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Belo Horizonte
2010
SIMONE FRANCISCA DE OLIVEIRA
Belo Horizonte
2010
150 Oliveira, Simone Francisca de
O48m ‘Mexendo no vespeiro’ [manuscrito] : legitimação dos ciclos de enfrentamento
2010 à violência de gênero através do grupo operativo / Simone Francisca de Oliveira.
- 2010.
219 f.
Orientador: Adriano Roberto Afonso do Nascimento
Co-Orientadora: Sandra Maria da Mata Azerêdo
Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Minas Gerais,
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas.
.
1. Psicologia - Teses. 2. Violência contra a mulher – Teses. 3. Relações de
Primeiramente a Deus, meu amparo e meu refúgio, por sua misericórdia e providência me
guiando em todos os momentos e colocando em minha vida as pessoas a quem desejo
agradecer:
Minha mãe que cuida de mim desde sempre, de tudo que sou e de tudo que tenho com suas
mãos tão fortes e que me ensinou a ser honesta, trabalhadora, esforçada, incansável.
Meu pai por sua disponibilidade comigo e com a Natália e por ter me ensinado que tudo tem
conserto. As palavras são substituídas por lágrimas...
Minha filha Natália, a luz do meu caminho, a alegria dos meus dias, meu anjo, minha rainha.
Minha irmã Daniela, pelo carinho comigo e com a Natália e minha avó Francisca, primeira
mulher que admirei e que me ensinou o valor da família e da maternidade.
Minha orientadora Sandra Azeredo a quem não me canso de agradecer por tudo que me
ensinou nestes onze anos de convivência. Sua honestidade, integridade, coerência, e entrega
em tudo que faz são exemplos para mim. Sempre serei grata por ter tido a oportunidade de
conhecê-la. Algumas pessoas mudam as nossas vidas de forma definitiva e ela é uma delas.
Sem ela esta dissertação não existiria.
A todos que fizeram parte das equipes de pesquisa coordenada pela profª Sandra Azeredo,
meus irmãos e irmãs de gênero, especialmente à Camila, Fernanda, Glauber, Patrício, Patrícia,
Cíntia, Alessandra, Alane, Janaína e Margarita. Um carinho especial para Liliane, Fernanda e
Kenia que me auxiliaram nas transcrições das sessões e em especial à Marcela (que apesar da
gravidez e da qualificação) cedeu algumas horas para esta tarefa.
Ao Beto, Maria, Cristiano, Bruno, Adriano, Pedro, Matheus, Wagner, Antônio, Micheline,
Augusto, Alessandra, Walter, Elaine, Baltazar, Gleison, Daniela, Izabel, Antonio e em
especial a Carmen, pela acolhida a mim e a minha filha. A disponibilidade de vocês não tem
preço.
This work proposes to study the process of confronting gender violence in an Operative
Group composed of women who are survivors of gender violence. The group meets at the
Reference Center for Women confronting Violence in Contagem/MG. The specific objectives
of the work were: a) the construction/reconstruction of the meanings of violence and how the
new meanings would allow the group to elaborate strategies to end the Violence Cycle; b)
how participation in the group worked to question the gender hegemonic matrix and to change
gender relations in the lives of women participating in the Group; e c) the institutional
practices and the women’s trajectories in the Network to Confront Violence in
Contagem/MG. Four group sections that took place between July and August, 2009, with
fourteen women were described and analysed according to concepts belonging to the theory
of Operative Group and to Feminist theory. The results point to the women’s possibility of
elaborating strategies aiming at ending the Violence Cycle, their appropriation of institutional
proposal of the Network to Confront Violence, their legitimating the cycles of confronting
violence and their re-signification of gender relations through their participation in the group.
1. REVISÃO DA LITERATURA..........................................................................................14
1.3 Violência.............................................................................................................................40
1.4.2 Tarefa...............................................................................................................................72
1.4.3 Aprendizagem-Comunicação...........................................................................................75
2 OBJETIVOS.........................................................................................................................88
2.2Objetivos Específicos...........................................................................................................88
3 MÉTODO.............................................................................................................................89
4 RESULTADOS.....................................................................................................................93
4.1 Um pouco da nossa história................................................................................................93
4.5 Sessão 04-26 de agosto de 2009-“Se você esta frequentando um grupo, você confia no
grupo”......................................................................................................................................154
5 DISCUSSÃO.......................................................................................................................166
Contagem/MG.........................................................................................................................188
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................209
REFERÊNCIAS....................................................................................................................212
ANEXOS................................................................................................................................219
LISTA DE FIGURAS
Encrencada pelo conceito que me guia neste trabalho (gênero) começo com o problema de
sua definição. Analogamente, como definir meu objeto de estudo: violência contra as
mulheres, violência de gênero, violência doméstica? Por que é tão difícil definir este
fenômeno e por que é tão difícil definir e utilizar o conceito gênero fora da Academia? A
violência de gênero seria uma conseqüência das relações desiguais entre os sexos construídas
culturalmente ou esta própria desigualdade seria uma forma de violência? O próprio
movimento feminista teve em suas várias épocas diferentes definições sobre quem
representava e contra qual adversário lutava. Minha aposta é que a forma de definir o
fenômeno guia o agir, a delimitação do problema e possíveis soluções a ele relacionadas. Não
que seja este meu objeto de estudo direto, mas a escolha teórica que faço de como definir
gênero e violência diz da forma que eu conduzirei meu trabalho de pesquisa.
O debate sobre o direito a não violência como parte dos direitos humanos das mulheres é alvo
de convenções e instrumentos internacionais que atribuem deveres aos estados signatários. A
Declaração de Viena foi o primeiro instrumento internacional a trazer a expressão direitos
14
humanos das mulheres como direitos inalienáveis e parte integrante e indivisível dos direitos
humanos universais. Também neste documento reafirma-se a erradicação das discriminações
de gênero como um dos objetivos prioritários da comunidade internacional. Reconhece a
Declaração de Viena que
O Brasil assumiu o compromisso perante o sistema global e regional de proteção dos direitos
humanos de coibir todas as formas de violência contra a mulher e adotar políticas destinadas a
prevenir, punir e erradicar a violência de gênero. Entre estas políticas foi criada a Secretaria
Especial de Políticas para as Mulheres (SPM) que assessora direta e imediatamente a
Presidência da República na formulação, coordenação e articulação de políticas para as
mulheres.
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Coordenadoria Municipal dos Direitos da Mulher de Belo Horizonte e de Lagoa Santa-
COMDIM, Centro de Referência de Atendimento à Mulher em Situação de Violência de
Contagem-Espaço Bem-Me-Quero, Bemvinda-Centro de Apoio à Mulher de Belo Horizonte,
Centro Risoleta Neves de Atendimento-CERNA, Conselho Estadual da Mulher de Minas
Gerais, Instituto Albam, Superintendência de Políticas Publicas para Mulheres de Sabará,
Secretaria Municipal de Ação Social da Prefeitura Municipal de Nova Lima, Casa Abrigo
Sempre Viva e Polícia Militar de Minas Gerais.
A cidade de Contagem/MG, por sua vez, criou a Coordenadoria Especial de Políticas para
Mulheres (CEPOM/PMC) através do Projeto de Lei Municipal nº 006 de 06/09/2005 com o
objetivo de elaborar, coordenar e executar políticas que assegurem o atendimento das
necessidades específicas da mulher e colaborem no combate às diferentes formas de
discriminação de gênero no município. Entre os programas desenvolvidos pela
Coordenadoria está o Espaço Bem-Me-Quero, que se dedica ao atendimento às mulheres em
situação de violência. O Espaço foi inaugurado no dia 08 de março de 2007, em consonância
com a Norma Técnica de Padronização dos Centros de Referência de Atendimento à Mulher,
da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM) do Governo Federal.
Nesse estudo a articulação em rede entre os poderes federal, estadual e municipal para o
enfrentamento à violência contra a mulher é entendida como um conjunto de saberes e de
estratégias de poder que atua sobre determinada ideologia vigente no Brasil atual em relação à
violência de gênero. Toda esta articulação política vem responder à urgência que as feministas
apontam, principalmente a partir da década de 1980, no Brasil, da necessidade de uma
resposta do poder público para a violência contra as mulheres.
16
instaurar uma nova racionalidade sobre a violência contra a mulher.
A legislação produzida mundial e nacionalmente nos últimos quinze anos, por exemplo, é um
dispositivo de poder muito importante na localização do fenômeno violência de gênero, pois
Da mesma forma, amparado no sistema jurídico, o discurso dos propositores das políticas
públicas e dos responsáveis pelos atendimentos nas instituições da Rede de Enfrentamento à
Violência “produz” o sujeito que diz “representar”, “defender”, “atender” e “encaminhar”.
17
do movimento feminista na sociedade, a partir da adoção do objeto mulheres como seu objeto
de interesse e a problemática de se adotar esta proposta abrangente, mas invisibilizadora de
diferenças. Apresentarei também as propostas de Scott (1999) e Butler (2003) de
historicização e subversão destes conceitos como a proposta guia desta dissertação.
Para contextualizar o Grupo que aceitou participar desta pesquisa comigo apresentarei no
capítulo “Resultados”, no tópico “Um pouco da nossa história”, a trajetória do Grupo (desde
a sua primeira sessão) apresentando os momentos mais marcantes no processo de legitimação
desta proposta e de suas participantes.
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1.2 HISTORICIZANDO E SUBVERTENDO CONCEITOS
Os que se propõem a codificar os sentidos das palavras lutam por uma causa
perdida, porque as palavras, como as idéias e as coisas que elas significam, têm uma
história. Nem os professores da Oxford nem a academia Francesa foram
inteiramente capazes de controlar a maré, de captar e fixar sentidos livres do jogo da
invenção e da imaginação humana (SCOTT, 1991, p. 1).
Sexo: sm. 1. Conformação particular que distingue o macho da fêmea, nos animais e
vegetais, atribuindo-lhes um papel determinado na geração. 2. O conjunto dos que
são do mesmo sexo. 3. Sensualidade, volúpia, lubricidade; sexualidade. 4. Bras. Os
órgãos genitais externos. O belo sexo: as mulheres, o sexo amável, o sexo frágil. O
sexo devoto: As beatas. O sexo forte: Os homens.
19
Por sua vez, o vocábulo gênero é apresentado através de sua fundamentação cultural e pela
diferenciação de acordo com o sexo e com a sociedade. Observamos também para esta
palavra a manutenção do binarismo feminino/masculino e do seu entendimento como
aglutinador de iguais, porém, em contraposição ao diferente.
Iniciando uma discussão sobre a forma culturalmente assumida pelo sexo (gênero)
observamos que os adjetivos frágil, belo e devoto são utilizados para o sexo feminino e o
adjetivo forte para o sexo masculino. O aparecimento destas expressões figurativas em um
dicionário diz da sua inteligibilidade e aceitação na linguagem do dia a dia de determinada
sociedade. Utilizarei desses exemplos e definições do dicionário para abordar alguns aspectos
da história dessas palavras e da forma como me aproprio delas nesse trabalho.
