p r o p r i e d a d e s a f e c t i v a s de
cada objecto t o m a d o i n d i v i d u a l m e n t e , caracterizam o
m o d o de a g i r n o r m a l d o E u .
O processo d e t o t e m i s a ç ã o d i f e r e d o d e f e t i c h i s m o ;
as r e l a ç õ e s e n t r e o s u j e i t o e t o t e m n ã o s ã o as m e s m a s
q u e e n t r e o s u j e i t o e o f e t i c h e , a p e s a r de s e m e l h a n ç a
e m c e r t o s aspectos. Q u a n d o o f e t i c h e se t o r n a i n t o c á v e l
p e l a r e c u s a a s t u c i o s a , ele f i c a de u m c e r t o m o d o p a r e c i d o
c o m o t o t e m ; a s e m e l h a n ç a é s ó a p a r e n t e — ele se d i s -
t a n c i a , t o r n a - s e d i f í c i l , t e n t a d o r c o m o o t o t e m ; o seu
aspecto p o d e m e s m o i n f l u i r n a f o r m a ç ã o f i n a l d o t o t e m ,
t e n d o u m a i n f l u e n c i a i n d i r e c t a , m a s n ã o p o d e se con-
fundir com o totem porque no m o m e n t o da totemisação
o fetiche é u m a entidade acabada, enquanto que o to-
t e m e s t á s e n d o aos p o u c o s c o n s t r u i d o p e l o E u d o s u j e i t o
— q u a n d o , d e n t r o d a r o t i n a , á s vezes, o s u j e i t o c o n h e c e
a sua f o r m a u l t i m a p o r ser e l a u m p a d r ã o e s t a b e l e c i d o ,
m a s p s y c h i c a m e n t e s ó c o n h e c e a m e d i d a e m q u e ele
se t o t e m i z a — e m g e r a l o t o t e m é a c o n c l u s ã o de u m a
1
t e o r i a , o f i m de u m a a m b i ç ã o d u r a n t e a t o t e m i z a ç ã o ;
ele é i n c o m p l e t o p a r a o s u j e i t o , a s u a f o r m a n a d a t e m
que v e r c o m a n a t u r e z a dos fetiches e d o m u n d o objec-
t i v o n o s e n t i d o de q u e o m u n d o o b j e c t i v o o f e r e c e a p e n a s
apoio p a r a m e l h o r a r a p e r c e p ç ã o , m a s n ã o oferece u m a
sugestibilidade absoluta. Para o sujeito, o t o t e m é
i n f i n i t a m e n t e v i r i l , p o n t o m a i s a l t o a q u e ele p o d e a t i n -
g i r a t é o m o m e n t o e m q u e a l t e r a as suas a s s o c i a ç õ e s
A T R I L O G I A 12?
preconscientes. P o r t a n t o , o t o t e m n ã o exibe u m p a r â -
m e t r o d e a s t u c i a ao s u j e i t o , a d m i t i n d o q u e ele possa,
t e r s e n t i m e n t o ; o seu s e n t i m e n t o é d e r i v a l i d a d e p a r a
com o sujeito e agressividade para c o m o fetiche. O
s u j e i t o , t o t e m i z a n d o - s e c o m ele, t o r n a - s e o seu r i v a j
p e r a n t e o f e t i c h e , e as r e l a ç õ e s e n t r e o t o t e m e o f e t i c h e
s ã o as m e s m a s q u e e n t r e o s u j e i t o e f e t i c h e .
Totemização corresponde a nivelamento ; é u m
p r o t e s t o v i r i l , o m e i o de preservar a personalidade, é
p a r e c e ser i n e v i t á v e l , p r o v a v e l m e n t e t ã o i n e v i t á v e l q u a n - 1
t o a p r ó p r i a i d e a de m o v i m e n t o ; e s t á e m t o d a a p a r t e .
Q u a n d o u m a m u l h e r d i s t r i b u e c a r i c i a s s o b r e o seu
a m a d o , o t o q u e das caricias t e n d e a p e r t u r b a r o equi-i
l i b r i o p s y c h i c o d o a m a d o p r o v o c a n d o p o r p a r t e deste (
u m a serie d e r e a c ç õ e s , o n d e ele i n v o c a a s t u c i a para^

e s c o n d e r a l g u m a s d a s suas i n f e r i o r i d a d e s . A c a r i c i a
c h e g a c o m o u m a p r o f a n a ç ã o ao s a n t u á r i o i n t i m o do^
a m a d o ; ele p r o c u r a o s t e n t a r as suas p a r t e s m a i s viris^
e o c u l t a r as m e n o s d o t a d a s . J
Q u a n d o u m s e n t i m e n t o de i n f e r i o r i d a d e é a t i n g i d a
p e l a c a r i c i a , ele e s q u i v a - s e , o u p r o c u r a , p o r u m a d e -
m o n s t r a ç ã o v i r i l q u a l q u e r , c o m p e n s a r o e f e i t o depre-(
c i a d o r d a d e s c o b e r t a . E l e se a b o r r e c e c o m t u d o q u a n t o )
o d i m i n u e , e coloca-se l o g o n a d e f e n s i v a c o n t r a a depre->
c i a ç ã o , p r o c u r a n d o p o n t o s de apoio p a r a a sua p e r s o n a - í
l i d a d e , f e t i c h e s p a r a c o m p e n s a r a s u a p e r d a ; sendo-,
f u m a n t e consome c i g a r r o s ; o c i g a r r o a l i v i a a sua;
n e v r o s e ; á s vezes b e b e e m excesso o u b e m r e c i t a v e r -
sos h e r ó i c o s , o u se a t r i b u e a v e n t u r a s a m o r o s a s i m p ô s - ;
siveis, o u a i n d a p r o c u r a esconder a i n f e r i o r i d a d e c o m ,
uma violência, mordendo a companheira em qualquer.
p a r t e — a sua defesa desenvolve-se n a astucia. E l é (
fica submisso e carinhoso p a r a m e l h o r vencer, p a r a ,
m e l h o r a f i r m a r a s u a p e r s o n a l i d a d e ; ele t o r n a - s e p e r - j
s u a s i v o , e f e m i n a d o a o seu m o d o — vaselina —> i n t i - 1
m a m e n t e ele t o r c e p á r a n ã o ser d e p r e c i a d o e os seus

