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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS


CURSO DE ANTROPOLOGIA
DISCIPLINA DE ANTROPOLOGIA AUDIOVISUAL DA IMAGEM
PROF. CLAUDIA TURRA MAGNI
DISCENTE RENATA AZEVEDO PERES - 17200473

Resenha do texto: PIAULT, Marc-Henri. Real e ficção: onde está o problema? IN: KOURY, Mauro
G. P. Imagem e Memória. Ensaios em Antropologia Visual. Rio de Janeiro: Garamond, 2001. (PP.
151-171).

Antes de pontuar os trechos que considerei importantes no texto, e não


foram poucos, cabe dizer que seria preciso mais de três páginas para pensar a
problemática do real e da ficção se fosse agenciar aqui os paralelos entre psicologia
e antropologia a partir dessa problemática, já que existiriam “n-1” possibilidades1. O
debate entre o real e a ficção é um debate extremamente necessário para qualquer
área do pensamento.

Piault começa o texto fazendo uma reflexão crítica acerca do lugar da


imagem dentro da antropologia, pensando no funcionamento da imagem como
objeto e também nesse lugar de dar objetividade ao relato escrito, e pensando
também como se a imagem fosse uma substituta do local de estudo, como se
pudesse transportar locais. Nos faz pensar também em uma posição ingênua de
quem se coloca apenas como espectador de algo que se passa, como se essa
fosse uma posição possível de captar a “objetividade”.

A imagem vista como representação, ainda é muito forte pois se tem


desconfiança de tudo que vem da ordem ficcional, Piault diz aqui que a tarefa dele é
mostrar que não há como existir imagem sem essa ordem ficcional já que “o
processo imagético é por essência uma disposição do olhar para um certo
conhecimento da mesma maneira que todo trabalho de escrita passa por uma
elaboração ficcional”, o “mise en scéne” trata de elaborar um roteiro para fazer algo
passar, por isso que o processo de criação consiste em perceber de que o modo
como eu construo meu olhar para algo, e como isso fala não do objeto em si, mas
da nossa relação com ele.

Ele passa por exemplos do cinema documentário e etnográficos, colocando


que naquele momento a “objetividade” em que o cinema documentário e
etnográficos se fundam e se fortalecem, é de que esse outro que é mostrado se
torna então um objeto. Pensando assim, esse objeto que é “descoberto” pode ser
transposto sem que se altere sua forma e sua natureza.

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Talvez alguns aspectos fiquem de fora, intencionalmente, a fim de demonstrar os recortes
que faço que mais me interessam dentro do texto.
O uso do cinema, segundo Piault, começava a permear um tempo de
“descobertas e incertezas que não obedeciam as fronteiras estabelecidas” e
buscava assim romper com esses lugares estabelecidos, principalmente com a
literatura, a história, a pintura e o desenho, no caso da descrição de
acontecimentos históricos, onde o cinema mostrava não só o evento como
determinado, mas todas as nuances “imperceptíveis” que deram condições de
possibilidade para o acontecimento.

Aqui Piault destaca a “potencialidade ficcionalizante de um tempo


reconstituído, que abole a fronteira entre realidade e ficção”, já que as produções
fílmicas, pra ele, não expressam mais a realidade do acontecido, mas sim a
construção da realidade autônoma, a invenção da narrativa, e a invenção ficcional.
Aqui nesse ponto, parece interessante pensar que toda invenção, ou processo de
criação é ficcional, pois parte de uma ideia de construir algo e não de se relacionar
com o objeto dado.

Essa parece uma grande virada do pensamento pós-estruturalista, tanto na


antropologia quanto na psicologia, fazer ver as máquinas que constroem algo,
coloca-lás não mais em uma posição de serem excluída em nome de uma
“objetividade”, mas de trazer então a intencionalidade pra dentro, colocando ela
como centro e mostrando não mais a realidade, mas sim as relações que ficam em
evidência; nesse sentido a produção do cinema etnográfico não se baseia em
mostrar a realidade, mas mostrar a ideia que, aquele que construiu a narrativa, tem
do real, as suas relações. Podemos pensar que o cinema etnográfico se encontra
assim, no meio.

Para Piault isso só é possível dentro do cinema etnográfico pela virada da


imagem em deixar de ser um acessório e se transformar em uma linguagem: a
imagem fala, a imagem pensa; e o cineasta se encontra em um espaço dialógico,
onde ele precisa pensar o que vai ser mostrado mais do que o meio em que isso
acontecerá. A questão é da ordem da transferência da significação, formando uma
tríplice interrogação sobre esses sentidos a partir de pontos de vista diversos,
acrescentando uma proposta de antropologia dinâmica que preza por esses
entrecruzamentos de olhares, que formam um espaço permanente de
intercomunicabilidade, formando espaços de diferenciação.