Segundo Scott (1991), a apresentação da palavra gênero como uma maneira de referir-se à
organização social da relação entre os sexos foi apropriada pelas feministas interessadas:
Para esse último fim, algumas feministas agregaram o estudo do gênero aos de classe
(amplamente discutidos pelos marxistas) e de raça (também em processo de assimilação
política pelos movimentos sociais). A análise das relações entre os sexos a partir desta tríade
é, ainda hoje, um desafio para os/as estudiosos/as do gênero.
Para além destes desafios e interesses, outros se agregam à história da discussão sobre o uso
do gênero/sexo como base política do feminismo. Neste trabalho irei me deter sobre alguns
destes riscos/desafios, quais sejam:
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a denúncia sobre a construção social da diferença entre os sexos deixar de fora o aspecto
culturalmente construído do uso de palavras como sexo, corpo e natureza e de manter-se fiel
ao binarismo masculino/feminino;
Em seu texto “Gênero: uma categoria útil para análise histórica”, originalmente publicado
em 1989, Scott alertava para a estratégia característica dos estudos feministas dos anos 80 de
substituição da categoria mulheres por gênero, propondo as duas palavras como sinônimas.
Esta estratégia visava dar legitimidade acadêmica e científica para os estudos sobre as
mulheres em busca de uma objetividade e erudição sem o risco de filiação ao discurso do
feminismo.
Para além desta estratégia, a utilização de gênero como substituto de mulheres refere-se ao
gênero como “um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas
entre os sexos” (SCOTT, 1991, p.14). Apesar da importância da denúncia da construção
social sobre o corpo das mulheres e dos homens, esta não pautava como questão o porquê ou
o como essas relações se constituíam, funcionavam e, por conseguinte, como poderiam ser
modificadas. Faltava aos estudos descritivos uma apropriação da discussão sobre os aspectos
político, histórico e as relações de poder no processo de definição dos conceitos sexo e
gênero. Scott (1991) alerta que sem este posicionamento dificilmente produzir-se-iam
propostas de mudanças, seja dos cânones da ciência ou dos paradigmas da história existente.
Até esse momento histórico, falar de mulheres/gênero era falar de um assunto secundário.
21
escola do pós-estruturalismo francês e da escola anglo-americana das relações de objeto. Cada
um destes diálogos carregou consigo as limitações de uma apropriação teórica e serão
apresentados como contrapontos para a proposta de conceitualização neste trabalho.
não se trata de abolir o uso do conceito de gênero, mas de eliminar sua utilização
exclusiva. Gênero é um conceito por demais palatável, porque é excessivamente
geral, a-histórico, apolítico e pretensamente neutro. Exatamente em função de sua
generalidade excessiva, apresenta grande grau de extensão, mas baixo nível de
compreensão. O patriarcado, ou ordem patriarcal de gênero, só se aplica a uma fase
histórica, não tendo a pretensão da generalidade nem da neutralidade, e deixando
propositalmente explícito o vetor da dominação-exploração. Perde-se em extensão,
porém, se ganha em compreensão. Entra-se no reino da História. Trata-se, pois, da
falocracia, do androcentrismo, da primazia do masculino. É, por conseguinte, um
22
conceito de ordem política (SAFFIOTI, 2004, p. 139).
Saffioti (2004) define gênero como “um conjunto de normas modeladoras dos seres humanos
em homens e em mulheres, normas estas expressas nas relações entre as duas categorias
sociais, ressalta(ndo)-se a necessidade de ampliar este conceito para as relações homem-
homem e mulher-mulher” (SAFFIOTI, 2004, p. 70).
Desta forma denuncia-se a subjugação dos corpos masculinos e femininos às normas culturais
modeladoras, onde o corpo e seu sexo são compreendidos como bases biológicas para este
tipo de normalização.
Saffioti (2004) também apresenta o alerta de Pateman para a teoria feminista sobre o perigo
de abandonar o uso do patriarcado de forma definitiva, pois isto representaria a “perda do
único conceito que se refere especificamente à sujeição da mulher, e que singulariza a forma
de direito político que todos os homens exercem pelo fato de serem homens” (PATTEMAN
apud SAFFIOTI, 2004, p.55).
As críticas a esta interpretação patriarcal se referem a sua pretensa universalidade, seu caráter
reducionista e a não relação ou utilização deste conceito para a explicação de outras
desigualdades sociais (SCOTT, 1991; BUTLER, 2003).
Esta discussão permite observar um dos muitos exemplos de luta pela busca de codificação de
sentidos. Através do percurso do feminismo vale a pena observar esta tentativa de se segurar
uma definição/explicação como única e definitiva, mas o que se percebe é como facilmente
ela escorre pelos nossos dedos como areia. Para além, cabe sempre se deter sobre os interesses
na escolha da utilização dos conceitos.
As feministas marxistas, por sua vez, buscaram guiar-se por uma abordagem histórica,
limitada, porém, pela busca de uma origem/explicação para o gênero. Apesar da rejeição do
essencialismo biológico como determinante para a divisão sexual do trabalho e da aceitação
do fato de que a subordinação das mulheres era anterior à subordinação ao capitalismo,
observa-se nesta abordagem uma constante utilização da causalidade econômica como origem
das desigualdades/diferenças entre os sexos. Aqui os dois sistemas (capitalista e de gênero)
eram vistos como separados, mas agindo reciprocamente na produção das estruturas sócio-
23
econômicas/históricas e de dominação masculina na sociedade. O patriarcado, por sai vez, era
entendido como um sistema separado, mas em interação com o capitalismo. Desta forma,
observamos que as teóricas feministas marxistas avançaram na discussão sobre o biológico
como justificativa das desigualdades, mas atrelaram a origem às desigualdades econômicas.
Observamos assim, que no afã de solucionar a charada da origem, os(as) marxistas
apresentaram uma das consequências das desigualdades como explicação causal e
determinista.
Assim, Scott (1991) conclui que nestas abordagens gênero não assume um estatuto próprio de
análise, seja por ser visto como subproduto das estruturas econômicas, ou por ser visto como
subproduto das estruturas corporais, físicas e culturais.
Apesar das críticas às abordagens patriarcais e marxistas muitos questionamentos podem ser
formulados. Inquestionavelmente, a divisão da sociedade capitalista em classes é um assunto
afim à discussão sobre as desigualdades sociais entre homens e mulheres, porém, o desafio
esta na discussão destas pautas entre si e com outras. Esta dificuldade fica (in)visível, por
exemplo, quando a estas pautas de discussão agregam-se o preconceito racial e/ou a
desigualdade entre as raças. Poucas são as discussões que realmente conseguem integrar estas
três pautas sociais não como afins, nem como justapostas, mas como expressões de poder que
atuam sobre os corpos (de homens e mulheres) de forma reiterada e constitutiva. Da mesma
forma que uma visão dicotômica da realidade pode ser questionada, uma tricotomia também
não serve como base para análise. Ou seja, o estudo da diferença e das desigualdades deve-se
pautar na tríade gênero/classe/raça para não correr o risco de fragmentar o que se deseja
visualizar/resolver/representar (SCOOT, 1991).
Este aspecto está diretamente ligado a outro tema muito caro para o feminismo: sua
representação na sociedade. Afinal que movimento político é este? Quem ele representa?
Como ele representa? Quais são suas estratégias? Como ele luta? Contra o quê e contra quem
é essa luta? Quais são seus aliados?
Para Butler, “embora afirmar a existência de um patriarcado universal não tenha mais a
credibilidade ostentada no passado, a noção de uma concepção genericamente compartilhada
de 'mulheres', corolário dessa perspectiva, tem se mostrado muito mais difícil de superar”
24
(BUTLER, 2003, p.21).
A mudança na utilização, sentido e definição de uma palavra como mulher e, por conseguinte,
em sua representatividade e aceitabilidade não se dá a não ser por meio de disputas, lutas de
poder. As palavras e seus significados não se constituem em um vácuo ou em interações
inocentes, imparciais e objetivas entre os sujeitos. Assim, ao se utilizar o conceito mulheres
deve-se perguntar a que (quais) mulher(es) se está(ão) referindo, qual(is) estão sendo
representada(s) e qual(is) estão sendo posicionadas fora deste discurso.
25
É minha sugestão que as supostas universalidade e unidade do sujeito do feminismo
são de fato minadas pelas restrições do discurso representacional em que funcionam.
Com efeito, a insistência prematura num sujeito estável do feminismo,
compreendido como uma categoria una das mulheres, gera, inevitavelmente,
múltiplas recusas a aceitar essa categoria. Esses domínios de exclusão revelam as
consequências coercitivas e reguladoras dessa construção, mesmo quando a
construção é elaborada com propósitos emancipatórios (BUTLER, 2003, p.21-22)
26
como os sujeitos são posicionados na relação e por qual discurso. Partindo de um tipo de
interpretação discursiva apaziguadora e respeitadora das diferenças binárias, por exemplo,
defende-se que caso reinasse o diálogo entre as diferenças/partes/sexos atingir-se-ia o fim das
desigualdades. Assim, não se questiona como cada uma das partes da discussão detém o
poder, sobre quais discursos pautam esta discussão (religioso/jurídico/científico/feminista) e
sobre como estes discursos perpassam e constituem todo o processo de discussão e os sujeitos
participantes.
Esta visualização das relações entre os sexos fundamenta-se na fixação da oposição binária e
antagônica entre masculino-feminino como a única relação possível e como um aspecto
permanente da condição humana. As desavenças se dariam invariavelmente entre os dois
sexos/gênero vistos como uma construção universal, antagônica, fundante do ser humano e
imutável. Este é um dos aspectos que Scott (1991) questiona na apropriação das teorias
psicanalíticas pelas feministas. O que a autora observa é que, apesar de se perceber o processo
da construção da identidade de gênero como um processo e de não se negar a instabilidade
desta identidade, as teorias de base psicanalítica tendem à universalização das categorias, sua
binarização e a reificação do antagonismo subjetivo entre homens e mulheres. O antagonismo
sexual como aspecto inevitável e fundante da aquisição da identidade sexual perpetua e
justifica proposições essencialistas e únicas para a apresentação de homens e mulheres na
sociedade. Desta forma, Scott (1991) demonstra como facilmente a apropriação destas bases
teóricas pode levar algumas feministas a reforçarem justamente a essencialização do feminino
na sociedade.
Em relação à teoria das relações objetais, Scott (1991) critica a limitação do conceito gênero à
esfera da família e à experiência doméstica. Com este recorte esta teoria perde de vista os
aspectos históricos e políticos da representação da sociedade sobre a construção de gênero,
não se perguntando sobre como “os sistemas de significados, isto é, as maneiras que as
27
sociedades representam o gênero, o utilizam para articular regras de relações sociais ou para
construir o sentido da experiência” (SCOTT, 1991, p.10).
A partir destas críticas, Scott (1991) defende que é necessário ao feminismo teorizar sobre sua
prática, utilizar-se do gênero como uma categoria para a análise e historicizar os conceitos
denunciando a apresentação e utilização de algumas categorias analíticas como reificadas e
transcendentes. Assim, ela conclama que
Fazendo coro a este convite Butler proclama que “rir de categorias sérias é indispensável para
o feminismo. Sem dúvida, o feminismo continua a exigir formas próprias de seriedade”
(BUTLER, 2003, p.8).
