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O QUE É O MARXISMO?

Notas de iniciação marxista

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Milcíades Peña

O QUE É O MARXISMO?
Notas de iniciação marxista

São Paulo, 2014

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©
2015, Editora José Luís e Rosa Sundermann
A editora autoriza a reprodução de partes deste livro para fins
acadêmicos e/ou de divulgação eletrônica, desde que mencionada a
fonte.

Coordenação Editorial:
Henrique Canary
Jorge Breogan
João Simões
Martha Piloto

Revisão e edição: João Simões


Tradução: Paula Maffei
Diagramação e capa: Martha Piloto
Revisão final: Henrique Canary e João Simões

Dados internacionais de catalogação (CIP) elaborados na fonte


por Iraci Borges – CRB-8 - 2263

Peña, Milcíades
O que é o marxismo? Notas de iniciação marxista. [1. reimpr.]. São Paulo:
Sundermann, 2015.
112 p.

ISBN: 978-85-99156-63-6

1ª edição mimeografada data de 1958.

1.Marxismo - iniciação. 2. Marxismo – conceitos básicos. 3.Curso introdutório


- marxismo I. Título.

CDD: 335.4

1ª edição: setembro de 2014; 1ª reimpressão: maio de 2015.

Editora Sundermann
Avenida Nove de Julho, 925, Bela Vista, São Paulo, SP.
Telefone: 11 – 4304 5801
vendas@editorasundermann.com.br
www.editorasundermann.com.br

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SUMÁRIO

Nota dos editores, 7

Notas de iniciação marxista - I, 13


[O processo de aprendizado], 13
[O processo de conhecimento], 14
[Esquema do curso: concreto, abstrato, concreto], 16
O que é e o que propõe o marxismo?, 18
[A alienação], 21
[A concepção marxista de liberdade], 27
[Conclusão], 31

Notas de iniciação marxista - II, 33


[A alienação nos textos da maturidade de Marx], 33
[Marxismo e filosofia], 41
[A dialética], 43
[O materialismo], 52

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Notas de iniciação marxista – III, 57
[A consciência e a “teoria do reflexo”], 57
[Necessidade do socialismo], 61
[A práxis], 63
[O marxismo, totalidade aberta], 64

Notas de iniciação marxista – IV e V, 67


[Marxismo e ciências sociais], 67
[Marxismo e economicismo], 73
[Concepção materialista das ideologias], 80
[Teoria das classes sociais], 82

Notas de iniciação marxista – VI, 85


[Teoria das classes - continuação], 85
[Sobre a fórmula estrutura/superestrutura], 98

Bibliografia, 103

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NOTA DOS EDITORES

O presente livro busca suprir uma demanda frequente-


mente manifestada por nossos leitores: a de bons materiais
de introdução ao marxismo. Das obras hoje disponíveis ao
público brasileiro, a maior parte peca por apresentar o pen-
samento de Marx ou de forma excessivamente acadêmica,
portanto sem conexão com a realidade concreta dos traba-
lhadores e jovens que despertam para as lutas sociais e se in-
teressam pelos ideais socialistas, ou por reduzir o marxismo
a um mero aglomerado de conceitos, de maneira mecânica,
linear, simplista e antidialética. A riqueza deste trabalho de
Milcíades Peña vem justamente da preocupação do autor em
apresentar o marxismo de maneira ampla e aberta, como
uma visão de mundo, sem deformá-lo no esforço de simpli-
ficação. Para que o socialismo científico possa ser uma arma
nas mãos dos trabalhadores na luta por sua libertação, é pre-
ciso que ele seja encarado como uma teoria viva, uma ciên-
cia aberta, que permita compreender a sociedade capitalista
em todas as suas contradições.

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8 Milcíades Peña

Esta importante tarefa, de escrever uma apresentação do


marxismo que una a simplicidade na forma e a profundidade
no conteúdo, é, na verdade, bastante difícil. Para realizá-la,
foi necessário um autor com grande domínio da teoria, mas
também de raro talento como escritor e professor, além de
uma sólida experiência prática revolucionária.
Infelizmente, Milcíades Peña permanece um autor quase
desconhecido no Brasil. Esta obra, datada de 1958, é fruto
das anotações mimeografadas de um curso introdutório ao
marxismo, aplicado por ele a militantes de uma pequena or-
ganização argentina chamada MAR (Movimiento de Acción
Reformista). Apesar da juventude do autor, que então tinha
apenas 25 anos, a solidez de seu marxismo já é evidente.
Em sua apresentação do pensamento de Marx, Milcíades
Peña vai recusar a noção que vê a teoria marxista como uma
caixa cheia de respostas prontas para os problemas da luta
de classes. Para ele, esta concepção é a própria negação da
dialética e do marxismo. Mas tampouco o marxismo é “ape-
nas uma teoria” ou mais um método sociológico. É “uma
concepção geral e total do homem e do universo”. E, insepa-
rável desta visão de mundo, o marxismo traz consigo uma
crítica do capitalismo e um programa para a criação de uma
nova sociedade. No marxismo, o programa de transforma-
ção e a concepção de homem e de universo são inseparáveis.
Para o autor, o marxismo é portanto uma totalidade aberta,
ou seja, uma visão global de mundo, em permanente aper-
feiçoamento e alteração.
Junto com o mecanicismo do “marxismo de manuais”,
Milcíades Peña recusa também o determinismo economi-
cista, que, durante boa parte do século 20, o stalinismo pre-
tendeu apresentar como sendo o único marxismo possível.
Neste livro veremos como Peña tem grande cuidado em
evitar simplificações redutoras da complexa síntese entre as

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determinações econômicas, sociais e culturais da realidade.


Ao recolocar no centro das preocupações do marxismo a
questão da alienação e da consciência (recusando sua lei-
tura como mera derivação da economia), o autor vai recu-
perar a centralidade do conceito de liberdade para o mar-
xismo. Um marxismo que não seja vivo e em permanente
desenvolvimento não serve para a luta pela transformação
da sociedade. Um marxismo engessado e estagnado nunca
vai servir para compreender e desvendar uma realidade so-
cial extremamente dinâmica e contraditória, e menos ainda
para transformá-la.
Milcíades Peña foi um homem de trajetória singular e um
dos grandes historiadores argentinos. Nascido em 1933 na
cidade de La Plata em uma família problemática (sua mãe,
esquizofrênica, foi internada logo após seu nascimento), foi
criado pela tia materna e seu marido, funcionário público de
uma universidade. Durante os estudos secundários (que nun-
ca concluiu), entrou em contato com o movimento trotskista,
se aproximando da corrente dirigida por Nahuel Moreno (na
época, o Grupo Obrero Marxista, ainda um embrião de parti-
do). Nunca cursou a universidade, mas aos 17 anos começou
por conta própria a estudar a história argentina. Se aplicou
a fundo sobre o tema, com o fervor de quem via na história
uma arma de combate, e apesar de seu isolamento (o mundo
acadêmico, sempre hermético, fez o que pôde para ignorá-lo),
logo se destacou pela originalidade de seu pensamento e esti-
lo. Destes estudos sairiam diversos escritos que, postumamen-
te, foram organizados em nove livros, quantidade impressio-
nante se levarmos em conta a curta duração de sua vida.
Em seus trabalhos sobre a história da Argentina, Milcíades
Peña põe seu estilo agudo, por vezes irônico, veloz, a serviço
de uma cuidadosa análise marxista da história de seu país,
buscando entender as particularidades da organização social

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e econômica da Argentina desde suas origens coloniais até sua


inserção na economia mundial do século 20. A análise das
especificidades da história argentina não serve aqui para fazer
nenhum discurso excepcionalista, mas, ao contrário, para
entender a localização precisa e as relações estabelecidas entre
esta parte do mundo e a totalidade da sociedade capitalista.
Através da relação entre economia nacional e mundial, entre
os interesses das diversas classes e seus setores nas condições
locais, Peña busca compreender o sentido mais profundo da
vida política argentina, das mudanças de governos, crises
e reviravoltas. É através de uma profunda compreensão
da dinâmica da economia argentina e da composição de
suas classes sociais que ele vai propor uma das melhores
interpretações do peronismo, um movimento altamente
contraditório, mas central para a vida política argentina.
Precoce na elaboração de sua obra histórica e em sua
formação marxista, infelizmente foi também cedo demais que
Milcíades Peña nos deixou. Afastado da militância partidária,
desmoralizado com a situação política de seu país e se sentindo
deprimido, se suicidou em 1965, aos 32 anos. Vítima das
angústias de uma geração profundamente marcada por essa
era de guerras e revoluções e pelo poder destrutivo do capital,
seguiu reivindicando o trotskismo e a organização onde
começou a militar até o final de sua vida, mesmo tendo tido
diversas e por vezes duras polêmicas com Nahuel Moreno e
com os herdeiros do GOM (o grupo ao redor do jornal Palabra
Obrera). Apesar de nunca ter participado do mundo acadêmico,
sua obra chegou a ter um relativo reconhecimento em círculos
acadêmicos e políticos dentro e fora da Argentina, e é ainda
hoje um marco na historiografia daquele país, por seu aporte
original e lúcido à compreensão da realidade nacional.
Baseamos o presente trabalho em uma edição crítica pu-
blicada pelo Colectivo Editorial “Ultimo Recurso” em 2007, na

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Argentina. Também desta edição, adotamos as subdivisões


(apresentadas entre colchetes), que não constam do manus-
crito original, mas facilitam o estudo temático. Optamos por
substituir as traduções de Milcíades das obras citadas por tra-
duções consagradas e de fácil acesso em língua portuguesa
(salvo quando a obra em questão não foi publicada em nossa
língua), para facilitar a consulta por aqueles interessados em
aprofundar seus estudos.
Apresentamos ao público brasileiro pela primeira vez em
português estas anotações de introdução ao marxismo, na
esperança de que sirvam de ponto de partida e de apoio às
novas gerações que se agregam à luta revolucionária.

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NOTAS DE INICIAÇÃO MARXISTA I

[O processo de aprendizado]
O marxismo recusa a concepção tradicional do ensino
como um processo em que uma pessoa ativa ensina e muitas
pessoas passivas aprendem. Esta concepção, que se baseia na
divisão entre teoria e prática, entre o trabalho manual e o traba-
lho intelectual, deve ser trocada por uma que vê o ensino como
um processo criador, no qual todo o grupo - o que ensina e os
que aprendem - trabalham ativamente, confrontando seus co-
nhecimentos e suas ideias, e, através deste confronto, aquele que
aprende consegue partilhar de um novo conhecimento e o que
ensina aprofunda seus conhecimentos.
Engels disse a seus alunos: “a primeira coisa que devem
aprender aqui é a estar de pé”. Quer dizer, em tensão, alertas e
em atividade, em atitude criadora. “Se o aprender se limitasse
simplesmente a receber, não daria resultado muito melhor que
escrever em água”. Aquele que estuda algo deve recriar esse algo
dentro de si mesmo. Não é questão de receber algumas noções
de marxismo. É preciso investigar o marxismo, enfrentá-lo, pe-

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netrar intensamente na matéria que se requer aprender e dei-


xar que essa matéria penetre profundamente no intelecto e na
emoção daquele que aprende. Caso contrário, não é possível a
aprendizagem.
Só se aprende através da investigação. De modo que nossa
tarefa será investigarmos juntos o marxismo. Juntos teremos
que descobrir e redescobrir o marxismo, começando por sua
essência, que é o mais difícil de se captar, e fugindo das vulga-
rizações e simplificações de estilo de alguns manuais, como o
chamado Manual de Filosofia de Politzer, que se parecem tanto
com o marxismo quanto uma folha seca se parece com uma
rosa recém-colhida.
[O processo de conhecimento]
Há algumas fórmulas básicas e elementares do marxismo,
tais como a luta de classes, a importância da estrutura econô-
mica da sociedade, o materialismo etc., que foram as mais po-
pularizadas pelos divulgadores e vulgarizadores do marxismo,
que escreveram manuais para uso das grandes massas. Estas
fórmulas, que não são nada mais que elementos do pensamento
marxista, parecem à primeira vista oferecer explicações maravi-
lhosamente simples e finais para os problemas mais complexos.
E claro, as mentalidades semi-intelectualizadas se agarram com
unhas e dentes a essas fórmulas, que lhes permitem a explica-
ção de todos os problemas, isto é - eles assim o creem - sem
nenhum esforço mental. Infelizmente, o movimento revolucio-
nário, assim como todos os grandes movimentos de massa e os
grandes aparatos burocráticos da classe operária estão cercados
por inúmeros semi-intelectuais, operários e pequenos burgue-
ses semi-intelectualizados que tomam o marxismo como meio
que substitua o trabalho de pensar e dê resposta a todos os pro-
blemas. Para estas pessoas o marxismo é uma espécie de má-
quina de calcular: aperta-se o botão e sai uma resposta para o

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problema a ser solucionado. Pois bem, o marxismo não é isso, e


isso é a negação do marxismo. Pois o marxismo exige um sério
e intenso esforço do pensamento. Labriola disse:

Os doutrinadores e teóricos de todo tipo, que necessitam de ídolos in-


telectuais, os criadores de sistemas que continuariam bons por toda a
eternidade, os compiladores de manuais e enciclopédias, buscarão em
vão no marxismo pelo que este nunca ofereceu a ninguém. Estas pessoas
imaginam o pensamento e o conhecimento como coisas que têm existên-
cia material, mas não entendem que o pensamento e o conhecimento são
atividades em processo de construção1.

O pensamento popular - disse Hegel - acredita que o verdadei-


ro e o falso são entidades imóveis, coisas com existência própria,
uma das quais se alcança do lado de lá, e outra do lado de cá, cada
uma delas isolada e fixa, sem contato com a outra. Este também
é o modo de pensar do marxismo popular, do marxismo dos bu-
rocratas, que querem converter o pensamento marxista em um
dicionário onde está classificado tudo o que é verdadeiro e tudo o
que é falso, tudo o que se deve conhecer e tudo o que não se deve
conhecer. Frente a isto, o pensamento dialético, o autêntico pen-
samento marxista, afirma com Hegel que: “a verdade não é uma
moeda forjada que pode ser dada e embolsada banalmente”2.
A verdade se alcança por esforço contínuo do pensamento,
e se alcança através do erro, do permanente confronto entre a
verdade e o erro. O marxismo não é uma moeda cunhada que
se toma e se dá. O marxismo é o pensamento vivo e vívido, que
está em permanente confronto com a realidade e consigo mes-
mo, se afirmando e negando a si mesmo a cada instante para
poder afirmar-se novamente em um nível superior.
O marxismo é implacável consigo mesmo porque o mar-
xismo vai contra os mitos e a falsidade, contra a mistificação.
1 LABRIOLA, Antonio, Discorrendo di socialismo e di filosofia em Scritti fi-
losofici e politici, vol. II, Turim, Einaudi, 1973, capítulo II.
2 HEGEL, Georg, Fenomenologia do espírito, Petrópolis, Vozes, 1992, p. 41.

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O marxismo quer tirar os disfarces, impor a clareza. Disse


Lukács: “Para o proletariado a verdade é uma arma portadora
da vitória e o é tanto mais quanto mais audaciosa for”3.
Tudo o que afirmamos até então nos leva a tomar em con-
sideração o seguinte: aqui não vamos dar nem tomar o mar-
xismo em pílulas. Mas sim, conheceremos as linhas funda-
mentais do marxismo, para depois investigá-lo, cada qual com
seu pensamento.
Além disso, levemos em consideração que esta sala, este
grupo de pessoas do qual fazemos parte, constitui um sistema
social que reflete a sociedade na qual vivemos.
A sociedade, suas diferenças de classes, suas facções mate-
riais e ideológicas, estão já aqui neste grupo, dentre nós, nos
conhecimentos, nos hábitos, na personalidade que cada um
carrega ao cruzar esta porta. E a sociedade também está neste
pequeno sistema social constituído pelo nosso grupo porque
desde o momento em que nos reunimos para estudar o mar-
xismo, todos estamos assumindo um conceito a respeito de
cada um dos demais: estamos tendo e iremos ter diferenças
e agrupamentos, simpatias e antipatias, prestígios e falta de
prestígio. Isto é, todas as categorias da sociedade e dos con-
flitos existentes na sociedade estão já representados em nosso
grupo, como em todo grupo de trabalho. E nós, diferente-
mente do que ocorre no ensino tradicional, que finge ignorar
estes problemas, temos que estar conscientes disso, torná-lo
explícito, e aproveitar as tensões e conflitos que surgem para
tornar mais penetrante e mais profundo o nosso estudo do
marxismo.
[Esquema do curso: concreto, abstrato, concreto]
Entendo que o objetivo a que nos propomos, tomar os fios
condutores fundamentais do pensamento marxista, que de-
3 LUKÁCS, Georg, História e consciência de classe, São Paulo, Martins Fontes,
2003, p. 171.

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pois nos permitirão uma investigação pessoal do marxismo,


pode ser alcançado em oito reuniões básicas4.
Na primeira, trataremos de responder a esta pergunta: o
que é e o que propõe o marxismo? Esta é a pergunta chave
com a qual se deve iniciar e encerrar todo estudo do marxis-
mo. Dentro de alguns instantes vamos enfrentar esta pergun-
ta. E em nossa última reunião vamos discutir novamente so-
bre “o que é e o que propõe o marxismo”, porém em um nível
mais elevado, mais rico em conteúdo.
Assim sendo, partimos de um enfoque sintético e concre-
to do marxismo, que teremos hoje, até um enfoque analíti-
co abstrato, ou seja, considerando não só a totalidade, mas
elementos isolados que obteremos nas próximas reuniões. E
finalmente, voltaremos a realizar um informe sintético e con-
creto, porém muito mais concreto que o obtido hoje, porque
teremos à nossa disposição, então, um conteúdo mais rico:
teremos o conhecimento conceitual e o conhecimento inter-
pessoal que iremos obtendo em nossas sucessivas reuniões.
A sequência dos problemas que estudaremos nas próxi-
mas reuniões está estabelecida pela seguinte consideração:
existem três categorias (ou seja, três pontos de vista) para
se estudar a realidade ­que são básicas para a compreensão
do marxismo. Estas categorias são: a natureza; o trabalho; a
sociedade.
A natureza é a realidade fundamental de onde provém a
vida em geral, a vida do homem em particular e os elementos
básicos para a perpetuação desta vida.
A sociedade é a realidade propriamente humana, inse-
parável do homem, porque jamais existiu o homem como
indivíduo isolado, e ao dizer homem, implicamos socie-
dade.
4 Das oito aulas originais, só foram preservadas as anotações das seis aqui
publicadas (N. do E.).

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O trabalho é a atividade criadora mediante a qual o ho-


mem, isto é, a sociedade, atua sobre a natureza, modificando o
próprio homem e a sociedade.
Pois bem, a concepção das relações entre sociedade, natu-
reza e trabalho é o abecê da filosofia marxista, e a este assunto
nos dedicaremos na próxima reunião.
A concepção marxista da relação entre trabalho e socie-
dade, e da relação da sociedade consigo mesma é o tema do
que podemos denominar sociologia marxista, e a veremos na
terceira reunião.
O problema da evolução da sociedade no tempo é a te-
mática da concepção marxista da história e será estudado na
quarta reunião.
Dessa crítica da sociedade capitalista se desprendeu um
prognóstico marxista sobre a evolução do capitalismo e sobre
a nova sociedade que nasceria da sociedade capitalista. E se
desprendeu também uma política marxista que tende a des-
truir a sociedade capitalista. O problema do prognóstico mar-
xista, isto é, a teoria do socialismo, será visto na sexta reunião.
E o problema da política marxista será estudado na sétima.
Finalmente, na última reunião veremos quais são os proble-
mas atuais, os novos problemas e os novos enfoques para os velhos
problemas com que se enfrenta hoje em dia o marxismo. E assim
responderemos novamente, porém dispondo de novos elementos,
à pergunta que vamos enfrentar pela primeira vez agora mesmo.
O que é e o que propõe o marxismo?
O marxismo é uma concepção geral e total do homem e
do universo. Em função dessa concepção de mundo, é uma
crítica da sociedade em que nasceu o marxismo, isto é, uma
crítica da sociedade capitalista.
Em função dessa crítica, e como resultado dessa crítica da
sociedade capitalista, o marxismo é uma política, é um pro-

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O que é o marxismo? 19

grama de ação para a transformação revolucionária da socie-


dade, para a criação de uma nova sociedade, isto é, para a cria-
ção de um novo tipo de relação entre os homens.
Em geral, para o público, inclusive para o público que
supõe ser marxista, o marxismo é apenas uma crítica da so-
ciedade capitalista e um programa de luta pelo socialismo.
Contudo, na realidade, estas são apenas partes do marxismo,
e partes subordinadas à concepção marxista do homem, que é
a essência e o ponto de partida do marxismo - lógica e crono-
logicamente. Por isso, para responder à pergunta feita acima,
é preciso começar, imprescindivelmente, pela parte essencial e
menos conhecida - mais oculta, poderia ser dito - do marxis-
mo, que é a concepção marxista do homem.
O marxismo afirma que não há nada na terra e seus ar-
redores superior ao próprio homem. O único criador que o
marxismo reconhece é o homem. O homem, que com seu
trabalho cria um novo mundo, modifica a natureza e a si
mesmo. O marxismo rejeita o conceito de Deus e de qual-
quer força extra ou sobre-humana colocada acima do ho-
mem e que o domine, seja ela chamada de Deus, ou história,
ou destino, ou Espírito Santo5. O marxismo afirma que todo
o poder que as religiões atribuem aos deuses não é mais que
poder humano que o homem, por diversas circunstâncias,
projetou fora de si mesmo e atribui a seres ou coisas exis-
tentes fora dele6. O marxismo crê que o paraíso e o inferno
5 “A história”, segundo Marx, “não faz nada, não possui riqueza alguma, nem
empreende nenhuma luta. O homem real e vívido é quem faz, possui e luta.
Não é a história que emprega o homem como meio para desfrutar de seus fins,
a história não é nada mais que a atividade do homem que persegue seus fins”.
O homem é o autor e o ator de sua história. Em outra parte Marx assinala tam-
bém: “Toda a pretensa história do mundo não é outra coisa senão a produção
do homem obtida pelo trabalho humano, e por conseguinte, o surgimento da
natureza por obra do homem” (N. do A.).
6 O marxismo quer reivindicar para o homem, como propriedade do homem,
“os tesouros antes desperdiçados no céu” (Hegel) (N. do A.).