a b o r r e c i m e n t o s a c a b a m q u a n d o ele e n t r a a r r e a d o n o
mundo da rotina.
E m c o n t a c t o c o m as c a r i c i a s , ele f a z - s e e f e m i n a d o
e m defesa p r ó p r i a ; o t o q u e da c a r i c i a p r o c u r a descobrir
o m y s t e r i o d a s u a pessoa, p r o c u r a p e r t u r b a r o seu as-
pecto idealista; e x p o n d o - o ao c h i s t e , r e b a i x a n d o - o ,
desfazendo a sua i m p o r t â n c i a ; d o p o n t o de v i s t a d a
m u l h e r ele t o r n a - s e a s s i m v u l g a r , i g u a l aos o u t r o s , e
ó usado c o m o fetiche para a l c a n ç a r poder.
E l a d e s m a n t e l o u a sua p e r s o n a l i d a d e conhecendo
o seu segredo ; aos p o u c o s e l a se c e r c a d e t o d o s esses
segredos de t o d a s as i n f e r i o r i d a d e s d o a m a d o , o r g a n i -
z a n d o a s u a defesa ; c a d a i n f e r i o r i d a d e r e p r e s e n t a u m a
i n j u r i a ao s e n t i m e n t o v i r i l d o a m a d o e possivelmente
ela c o m p a r a c a d a i n f e r i o r i d a d e a u m a s p e c t o q u a l q u e r
d o m u n d o a n i m a l , u m a b o c a d e c a v a l l o , u n s o l h o s de
p e i x e , u m a e x p r e s s ã o d e c a m e l o o u de c a r n e i r o , u m as-
p e c t o d e g i r a f a o u de h i p o p o t a m o , e se e l a é v o l ú v e l ,
e m p o u c o t e m p o v ê - s e d o n a de u m generoso circo. A
s u b s t i t u i ç ã o p o d e t a m b é m ser f e i t a n o m u n d o o b j e c t i v o .
E l a a m a p a r a a c u m u l a r e m r e d o r de si u m p a r â -
m e t r o de m i s é r i a q u e a p o s s a d e f e n d e r ; é o seu p a r â m e -
t r o de a s t u c i a , o seu m o d o e f e m i n a d o ; r a d i a n t e , n o
c e n t r o d o c i r c u l o - i n j u r i a , e l a se s e n t e p o d e r o s a , t e m a
i l u s ã o de d o m i n a r , o q u e q u e r d i z e r q u e e l a c o n s t r o e
a s u a s u p e r i o r i d a d e s o b r e o c o n t r a s t e p r o v o c a d o pelas
inferioridades dos o u t r o s ; ela opera astuciosamente para
a t i n g i r a s u a f a n t a s i a , se u t i l i s a d o h o m e m c o m o f e t i -
c h e , e s c o l h e n d o p a r a a p o i o as i n f e r i o r i d a d e s e c o n s t r u i n -
d o s o b r e esses a p o i o s o i d e a l d o E u , t o t e m i s a n d o - s e .
A s suas a v e n t u r a s a m o r o s a s t ê m u m f i m e m v i s t a , satis-
f a z e r a sede d e m u n d a n i s m o c o n s c i e n t e o u n ã o . A sen-
s a ç ã o de p r a z e r é p r o v a v e l m e n t e e x p l i c á v e l p e l o m e s m o
processo, o processo de t o t e m i z a ç ã o , p a r a a t i n g i r u m
fim.
. . . ela d e s m a n t e l o u a sua personalidade conhecendo
• seu segredo.
A s u b s t i t u i ç ã o das i n f e r i o r i d a d e s p o r i m a g e n s n o
m u n d o animal e objectivo f o i feita para explicar o me-
c a n i s m o h i p o t é t i c o d o p a r â m e t r o de a s t u c i a — n ã o
i m p o r t a m u i t o se a s u b s t i t u i ç ã o se r e a l i z a t o d a e l a c o n -
scientemente ou n ã o .
O a m a d o , p o r sua vez, p r o c u r a n a m u l h e r p o n t o s
de i n f e r i o r i d a d e , u s a n d o - a c o m o f e t i c h e p a r a o seu a p o i o ,
j u n t a m e n t e c o m o u t r o s o b j e c t o s e ideas. D a m e s m a
m a n e i r a ele f o r m a u m p a r â m e t r o de a s t u c i a p a r a a sua
p r o t e c ç ã o , p r o c u r a n d o a t i n g i r o seu i n i m i g o , o i d e a l
d o seu E u e m c o n s t r u c ç ã o . O seu a m o r c o n s i s t e e m
mostrar virilidade, e m m o s t r a r f o r ç a e poder, contras-
t a n d o - s e c o m o seu p a r â m e t r o e f e m i n a d o . O processo
p a r a d e s c o b r i r as i n f e r i o r i d a d e s d a m u l h e r é o m e s m o
d e t o q u e e de v i o l a ç ã o d o s a n t u á r i o j á m e n c i o n a d o .
N a f a m i l i a , o f i l h o p r o c u r a se t o t e m i z a r ao pae,
usando a m ã e como fetiche, o toque psychico, por pala-
vras o u pelo contacto f u n c i o n a do m e s m o m o d o que o
que j á f o i c o n t a d o . O f i l h o p r o c u r a esconder da m ã e
os seus d e f e i t o s e t u d o q u e t e n d e a u m a d e p r e c i a ç ã o
d a s u a pessoa ; as c r i a n ç a s e m e n i n o s p r o c u r a m s e m p r e
e s c o n d e r as p e q u e n a s m o l é s t i a s q u e os d e p r e c i a m o u
compensa-las c o m actos d e m o n s t r a n d o v i r i l i d a d e o u
p o d e r , p r o c u r a n d o s e m e l h a n ç a c o m o pae. E l e s se de-
f e n d e m a s t u c i o s a m e n t e c o n t r a a i n t e r f e r ê n c i a d o s paes
no aspecto e n a personalidade.
O f i l h o se a p r o x i m a d a m ã e d a m e s m a m a n e i r a
q u e ele se a p r o x i m a d o r e s t o d o m u n d o o b j e c t i v o ; e m
t o d a s as e d a d e s f a z d e l i a u m a p o i o , u m f e t i c h e p a r a
a t u r a r a s u a f a n t a s i a , p a r a se m o s t r a r s u p e r i o r , o i g u a l
d o pae. M e c h a n i c a m e n t e , as r e l a ç õ e s e n t r e o f i l h o e a
m ã e , e a f i l h a e o pae, s ã o as m e s m a s r e l a ç õ e s e x i s t e n t e s
entre o sujeito e qualquer fetiche.
O c o m p l e x o d e E d i p o p o d e ser a p l i c a d o t a n t o a
familia como a qualquer actividade do homem na vida ;
o f e t i c h e de u m s u j e i t o c s e m p r e o seu o b j e c t o s e x u a l ,
i s t o é, recebe a s u a s a t i s f a ç ã o p o r q u e consegue i n v o l u n -
t a r i a m e n t e f a z e r v e r ao s u j e i t o q u e ele é s u p e r i o r .
A s m a n i f e s t a ç õ e s e m s o n h o s , o c o r r ê n c i a s , n a s asso-
c i a ç õ e s l i v r e s d e ideas, as r e c o r d a ç õ e s d a v i d a i n f a n t i l
e os l a ç o s a f e c t i v o s q u e i n d i c a m a e x i s t ê n c i a de u m
c o m p l e x o de E d i p o , s ã o s i t u a ç õ e s n a v i d a e m q u e o
s u j e i t o p r e c i s o u se d e f e n d e r c o n t r a u m a i n f e r i o r i d a d e
collocando-se n o seguro ; a i m a g e m e r ó t i c a aparece c o m o
u m a a f i r m a ç ã o desse s e n t i m e n t o i d e a l i s t l c o , e é e s c o l h i -
d a p o r e s t a r m a i s p e r t o , m a i s á m ã o , p o r ser a m a i s
l i g a d a á v i d a i n f a n t i l ; c a d a u m desses m o m e n t o s r e p r e -
s e n t a u t i l i s a ç ã o d a m ã e o u d o pae c o m o f e t i c h e s p a r a
g a r a n t i r u m a s u p e r i o r i d a d e , u m d e s e j o de p o d e r . A
sugestibilidade d a m ã e c o m o fetiche traz logo a idea
de ser ela i n t o c á v e l , t a b u , de ser s a g r a d a ; o q u e é e m
m a i o r o u m e n o r g r á o a s u g e s t i b i l i d a d e de t o d o o m u n -
do objectivo que f u n c i o n a como fetiche.
A m ã e torna-se logo submissa á s caricias do f i l h o ;
o toque p e r t u r b a o a r r a n j o psychico m a t e r n a l , desman-
chando o aspecto sagrado, rebaixando-a pela submis-
s ã o , s a t i s f a z e n d o a v o n t a d e de ser v i r i l d o f i l h o . A s u b -
m i s s ã o é u m a m o s t r a de a s t u c i a p a r a m a n t e r p o d e r ; e l a
d e f e n d e - s e d a d e s c o b e r t a de suas i n f e r i o r i d a d e s , p r o c u r a
o c u l t a r essas i n f e r i o r i d a d e s p o r m e i o de c o m p e n s a ç õ e s
c o m p o r t a n d o - s e d u m m o d o s e m e l h a n t e ao d o a m a d o
n o caso p r e c e d e n t e . T u d o q u a n t o p o d e ser s u g e s t i v o
ao f i l h o c u s a d o p o r e l a c o m o f e t i c h e p a r a se defender
c o n t r a u m a d e p r e c i a ç ã o ; ela coloca a i n s e g u r a n ç a d a
s u a e d a d e a d i a n t a d a s o b r e a p r o t e c ç ã o d e segredos de
cosinha, c o s m é t i c o s , santidade, respeito, depreciando a
n o r a , e t c . . . t o d o s esses p o n t o s d e a p o i o f o r m a m o
seu p a r â m e t r o de s e g u r a n ç a e d e a s t u c i a ; á s vezes e l a
p r o c u r a a p o i o d e s v e n d a n d o as i n f e r i o r i d a d e s d o f i l h o ,
se q u e i x a n d o d a f a l t a d e c a r i n h o , d e b o n d a d e , e e m t u d o
q u a n t o possa e n a l t e c e r a s u a pessoa p o r c o n t r a s t e .
A FAMÍLIA • LAÇOS AFECTIV©S
EXPERIÊNCIA N.° 2 - f l a v i o de carvalho 135
Os l a ç o s a f e c t i v o s q u e c o n c e d e m a u m a pessoa clas-
s i f i c a ç ã o de f i l h o , n a d a t ê m que v e r c o m o parentesco
o u a c o n s a g u i n i d a d e . U m a pessoa c o m e ç a a ser f i l h o
no mo me n to em que o companheiro o u companheira
se sente i n f e r i o r i z a d o , procurando compensar o seu
p o d e r p e r d i d o o u a sua i n f e r i o r i d a d e fisica, velhice, en-
fermidade, e t c , com u m a dedicação protectora, na qual
ela se c o l o c a e m s e g u r a n ç a , a c a r i c i a n d o as i n f e r i o r i d a d e s
d o f u t u r o f i l h o ; é u m m e i o de p e r p e t u a r a s u a j u v e n t u d e
c h a m a n d o a a t e n ç ã o sobre si pelo contraste. N ã o po-
dendo evitar o desmantelamento d o seu a s p e c t o , a
pessoa p r o c u r a n a s i n f e r i o r i d a d e s de u m f e t i c h e o a p o i o
n e c e s s á r i o p a r a o b t e r c o n t r a s t e e ser a p r e c i a d a . Os v e l h o s
g o s t a m de c h a m a r os m o ç o s d e f i l h o s . A s m u l h e r e s m u i t o
bonitas que s ã o m u n d a n a m e n t e procuradas n ã o sentem
a necessidade de f i l h o s o u n ã o se p r e o c u p a m c o m eles,
as f e i a s e n c o n t r a m n o s f i l h o s u m a c o m p e n s a ç ã o p a r a
a sua i n f e r i o r i d a d e , u m f e t i c h e p a r a o seu uso.
A a u t o d e f e s a d o s u j e i t o n ã o i m p l j c a necessaria-
mente u m a c o n s e r v a ç ã o da vida ou u m a preferencia
p e l o p r a z e r ; os m a z o q u i s t a s , os s u i c i d a s , os s o l d a d o s
h e r ó i c o s , p r o c u r a m n a d o r e n a m o r t e o u t r a cousa.
Q u a n d o o s e n t i m e n t o de i n s e g u r a n ç a cresce a
p o n t o de n ã o conseguir a p o i o s a t i s f a c t o r i o nos fetiches
do m u n d o o b j e c t i v o , o desejo do s u j e i t o p a r a u m a fic-
ç ã o o u u m a f a n t a s i a , e m desespero se a f a s t a d o m u n d o
objectivo, procurando formar u m a imagem totemica
no preconsciente.
Se a pessoa á p o s s u i d o r a d e g r a n d e c o n s c i ê n c i a
m u i t o ligada á r o t i n a do munido, provavelmente n ã o
c o n s e g u i r á i n i c i a r n o preconsciente u m processo de t o -
t e m i s m o e f e i t i c i s m o capaz de saciar a sua a m b i ç ã o e
o seu m u n d a n i s m o , e e n t ã o e n c o n t r a n a m o r t e o a l i v i o
p a r a o desespero, o ú n i c o a c t o d e m u n d a n i s m o q u e l h e
r e s t a . O u b e m , s e n d o a pessoa a f a s t a d a d o m u n d o o b -
EXPERIÊNCIA N.° 2 - f l a v i o de carvalho
•jectivo, v i v e n d o u m a v i d a preconsciente intensa, n ã o

•consegue m a i s m u n d a n i s m o n o p r e c o n s c i e n t e e e n c o n t r a
f
h a m o r t e a s a h i d a f o r ç a d a . E m a m b o s os casos e l a p o d e
'esperar m u n d a n i s m o n u m a o u t r a f o r m a d e v i d a , i s t o
'é u m a v a l o r i z a ç ã o d a s u a p e r s o n a l i d a d e ; o s u i c í d i o a
"coloca n u m s u p o s t o p l a n o a c i m a de t o d o o m u n d o o b -
j e c t i v o , p r o v o c a n d o u m r e b a i x a m e n t o g e r a l de t o d o o
i n u n d o o b j e c t i v o ; o m u n d o o b j e c t i v o torna-se o para-
ttietro de astucia, a c o n s c i ê n c i a d o m o r t o .
js A intenção do suicida era de irromper, des-