Desta forma, estudar a busca do movimento feminista por construir uma resposta teórica
diferente das apresentadas para as desigualdades permanentes entre mulheres e homens a
partir da história das várias utilizações da palavra gênero é historicizar o conceito, atentar-se
para seu aspecto discursivo, político, não evidente. Este mesmo exercício é proposto para o
estudo de conceitos como sexo, experiência, raça, mulheres e quaisquer outras categorias
normalmente tidas como auto-evidentes.
Historicizar conceitos é não apresentá-los como “a origem de nossas explicações, mas como
aquilo que buscamos explicar, aquilo sobre o qual se produz conhecimento. (...) É tratar as
categorias de análise como contextuais, contestáveis e contingentes (...) e suas histórias como
contestáveis e contraditórias” (SCOTT, 1999, p.27- 46-47).
29
Assim, em contraposição à busca das origens das categorias fundacionais do
sexo/gênero/corpo algumas feministas propõem uma análise crítica destas categorias como
efeitos de uma formação específica de poder. Butler (2003) propõe a subversão e o
deslocamento destas noções naturalizadas e reificadas através de uma genealogia da ontologia
do gênero. Para este fim, ela busca compreender “a produção discursiva da plausibilidade da
relação binária dos sexos” sugerindo “que certas configurações sociais culturais do gênero
assumem o lugar do 'real' e consolidam e incrementam sua hegemonia por meio de uma
autonaturalização apta e bem-sucedida” (BUTLER, 2003, p.58). A crítica genealógica
Scott (1991), por sua vez, apresenta sua definição de gênero a partir da conexão entre duas
proposições. Assim, o gênero seria para esta autora,
30
evitar as ciladas acima demonstradas. Foucault já nos alertava que se o poder é permitido é
por ele nos dar certa liberdade, sua aceitabilidade se dá justamente por fazer crer que possui
somente uma parte negativa (interditora). “O poder, como puro limite traçado à liberdade,
pelo menos em nossa sociedade, é a forma geral de sua aceitabilidade" (FOUCAULT, 1977,
p.83). Assim, seríamos livres ao obedecer, ou seja, temos o direito à liberdade se não nos
opormos ao caráter negativo e proibitivo do poder. Porém, o caráter mais pernicioso do poder
é o positivo, ou seja, a produção de posições, sujeitos, direitos, discursos, vidas através de
suas indicações. Não são sem consequências que se produzem regras, leis, penas, castigos. Ao
se produzir as normas, também, se produzem os lugares a serem ocupados pelos sujeitos a
quem elas se destinam. O caráter positivo do poder legitima a violência, por exemplo, ao
construir discursivamente quem é forte e quem é fraco, quem será punido ao desrespeitar a
Lei, quem tem o poder de punir, qual tipo de pena será aplicado e a própria construção
discursiva legitimadora do infrator. No caso da violência de gênero, homem e mulher são
produtos da relação de poder positiva e negativa do discurso sobre seus corpos e direitos. A
mulher, por exemplo, transita pelos lugares produzidos pelos dispositivos de poder, ora como
vítima e fraca; ora como responsável pela violência por não ter respondido às expectativas de
seu marido como mulher; ora como a cidadã que deve buscar seus direitos em uma instituição
que foi criada pelo poder estatal para defendê-la. Esta mesma instituição, porém, não hesita
em recomeçar o ciclo de violência posicionado-as discursivamente como passivas ou
responsáveis pela violência. A mulher e o homem dançam em um jogo de poder onde seus
corpos são ocupados por discursos que constituem assim sua subjetividade e seu lugar na
sociedade.
Desta forma, seja a partir de seu aspecto negativo (proibitivo e regulador) ou positivo
(generativo), o poder é entendido por Foucault como algo que não se dá ou se retira de
alguém nem como algo que está além de um ato de vontade individual baseada na liberdade
dos sujeitos. Assim sendo, por não ser possível destruí-lo ou negá-lo o que se pode fazer é
deslocá-lo através dos fossos e fissuras do discurso hegemônico. Acredito que se por um lado
temos a força das normas que tornam inteligíveis os corpos (e os discursos sobre eles) por
outro temos a possibilidade de sua rearticulação, a partir do questionamento da hegemonia
discursiva, “produzindo possibilidades de 'sujeitos' que não apenas ultrapassa os limites da
inteligibilidade cultural como efetivamente expandem as fronteiras do que é de fato
culturalmente inteligível” (BUTLER, 2003, p.54). Neste processo construtivo/desconstrutivo
31
verdades são desmanteladas e outras são iniciadas com o objetivo de produzir novas
categorias que possibilitem identidades de gênero subversivas.
Podemos, a partir de pequenas modificações, aplicar esta lista de perguntas aos conceitos de
raça, sexualidade e corpo. As pistas para as respostas a estas questões nos remetem à
discussão sobre a metafísica da presença e a vinculação da materialidade do corpo com a
performatividade do gênero (BUTLER,2003).
32
exemplo, definem gênero como o “princípio que transforma as diferenças biológicas entre os
sexos em desigualdades sociais, estruturando a sociedade sobre a assimetria das relações entre
homens e mulheres”. Em seu trabalho sobre mulher e violência, Heilborn (1996) define
gênero como
Assim, gênero é apresentado, na maioria das vezes, como uma construção social, histórica e
relacional. Em contraposição, sexo seria o natural dos corpos, biológico, binário e imutável.
Desta forma, a diferença sexual entre homens e mulheres apresenta a sua materialidade em
corpos aprisionados a um discurso onde ter nascido com determinado sexo predetermina toda
a vida social, cultural e relacional do ente biológico. Aqui natureza e cultura são postas em
balanças diferentes e cada uma carrega para seu prato outro conceito: para o lado da natureza
o sexo e para o lado da cultura o gênero. Butler coloca entre aspas o conceito de natureza e,
por conseguinte, o conceito de sexo. Ela afirma que ao ver a natureza como “o prato da
balança do sexo” deixamos de “compreender não apenas que a natureza tem uma história (e
não meramente uma história social), mas, também, que o sexo está posicionado de forma
ambígua em relação àquele conceito e à sua história” (BUTLER, 2007, p.157).
sexo não apenas funciona como uma norma, mas é parte de uma prática regulatória
que produz os corpos que governa, isto é, toda força regulatória manifesta-se como
uma espécie de poder produtivo, o poder de produzir, demarcar, fazer, circular,
diferenciar- os corpos que ela controla. Assim, o “sexo” é um ideal regulatório cuja
materialização é imposta: esta materialização ocorre (ou deixa de ocorrer) através
de certas práticas altamente reguladas. Em outras palavras o “sexo” é um construto
33
ideal que é forçosamente materializado através do tempo. Ele não é um simples fato
ou a condição estática de um corpo, mas um processo pelo qual as normas
regulatórias materializam o “sexo” e produzem essa materialização através de uma
reiteração forçada destas normas (Butler, 2007, 153- 154).
O sexo passa então a ser definido como uma construção histórica, social e discursiva, assim
como é gênero. Desta forma, a idéia de um corpo sexuado como um espaço em branco
produto da natureza e escrito pelas linhas do discurso da cultura não é mais adotada ingênua
e acriticamente. Estes questionamentos põem em suspeição as definições apresentadas para
gênero e sexo por algumas feministas.
Esta forma de apresentar sexo (à qual faço coro) compreende sexo como uma categoria
normativa que seria desde sempre gênero. Seguindo Butler percebemos como a aparente
solução encontrada pelo feminismo com a separação de sexo e gênero em dois campos
representativos, por um lado da natureza e por outro da cultura fragilizou ainda mais a noção
de um sujeito unívoco para o feminismo. Se a proposta era não mais ter como destino último
para o corpo da mulher a biologia, por outro lado tomou-se a cultura como o ponto de
ancoragem das apresentações possíveis/permitidas para este corpo. Sem questionar-se a
manutenção do sexo como natural binário (masculino e feminino), como sustentar que gênero
poderia seguir outras formas de apresentação? Apenas mudou-se o endereço da fixidez sobre
a apresentação da mulher nas relações. Assim, agora a mulher se tornava vítima de um gênero
que seguia uma linha de conduta aparentemente unívoca ditada pela cultura para cada um dos
sexos. Esta aparente solução, que se tornou mais uma malha de fixidez, ganha nova roupagem
quando se questiona seu próprio fundamento, o sexo. Assim, uma proposta feminista que não
se guia por estes questionamentos estaria reiterando o lugar da mulher no biológico, a
impossibilidade de mudança sobre o lugar dos corpos na cultura e perdendo de vista as inter-
relações de força que perpassam os corpos femininos na sociedade. Assim, com a manutenção
do binarismo “a 'especificidade' do feminino é mais uma vez totalmente descontextualizada,
analítica e politicamente separada da constituição de classe, raça, etnia e outros eixos de
relações de poder, os quais tanto constituem a 'identidade' como tornam equívoca a noção
singular de identidade” (BUTLER, 2003, p.21).
Na genealogia do gênero apresentada por Butler subverte-se a linha de raciocínio que analisa
sexo e gênero separadamente. A definição de gênero é reconstruída a partir da (des)
construção de sexo. Resumindo esta genealogia de gênero e sexo,
34
se o sexo é ele próprio uma categoria tomada em seu gênero, não faz sentido definir
gênero como a interpretação cultural do sexo. O gênero não deve ser meramente
concebido como a inscrição cultural de significado num sexo previamente dado
(uma concepção jurídica): tem de designar também o aparato mesmo de produção
mediante o qual os próprios sexos são estabelecidos. Resulta daí que o gênero não
está para a cultura como o sexo para a natureza; ele também é o meio
discursivo/cultural pelo qual “a natureza sexuada” ou “um sexo natural” é
produzido e estabelecido como “pré-discursivo” anterior à cultura, uma superfície
politicamente neutra sobre a qual age a cultura. (...) Na conjuntura atual, já está
claro que colocar a dualidade do sexo num domínio pré-discursivo é uma das
maneiras pelas quais a estabilidade interna e a estrutura binária do sexo são
eficazmente assegurada (BUTLER, 2003, p.25).
Desta forma, se o sexo não é o substrato sobre o qual o gênero ocorre caberia então uma
genealogia do corpo visto ser ele o último reduto de materialidade onde aparentemente
ocorrem o sexo e o gênero? Assim mais um conceito deve ser compreendido a partir de sua
construção discursiva: corpo. Se o sexo se apresenta em um corpo pré-dado pela natureza
devemos também realizar sobre ele o mesmo tipo de questionamento? Qual a história deste
corpo? Como se dá sua construção? Seria o corpo um ente realmente pré-discursivo e anterior
à Lei? A cada nova sabatina sobre conceitos apresentados como fundantes e como
inquestionáveis em sua origem, denuncia-se mais a construção discursiva com todas as
implicações históricas, políticas e sociais que isto acarreta. Assim, realizarei a discussão sobre
o corpo e sua materialidade vinculada à discussão anterior sobre a normatização do sexo.
Desta forma sexo/gênero/corpo se materializam a partir das normas regulatórias e não o
contrário, ou seja, não se parte de um corpo/sexo/gênero dado para o qual são ditadas regras,
mas são, justamente, neste processo reiterado de regulação que se configuram suas
materialidades.