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não estão fora do mundo, mas aqui na terra, e que o cria-


dor e o senhor do paraíso e do inferno é o homem, que os
cria com seu trabalho7. O marxismo não crê que a história
se deterá um dia, que virá um dilúvio e então a humanidade
se precipitará em um inferno eternamente cheio de torturas
ou em um paraíso onde não haverá problemas de nenhuma
natureza.
O marxismo crê que sempre haverá problemas, lutas e con-
flitos, porém o marxismo é profundamente otimista, porque crê
que o homem é capaz de produzir um destino cada vez mais
humano, isto é, um destino no qual o homem não explore ou-
tro homem, no qual o homem possa utilizar o máximo de sua
capacidade criadora, não para lutar contra outros homens para
se alimentar e vestir, mas sim criar uma vida mais cheia de con-
forto e beleza, de solidariedade e de liberdade, isto é, uma vida
propriamente mais humana. Sendo assim, o marxismo fixa so-
bre a terra o futuro venturoso que as religiões preveem para o
céu. Ao futuro sem exploração e lutas entre as pessoas que as
religiões prometem para o céu, após a morte, o marxismo loca-
liza mais próximo, aqui na terra, e não como produto da morte,
mas como produto da vida criadora do homem.
O marxismo é profundamente otimista, e somente esta
característica basta para torná-lo irredutivelmente inimigo
de toda forma de religião. No entanto, atenção! O otimismo
revolucionário do marxismo não tem relação alguma com
o “progressivismo”. Esta doutrina crê que as contradições se
resolvem por si mesmas ao longo do tempo. Lukács vai criti-
car a concepção “que via na técnica o princípio objetivamente
motor e decisivo do desenvolvimento das forças produtivas.
7 O marxismo nega o além e por consequência afirma a capacidade criadora
deste mundo. O marxismo nega uma vida melhor no céu, pois crê no seguinte:
a vida deve e tem que melhorar na terra. O futuro melhor, que é para as religiões
o objeto de uma fé ociosa no que virá após a morte, se transforma com o marx-
ismo no objeto do dever, da atividade humana (N. do A.).

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[...] Evidentemente, isso conduz a um fatalismo histórico, à


eliminação do homem e da práxis social”8.
A confiança cega no ilimitado progresso do “campo da URSS
e do socialismo”, por exemplo, é a réplica pseudomarxista da
confiança que tinham os liberais spencerianos9 do século pas-
sado na paz perpétua e no mundo de fraternidade livre-cam-
bista que se alcançaria pelo comércio universal. O marxismo
tem otimismo e confia no porvir. Mas seu otimismo não é o
otimismo cego e complacente do “progressivismo”. O marxismo
sabe que a categoria de perigo é essencial, é parte integrante e
fundamental de todo processo de avanço e desenvolvimento, e
também do processo de desenvolvimento da humanidade. E,
por isso, o marxismo sabe que o término desse processo pode
ser catastrófico, e que as maiores possibilidades de se criar um
melhor destino humano são incessantemente acompanhadas
pelas mais tremendas possibilidades de se voltar atrás e anular
todo o futuro da humanidade. E o único que tem a chave para
a troca, para indicar o caminho que será tomado é o homem, e
somente a vontade ativa e consciente do homem decidirá, por
exemplo, se construiremos um novo mundo com o átomo, ou se
­destruiremos o mundo também com o átomo.
[A alienação]
As religiões pregam que os sofrimentos do homem, a ex-
ploração do ser humano por outro ser humano, existem por-
que o homem é homem e só poderão deixar de existir quando
este morrer. Por isso falam da salvação do homem postmor-
tem, no além. O marxismo, pelo contrário, afirma que o sofri-
mento humano e a exploração do ser humano existem porque
8 LUKÁCS, Georg, História e consciência de classe. op. cit., p. 41.
9 Spencerianos são os seguidores das ideias do filósofo inglês Herbert Spencer
(1820-1903). Filósofo de tendência positivista e liberal clássico, foi o fundador
do “darwinismo social”, que pretendia aplicar mecanicamente a teoria de Dar-
win às sociedades humanas (N. do E.).

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o homem não é plenamente homem, porque se alienou, e só


deixarão de existir quando o homem se tornar plenamente
homem e se desalienar. Por isso, o marxismo fala não de sal-
vação no além, mas sim do resgate do homem, do reencontro
do homem com suas novas qualidades.
Utilizamos as palavras alienação e desalienação. Estas duas
palavras sintetizam os conceitos fundamentais do marxismo.
O conceito de alienação e de luta pela desalienação são a es-
sência, o coração do pensamento marxista.
Alienação quer dizer que o homem está dominado por
coisas que ele mesmo criou. Alienação quer dizer que o ho-
mem projetou para fora de si partes de si mesmo, que partes
dele próprio se transformaram em coisas, e que essas coisas
dominam o homem10. Desalienação quer dizer que o homem
põe sob seu controle essas coisas que o oprimem e que são
partes dele mesmo, produtos de seu trabalho. Desalienação
quer dizer que, ao dominar essas partes de si mesmo que se
converteram em coisas que hoje o oprimem, o homem se
reencontra consigo mesmo, resgata a si próprio.
Como se produz a alienação do homem?
Desde que o homem existe, está ligado a três realidades que
se vinculam intensamente entre si; elas são: o trabalho, a produ-
ção de novas necessidades e a família.
10 A alienação é o definido por Heine na Inglaterra: “onde as máquinas se com-
portam como seres humanos e os homens como as máquinas”. Diz Marx: “A
ação conjunta dos indivíduos cria mil forças produtivas. Mas, uma vez criadas,
estas forças deixam de pertencer aos seus criadores, tornam-se hostis a eles e os
tiranizam”. “Assim como na religião o homem é dominado pelo produto de sua
própria cabeça, na produção capitalista ele o é pelo produto de suas próprias
mãos” (O Capital, livro I).
“[Os preços das mercadorias] variam constantemente, independentemente
da vontade, da previsão e da ação daqueles que realizam a troca. Seu próprio
movimento social possui, para eles, a forma de um movimento de coisas, sob
cujo controle se encontram, em vez de eles as controlarem” (O Capital, livro
I) (N. do A.).

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O que é o marxismo? 23

O trabalho é a soma de todos os esforços, antes de tudo


práticos, e depois também teóricos, que o homem tem que
realizar para poder sustentar sua vida em geral. A produção de
novas necessidades é produto do trabalho realizado para sa-
tisfazer as necessidades primárias, porque para satisfazer uma
necessidade, o homem cria um instrumento, e este por sua vez
origina uma nova necessidade, e assim por diante.
Todavia, os homens não só trabalham para satisfazer suas
necessidades elementares, não só criam novas necessidades,
mas também fazem outros homens, isto é, se reproduzem. En-
tra-se assim na relação entre homem e mulher, entre pais e
filhos, ou seja, na família.
Pois bem, nestas três realidades - trabalho, produção de
necessidades novas e produção de homens, isto é família - es-
tão dados todos os elementos que originam a alienação do ho-
mem ao longo da história até nossos dias.
Pelo trabalho, nascem objetos que possuem uma espécie de
existência independente a respeito de seu criador, que é o ho-
mem. Nas sociedades primitivas, onde o produtor consome seus
próprios produtos, a independência do objeto se esgota rapida-
mente, no momento em que seu criador os consome. Mas quan-
do começou a produção de mercadorias, sobretudo na sociedade
capitalista, os objetos, convertidos em mercadorias, escapam ao
controle do produtor - que já não os consome, adquirem inde-
pendência e dominam o homem através da lei do valor, do di-
nheiro, do preço e demais categorias e leis econômicas.
Por outro lado, tanto a produção de objetos como a produ-
ção de outros homens só podem ser feitas pela cooperação de
indivíduos distintos. Desta cooperação, surge uma rede de rela-
ções sociais e de instituições que vão aumentando em extensão
e complexidade e terminam por dominar o homem, dando-lhe
a aparência de serem coisas naturais, tão distantes de seu
controle como os astros ou os outros planetas.

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24 Milcíades Peña

No que diz respeito à produção dos outros homens, existe


uma situação que cada vez se desenvolve mais, à medida que
aumenta o domínio da humanidade sobre a natureza. Trata-se
da divisão do trabalho. Homem e mulher têm distintas fun-
ções no trabalho da reprodução, e esta é a primeira divisão de
trabalho conhecida pelo homem. Mas depois surgem novas
divisões. Surge a tremenda divisão entre o trabalho manual e
o trabalho intelectual. E surge a possibilidade - e logo a reali-
dade - de que uma parte da humanidade se converta em bene-
ficiária do trabalho da outra parte. Surge a possibilidade para
alguns homens de apropriar-se do produto do trabalho alheio.
E com a divisão do trabalho começa o desenvolvimento
unilateral do homem. Desde o começo da divisão do trabalho
cada um tem uma função determinada e exclusiva que lhe é
imposta e da qual não se pode sair. O homem já não é mais
primordialmente homem: é, antes de tudo, operário, campo-
nês, burguês ou artesão, e tem que continuar sendo assim se
não quiser perder o seu meio de subsistência.
A divisão do trabalho, o trabalho produtivo e a produção
de novas necessidades se desenvolvem através da história. E
com eles crescem os objetos produzidos pelo homem, mas
que o homem não domina; crescem as instituições criadas
pelo homem, mas que o homem não domina. O homem se
aliena no que diz respeito às suas obras, às coisas que ele
criou, isto é, estas lhe parecem como objetos estranhos re-
gidos por leis próprias que são impostas mesmo contra sua
vontade. E, finalmente, ao se dividir a sociedade em classes,
o homem se aliena de si mesmo e se produz a alienação entre
o homem e o homem. Isto é, assim como os produtos de seu
trabalho lhe dão “coisas” cujo controle lhe escapa, o homem
começa a utilizar outro homem como um meio ou um ins-
trumento, como uma coisa para a satisfação de suas próprias
necessidades.

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O que é o marxismo? 25

O homem se converte em coisa, em mercadoria que outros


homens compram para seus fins. E tudo o que o homem tra-
balhador produz já não só lhe parece como uma coisa estra-
nha que ele não domina. Agora esse produto de seu trabalho
se converte em um poder estranho, no poder de outra classe,
de outros homens que se encontram sobre ele.
E, desde então, ao ficar alienado, o homem torna alie-
nado seu trabalho. Já não só os produtos de seu trabalho
parecem, ante o homem, coisas e poderes estranhos. Agora
é seu próprio trabalho que lhe parece estranho, externo. O
homem já não trabalha porque trabalhar é a essência hu-
mana e somente no trabalho ele se realiza. Agora o homem
alienado trabalha para viver. Isto é, o trabalho já não é a
condição e o pressuposto superior de vida, mas simples-
mente um meio, um instrumento, não para realizar a vida,
mas para poder satisfazer as mais importantes necessidades
biológicas.
Este é o panorama geral ­- num passar de olhos - do que
o marxismo chama de alienação do homem, e que podemos
resumir em uns poucos pontos. A alienação se revela em
que:
• Os produtos do trabalho do homem têm existência in-
dependente; o mundo das coisas criadas pelo homem se
move independentemente da vontade humana;
• As relações sociais entre os homens aparecem como
coisas que escapam também ao controle do homem e
parecem ser regidas por leis próprias, quase “naturais”;
• O homem já não existe como homem, mas sim como
homem parcial: como trabalhador ou lojista, como inte-
lectual ou pedreiro, como parte de homem, nunca como
totalidade humana;

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26 Milcíades Peña

• O próprio homem se converte em coisa, em instrumento


que outros homens utilizam para seus próprios fins;
• E por fim... o próprio trabalho se separa do homem e se
converte em coisa. Já não é a realização da capacidade cria-
dora do homem, mas uma coisa, um meio para satisfazer
suas necessidades.
E em que consiste a alienação do trabalho?
Segundo Marx, consiste em que:

Primeiro, que o trabalho é externo ao trabalhador, isto é, não pertence ao


seu ser, que ele não se afirma, portanto, em seu trabalho, mas nega-se nele,
que não se sente bem, mas infeliz, que não desenvolve nenhuma energia
física e espiritual livre, mas mortifica sua physis e arruina o seu espírito.
O trabalhador só se sente, por conseguinte e em primeiro lugar, junto a si
[quando] fora do trabalho e fora de si [quando] no trabalho. Está em casa
quando não trabalha e, quando trabalha, não está em casa. O seu trabalho
não é portanto voluntário, mas forçado, trabalho obrigatório. O trabalho
não é, por isso, a satisfação de uma carência, mas somente um meio para
satisfazer necessidades fora dele. Sua estranheza evidencia-se aqui [de
forma] tão pura que, tão logo inexista coerção física ou outra qualquer,
foge-se do trabalho como de uma peste. O trabalho externo, o trabalho no
qual o homem se exterioriza, é um trabalho de auto-sacrifício, de mortifi-
cação. […] Sem dúvida. O trabalho produz maravilhas para os ricos, mas
produz privação para o trabalhador. Produz palácios, mas cavernas para o
trabalhador. Produz beleza, mas deformação para o trabalhador. Substitui
o trabalho por máquinas, mas lança uma parte dos trabalhadores de volta
a um trabalho bárbaro e faz da outra parte máquinas. Produz espírito,
mas produz imbecilidade, cretinismo para o trabalhador11.

Isto disse Marx em 1844. Pois bem, em nossos dias os me-


lhores sociólogos norte-americanos estão, por via empírica,
chegando às mesmas conclusões e redescobrem o problema da
alienação do homem12.
11 MARX, Karl, Manuscritos econômico-filosóficos, São Paulo, Boitempo,
2004, pp. 83; 82 (na ordem de aparição).
12 CHINOY, Eli, Auto­mobile Workers and the American Dream, Nova Iorque,

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O que é o marxismo? 27

[A concepção marxista de liberdade]


Propondo-se chegar às massas mais atrasadas, e precisamen-
te para poder chegar a estas massas, o marxismo se simplificou,
se vulgarizou. Pagou um preço tremendo, pois se desnaturalizou
e perdeu sua riqueza, chegou a ser confundido com uma sim-
ples interpretação econômica da história, ou com um simples
programa de melhorias para a classe trabalhadora. A isto foi re-
duzido.
E então, os aparatos burocráticos que se erigiram sobre a
classe operária e que adotaram o marxismo como um instru-
mento para a justificação de sua política, ajudaram com todo seu
poderio material a manter as noções vulgares do marxismo e a
ocultar a essência do marxismo, isto é, a luta contra a alienação,
a luta para desalienar o homem. Claro, os aparatos burocráticos
têm que ocultar isso, porque revelar isto equivale à sua própria
liquidação. Se o marxismo fosse só lutar por melhorias econô-
micas, ou pela reorganização da economia, os aparatos burocrá-
ticos não correriam nenhum perigo, e até poderiam apresentar-
se como camadas executoras do marxismo. Mas se o marxismo
é - e efetivamente o é - a luta permanente contra a alienação, isto
é, contra todas as potências materiais e místicas que oprimem o
homem, então os aparatos burocráticos estão absolutamente con-
denados e não há convivência possível entre eles e o marxismo.
Explica-se, assim, que no chamado Dicionário Filosófico
Marxista de M. Rosenthal e P. Yudin, o conceito de alienação
não apareça de nenhuma forma, nem explícita ou implicita-
mente, nem direta ou indiretamente.
Em um texto de 1842, Marx escreveu que “a liberdade é a
essência do homem”. Lefebvre retomou esta citação esquecida
e afirma com profunda razão que “o marxismo nasce de uma
1955. WALKER, Charles, The man on the Assembly Line, Massachussetts,
1952. MILLS, C. Wright, Las clases medias en Norte América, Madrid, 1957
(N. do A.).

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28 Milcíades Peña

aspiração fundamental para a liberdade, de uma exigência im-


paciente, do desejo de um florescimento”13.
Um crítico stalinista o reprova, dizendo que com isto Lefe-
bvre quer fundamentar o marxismo “não sobre o materialismo
e a ciência, mas sobre uma exigência moral ...”. Na realidade, o
conceito de desalienação, de liberdade do homem, é a essência
do marxismo, tendo Lefebvre razão.
Em 1857, enquanto prepara O Capital, Marx escreve um
trabalho sobre economia política que foi publicado em Mos-
cou em 1939. Nesse trabalho, Marx disse que até então a his-
tória registrara dois tipos de sociedade: uma na qual existem
relações pessoais de dependência; outra, como o capitalismo,
na qual existe a independência pessoal fundada na depen-
dência material. A próxima etapa, o socialismo, será aquela,
segundo Marx, na qual existirá “a livre individualidade fun-
dada sobre o desenvolvimento universal dos indivíduos e a
subordinação de sua produtividade coletiva, social, como seu
poder social”14.
Desta forma, a missão da sociedade socialista é inaugurar
o reino da individualidade humana livre sobre a Terra. Disse
Marx:

O reflexo religioso do mundo real só pode desaparecer quando as relações


cotidianas da vida prática se apresentam diariamente para os próprios ho-
mens como relações transparentes e racionais que eles estabelecem entre
si e com a natureza. A figura do processo social de vida, isto é, do processo
material de produção, só se livra de seu místico véu de névoa quando,
como produto de homens livremente socializados, encontra-se sob seu
controle consciente e planejado15.

13 LEFEBVRE, Henri, Problèmes actuels du marxisme. Paris, PUF, 1958.


14 MARX, Karl, Grundrisse: Manuscritos econômicos de 1857-1858. Esboços
da crítica da crítica da economia política, São Paulo, Boitempo, 2011, p. 106.
15 MARX, Karl, O Capital: crítica da economia política – Livro I, São Paulo,
Boitempo Editorial, 2013, p. 154.

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O que é o marxismo? 29

Observe-se: homens livremente associados. Por sua vez,


Engels afirma no Anti-Dühring:

Cessa a luta pela existência individual e, assim, em certo sentido, o


Homem sai definitivamente do reino animal e se sobrepõe às con-
dições animais de existência, para submeter-se a condições de vida
verdadeiramente humanas. As condições que cercam o homem e até
agora o dominam colocam-se, a partir desse instante, sob seu domí-
nio e seu comando e o homem, ao tornar-se dono e senhor de suas
próprias relações sociais, converte-se pela primeira vez em senhor
consciente e efetivo da natureza. As leis de sua própria atividade
social, que até agora se erguiam frente ao homem como leis naturais,
como poderes estranhos que o submetiam a seu império, são ago-
ra aplicadas por ele com pleno conhecimento de causa e, portanto,
submetidas a seu poderio. A própria existência social do homem,
que até aqui era enfrentada como algo imposto pela natureza e a
história, é de agora em diante obra livre sua. Os poderes objetivos e
estranhos que até aqui vinham imperando na História colocam-se
sob o controle do próprio homem. Só a partir de então ele começa
a traçar a sua história com plena consciência do que faz. E só daí
em diante as causas sociais postas em ação por ele começam a pro-
duzir, predominantemente, e cada vez em maior medida, os efeitos
desejados. É o salto da humanidade do reino da necessidade para o
reino da liberdade16.

O governo das pessoas é substituído pela administração das


coisas e pela direção do processo de produção17.

E Lenin diz que:

Mas, em nossa aspiração ao socialismo, temos a convicção de que ele


tomará a forma do comunismo e que, em consequência, desaparecerá
16 ENGELS, Friedrich, Do socialismo utópico ao socialismo científico, São Pau-
lo, Editora Sundermann, 2008, 2ª edição, pp. 122-123. Na edição existente em
português do Anti-Dühring (Editora Paz e Terra, 1979) esses capítulos finais,
por vezes publicados em separado, foram omitidos.
17 LENIN, Vladimir, O Estado e a Revolução, São Paulo, Expressão Popular,
2010, 2ª edição, p. 36.

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30 Milcíades Peña

toda necessidade de recorrer à violência contra os homens, à submissão


de um homem a outro, de uma parte da população sobre a outra18.

Só na sociedade comunista, quando a resistência dos capi-


talistas estiver perfeitamente quebrada, quando os capitalistas
tiverem desaparecido e já não houver classes [...] só então é que
“o Estado deixará de existir e se poderá falar de liberdade”19.
Como se vê, os clássicos marxistas insistem decisivamen-
te que a liberdade do homem é a aspiração fundamental do
marxismo.
O marxismo quer homens plenamente humanos, homens
livres de coisas e fetiches opressores. Melhorar o nível de vida é
um passo absolutamente necessário, e o primeiro passo em dire-
ção a esta liberação do homem, mas é apenas o primeiro passo.
O marxismo compreende que a produção da vida material
e a satisfação das necessidades são atividades naturais indis-
pensáveis. Comer, beber e procriar são funções autenticamen-
te humanas. Mas, segundo Marx, nelas não se revela o que
especificamente há de humano no homem. Porque também
o animal come e se reproduz. De modo que se as satisfações
materiais são separadas do resto da atividade humana, e con-
vertidas em propósito único e último, então essas funções são
próprias do animal e não têm em si nada de humano.
Por isso, acrescenta Marx, enquanto existir um regime social
no qual comer, beber e se reproduzir apareçam para o homem
como os propósitos exclusivos de seus desejos, enquanto isto
ocorrer, o homem será pouco superior a um animal e estará
verdadeiramente distante de alcançar seu verdadeiro estado
humano.
Uma violenta elevação do salário (abstraindo de todas as outras dificul-
dades, abstraindo que, como uma anomalia, ela também só seria man-
18 Ibid., p. 101.
19 Ibid., p. 109.

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O que é o marxismo? 31

tida com violência) nada seria além de um melhor assalariamento do


escravo e não teria conquistado nem ao trabalhador nem ao trabalho a
sua dignidade e determinação humanas20.

Isto em 1844. Em O Capital, Marx disse que “à medida que


o capital é acumulado, a situação do trabalhador, seja sua re-
muneração alta ou baixa, tem de piorar”21.
O marxismo não é simplesmente materialismo, ainda que
o ignore o crítico stalinista de Lefebvre. O marxismo nega que
o homem seja produto direto das circunstâncias e do meio. O
marxismo reivindica a autonomia criadora do homem. Tanto
a burocracia dos partidos da II Internacional social-demo-
crata como a burocracia soviética praticavam e praticam esta
redução do marxismo a um materialismo de fácil acesso. Este
é o conceito das burocracias porque reduz a nada a iniciativa
criadora do homem, e portanto eleva aos céus o conservado-
rismo dos aparatos burocráticos, caracterizados por seu apego
e submissão total às circunstâncias, rejeitando a luta para mo-
dificar as circunstâncias.
Marx explicou tudo isto muito nitidamente nas Teses sobre
Feuerbach (Tese 3):

A doutrina materialista da transformação das circunstâncias e da edu-


cação esquece que as circunstâncias têm de ser transformadas pelos
homens, e que o próprio educador tem que ser educado. Ela tem, por
isso, de dividir a sociedade em duas partes – a primeira das quais está
colocada acima da sociedade22.