( « í a n t e l a r o m u n d o o b j e c t i v o p e l o t o q u e de d e s t r u i ç ã o ,
fpomo v i n g a n ç a pela sua s e n s a ç ã o de i n f e r i o r i d a d e . E l e
<fstava c o m p l e t a m e n t e i n t e g r a d o n a r o t i n a do m u n d o
/ o b j e c t i v o o u d o p r e c o n s c i e n t e , ele d e s e j a v a c o n f u n d i r
,p seu E u c o m esses d p i s m u n d o s , a o m e s m o t e m p o q u e
í q u e r í a f u g i r deles, d o c o n t r a s t e , c o m o m e i o de conser-
v a r a sua i l u s ã o de v i r i l i d a d e , p r o c u r a n d o o u l t i m o apoio
p a r a elevar-se a si m e s m o e r e b a i x a r o m u n d o . A m o r -
t e s e r v e de o b j e c t o f e t i c h e r e c e p t a c u l o d o seu a m o r —
ó seu g e s t o é u m g e s t o de a u t o d e f e s a a n i m i c a e se
p a r e c e u m t a n t o c o m a e s p e r a n ç a r e l i g i o s a das pessoas
v e l h a s , d o e n t e s , a l e i j a d a s , os despresados- d o m u n d o ,
í p r o c u r a n d o nos t e m p l o s a p e n ú l t i m a d e f e s a d o seu
^mundanismo, o d e r r a d e i r o seguro.
O soldado heroe e o masoquista f u n c i o n a m do
m e s m o m o d o ; a m b o s p r o c u r a m s a l v a r q u a l q u e r cousa,
á p á t r i a e o m u n d o , a m b o s s a c r i f i c a m - s e p a r a u m su-
posto b e m g e r a l ; o m a s o q u i s t a t e m d ó de si mesmo e
sente-se f o r t e n o s o f r i m e n t o , d e s e j a ser m a l t r a t a d o p a r a
'mostrar quanto o m u n d o é m á o , procura no maltrato
"è n a d o r u m a l i v i o p a r a o seu d e s e j o ; q u e r ser v i c t i m a ,
' q u e r q u e t o d o o m u n d o v e j a a s u a s i t u a ç ã o q u e ele c o n -
s i d e r a i n j u s t a ; é d o s e n t i m e n t o d e j u s t i ç a q u e nasce
%sse seu d e s e j o s o f r e d o r . E l e a c h a q u e o m u n d o n ã o
"soube a p r e c i a - l o , q u e ele d e v i a e s t a r p o r c i m a d o m i n a n d o
. . . o C h r i s t o , o padre, o B u d h a , o M o y s é s , o p o l í t i c o esque-
cido, o recluso o m e n d i g o , a p r o s t i t u t a a m o r o s a , o h o m e m
de g ê n i o . . .
e p a r a c a s t i g a r o m u n d o se s u b m e t e a o s o f r i m e n t o ,
para que o m u n d o tenha remorsos e o aclame como
heroe.
E l e deseja que o m u n d o v e n h a fazer c o n t r i c ç ã o a
seus p é s . A h i e n t ã o ele se s e n t e f r a t e r n a l e a m i g o d o
m u n d o . E l e é o s a l v a d o r de a l m a s ; o C h r i s t o , o p a d r e ,
o B u d d h a , o M o y s é s , o p o l í t i c o esquecido, o recluso,
o mendigo, a p r o s t i t u t a amorosa, o h o m e m de g ê n i o , o
seu f e t i c h e é o m u n d o seu d e u s ele m e s m o .
O seu i n t e n s o d e s e j o d e se c o n g e l a r n u m t o d o p o d e -
roso e x i g e u m a g r a n d e e x h i b i e ã o de a s t u c i a , — a m o d é s -
tia, a s u b m i s s ã o , a t i m i d e z , o engodo, a sobriedade s ã o
as suas a r m a s . D o c o n t a c t o c o m o m u n d o ele c o n s t r o e
a i m a g e m d o t y r a n o , recebe o c h i s t e dessa i m a g e m espe-
r a n d o a c o n t r i c ç ã o , o m o m e n t o d e v e r o colosso h u m i -
l h a d o a seus p á s .
O processo de f e i t i c i s m o é d u p l o — as suas c a r i c i a s
sobre o m u n d o o b j e c t i v o e m v e z d e e x h i b i r as i n f e -
r i o r i d a d e s deste, ao c o n t r a r i o , p r o v o c a m o a p a r e c i m e n t o
d e s u p e r i o r i d a d e , de t u d o q u a n t o e v i r i l e a g r e s s i v o . E l e
quer parecer pequeno ao l a d o d o m u n d o o b j e c t i v o .
T e n d o c o n s t r u i d o o seu t y r a n o , ele p r o c u r a p o r u m
t o q u e m e n t a l d e s o r g a n i z a r o a s p e c t o , p r o f a n a n d o o san-
t u á r i o d o t y r a n o , m o s t r a n d o a sua a l m a v a s i a , h u m i -
l h a n d o - o . A v i d a d o t y r a n o e s t á n a s suas m ã o s ; ~ ele
torna-se assim o salvador do t y r a n o , o benevolente, o
santo, o f e t i c h e - C h r i s t o , o i g u a l ao heroe, o q u e r i d o da
m u l h e r , o h o m e m " v a s e l i n a " q u e f i c o u deus.
O soldado h e r ó i c o , conservando-se n u m a p o s i ç ã o
i n f e r i o r , consegue f o r m a r planos, f r a t e r n a l m e n t e g u i a r
tropas em numero inferior contra u m inimigo imagi-
n á r i o , e s m a g a n d o s e m p r e o i n i m i g o . O seu f r a c o s ã o os
p r i s i o n e i r o s . S u r g e m aos m i l h õ e s e m g r a n d e s massas
p a r a m o s t r a r aos c o n t e r r â n e o s o h e r o i s m o d o s o l d a d o
e s q u e c i d o ; ele se s e n t e g r a n d e e n ã o d e s e j a ser n a d a
a c i m a de u m m a j o r o u u m c o r o n e l , p a r a m o s t r a r aos
seus s u p e r i o r e s e a o m u n d o e m g e r a l a i n j u s t i ç a de t e r
s i d o e s q u e c i d o . M u i t a s vezes p r o c u r a u m s o f r i m e n t o
m a i o r , t e n t a r e t r o c e d e r a u m p o s t o i n f e r i o r , ser t e n e n t e
s a c r i f i c a d o o u c a b o , m o s t r a n d o ao m u n d o q u a n t o é
b o m e g r a n d e ; se ele se t e m e m m u i t a c o n s i d e r a ç ã o ,
p r o c u r a ser m i s e r á v e l , a b a n d o n a d o d o m u n d o , esque-
c i d o , t e m p e n a de s i m e s m o , se c o m o v e c o m as m e n o r e s
cousas e d e s e j a a r d e n t e m e n t e ser s o c o r r i d o p o r a m i g o s
e ser t r a n s f o r m a d o e m h e r o e m o d e s t o .
A ' s vezes ele d e s e j a a m o r t e c o m o p a l i a t i v o m u n -
d a n o , a n t e c i p a n d o u m m o n o p ó l i o s e x u a l , u m goso post-
mortem.
O p o l í t i c o h e r ó i c o segue m a i s o u m e n o s o m e s m o
percurso.
O m e c a n i s m o a f e c t i v o é s e m e l h a n t e ao d o m a s o -
q u i s t a ; o i n i m i g o é t r a n s f o r m a d o e m t y r a n o e os seus
superiores e c o n t e r r â n e o s e m i n i m i g o s arrependidos ;
ele consegue, c o m o t e m p o , r e b a i x a r a m b o s a u m n i v e l
v i l m u i t o a b a i x o d a s u a pessoa, s u b l i m a n d o - s e e m h e r o e
ú n i c o e s a l v a d o r p r e s t e s a ser s a n t i f i c a d o . A sua " f i n a l e "
reproduz o drama archaico do h o m e m , rebaixar para
aparecer grande.
P o s s i v e l m e n t e , o o r g a n i s m o d o s u j e i t o se r e l a c i o n a
ao a m b i e n t e , c o m o u m a f o r m u l a m o t r i z p o s s u i n d o u m
certo n u m e r o de t e n d ê n c i a s c a d a t e n d ê n c i a c o m u m a
escala de v a r i a ç õ e s m a i s o u m e n o s c o n h e c i d a . Q u a l -
quer m o v i m e n t o e n v o l v e n d o a f o r m u l a e o ambiente,
talvez p r o c u r a n d o como f i m u m r e n d i m e n t o m á x i m o
como u m a maehina qualquer, valorizando o E u .
O m u n d o é o seu o b j e c t o s e x u a l , e c o m o d i z F r e u d
" a a c t i v i d a d e m u s c u l a r s e r v e de p o n t o de a p o i o p a r a
d i s t i n g u i r u m i n t e r i o r de u m e x t e r i o r " . ( 1 ) .
(1) Pg. 122 "Psyehologia das massas", Freud.

C a d a o r g a n i s m o se c o n s i d e r a u m c e n t r o de a t r a -
ção, f o r m a n d o u m systema trilogico aparte. Partindo
d o i n c o n s c i e n t e , o m o v i m e n t o p s y c h i c o p a r e c e se d a r
p o r i n t e r m é d i o do que F r e u d chama o e s t i m u l o i n s t i n c t i v o
o u n e c e s s i d a d e (1) e q u e p a r e c e ser a p e n a s u m a f o r m a
de m o v i m e n t o , u m a m o d a l i d a d e , e x i s t i n d o e m v i r t u d e
do m u n d o ambiente. Seria i m p o s s i v e l conceber uma
necessidade sem a e x i s t ê n c i a de a l g u m a c o u s a q u e f o r -
n e ç a o c o n t r a s t e , a l g u m a c o u s a q u e p o s s a r e c e b e r essa
n e c e s s i d a d e ; o r e s u l t a d o d o c o n t a c t o c o m o o b j e c t o se-
x u a l , p o d e ser c h a m a d o a s a t i s f a ç ã o , o goso q u e a l i v i a .
P a r a o h o m e m t o d o o m u n d o o b j e c t i v o , m e n o s o seu
t o t e m , é o b j e c t o s e x u a l , ele se c o m p o r t a a g r e s s i v a m e n t e
p a r a c o m t o d o s c o m o se t o d o s q u i z e s s e m alcança-lo,
c o m o se ele f o s s e m o t o t e m de t o d o s ; ele sente-se r i v a -
lisado pelo m u n d o o b j e c t i v o e responde c o m agressivi-
d a d e . A sua a s t u c i a é r e s e r v a d a ao t o t e m . O e s t u d o d o s
l a ç o s a f e c t i v o s e n t r e o h o m e m e o seu t o t e m mostra
q u e o s e n t i m e n t o d e r i v a l i d a d e v e m d a pessoa q u e e s t á
s e n d o d e s l o c a d a , escoa d o t o t e m a o a s p i r a n t e , e m q u a n t o
q u e os l a ç o s a f e c t i v o s e n t r e o h o m e m e o m u n d o f e t i c h e
s ã o agressividade-astucia, isto é meramente sexuaes,
u m m e i o d e se d e f e n d e r c o n t r a u m a i n s e g u r a n ç a c o m o
n o caso d a c o p u l a q u e t r a z o f i l h o c o m o m e i o de g a r a n -
t i r a s e g u r a n ç a d o pae, de p e r p e t u a - l o n o f u t u r o . O
s e n t i m e n t o de r i v a l i d a d e a i n d a p o u c o m e n c i o n a d o e n t r e
o h o m e m e o m u n d o o b j e c t i v o d e v e ser c o n s i d e r a d o c o m o
u m a c o n s e q ü ê n c i a d a n e c e s s i d a d e s e x u a l de e n t r a r e m
c o n t a c t o c o m este m u n d o , de t o c a r o m u n d o .
(1) Pg. 121 "Psychologia das massas", Freud.