A partir desta discussão nega-se a metafísica do sujeito volitivo e anterior ao discurso e à Lei,
lançando questionamentos à própria gramática que se estrutura a partir do sujeito seguido de
um predicado (e nunca o inverso). Butler sugere que é preciso
uma certa desconfiança relativamente à gramática para conceber o tema sob uma luz
diferente. Pois se o gênero é construído, ele não é necessariamente construído por
um “eu” ou por um “nós” que se coloca “antes” daquela construção em qualquer
sentido espacial ou temporal de “antes” (BUTLER, 2007, p.160).
Busquei minha referência na noção de Monique Wittig de 'contrato heterossexual' e em menor medida, naquela
de Adrienne Rich de 'heterossexualidade compulsória' para caracterizar o modelo discursivo/epistemológico
hegemônico da inteligibilidade do gênero, o qual presume que, para os corpos serem coerentes e fazerem sentido
(masculino expressa macho, feminino expressa fêmea), é necessário haver um sexo estável, expresso por um
gênero, que é definido oposicional e hierarquicamente por meio da prática compulsória da heterossexualidade”
(BUTLER, 2003, p.216).
36
Posicionando-se sobre as variações de conceituação para estes termos, Azerêdo (2007)
apresenta definições para gênero/sexo e feminino/masculino que vão ao encontro da
discussão apresentada acima:
38
se posicionar frente a apresentações tão diversas e divergentes sobre estes conceitos para os
fins que o próprio movimento se propõe?
Buscando evitar a cilada de me perder na busca de um objeto de estudo que não se define ou
que recebe uma definição tão ampla a ponto de ser acusado de não representar ninguém, adoto
o privilégio da perspectiva parcial, defendido por Donna Haraway (1995). Esta autora
questiona a objetividade defendida pela Ciência e apresenta seu texto como um “argumento a
favor do conhecimento situado e corporificado e contra várias formas de postulados de
conhecimento não localizáveis e, portanto, irresponsáveis. Irresponsável significa incapaz de
ser chamado a prestar contas” (HARAWAY, 1995, p.22). A meu ver, seria uma
irresponsabilidade, portanto, estudar um fenômeno como a violência contra as mulheres, sem
antes posicionar sobre quais são as mulheres sobre quem estou falando, como entendo este
coletivo, como defino a violência e contra qual tipo de violência pretendo dedicar meu estudo.
39
Aliado ao saber localizado está o posicionar-se do pesquisador como prática chave, base do
conhecimento organizado. Resumidamente, podemos afirmar que a questão da ciência para o
feminismo diz respeito à objetividade como racionalidade posicionada. Por isso, a
necessidade que sinto de apresentar cada conceito escolhido entre os tantos delimitados, para
dizer de onde falo como e de quem falo nesta dissertação. Adoto a parcialidade como
apresentada por Haraway.
Sobre a pretensão de ao se ocupar o lugar de pesquisadora estar habilitada a falar por outras
mulheres não cientistas ou de dar visibilidade às suas experiências cabe apresentar a definição
do papel do intelectual de Foucault em sua conversa com Deleuze. Para Foucault o papel do
intelectual não seria
mais o de se colocar “um pouco na frente ou um pouco de lado” para dizer a muda
verdade de todos; é antes o de lutar contra as formas de poder exatamente onde ele
é, ao mesmo tempo, o objeto e o instrumento: na ordem do saber, da “verdade”, da
“consciência”, do discurso. É por isso que a teoria não expressará, não traduzirá,
não aplicará uma prática. Ela é uma prática. Mas local e regional: (...) não
totalizadora. Luta contra o poder, luta para fazê-lo aparecer e feri-lo onde ele é mais
invisível e mais insidioso (FOUCAULT, 1979, p.71).
1.3 VIOLÊNCIA
Essa violência que insiste em entrar no debate acadêmico depois de ter deixado
inúmeras, diversificadas e profundas marcas em mulheres, em escala global, ainda
não foi nominada apropriadamente. Maldita ela é para todas/os que a
40
experimentaram e para todas/os que tentaram enfrentá-la e mediá-la. Mal-dita ela é
para todas/os que tentam estudá-la (ALMEIDA, 2007, p.23).
A maldição deste fenômeno faz com que ele receba diferenciadas definições: violência
contra a mulher, violência intrafamiliar, violência doméstica e/ou violência de gênero. Neste
estudo, interessam as consequências dos posicionamentos políticos, teóricos e práticos no
enfrentamento do fenômeno a partir da definição escolhida. Desta forma, sustentamos que a
forma de definir este tipo de violência pode servir para naturalizar, dicotomizar,
essencializar, escamotear, simplificar, obscurecer e/ou dificultar seu enfrentamento.
Iniciarei esta discussão pela conceituação: violência contra a mulher forma comumente
encontrada de referência ao fenômeno, inclusive em materiais produzidos pelos dispositivos
da rede de enfrentamento da violência contra as mulheres nacionais e internacionais:
Declaração de Viena (1993) 2, Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a
Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará) (1994), Declaração sobre a
Eliminação da Violência contra a Mulher (1993), no I e II Plano Nacional de Políticas para as
Mulheres (2004/2008) e na Lei 11340 (2006).
2
Art. 22 “A Conferência Mundial sobre Direitos Humanos solicita a todos os Governos que tomem todas as
medidas adequadas, em conformidade com suas obrigações internacionais e levando em devida conta seus
respectivos sistemas jurídicos, para fazer frente à intolerância e formas análogas de violência baseadas em
posturas religiosas ou crenças, inclusive práticas de discriminação contra as mulheres e a profanação de locais
religiosos, reconhecendo que todos os indivíduos têm direito à liberdade de pensamento, de consciência, de
expressão e de religião. A Conferência convida também todos os Estados a aplicarem, na prática, as disposições
da Declaração sobre a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e Discriminação Racial Baseadas em
Religião ou Crenças. (...) Art.38. A Conferência Mundial sobre Direitos Humanos enfatiza particularmente a
importância de se trabalhar no sentido de eliminar todas as formas de violência contra as mulheres na vida
pública e privada, de eliminar todas as formas de assédio sexual, exploração e tráfico de mulheres, de eliminar
preconceitos sexuais na administração da justiça e erradicar quaisquer conflitos que possam surgir entre os
direitos da mulher e as conseqüências nocivas de determinadas práticas tradicionais ou costumeiras, do
preconceito cultural e do extremismo religioso. A Conferência Mundial sobre Direitos Humanos apela à
Assembléia Geral para que adote o projeto de declaração sobre a violência contra a mulher e insta os Estados a
combaterem a violência contra a mulher em conformidade com as disposições da declaração. As violações dos
direitos humanos da mulher em situações de conflito armado são violações de princípios fundamentais dos
instrumentos internacionais de direitos humanos e do direito humanitário. Todas as violações desse tipo,
incluindo particularmente assassinatos, estupros sistemáticos, escravidão sexual e gravidez forçada, exigem uma
resposta particularmente eficaz. (Grifos meus). (DECLARAÇÃO DE VIENA, 1993)
41
ocorrência da violência é baseada no entendimento de gênero como o arcabouço cultural que
diferencia a socialização dos sexos. No artigo oitavo desta Convenção utiliza-se gênero como
sinônimo ou substituindo a noção de sexo biológico binário.
42
situação de violência. Observam-se alguns aspectos interessantes em relação à definição do
objeto a ser enfrentado. Utiliza-se tanto a expressão violência de gênero quanto violência
contra a mulher, sendo mais frequente a apresentação da última.
Como nos outros documentos reconhece-se que a violência contra a mulher é sustentada por
questões culturais e ideológicas. Esta definição é mais abrangente por reconhecer que os
homens também são alvos de violência em decorrência das desigualdades das relações de
gênero, e também por nomeá-los como detentores do poder que os legitima a praticar a
violência contra a mulher, sustentada por esta mesma ideologia. Esta apresentação do
fenômeno é mais próxima do que ocorre na realidade e, de certa forma, retira a mulher do
lugar de vítima ao optar por levar a discussão para as desigualdades nas relações de gênero
que atingem de forma diferenciada aos homens e mulheres. Também considero muito
oportuna a apresentação das desigualdades salariais e o uso do corpo como objeto como
formas de violência contra a mulher, ampliando o debate. Este aspecto vai ao encontro da
compreensão da violência neste estudo, que se encontra muito além das formas elencadas
como: a violência física, sexual e psicológica. Este documento também acrescenta a esta
discussão outras formas de discriminação/violência (raça, etnia, orientação sexual) apostando
em ações que não separem estes eixos de discussão, mas os assumam como interatuantes.
43
visando o enfrentamento às desigualdades de gênero, raça e etnia, a promoção da igualdade de
gênero e a busca da equidade de gênero (SECRETARIA ESPECIAL DE POLÍTICAS PARA
AS MULHERES, 2004). A discussão sobre a violência contra a mulher é realizada a partir da
constatação de uma desigualdade de gênero (raça, etnia, orientação sexual) e da meta de
elaboração de ações que promovam a igualdade de gênero. Destacam-se entre as ações
propostas o oferecimento de capacitações e qualificações de: agentes públicos em gênero, raça
e direitos humanos e de profissionais das áreas de segurança pública, saúde, educação e
assistência psicossocial na temática da violência de gênero, através da inserção de uma
disciplina, na matriz curricular das Academias de Polícia, que discuta a desigualdade de
gênero e suas conseqüências para mulheres e homens. Além disto, apresentam-se propostas
para incentivar a incorporação do enfoque de gênero na execução de Políticas e Programas do
Ministério da Saúde e para implantar projetos pilotos de um modelo de atenção à saúde
mental das mulheres na perspectiva de gênero também são incentivadas: a promoção de ações
no processo educacional para a eqüidade de gênero, raça, etnia e orientação sexual e o
combate aos estereótipos de gênero, raça e etnia na cultura e na comunicação.
Pelo exposto acima, percebe-se que a definição do objeto de ação define a elaboração das
ações para enfrentá-lo. Por isso, a importância da delimitação adequada do problema alvo.
Quando se debruça sobre a problemática da violência contra a mulher com o intuito de
elaboração de Políticas Públicas faz diferença se a esta discussão se agrega à perspectiva de
gênero, raça e orientação sexual, por exemplo. Desta forma, a definição do fenômeno se dá
como violência contra a mulher, compreendida a partir das desigualdades de gênero. Gênero
sendo apreendido novamente como categoria transversal, analítica e de base sócio-cultural.