[Conclusão]
Pois bem, o que então é o marxismo, o que pretende?
O marxismo é, como já dito, uma concepção de mundo, é

20 MARX, Karl, Manuscritos econômico-filosóficos, op. cit., p. 88.


21 MARX, Karl, O Capital, op. cit., pp. 720-721.
22 MARX, Karl, ENGELS, Friedrich, A Ideologia Alemã, São Paulo, Boitempo,
2007, p. 533.

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32 Milcíades Peña

uma critica à sociedade capitalista e um programa de luta para


transformá-la.
E como chave destes três aspectos do marxismo, como ob-
jetivo único e decisivo do marxismo, está a luta para desalie-
nar o homem, a aspiração de resgatar a plenitude humana do
homem.
No marxismo, todas as outras questões são apenas meios
para este fim. O desenvolvimen­to material das forças produ-
tivas e a elevação do nível de vida são importantes porque
constituem a base material para a desalienação do homem. A
liquidação do capitalismo é fundamental, pois constitui, por
sua vez, a condição básica para um maior desenvolvimento
das forças produtivas. A ascensão da classe operária ao poder
é imprescindível, pois constitui o requisito básico para a liqui-
dação do capitalismo. Tudo isto é fundamental e é importante,
como também o são os satélites, as grandes centrais hidrelé-
tricas, os tratores etc. Mas para o marxismo esses são meios e
nada mais. Pois o que o marxismo quer - a essência do mar-
xismo - é um novo tipo de relação entre os homens, na qual
os homens não sejam dominados por coisas nem fetiches; na
qual o homem seja o senhor absoluto, dono soberano de suas
faculdades e seus produtos, e não escravo da mercadoria e do
dinheiro, da propriedade e do capital, do Estado e da divisão
do trabalho.

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NOTAS DE INICIAÇÃO MARXISTA II

Analisamos os questionários recolhidos na reunião anterior.


Desta pequena amostra, percebe-se que embora este grupo te-
nha, em sua totalidade, uma ideia geral correta do marxismo,
cada um de seus integrantes, individualmente, tem apenas uma
visão parcial e, portanto, deformada do marxismo. É preciso so-
mar-se as respostas individuais para nos aproximarmos do que
é realmente o marxismo.
[A alienação nos textos da maturidade de Marx]
A respeito da alienação, problema sobre o qual tanto
discutimos na reunião passada, assinalamos o seguinte:
a alienação também se revela no fato de que o indivíduo
pertencente a uma sociedade capitalista não possui uma
personalidade integrada: sua personalidade é um conjunto de
facetas - pois ele é uma pessoa ao tratar com seus superiores
no trabalho e outra ao tratar seus subordinados; é uma pessoa
quando está no cabeleireiro e outra quando se encontra em
uma reunião social. O indivíduo é um querido pai de família
durante a noite e um perfeito burguês durante o dia. Ou seja,

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34 Milcíades Peña

toda a série de contradições e aberrações que Charles Chaplin


descreveu perfeitamente no filme Monsieur Verdoux no qual
um homem respeitável, querido pai de família, sustentava-se
explorando e assassinando mulheres.
Outro aspecto da alienação é assinalado por Marx nos se-
guintes termos:

O homem se torna cada vez mais pobre enquanto homem, carece cada
vez mais de dinheiro para se apoderar do ser hostil, e o poder de seu di-
nheiro cai precisamente na relação inversa da massa de produção, ou seja,
cresce sua penúria à medida que aumenta o poder do dinheiro. A carência
de dinheiro é, por isso, a verdadeira carência produzida pela economia
nacional [a economia política – N. do E.] e a única carência que ela pro-
duz. A quantidade de dinheiro se torna cada vez mais seu único atributo
poderoso [do homem]. [...] A imoderação e o descomedimento tornam-
se a sua verdadeira medida... Em parte, este estranhamento [alienação] se
mostra na medida em que produz, por um lado, o refinamento das carên-
cias e dos seus meios; por outro, a degradação brutal, a completa simpli-
cidade rude abstrata da carência. […] Mesmo a carência de ar livre deixa
de ser, para o trabalhador, carência; o homem retorna à caverna, que está
agora, porém, infectada pelo mefítico [ar] pestilento da civilização, e que
ele apenas habita muito precariamente, como um poder estranho que dia-
riamente se lhe subtrai, do qual ele pode ser diariamente expulso, se não
pagar. Tem de pagar esta casa mortuária.[...] A imundície, esta corrupção,
apodrecimento do homem, o fluxo de esgoto (isto compreendido à risca)
da civilização torna-se para ele um elemento vital. […] [Isto quer dizer]
não apenas que o homem deixa de ter quaisquer carências humanas, [mas
que] mesmo as carências animais desaparecem. […] O selvagem, o ani-
mal, ainda têm a carência da caça, do movimento etc., da socialidade23.

Apenas na teoria da alienação encontramos o motivo da in-


sistência marxista em ver no proletariado a raiz da emancipa-
ção humana. Como explica Marx,
A classe possuinte e a classe do proletariado representam a mesma autoa-
lienação humana. Mas, a primeira das classes se sente bem e aprovada nes-
sa autoalienação, sabe que a alienação é o seu próprio poder e nela possui
23 MARX, Karl, Manuscritos econômico-filosóficos, op. cit., pp. 139-141.

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O que é o marxismo? 35

a aparência de uma existência humana; a segunda, por sua vez, sente-se


aniquilada nessa alienação, vislumbra nela sua impotência e a realidade de
uma existência desumana. […] Em seu movimento econômico-político, a
propriedade privada se impulsiona a si mesma, em todo caso, à sua própria
dissolução […], enquanto engendra o proletariado enquanto proletariado,
enquanto engendra a miséria consciente de sua miséria espiritual e física,
enquanto engendra a desumanização consciente – e portanto suprassun-
sora24 - de sua própria desumanização. Se os escritores socialistas atri-
buem ao proletariado esse papel histórico-mundial, isso não acontece, de
nenhuma maneira […] pelo fato de eles terem os proletários na condição
de deuses. Muito pelo contrário. Porque a abstração de toda humanidade,
até mesmo da aparência de humanidade, praticamente já é completa en-
tre o proletariado instruído; porque nas condições de vida do proletariado
estão resumidas as condições de vida da sociedade de hoje, agudizadas do
modo mais desumano; porque o homem se perdeu a si mesmo no prole-
tariado, mas ao mesmo tempo ganhou com isso não apenas a consciência
teórica dessa perda, como também, sob a ação de uma penúria absoluta-
mente imperiosa - a expressão prática da necessidade -, que já não pode
mais ser evitada nem embelezada, foi obrigado à revolta contra essas de-
sumanidades; por causa disso o proletariado pode e deve libertar-se a si
mesmo. Mas ele não pode libertar-se a si mesmo sem suprassumir suas
próprias condições de vida. Ele não pode suprassumir suas próprias con-
dições de vida sem suprassumir todas as condições de vida desumana da
sociedade atual, que se resumem em sua própria situação25.

Por outro lado, sem compreender a teoria da alienação, não


se pode entender o pensamento econômico de Marx, porque
todo O Capital não é mais do que um desmascaramento da alie-
nação humana tal qual aparece escondida nas categorias e leis
econômicas da sociedade capitalista.

A economia nacional parte do fato dado e acabado da propriedade priva-


da. Não nos explica o mesmo.[...] Nós partimos de um fato nacional-eco-

24 Suprassunção é uma das traduções possíveis do termo alemão aufheben,


palavra que tem, ao mesmo tempo, o sentido de superação, incorporação e
destruição (N. do E.).
25 MARX, Karl, ENGELS, Friedrich, A sagrada família, São Paulo, Boitempo,
2011, pp. 48-49.

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36 Milcíades Peña

nômico, presente. O trabalhador se torna tanto mais pobre quanto mais


riqueza produz, quanto mais a sua produção aumenta em poder e exten-
são. O trabalhador se torna uma mercadoria tão mais barata quanto mais
mercadorias cria. Com a valorização do mundo das coisas aumenta em
proporção direta a desvalorização do mundo dos homens. […] Este fato
nada mais exprime, senão: o objeto que o trabalho produz, o seu produto,
se lhe defronta como um ser estranho, como um poder independente do
produtor. […] A vida que ele concedeu ao objeto se lhe defronta hostil e
estranha. […] A economia nacional oculta o estranhamento na essência
do trabalho porque não considera a relação imediata entre o trabalhador
(o trabalho) e a produção26.

Na reunião anterior houve aqui certas dúvidas e sorrisos cé-


ticos sobre o caráter marxista da teoria da alienação. Pois bem,
como já dissemos, a teoria da alienação não é uma ideia da juven-
tude de Marx, que ele depois deixou de lado. A teoria da aliena-
ção impregna todo o pensamento de Marx, todo o tempo.
Em O Manifesto Comunista, Marx afirmou:

Estes trabalhadores, que são obrigados a se vender diariamente, se compor-


tam como uma mercadoria, como qualquer outro objeto de comércio. Eles
estão consequentemente expostos a todas as mudanças da competição, a
todas as flutuações do mercado.
Devido ao uso extensivo da maquinaria e à divisão do trabalho, a ativida-
de dos proletários perdeu todo o seu caráter independente, e consequen-
temente, todo o encanto para o trabalhador. Ele torna-se um apêndice da
máquina e exige-se dele apenas a operação mais simples, mais monótona
e mais fácil de aprender. […] Assim, à medida que o caráter enfadonho
do trabalho aumenta, o salário decresce. […] Massas de operários, amon-
toados na fábrica, são organizados como soldados. Como soldados indus-
triais, eles são postos sob o comando de uma perfeita hierarquia de oficiais
e sargentos. Eles não são apenas escravos da classe burguesa, e do Estado
burguês. Diariamente e a cada hora, eles são escravizados pela máquina,
pelo supervisor, e acima de tudo, pelo próprio manufatureiro burguês indi-
vidual. Quanto mais abertamente este despotismo proclama o ganho como
seu fim e objetivo, mais mesquinho, odioso e amargo ele se torna27.

26 MARX, Karl, Manuscritos econômico-filosóficos, op. cit., pp. 79-82.


27 MARX, Karl, ENGELS, Friedrich, Manifesto do Partido Comunista, São

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O que é o marxismo? 37

Isto em 1848; em 1856 Marx disse:

Achamo-nos na presença de um grande fato, característico deste nosso


século 19, um feito que nenhum partido se atreve a negar. Por um lado
despertaram para a vida algumas forças industriais e científicas de cuja
existência nenhuma das épocas históricas precedentes poderia sequer
suspeitar. Por outro lado, existem alguns sintomas de decadência que su-
peram de muito os horrores que registra a história dos últimos tempos do
Império Romano. Hoje em dia, tudo parece levar em seu seio a sua pró-
pria contradição. Vemos que as máquinas dotadas da propriedade mara-
vilhosa de reduzir e tornar mais frutífero o trabalho humano provocam
a fome e o esgotamento do trabalhador. As fontes de riqueza recém-des-
cobertas se convertem, por artes de um estranho malefício, em fontes de
privações. Os triunfos da arte parecem adquiridos ao custo de qualidades
morais. O domínio do homem sobre a natureza é cada vez maior; mas,
ao mesmo tempo, o homem parece se tornar escravo de outros homens
ou de sua própria infâmia. Mesmo a pura luz da ciência parece só poder
brilhar sobre o fundo tenebroso da ignorância. Todas as nossas inven-
ções e progressos parecem dotar de vida intelectual as forças materiais,
enquanto reduzem a vida humana ao nível de uma força material bruta28.

É a mesma linguagem dos Manuscritos econômico-filosóficos


de 1844, onde se formula a teoria da alienação.
Finalmente, é em O Capital, obra que coroa o pensamen-
to marxista, escrito não na juventude mas na maturidade de
Marx, que sai à luz em 1867, 23 anos depois dos Manuscritos
econômico-filosóficos, que encontramos uma crítica detalhada
à alienação e o incentivo à desalienação do homem, motor do
pensamento marxista. Vejamos:

O caráter misterioso da forma-mercadoria consiste, portanto, simples-


mente no fato de que ela reflete aos homens os caracteres sociais de seu
próprio trabalho como caracteres objetivos dos próprios produtos do tra-
balho, como propriedades sociais que são naturais a essas coisas e, por
isso, reflete também a relação social dos produtores com o trabalho total
Paulo, Editora Sundermann, 2008, 2ª edição, pp. 46-47.
28 MARX, Karl, ENGELS, Friedrich, Textos escolhidos, v. 3, São Paulo, Alfa-
omega, 1980, p. 298

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38 Milcíades Peña

como uma relação social entre os objetos, existente à margem dos pro-
dutores. [...] É apenas uma relação social determinada entre os próprios
homens que aqui assume, para eles, a forma fantasmagórica de uma re-
lação entre coisas. Desse modo, para encontrarmos uma analogia, temos
de nos refugiar na região nebulosa do mundo religioso. Aqui, os produtos
do cérebro humano parecem dotados de vida própria, como figuras inde-
pendentes que travam relação umas com as outras e com os homens. […]
Estas [grandezas de valor das mercadorias] variam constantemente, inde-
pendentemente da vontade, da previsão e da ação daqueles que realizam
a troca. Seu próprio movimento social possui, para eles, a forma de um
movimento de coisas, sob cujo controle se encontram, em vez de eles as
controlarem.[...] O reflexo religioso do mundo real só pode desaparecer
quando as relações cotidianas da vida prática se apresentam diariamente
para os próprios homens como relações transparentes e racionais que eles
estabelecem entre si e com a natureza. A figura do processo social de vida,
isto é, do processo material de produção, só se livra de seu místico véu de
névoa quando, como produto de homens livremente socializados, encon-
tra-se sob seu controle consciente e planejado29.

Desde já, é evidente que o trabalhador, durante toda sua vida, não é se-
não força de trabalho, razão pela qual todo o seu tempo disponível é, por
natureza e por direito, tempo de trabalho, que pertence, portanto, à auto-
valorização do capital. Tempo para a formação humana, para o desenvol-
vimento intelectual, para o cumprimento de funções sociais, para relações
sociais, para o livre jogo das forças vitais físicas e intelectuais, mesmo o
tempo livre do domingo [...] é pura futilidade30!

Os meios de produção convertem-se imediatamente em meios para a suc-


ção de trabalho alheio. Não é mais o trabalhador que emprega os meios
de produção, mas os meios de produção que empregam o trabalhador31.

A divisão manufatureira do trabalho supõe a autoridade incondicional


do capitalista sobre homens que constituem meras engrenagens de um
mecanismo total que a ele pertence; […] a mesma consciência burguesa
que festeja a divisão manufatureira do trabalho, a anexação vitalícia do
trabalhador a uma operação detalhista e a subordinação incondicional

29 MARX, Karl, O Capital, op. cit., pp. 147; 150; 154.


30 Ibid., p. 337.
31 Ibid., p. 382.

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O que é o marxismo? 39

dos trabalhadores parciais ao capital como uma organização do trabalho que


aumenta a força produtiva denuncia com o mesmo alarde todo e qualquer
controle e regulação social consciente do processo social de produção como
um ataque aos invioláveis direitos de propriedade, liberdade e à “genialida-
de” autodeterminante do capitalista individual. É muito característico que
os mais entusiasmados apologistas do sistema fabril não saibam dizer nada
mais ofensivo contra toda organização geral do trabalho social além de que
ela transformaria a sociedade inteira numa fábrica32.

[A manufatura] aleija o trabalhador, converte-o numa aberração, promo-


vendo artificialmente sua habilidade detalhista por meio da repressão de
um mundo de impulsos e capacidades produtivas, do mesmo modo como,
nos Estados de La Plata [a Argentina], um animal inteiro é abatido apenas
para a retirada da pele ou do sebo. Não só os trabalhos parciais específicos
são distribuídos entre os diversos indivíduos, como o próprio indivíduo
é dividido e transformado no motor automático de um trabalho parcial,
conferindo assim realidade à fábula absurda de Menênio Agripa, que re-
33
presenta um ser humano como mero fragmento de seu próprio corpo .

Os conhecimentos, a compreensão e a vontade que o camponês ou arte-


são independente desenvolve, ainda que em pequena escala, assim como
aqueles desenvolvidos pelo selvagem, que exercita toda a arte da guer-
ra como astúcia pessoal, passam agora a ser exigidos apenas pela ofici-
na em sua totalidade. As potências intelectuais da produção, ampliando
sua escala por um lado, desaparecem por muitos outros lados. O que os
trabalhadores parciais perdem concentra-se defronte a eles no capital. É
um produto da divisão manufatureira do trabalho opor-lhes as potências
intelectuais do processo material de produção como propriedade alheia e
como poder que os domina. Esse processo de cisão começa na cooperação
simples, em que o capitalista representa diante dos trabalhadores indivi-
duais a unidade e a vontade do corpo social de trabalho. Ele se desenvolve
na manufatura, que mutila o trabalhador, fazendo dele um trabalhador
parcial, e se consuma na grande indústria, que separa do trabalho a ciên-
cia como potência autônoma de produção e a obriga a servir ao capital.
Na manufatura, o enriquecimento do trabalhador coletivo e, por con-
seguinte, do capital em sua força produtiva social é condicionado pelo
empobrecimento do trabalhador em suas forças produtivas individuais34.
32 Ibid., p. 430.
33 Ibid., p. 434.
34 Ibid., p. 435.

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40 Milcíades Peña

Da especialidade vitalícia em manusear uma ferramenta parcial surge a es-


pecialidade vitalícia em servir a uma máquina parcial. Abusa-se da maqui-
naria para transformar o trabalhador, desde a tenra infância, em peça de
uma máquina parcial. […] Na manufatura e no artesanato, o trabalhador
se serve da ferramenta; na fábrica, ele serve à máquina. Lá, o movimen-
to do meio de trabalho parte dele; aqui, ao contrário, é ele quem tem de
acompanhar o movimento. Na manufatura, os trabalhadores constituem
membros de um mecanismo vivo. Na fábrica, tem-se um mecanismo mor-
to, independente deles e ao qual são incorporados como apêndices vivos.
[...]
Enquanto o trabalho em máquinas agride ao extremo o sistema nervoso, ele
reprime o jogo multilateral dos músculos e consome todas as suas energias
físicas e espirituais. Mesmo a facilitação do trabalho se torna um meio de
tortura, pois a máquina não livra o trabalhador do trabalho, mas seu traba-
lho de conteúdo. Toda produção capitalista, por ser não apenas processo de
trabalho, mas, ao mesmo tempo, processo de valorização do capital, tem em
comum o fato de que não é o trabalhador quem emprega as condições de
trabalho, mas, ao contrário, são estas últimas que empregam o trabalhador;
porém, apenas com a maquinaria essa inversão adquire uma realidade tec-
nicamente tangível. Transformado num autômato, o próprio meio de traba-
lho se confronta, durante o processo de trabalho, com o trabalhador como
capital, como trabalho morto a dominar e sugar a força de trabalho viva.
A cisão entre as potências intelectuais do processo de produção e o traba-
lho manual, assim como a transformação daquelas em potências do capital
sobre o trabalho, consuma-se, como já indicado anteriormente, na grande
indústria, erguida sobre a base da maquinaria. A habilidade detalhista do
operador de máquinas individual, esvaziado, desaparece como coisa dimi-
nuta e secundária perante a ciência, perante as enormes potências da na-
tureza e do trabalho social massivo que estão incorporadas no sistema da
maquinaria e constituem, com este último, o poder do “patrão”35. [...]

Assim como a reprodução simples reproduz continuamente a própria


relação capitalista - capitalistas de um lado, assalariados de outro - a re-
produção em escala ampliada, ou seja, a acumulação, reproduz a relação
capitalista em escala ampliada - de um lado, mais capitalistas, ou capi-
talistas maiores; de outro, mais assalariados. A reprodução da força de
trabalho, que tem incessantemente de se incorporar ao capital como meio
de valorização, que não pode desligar-se dele e cuja submissão ao capital
só é velada pela mudança dos capitalistas individuais aos quais se vende,
35 Ibid., pp. 494-495.

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O que é o marxismo? 41

constitui, na realidade, um momento da reprodução do próprio capital.


[…] Sob as condições de acumulação até aqui supostas como as mais fa-
voráveis aos trabalhadores, a relação de subordinação destes ao capital
aparece sob formas toleráveis ou, como diz Eden, “tranquilas e liberais”.
Ao invés de se tornar mais intensa com o crescimento do capital, essa
relação de dependência torna-se apenas mais extensa, quer dizer, a esfera
de exploração e dominação do capital não faz mais do que ampliar-se
juntamente com as próprias dimensões desse capital e com o número de
seus súditos. Do próprio mais-produto crescente desses súditos, crescen-
temente transformado em capital adicional, reflui para eles uma parcela
maior sob a forma de meios de pagamento, de modo que podem ampliar
o âmbito de seus desfrutes, guarnecer melhor seu fundo de consumo de
vestuário, mobília etc. e formar um pequeno fundo de reserva em dinhei-
ro. Mas assim como a melhoria de vestuário, alimentação, tratamento e
um pecúlio maior não suprimem a relação de dependência e a exploração
do escravo, tampouco suprimem as do assalariado. O aumento do preço
do trabalho, que decorre da acumulação do capital, significa apenas que,
na realidade, o tamanho e o peso dos grilhões de ouro que o trabalhador
forjou para si mesmo permitem tomá-las menos constringentes. […] Por-
tanto, as condições de sua venda, sejam elas favoráveis ao trabalhador em
maior ou menor medida, incluem a necessidade de sua contínua revenda
e a constante reprodução ampliada da riqueza como capital36.