O C O M P L E X O D E
O M N I P O T E N C I A
O m e c a n i s m o d a t r i l o g i a t e n d e a m o s t r a r a exis-
t ê n c i a de u m m o v i m e n t o i n e v i t á v e l n a v i d a p s y c h i c a
d o h o m e m , u m a t e n d ê n c i a p a r a n i v e l a m e n t o o n d e ele
p r o c u r a a t i n g i r u m a m e t a s a c i a n d o o seu d e s e j o n o
mundo objectivo.
Q u a n t o maior a r e a ç ã o o u sugestibilidade do m u n d o
o b j e c t i v o , m a i s d i s t a n t e f i c a a m e t a . V i m o s q u e ele
c o n s t r u í a a sua i m a g e m f a n t á s t i c a p r o c u r a n d o d e s m a n -
t e l a r o u d e s c o b r i r as i n f e r i o r i d a d e s d o m u n d o o b j e c t i v o ,
e que a sua i m a g e m b r i l h a v a pelo contraste que ofere-

c i a c o m as i n f e r i o r i d a d e s d e s c o b e r t a s ; essas i n f e r i o r i -
dades f o r m a m o p a r â m e t r o p r o t e c t o r , a d e m o n s t r a -
ç ã o de a s t u c i a . T o d a s as suas a c t i v i d a d e s n a v i d a p a r e -
c e m passar pelo m e s m o m e c h a n i s m o de t r i l o g i a . Parece
q u e o seu d e s e j o é a t i n g i r s e m p r e u m a m e t a , f o r m a r u m a
p e r s o n a l i d a d e s u p e r i o r a / sua, q u e r e p r e s e n t a p o t ê n c i a
e p e l a q u a l ele possa se c o n s i d e r a r o c e n t r o d o seu u n i -
v e r s o , p e l a q u a l ele possa a l c a n ç a r u m e s t a d o d e o m n i -
p o t e n c i a . E l e t r a t a a sua f a n t a s i a c o m o s e n d o o p a d r ã o
d o u n i v e r s o , c o m o s e n d o a ú n i c a q u e r e g u l a , e a sua
a u t o - e s t i m a ç ã o sobe á m e d i d a q u e d e s c o b r e as i n f e r i o -
r i d a d e s d o m u n d o e as a c u m u l a e m t o r n o de s i . E s t a
t e n d ê n c i a a ser o s o l de u m d a d o m u n d o o p e r s e g u e
t o d a a v i d a , ele p o d e v e r e s e n t i r o u t r o s m u n d o s o u p r e -
s e n t i r a e x i s t ê n c i a de o u t r o s , m a s o m u n d o d a s a t i s f a c -
ç ã o , q u e sacia o seu desejo, é a q u e l l e q u e ele o p r i m e e
r e b a i x a , a q u e l e e m q u e ele p o d e e n t r a r e m c o n t a c t o ,
m o s t r a r a sua v i r i l i d a d e , s a t i s f a z e r o seu d e s e j o d e o m -
n i p o t e n c i a . V i m o s que aqueles que b u s c a m a d o r p r o -
curam u m m u n d o ainda mais exaltado, u m a omnipo-
t e n c i a m a i o r , e n v o l v e n d o a s u b m i s s ã o de t o d a a h u m a -
n i d a d e , e á s vezes m e s m o u m d o m i n i o e x t r a - t e r r e s t r e .
A s u b l i m e i l u s ã o d e u m goso p o s t - m o r t e m . A s e l e c ç ã o
de u m a d i r e c t r i z parece e m t o d a p a r t e obedecer ao
c o m a n d o o m n i p o t e n c i a . A e s c o l h a recae s o b r e u m m u n d o
n o q u a l a i l u s ã o de o m n i p o t e n c i a é m a i o r m a s d e n t r o
d a classe d o s u j e i t o . .
Omnipotencia é perceptivel por contraste. O as-

pecto heterogêneo da natureza é u m a m o s t r a de omni-
p o t e n c i a ; d e u m a c o u s a se d e s t a c a r d a o u t r a , t o r n a r se
mestre da outra, ocupar u m a posição mais importante
que a outra, é tudo indicação da existência de movi-
mento de cousas q u e procuram destinos. Uma super-
fície homogênea infinita daria a ilusão de igualdade,
. . . é u m a m o s t r a de o m n i p o t e n c i a , de u m a cousa se
destacar da o u t r a , t o r n a r - s e m e s t r e da o u t r a .
de falta de omnipotencia. A humanidade vista de uma

grande distancia forneceria a mesma ilusão.
A omnipotencia vem como conseqüência natural
d a n o ç ã o de c o n t r a s t e n i v e l a m e n t o e d e s n i v e l a m e n t o
das cousas d a n a t u r e z a , n ã o p o d e ser d i s p e n s a d a , e o
h o m e m e n v o l v i d o n a n a t u r e z a se c o m p o r t a m e c h a n i -
c a m e n t e c o m o a n a t u r e z a . A sua f a n t a s i a c o n s t r u í d a á
custa do m u n d o o b j e c t i v o , destacando-se p o r contraste
c o m este m u n d o m o c t r a q u e o m o v i m e n t o d a v i d a
a n i m i c a exige u m a o m n i p o t e n c i a r e l a t i v a ; c a d a v i d a
a n i m i c a c o m u m a c a p a c i d a d e de f o r m a r m u n d o s q u e é
a a f i r m a ç ã o do E u .
As religiões são meios de conceder aos fracos e aos

o p r i m i d o s u m a i l u s ã o m a i o r de o m n i p o t e n c i a , d e e s t a r
p e r t o de deus, ser o e s c o l h i d o , se s e n t i r n o s e g u r o . O
r e s e n t i m e n t o d o s o p r i m i d o s é s e m p r e de n a t u r e z a reli-
g i o s a ; d e p l o r a m eles o m o n o p ó l i o i m p o s t o p e l o m u n d a -
nismo e procuram uma c o m p e n s a ç ã o no mundo ideo-
lógico afastado do objectivo, p r o c u r a m omnipotencia
e n t r e os f a n t a s m a s de p r e c o n s c i e n t e s . A s m u l h e r e s se
a f e i ç o a m m u i t o á r e l i g i ã o p o r q u e d i f i c i l m e n t e conse-
g u e m o m n i p o t e n c i a de o u t r a m a n e i r a , n o m u n d o o b j e -
c t i v o a sua personalidade-ornato se concentra no
m u n d a n i s m o d a c o p u l a ; ela p r o d u z u m estado de en-
c a n t a m e n t o e m redor de si, torna-se t a b u , i n t o c á v e l e
d e s e j á v e l , e pela astucia p r o c u r a sempre entregar-se a
u m deus. Os f i l h o s v ê m c o m o u m a c o m p e n s a ç ã o p e l o
seu e s t a d o de i n f e r i o r i d a d e e as m u l h e r e s q u e m a i s dese-
j a m t e r f i l h o s s ã o as q u e se s e n t e m m e n o s s e g u r a s , q u e
p r e c i s a m d o f i l h o c o m o u m a c o m p e n s a ç ã o — m e i o de
e n c o b r i r u m s e n t i m e n t o de i n f e r i o r i d a d e — u m f e t i c h e
p a r a a sua o m n i p o t e n c i a . Os paes g o s t a m de v i v e r a
v i d a e m o t i v a dos f i l h o s , p o r q u e é u m m e i o de c o n s e r v a r
p o t ê n c i a . A s pessoas d e i d a d e m o s t r a m n o seu c o m p o r -
t a m e n t o esse m e s m o d e s e j o d e d o m i n i o . O c o m p l e x o
O COMPLEXO DE OMNIPOTENCIA 145
de E d i p o , é u m d e s e j o de o m n i p o t e n c i a , as g u e r r a s , a
p r o t e s t a ç ã o v i r i l n a c i o n a l i s t a , as l u t a s p o l i t i c a s , t o d a s
t r a z e m a m e s m a a n c i ã de d o m i n i o , a e x a l t a ç ã o d o E u .
E n t r e os p a i z e s r e b a i x a d o s p e l a s c i r c u n s t a n c i a s o u
e m e s t a d o e m o t i v o de p e r i g o p e r s i s t e s e m p r e u m a t e n -
dência para ostentar efeminadamente u m a camada astu-
ciosa d e n a c i o n a l i s m o , a e x a l t a ç ã o d o E u n a c i o n a l ;
uniformes pomposos, p r o c l a m a ç õ e s inflamadas, paradas
e m g r a n d e n u m e r o , o d e s e j o de m o s t r a r v i r i l i d a d e c o m o
d e f e s a p a r a o c u l t a r os p o n t o s f r a c o s .
O paiz rebaixado torna-se efeminado no modo de