Ele propõe pensar os processos de montagem como dispositivos para criar


“rupturas, fazer emergir reações afetivas produzidas por uma confrontação visível e
sentida com as imagens propostas”, aqui podemos agenciar com o conceito de
Clinamen, utilizado na esquizoanálise como uma contraposição a clínica, ou seja
tanto na proposta de Piault como na Esquizoanálise, a proposta nunca é de
unificação de sentidos, mas de rupturas com essas imagens que carregam afectos e
perceptos (Guattari-Deleuze, 1992), e que operam no sentido de experimentação de
uma posição que nos tire dos limites condicionados, acionando processos de
criação de sentido de si mesmo. A fala na clínica psicológica, é também criação de
imagens vividas e experienciadas, que a todo momento compõem com as múltiplas
imagens do mundo.

A ficção por meio das suas potência de ruptura consegue acessar lugares,
subjetivos, que muitas vezes o real não consegue, quantas vezes a arte e o cinema
mostraram a realidade de uma maneira muito mais tocante do que uma notícia de
um telejornal? Aqui se trata de pensar como que essa ficção e esse real foram
pensados para obter os impactos obtidos.

As imagens, segundo Piault, são ideias e sua organização traduz um


pensamento não do real, mas que essa elaboração, que ele chama de ficção
documental, nos mostra uma construção deliberada e explícita a partir do real
apreendido e interpretado.

Piault fala sobre superar os esquemas de representação situando a imagem


num campo de aproximar ao máximo com a experiência vivida, através de atingir as
“construções vividas, de compreender o estabelecimento das relações interpessoais
e suas diferentes modalidades, de dar prosseguimento à provação de suas
sociabilidades e socialização e as condições de uma construção da pessoa através
de diferentes modos sociais, bem como através das diferentes formações sociais”,
podemos pensar aqui um processo de colocar o cinema etnográfico numa posição
de experimentação através da imagem e não mais numa posição de passividade
entre imagem e espectador.

O trabalho não é mais de descrever a realidade através da imagem, mas de


perceber que o trabalho de uma intencionalidade constante, pensando o mundo, a
partir de Husserl, como um espaço de coexistência. Sair da dicotomia e entrar na
complexidade, e porque não, pensar a linguagem do cinema como um rizoma
(Guattari-Deleuze, 1992 ) formada por várias linhas que se entrecruzam.

Consegue-se então traçar uma linha que nos permite entender que “o que é
construído vem do que é percebido, do que se passa e se exprime ao olhar a à
escuta de uma câmera”, a câmera aqui é mais uma peça que também é mediadora
dessas percepções.

Gosto de pensar com Foucault que existem dispositivos que fazem ver e
falar certos funcionamentos, sob certos regimes de verdades, e com Deleuze que
nos coloca a percepção sempre como subtraindo algo a matéria, e portanto, ela
afasta da realidade tudo aquilo que não me interessa e que não entra em
consonância comigo.

Digo isso por entender que o cinema etnográfico e documental, nos moldes
de sua invenção, não eram os vilões de um plano arquitetado para consumir o outro
como imagem, esse era o projeto da modernidade em todas as áreas de
conhecimento (PIAULT, 1995), mas compreender que o que eles conseguiram fazer
era o possível naquele momento; porém estamos em um outro momento, onde o
giro descolonial e pós estruturalista, nos permitem usá-los como base para
superá-los e produzir novos sentidos e novos mundos através da imagem.

Como nos alerta Piault, quando fala que “Documentar o real é um


empreendimento que não pode esvaziar os meios da ficcionalização. O ato poético
da descoberta, o estabelecimento de relações entre elementos que até então
estavam separados é com efeito o empreendimento ficcional de que nós
reclamamos o uso e o reconhecimento”, precisamos estar atentos e não cair numa
armadilha de pensar que o debate ficção e real nos leva a produção de fake news,
quando é justamente o trabalho de afirmar a ficção, por meio da imagem, na
construção de outras realidades possíveis, na construção de outros mundos.

Agenciamentos utilizados:

DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O que é filosofia? São Paulo: Ed. 34, 1992

PIAULT, Marc Henri. A antropologia e a passagem à imagem. IN: “Cadernos


de Antropologia e Imagem”. n. 1. Rio de Janeiro, UERJ, 1995, pp 23- 30.

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