[Marxismo e filosofia]
Vale a pena estudar a filosofia marxista - o que significa
estudar toda a filosofia, antes e depois de Marx? Uma anedota
pode nos orientar: Lenin começou a ler a Ciência da Lógica de
Hegel logo após o começo da 1ª Guerra Mundial, entre setem-
bro e dezembro de 1914. É que Lenin era um homem de ação,
mas não de ação sem verdade. Para ele - ­e para o marxismo - a
ação não se opõe ao pensamento; a ação exige o pensamento.
Para o marxismo, a prática política é uma prática consciente.
E para o marxismo, a prática não significa apenas adaptar-se
ao existente, mas sim ter habilidade técnica para atuar sobre
o existente. Para o marxismo, prática significa conhecimento
profundo da realidade e ação plenamente consciente, ou seja,
baseada no conhecimento.
36 Ibid., pp. 690; 694-695.

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42 Milcíades Peña

Por outro lado, sem compreender o pensamento filosófico,


particularmente sem compreender a filosofia de Hegel, é im-
possível compreender Marx. Com toda a razão disse Lenin em
seus comentários sobre a Ciência da Lógica de Hegel:
Não se pode compreender plenamente O Capital de Marx, e particular-
mente o seu primeiro capítulo, sem ter estudado e compreendido toda a
Lógica de Hegel. Portanto, meio século depois de Marx, nenhum marxista
o compreendeu!37

Na linguagem popular falamos de “ser filosófico com as coi-


sas”. Com isto queremos dizer que se deve encarar as coisas com
paciência. Mas nesta frase vulgar há um núcleo de verdade que
nos ajuda a entender o que é a filosofia. Pois ao dizer que “há
que ser filosófico com as coisas” ou encará-las “filosoficamente”,
fazemos um convite à reflexão, a empregar a própria capacidade
racional para entender os problemas. E a filosofia é precisamen-
te isso: enfrentar-se de uma maneira reflexiva com a realidade,
incluindo nela o próprio pensamento; ir mais além dos primei-
ros dados obtidos e extrair deles todas as implicações, todas as
fases, todos os momentos e as relações que neles estão contidos.
Nós vamos encarar agora alguns problemas e teses fundamen-
tais da filosofia marxista.
Ao fim desta reunião ninguém vai sair daqui “sabendo” fi-
losofia marxista. Mas todos sairão sabendo, em termos gerais,
que a filosofia marxista enfrenta tais e quais problemas, que os
aborda de tal e qual modo, e que, para conhecer esse tema em
profundidade, é indispensável ler as obras fundamentais do
marxismo. Estas obras são, creio eu, A ideologia alemã de Marx
e Engels, Lógica formal e lógica dialética de Henri Lefebvre,
as Teses sobre Feuerbach de Marx e Filosofia e Socialismo de
Antonio Labriola. E creio que há que lê-las nesta ordem, para
37 LENIN, Vladimir, Cadernos sobre a dialética de Hegel, Rio de Janeiro,
UFRJ, 2011, p. 157

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O que é o marxismo? 43

captar com clareza o que é a filosofia marxista (bem entendido


que se trata de um plano básico).
[A dialética]
Vamos encarar agora o problema da dialética. A dialética
é um enfoque que trata de captar toda a realidade exatamente
como é, e ao mesmo tempo como deveria ser, de acordo com
o que ela mesma contém como potência. A dialética significa
conhecer as coisas concretamente, com todas as suas caracte-
rísticas, e não como entes abstratos, vazios, reduzidos a uma ou
duas características. Por isso, a dialética significa ver as coisas
em movimento, ou seja, como processos; por isso a dialética
desvela e estuda a contradição que há no seio de toda unidade,
e a unidade à qual tende toda contradição.
O pensamento formal comum, que tem seu coroamento na ló-
gica formal, tende a despojar da realidade a sua imensa riqueza de
conteúdo, de sua infinita complexidade, e reduz tudo a esquemas
e fórmulas vazias de conteúdo. Por isso a lógica formal diz: “Toda
coisa é igual a si mesma” e diz também que “uma coisa é, ou não
é”. Assim, se poupa o trabalho de ter em conta que na realidade
viva todas as coisas ao mesmo tempo são e não são, posto que
em tudo há movimento; e toda coisa é igual a si mesma, mas por
vezes é diferente de si mesma, porque em seu seio há diferenças, e
ao haver diferenças, há o germe das contradições. Levar em conta
essa realidade; não renunciar a seu conhecimento nem falsear seu
conhecimento, esquecendo a riqueza de conteúdo do real, con-
tentando-se em conhecer partes isoladas e dissociadas de todas
menos uma ou duas características; ao contrário, penetrar a fundo
na realidade, captá-la tal como é, com sua infinita complexidade,
com sua inesgotável riqueza de conteúdo - isso é dialética.
No tempo que dispomos para nossos trabalhos não pode-
remos estudar a dialética. Para isto – ou antes, para uma intro-
dução ao estudo da dialética – necessitaríamos pelo menos da

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44 Milcíades Peña

mesma quantidade de reuniões como as que dedicaremos ao


estudo de todo o marxismo. Mas o que é importante é deixar
claro o seguinte:
A realidade é maravilhosa e infinitamente rica em complexi-
dade, em contradições, em movimento. Há dois enfoques para
conhecê-la;
• Um enfoque mais elementar, mais simples: o enfoque do
pensamento comum. Esse enfoque diz: a realidade é excessi-
vamente complexa; não posso captá-la tal como é, pois desse
modo não entenderia nada. Para entendê-la tenho que to-
mar as coisas uma de cada vez, separando-as, colocando-as
uma ao lado da outra, evitando que se misturem ou mudem
de lugar, ou que se transformem. Esse pensamento, que é
abstrato, ou seja, que separa, que reparte o que na realidade
está unido, é o pensamento formal abstrato.
• Ao contrário, há um enfoque que tenta captar a realida-
de como ela é: rica, contraditória, móvel. Este enfoque não
se conforma em entender a realidade em partes e esvaziada
de conteúdo; ao contrário, exige apreender a realidade com
tudo aquilo que ela tem. Esse enfoque é, precisamente, o
pensamento dialético.
Com isto, fica dito que a dialética não se reduz de modo
algum à série de leis que os manuais apresentam como dialé-
tica: a transformação da quantidade em qualidade, a unidade
dos contrários etc. Estas são apenas algumas das partes da
dialética, que é a lógica, e nada além de partes. Colocá-las em
separado do conjunto, como receitas a serem aplicadas à rea-
lidade, é o mais antidialético que se pode conceber. Somente
adentramos no terreno da dialética quando nos esforçamos
em entender quando, onde e em que condições uma quanti-
dade se transforma em uma qualidade, ou um polo se trans-

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O que é o marxismo? 45

forma em seu oposto etc. Ou seja, só entramos no terreno da


dialética quando nos esforçamos por captar a realidade viva,
em sua totalidade, com seu movimento, suas contradições e
suas mutações.
Nas sociedades primitivas o homem pensava concretamen-
te. Para o homem primitivo, em cada elemento da realidade se
encontram o uno e o múltiplo, o quietismo e o movimento, a
identidade e a diferença. O homem primitivo pensava dialetica-
mente porque pensava em concreto, ou seja, via as coisas como
totalidades, no conjunto, com toda a riqueza de seu conteúdo.
Por isso a linguagem do homem primitivo pinta e descreve a
realidade em toda a sua riqueza: o primitivo não diz “isto” em
abstrato, diz “isto que toco”, “isto que está muito perto”, “isto
que está de pé” ou “isto que está ao alcance da minha visão”. O
primitivo não entende coisas isoladas, vê situações, conjuntos,
totalidades. Do mesmo modo, as crianças muito pequenas não
entendem as letras, mas entendem as palavras, ou seja, conjun-
tos concretos que têm um sentido.
Mas quando a humanidade começou a dominar a natureza
e a conhecê-la melhor, podia e devia criar para si uma formidá-
vel ferramenta intelectual, que é o conceito abstrato. O homem
pôde deixar de ver as coisas em sua totalidade, pôde decom-
pô-las em partes, pôde analizá-las, pôde fazer a abstração. O
homem aprendeu a dizer “esse” em abstrato e “essa árvore” sem
dizer “esta árvore verde aqui, nesta colina” como dizia o primi-
tivo. O conhecimento apensa pode avançar assim, esmiuçando
a realidade em partes. Assim avançaram as ciências naturais. A
lógica formal, com sua afirmação de que uma coisa é ou não o
é, coroou esta aspiração do pensamento abstrato e foi um for-
midável avanço... mas foi, ao mesmo tempo, um enorme passo
para trás também. Foi um avanço, pois ela possibilitou aplicar-
se a uma análise minuciosa dos elementos e partes integrantes
da realidade; permitiu o estudo intensivo dos mesmos e contri-

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46 Milcíades Peña

buiu para a imensa massa de conhecimentos que constituem as


ciências naturais. Mas o pensamento abstrato e a lógica formal
significaram também um formidável passo para trás, no senti-
do que, por muitos séculos, se perdeu essa riqueza que carac-
terizava o pensamento do homem primitivo, esse frescor da
capacidade de apreender a realidade como é, como um todo
complexo e em mudança, cheio de qualidades e atributos.
A dialética recupera para o pensamento essa riqueza de
conteúdo, essa criação, esse frescor do pensamento do ho-
mem primitivo, mas incorpora nele o rigor, a precisão, a exa-
tidão que foram obtidas por séculos de pensamento abstrato
e lógica formal.
Como disse Lefebvre, a dialética é a plena captação pelo
pensamento humano de toda a efervescência tumultuosa da
matéria, a ascensão da vida, a epopeia da evolução, inter-
rompida repentinamente por catástrofes, enfim, todo o dra-
ma cósmico. “A verdade está na totalidade”, disse Hegel, ou
seja, a ideia verdadeira é a superação das verdades limitadas
e parciais, que se transformam em erros ao serem considera-
das estáticas. Apenas a captação da totalidade, onde se unem
o igual e o distinto, o repouso e o movimento, o singular e
o múltiplo, ou seja, apenas a captação do concreto pode nos
dar a verdade. Nestas fórmulas - que não são fórmulas, mas
a síntese de toda a prodigiosa evolução do pensamento hu-
mano - está contido todo o pensamento dialético e esta é a
genial contribuição de Hegel ao pensamento humano.
A lógica formal diz que toda coisa é idêntica a si mesma.
Mas para isso é preciso que seja diferente de todas as demais,
de modo que a igualdade mais pura já supõe a diferença. No
entanto, a lógica formal não considera isto.
Por outro lado, o fato de que a igualdade, mesmo a mais
abstrata, contenha em si a diferença, se revela em todo con-
ceito no qual o predicado seja distinto do sujeito. Por exem-

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O que é o marxismo? 47

plo, ao dizer a rosa é vermelha, dizemos que a rosa, sem deixar


de ser uma rosa, é vermelha, ou seja, algo diferente de rosa. Se
quiséssemos evitar esta diferenciação no seio da unidade, se
desejássemos cumprir, rigorosamente, com o principio lógico
formal, de que toda coisa é idêntica a si mesma e não pode ser
idêntica e diferente, então o pensamento seria algo completa-
mente vazio e os únicos conceitos seriam aqueles próprios de
tolos, no estilo: a rosa é ... a rosa, a vida é... a vida etc. Enquanto
quisermos criar conceitos inteligentes, conhecer as qualidades
do real e captar sua complexidade, então fatalmente rompere-
mos com a lógica formal e manejaremos a igualdade e a dife-
rença de cada coisa consigo mesma.
Por isso, explica Hegel:

Quem postula não existir nada que leve dentro de si a contradição,
como a identidade dos contrários, postula, ao mesmo tempo, não
existir nada vivo. Pois a força da vida consiste precisamente em levar
dentro de si a contradição, em suportá-la e superá-la. Este colocar e
retirar da contradição da unidade ideal e da desagregação real dos ter-
mos forma o processo constante da vida, e a vida não é mais que um
processo38.

Em outra parte afirma novamente:

Não há absolutamente nada em que não se possa e não se deva apontar


para contradições ou atributos opostos; e a abstração feita pelo enten-
dimento significa, consequentemente, uma insistência violenta em um
único aspecto, e um esforço para obscurecer e remover toda consciên-
cia do outro atributo que está envolvido39.

E mais adiante:

Então a primeira (proposição) delas, o princípio da identidade diz: Tudo


é igual a si mesmo; é A = A; e contrariamente, A não pode ser ao mesmo
38 HEGEL, Georg, A ciência da Lógica. Tradução do autor.
39 Ibid.

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48 Milcíades Peña

tempo A e não A. Este princípio, em vez de ser uma verdadeira lei do pen-
samento, não passa de ser a lei do pensamento abstrato... É afirmado que o
princípio da identidade, embora não possa ser provado, regula o processo
de toda consciência, e a experiência mostra que ele pode ser aceito tão
logo seus termos sejam apreendidos. A esta suposta experiência dos livros
de lógica é oposta a experiência universal de que nenhuma consciência
pensa, ou forma conceitos, ou fala segundo essa lei, e que nenhuma exis-
tência de qualquer tipo existe segundo ela. O falar segundo esta pretensa
lei da verdade (um planeta é um planeta, o magnetismo é o magnetismo,
o espírito é o espírito) é considerado, com plena razão, o falar de um tolo.
Isto é certamente uma questão de experiência geral40.

Dissemos que a dialética é pensamento concreto e assina-


lamos as limitações do pensamento abstrato. Mas, o que quer
dizer “pensamento abstrato”? Para Hegel:

Quem pensa em abstrato? Limitar-me-ei a citar alguns exemplos: um


assassino é conduzido ao patíbulo; para o povo em geral ele não é outra
coisa senão um assassino. Talvez as damas, ao vê-lo passar, comentem
seu aspecto físico, digam que é um homem forte, belo e interessante.
Ao escutar isto, um homem do povo se indignará: Como um assassino
pode ser belo? Um conhecido do homem tratará de investigar o decor-
rer da educação deste criminoso; talvez descobrirá, em sua história, em
sua infância ou primeira infância, algum distúrbio na relação entre os
pais deste, descobrirá que uma pequena transgressão deste homem fora
castigada com demasiada dureza, o que o fez rebelar-se contra a ordem
existente, colocando-o à margem desta ordem e o levando ao crime
para poder subsistir41.

Pois bem, pensar assim, ver todo o processo com seus ele-
mentos, isso é o pensar concreto. Ao contrário, o pensar abs-
trato é o pensamento comum, que não vê no assassino mais do
que esta única característica isolada - abstrata - de que é um
assassino, a tal ponto que apenas isto destrói e não permite que
se veja o quanto há nele da natureza humana.
40 Ibid.
41 Ibid.

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O que é o marxismo? 49

Como modelo do pensamento dialético, do pensamento


concreto que se move através da inseparável unidade dos con-
trários, vejamos estas linhas de Trotski:

Um meio pode ser justificado apenas por seu fim. Mas o fim, por sua vez,
precisa ser justificado. Do ponto de vista marxista, que expressa os inte-
resses históricos do proletariado, o fim é justificado se leva ao aumento
do poder do homem sobre a natureza e à abolição do poder do homem
sobre o homem.
“Entende-se então que para obter este fim, tudo é permitido?”, pergunta
sarcasticamente o filisteu, mostrando que não entendeu nada. É permi-
tido, respondemos, o que realmente leva à libertação da humanidade42.
[…] O moralista continua a insistir: “isto significa que na luta de clas-
ses contra o capitalismo todos os meios são permitidos: mentiras, falsi-
ficação, traição, assassinato etc?” Respondemos: permitidos e obrigató-
rios são apenas aqueles meios que unem o proletariado revolucionário,
enchem seus corações com a hostilidade irreconciliável à opressão, lhes
ensina o desprezo pela moral oficial e seus ecos democráticos, os imbui
com a consciência de sua própria missão histórica, elevam sua coragem
e espírito de sacrifício na luta. Precisamente disto deriva que nem todos
os meios são permitidos. Quando dizemos que o fim justifica os meios,
então para nós segue-se a conclusão de que o grande fim revolucionário
rejeita meios indignos, que jogam uma parte da classe operária contra ou-
tras, ou tentam fazer as massas felizes sem sua participação, ou diminuem
a confiança das massas em si mesmas e sua organização, substituindo-a
pela adoração aos “líderes”43. [...] O materialismo dialético não conhece
o dualismo entre meios e fim. O fim deriva naturalmente do movimento
histórico. Os meios são organicamente subordinados ao fim. O fim ime-
diato torna-se um meio para um fim posterior. Em sua peça Franz von
Sickingen, Ferdinand Lassalle põe as seguintes palavras na boca de um de
seus heróis:
Não indiques apenas o fim,
Mas mostra também o caminho
Porque o fim e o caminho
Tão unidos estão
Que um muda com o outro
42 TROTSKI, Leon, Questões do modo de vida; A moral deles e a nossa, São
Paulo, Editora Sundermann, 2009, pp. 88-89.
43 Ibid., pp. 89.

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50 Milcíades Peña

E com ele se move


- e cada novo caminho
revela um novo fim.

[...]A interdependência dialética entre meios e fim expressa-se correta-


mente nesses versos. Sementes de trigo precisam ser semeadas para pro-
duzir uma espiga de trigo44.

Em 1922, Lenin afirmou: “devemos organizar um estudo


sistemático, dirigido, do ponto de vista da dialética de Hegel”.
Efetivamente, esta é uma grande tarefa proposta ao pensamento
marxista.
Contudo, as burocracias são conservadoras e antidialéticas
por definição. Sua prosperidade depende da administração do
que existe, não de sua modificação. Por isso sua “filosofia” é a
escolástica e o dogmatismo, que codificam e repetem o já pen-
sado e não admitem inovação, nem qualquer problema novo.
Explica-se assim que a “filosofia” inspirada por Stalin e seus
companheiros tenha tratado a dialética e Hegel com total des-
prezo.
O espírito da burocracia é ferozmente estático e anti­dialético.
Não quer inovações, nem discussões. Vejamos o trabalho de A.
Zhdanov, Sobre a história da filosofia45. Zhdanov era secretá-
rio do Comitê Central do Partido Comunista Russo, e este foi
seu discurso no encerramento de um congresso de filosofia, na
Rússia, em 1947. Zhdanov criticou severamente o autor de uma
história da filosofia dizendo que “o autor comete erros básicos
que agridem até mesmo os princípios”. Quais são esses “erros
básicos que agridem os princípios”? São, segundo Zhdanov, por
exemplo, a afirmação de que “o caminho ao método dialético
foi preparado pelas conquistas das ciências naturais desde a

44 Ibid., pp. 89-90.


45 ZHDANOV, Anton, Sobre la historia de la filosofia, Buenos Aires, Editorial
Anteo, 1948.

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O que é o marxismo? 51

segunda metade do século 18”. O problema é que isto está em


total contradição com a célebre tese de En­gels na qual “o cami-
nho ao método dialético foi preparado por... todos esses desco-
brimentos do século 19”. Isto é, a burocracia moscovita proíbe
a um filósofo dizer que o método dialético foi preparado por
conquistas científicas do século 18 porque Engels afirmou que
estas ocorreram no século 19 e a burocracia entende que dis-
cordar de Engels nesta questão cronológica é um erro essencial
que “afeta os princípios”. Sem dúvida, este clima não é propício
para o desenvolvimento do pensamento dialético e nem sequer
dos estudos sobre a dialética. E se por acaso estes estudos sur-
gem, a burocracia os extirpa rápida e radicalmente. Neste mes-
mo discurso, Zhdanov não dá lugar a dúvidas: “a discussão que
aqui teve lugar, sobre Hegel, é muito estranha. Faz tempo que
a questão de Hegel está resolvida, não há porque questioná-la
novamente”. Efetivamente, para a burocracia não há razão para
se discutir novamente o problema da dialética, “a álgebra da re-
volução”, como foi chamada pelo grande revolucionário russo
Herzen. Em lugar disso, recordamos Lenin: “devemos organizar
o estudo sistemático da dialética de He­gel”. Para se iniciar esse
estudo, sugiro o livro de Bloch, O pensamento de Hegel.
Em uma frase famosa, Marx e Engels falaram de “colocar
a dialética de Hegel sobre seus pés”. Isto não significa que da
dialética se possa tomar duas ou três características isoladas e
agregá-las a uma concepção materialista vulgar do mundo. O
pensamento dialético de Hegel interpenetra totalmente o mar-
xismo.
Hegel fez, em termos idealistas e com linguagem obscura, ao
tratar da coisa “em si”, de “negativismo”, de “ser outro” etc., uma
análise muito rigorosa do desenvolvimento do pensamento hu-
mano através da contradição. Colocar a dialética sobre seus
pés quer dizer estudar concretamente, na realidade, o desen-
volvimento da humanidade, como surgiram estas fases, esse

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52 Milcíades Peña

estado de desenvolvimento, essas transições que Hegel analisa


em termos idealistas, mas com uma grande capacidade para
compreender o elemento de contradição e do movimento, e
é uma tarefa que o marxismo deve realizar. Só conheço duas
obras nas quais o pensamento marxista realizou esta “corre-
ção” da dialética, onde a realidade foi captada em sua evolu-
ção, em suas contradições, em suas diversas fases quantitativas
e qualitativas. Essas obras são O Capital de Marx e A História
da Revolução Russa de Trotski. Entretanto, o campo para pes-
quisa ainda é imenso, abrange praticamente toda a realidade.
Colocar a dialética sobre seus pés é o que faz Marx em O
Capital, ou seja, desenvolver dialeticamente uma ciência; nes-
te caso, a análise econômica da sociedade capitalista. Por ou-
tro lado, tomar alguns fenômenos naturais ou um conjunto de
conhecimentos científicos e utilizá-los como exemplos onde a
quantidade se transforma em qualidade, ou de alguma outra
lei da lógica dialética, isto - que muitos “manuais” fazem para
ensinar marxismo - é uma insolente caricatura do pensamen-
to dialético e, portanto, do marxismo.
[O materialismo]
Tratemos agora do materialismo. “O materialismo inteli-
gente”, disse Lenin, “se encontra mais próximo do idealismo
inteligente que do materialismo néscio”. Isto ocorre porque o
marxismo toma como elemento essencial a atividade criadora
do homem (tema discutido no idealismo) e rejeita absoluta-
mente a concepção do homem como um mero ente totalmen-
te produzido e determinado por circunstâncias externas - no
que crê o materialismo vulgar.
Por outro lado, assinala Engels,

O materialismo do século passado era predominantemente mecânico[...].