a g i r , os h o m e n s p r o c u r a m d e s e s p e r a d a m e n t e p o n t o s d e
s e g u r a n ç a m a n t e n d o u m a o m n i p o t e n c i a ilusória, nasci-
da do resentimento e religiosa em caracter, afastada do
m u n d o o b j e c t i v o o p r e s s o r e, e m c e r t o s casos, concen-
trada n u m a dada rotina e tradição» O nacionalismo pro-
cura s e g u r a n ç a na t r a d i ç ã o histórica e no sentimento
de p á t r i a e f a m i l i a , que a i n d a é h o j e s u s t e n t a d o p o r u m
g r u p o q u e d i m i n u e s e m p r e , c o m o r e l i g i ã o q u e n ã o se d i s -
cute ; o n a c i o n a l i s m o e x a l t a d o é u m a m a n i f e s t a ç ã o ne-
v r o t i c a de u m a n a ç ã o i n f e r i o r i z a d a e s ó aparece e m m o -
m e n t o s de p e r i g o e f u n c i o n a c o m o u m a f o r ç a c o h e s i v a .
0 p e r i o d o de c r i t i c a de u m a n a ç ã o p o d e r o s a c o r r e s p o n d e
a u m a f a s e de t o t e m i s m o , de s u b d i v i s ã o d e i d e a s e é c o n -
s e q ü ê n c i a d a e x a l t a ç ã o n a c i o n a l i s t a . O p e r i o d o de tote-
m i s m o é a r e v o l t a d o o p r i m i d o e m b u s c a de o m n i p o t e n -
cia, ê a r e a c ç ã o n a t u r a l c o n t r a o despotismo religioso
nacionalista. Vemos que quando u m a entidade a l c a n ç a
u m a i d e a de o m n i p o t e n c i a , a p a r e c e n a s e n t i d a d e s q u e
s e r v i r a m d e a p o i o este m e s m o d e s e j o de o m n i p o t e n c i a ,
o p e r a n d o os l a ç o s a f e c t i v o s t o t e m i z a ç ã o - r i v a l i d a d e e n t r e
os o p r i m i d o s e o p o d e r , e a g r e s s i v i d a d e - a s t u c i a entre
os f u t u r o s t o t e m s . L o g o a p o s á d e s i n t e g r a ç ã o d u r a n t e
a fase de d e m o c r a c i a e m a g i a o b s e r v a - s e e m c a d a e n t i -
dade d e m o c r á t i c a m a n i f e s t a ç õ e s d o c o m p l e x o de o m n i -
p o t ê n c i a , o h o m e m t o r n a - s e i m o r a l e m r e l a ç ã o ao seu
p a d r ã o é t i c o , a p o l í t i c a aparece e n c a n t a n d o distribuin-
d o o s o r t i l e g i o q u e i n c i t a r á o d e s n í v e l ; e l a c o n t e m os
a t r a c t i v o s de u m " v a m p " c h e i o d e " i t " p o r q u e d á ao
h o m e m a i l u s ã o de p o d e r , e l a é a d o r a d a c o m o n u m a r e l i -
g i ã o a sua i m a g e m e n c a n t a e os h o m e n s astuciosa-
m e n t e t e n t a m se a p r o x i m a r , s ã o e f e m i n a d o s e s u b m e -
t e m p r o g r a m a s p o l í t i c o s c h e i o s de e n g o d o , u m a d e s c u l p a
p a r a o d e s e j o d e o m n i p o t e n c i a , o m e i o de e s c o n d e r a
a m b i ç ã o . Esses p r o g r a m m a s s ã o g e r a l m e n t e f o r m u l a d o s
para retirar aparentemente a p o t ê n c i a do candidato
o u d o p a r t i d o , o b t e n d o assim o apoio d o p o v o , e consti-
t u e m a parte d i p l o m á t i c a entre o candidato e o povo,
funcionam como u m p a r â m e t r o protector efeminado.
O fenômeno político de um paiz parece ser a mani-

f e s t a ç ã o mais rotineira e mais consciente do complexo
de o m n i p o t e n c i a , c o m o e t a m b é m a m a i s e f e m i n a d a .
T o d o s c o n h e c e m as p r o m e s s a s i m p o s s í v e i s , as i d e o l o -
gias c o n t e m p l a t i v a s , a m a g i a h o n r a d a dos chefes p o l í -
ticos, o e s f o r ç o t r e m e n d o p a r a e n c a n t a r u m eleitorado
i l u d i n d o - o ; cada p o l í t i c o esconde a sua i n f e r i o r i d a d e em
b a i x o de u m a c a p a d e h o n r a e j u s t i ç a c o l o c a n d o - s e n o
seguro, o c u l t a n d o a sua i n c a p a c i d a d e , p a r a a l c a n ç a r
m a i s depressa a sua v i s ã o de o m n i p o t e n c i a .
D o sujeito e m a n a m sempre duas f o r ç a s afectivas :
a t o t e m i s a ç ã o , p a r a c o m a f a n t a s i a , e a agressividade,
o a m o r p a r a c o m o f e t i c h e . Essas d u a s f o r ç a s se c o m -
p l e m e n t a m . N e n h u m a delas pode e x i s t i r isoladamente e
a i d e a de h o m e m n ã o t e r i a n e n h u m s e n t i d o c o m u m a
delas s ó ; a f a n t a s i a é a i m p u l s o r a d o desejo de c o n t a c t o
d o a m o r a o m u n d o o b j e c t i v o , ao m e s m o t e m p o q u e é
c o n s e q ü ê n c i a desse m u n d o o b j e c t i v o . E s t a s d u a s f o r ç a s
o r g a n i z a m o f e n ô m e n o de c o n t r a s t e i n c i t a n d o o c o m p l e x o
de o m n i p o t e n c i a . E l a s representam a r e l a ç ã o i n d i s p e n -
s á v e l e n t r e o h o m e m e o seu m u n d o , e e x p l i c a m p o r q u e
— O f e n ô m e n o de c o n t r a s t e —
vivemos, e m o s t r a m que é melhor encaminhar a n o ç ã o

de a l e g r i a p a r a a s u g e s t i b i l i d a d e d a s cousas d o m u n d o .
O ' m s t i n c t o i m p u l s i v o " v e m s e m d u v i d a dessa sugesti-
bilidade, o u m e l h o r a sugestibilidade é a faisca que preci-
p i t a o i n s t i n c t o i m p u l s i v o , q u e o t r a n s f o r m a de p a s s i v o
e latente que era c m a c t i v o e d y n a m i c o . A sugestibili-
dade acciona c o m o u m t o q u e n o inconsciente, desperta
o enthusiasmo do h o m e m , pela v i d a , trazendo á tona
o i n t e r e s s e p e l a s cousas, a f o r ç a de a m a r , e de se f i r m a r ,
e u m a vee e m m o v i m e n t o ele p r o c u r a a s i t u a ç ã o m a i s
segura, o m n i p o t e n t e , d e n t r o d a sua p e r c e p ç ã o .
Uma vez encantado pelo mundo, ele procura des-

m a n c h a r a o r d e m d o o b j e c t o e n c a n t a d o r ; a i d e a de
o r d e m sacode a sua a l m a e m a d o r a ç ã o e r e s p e i t o , c h a m a
a sua a t e n ç ã o p o r c o n t r a s t e , p r o v o c a o desejo amoroso
e agressivo de e n t r a r e m c o n t a c t o de d e s m a n c h a r .
O organizado é a cousa encantada, possue a ele-

g â n c i a de u m a i m a g e m t a b u , c a d a p a r t e c o m u m a s i g n i -
ficação actuando como u m a l e m b r a n ç a da rotina,
r e p r e s e n t a o e s t a d o d e u m a t e o r i a p r o m p t a a ser c r i t i -
c a d a , d e s m a n t e l a d a , u m a o r d e m q u e a t r a h i u p e l a se-
q ü ê n c i a , u m symboljismo da vida que m o s t r a u m a enti-
dade pela r e p e t i ç ã o e c o n v i d a o h o m e m a destrui-la.
Sugestibilidade torna-se funcção de entidade. Fazer

u m a c o u s a p e r c e p t i v e l ao n o s s o p o n t o de v i s t a , c o m p o r
os seus l i m i t e s p a r a c h a m a r a a t e n ç ã o , c r e a n d o u m a
t e n s ã o de s u p e r f í c i e q u e é o e n c a n t a m e n t o d o o b j e c t o ,
sugere a o h o m e m a n e c e s s i d a d e de ser agressivo, des-
p e r t a n d o n o seu i n c o n s c i e n t e u m m o v i m e n t o capaz de
d e s m a n c h a r a o r d e m . E x i s t e a l g u m a c o u s a e n t r e a idea
de o r d e m e a agressividade. U m a parece p r o v o c a r a
o u t r a . S e m d u v i d a , a i n t e l i g ê n c i a d o h o m e m , o seu espi-
r i t o c r i t i c o rebela-se c o n t r a o t é d i o d o estabelecido,
c o n t r a o i m p u d o r de u m a o r d e m d o g m á t i c a . E l e pre-
O COMPLEXO DE OMNIPOTENCIA 149
cisa d e s p e d a ç a r p a r a v e r o q u e t e m d e n t r o , d i v u l g a r
o v a s i o d o m y s t e r i o , ser s e m p r e u m d e l a t o r de f a l s a s
pretenções.
U m a cousa c o n s t r u í d a e o r g a n i z a d a p r o v o c a logo
o par a n t i t e t i c o agressividade-astucia, a agressividade
constroe u m a f o r m a amorosa que p r o c u r a e n t r a r em
c o n t a c t o , vencer a t e n s ã o de s u p e r f í c i e , a astucia do
o b j e c t o ; a c o u s a c o n s t r u í d a n u n c a p o d e ser e t e r n a . U m a
a n c i ã de m o v i m e n t o e x i g e q u e e l a s e j a d e s m a n c h a d a
e f e i t a de n o v o , o e s p i r i t o c r i t i c o d o h o m e m rebela-se
c o n t r a o a s p e c t o , i n s t i n c t i v a m e n t e ele q u e r m o s t r a r
as i n f e r i o r i d a d e s o c u l t a s , d e s m a n c h a r o e n c a n t a m e n t o
do o b j e c t o . A cousa organizada torna-se o fetiche-apoip
p a r a a n o v a f a n t a s i a , recebe o a m o r d o h o m e m .
Esse d e s e j o d e t o c a r n o o r g a n i z a d o , n a c o u s a q u e
se t o r n o u q u a s i i n t o c á v e l , é a base a r g u m e n t a t i v a d a
omnipotencia. Destruir o tabu para divulgar a inferio-
ridade é a f a l t a de r e s i s t ê n c i a de i m a g e m sagrada ; o
c o n t r a s t e d o e s t r a g o d á a s e n s a ç ã o d e p o d e r e sacia o
narcisismo. O h o m e m torna-se o m n i p o t e n t e p o r auto-
e s t i m a ç ã o , p o r q u e c o n s e g u i o d o m i n a r u m m u n d o su-
j e i t o a p e n a s ao seu m o d o d e p e r c e b e r . A base a r g u m e n -
t a t i v a v e m e n t ã o c o m o u m a n e c e s s i d a d e de m o v i m e n t o ,
de d e s m a n c h a r u m a c o u s a o r g a n i z a d a , e s t a g n a d a e m
encantamento. Parece que a sugestibilidade do m u n d o
o b j e c t i v o crea n o h o m e m u m p o t e n c i a l , u m i n i c i o de
fantasia capaz de d e s a r r a n j a r o o r g a n i z a d o .
I N S T I N C T O
GREGARIO
O instincto gregario é a busca do fetiche, o desejo