Em agosto de 2.007, foi elaborado o II Plano Nacional de Políticas para Mulheres a partir da
discussão realizada entre 2.700 delegadas representantes de todo o país. Diferente do
documento anterior, este foi apresentado não mais como um plano para mulheres: “É um
Plano de Governo. Este não é um Plano que traz benefícios só para as mulheres. É um Plano
que beneficia toda a sociedade” (SECRETARIA ESPECIAL DE POLÍTICAS PARA AS
MULHERES, 2008, p. 07). Esta apresentação, além da reafirmar a importância da categoria
mulher como sujeito das políticas públicas, amplia a discussão, compromisso e consequências
das ações de enfrentamento deste tipo de violência para toda a sociedade. É um caminhar para
a reafirmação do entendimento desta problemática não como privada e relacional, mas como
44
histórica, política e social. O subitem IV do II Plano tem o título “Enfrentamento a todas as
formas de violência contra a mulher” e o mote “Uma vida sem violência é um direito das
mulheres. A violência contra as mulheres realimenta a violência geral na sociedade”. Esta
visão do fenômeno leva em consideração as variadas consequências para a sociedade deste
tipo de violência, demonstrando que esta discussão/ações não se baseia na busca de
privilégios para as mulheres, mas na adoção de propostas equânimes para a sociedade. A
compreensão da dinâmica da violência como cíclica e retroalimentadora leva à adoção de
ações e objetivos de caráter preventivo/educativo e articulado com outras pautas. Desta forma,
neste Plano delimitam-se como objetivos específicos, entre outros:
A priorização destes três eixos (institucional, jurídico e público) é a base das Políticas
Públicas de Enfrentamento á Violência contra a Mulher guiadas atualmente pelos documentos
do Governo Brasileiro.
Para além, também se destacam a adoção da nomeação de grupos de mulheres alvos das
políticas e o princípio da igualdade e respeito à diversidade na elaboração das políticas
públicas de enfrentamento à violência. A nomeação das “mulheres do campo e da floresta, das
encarceradas, das vítimas do tráfico e da exploração sexual e das que exercem a prostituição,
das idosas, das jovens, das lésbicas, das negras e das que vivem em comunidades tradicionais”
45
(SECRETARIA ESPECIAL DE POLÍTICAS PARA AS MULHERES, 2008) como público
alvo no referido documento aponta para a importância e/ou necessidade de localizar as
mulheres na homogeneidade da categoria. Pois, no jogo de abjeção e invisibilidade social,
estas mulheres poderiam estar invisibilizadas pelas “outras” “da cidade grande”, não “putas”,
“livres”, não “encarceradas”, “brancas”, “heterossexuais” e “urbanas”. Entendo esta
redefinição de objetivos e prioridades apresentadas no II Plano como mostra da apropriação
crescente das delegadas e da Secretaria Especial de Políticas para Mulheres das discussões
dos movimentos sociais, como o feminismo, sobre a negação de uma postura essencializadora
da categoria mulheres como guia da agenda de construção de políticas públicas.
Pelo exposto acima, a violência contra a mulher é compreendida como uma expressão das
desigualdades estruturais de nossa sociedade (gênero/raça/etnia/orientação sexual)
interligadas. Considero esta uma abordagem possível e interessante, principalmente, por
agregar à discussão da violência de gênero outras pautas que, muitas vezes, são tomadas como
à parte desta discussão. O desafio de interligá-las, apresentado nestes documentos, é um guia
interessante, tanto para ações públicas como para discussões teóricas sobre o assunto. A
importância desta forma de apresentar o fenômeno se dá pela possibilidade de proposição de
políticas de enfrentamento pautadas por esta complexidade do fenômeno, ou pela mal-dição
desta violência, como diria Suely Almeida (2007). Considero que mesmo que efetivamente
não se atinja êxito na implementação destas ações públicas governamentais, pelo menos, se
inaugurou uma discussão da temática no âmbito governamental localizada e parcial.
Assim, percebe-se que a adoção do conceito violência contra a mulher se adotada sem uma
discussão concomitante, por exemplo, sobre as desigualdades de gênero/raça/etnia/orientação
46
sexual, guia-se por uma cristalização da categoria mulheres que polariza a discussão entre
vítimas/mulheres e agressores/homens, enviesando o enfrentamento do fenômeno.
Assim, sobre a adoção da definição violência contra a mulher, Almeida aponta como pontos
problemáticos o fato dela “enfatiza(r) o alvo contra o qual a violência é dirigida. É uma
violência que não tem sujeito, só objeto; acentua o lugar da vítima, além de sugerir a
unilateralidade do ato. Não se inscreve, portanto, em um contexto relacional”
(ALMEIDA,2007,p. 23). Azerêdo, por sua vez, a define como uma violência que “inclui
mulheres de qualquer faixa etária na posição de vitimadas, exclui homens em qualquer
circunstância. Além disso, existem certos tipos de agressão, tipificados como crime, que só
podem ser perpetrados por homens e contra mulheres (o estupro, por exemplo)”
(AZERÊDO, 2007, p.120). Para Pougy (2007), com a adoção da definição do fenômeno
como violência contra a mulher
Considero muito oportuna a colocação de que a escolha desta terminologia leva a uma
despolitização e patologização do fenômeno dando à discussão um viés individual e
patologizante.
Analisando estas colocações sobre a violência contra a mulher, observamos ser esta uma
forma de conceituação que focaliza a categoria mulher como alvo da violência, não se
ocupando em delimitar quem pratica a violência, dando um enfoque vitimista para o
fenômeno. Recebe como ponto favorável para sua utilização o fato de ser “a única a ressaltar
de forma inequívoca a vítima preferencial de determinadas modalidades de violência”
(ALMEIDA, 2007, p.24). Outro fator a ser questionado sobre a adoção desta definição do
fenômeno é que, apesar de se referir à violência contra as mulheres de todas as faixas etárias,
vale a pena problematizar que as políticas de garantia de direitos das mulheres menores de
dezoito anos e de idade igual ou maior que sessenta anos são abrangidas, respectivamente,
pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, Conselhos Tutelares e Varas da Infância e da
Juventude e pela Defensoria dos Idosos, respaldada pelo Estatuto do Idoso. Ressalta-se que
47
não há nenhuma restrição na Lei Maria da Penha e/ou nas normas de funcionamento dos
Centros de Referência sobre o atendimento a estas clientelas e que, inclusive, as Delegacias
Especializadas em Crimes Contra a Mulher assumiram para si também a clientela das
idosas/os. Porém, na prática, estas faixas etárias são reencaminhadas para outros dispositivos,
no intuito de receberem um atendimento mais especializado. Desta forma, pode-se concluir
que a violência contra as mulheres recebe resposta dos dispositivos de poder governamentais
através de recortes de faixa etária. Assim, reafirma-se a impossibilidade discursiva de se
adotar a categoria mulher como alvo de pesquisas, análises e políticas públicas sem antes
delimitar a qual “grupo de mulheres” se faz referência. Considero que não ocorre um erro
nestes casos, mas uma imprecisão que gera, na prática, situações de revitimização
institucional, burocracia nos encaminhamentos da Rede e incompreensão por parte das
mulheres reencaminhadas.
A violência doméstica chega à cena pública basicamente por dois caminhos: pela via
do feminismo e pela via dos estudos de família. Uns e outros se utilizam de
evidências empíricas para mostrar que a casa é um espaço de conflitos, de tensões e
de negociações permanentemente repostas, não sendo apenas um lugar de
construção das identidades, espaço de referência e refúgio. Se a casa atende às
necessidades básicas dos indivíduos, também é campo de lutas declaradas. Os novos
movimentos sociais - em especial, o feminismo - conseguiram incorporar a violência
doméstica como tema ou sub-tema da violência, e no caso em questão, da violência
de gênero - afirmação esta que pode ser parcialmente contestada. O que me chama a
atenção é o fato de se ter tornado um debate público, incorporada sua dimensão
pública, e ampliada a compreensão do que compõe o “lugar da violência” nas redes
sociais (SMIGAY, 2000, p.47-48).
48
Assim, mais uma vez, ressalta-se a importância dos movimentos de publicização da violência
de gênero contra as mulheres que ocorre no ambiente doméstico. Este parece ser um ponto
de acordo entre várias abordagens teóricas e políticas públicas de enfrentamento a este tipo
de violência. Como exemplos, podem-se citar as várias campanhas de órgãos públicos e de
ONGs incitando a mulher (e a sociedade) a procurar ajuda e denunciar a ocorrência desta
violência.
Almeida reafirma que a definição de violência doméstica pauta-se justamente por “uma
noção espacializada que designa o que é próprio à esfera privada - dimensão da vida social
que vem sendo historicamente contraposta ao público, ao político. Enfatiza uma esfera da
vida, independentemente do sujeito, do objeto ou vetor da ação” (ALMEIDA, 2007, p. 23).
Mais uma vez, a autora aponta que esta conceituação não se preocupa em definir as partes
envolvidas na situação, como no caso da violência contra a mulher.
Apresentando outros aspectos e participantes deste tipo de violência, Azerêdo (2007) amplia
o conceito problematizando que na violência doméstica,
os envolvidos vivem, parcial ou integralmente, no mesmo domicílio, cujo espaço pode ser
real ou simbólico. Não ocorre apenas, e necessariamente, entre parentes, alcançando
também agregados e empregadas domésticas abusadas e assediadas sexualmente por seus
patrões, por exemplo. Esta modalidade inclui ainda a violência perpetrada por mulheres
que, embora ínfima quando praticadas contra homens, é significativa quando os vitimados
(as) são crianças e adolescentes (AZERÊDO, 2007, p.120).
A definição de Saffioti para a violência doméstica coaduna com a de Azerêdo. A autora vai
além, chamando a atenção para o fato de que
Chama a atenção, nas duas últimas definições, a afirmação de que o espaço da ocorrência
desta violência não se circunscreve ao geográfico, mas também ao aspecto simbólico,
demonstrando que a delimitação no âmbito doméstico é no mínimo, incompleta e/ou
insuficiente. Esta discussão é importante para que se possam abarcar no debate sobre o
49
enfrentamento a este fenômeno, cenas de violência que ocorrem além dos muros do lar e das
ligações familiares, seguindo a mesma dinâmica da violência ocorrida no âmbito doméstico e
no seio familiar. Como exemplos têm-se os casos de femicídio contra namoradas, ex-esposas
após o divórcio, onde apesar do fim do vínculo afetivo ou da não coabitação a violência
ocorre, nos mesmos moldes da violência doméstica.
A definição de Azerêdo (2007) não apresenta muitas diferenças, mas chama a atenção para
um tipo específico de violência familiar o incesto.
A partir das definições apresentadas acima se percebe que cada teórica, partindo de um
princípio, acrescenta um tópico à discussão, demonstrando como há uma miríade de
tentativas de delimitação deste fenômeno. Aliado a isto, o que ocorre, algumas vezes, é um
uso indiscriminado e impreciso dos conceitos como sinônimos. A violência doméstica, por
exemplo, é muitas vezes entendida ou apresentada como violência familiar ou intrafamiliar.
Para além, também ocorre a substituição da expressão violência contra a mulher por uma
destas outras duas. Estas substituições devem ser problematizadas, principalmente, na
50
elaboração de documentos de políticas públicas, na eleição de objetos para pesquisas, escrita
de artigos e elaboração de ações de enfrentamento a estes fenômenos, pois cada um tem suas
especificidades que não devem ser escamoteadas sob o risco de se produzir materiais que
devido à amplitude correm o risco de não atingir seus objetivos. Concordo com as colocações
de Araújo (2005) e Smigay (2000) sobre o assunto. Smigay (2000) alerta para “um
alargamento do campo que não facilita em nada a comunicação" (SMIGAY, 2000, p.48) e
Araújo (2005) aponta que ao se substituir, por exemplo, violência doméstica por violência
familiar,
Na delimitação do objeto da Lei Maria da Penha, por exemplo, utiliza-se das definições
apresentadas acima de forma muito peculiar. Esta Lei tem como objeto jurídico a coibição da
violência doméstica e familiar contra a mulher, definindo estes fenômenos sociais como
crimes. No quinto capítulo desta Lei é apresentada a definição do crime que ela objetiva
coibir e, no capítulo sétimo, a tipificação das formas de ocorrência destas violências. Estes
dois artigos são de grande importância para o processo de enfrentamento à violência por
apresentarem uma delimitação o mais clara possível para este fenômeno, envolto em tantas
(in) definições.