Esta aplicação exclusiva do modelo da mecânica a fenômenos de natureza
química e orgânica em que, apesar de regerem as leis mecânicas, estas

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O que é o marxismo? 53

passam para o segundo plano face a outras que lhe parecem superiores,
constituía uma das limitações específicas, mas inevitáveis em sua época,
do materialismo clássico francês46.

Com efeito; o materialismo clássico só reconhece como


“matéria” o mecânico, físico e químico, mas ignora totalmen-
te essa matéria constituída principalmente pelas relações inter
-humanas, sociais e psicológicas.
Tenhamos então em mente que a matéria tomada pelo ma-
terialismo como base não é a matéria ou a natureza mecânica,
nem uma matéria comum sem qualidades. A matéria de que
parte o marxismo é o conjunto de relações sociais que pressu-
põe certamente uma natureza mecânica e, sobretudo, fisiológi-
ca, mas que não coincide com ela, e a matéria utilizada pelo ma-
terialismo histórico não é nem mais, nem menos, que a relação
dos homens uns com os outros e com a natureza.
O materialismo vulgar não vê, segundo Marx, que

[...] o mundo sensível que o rodeia não é uma coisa dada imediatamente
por toda a eternidade e sempre igual a si mesma, mas o produto da in-
dústria e do estado de coisas da sociedade, e isso precisamente no senti-
do de que é um produto histórico, o resultado da atividade de toda uma
série de gerações, que, cada uma delas sobre os ombros da precedente,
desenvolveram sua indústria e seu comércio e modificaram sua ordem
social de acordo com as necessidades alteradas. Mesmo os objetos da
mais simples “certeza sensível” são dados a Feuerbach apenas por meio
do desenvolvimento social, da indústria e do intercâmbio comercial47.

Em suas Teses sobre Feuerbach, Marx afirmou:

O principal defeito de todo o materialismo existente até agora é que o


objeto, a realidade, o sensível, só é apreendido sob a forma do objeto ou da
contemplação, mas não como atividade humana sensível, como prática;
46 ENGELS, Friedrich, Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã
em MARX, Karl, ENGELS, Friedrich, Obras Escolhidas vol. III, op. cit., p. 181
47 MARX, Karl, ENGELS, Friedrich, A ideologia alemã, op. cit., pp. 30-31.

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54 Milcíades Peña

não subjetivamente (Tese I). A doutrina materialista sobre a modifica-


ção das circunstâncias e da educação esquece que as circunstâncias são
modificadas pelos homens e que o próprio educador tem de ser educado
(Tese III)48.

O materialismo vulgar - que é o que os stalinistas preten-


dem fazer passar por marxismo - cai na metafísica da matéria e
apenas da matéria mecânica, não da matéria constituída pelas
relações sociais e pela atividade do homem. Este materialismo
vulgar considera a matéria uma coisa totalmente isolada, sem-
pre isolada do sujeito, do homem e condicionando o homem,
nunca condicionada pelo homem.
De fato, a metafísica da matéria, a crença de que a matéria
tem independência absoluta em relação ao sujeito que conhece,
ou seja, que a transforma, tem uma origem religiosa e, precisa-
mente por isso, o materialismo vulgar se encaixa tão bem no
senso comum. Todas as religiões ensinaram e ainda ensinam
que o mundo, a natureza, o universo, foram criados por Deus
antes da criação do homem e, portanto, o homem encontrou o
mundo já acabado, catalogado e definido de uma vez por todas.
Por isso, quando o materialismo vulgar diz que a matéria existe
absolutamente independente do sujeito que a conhece, não faz
mais que confirmar esta crença religiosa na qual “Deus criou o
mundo antes de criar o homem”.
O marxismo, ao contrário, afirma que naturalmente o mun-
do físico existia antes do homem; o universo existia antes da
aparição do homem. No entanto, se isto estiver correto, o mar-
xismo nota que, desde o surgimento do homem sobre a terra,
a matéria deixa de existir independente da consciência do ho-
mem, porque, desde o primeiro momento, o homem atua sobre
a matéria e a transforma. De modo que, se for correto que o
objeto existiu por si só antes do surgimento do sujeito, quando
este aparece, o objeto perde sua independência, entra em per-
48 Ibid., p. 533.

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O que é o marxismo? 55

manente relação com o sujeito, e sujeito e objeto só existem em


função e através um do outro, sem que nenhum possa se conce-
bido “independentemente” do outro.

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NOTAS DE INICIAÇÃO MARXISTA – III

[A consciência e a “teoria do reflexo”]


O que significa então a afirmação de que a consciência “re-
flete” o objeto?
Toda nova concepção do mundo deve trabalhar com a ter-
minologia formada pelo desenvolvimento anterior da humani-
dade. Mas como a nova concepção do mundo traz novos con-
teúdos ao conhecimento, ocorre que essa velha terminologia
em grande parte não lhe serve, a não ser como metáfora, ou
como exemplo para se fazer entender, mas não expressa per-
feitamente o que a nova concepção quer expressar. Assim, por
exemplo, o marxismo fala de que a consciência “reflete” a exis-
tência. No entanto, esta expressão (reflete) tomada da ciência
natural do século passado pelo marxismo é só uma metáfora,
um exemplo para se fazer entender.
A palavra “reflexo” não descreve exatamente o que o mar-
xismo afirma a respeito da relação entre o sujeito e o objeto,
porque o marxismo começa por negar que o ser e a consciên-
cia sejam coisas estáticas, isoladas, situadas uma fora da outra

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58 Milcíades Peña

e sem outra relação que apenas um contato externo, como o


de um corpo que se choca com outro, por exemplo. E, con-
tudo, o conceito de “reflexo” significa precisamente, e impli-
ca, uma concepção de duas coisas distintas e externas uma à
outra. Vale notar que a palavra “reflexo” somente reflete de
forma imperfeita o pensamento marxista porque está repleta
de concepções anteriores superadas pelo marxismo (o mes-
mo ocorre, como veremos adiante, com a expressão de que a
economia constitui a “anatomia” da sociedade).
Lefebvre afirmou que “nada é mais contraditório à dialé-
tica marxista que colocar o real de um lado e de outro seu
reflexo na cabeça dos homens”. E ele está correto, porque o
marxismo dá ênfase não à chamada “realidade”, às coisas que
estão fora do homem, mas sim à atividade criadora do ho-
mem que conhece, transforma e cria essa realidade e essas
coisas exteriores.
Certamente, os críticos stalinistas acusam Lefebvre de não
ser materialista porque, para os aparatos, o fundamental é ser
materialista no sentido de adaptar-se às condições existentes.
E os críticos stalinistas pretendem se cobrir com citações de
Lenin sobre a teoria do reflexo!
No entanto, em sua obra filosófica mais profunda e ma-
dura, em suas notas sobre a Lógica, de Hegel, Lenin escreve:

O conhecimento é o reflexo da natureza pelo homem. Mas não é um


reflexo simples, imediato, total; este processo consiste em toda uma sé-
rie de abstrações, de formulações, de formação de conceitos, leis etc49.

E mais adiante afirma novamente:

O conhecimento é o processo pelo qual o pensamento se aproxima in-


finita e eternamente ao objeto. O reflexo da natureza no pensamento
humano deve ser compreendido não de modo “morto”, não “abstrata-
49 LENIN, Vladimir, Cadernos sobre a dialética de Hegel, op. cit., p. 159.

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O que é o marxismo? 59

mente”, não sem movimento, não sem contradição, mas no processo eter-
no do movimento, do surgimento das contradições e da sua resolução50.

E Lenin acrescenta que: “Aliás, a consciência humana não


apenas reflete o mundo objetivo, mas também o cria51”.
No entanto, se o conceito, o conhecimento, “reflete” a reali-
dade exterior, o contrário também é correto: a realidade exte-
rior, à medida que é modificada e criada pelo homem, “reflete”
o conceito. O sujeito “reflete” em sua consciência o objeto, então
o objeto “reflete” também o sujeito que foi capaz de criá-lo e
modificá-lo. O homem não se limita a tirar fotografias da rea-
lidade; o homem constrói a realidade. Por isso, ao invés de se
falar em reflexo - que sugere uma recepção passiva –, se deve
falar em interação, relação, projeção do objeto no sujeito e do
sujeito no objeto.

Como disse Hegel:

[O] homem torna-se para si através da atividade prática, na medida em


que possui o impulso de produzir-se e igualmente de reconhecer-se na-
quilo que lhe é dado imediatamente, naquilo que para ele tem uma exis-
tência exterior. Este objetivo ele realiza mediante a modificação das coisas
exteriores, nas quais imprime o selo de seu interior e onde reencontra
suas próprias determinações. […] [O] sujeito não tem nada de estranho,
nenhuma fronteira e limite naquilo que se lhe defronta, mas se encontra a
si mesmo no que se lhe defronta52.

Engels disse que “a unidade real do mundo consiste na sua


materialidade e esta prova-se, não com algumas frases de pres-
tidigitador, mas por uma longa e laboriosa evolução da filosofia
e das ciências da natureza”53. Com isto, temos uma valiosa chave

50 Ibid., pp. 166-167.


51 Ibid., p. 179.
52 HEGEL, Georg, Cursos de estética, São Paulo, Edusp, 2001, pp. 52-53; 112.
53 ENGELS, Friedrich, Anti-Dühring, op. cit., p. 39.

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60 Milcíades Peña

para compreender a concepção marxista da relação entre sujei-


to e objeto, entre o ser e a consciência. O trabalho do homem
está condensado no conhecimento filosófico e científico e, dis-
se Engels, é o trabalho do homem o que demonstra a unidade
material do mundo; ou seja, a captação de que existe um objeto
dotado de unidade material, longe de ser um simples “reflexo”,
de existir como um objeto independente do sujeito, é o resulta-
do da ação recíproca entre sujeito e objeto, de sua interação, de
sua unidade contraditória.
E o que afirma o marxismo sobre a consciência? O marxis-
mo afirma que a consciência - aquilo que o homem pensa de si
mesmo e do que está à sua volta - não pode explicar a si própria.
O marxismo trata de captar quais são as condições da consciên-
cia, isto é, como e por que o homem passa a pensar algo de si e
do mundo. O marxismo faz a crítica da consciência e das con-
dições que a fazem surgir e demonstra que a consciência pode
ser verdadeira ou falsa. E a chave para compreender o porquê
disto está na história do homem. Por isso Marx diz que “não é a
consciência dos homens que determina o seu ser; ao contrário,
é o seu ser social que determina sua consciência”54.
O marxismo demonstra que a consciência está determina-
da, isto é, que não está no ar, nem flutua nas nuvens, que tem
suas raízes na Terra, mas atenção: se o marxismo afirma que a
consciência está determinada, afirma também que está deter-
minada como consciência; ou seja, que é possível se explicar
como o meio atua sobre a consciência, mas de forma alguma se
pode reduzir a consciência a um mero reflexo do meio. O idea-
lismo coloca a consciência entre as nuvens, como prolongação
de Deus, da Ideia ou de qualquer outra força mística extrater-
rena, e lhe atribui uma autonomia e um poder sem limites. O
materialismo vulgar, pelo contrário, reduz a consciência a nada
54 MARX, Karl, Contribuição à crítica da economia política, São Paulo, Ex-
pressão Popular, 2008, 2ª edição, p. 47

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O que é o marxismo? 61

e lhe tira toda a autonomia, considerando-a uma mera se-


creção cerebral, como uma espécie de caspa que sai em for-
ma de ideias que não são nada mais dos que “reflexos”, como
fotografias do objeto exterior. O marxismo mostra que as
raízes da consciência estão na Terra e na sociedade; que a
consciência não é onipotente, está condicionada. Todavia,
o marxismo não considera a consciência uma caspa, nem a
reduz a uma mera fotografia do exterior. O marxismo colo-
ca a consciência entre as mais altas realidades humanas e se
esforça para que a consciência, captando as condições que
a originam e incidem sobre ela, seja cada vez mais lúcida e
eficaz.
O desprezo pela consciência e por seus problemas é to-
talmente alheio ao marxismo.
A grande batalha do marxismo se trava precisamente no
terreno da consciência. O marxismo luta para modificar a
consciência das classes oprimidas, para que estas tenham
uma consciência verdadeira de sua situação e da necessida-
de de revolucioná-la.
[Necessidade do socialismo]
De que natureza são os juízos que faz o marxismo sobre
a realidade social? Marx demonstrou a necessidade do
socialismo, não com base em conceitos éticos ou morais
sobre o que deve ser, mas com base no que é a realidade
capitalista e as suas perspectivas de evolução. Para o
pensamento marxista, os conceitos éticos ou de valor - “o
que deve ser” - estão inseparavelmente unidos aos conceitos
de fato, que pretendem explicar “o que é”. O marxismo
afirma que a necessidade do socialismo está objetivamente
baseada na estrutura e na evolução do capitalismo; mas
afirma também que o socialismo não virá por si só, como
a chuva dos céus. O socialismo virá porque o homem faz

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62 Milcíades Peña

um juízo de valor e diz “o capitalismo não pode continuar


a existir, o socialismo sim deve”, e luta por isto, e por isso
conseguirá a transformação.
Os filósofos supostamente marxistas, operários dos grandes
aparatos burocráticos - a II Internacional e depois o stalinismo
- eliminaram esta profunda unidade dialética entre conceitos
de valor e conceitos objetivos, e quiseram transformar a teoria
marxista do socialismo em uma espécie de física da sociedade,
em uma suposta ciência que afirma que o socialismo é necessá-
rio independentemente da vontade dos homens e de que estes o
considerem bom ou mau. Ao contrário, o marxismo afirma que
a sociedade não pode ser estudada “objetivamente”, a exemplo
das ciências naturais que estudam a física ou a química. O mar-
xismo demonstra que no estudo da sociedade e nos julgamen-
tos sobre ela sempre intervém, além do conhecimento objetivo,
que descreve o que é, o juízo de valor, que afirma o que deve ser
e o que se deseja. Isto ocorre porque os homens que conhecem a
sociedade e a história são os mesmos que fazem a sociedade e a
história. E, portanto, conhecimento da vida social e da história
não é ciência, mas consciência. Por isso, toda separação entre
conceitos de valor e conceitos de fato, entre teoria e prática, co-
nhecimento do que é e aspiração ao que deve ser, é irrealizável
quando se trata da compreensão da história e da sociedade.
Ao compreender que, por causa de toda estrutura da socie-
dade capitalista, o advento do socialismo é necessário, o mar-
xismo afirma também que o socialismo deve ocorrer, pois ele
é conveniente para o homem e, portanto, que o homem deve
tomar consciência disto e deve conscientemente trabalhar para
a chegada do socialismo.
No entanto, se como afirmam os escolásticos da burocracia re-
formista da II Internacional ou os escolásticos da burocracia mos-
covita, o socialismo é uma coisa que já está prevista, se é algo que
virá seja bom ou não, independente da vontade do homem, com

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O que é o marxismo? 63

tanta certeza quanto nasce a luz a cada manhã, então o papel cons-
ciente revolucionário do homem se reduz a nada e os aparatos
burocráticos, cuja função seria esperar que se realize esta suposta
inevitável aparição do socialismo, seriam elevados às alturas.
O fatalismo mecanicista que presume que o socialismo é
inevitável, inelutável, independente da vontade humana, outor-
ga sem dúvida uma grande tranquilidade de espírito, fortifica a
fé dos que nele creem, é quase uma religião. Contudo, não tem
nada a ver com o marxismo.
O marxismo põe a ênfase na vontade real e atuante do ho-
mem. Os fatalistas, por sua vez, substituem a vontade conscien-
te que atua na busca de um fim e a trocam por um simples ato
de fé num suposto fim inevitável da história. Para estas pessoas
“a História”, com letras maiúsculas, substitui a fé na divina pro-
vidência com que se consolam os religiosos.
O marxismo, repetimos, é justamente a antítese e a negação
de tudo isto.
[A práxis]
E assim nos aproximamos ao último grande problema da
filosofia marxista que enfocaremos hoje. O marxismo fala de
unidade inseparável entre teoria e prática. O marxismo não crê
que estas sejam coisas distintas e complementares entre si. O
marxismo nega que a teoria seja um complemento da prática,
ou vice-versa. Para o marxismo, a teoria e a prática não são mais
que momentos de um mesmo processo que é a práxis, isto é, a
ação do homem.
A concepção marxista da práxis implica tomar o pensa-
mento mundano, terreno. Práxis significa que quem forma o
homem, seu mundo, seu destino, não é nenhuma força supe-
rior ou inferior ao homem. Práxis significa que o homem não
é produzido, nem condicionado por “Deus”, ou pela “História”,
nem pela “razão”, ou pelo “instinto”, nem pela “herança”, ou

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64 Milcíades Peña

pelo “meio”, nem pela “raça” etc. Práxis significa que a única
coisa que produz o homem e o condiciona é a própria atividade
teórico-­prática do homem.
Vejamos alguns parágrafos das Teses sobre Feuerbach, nos
quais se trata do problema da práxis:

O principal defeito de todo o materialismo existente até agora (o de Feuer-


bach incluído) é que o objeto, a realidade, o sensível, só é apreendido sob
a forma do objeto ou da contemplação, mas não como atividade humana
sensível, como prática; não subjetivamente. Daí o lado ativo, em oposição
ao materialismo, [ter sido] abstratamente desenvolvido pelo idealismo
[…]. A questão de saber se ao pensamento humano cabe alguma ver-
dade objetiva não é uma questão da teoria, mas uma questão prática. É
na prática que o homem tem de provar a verdade, isto é, a realidade e o
poder, a natureza interior de seu pensamento. […] A doutrina materia-
lista sobre a modificação das circunstâncias e da educação esquece que as
circunstâncias são modificadas pelos homens […]. A coincidência entre a
altera[ção] das circunstâncias e a atividade ou automodificação humanas
só pode ser apreendida e racionalmente entendida como prática revolu-
cionária.[...] Feuerbach dissolve a essência religiosa na essência humana.
Mas a essência humana não é uma abstração intrínseca ao indivíduo
isolado. Em sua realidade, ela é o conjunto das relações sociais.[...] Toda
vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios que conduzem a
teoria ao misticismo encontram sua solução racional na prática humana
e na compreensão dessa prática. […] Os filósofos apenas interpretaram o
mundo de diferentes maneiras; o que importa é transformá-lo55.

[O marxismo, totalidade aberta]


Para finalizar, deixemos perfeitamente claro algo que é fun-
damental para a compreensão da filosofia marxista. A filosofia
marxista constitui o que Lefebvre, e antes dele Labriola e Grams-
ci, denominam uma “totalidade aberta”. É totalidade porque
é uma filosofia que engloba o conjunto de problemas, sem ser
parcial ou fragmentada, mas de forma total. Uma filosofia que
não é um conjunto de teorias dispersas, mas um todo sistemático,
com uma estrutura e organização interna. Por isso o marxismo é
55 MARX, Karl, ENGELS, Friedrich, A ideologia alemã, op. cit., pp. 533-534.

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O que é o marxismo? 65

uma totalidade. Contudo, é uma totalidade aberta, pois não é um


sistema fechado, ou seja, que não pretende estar acabado, pron-
to para a eternidade e para ser guardado na memória. Pelo con-
trário, o marxismo exige o contínuo englobar de novos dados,
de novos enfoques que se articulem com os dados já existentes e
tornem assim a compreensão marxista do mundo cada vez mais
completa e mais profunda.
Para compreender melhor o que é uma totalidade aberta, é
apenas necessário observar o que é um ser vivo. Um ser vivo
é uma totalidade com uma estrutura; mas é uma totalidade em
movimento, uma totalidade que continuamente incorpora no-
vos elementos, que tem conflitos, que se modifica, mas continua
sendo essencialmente a mesma. O marxismo também é assim:
uma totalidade aberta, que se enriquece com cada avanço do
conhecimento humano.

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NOTAS DE INICIAÇÃO MARXISTA - IV e V

[Marxismo e ciências sociais]


O filme La Mujer del Prójimo [A Mulher do Próximo, na
versão em português – N. do E.] - que na realidade deveria se
chamar, em espanhol A sola firma sin anticipo [Apenas paga-
mento à vista – N. do E.], visto que seu título em inglês é No
down payment - é recomendável por se tratar de um excelente
retrato de como vive a classe média norte-americana e porque
nele podem ser claramente vistos alguns aspectos básicos da
alienação em que vive a classe pequeno-burguesa contemporâ-
nea num país capitalista privilegiado.
Em reuniões anteriores notamos como a ciência oficial
tergiversa o pensamento marxista, intencionalmente ou não.
Tomemos como exemplo: “Tampouco estão os antropólogos
dispostos a deixar que os marxistas ou outros deterministas
culturais façam da cultura outro absoluto tão autocrático como
o Deus ou o Destino de algumas filosofias”, disse um antropó-
go norte-americano, Klukhohn. Pois bem, nós já vimos como
o marxismo, o autêntico marxismo, rejeita todo determinismo

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68 Milcíades Peña

sobre-humano. Para o marxismo, o único que “determina” é a


existência do homem. De modo que este antropólogo norte-a-
mericano, que por outros trabalhos é um cientista muito con-
ceituado, ao criticar o marxismo, age como um tolo que não
sabe o que fala.

O conhecimento mais adequado e mais eficaz da realidade física e quími-


ca é um ideal que hoje (a situação, vale lembrar, não era absolutamente a
mesma nos séculos 16 e 17...) não se choca nem com os interesses nem
com os valores de qualquer classe social. [...]
Nas ciências humanas, ao contrário, a situação é diferente... Ora, em tudo
o que respeita aos principais problemas que se colocam para as ciências
humanas, os interesses e os valores sociais divergem totalmente. Em lugar
da unanimidade implícita ou explícita nos juízos de valor sobre a pesquisa
e o conhecimento que está na base das ciências físico-químicas, encontra-
mos nas ciências humanas diferenças radicais de atitude, que se situam no
início, antes do trabalho de pesquisa, permanecendo muitas vezes implí-
citas e inconscientes56.