de ser e n c a n t a d o e d e e n t r a r e m c o n t a c t o , de p o s s u i r
e perturbar a ordem do fetiche. O m u n d o objectivo é
apoio i n d i s p e n s á v e l . O ho a e m p r o c u r a o ho i e m para
m o s t r a r a s u a f a n t a s i a e a d q u i r i r p o d e r . O seu i g u a l ê
o que é mais capaz de c o m p r e h e n d e r a sua f a n t a s i a e
é p o r t a n t o o escolhido p a r a receber o a m o r agressivo,
p a r a ser d e s t r u i d o e r e b a i x a d o , e s e r v i r de c o n t r a s t e
ao e x h i b i c i o n i s m o e a e x a l t a ç ã o d o E u d o p r e t e n d e n t e .
152 EXPERIÊNCIA N . ° 2 - f l a v i o de carvalho
Q u a n d o isolado d a sociedade, o h o m e m o r g a n i z a
os o b j e c t o s d a n a t u r e z a e m a d o r a ç ã o a s i p r ó p r i o ; ele
a c a r i c i a esses o b j e c t o s c o m g r a n d e s a t i s f a ç ã o p o r q u e
os o b j e c t o s se s u b m e t e m f a c i l m e n t e a s u a v o n t a d e .
Q u a n d o e n c o n t r a a l g u m a cousa que n ã o conseguio
d o m i n a r , ele a c o n s i d e r a o seu i n i m i g o , m e s m o q u a n d o
s ó c o m a n a t u r e z a a sua a c t u a ç ã o é p a r a a o m n i p o t e n -
c i a . E l e p r o c u r a se a g r e g a r á n a t u r e z a e c o n c e d e aos
objectos d a n a t u r e z a p r o p r i e d a d e s a n i m i c a s iguaes a
dele, t r a n s f o r m a a n a t u r e z a e m seu i g u a l p a r a m e l h o r
m o s t r a r a sua f a n t a s i a , p a r a q u e ela seja c o m p r e h e n d i d a
pela natureza. Quasi sempre é u m a tarefa fácil, a n a t u -
reza r a r a m e n t e p r o t e s t a .
O s h o m e n s r e t r a h i d o s d a s o c i e d a d e , os reclusos,
os e s p l o r a d o r e s , s ã o a q u e l e s q u e , d o m i n a d o s p o r u m
s e n t i m e n t o de i n f e r i o r i d a d e , e n ã o c o n s e g u i n d o m o s t r a r
a sua pessoa e n t r e os h o m e n s , p r o c u r a m o a f a s t a m e n t o ,
p r o c u r a m a natureza p a r a conceder o contacto que rebai-
x a , e s a t i s f a z e r o seu d e s e j o d e m u n d a n i s m o . A ' s vezes
os e x p l o r a d o r e s se u t i l i s a m d a n a t u r e z a c o m o m e i o de
c o n s e g u i r m u n d a n i s m o e n t r e os h o m e n s .
M u i t o s t r a n s p o r t a m as suas c a r i c i a s p a r a os a n i -
m a e s , p o r q u e estes se t o r n a m e m p o u c o t e m p o s u b m i s -
sos e n c a n t a d o s c o m o d o n o , e o d o n o se s e n t e f o r t e e
poderoso — é u m m e i o f á c i l de o b t e r o m n i p o t e n c i a .
A s pessoas e n v e l h e c i d a s , q u e s o f r e m u m a d i m i n u i ç ã o
n a v i r i l i d a d e e á s vezes n o p o d e r s o c i a l , t a m b é m t ê m
u m a t e n d ê n c i a p a r a a sociedade dos a n i m a e s e d o isola-
mento na natureza.
D e n t r o o u f o r a d a sociedade o i n s t i n c t o gregario
exige u m f e t i c h e , u m a p o i o p a r a o E u , a l g u m a cousa
p a r a receber o a m o r de si m e s m o , e m o s t r a r a sua g r a n -
deza. E ' u m i n s t i n c t o d e c o n s e r v a ç ã o , d e a u t o - d e f e z a
d a personalidade, e v i t a n d o sempre de enchergar d e n t r o
d e s i m e s m o e p r o c u r a n d o o c u l t a r as i n f e r i o r i d a d e s c o m
154 EXPERIÊNCIA N . ° 2 - f l a v i o de carvalho
c o m p e n s a ç õ e s . O i n d i v í d u o p r o c u r a c o n s e r v a r a sua
f o r m a i d e a l i s t i c a , p r o t e g e r - s e c o n t r a o seu d e s m a n c h a -
m e n t o , e v i t a r p e l a a s t u c i a o c o n t a c t o q u e r e v e l a a sua
i n f e r i o r i d a d e , ele d e s e n v o l v e u m a a c ç ã o a g r e g a d o r a , ele
é o c h e f e d e si m e s m o q u e c o n t r o l a e m a n t é m a o r d e m
i n t e r n a d o seu o r g a n i s m o , é o seu d i t a d o r , q u e f o r n e c e
as i l u s õ e s de o m n i p o t e n c i a a o c o n j u n c t o d o seu o r g a -
n i s m o , é o p a r â m e t r o de a s t u c i a q u e p r o t e g e o i n s t i n c t o
g r e g a r i o de sua v i d a a n i m i c a c o n t r a u m a a g r e s s ã o h u -
milhante.
D e m a n e i r a q u e o i n s t i n c t o g r e g a r i o , a l e m de ser
a b u s c a d o f e t i c h e , e s t á b e m l i g a d o á i d e a de c o n s e r v a -
ç ã o d a f o r m a , á n e c e s s i d a d e de e v i t a r u m d e s m a n t e l a -
m e n t o , u m d e s e j o de c o n s e r v a r o p a s s a d o , de m a n t e r
u m a t r a d i ç ã o . O i n s t i n c t o gregario torna-se p a r t e da
i d é a de e n t i d a d e , é u m a f o r ç a e m o t i v a q u e o p e r a p a r a
acumular elementos suficientes em n u m e r o , para mos-
t r a r p o d e r , se d e s t a c a r , t o r n a r - s e v i s i v e l n o m u n d o a m -
b i e n t e . E ' u m a f o r ç a de p r o t e s t a ç ã o c o l e c t i v a , q u e f a z
c o m q u e u m a n a ç ã o se c o m p o r t e c o m o u m i n d i v í d u o '
p r o c u r a n d o m a n t e r e n t r e os seus e l e m e n t o s u m a a c ç ã o
u n i d a p a r a g a r a n t i r o sucesso d a sua f a n t a s i a . N a t u r a l -
m e n t e , e s t a f o r ç a b u s c a o f e t i c h e c o m o p o n t o de a p o i o .
E ' u m a f o r ç a de c o h e s ã o , m a n t i d a pela i n f l u e n c i a
externa e procura conservar a f o r m a do objecto, defen-
d e r o p a s s a d o . O s h o m e n s se a g l o m e r a m c o m o p r o t e c ç ã o
contra o ambiente, para m a n t e r a v i d a e conservar a
personalidade. E ' u m a m e d i d a d e f e n s i v a q u e v i s a cc-
cultar a inferioridade individual.
A aglomeração é um refugio contra o perigo
p o r q u e c o l o c a o h o m e m e m p é de i g u a l d a d e c o m os
seus r i v a e s .
U m h o m e m n u m a a g l o m e r a ç ã o s e n t e q u e e m caso
de p e r i g o ele p o d e p e r f e i t a m e n t e ser o p r o t e g i d o d a s o r t e ,
e n q u a n t o q u e i s o l a d o ele s e n t e c o m m a i s v e h e m e n c i a a
f a t a l i d a d e d o p e r i g o . A a g l o m e r a ç ã o é o seu r e f u g i o . E l e
M e s m o q u a n d o s ó c o m a n a t u r e z a a sua a c t u a ç ã o é p a r a
a omnipotencia.
156 EXPERIÊNCIA N . 8
2 - f l a v i o de carvalho
p r o c u r a sempre estar do lado mais numeroso, do lado

q u e o f e r e ç a u m a s e g u r a n ç a p a r a a sua pessoa. A s u a
f u g a p a r a o a b r i g o é u m a defesa. E l e c o n h e c e m a i s o u
m e n o s a sua c a p a c i d a d e de e n f r e n t a r p e r i g o s , e o a b r i g o
v e m o c u l t a r os seus p o n t o s f r a c o s .
A aglomeração vem como conseqüência da agres-

s i v i d a d e . Os h o m e n s se a g l o m e r a m e m t o r n o de u m a
c o u s a c a p a z de os e n c a n t a r , u m a c o u s a s u g e s t i v a o n d e
encontram segurança suficiente para a vida animica.
Quando os homens se aglomeram em torno de uma