Art. 5º Para os efeitos desta Lei configura violência doméstica e familiar contra a
mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão,
sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial: I - no âmbito
da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de
pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas; II -
no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos
que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou
por vontade expressa; III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor
conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.
Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de
orientação sexual.
(...)
Art. 7º São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras: I
- a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou
saúde corporal; II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que
lhe cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e
perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações,
comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento,
humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz,
51
insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou
qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à
autodeterminação; III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a
constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada,
mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar
ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer
método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à
prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite
ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos; IV - a violência
patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração,
destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos
pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a
satisfazer suas necessidades; V - a violência moral, entendida como qualquer
conduta que configure calúnia, difamação ou injúria (BRASIL. Lei Nº 11340, de 07
de agosto de 2006).
Estes dois artigos são importantes por serem guias na delimitação do público alvo/crime a
quem a Lei se destina. A importância do artigo sétimo se dá por apresentar as várias formas
de ocorrência do fenômeno, justificando o registro de queixas em unidades policiais contra a
violência psicológica, moral ou patrimonial, indiferente da concomitância de ocorrência entre
estas e com a violência física. Esta é considerada uma das inovações desta Lei, pela
possibilidade de legitimação das queixas sobre estas formas de violências anteriormente
subvalorizadas pela Lei e pelas autoridades policiais e diluídas em outras legislações,
dificultando sua coibição. Outro ganho que merece destaque é a inclusão da orientação
sexual nesta pauta, determinando que a coibição e ocorrência deste tipo de violência
independem da orientação sexual da mulher.
Porém, esta escolha abre brechas na prática da aplicação da Lei, no que se refere ao
entendimento sobre o público alvo e a caracterização do ambiente de ocorrência da violência
e dos participantes das cenas pelos dispositivos de enfrentamento elencados na Lei Maria da
Penha (autoridades policiais, do poder judiciário e da área social, de saúde, educação,
trabalho e habitação). Na prática, a leitura do que inclui/seja o doméstico, o familiar e as
mulheres é bem particular. Comumente violência doméstica é aquela que ocorre dentro no lar
entre marido e mulher, sem alcançar os outros agregados ou familiares, como tios, primos e
irmãos, por exemplo. No caso das adolescentes, entende-se este público-alvo como da
competência dos Conselhos Tutelares, mesmo em casos de violência de ex-namorados, por
exemplo, gerando dupla caracterização do crime, o que só torna mais morosa a apuração do
ocorrido. Outro exemplo, problematizado na definição de Azerêdo (2007), é o das
empregadas domésticas. Nestes casos, poderíamos ter como um dos avanços desta Lei, a
possibilidade de amparo das empregadas domésticas violentadas no ambiente doméstico por
52
seus/suas empregadores/as, mas, na prática, a caracterização desta violência como doméstica
é desqualificada justamente por causa do entendimento do que seja doméstico e familiar
(dentro de casa e entre pessoas da mesma família, prioritariamente marido e mulher). Nestes
casos, algumas vezes os próprios dispositivos encaminham ex-namoradas, ex-companheiras,
adolescentes ou empregadas violentadas para Delegacias comuns. No caso da mulher como a
violentadora no ambiente doméstico, principalmente, em relação aos filhos (mas também em
relação aos próprios companheiros), vale apresentar um ponto de problematização de
Welzer-Lang apresentado por Heleieth Saffioti.
a violência doméstica é masculina, sendo exercida pela mulher por delegação do chefe do
grupo familiar. Como ela é o primeiro modo de regulação das relações sociais entre os
sexos, é desde criança que se experimenta a dominação-exploração do patriarca, seja
diretamente, seja usando a mulher adulta (...). Nos termos de Welzer-Lang “a violência
doméstica tem um gênero: o masculino, qualquer que seja o sexo físico do/da dominante”
Desta sorte, a mulher é violenta no exercício da função patriarcal ou viriarcal (SAFFIOTI,
2004, p.73-74).
Ainda em relação à Lei Maria da Penha, vale ressaltar que nela também se baseia a
ocorrência da violência nas desigualdades de gênero, como nos documentos discutidos
anteriormente. Assim, reafirma-se o consenso do discurso do dispositivo de enfrentamento a
esta violência a partir da judicialização e publicização e da proposição de ações. A
delimitação pelas expressões violência contra a mulher e violência doméstica desta forma se
consolidou como objeto de pauta política e permitiu a ampliação, publicização e discussão de
seu enfrentamento.
53
Outra nomeação bastante recorrente é violência de gênero como uma forma de apontar
diretamente o foco da violência para a estruturação da sociedade a partir das desigualdades
de gênero.
Almeida (2007), por exemplo, considera ser esta a melhor definição para o fenômeno, apesar
de não negar que
Observa-se que, para Almeida, o desenho do gênero está em sua construção social e a
violência de gênero estaria diretamente vinculada à desigualdade fundante deste processo
construtivo e constitutivo que se dá através do trabalho constante das instituições sociais,
como a família, para sua reiteração e perpetuação. Percebe-se, portanto, que a violência de
gênero seria um dos resultados/consequências de ações pautadas na matriz hegemônica de
gênero.
55
A subversão produzida pela escrita de Butler deve nos guiar no sentido de instituir
discursivamente um novo domínio para a discussão de temas como a violência de gênero. Ao
colocar entre aspas os conceitos mais caros para o feminismo, Butler redefine esta luta, seus
soldados e seus inimigos. Butler (2003) aposta na subversão de conceitos
A fixidez das identidades de gênero e dos papéis sociais de gênero que se mantêm a custa de
muita violência física, psicológica, moral, sexual e patrimonial pode ser comparada a um
Muro constantemente reforçado para que não sejam visibilizadas suas rachaduras e ou
deslizes. A compreensão de sexo/gênero como resultado da reiteração performativa permite,
por outro lado, a possibilidade de que os fossos e fissuras do Muro escamoteados durante o
processo constante de reiteração e justificação discursiva das práticas reguladoras da
coerência do gênero sejam visibilizados.
Neste propósito, interessa-nos o estudo realizado por Mariza Corrêa (1983) sobre “processos
judiciais resultantes de homicídios entre casais, legal ou consensualmente estabelecidos, que
ocorreram em Campinas nas décadas de 50 e 60” (CORRÊA, 1983, p.11) e a dissertação de
Camila de Souza Menezes que analisa o processo de constituição do atendimento na
Delegacia Especializada de Crimes Contra a Mulher de Belo Horizonte, defendida em 2008.
56
Estes dois estudos separados por vinte e cinco anos, com linhas teóricas diferentes, são
consensuais em um aspecto: na apresentação da forma como os “crimes de gênero” são
“atendidos”, “construídos”, “recontados” e “deslegitimados” pelo aparato do judiciário (no
primeiro caso) e pelo aparato policial (no segundo caso) segundo as normas da matriz
heteronormativa. Interessa-nos esta constatação por demonstrar como o processo de
enfrentamento institucional e público da violência de gênero é perpassado pelo discurso que
sustenta justamente o fenômeno que busca coibir, o que pode ser observado também nas falas
das participantes do Grupo.
Corrêa (1983) demonstra como os processos dos chamados “crimes de paixão” são
transformados em fábulas pelos “manipuladores técnicos”: advogados de defesa e acusação,
delegados e juízes. Menezes (2008) busca a partir do “trabalho real” em contraposição ao
“trabalho prescrito” dos agentes da Delegacia, observar como a interpretação realizada por
eles da trama relatada pelas mulheres é o que guia o entendimento e os encaminhamentos da
queixa-crime apresentada. Assim, apesar de um processo de homicídio obedecer a etapas
formalmente prescritas e do trabalho dos policiais civis também seguir um protocolo legal,
estes estudos buscam demonstrar que “a interpretação que é feita (dos atos/autos) está sempre
sujeita às possibilidades discursivas disponíveis, segundo critérios de maior ou menor
visibilidade ocasionados por relações de poder” (MENEZES, 2008, p.32). E também que todo
o caminho percorrido por um processo (da instauração do inquérito até seu julgamento pelo
júri) é marcado por uma liberdade/manipulação dos “manipuladores técnicos” através de uma
série de estratégias empregadas em contraposição às normas escritas técnicas. Como
apresentado por Corrêa (1983)
Não que a busca da verdade seja o objetivo único dos processos ou dos inquéritos policiais,
mas, cientes desta manipulação cabe perguntar quais são as bases que sustentam este
“processo paralelo” e quais os impactos disto para o enfrentamento à violência de gênero.
Corrêa (1983) sustenta que “os atos são transformados em autos, quer dizer, remontados a
partir de um esquema de ‘crenças’, ‘valores’, ‘normas’, ou ‘usos’ do grupo que encaminha o
57
caso para julgamento e que finalmente decide sobre ele” (CORRÊA, 1983, p.79). Na
apresentação detalhada por ela de vários processos de homicídio e tentativas de homicídio
percebe-se este esquema agindo segundo o sexo do autor do crime, os motivos para o crime e
os argumentos utilizados na defesa e na acusação dos envolvidos. Em seu estudo ela apresenta
como as penas aplicadas são variáveis segundo o sexo do autor do crime e que e os motivos
utilizados para justificar os crimes também são diferenciados.
As penas recebidas pelas mulheres são mais leves e a elas é também atribuído um
número maior de absolvições (...). Se olharmos a argumentação utilizada em sua
defesa veremos que há uma clara preferência pela “legítima defesa” como
justificativa de seus atos. Essa escolha de um argumento que expressa reação a uma
agressão anterior traduz a estratégia básica de defesa dessas acusadas, a sua
apresentação como vítimas, não apenas no momento do crime, mas ao longo de suas
vidas em comum com os homens que foram suas vítimas afinal (CORRÊA, 1983,
p.243).
Enquanto para os homens a “legítima defesa da honra” ou o crime “sob violenta emoção”
eram as justificativas para atenuar as penas ou absolvê-los, entre os motivos de justificativa
para os atos criminosos eram apresentados a infidelidade da esposa (comprovada ou suspeita),
o abandono do casamento por parte da esposa, muitas vezes após uma agressão mútua entre o
casal. Inclusive, ocorre uma escala de penalização entre os crimes e os motivos de sua
ocorrência. Desta forma, os argumentos eram utilizados de forma diferenciada, sendo que
para os casos onde a relação existia há menos tempo ou não havia união civil comprovada
entendia-se que o marido tinha menos obrigações para com a relação, menos motivos de
cobrança das ações de sua companheira e, portanto, de agredi-la. Nestes casos os maridos
recebiam penas mais altas por se entender que eles tinham mais direitos e, também mais
deveres sobre suas companheiras. Nos casos onde o marido não exercia a função de provedor
e onde se apresentava a mulher como ‘honesta’, ‘trabalhadora’ ou ‘sustentada pelos
familiares’ agregava-se culpa/pena ao caso por não ter o marido cumprido com suas
obrigações, sendo o inverso também observado, pois nos casos, onde os companheiros,
independente do tipo de união, conseguiam apresentar provas contra a conduta das mulheres
as penas eram diminuídas. Percebe-se que, realmente, existia, um esquema muito bem
articulado guiando toda argumentação sobre o processo e o destino penal do acusado/acusada.