Os sociólogos não marxistas objetam à “tomada de posição


política e juízos de valor que há que apontar e criticar na con-
cepção marxista das classes sociais”. De sua parte dizem: “tenta-
rei eliminar todo juízo de valor, seja subjacente ou consciente”57.
O marxismo sustenta que esta eliminação dos conceitos de
valor não é possível, nem desejável. A sociologia não é ciência,
é consciência (já falamos disso na reunião anterior). No estudo
das ciências humanas não é possível ser “objetivo” da mesma
forma que nas ciências naturais. Pode-se estudar o movimento
dos astros ou dos elétrons e prótons sem se tomar partido, por-
que essas realidades não são produzidas pelo homem e, portan-
to, é um absurdo dizer “é bom”, ou até mesmo “não é bom” que
um planeta gire nesta ou naquela órbita.
56 GOLDMANN, Lucien, Ciências Humanas e Filosofia, Rio de Janeiro, Difel,
5ª edição, 1976, p. 31-32.
57 GURVITCH, Georges, Moral Théorique et Science des Moeurs. Tradução
do autor.

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O que é o marxismo? 69

No entanto, as ciências humanas atuam sobre uma realidade


que é produto da ação do homem e frente à qual é impossível
não formar conceitos de valor e não tomar posição - por exem-
plo, ao se estudar o escravagismo - porque a indiferença equiva-
le a aceitar o que existe. O que habitualmente se denomina “so-
ciologia”, essa suposta ciência que tenta agrupar e classificar as
relações entre os homens segundo modelos e categorias toma-
das das ciências naturais, é desprezada pelo marxismo. A pre-
tensão de reduzir a experiência humana a “leis” do tipo mecâ-
nico-fatalista - como a lei da dilatação dos corpos, por exemplo
- também é rejeitada pelo marxismo. A pretensão de tratar dos
feitos sociais, ou seja, das relações entre homens, como “coisas”
também é alheia ao marxismo e o marxismo demonstra que
a tentativa de tratar as relações inter-humanas como “coisas” é
um produto da alienação.
Quando o Dicionário de Filosofia stalinista de Rosenthal e
Yudin afirma que “Marx demonstrou que o curso das ideias de-
pende do curso das coisas”, demonstra que, de fato, não tem
nada a ver com o marxismo58. Na linguagem cotidiana, mesmo
na linguagem da luta política ou da interpretação de um fe-
nômeno histórico particular, podemos dizer que “as coisas vão
mal ou bem”, que o “curso das coisas” nos leva a isto ou aquilo.
Podemos, por exemplo, dizer que “pelo curso das coisas” o es-
tabelecimento de uma universidade privada favoreça as classes
privilegiadas. Isto ocorre porque na linguagem cotidiana, até na
linguagem política, nos movemos no terreno da alienação, no
terreno onde as relações entre os homens aparecem como rela-
ções entre coisas que não estão submetidas ao controle do ho-
mem,e sim o dominam. Entretanto, quando suscitamos a ques-
tão no terreno do marxismo, que é o terreno no qual se rompe
a alienação, no qual se vai mais além das coisas, para descobrir
58 YUDIN, Pavel, ROSENTHAL, Mark, Diccionario de filosofía, Montevidéu,
Ediciones Pueblos Unidos, 1965, p. 284.

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70 Milcíades Peña

as relações humanas por trás delas, neste terreno é totalmente


errado se dizer que “o curso das ideias depende do curso das
coisas”. O curso das ideias depende do contexto social no qual
se envolvem, e este contexto social consiste em “coisas”, não coi-
sas como as estrelas, a chuva ou a Cordilheira dos Andes, mas
em relações entre os homens.
O pensamento vulgar contrapõe a “sociedade” ao “indiví-
duo” e supõe que a sociedade seja um agregado de indivíduos
que, em si mesmos, são distintos da sociedade. Marx, ao con-
trário, assinala:

Acima de tudo é preciso evitar fixar mais uma vez a “sociedade” como
abstração frente ao indivíduo. O indivíduo é o ser social. Sua manifesta-
ção de vida - mesmo que ela também não apareça na forma imediata de
uma manifestação comunitária de vida, realizada simultaneamente com
outros - é, por isso, uma externação e confirmação da vida social59.

Isto ocorre porque para se viver é necessário produzir, e não


se pode produzir sem a colaboração de outros homens. Para se
reproduzir é necessário haver duas pessoas de sexos distintos.
Ou seja, já nas necessidades íntimas mais individuais está conti-
da a necessidade absoluta de relação social com outras pessoas.

A produção da vida, tanto da própria, no trabalho, quanto da alheia,


na procriação, aparece desde já como uma relação dupla - de um lado,
como relação natural, de outro como relação social -, social no sentido
de que por ela se entende a cooperação de vários indivíduos, sejam
quais forem as condições, o modo e a finalidade. Segue-se daí que um
determinado modo de produção ou uma determinada fase industrial
estão sempre ligados a um determinado modo de cooperação ou a
uma determinada fase social - modo de cooperação que é, ele pró-
prio, uma “força produtiva”60. [...]A estrutura social e o estado provêm
constantemente do processo de vida de indivíduos determinados; mas
desses indivíduos não como podem aparecer na imaginação própria
59 MARX, Karl, Manuscritos econômico-filosóficos, op. cit., p. 107.
60 MARX, Karl, ENGELS, Friedrich, A ideologia alemã, op. cit., p. 34.

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O que é o marxismo? 71

ou alheia, mas sim tal como realmente são, quer dizer, tal como atuam,
como produzem materialmente e, portanto, tal como desenvolveram
suas atividades sob determinados limites, pressupostos e condições
materiais, independentes de seu arbítrio61. […] A produção de ideias,
de representações, da consciência, está, em princípio, imediatamente
entrelaçada com a atividade material e com o intercâmbio material dos
homens, com a linguagem da vida real. O representar, o pensar, o inter-
câmbio espiritual dos homens ainda aparecem, aqui, como emanação
direta de seu comportamento material. O mesmo vale para a produção
espiritual, tal como ela se apresenta na linguagem da política, das leis,
da moral, da religião, da metafísica etc. de um povo. Os homens são os
produtores de suas representações, de suas ideias e assim por diante,
mas os homens reais, ativos, tal como são condicionados por um deter-
minado desenvolvimento de suas forças produtivas e pelo intercâmbio
que a ele corresponde, até chegar às suas formações mais desenvolvi-
das62.[...]
Minha relação com meu ambiente é a minha consciência. […] Desde
o início, portanto, a consciência já é um produto social e continuará
sendo enquanto existirem homens63.

Todo o comportamento do homem é decisivamente mo-


delado pelo que os antropólogos chamam de “cultura”.
Por “cultura”, a antropologia entende o modo geral de vi-
ver de um povo, o legado social que o indivíduo recebe de seu
grupo. Ou então, pode-se considerar a cultura como aquela
parte do meio ambiente que foi criada pelo homem.
O mais íntimo de cada indivíduo, o que aparenta ser o
mais individual e o mais privado, na realidade não é tão indi-
vidual, nem tão privado.
A psicologia de nossos dias comprova cientificamente que

as manifestações exteriores de nossos afetos parecem deveres im-


postos pelo grupo, como também o que são os próprios afetos. Para
inumeráveis circunstâncias da vida diária a coletividade nos impõe

61 Ibid., p. 93.
62 Ibid., pp. 93-94.
63 Ibid., p. 35.

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72 Milcíades Peña

os sentimentos que devemos ter e a maneira com a qual temos que


expressá-los64
Nosso regime de conceitos, com suas compatibilidades e incompatibi-
lidades, suas atrações e repulsas, sua hierarquia, sua ordem e sua escala
de valores, provém do grupo do qual fazemos parte, sem que possamos
iludi-lo, mediante a linguagem que aprendemos desde nossa primeira
infância, pela disciplina coletiva que suportamos, sem trégua, do nas-
cimento até a morte. Não captamos a realidade tal qual é, mas tal qual
concebe e exige a coletividade à qual pertencemos. A realidade, vista
com os olhos do grupo, se assim se pode dizer, nos é indiscernível da
própria realidade. E isto é válido não só para a realidade exterior, mas
também para a vida interior. Refletir é deixar o próprio pensamento
falar; tratar de ter clara consciência de um estado de alma, por mais pes-
soal que seja na aparência, é captá-lo dentro do quadro que a coletivida-
de fixou, afetou com o valor que ela lhe atribui, é confundi-lo com esse
quadro e esse próprio valor. O regime de conceitos que devemos a nosso
grupo tem, pois, como primeiro efeito, introduzir a própria objetividade
das representações coletivas em todo o domínio de nossa experiência,
tanto interna quanto externamente65.

Da mesma forma, a antropóloga norte-americana, Marga-


reth Mead, mostrou, em sua obra clássica intitulada Growing
up in New Guinea, como valores, gestos, atitudes e crenças
eram inculcados nas crianças pelos adultos com o objetivo de
formá-los para viver dentro de sua sociedade.

A prova fornecida pelas sociedades primitivas sugere que as suposições


que qualquer cultura faz sobre o grau de frustração ou satisfação conti-
das nas formas culturais pode ser mais importante para a felicidade que
a questão de quais estímulos biológicos são desenvolvidos ou suprimi-
dos para que se chegue a alcançá-la. Podemos tomar como exemplo a
atitude da mulher na era vitoriana, da qual não se esperava que gozasse
na experiência sexual e que de fato não gozava66.

64 BLONDEL, Charles, Psychology Collection. Tradução do autor.


65 BLONDEL, Charles, em JANET, P. e DUMAS, G., Manual de Psicologia.
Tradução do autor.
66 MEAD, Margareth, Growing up in New Guinea. Tradução do autor.

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O que é o marxismo? 73

Na reunião anterior, ao terminar, disse a alguns de vocês


que não podemos chamar estas nossas reuniões de aulas. E
lhes expliquei algo que considero válido repetir para todo o
grupo. Sobre o marxismo não se pode dar “aulas”, apenas se
expor princípios e problemas. Mas não se pode dar aula no
sentido estrito da palavra. Isto não se deve a um problema de
técnica dialética, mas a uma razão básica, contida na própria
natureza do marxismo: o marxismo não é uma “matéria” já
terminada, que do período de luta e polêmica tenha entrado
na etapa de uma expansão orgânica. O marxismo não é algo
pronto, ele está em formação. E o maior perigo dos clássicos
cursos e manuscritos do tipo Politzer reside em que tendem
a dar a impressão de que o marxismo é algo que já está pron-
to para ser aprendido em um número “x” de lições, como se
aprende geografia ou aritmética.
[Marxismo e economicismo]
Vemos, então, que as distintas organizações sociais corres-
pondem a várias personalidades humanas, diferentes “nature-
zas” humanas. Entretanto, quais são os aspectos decisivos, os
pontos nevrálgicos nos quais se origina a diferença entre uma
sociedade e outra? O marxismo responde a isto com o conceito
de “relações de produção”.
Há uma verdade de tal evidência, disse Marx, que deve ser
considerada pressuposta e aceita. Ela consiste em que o ho-
mem, a fim de poder viver, tem que satisfazer certas necessida-
des fundamentais: se alimentar, cobrir sua nudez, habitar sob
um teto. Se não as satisfaz, não pode viver, ainda menos fazer
história. Em consequência, o primeiro feito da história do ho-
mem - que se cumpre a cada dia e a cada hora, no passado e
no presente

é, pois, a produção dos meios para a satisfação dessas necessidades, a pro-


dução da própria vida material […]. A primeira coisa a fazer em qualquer

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74 Milcíades Peña

concepção histórica é, portanto, observar esse fato fundamental em toda a


sua significação e em todo o seu alcance e a ele fazer justiça67. [...]
O fato é, portanto, o seguinte: indivíduos determinados, que são ativos na
produção de determinada maneira, contraem entre si estas relações sociais
e políticas determinadas. A observação empírica tem de provar, em cada
caso particular, empiricamente e sem nenhum tipo de mistificação ou es-
peculação, a conexão entre a estrutura social e política e a produção68. [...]
[Em] cada um dos seus estágios encontra-se um resultado material, uma
soma de forças de produção, uma relação historicamente estabelecida
com a natureza e que os indivíduos estabelecem uns com os outros; re-
lação que cada geração recebe da geração passada, uma massa de forças
produtivas, capitais e circunstâncias que, embora seja, por um lado, modi-
ficada pela nova geração, por outro lado prescreve a esta última suas pró-
prias condições de vida e lhe confere um desenvolvimento determinado,
um caráter especial - que, portanto, as circunstâncias fazem os homens,
assim como os homens fazem as circunstâncias. Essa soma de forças de
produção, capitais e formas sociais de intercâmbio, que cada indivíduo e
cada geração encontram como algo dado, é o fundamento real daquilo
que os filósofos representam como “substância” e “essência do homem”69.

Os mesmos homens que estabeleceram as relações sociais de acordo com


a sua produtividade material produzem, também, os princípios, as ideias,
as categorias de acordo com as suas relações sociais70.

Pois bem, estas ideias, estas categorias, ou estas crenças po-


pulares têm a mesma energia que uma força material. Nas rela-
ções sociais não há força natural pura; a força material é acom-
panhada de uma forma ideológica; e a forma ideológica tem um
conteúdo material.

Os homens fazem a sua própria história; contudo, não a fazem de livre e


espontânea vontade, pois não são eles quem escolhem as circunstâncias
sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas assim como se

67 MARX, Karl, ENGELS, Friedrich, A ideologia alemã, op. cit., p. 33.


68 Ibid., p. 93.
69 Ibid., p. 43.
70 MARX, Karl, Miséria da Filosofia, São Paulo, Expressão Popular, 2009, p.
126.

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O que é o marxismo? 75

encontram. A tradição de todas as gerações passadas é como um pesadelo


que comprime o cérebro dos vivos71.

Quando Marx fala de “economia”, não se refere à produ-


ção em geral, mas às relações de produção, ou seja, às relações
do homem com a natureza e entre si, em torno aos meios de
produção.
Desde o momento em que começou a ser difundido, o pen-
samento marxista foi fulminado, por inimigos e supostos parti-
dários, com a afirmação de que o marxismo é uma “interpreta-
ção econômica da história”. Logo veremos que isto é totalmente
incorreto. A única verdade disso é que o marxismo deu ênfase à
necessidade do estudo da organização econômica da sociedade.
Para captar sem deformações o que o pensamento marxista
afirma sobre a natureza da organização social, é necessário aban-
donar expressões como “estrutura econômica” ou “base econô-
mica” da sociedade. Marx e Engels - sobretudo Engels - por ve-
zes utilizaram estas expressões para tornar seu pensamento mais
acessível, mais didático. Entretanto, hoje em dia, por causa de
se simplificar essas expressões, de se repeti-las como receitas e
separá-las do conjunto do pensamento de Marx, as palavras “es-
trutura” e “base” servem para deformar o marxismo. Por esta
razão, preferimos não usá-las e, em seu lugar, utilizar formação
eco­nômico-social, conceito empregado por Marx em O Capital.
Em três palavras carregadas de sentido, explica Lefebvre, este
conceito designa os elementos da sociedade e reconstrói sua
totalidade, indicando que esta totalidade é um acontecimento,
uma história. Devemos distinguir o econômico do social - que
são dois níveis da realidade. Tomados isoladamente, são abstra-
ções unilaterais. O concreto não existe senão em sua totalidade e
só pode ser captado concebendo-se sua unidade.

71 MARX, Karl, O 18 Brumário de Luís Bonaparte, São Paulo, Boitempo,


2011, p. 25.

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76 Milcíades Peña

A relação entre o econômico e o social - explica Lefebvre -


não pode ser concebida como uma unidade confusa, nem como
uma hierarquia estática ou uma simetria, nem como redução,
ou qualquer outro tipo de relação lógica. Marx compara o eco-
nômico ao esqueleto e seu estudo à anatomia, aproximando a
ciência social à fisiologia. Em um sentido, portanto, o econômi-
co é mais real que o social, pois o organismo tem necessidade de
um esqueleto; sem dúvida o fisiológico é superior à sua “condi-
ção”, porque só ele vive. O social representa um desenvolvimen-
to da economia, representa o desenvolvimento de suas contra-
dições. Os fenômenos sociais são mais ricos, mais complexos
que sua essência “econômica”.
Pois bem, na essência, a formação econômico-social con-
siste nisto: homens que têm determinadas relações com ou-
tros homens.
Como explicou Labriola,

nas vulgarizações da sociologia marxista, as condições, as relações de coe-


xistência econômica se transformam em algo que existe imaginariamente
por sobre nós, como se no problema houvesse outros elementos que não
indivíduos e indivíduos, ou seja, proprietários e arrendatários, capitalistas e
assalariados, patrões e empregados, explorados e exploradores, em uma só
palavra, homens com outros homens, que em dadas condições de tempo e
lugar, se acham em diferentes relações de dependência recíproca72.

No Anti-Dühring, Engels disse que “A concepção materialis-


ta da História parte da tese de que a produção, e com ela a troca
dos produtos, é a base de toda a ordem social”73. Este parágrafo
é muito perigoso para a compreensão do autêntico pensamento
marxista se não forem esclarecidos dois aspectos fundamentais:
1- A “produção” a que se refere Engels não deve ser enten-
dida como produção em geral, como o processo técnico de
72 LABRIOLA, Antonio, Discorrendo di socialismo e di filosofia, op. cit., p. 29.
73 ENGELS, Friedrich, Do socialismo utópico ao socialismo científico, op. cit.,
p. 91.

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O que é o marxismo? 77

produzir, mas no sentido de relações de produção, ou seja, as


relações que os homens contraem no processo de produção de
sua vida.
2- A “base” não é aqui uma palavra muito apropriada, pois
sugere algo estático, separado e separável do que está sobre
a base. No entanto, as relações reais que os homens contraem
no processo de produção são dinâmicas por definição; e além
disso, essas relações só podem ser separadas das restantes em
análise, na abstração do pensamento, pois na verdade estão
unidas. Isto que acabamos de dizer significa que Engels “en-
ganou-se” ou que conscientemente deformou o pensamento
marxista que ele mesmo contribuiu para criar? Não, de forma
alguma. O que ocorre é que, como explica Lefebvre:

Depois de haver contribuído para a formação do marxismo, Engels pas-


sou a expô-lo didaticamente... Apesar de seu gênio, que era comparável
ao de Marx, Engels tendia a simplificar os problemas pedagogicamente,
a supor-lhes resolvidos e, como consequência, a esquematizá-los e sis-
tematizá-los74.

Ao término de sua vida, o próprio Engels advertiu sobre


o grande perigo que significava para o marxismo essa sim-
plificação pedagógica de seu pensamento; por isso ao ler as
últimas cartas de Engels, “se vê claramente nele [Engels] um
temor de que o marxismo se tornasse rapidamente uma dou-
trina vulgar75. Por esta razão, para fazer justiça a Engels e para
compreender o autêntico pensamento marxista, é conveniente
que suas últimas cartas sejam lidas, suas últimas obras teóri-
cas.

A concepção materialista da história tem vários amigos perigosos em


nossos dias, para quem ela serve de desculpa para não estudarem histó-
74 LEFEBVRE, Henri, Problèmes actuels du marxisme. Op. cit. Tradução do
autor.
75 LABRIOLA, Antonio, Discorrendo di socialismo e di filosofia, op. cit., p. 23.

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78 Milcíades Peña

ria. […] A palavra materialista serve, geralmente, a muitos dos jovens


escritores alemães como simples qualificativo com que se rotula, sem
qualquer análise, todo tipo de coisa - pregam-lhe esta etiqueta e dão
por resolvida a questão. Mas a nossa concepção da história é, sobretudo,
um guia para o estudo. [...]É necessário voltar a estudar toda a história,
devem examinar-se em todos os detalhes as condições de existência das
diversas formações sociais antes de procurar deduzir delas as ideias
políticas, jurídicas, estéticas, filosóficas, religiosas, etc. que lhes cor-
respondem76.

Observe-se como aqui Engels não fala de “base” mas de


“formação” social. E em outras cartas, sobre a concepção mar-
xista de história:

De acordo com a concepção materialista da história, o fator que em úl-


tima instância determina a história é a produção e a reprodução da vida
real. Nem Marx nem eu jamais afirmamos mais que isto. Se alguém o
tergiversa, fazendo do fator econômico o único determinante, converte
esta tese numa frase vazia, abstrata, absurda77.

Recordemos o que quer dizer concreto e abstrato (já visto


na reunião em que tratamos de Hegel).

Se, portanto, Barth supõe que nós negamos qualquer reação dos reflexos
políticos etc., do movimento econômico sobre o próprio movimento,
ele está simplesmente lutando com moinhos de vento. Ele tem apenas
que dar uma olhada no Dezoito Brumário de Marx, que trata quase ex-
clusivamente do papel particular desempenhado pelas lutas e aconte-
cimentos políticos, em função, é claro, de sua dependência geral das
condições econômicas... O que falta a estes senhores é dialética. Eles
somente pensam em causa de um lado e efeito de outro. Que isto é uma
abstração vazia, que tais opostos metafísicos existem no mundo real
apenas durante crises, enquanto todo o vasto processo segue em frente
na forma de interação; embora de forças muito desiguais, sendo o movi-
mento econômico, de longe, a mais forte, mais primordial, mais decisiva
76 MARX, Karl, ENGELS, Friedrich, Cultura, arte e literatura. Textos Escolhi-
dos, São Paulo, Expressão Popular, 2ª Edição, 2012, p. 107.
77 Ibid., pp. 103-104.

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O que é o marxismo? 79

– que aqui tudo é relativo e nada absoluto – isto eles nunca conseguem
ver. Para eles Hegel nunca existiu78.

Fica claro, então, que o marxismo, como em todas as esfe-


ras nas quais transcorre a atividade do homem, é uma esfera
concêntrica e no centro - que é por sua vez o ponto de partida
e o limite de todo o conjunto - se encontram as relações que os
homens contraem com o processo de produção e reposição de
sua vida. Isto não significa, de nenhuma forma, que tudo o que
o homem faz está diretamente vinculado às relações existentes
em torno da produção.

A pretensão (apresentada como postulado essencial do materialismo his-


tórico) de apresentar e expor qualquer flutuação da política e da ideolo-
gia como uma expressão imediata da infraestrutura deve ser combatida,
teoricamente, como um infantilismo primitivo, ou deve ser combatida,
praticamente, com o testemunho autêntico de Marx, escritor de obras po-
líticas e históricas concretas79.