m u l h e r e s q u i s i t a e s e d u c t o r a , c a d a u m se i m a g i n a e n -
c o n t r a r n a m u l h e r u m p o n t o de a p o i o s u f i c i e n t e p a r a
a s u a i n f e r i o r i d a d e . A c e r c a n d o - s e d a m u l h e r , e rece-
b e n d o os seus f a v o r e s , eles se c o l o c a m n u m a p o s i ç ã o
segura, c a p a z d e a t r a h i r m u n d a n i s m o ; a a g l o m e r a ç ã o
e m r e d o r d a m u l h e r é p a r a eles u m s i g n a l de p o d e r e
indica a grande sugestibilidade da figura rodeada. A
f i g u r a r o d e a d a se t r a n s f o r m a e m i m a g e m e n c a n t a d a ,
t o r n a - s e a l g u m a c o u s a t a b u . A s suas r i v a e s p r o c u r a m
profana-la, desmanchando o encantamento, diminuin-
d o o seu p r e s t i g i o . Os a d o r a d o r e s d a i m a g e m s e n t e m - s e
protegidos pela sua m a g i a e o b s e r v a m o respeito e o
o d i o , q u e elles s e r i a m c a p a z e s de t e r p o r u m a v i r g e m
M a r i a o u u m a s a n t a Teresinha. A s e g u r a n ç a dos adora-
d o r e s d e p e n d e d a i n t e g r i d a d e d a i m a g e m , e se e l a é
protegida com ardor contra qualquer p r o f a n a ç ã o torna-
se i n t o c á v e l , a b e m d o r e g o s i j o n a r c i s i s t a d a aglomera-
ção. O homem parece p r o c u r a r sempre u m ponto de
segurança animica, u m atractivo, uma imagem encan-
t a d a que s a t i s f a ç a a sua necessidade de exaltar o Eu,
as a g l o m e r a ç õ e s se r e f u g i a m s o b a p r o t e c ç ã o dessas i m a -
gens f e t i c h e s ; a mulher encantadora, a santa, a vir-
g e m , o chefe, o C h r i s t o , o deus, a p á t r i a , s ã o r e f ú g i o s
communs da aglomeração em perigo.
I N S T I N C T O G R E G A R I O 157
A s r e l i g i õ e s s ã o p o n t o s de r e f u g i o m u i t o p r o c u r a d o s
pelo h o m e m p a r a esconder a sua i n f e r i o r i d a d e ; a p á t r i a ,
como idea d e r i v a d a do p a t r i a r c h a , t e m sempre a j u n t a -
do grandes grupos de homens ; u l t i m a m e n t e p o r e m o
seu e n c a n t a m e n t o a n d a e m p e r i g o . A i n t r o d u c ç ã o d e
novas f o r ç a s e c o n ô m i c a s n o scenario m u n d i a l , c o m o o
a d v e n t o dia m a c h i n a e o i n t e r e s s e d e m o n s t r a d o p e l a
palavra eficiência, parecem querer crear u m a n o v a filo-
sofia da v i d a u m n o v o m u n d o i d e o l ó g i c o que o r i e n t a r á
os l a ç o s a f e c t i v o s d o h o m e m p a r a u m i n t e r n a c i o n a l i s m o
mais intenso, a u g m e n t a n d o a v i s ã o de cada u m .
A p á t r i a é a i m a g e m s a g r a d a n a c i o n a l i s t a e se c o m -
p o r t a precisamente c o m o a m u l h e r esquesita encantada.
T e m a f o r ç a r e l i g i o s a de c r e a r s u b m i s s ã o e de i m p l a n t a r
o t r a d i c i o n a l n a r o t i n a . O seu n a c i o n a l i s m o c o n s i s t e e m
d a r a c a d a h o m e m o f a v o r de ser d e l a . T o d o s os p a t r i o -
tas se n i v e l a m , s ã o i g u a e s c o m o n a r e l i g i ã o t o d o s os
crentes s ã o t i d o s c o m o iguaes ; ela é a i m a g e m e n c a n t a d a
que recebe a a d o r a ç ã o de t o d o s os iguaes, C o l o c a n d o
todos em s e g u r a n ç a ; a sua santidade í m a n t i d a pelo
s e n t i m e n t o de i n s e g u r a n ç a d o h o m e m q u a n d o e m con-
t a c t o a g r e s s i v o c o m o u t r o s p o v o s ; ela, e m c o n s e q ü ê n c i a
desse c o n t a c t o , v e r r c o m o u m a d e f e n s i v a , c o m o a as-
tucia da n a ç ã o .
Quando uma aglomeração é perturbada por u m
p e r i g o , o h o m e m p r o c u r a s e m p r e se r e f u g i a r d o l a d o
onde aparece u m e n c a n t a m e n t o , u m a t r a c t i v o capaz de
lhe g a r a n t i r s e g u r a n ç a .
A a g l o m e r a ç ã o usa o a t r a c t i v o c o m o u m f e t i c h e
p a r a a sua e m c ç ã o — d e s e j a o c o n t a c t o c o m o f e t i c h e
p a r a f i r m a r a s u a pessoa.
A s s i m , o i n s t i n c t o gregario surge como u m senti-
m e n t o de d e f e s a p r ó p r i a , u m m e i o d o h o m e m se v a l o -
r i z a r , m o s t r a n d o a s u a f a n t a s i a v i r i l a o seu i g u a l e r i v a l
e s e m p r e p r o c u r a n d o e s c o n d e r as i n f e r i o r i d a d e s . E ' o
i n s t i n c t o q u e f a z ele q u e r e r c o n s e r v a r a s u a f o r m a f a n -
t á s t i c a , que p r o c u r a e v i t a r que u m c o n t a c t o agressivo
o d e s m a n t e l e e v e n h a p e r t u r b a r a o r g a n i z a ç ã o de sua
teoria, reduzi-lo a u m n i v e l inferior,, a u m h o m e m sem
t e o r i a , d e s o r i e n t a d o e c o m v e r g o n h a de s u a e x i b i ç ã o .
Ele p r o c u r a conservar a sua personalidade c o n t r a a
d e s t r u i ç ã o , c o n s t r u i n d o e m r e d o r de s i u m a m u r a l h a
de a s t u c i a , p r o c u r a n d o se t r a n s f o r m a r n u m a i m a g e m
i n t o c á v e l sagrando-se a si m e s m o .
E s t e s e n t i m e n t o de defesa, é a n e c e s s i d a d e q u e ele
t e m de e n t r a r e m c o n t a c t o c o m o m u n d o o b j e c t i v o , d e
a p a l p a r e s e n t i r , é a sua c u r i o s i d a d e d e d e s m a n c h a r o
o r g a n i z a d o , de d e s v e n d a r o m y s t e r i o q u e o a t r a h e p a r a
o h o m e m . Ele precisa e n t r a r em contacto, a m a r o m u n d o ,
m o s t r a r - s e . Fazer-se deus e d e s t r u i r p e l o a m o r o orga-
nisado. Proteger o u d e s t r u i r a sua personalidade, p a r a
se m o s t r a r v i r i l — a a u t o - d e s t r u i ç ã o á s vezes c u m a os-
t e n t a ç ã o de p o d e r de despreso p a r a o m u n d o — e des-
organizar o organizado em redor, porque é o ú n i c o m e i õ
q u e ele t e m p a r a se p r o t e g e r ; c r e a r e m r e d o r de s i u m a
s a g r a ç ã o m u n d a n a , o seu m u n d a n i s m o q u e o f a z t o l e -
r a r a c o m p a n h i a do igual.
D o i s processos c a r a c t e r i z a m o i n s t i n c t o g r e g a r i o .
U m constructivo e outro destructivo ; o constructivo
é c o n s e q ü ê n c i a do destructivo, do contacto c o m o m u n -
do exterior. Pelo contacto desmancha o organizado e
c o n s t r o e e d e f e n d e a s u a p e r s o n a l i d a d e , c o n s t r o e e de-
f e n d e as n a ç õ e s , os g r u p o s os s y n d i c a t o s , e t o d a s as
a g l o m e r a ç õ e s do h o m e m .
A p e s a r de h a v e r u m a i g u a l d a d e a p a r e n t e e n t r e
as g e n t e s a g l o m e r a d a s e m t o r n o d e u m e n c a n t o , u m
c h e f e , u m a p á t r i a e m p e r i g o , esse s e n t i m e n t o d e i g u a l -
dade s ó existe perante a f a n t a s i a c o l e c t i v a ; é tolerado
c o m o m e i o d e d e f e s a ; s o b u m p o n t o de v i s t à s u b j e c -
t i v o , o instincto gregario n ã o procura u m a igualdade
da massa, mas s i m u m a desigualdade ; o h o m e m p r o -

c u r a a c o m p a n h i a d o h o m e m p a r a s a t i s f a z e r o seu m u n -
d a n i s m o , t o r n a r - s e d o n o d a q u i l o q u e ele t a l v e z n ã o
comprehenda mas que o atrahe e que pertence á capa-
c i d a d e de o u t r o s , p a r a m o s t r a r aos seus iguaes a sua
força.
A anciedade de uma massa igual e homogênea é

de p r o v o c a r d i s t ú r b i o i n t e r n o ; a a n c i e d a d e de m o v i -
m e n t o , os l a ç o s a f e c t i v o s dessa m a s s a n ã o s ã o d u r a d o u -
ros e o seu e s t a d o r e p r e s e n t a a p e n a s u m m o m e n t o t e m -
p o r á r i o de c a l m a r i a , q u e e x i g e c o m o m o d a l i d a d e pas-
sageira u m c o n t r a s t e p a r a m o s t r a r u m e s t a d o e m m o v i -
mento em outro lugar.
Antagonismo e astucia vêm sempre entre pessoas

da m e s m a a c t i v i d a d e . E ' u m a b s u r d o p e n s a r q u e o
o p e r á r i o d e t e s t a f a z e r p a r t e das o u t r a s classes. O q u e
a c o n t e c e s e m p í e é q u e eles se d e t e s t a m e n t r e s i , i s t o é
reservam a sua v i d a e m o t i v a p a r a c o m aqueles c o m
quem v i v e m em contacto.
O animo contra o patrão não é um animo desagre-

g a d o r de u m a s o c i e d a d e , c o m o p o r e x e m p l o o a n i m o
contra o semelhante profissional, mas sim u m a f o r ç a
t e n d e n t e a l e v a n t a r o n i v e l d a sociedade ; o o p e r á r i o
q u e r ser p a t r ã o c o m o o s o l d a d o q u e r ser g e n e r a l , m e c h a -
n i c a m e n t e ele d e s e j a l e v a n t a r o seu n i v e l , a f i r m a r o
seu E u . O o p e r á r i o q u e t e m c a m i n h o a b e r t o p a r a se
a p r o x i m a r d o l u g a r de p a t r ã o n ã o possue o m e s m o a n i -
m o q u e os o u t r o s c o n t r a ele. N u m a m a s s a o p e r a r i a , o
i n s t i n c t o g r e g a r i o v e m c o m o u m a d e m o n s t r a ç ã o de f o r -
ç a , c o m o u m p r o t e s t o v i r i l , u m m e i o de se c o l o c a r e m
s e g u r a n ç a e de f i r m a r u m a p e r s o n a l i d a d e . G e r a l m e n t e
o o p e r á r i o t e m p o u c a o u n e n h u m a o p o r t u n i d a d e de
m o s t r a r a s u a p e r s o n a l i d a d e , e é p o r isso m e s m o q u e o
i n s t i n c t o g r e g a r i o e n t r e as m a s s a s o p e r á r i a s o p r i m i d a s
é m u i t o f o r t e ; a u n i ã o v e m c o m o ú n i c o m e i o de m o s t r a r
força. (1)
N a s d i v e r s a s a s s o c i a ç õ e s d e classe, n o s s y n d i c a t o s ,
domina como em toda a parte o mundanismo, a afir-
m a ç ã o c o l e t i v a d o E u . A s r e i v i n d i c a ç õ e s , os d i r e i t o s
d e classe, s ã o cousas s e c u n d a r i a s , c o n s t i t u e m o f e n ô m e -
n o de d e f e s a a o s t e n t a ç ã o a s t u c i o s a p a r a p r o t e g e r o
t u m u l t o i n t e r n o . A s ideologias s ã o p o n t o s de apoio,
s ã o meios astuciosos de a f i r m a r o E u d o o p r i m i d o , s ã o
o passaporte m e n t a l aceito p o r todos c o m o desculpa
para ostentar a omnipotencia intelectual do h o m e m .
O m e s m o a c o n t e c e c o m a u n i ã o das d i v e r s a s m a s s a s
religiosas ; a idea de r e l i g i ã o é apenas u m a capa, u m a
desculpa astuciosa p a r a esconder o t u m u l t o i n t e r n o ,
o d e s e j o v i o l e n t o d e d o m i n a r , d e se a p r o x i m a r de u m
deus, ser o i g u a l de u m deus. A s pessoas m u i t o r e l i -
giosas, e m m u i t o s casos, s ã o as q u e s o f r e r a m f o r t e r e -
p r e s s ã o n o d o m i n i o social.
A s f o r ç a s desagregadoras e agregadoras que c o m -

p õ e m o instincto gregario s ã o sempre impulsionadas pela
necessidade d e se c o l o c a r e m s e g u r a n ç a , d e e n c o b r i r
u m s e n t i m e n t o de i n f e r i o r i d a d e ; o q u e v e m a ser, a
s a t i s f a ç ã o de e n t r a r e m c o n t a c t o c o m o m u n d o o b j e c t i -
v o e de f o r m a r a f a n t a s i a d o E u . O i n s t i n c t o g r e g a r i o
faz, p o r t a n t o , p a r t e d a defesa n a t u r a l d o h o m e m e é
u m a m a n i f e s t a ç ã o i n e v i t á v e l , pois m e s m o q u a n d o iso-
l a d o dos seus s e m e l h a n t e s o h o m e m c o n c e d e á s c o u s a s
d a n a t u r e z a p r o p r i e d a d e s a n i m i c a s s u f i c i e n t e s p a r a satis-
f a z e r aos seus i m p u l s o s .
O c o n t r a s t e a t r a h e a sua a t e n ç ã o c o m o u m a cousa
e n c a n t a d a e m y s t e r i o s a q u e p r e c i s a ser c o n h e c i d a , t o c a d a
(1) N ã o discuto esses pontos sob quaesquer aspectos socio-