Este esquema é normatizado no Código Civil “que enumera as razões pelas quais se autoriza
uma ação de desquite no seu artigo 317: adultério; tentativa de morte; sevícia ou injúria grave;
abandono do lar conjugal durante dois anos consecutivos” (CORRÊA, 1983, p.90) O que se
observava então era o aceite de
58
um modelo de casamento como ponto de referência para a discussão do
relacionamento homem-mulher, (onde) os julgadores aceitam também a identidade
social de cada um deles, suposta nesse modelo: o homem como figura ativa e a
mulher como sua subordinada, como figura passiva. A relação do homem com o
trabalho como expressa na lei, é significativa: ela pode dispor de seus frutos como
“bens reservados” enquanto ao marido cabe utilizá-los para cumprir com uma
obrigação assumida ao casar-se, a manutenção da família. Como veremos na análise
dos casos masculinos e femininos, a quebra da lei será aceita como justificativa e os
acusados serão absolvidos apenas quando se adequarem perfeitamente a essas
identidades básicas, seus companheiros tendo sido apresentados como desviantes
delas (CORRÊA, 1983, p.90,91).
Assim podemos dizer pelas análises apresentadas que as bases utilizadas para guiar a
argumentação manipulativa dos defensores/acusadores estavam calcadas nas normas da
matriz heteronormativa onde os comportamentos/posicionamentos delituosos eram punidos,
mas sob o peso do crime de se desviar da matriz. Estes processos e julgamentos paralelos
trazem consequências para o enfrentamento à violência de gênero justamente por reiterar as
bases que sustentam e justificam os “crimes de gênero” 3.
3
Para estudo recente sobre os “crimes de gênero” consultar “Assassinatos de Mulheres: um estudo sobre a
alegação, ainda aceita, da legítima defesa da honra nos julgamentos em Minas Geris do ano de 2000 a 2008”,
RAMOS, 2010.
59
permanece(ndo) os estereótipos de gênero, é nítida a diferença no atendimento pelo
fato de Alice ser uma pessoa branca, de classe média e tendo vindo com dois
advogados, que sabiam instruí-la a respeito de seus direitos e da Lei Maria da Penha.
Houve diferença no tratamento: tanto a delegada quanto as escrivãs ouviram mais a
vítima. (...) Ao final dos procedimentos, pediu-se que Alice lesse e assinasse cada
documento, explicando-se parte por parte e mostrando como seria o
encaminhamento do caso a partir de sua saída da delegacia. Tudo isso mostra que o
preconceito de gênero, que nega direitos às mulheres, está intimamente relacionado
ao preconceito de classe e raça (MENEZES, 2008, p.132)
Este caso é apresentado como exemplo por ter sido realizado um atendimento mais próximo
do trabalho prescrito para o atendimento na Delegacia. Mas mesmo neste atendimento fica
perceptível como há um esquema de crenças, valores, normas e/ou usos que guia a
interpretação dos casos pelos agentes policiais. Entre estas crenças uma merece destaque: a de
que as mulheres retiram a queixa no futuro norteando o atendimento de forma que se
desestimule a representação do crime. Isto também ocorreu no caso de Alice, apesar de todo
esforço em bem atendê-la.
Nesse caso, a decisão de que Alice não representaria criminalmente contra Augusto
partiu da própria delegada, que instruiu a agente e escrivã como fazer o
procedimento, apenas explicando-o ao advogado e posteriormente a Alice. Esta
tentou em vão, argumentar que havia sido vítima de injúria e humilhação, mas, ao
que a delegada lhe aconselhou não se preocupar com isso, a mensagem de
banalização do seu sofrimento se tornou clara para Alice, que responde: “vocês
devem ver isso aqui todo dia, né?”. Além disso, há uma naturalização da violência
na fala da delegada ao entender a ameaça como sendo “natural da separação” e uma
generalização da violência ao associar a agressividade do marido, que
“provavelmente” seja uma pessoa pacata, a um momento de “exaltação”. Através
dessa naturalização e generalização, ela não percebe a especificidade de gênero que
a própria Alice assinala (MENEZES, 2008, p.132).
Como apresentado por Corrêa (1983) não há uma iniciativa por parte dos “manipuladores
técnicos” de negar suas ações sobre os vários aspectos dos processos/momentos de um
atendimento. Na entrevista com a delegada, realizada após o atendimento, ela mostra como
sua manipulação do processo fica apagada através da produção de um “interesse da vítima”
(MENEZES, 2008, p.132).
Para finalizar a análise deste caso e demonstrar como a interpretação e julgamento dos casos
ocorrem neste primeiro atendimento transcrevemos as falas das escrivãs comentando sobre o
caso após a saída da mulher.
60
Escrivã: sabe, porque tá enchendo lingüiça mesmo é falta do que fazer...
Agente: agora você já imaginou, ela manda pro juiz e o juiz (não dá para entender
porque elas começam a rir)
Escrivã: aqui (lê na oitiva as falas de Augusto que Alice considerou como injúria):
“você é uma pobre coitada, cresceu na favela, eu não tenho a índole que você tem”.
Aonde que tá (o crime)? Me fala! Me fala!Porque cê não estudou? Cê tá aqui
fazendo o quê? (MENEZES, 2008, p.126).
A partir desta discussão sobre como as mulheres em situação de violência são posicionadas
durante suas trajetórias pela Rede de Enfrentamento adotamos a noção de sobrevivente
apresentada por Almeida (1998) em contraposição à de vitima por entender que “ela confere
uma dimensão mais afirmativa a categorias subalternizadas, indicando não se tratar de uma
categoria passiva, mas inscrita em condições de vida e em relações de força altamente
desfavoráveis” (ALMEIDA, 1998, p.10). A definição de sobrevivente apresentada por Almeida
(1998) será empregada nesta pesquisa. Para esta autora,
A adoção deste termo, embora considerado extremista por alguns, se dá pela aposta na
conversão do posicionamento da mulher fundado em uma construção discursiva queixosa,
individual e vitimizadora pela valorização e legitimação da agência desta mulher que, apesar
das pressões e opressões, busca se posicionar de forma ativa em defesa de seus direitos e de
sua vida.
Desta maneira, queremos sublinhar como as formas para se buscar dar visibilidade à
experiência das mulheres em situação de violência de gênero através dos discursos das
instituições da Rede de Enfrentamento à Violência podem servir para tornar mais coerente e
61
eficiente o processo de enfrentamento à violência. Consideramos que podemos a partir das
definições adotadas para este público entender as propostas teóricas e as políticas públicas
para a erradicação da violência, como também analisar criticamente as identidades que são
reiteradas através deste processo de definição.
Para além, apresentaremos a trajetória das mulheres à violência de gênero pela Rede de
Enfrentamento à Violência através da imagem de um Ciclo de Enfrentamento à Violência.
Com isto pretendemos demonstrar como as queixas-crimes/palavras das sobreviventes à
violência podem seguir um processo de (des)legitimação antes mesmo que a mulher adote,
por exemplo, a estratégia de publicização de instauração de um inquérito policial. Na verdade
este ciclo não ocorre apenas em relação a agentes institucionais, mas também por parte de
familiares, pessoas próximas às mulheres e por seu companheiro.
Porém, em alguns casos, quando a sobrevivente decide publicizar a situação de violência, não
é incomum um primeiro momento de descrença, desvalorização ou deslegitimação da sua
fala, sendo seu inverso a legitimação de seu posicionamento por parte de qualquer um dos
sujeitos procurados por ela. Chamo este momento de (des)legitimação, ciente de que podem
ocorrer os dois movimentos frente ao posicionamento de enfrentamento da sobrevivente.
Considero que qualquer forma de deslegitimação do movimento de enfrentamento à violência
de gênero dificulta o processo por reiterar a violência contra a mulher e/ou desmotivá-la a
enfrentar a situação violenta. Podendo levar ao terceiro momento de (des)legitimização do
enfrentamento à violência levando à manutenção da situação de violência por ter a mulher
sido desacreditada em sua queixa-crime/solicitação de ajuda. O sentimento de apatia e
descrença é muito comum e pode dificultar a continuidade da trajetória de enfrentamento à
violência a partir de estratégias de publicização. O ciclo pode recomeçar imediatamente com
adoção de uma nova estratégia de publicização ou pode ficar paralisado e inoperante por
algum tempo.
62
(Des)
Publicização legitimação
(Des)
legitimação do
enfrentamento
à violência
A metodologia utilizada em Rosário tem como base teórica as contribuições de Kurt Lewin
sobre a Dinâmica de Grupo, os “laboratórios sociais”, a noção de campo e de situação e
alguns princípios topológicos da aprendizagem5. Aliam-se a essas referências parâmetros
5
Kurt Lewin é conhecido psicólogo que se dedicou ao estudo dos pequenos grupos e seus fenômenos. Suas
pesquisas enfatizaram o estudo do comportamento humano em seu contexto físico e social total. A característica
notável da psicologia social de Lewin é a dinâmica de grupo, de conceitos relativos ao comportamento individual
e grupal. Assim como o indivíduo e o seu ambiente compõem um campo psicológico, assim também o grupo e o
seu ambiente compõem um campo social. Os comportamentos sociais ocorrem no interior de entidades sociais
simultaneamente existentes como subgrupos, membros de grupos, barreiras e canais de comunicação, e delas
resultam. Assim, o comportamento do grupo é uma função do campo total existente em qualquer momento dado.
Lewin também fez pesquisas sobre o comportamento em várias situações sociais (...). Além disso, Lewin
acentuou a importância da pesquisa de ação social e o estudo de problemas sociais relevantes voltados para a
66
psicanalíticos, sobretudo, os aportes de Melanie Klein6. Segundo Osório, em Melanie Klein,
Pichon-Rivière buscou a “compreensão da inércia em relação às mudanças (...) e na Dinâmica
de Grupo, ele encontrou uma forma de operacionalizar sua abordagem grupal através dos
‘laboratórios sociais’ (...) que criariam o clima propício para a indagação ativa a que se
propunham os grupos operativos” (OSÓRIO, 2003, p.30). Ainda em concordância com as
idéias de Kurt Lewin e Klein, Pichon-Rivière coaduna com o princípio sobre a formulação de
uma teoria segundo “a qual toda investigação vai acompanhada de uma operação, ou seja, não
há investigação ‘pura’, ‘inócua’” (PICHON-RIVIÈRE, 1994, p.105). A relação entre teoria e
prática, para Pichon-Rivière, ocorre através de movimento em uma espiral dialética,
característico da práxis.