Encontramos esta interpretação concreta, fresca, essencial-


mente dialética do pensamento marxista, na primeira obra de
Lenin, escrita aos seus 24 ou 25 anos de idade. Nela, Lenin dá
ênfase ao conceito marxista de “formação econômico-social”,
citando este conceito de Marx. E critica os que tergiversam o
marxismo, pretendendo reduzi-lo a um determinismo econô-
mico e “atribuindo-lhe o propósito absurdo de não considerar
o conjunto da vida social”.
Lenin afirma que os marxistas “foram os primeiros socia-
listas a levantar a questão da necessidade de analisar todos os
aspectos da vida social, não só o econômico”80.
78 MARX, Karl, ENGELS, Friedrich, Selected Correspondence, Progress Pub-
lisher, 2ª ed., 1965, p. 416. Tradução do autor.
79 GRAMSCI, Antonio, Cadernos do cárcere, v. I, Rio de Janeiro, Civilização
Brasileira, 2006, p. 238.
80 LENIN, Vladimir, Quem são os “amigos do povo” e como lutam contra os
social-democratas. Tradução do autor.

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80 Milcíades Peña

E para demonstrá-lo, cita os trabalhos da juventude de Marx,


os trabalhos de 1843! Isto é, Lenin, mesmo tendo formação filo-
sófica elementar, não tendo ainda estudado Hegel, capta o essen-
cial do marxismo, o qual busca captar concretamente a sociedade
e não a “divide” de forma torpe entre “o econômico”, que seria “o
fundamental”, e “o ideológico”, que seria “o secundário”.
Ao contrário, em Stalin vemos desde o início até o fim de suas
obras um pensamento diretamente mecanicista, que considera o
marxismo um sistema de verdades prontas para ser decorado pe-
los estudantes e que tenta diretamente “explicar” tudo como um
simples produto direto da economia ou das classes sociais. Veja-
mos este parágrafo de uma das primeiras obras de Stalin (1905),
que em qualidade de pensamento é tão antimarxista como a últi-
ma que escreveu antes de morrer:

O eixo da vida social moderna é a luta de classes. No curso dessa luta, po-
rém, cada classe é guiada pela sua ideologia. A burguesia possui sua própria
ideologia: o chamado liberalismo. O proletariado também possui sua pró-
pria ideologia: é, como se sabe, o socialismo81.

[Concepção materialista das ideologias]


O fazer e o pensar estão inseparavelmente unidos, são mo-
mentos inseparáveis de uma mesma atividade humana, mas não
são idênticos. O que o homem pensa sobre si mesmo e sobre o
que faz nem sempre coincide com o que faz na realidade. Há pro-
fundas influências de ordem social - em primeiro termo, a luta de
classes; e de origem afetiva - essencialmente o sexo - que incidem
para que o homem engane a si próprio sobre sua atividade e suas
obras.
Consideremos o caso de nosso grupo. Todos os que estão aqui
têm certas ideias sobre a existência e as funções deste grupo e
sobre suas relações com outros grupos. Pois bem, estas ideias po-

81 STALIN, Josef, Em defesa do socialismo científico, São Paulo, Anita


Garibaldi, 1990, p. 105.

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O que é o marxismo? 81

dem não coincidir com o que realmente o grupo faz. Isto vale não
só para o nosso grupo, mas para toda a sociedade. O marxismo
busca a “base real da ideologia”, ou seja, quais são as condições
nas quais se origina o que o homem pensa que ele é.

Este método histórico [...] tem de ser desenvolvido a partir da cone-


xão com a ilusão dos ideólogos em geral, por exemplo, com as ilusões
dos juristas, dos políticos (e também, entre eles, os homens de Estado
práticos) a partir das suas quimeras dogmáticas e das distorções desses
sujeitos, que se explica de modo bem simples a partir de sua posição
prática na vida, de seus negócios e da divisão do trabalho. Enquanto na
vida comum qualquer lojista sabe muito bem a diferença entre o que
alguém faz de conta que é e aquilo que ele realmente é, nossa historio-
grafia ainda não atingiu esse conhecimento trivial. Toma cada época por
sua palavra, acreditando naquilo que ela diz e imagina sobre si mesma82.

A vontade move-se sob o impulso da reflexão ou da paixão. Mas as


alavancas que, por sua vez, determinaram a reflexão e a paixão são de
natureza muito diversa. Às vezes, são objetivos exteriores; outras vezes,
motivos ideais: a ambição, a “paixão pela verdade e pela justiça” [...].
Já vimos, porém, por um lado, que as muitas vontades individuais que
atuam na história acarretam quase sempre resultados muito diferentes -
às vezes, inclusive, opostos - aos objetivos visados. […] Por outro lado,
deve-se indagar que forças propulsoras agem, por seu turno, por trás
desses objetivos […]. Tudo que põe os homens em movimento tem ne-
cessariamente de passar por suas cabeças; mas a forma que adota dentro
delas depende muito das circunstâncias83.

E essas circunstâncias são, basicamente, o sistema de relações


entre os homens.
A psicologia moderna compreende que os atos do doente
mental não são meras “loucuras” carentes de sentido, mas que
têm um profundo sentido, cuja explicação deve ser encontra-
da na vida deste. Antes disso, o marxismo já havia entendido
82 MARX, Karl, ENGELS, Friedrich, A ideologia alemã, op. cit., p. 50.
83 ENGELS, Friedrich. Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã...,
op. cit., pp. 198-199.

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82 Milcíades Peña

que toda a ideologia tem um sentido que deve ser buscado


na vida real da sociedade. O pensamento racional clássico se
ocupou de comparar as ideologias entre si e com a realidade.
Dependendo do que surgisse dessa comparação, as ideologias
eram classificadas em certas ou falsas, considerando-as um
produto da estupidez, do preconceito e da má fé. O marxismo
vai muito além disso. Ele compreende que:

[...] a partir do seu processo de vida real, expõe-se também o desen-


volvimento dos reflexos ideológicos e dos ecos desse processo de vida.
Também as formações nebulosas na cabeça dos homens são sublima-
ções necessárias de seu processo de vida material[...]84.

O marxismo estuda o homem, isto é, a sociedade, procu-


rando captá-lo concretamente, tal qual é em sua vida real.

Os pressupostos de que partimos não são pressupostos arbitrários, dog-


mas, mas pressupostos reais, de que só se pode abstrair na imaginação. São
os indivíduos reais, sua ação e condições materiais de vida, tanto aquelas
por eles já encontradas como as produzidas por sua própria ação85.

[Teoria das classes sociais]


Pois bem: o marxismo afirma que há um aspecto da reali-
dade que é o que mais profundamente penetra no homem e
mais completamente o circunda, condicionando o curso geral
de sua vida exterior e interior. Esse aspecto da realidade é a
classe social a que pertence o indivíduo.

Partidários do materialismo histórico - disse um dos filósofos marxistas de


nossos tempos -, vemos na existência de classes sociais e na estrutura de
suas relações (luta, equilíbrio, colaboração segundo o país e época histórica)
o fenômeno chave para a compreensão da realidade social passada ou pre-
sente, e isso não por razões dogmáticas de fé ou ideias preconcebidas, mas
simplesmente porque nosso próprio trabalho de pesquisa e os estudos que

84 MARX, Karl, ENGELS, Friedrich, A ideologia alemã, op. cit., p. 94.


85 Ibid., p. 86.

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O que é o marxismo? 83

pudemos empreender nos mostraram, quase sempre, a importância excep-


cional desse grupo social em relação a todos os outros86.

De fato, todo o trabalho da sociologia não marxista de


nossos dias - trabalho realizado principalmente nos Estados
Unidos, a cidadela do imperialismo, e sob os gritos de “fora
Marx!” - não faz mais do que colocar em evidência, empíri-
ca e até matematicamente, a importância decisiva das classes
sociais na configuração do homem contemporâneo. Vemos
assim, por exemplo, um sociólogo yankee que, reunindo uma
grande massa de informações, diz que:

O sonho americano de igualdade de oportunidades, as histórias muito di-


fundidas de pobres que ficam ricos - tudo isso nos leva a depreciar a im-
portância das diferenças sociais. Nossos clichês culturais afirmam que “não
existem classes nos Estados Unidos” ou que “todos os americanos são de
classe média”. [...] Mas o fato de que as pessoas são propensas a confundir
seus sonhos com a realidade e não tenham plena consciência da influência
dos fatores de classe sobre sua conduta e sua experiência não significa que
as classes sociais não existam. As diferenças de riqueza, renda, emprego,
prestígio, autoridade e poder, que são todas manifestações da estrutura de
classe, representam realidades básicas de nossa existência87.

Diz ainda:

Tudo, desde a probabilidade de sobreviver ao seu primeiro ano de vida, até a


chance de conhecer as melhores obras de arte, de crescer forte e saudável e,
caso adoeça, de curar-se rapidamente, a probabilidade de não tornar-se um
delinquente infantil, e a de ter uma educação de nível superior - todas estas
probabilidades de vida estão profundamente influenciadas pela posição que
se ocupa na estrutura de classe88.

No que é revelada a posição de classe? Em uma série de carac-


terísticas, em uma constelação de situações entre as quais temos:
86 GOLDMANN, Lucien, Ciências humanas e filosofia, op. cit., p. 86.
87 MAYER, Kurt, Class and society, Michigan, Random House, 1955, p. 1.
88 Ibid.

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84 Milcíades Peña

emprego, renda, riqueza, duração da vida, saúde física e mental,


educação, proteção garantida pela justiça, conduta sexual e familiar
(Relatório Kinsey89), características de temperamento etc.
As pesquisas mostram que a classe social é uma constelação,
uma configuração, uma totalidade de condições e formas de vida,
que sempre tendem a andar juntas e que se estruturam ao redor
da relação que diversos grupos humanos estabelecem em relação
aos outros no processo de trabalho, através do qual se mantém
toda a sociedade.
Estas pesquisas demonstram que existe uma alta correlação
matemática - estatisticamente comprovável - entre condições e
formas de vida, tais como: a) a propriedade (ou não-propriedade)
de meios de produção, de transporte, de comércio etc.; b) o em-
prego; c) o nível de renda e a riqueza; d) o poder (a capacidade de
controlar aos outros); e) o prestígio; f) a educação. Essas mesmas
investigações psicossociais estão mostrando concretamente como
a classe modela a personalidade. Empiricamente, se está consta-
tando como e através de que mecanismos as crianças das classes
dominantes vão estruturando uma personalidade audaz, agressiva,
confiante, segura de si mesma, ambiciosa, enquanto o oposto ocor-
re com as crianças das classes exploradas.
Enfim, estes estudos insuspeitos de marxismo confirmam o
que Marx afirmava em 1846:

As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes, isto


é, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo,
sua força espiritual dominante. A classe que tem à sua disposição os meios
da produção material dispõe também dos meios da produção espiritual, de
modo que a ela estão submetidos aproximadamente ao mesmo tempo os
pensamentos daqueles aos quais faltam os meios da produção espiritual90.

89 Trata-se de um relatório escrito nos anos 1950 por estudiosos americanos,


que relata uma série de fenômenos ligados à sexualidade da população deste
país (N. do E.).
90 MARX, Karl, ENGELS, Friedrich, A ideologia alemã, op. cit., p. 47.

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NOTAS DE INICIAÇÃO MARXISTA – VI

[Teoria das classes - continuação]


Não se pode confundir a posição de classe com a quantidade
de dinheiro que se ganha. É certo que a classe dominante em seu
conjunto ganha muito dinheiro, enquanto a classe oprimida em
seu conjunto ganha apenas o necessário para viver. Mas nos
setores intermediários da sociedade e dentro de cada classe,
as coisas não são tão nítidas e um burguês pode ganhar cem
vezes mais que outro, sem que nenhum dos dois deixe de ser
burguês. Por isso Marx afirmou que:

A divisão em classes não está fundamentada nem na magnitude da


fortuna, nem na da renda. O senso comum estabelece a distinção de
classes segundo o tamanho da carteira do indivíduo. A medida da car-
teira é de uma diferença apenas quantitativa, pela qual se pode sempre
jogar um indivíduo da mesma classe contra outro91.

Por outro lado, também não devemos confundir a clas-


se social com a profissão. Dentro de cada classe pode haver
91 MARX, Karl, La crítica moralizante y la moral crítica. Tradução do autor.

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86 Milcíades Peña

uma infinidade de profissões. Como assinala o sociólogo


francês Edmond Goblot:

São as classes que influenciam na escolha de profissões. Um burguês não


se tornará serralheiro ou carpinteiro. [...] Homens com profissões muito
diferentes são igualmente burgueses, e se tratam como iguais. [Assim] a
burguesia reserva para si as profissões de iniciativa, poder, inteligência, e
deixa para as classes populares os empregos de execução, de obediência,
de esforço físico92.

Enfim, faz-se necessário distinguir “classe” e “casta”. A


classe é um grupo social “aberto”, no sentido de que legal-
mente nada impede as pessoas de mudarem de classe. Se um
operário quer ser burguês não há nenhuma lei, escrita ou
não, que o proíba. Só lhe falta o dinheiro... ou se casar com
a filha de um burguês. Por sua vez, a casta é um grupo social
fechado, no qual se nasce e se morre, sem modificação pos-
sível. O indivíduo não pode, por sua própria determinação,
entrar ou sair de uma casta. Caso típico: os negros nos Esta-
dos Unidos. Um negro, seja pobre ou milionário, não pode
entrar em um restaurante, nem em outros lugares reservados
a brancos, nem pode se casar com uma mulher branca93. Um
negro pode ser capitalista, pertencer à classe capitalista, mas
nunca terá direitos iguais aos dos capitalistas brancos porque
pertence a uma casta inferior, de acordo com a sociedade
norte-americana94.
92 GOBLOT, Edmond, citado em GURVITCH, Georges, El concepto de clases
sociales. Tradução do autor.
93 O texto de Milcíades Peña data do início dos anos 60, antes da “Lei dos Di-
reitos Civis” de 1964, que garantia aos negros dos Estados Unidos a igualdade
jurídica e direitos de cidadania iguais aos dos brancos (N. do E.).
94 A questão do racismo foi muito debatida pelo marxismo, com diversas
visões surgindo ao longo do tempo - de que a opressão dos negros era a
opressão de uma nacionalidade, de uma casta etc. A visão aqui apresentada
por Milcíades Peña não é mais, no geral, sustentada pelos marxistas que estu-
dam o tema (N. do E.).

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O que é o marxismo? 87

A classe existe antes de cada indivíduo, independente de


sua vontade, e modela os indivíduos conforme as categorias
que regem a existência da classe. A explicação de Marx para
isto é a seguinte:

Condições idênticas, oposição idêntica e interesses idênticos também


tinham de provocar, necessariamente e em todas as partes, costumes
idênticos. […] Os indivíduos singulares formam uma classe somente
na medida em que têm de promover uma luta contra uma outra clas-
se; de resto, eles mesmos se posicionam uns contra os outros, como
inimigos, na concorrência. Por outro lado, a classe se autonomiza,
por sua vez, em face dos indivíduos, de modo que estes encontram
suas condições de vida predestinadas e recebem já pronta da classe
a sua posição na vida e, com isso, seu desenvolvimento pessoal; são
subsumidos a ela. É o mesmo fenômeno que o da subsunção dos in-
divíduos singulares à divisão do trabalho e ele só pode ser suprimido
pela superação da propriedade privada e do próprio trabalho. […] De
que modo essa subsunção dos indivíduos à classe transforma-se ao
mesmo tempo, numa subsunção a toda forma de representações etc. já
o indicamos várias vezes95.

Em outra obra Marx disse:

Sobre as diferentes formas da propriedade, sobre as condições sociais


da existência se eleva toda uma superestrutura de sentimentos, ilusões,
modos de pensar e visões da vida distintos e configurados de modo pe-
culiar. Toda a classe os cria e molda a partir do seu fundamento mate-
rial e a partir das relações sociais correspondentes. O indivíduo isolado,
para o qual eles fluem mediante a tradição e a educação, pode até ima-
ginar que eles constituem as razões que propriamente o determinam e
o ponto de partida da sua atuação96.

Efetivamente, uma investigação realizada nos Estados


Unidos por Richard Centers - The Psichology of Social Class
- demonstrou, estudando uma amostra representativa da po-
95 MARX, Karl, ENGELS, Friedrich, A ideologia alemã, op. cit., pp. 63-64.
96 MARX, Karl, O 18 Brumário de Luis Bonaparte, op. cit., p. 60.

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88 Milcíades Peña

pulação que, como indicava Marx, as circunstâncias objetivas


em que vivem as pessoas geram nelas uma percepção mais
ou menos clara, ou confusa, mas perfeitamente observável, de
que têm interesses comuns, diferentes dos interesses de outros
grupos; e que são iguais aos interesses de determinada classe.
Sem dúvida, ao se considerar esta unidade geral que ca-
racteriza as atitudes das pessoas integrantes de uma classe, é
indispensável se ter em conta que dentro destas classes exis-
tem grupos com as mais diversas situações no que diz respei-
to ao seu status, prestígio e afinidades.
Por exemplo, na classe dominante existe uma diferencia-
ção muito importante que foi assinalada por Marx.

A divisão do trabalho, que já encontramos acima como uma das for-


ças principais da história que se deu até aqui, se expressa também na
classe dominante como divisão entre trabalho espiritual e trabalho
material, de maneira que, no interior dessa classe, uma parte aparece
como os pensadores desta classe […]. [Esta] cisão pode evoluir para
uma certa oposição e hostilidade entre as duas partes97.

Bem, como já puderam observar, o marxismo caracteriza


as classes sociais pelo conjunto de suas condições básicas de
existência, não pelo que os homens creem ou possam crer
que são, mas pelo que realmente são no decorrer de sua vida.
Será concebível a existência de uma classe sem que os in-
divíduos envolvidos se deem conta de que constituem uma
classe? Ou como questionou o sociólogo francês Gurvitch:
“Pode existir uma classe sem ter consciência disso?”. O mar-
xismo responde a esta questão distinguindo, nas palavras de
Hegel, “classe em si” e “classe para si”.
A diferença entre “classe em si” e “classe para si” e a trans-
formação de uma em outra são descritas por Marx nos se-
guintes termos:
97 MARX, Karl, ENGELS, Friedrich, A ideologia alemã, op. cit., pp. 47-48.

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O que é o marxismo? 89

As condições econômicas, inicialmente, transformaram a massa do


país em trabalhadores. A dominação do capital criou para essa massa
uma situação comum, interesses comuns. Essa massa, pois, é já, face
ao capital, uma classe, mas ainda não o é para si mesma. Na luta, de
que assinalamos algumas fases, essa massa se reúne, se constitui em
classe para si mesma. Os interesses que defende se tornam interesses
de classe98.

Uma classe é em si pelo simples fato de existir. Uma classe é


para si quando toma consciência do que a distingue de outras
classes, ou seja, quando adquire “consciência de classe”. No entan-
to, é preciso advertir de forma clara que ter consciência de classe
difere de ter consciência dos interesses históricos de uma classe,
no decorrer dos tempos.
Lukács assinalou que:

Portanto, do ponto de vista abstrato e formal, a consciência de classe é, ao


mesmo tempo, uma inconsciência, determinada conforme a classe, de sua
própria situação econômica, histórica e social […] Consequentemente,
[as ilusões advindas dessa inconsciência] não são arbitrárias, mas, ao con-
trário, a expressão mental da estrutura econômica e objetiva99.

As recentes investigações empíricas no terreno da psicolo-


gia social demonstram que isto é efetivamente assim. Mesmo
quando as pessoas psicologicamente não têm consciência de
que pertencem a uma classe, quando não sabem o que significa
classe social, ou creem pertencer a uma classe distinta da que
na realidade pertencem, mesmo assim, estas pessoas incons-
cientemente se comportam de acordo com as normas, padrões,
modelos de conduta determinados por sua posição de classe e
“sabem” o que podem ou não fazer, como devem se vestir etc.
Um trabalhador norte-americano fala contra o patrão, pro-
testa contra este e, sem dúvida, afirma - de boa fé - que pertence

98 MARX, Karl, Miséria da filosofia, op. cit., p. 190.


99 LUKÁCS, Georg, História e consciência de classe, op. cit., p. 143.

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90 Milcíades Peña

à classe média. Este trabalhador tem uma consciência de classe,


que psicologicamente se manifesta como o impulso inconscien-
te a se diferenciar do patrão e a protestar contra ele. No entanto,
não tem consciência dos interesses históricos de sua classe. Pois
bem, a consciência dos interesses históricos da classe tem que
ser consciência em todos os sentidos, inclusive no psicológico,
porque requer uma quantidade de experiências e conhecimen-
tos políticos que devem ser analisados de forma racional pela
classe inteira.
A consciência dos interesses históricos de uma classe - a
classe operária em particular - requer que esta classe se eduque;
mas atenção!, esta educação não deve ser entendida no sentido
escolar da palavra. Como disse Lenin:

A verdadeira educação das massas nunca pode estar separada de sua luta
política independente e, sobretudo, da luta revolucionária. Só a luta educa
a classe explorada, só a luta revela a magnitude de sua força, amplia seus
horizontes, desenvolve sua inteligência e forja sua vontade100.

O sociólogo francês Gurvitch critica o marxismo afirmando


que “a ausência de uma psicologia coletiva das classes repre-
senta uma lacuna muito séria na teoria marxista e uma de suas
limitações mais indiscutíveis”.
Na verdade, a limitação e a lacuna não estão no marxis-
mo, mas na ciência da psicologia, que apenas nos últimos
anos está chegando às primeiras conclusões e generalizações,
mais ou menos concretas, sobre os problemas da psicologia
individual e coletiva.
O marxismo não pode se aprofundar no problema da psico-
logia das classes porque este é um problema de investigação so-
bre o qual apenas agora a ciência esta ousando obter resultados;
mas o pensamento marxista sempre prestou enorme atenção ao
100 LENIN, Vladimir, 1905 - Jornadas revolucionárias. Tradução do autor.

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O que é o marxismo? 91

problema da psicologia das classes. E isto se deve ao fato de que


a luta prática do marxismo se desenvolve no terreno da psico-
logia das classes oprimidas e trata de modificá-la, soltando as
correntes psicológicas com as quais a classe dominante mantém
a capacidade de reação dos explorados dominada e atada.
Como explica Trotski:

O proletariado produz armas, transporta-as, constrói os arsenais em que


são depositadas, defende esses arsenais contra si mesmo, serve no exército
e cria todo o equipamento deste último. Não são fechaduras nem muros
que separam as armas do proletariado, mas o hábito da submissão, a hip-
nose da dominação de classe, o veneno nacionalista. Basta destruir esses
muros psicológicos e nenhum muro de pedra resistirá101.