lógicos.
e d e s a r r a n j a d a . E ' o m o d o de p e r c e b e r o m u n d o , e o
m o v i m e n t o c o m o n ó s s o m o s c a p a z de v e r e c o m p r e -
hender.
As religiões tentam induzi-lo a u m a e s t a g n a ç ã o
m e n t a l a m a r r a n d o - o ao seu s e n t i m e n t o e s p e c i f i c o cie
i n s e g u r a n ç a , a i n s e g u r a n ç a d o d r a m a a r c h a i c o q u e re-
d u n d o u n o assassinio d o p a t r i a r c h a . E l e se v ê e n v o l v i d o
p o r u m a p r i s ã o t e o l ó g i c a i n c o m p a t í v e l c o m o seu e s t a d o
geral e v o l u í d o , n u m a r o t i n a q u e n e c e s s a r i a m e n t e per-
t e n c e ao d r a m a a r c h a i c o , e q u e n ã o p o d e r á s u b s i s t i r ,
pois que a crescente i n t e n s i d a d e d a v i d a a n i m i c a recla-
m a r á s e m p r e n o v a s d i r e c t r i z e s p a r a o seu m u n d a n i s m o .
A i d e a g e r a l de u m d e u s f a z c o m q u e a v i d a d o h o m e m
se t o r n e a b s o l u t a m e n t e d e s n e c e s s á r i a , desde q u e o d e u s
traz a illusão da perfeita s e g u r a n ç a .
A n o ç ã o geral de deus pode ter s é r i a s c o n s e q ü ê n -
cias n u m a t e o r i a e s p e c i a l i s a d a e i m m u t a v e l , p o d e r e t a r d a r
o processo m e n t a l e t e m p o r a r i a m e n t e a g r e g a r o h o m e m
a uma uniformidade imbecil.
M i l h õ e s de deuses s ã o n e c e s s á r i o s p a r a saciar a
sede a n i m i c a e d a r ao h o m e m q u e c o m e ç a a n a s c e r u m a
e m o ç ã o i l u s ó r i a de p o t ê n c i a , u m l u g a r f i c t í c i o n o t u r -
b i l h ã o das cousas. A i d e a d e u m c h e f e d a h u m a n i d a d e "
i n f i n i t a m e n t e poderoso n ã o f o i de todo satisfactoria ;
a s e g u r a n ç a dos p o v o s d e p e n d i a do c ó d i g o é t i c o e m o r a l ,
e m a n a d o desse p e r s o n a g e m , p o r i n t e r m é d i o d a p r e c a u -
ç ã o d e f e n s i v a do h o m e m ; m a s a m o r a l do deus fracas-
sou ; p o u c o s a c r e d i t a m n a s u a e f i c i ê n c i a e u m c h e f e
desmoralizado n ã o pode manter-se.
U m a v e z q u e u m c h e f e d e i x a de o f e r e c e r a i l u s ã o
de p o d e r e s e g u r a n ç a ele se t o r n a o d i a v e l c o m o u m i m -
p o s t o r , e e s t a é a s i t u a ç ã o a c t u a l d a i d e a d e deus.
O h o m e m e s t á c o m e ç a n d o a c o m p r e h e n d e r q u e ele
oferece p o u c a o u n e n h u m a s e g u r a n ç a , e é i n s a t i s f a c t o n o
como meta, porque a fantasia do h o m e m j á creou m u i -
E s t ú p i d o s a n a t ó r i o onde padres e m u l h e r e s a d m i n i s -
t r a m as suas u l t i m a s necessidades sexuaes
tas m e t a s a c i m a d a o r g a n i z a ç ã o sexual do v e l h o deus

a n t r o p o m o r f i c o . Desacreditado c o m o chefe, rebaixado
p e l o c h i s t e e p e l a c r i t i c a , o t o d o p o d e r o s o p e r d e o seu
e n c a n t a m e n t o , m o s t r a a s u a a l m a vasia ao escarneo
do m u n d o .
O contacto com o homem sustou o mysterio, desor-

g a n i z o u o d e u s a p e s a r d o g r a n d e e s f o r ç o das r e l i g i õ e s
para conservar o i m p o s t o r e m a t i t u d e sagrada, afas-
t a n d o - o d o h o m e m , cercando-o de respeito e a d o r a ç ã o .
A intensidade da vida animica actual colocou o

velho deus agonisante n u m e s t ú p i d o s a n a t ó r i o onde
p a d r e s e m u l h e r e s a d m i n i s t r a m as suas u l t i m a s neces-
sidades sexuaes. E l e n ã o se l e v a n t a r á m a i s a c i m a desse
s a n a t ó r i o ; d e s f e i t o n o seu p o d e r , ele p e r d e u a c o n f i a n ç a
dos p o v o s , p e r d e u o seu c r e d i t o de c h e f e , n ã o é m a i s
c a p a z d e m a n t e r as m a s s a s e n c a n t a d a s e m seu r e d o r .
Ele é c o m o o d i c t a d o r desmascarado, como o general v e n -
cido. Desfaz-se p o r n ã o conseguir m o s t r a r poder, exlii-
b i r f o r ç a , e l e v a r o E u c o l e c t i v o , e x a l t a r a f a n t a s i a dos
p o v o s . A o s p o u c o s ele se t o r n a p e q u e n o e i n s i g n i f i c a n t e ,
d i m i n u e e q u a s i d e s a p a r e c e , e a b a n d o n a d o ao acaso se
c o n f u n d i r á c o m as m u i t a s b u g i g a n g a s d a n a t u r e z a usa-
das p e l o h o m e m c o m o f e t i c h e s .
Para satisfazer ao instincto gregario do homem

m o d e r n o , d o h o m e m q u e c o m e ç a a n a s c e r c o m as n o v a s
f o r ç a s e c o n ô m i c a s , é preciso a l g u m a cousa mais que
u m m e r o boneco c o m u m c é o f e i t o sob m e d i d a .
E X P E R I Ê N C I A N
* 2
I L L U S T R A D A P E L O A U T O R
t
h VOVJP/*
2 - 6 2 8 6
£NO. Civil?
ARKiTETO
ESCULTOR
DECOf\AT>OR
C R \ S T O V A M COLOMBO 1
S fVÕ "Pr* U í - 0

Flávio de Carvalho - Experiência n.2

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Flávio de Carvalho - Experiência n.2

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REALISADA SOBRE U M A P R O C I S S Ã O DE GORPUS-CHRISTI

UMA POSSÍVEL TEORIA

S À O PAULO -1931 — EDITORES: IRMÃOS FERRAZ

O complexo de omnipotencia 141

Desta edição foram impressos 3.000 volumes nu-

Direitos de reprodução e tradução reservados.

Era dia de Corpus Christi; um sol agradável banha-

crentes. A m i n h a altura, acima do n o r m a l , m e t o r n a v a

olhar do meu, augmentando a m i n h a cota de mons-

cupar c o m a p r i s ã o religiosa, m e encarando resoluta-

M e u estado j á era de a g i t a ç ã o . E u p e r c e b i a clara-

jando me devorar e controlada por u m a e m o ç ã o qual-

e m p u r r a n d o - m e d e n t r o d a realidade. Sentia que sahir

siva, dizemos, d o que esperar pelo a t a q u e d o a d v e r s á r i o .

I a r e c o m e ç a r o m e u discurso, q u a n d o surge u m per-

velocidade a p r o p r i a d a d o m e u recuo. O senhor de preto

E ' c o m o eu s i n t o n o m o m e n t o e m que escrevo ;

d e f o r m a d o r a s ; l . ) perda dos acontecimentos n o mo-

l h o de p a n e l a s luzes f o r t e s . E s p e r a v a encontrar uma

m e n t o m e s m o e m q u e assistia á scena de m i n h a des-

a m b i e n t e que pelo m e u r a c i o c í n i o , pelo m e n o s o m e u

Os detalhes n a delegacia de p o l i c i a s ã o pouco i n -

Tinha-se a impressão de que ser com-

ao c h e f e m o r t o . E ' p r o v á v e l q u e este processo de r e v o l t a

A fase de deificação do chefe corresponde ao pe-

(1) M u d a n ç a entre o estado de patriarchismo para o totemismo

A presença de um reagente provocador e humi-

Como a palavra totemismo vae aparecer com fre-

(1) Annaes do Museu Guimet. "Origens da família e do clan"

Actualmente, a Hespanha atravessa o periodo ini-

A figura de Christo aparece rio scenario das reli-

Evidentemente que um cortejo em movimento,

amigo aspirado p o r o u t r a parte. Podemos a d m i t t i r ,

Agora, se eu fosse um velho, provavelmente seria

F r e u t l , d i s c u t i n d o o assumpto, diz " O heroe era

(1) "Psychologia das massas e analyse do E u " , Freud, Pgs.

camente t u m u l t u o s o protegido por u m grande p a r â m e -

Tal fenômeno era aparentemente visível durante

N o entanto, n ã o m e era p o s s í v e l diferenciar entre

Esta acção reflexa é commum á vida da humani-

(1) O Temperamento Nervoso — Alfredo Adler.

A formula totemismo-feiticismo torna-se assim uma

TOTEMISMO : P deseja ser i g u a l a M p a r a receber D

Se eu fosse uma filha de Maria procurando humi-

parâmetro de C formado por caricias sobre acessórios ou armamentos

O totemismo na mulher procura sempre elevar a

(1) — Estreita de cinema, celebre.

Com relação aos espectadores, o conjuncto da pro-

rebaixa o t o t e m desejado pela r i d i c u l a r i z a ç ã o e regosija-

A assistência desenvolve sempre um parâmetro qual-

parâmetro de A formado por caricias sobre chiste

TOTEMISMO : A deseja ser i g u a l a C p a r a receber D

m u n d o objectivo, ou mesmo ideológico, n ã o somente

Os primeiros protestos dos espectadores na minha

LAÇOS AFECTIVOS = PARES ANTITETICOS

TOTEMISMO P deseja ser i g u a l a E para c o n t u i s t a r D

contra a m i n h a a c t u a ç ã o . O primeiro protesto, como

Deste facto importantíssimo e de outros factos

é o inicio da c o m u n h ã o , e da rivalidade, é o enthusiasmo

A rivalidade proveniente do nivelamento está em

da novidade. A s f o r ç a s afectivas da trilogia orientam

tiche para a l c a n ç a r o poder d o t o t e m - deus e c o m

A experiência e a narrativa mostram que os episó-