Trotski atestou, em várias obras, a decisiva importância do


desenvolvimento da psicologia das classes. Na História da Revo-
lução Russa, Trotski disse:

O leitor já sabe que, numa revolução, olhamos antes de tudo para a inter-
ferência direta das massas no destino da sociedade. Procuramos revelar
por trás dos eventos as mudanças na consciência coletiva. Rejeitamos to-
talmente referências à “espontaneidade” do movimento, referências que,
na maioria das vezes, explicam nada e não ensinam nada. As revoluções
ocorrem segundo certas leis. Isso não quer dizer que as massas em ação
estão conscientes das leis da revolução, mas também não significa que as
mudanças na consciência das massas são acidentais, mas estão sujeitas a
uma necessidade objetiva que é passível de explicação teórica, assim fa-
zendo tanto a profecia quanto a liderança possíveis.
Certos historiados soviéticos oficiais, por mais surpreendente que pareça,
tentam criticar nossa concepção como idealista. O Professor Pokrovsky,
por exemplo, insiste que nós subestimamos os fatores objetivos da revolu-
ção. “Entre fevereiro e outubro ocorreu um colossal colapso econômico”.
“Durante este período, o campesinato… se levantou contra o Governo
Provisório”. É nestas “mudanças objetivas”, diz Pokrovsky, e não nos pro-
cessos psíquicos volúveis, que deve-se ver a força motriz da revolução.

101 TROTSKI, Leon, Aonde vai a França?, São Paulo, Editora Desafio, 1994,
p. 50.

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92 Milcíades Peña

Graças à concisão louvável da formulação, Pokrovsky expõe com perfei-


ção a inconsistência da vulgar interpretação econômica da história que é fre-
quentemente publicada como marxismo.
As mudanças radicais que ocorrem no curso de uma revolução são na ver-
dade despertadas não por distúrbios econômicos episódicos que surgem
durante os próprios eventos, mas por mudanças fundamentais que se acu-
mularam nas próprias fundações da sociedade por toda a época precedente.
É fato que, às vésperas da derrubada da monarquia, e também entre feverei-
ro e outubro, o colapso econômico agravou-se constantemente, nutrindo e
aguçando o descontentamento das massas – este fato é indiscutível e nunca
escapa à nossa atenção. Porém, seria um erro grosseiro supor que a segun-
da revolução foi realizada oito meses depois da primeira devido ao fato de
que a ração de pão durante este período passou de uma libra e meia a três
quartos desta. Nos anos imediatamente posteriores à Revolução de Outu-
bro, a situação alimentar das massas piorou constantemente. Não obstante,
as esperanças dos políticos contrarrevolucionários de uma nova derruba-
da eram perdidas a cada passo. Esta circunstância pode parecer enigmáti-
ca apenas para os que olham a insurreição das massas como “espontânea”
[...]. Na verdade, a mera existência de privações não é suficiente para causar
uma insurreição; se fosse, as massas estariam sempre em revolta. É preciso
que a bancarrota do regime social, sendo revelado conclusivamente, torne
estas privações intoleráveis, e que novas condições e novas idéias abram a
perspectiva de uma saída revolucionária. Convencidas da causa dos grandes
objetivos, estas mesmas massas provarão ser capazes de suportar privações
dobradas e triplicadas.
A referência à revolta do campesinato como um segundo “fator objetivo”
mostra um mal-entendido ainda mais óbvio. Para o proletariado, a guerra
camponesa era, é claro, uma circunstância objetiva – na medida em que a
atividade de uma classe em geral torna-se um estímulo externo para a cons-
ciência de outra. Mas a causa direta da revolta camponesa em si estava nas
mudanças na consciência da aldeia; a descoberta do caráter destas mudanças
foi o assunto de um capítulo deste livro. Não nos esqueçamos de que as revo-
luções são feitas pelas pessoas, embora sejam anônimas. O materialismo não
ignora o homem sensível, pensante e atuante, mas o explica102.

Marx disse que a história é a história da luta de classes.


Sendo assim, o marxismo capta em toda sua grandeza a inci-
102 TROTSKI, Leon, História da Revolução Russa, tomo 2, São Paulo, Editora
Sundermann, 2007, pp. 468-469.

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O que é o marxismo? 93

dência que tem a existência das classes - e as relações entre elas


- no desenvolvimento da sociedade. Entretanto, isto não quer
dizer que a luta de classes ou as classes sejam uma varinha má-
gica que permite explicar tudo com um só toque, como a luta
entre Deus e o Demônio serve à teologia para “explicar” todo
o passado, presente e futuro. Como explica Trotski:

Na sociologia marxista o ponto inicial de análise de um fenômeno dado –


por exemplo, Estado, partido, tendência filosófica, escola literária etc. – é
a sua definição de classe. Na maior parte dos casos, no entanto, a simples
definição de classe é inadequada, já que uma classe se compõe de diferen-
tes estratos, passa por diferentes fases de desenvolvimento, encontra-se
sob diferentes condições, está sujeita à influência de outras classes. Tor-
na-se necessário levar em conta fatores de segunda e de terceira ordem,
com o objetivo de precisar a análise. Dependendo do objetivo específi-
co, tomamos esses fatores conjuntamente ou em separado. Mas para um
marxista, é impossível fazer uma análise sem uma caracterização de classe
do fenômeno considerado. Os sistemas ósseo e muscular não esgotam a
anatomia de um animal. No entanto, um tratado de anatomia que tentasse
“abstrair-se” dos ossos e dos músculos ficaria se balançando no ar103.

Marx formulou sua concepção sobre as classes há mais de


um século; continuará esta concepção sendo útil para captar,
explicar e transformar a realidade conforme as necessidades
propriamente humanas da sociedade? O sociólogo Gurvitch
afirma que: “A sociologia de hoje não pode se contentar em
aceitar e explicar a teoria das classes de Marx”. E, sendo assim,
a teoria marxista sobre as classes não é uma fórmula acabada e
pronta para a eternidade, da qual se espera apenas a aceitação
e aplicação, como se aceita e se aplica a fórmula de base vezes
altura para se obter a área de um triângulo. É necessário desen-
volver, polir e aprofundar a concepção marxista das classes. Por
exemplo, podemos aceitar que, como sugeriu Gurvitch, “o pro-

103 TROTSKI, Leon, Em defesa do marxismo, São Paulo, Editora


Sundermann, 2011, p. 174.

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94 Milcíades Peña

blema da consciência de classe e da ideologia de classe exige uma


análise profunda, o mesmo para o problema das relações existentes
entre as classes sociais e os outros tipos particulares de agrupamen-
to”. No entanto, o certo é que a concepção marxista é a única base
sobre a qual se pode trabalhar de maneira fecunda para chegar à
compreensão das classes sociais.
Antes de terminar com a questão das classes, digamos que na
sociedade capitalista existem três classes sociais fundamentais. Es-
tas classes são:
• Os proprietários do capital (fábricas, bancos, comércio etc).
Essa classe vive do lucro ditado por seu capital. É a classe capi-
talista ou burguesa.
• Os proprietários de terra. Essa classe vive da renda do solo. É
a classe latifundiária.

Como se nota, essas classes são proprietárias dos meios funda-


mentais de produção com os quais a sociedade capitalista funciona.

No polo oposto encontra-se a outra classe:


• Os que são proprietários apenas de sua força de trabalho. Essa
classe vive do salário, ou seja, do que obtem pela venda de sua
força de trabalho. É o proletariado ou a classe operária.

Entre essas classes fundamentais, encontra-se um vasto setor


intermediário, chamado classe média, na qual se distinguem com
precisão dois setores:
• Os pequenos produtores e os profissionais independentes.
Essa classe vive da produção e venda de produtos e serviços. Os
exemplos típicos são: o alfaiate, o médico, o advogado, o cam-
ponês, o artesão. É a velha classe média104.
104 Ou o que chamamos de pequena burguesia. Apesar do autor utilizar

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O que é o marxismo? 95

• Os técnicos, empregados, profissionais, artistas e etc, que vi-


vem do pagamento que obtêm pela venda de suas habilidades
ou talentos. É a nova classe média.

A existência das classes sociais implica que, na sociedade, um


grupo de pessoas tem poder. Poder é a capacidade para controlar
a conduta de outras pessoas, e a existência do poder, qualquer que
seja sua forma, significa que existem relações de superior e infe-
rior, de subordinação e dependência.
As classes sociais - ou seja, a divisão da sociedade em grupos
antagônicos, ligados entre si por relações de exploração, de su-
bordinação e dependência - nem sempre existiram. A condição
necessária para o surgimento das relações de classe é que a so-
ciedade obtenha um produto excedente. Isto é, que seu trabalho
produza mais que o estritamente necessário para a subsistência
de cada trabalhador. Quando a sociedade só produz o estrita-
mente necessário para cada trabalhador, ninguém pode viver
do trabalho do outro. Entretanto, quando a sociedade é capaz
de produzir excedentes, surge a possibilidade de um setor apro-
priar-se desse excedente, produzido pelo trabalho de outros.
Na comunidade primitiva, que é historicamente o ponto
de partida da sociedade humana, não existiam classes sociais.

Essa organização simples é inteiramente adequada às condições so-


ciais que a engendraram. Não é mais do que um agrupamento espon-
tâneo, capaz de dirimir todos os conflitos que possam nascer no seio
da sociedade a que corresponde. Os conflitos exteriores são resolvidos
pela guerra, que pode resultar no aniquilamento da tribo, mas nunca
em sua escravização. A grandeza do regime da gens — e também a sua
limitação — é que nele não cabiam a dominação e a servidão. Inter-
namente, não existem diferenças, ainda, entre direitos e deveres; para
o índio, não existe o problema de saber se é um direito ou um dever
termos diferentes dos que os marxistas utilizam hoje para falar das classes
(separando a classe latifundiária da burguesia, por exemplo), seu método para
separá-las e entendê-las continua rigorosamente marxista (N. do E.).

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96 Milcíades Peña

tomar parte nos assuntos de interesse social, executar uma vingança


de sangue ou aceitar uma compensação; tal problema lhe pareceria
tão absurdo quanto a questão de saber se comer, dormir e casar é um
dever ou um direito. Nem podia haver, na gens ou na tribo, divisão em
diferentes classes sociais105.

Nesta sociedade a divisão do trabalho é puramente primiti-


va, só existe entre os sexos.

A economia doméstica é comunista, abrangendo várias e amiúde nume-


rosas famílias. O resto é feito e utilizado em comum, é de propriedade
comum: a casa, as canoas, as hortas. É aqui e somente aqui que nós vamos
encontrar “a propriedade fruto do trabalho pessoal”, que os jurisconsultos
e economistas atribuem à sociedade civilizada e que é o último subterfú-
gio jurídico em que se apoia, hoje, a propriedade capitalista106.

É claro que nesta sociedade, fundada na propriedade co-


mum dos meios de produção e de vida, existem conflitos indi-
viduais. No entanto, não existem conflitos ou lutas de classes,
visto que não existem classes. Por isso esta sociedade comuni-
tária não necessita de um órgão de repressão encarregado dos
conflitos, a fim de manter a ordem em beneficio dos poderosos.
Vale dizer que nesta sociedade sem classes, o Estado não existe.
Como explica Engels:

O Estado não é pois, de modo algum, um poder que se impôs à sociedade


de fora para dentro; tampouco é “a realidade da ideia moral”, nem “a ima-
gem e a realidade da razão”, como afirma Hegel. É antes um produto da
sociedade, quando esta chega a um determinado grau de desenvolvimen-
to; é a confissão de que essa sociedade se enredou numa irremediável con-
tradição com ela própria e está dividida por antagonismos irreconciliáveis
que não consegue conjurar. Mas para que esses antagonismos, essas clas-
ses com interesses econômicos colidentes não se devorem e não consu-
mam a sociedade numa luta estéril, faz-se necessário um poder colocado
105 ENGELS, Friedrich, A origem da família, da propriedade privada e do Es-
tado, São Paulo, Expressão Popular, 2010, pp. 199-200.
106 Ibid., pp. 200-201.

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aparentemente por cima da sociedade, chamado a amortecer o choque e a


mantê-lo dentro dos limites da “ordem”. Este poder, nascido da sociedade,
mas posto acima dela se distanciando cada vez mais, é o Estado. [...]
Como o Estado nasceu da necessidade de conter o antagonismo das clas-
ses, e como, ao mesmo tempo, nasceu em meio ao conflito delas, é, por
regra geral, o Estado da classe mais poderosa, da classe economicamen-
te dominante, classe que, por intermédio dele, se converte também em
classe politicamente dominante e adquire novos meios para a repressão e
exploração da classe oprimida107.

Antes de terminarmos com o problema das classes, assinale-


mos o seguinte: a divisão da sociedade em classes foi um acon-
tecimento inevitável no desenvolvimento da humanidade. Na
atualidade, a existência de classes é uma barreira ao avanço da
humanidade. Como disse Engels há mais de 80 anos:

[A]té hoje, todas as diferenças históricas entre classes exploradoras e ex-


ploradas, dominantes e dominadas, tiveram a sua raiz nessa tão imper-
feita produtividade relativa do trabalho humano. Enquanto a população
realmente trabalhadora, absorvida por seu trabalho necessário, não teve
nem um momento livre para se dedicar à direção dos interesses comuns
da sociedade – direção dos trabalhos, dos negócios públicos, soluciona-
mento dos litígios, arte, ciência etc., tinha que haver necessariamente uma
classe especial que, livre do trabalho efetivo, tratasse desses assuntos. Esta
classe acabava sempre, infalivelmente, por impor novas e novas sobre-
cargas de trabalho sobre os ombros das massas produtoras, além de ex-
plorá-las em seu proveito próprio. A gigantesca intensificação das forças
produtivas, conseguida graças ao advento da grande indústria, é que tor-
nou possível que o trabalho se possa distribuir, sem exceção, entre todos
os membros da sociedade, reduzindo dessa forma a jornada de trabalho
do indivíduo a tais limites, que deixem a todos um tempo livre suficiente
para que cada um intervenha – teórica e praticamente – nos negócios co-
letivos da sociedade. Hoje somente é que se pode asseverar que toda classe
dominante e exploradora é inútil e, mais ainda, prejudicial e entravadora
do processo social108.

107 Ibid., p. 213, 215-216.


108 ENGELS, Friedrich, Anti-Dühring, Rio de Janeiro, Editora Paz e Terra,
1979, p. 159.

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[Sobre a fórmula estrutura/superestrutura]


Na reunião anterior assinalamos que a esfera das relações
de produção, as relações que os homens (grupos, classes) con-
traem no processo de produção, constitui o ponto de partida e o
limite de todos os outros sistemas ou níveis de relações: familia-
res, políticos, ideológicos. Nesse sentido, utilizamos a imagem
das esferas concêntricas, dizendo que a sociedade é um conjun-
to de esferas concêntricas, cuja esfera mais interior é o sistema
de relações de produção (de fato, esta imagem deve ser visuali-
zada não como um conjunto de esferas rígidas e estáticas, mas
como um conjunto de esferas infinitamente plásticas, que estão
em perpétuo movimento, interpenetrando-se constantemente).
Contudo, insistimos também que entre a esfera das relações
de produção (isto é, a chamada estrutura econômica) e em to-
das as esferas restantes da sociedade (a chamada superestrutu-
ra) não há uma relação mecânica de causa e efeito em um só
sentido, mas uma relação dialética de unidade contraditória, de
interação e interpenetração mútua.
E no seio de uma unidade contraditória, a esfera das rela-
ções de produção condiciona o conjunto, ao mesmo tempo em
que é, insistimos, o ponto de partida e o limite de todas as esfe-
ras restantes. (Em certo sentido, pode valer aqui uma analogia,
se não for tomada ao pé da letra: as relações de produção são
o ponto de partida e o limite de toda sociedade e, por isso, a
condicionam, assim como o aparelho respiratório e o aparelho
digestivo de um ser humano são o ponto de partida e o limite
da vida, e a condicionam - o que não significa que o ser humano
consista somente de seu aparelho respiratório e de seu aparelho
digestivo, nem impede que outros níveis do organismo atuem
sobre esses aparelhos e modifiquem seu funcionamento).
As relações de produção condicionam, de um modo geral,
a evolução da sociedade. Pode ser dito, embora pessoalmente
não me agrade, que a estrutura condiciona, de modo geral, a

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O que é o marxismo? 99

superestrutura. Mas isto não significa que entre estes níveis haja
uma equivalência ou um perfeito encaixe sem contradições. Ao
contrário, a relação entre a esfera chamada estrutura e as esferas
restantes da sociedade são relações extremamente contraditó-
rias, discordantes e explosivas. É fundamental enfatizarmos que
o pensamento marxista, por ser concreto, capta e põe em evi-
dência não só a existência de uma “estrutura” que condiciona
de modo geral a “superestrutura”; o marxismo também capta,
ao mesmo tempo, a existência de uma superestrutura relativa-
mente autônoma, que evolui conforme suas próprias leis e cujas
relações com a “estrutura” constituem uma complexa interliga-
ção de tendências contraditórias que devem ser estudadas in-
dividualmente e não podem ser explicadas com um esquema
simplista.
Compreender isto é de fundamental importância. Se isto
não for entendido, o marxismo fica reduzido a folhas secas. Ve-
jamos um exemplo. Em um prefácio famoso Marx escreveu:

Uma sociedade jamais desaparece antes que estejam desenvolvidas todas


as forças produtivas que possa conter, e as relações de produção novas e
superiores não tomam jamais seu lugar antes que as condições materiais
de existência dessas relações tenham sido incubadas no próprio seio da
velha sociedade109.

Deste pensamento de Marx, os escolásticos tiraram a seguin-


te conclusão: um fenômeno político-social da “superestrutura”,
como é a conquista do poder pelo proletariado, só pode ocorrer
onde a “estrutura” econômica esteja plenamente “madura”.
Por isso afirmaram durante anos que era uma loucura supor
que a classe operária pudesse tomar o poder. E depois de 1917
disseram que Lenin havia “revisado” Marx. Já falaremos disso
adiante. Por enquanto, o que interessa assinalar é o seguinte:
o parágrafo de Marx perde toda relação com o pensamento de
109 MARX, Karl, Contribuição à crítica da economia política, op. cit., p. 48.

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100 Milcíades Peña

Marx se não for levado em conta seu caráter de enunciado ge-


ral, que deve ser interpretado concretamente considerando-se
que, para Marx, a superestrutura político-social, embora condi-
cionada em termos gerais pelas relações de produção, é relati-
vamente autônoma e tem suas próprias leis, podendo entrar em
contradição com a estrutura e discordar dela, produzindo-se as-
sim fenômenos - e que fenômenos! - de colossal transcendência
histórica, como o de que o proletariado, política e socialmente
mais maduro para conquistar o poder, apareça em países cuja
estrutura econômica esteja muito longe da maturidade para
projetar as relações de produção socialistas. E, inversamente,
ocorre que nos países onde a “estrutura” econômica é mais ma-
dura para o socialismo, a “superestrutura” - fundamentalmente
a maturidade política do proletariado - esteja completamente
atrasada em relação à estrutura.
Trotski analisou profundamente este problema da desarmo-
nia e contradição entre “estrutura” e “superestrutura”, indicando
a grande importância deste problema para a política revolucio-
nária.

Mas as sociedades não são tão racionais para a construção das datas para
que as ditaduras proletárias cheguem exatamente no momento em que as
condições econômicas e culturais estejam maduras para o socialismo. Se a
Humanidade se desenvolvesse tão sistematicamente como isso, não have-
ria necessidade de ditadura, nem das revoluções em geral. As sociedades
históricas vivas são totalmente desarmoniosas, e são mais quanto mais
atrasado for o seu desenvolvimento. O fato de que, num país atrasado
como a Rússia, a burguesia tenha apodrecido antes da vitória completa do
regime burguês, e que não havia ninguém a não ser o proletariado para
substituí-la na posição de liderança nacional, foi uma expressão desta de-
sarmonia110.

O x da questão está precisamente no fato de que, embora a mecânica po-


lítica da revolução dependa, em última instância, da base econômica, não

110 TROTSKI, Leon, História da Revolução Russa, tomo I, op. cit., p. 302.

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O que é o marxismo? 101

só nacional como internacional, não se pode deduzi-la, com uma lógica


abstrata, desta base econômica. Em primeiro lugar, a própria base é mui-
to contraditória e sua maturidade não pode ser avaliada estatisticamente
apenas. Em segundo lugar, a base econômica e a situação política devem
se enfocar não no marco nacional, mas internacional, tendo em conta a
ação e reação dialética entre o nacional e o internacional. Terceiro: a luta
de classes e sua expressão política, se desenvolvendo sobre bases econô-
micas, também têm sua lógica imperiosa de desenvolvimento, que não
pode ser saltada111.

A incompreensão da relação necessariamente contraditória


entre “estrutura” e “superestrutura” gera conclusões realmente
infantis e de uma falsidade lógica pavorosa. Assim, por exem-
plo, o professor Mondolfo disse que:

A imaturidade subjetiva só pode ser sinal de uma imaturidade objetiva


das condições históricas. A revolução corresponde à maturidade das con-
dições históricas ou não encontra correspondência com elas. Se há cor-
respondência, a mesma maturidade histórica objetiva corresponde natu-
ralmente a uma maturidade histórica subjetiva da classe trabalhadora112.

Isto é muito infantil. Afirmar que a consciência deve sempre


e em todos os casos estar “naturalmente” em perfeita coincidên-
cia com a existência, e considerar a falta de consciência clara
sobre uma realidade prova da “imaturidade” da realidade é tão
absurdo como negar a existência da exloração capitalista, visto
que nem todo mundo está consciente dessa exploração.

111 TROTSKI, Leon, Cartas entre Trotski e Preobrazhenski em A teoria da


revolução permanente, São Paulo, Editora Sundermann, 2011, p. 371.
112 MONDOLFO, Rodolfo, En torno a Gramsci y la filosofía de la praxis.
Tradução do autor.

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A impressão ficou a cargo da Bartira Gráfica e Editora
Ltda. de São Paulo, Brasil, e realizou-se em papel
Norbrite, 67g/m².

Para composição deste texto, foi usada a fonte Minion Pro,


corpo 11, com entrelinhas de 13,2 pt.,
e nos títulos, a fonte Aver.

Impresso em maio de 2015

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