Além destas influências basilares, Pichon-Rivière também se baseou nas idéias de Ruesch 7
sobre a relação entre os estilos comunicacionais e as estruturas patológicas e nas idéias da
escola de Palo Alto8 para desenvolver a sua teoria sobre comunicação, que é um conceito
chave em seu entendimento da possibilidade de atuação do grupo operativo. Para o
desenvolvimento de sua teorização sobre os papéis desempenhados pelos participantes de um
grupo operativo, Pichon-Rivière utilizou-se dos conceitos de papel e “outro generalizado”, de
9
Jacob Levy Moreno (1889-1974) psiquiatra judaico romeno, conhecido como o pai do Teatro Espontâneo,
Psicoterapia de Grupo, Psicodrama e Sociodrama e Sociometria. A Revolução Criadora moreniana propõe o
rompimento com os padrões de comportamento, valores e formas estereotipadas de participação na vida social,
que acarretam a automatização do homem (conservas culturais). (...) A possibilidade de modificar uma dada
situação implica em criar, e a criatividade é indissociável da espontaneidade (esta permite que o potencial
criativo se atualize e se manifeste). Segundo Moreno, a criança aos poucos, com o desenvolvimento de um fator
inato, chamado Tele, vai distinguindo objetos e pessoas, sem distorcer seus aspectos essenciais; assim Tele é a
capacidade de perceber de forma objetiva o que ocorre nas situações e o que se passa entre as pessoas. Toda ação
pressupõe relação, factual ou simbólica (relação com pessoas reais ou imaginárias, que têm sua presença
representada). Toda relação pressupõe formas de comunicação. O fator Tele influi decisivamente sobre a
comunicação, pois só nos comunicamos a partir do que podemos perceber. Para Moreno, Tele é também uma
“percepção interna mútua entre dois indivíduos”. A empatia é a captação, pela sensibilidade dos sentimentos e
emoções de alguém ou contidas, de alguma forma, em um objeto. Um dos objetivos do Psicodrama, do
Sociodrama e da Psicoterapia de Grupo é descobrir, aprimorar e utilizar os meios que facilitem o predomínio das
relações télicas sobre relações transferenciais (VASCONCELOS, 2006).
68
(grupo interno) e o sócio-dinâmico (grupo externo), através da observação das
formas de interação, dos mecanismos de adjudicação e assunção de papéis
(PICHON-RIVIÈRE, 1994, p.174).
A psicologia social pichoniana pode ser definida como a ciência do homem no campo da
práxis, a ciência das interações voltadas para uma mudança social planificada, uma ciência
operativa, instrumental, voltada para uma crítica da vida cotidiana, através da abordagem do
homem em situação. A objetividade desta ciência fundada na práxis se daria através da crítica
e autocrítica possibilitadas pela prática, com a teoria sendo corrigida por meio de mecanismos
de retificação e ratificação em uma espiral dialética (PICHON-RIVIÈRE, 1994, p.121).
Guiada pelo instigante convite da teoria pichoniana apresentarei, a seguir, uma revisão sobre
os elementos definidores desta teoria como: grupo operativo, tarefa, ensino-aprendizagem,
comunicação, esquema conceitual referencial operativo-ECRO, assunção e adjudicação de
papéis, modelo do cone invertido, os vetores de avaliação dos processos grupais e as funções
da equipe de coordenação neste enfoque grupal. Por fim, apresentarei as possibilidades de
utilização do Grupo Operativo em geral e discutirei a utilização com o público alvo mulheres
sobreviventes à violência de gênero.
69
1.4.1 DEFINIÇÃO DE GRUPO OPERATIVO
Enrique Pichon-Rivière definia grupo operativo como “um conjunto de pessoas reunidas por
constantes de tempo e espaço, articuladas por sua mútua representação interna, que se
propõem, implícita ou explicitamente, uma tarefa que constitui sua finalidade” (PICHON-
RIVIÈRE, 1994, p.157). Apesar desta definição clássica de Pichon-Rivière sobre o que seja
um Grupo Operativo a plasticidade de sua obra e as várias formas de apropriação de seu
trabalho tornam necessária uma discussão sobre este tema. Assim, apresentarei a seguir
algumas outras formas de definição de outros autores (não muito diferentes da original) e uma
discussão sobre a melhor forma de definição de um Grupo Operativo. A discussão sobre esse
assunto se baseia no questionamento sobre uma definição para o que seja um Grupo
Operativo: uma teoria, uma ideologia ou uma técnica. Por fim, apresentarei como este termo
será entendido neste trabalho.
Participando desta discussão Baremblitt (1994) declara que para a melhor construção de uma
definição do que seja um grupo operativo é necessária a explicação dos diferentes aspectos
que o constituem. Esta colocação pode ser interpretada como o entendimento do Grupo
Operativo como um corpo teórico que sustenta uma prática. Para esta discussão ele traz a
definição de Bauleo10
Nesta definição é reafirmado o aspecto principal desempenhado pela tarefa e aponta-se para
os dois planos que perpassam o Grupo Operativo: o da temática e o da dinâmica. Esta
colocação é muito importante, pois a proposta de utilização e interpretação do Grupo
Operativo sempre se dá articulando os vários aspectos da situação. Pichon-Rivière preocupou-
10
Armando Bauleo, falecido em 2008, é um dos mais conhecidos psicanalistas argentinos, discípulo de Pichon e
de Bleger. Bauleo era um médico psiquiatra que fazia sua formação na Associação Psicanalítica Argentina e era
membro do Partido Comunista como Bleger e trabalhava com ele na Faculdade de Filosofia e Letras, no curso de
Psicologia. (...) Além disso, teve uma participação muito importante na experiência de comunidade terapêutica
desenvolvida, em fins de 1968, num serviço do Hospital Alejandro Korn de Melchor Romero, o asilo
psiquiátrico próximo a La Plata (VEZZETTI, 2009).
70
se em questionar em sua teoria as posições dilemáticas e dicotômicas, optando sempre por
uma relação dialética. Assim, ele apresentou: a tarefa como composta por aspectos implícitos
e explícitos e a importância da associação entre o agir, o pensar e o sentir em sua realização.
Para além, ele postulou a análise do grupo não apenas a partir da execução da tarefa, mas
também da análise da dinâmica grupal a partir da interrelação entre os membros, a tarefa e a
coordenação do grupo.
Apresentarei a seguir duas definições que se diferenciam principalmente por definir o Grupo
Operativo como uma ideologia. Apesar de aparentemente elas focarem o Grupo Operativo em
seu caráter ideológico se destacam por apontarem para a importância do posicionamento do
coordenador.
O grupo operativo não é um termo utilizável para se referir a uma técnica específica
de coordenação de grupos, nem a um tipo determinado de grupo, em função de seu
71
objetivo, como poderia ser “grupo terapêutico”, “grupo de aprendizagem”, mas se
refere a uma forma de pensar e operar em grupos que pode se aplicar à coordenação
de diversos tipos de grupos (PORTARRIEU; TUBERT-OKLANDER, 1986, p.135-
136).
Esta negação, a meu ver, é importante por atentar para o perigo de se apropriar da proposta do
Grupo Operativo como apenas uma técnica de coordenação de grupos sem se atentar para seu
aporte teórico e ideológico. Novamente, eles reafirmam na definição abaixo o entendimento
do Grupo Operativo como algo para além de uma técnica.
Os grupos operativos não são uma técnica, mas uma ideologia, no sentido de um
marco referencial teórico valorativo que organiza a percepção, o pensamento, e a
ação do coordenador de grupos. Desta forma, a única definição opositora ao grupo
operativo seria a posição do coordenador como definidor do saber. (...) Como
consequência, a interrogação sobre a conveniência ou não de abordar uma tarefa
grupal determinada com a modalidade de grupo operativo ou outra não é problema
empírico, mas sim ideológico. É uma questão de qual tipo de processo de
desenvolvimento humano que se considera desejável, que depende da concepção de
mundo e dos valores de cada coordenador, assim como dos membros do grupo. E
esta é a razão pelas quais muitas discussões sobre grupos operativos se transformam
em verdadeiros “diálogos de surdos” toda vez que os interlocutores partem de
pressupostos filosóficos prévios diferentes e incompatíveis (PORTARRIEU;
TUBERT-OKLANDER, 1986, p.139-140).
De acordo com a discussão acima entendo o Grupo Operativo e me aproprio dele como uma
técnica e meio de investigação apoiado em uma concepção ideológica que compreende o ser
humano a partir da constante interação dialética com o meio e se interessa pelas
transformações que ocorrem (nos sujeitos e no meio) durante este processo. Para mim, a
melhor definição de Grupo Operativo é aquela que consegue apresentar todas as
possibilidades de sua utilização com a fluidez de um movimento dialético.
1.4.2 TAREFA
A existência de uma tarefa a ser desempenhada pelo Grupo Operativo é o aspecto central em
sua organização. Assim, para o entendimento do conceito Grupo Operativo faz-se necessário
compreender a noção de tarefa apresentada por Pichon-Rivière. A noção de tarefa é composta
por três momentos: a pré-tarefa, a tarefa e o projeto. “Estes momentos se apresentam em uma
sucessão evolutiva, e sua aparição e interjogo constante podem situar-se diante de cada
situação ou tarefa que envolva modificações do sujeito” (PICHON-RIVIÈRE, 1994, p.19).
Assim, de forma geral, o grupo operativo tem como marco definidor o desempenho de uma
tarefa que funciona como um
72
organizador dos processos de pensamento, comunicação e ação que se dão em e
entre os membros do grupo. (...) A tarefa leva a uma nova rede de comunicações,
possibilitando a mudança e a conseqüente aprendizagem. (...) A referida tarefa
(possui dois aspectos): o externo, ou seja, o trabalho produtivo, cuja realização
constitui a razão de ser do grupo, e o interno, que consiste na totalidade das
operações que devem realizar os membros do grupo de maneira conjunta para
constituir, manter e desenvolver o grupo como equipe de trabalho. A tarefa interna
exige que os membros realizem uma permanente indagação das operações que se
realizam no seio do grupo em função da existência da tarefa externa
(PORTARRIEU; TUBERT-OKLANDER, 1986, p.136- 137).
A partir desta definição destacam-se dois aspectos da tarefa que delimitam a centralidade
deste conceito para o entendimento do grupo operativo: a composição da tarefa em dois
registros e a tarefa como o meio para se atingir o objetivo principal do grupo, a mudança.
Desta forma, a tarefa é compreendida como um para além da simples execução automática de
pautas ditadas por um coordenador para um fim imediato e único. A atuação do coordenador
pautando-se nos dois registros da tarefa é o grande diferencial de uma atuação não
dicotômica, ou seja, que não entende o sujeito (razão e emoção), o objetivo do grupo
(mudança individual e coletiva) e a tarefa (externa e interna) a partir de partes que o
compõem. A proposta de Pichon-Rivière é a superação destas antinomias a favor de uma
visão dialética.
Assim, a tarefa é o fio condutor do Grupo Operativo onde o foco de atuação é a quebra das
condutas estereotipadas e a aprendizagem de novas pautas através deste movimento dialético
entre os membros do grupo e a tarefa proposta. Neste contexto a aprendizagem é entendida
como todo processo de apropriação, manipulação e adaptação à realidade. Sendo que esta
adaptação não compreenderia a passividade do sujeito frente ao meio, mas, uma atuação ativa
onde à reestruturação do sujeito corresponde uma reestruturação do meio. “Seria esquemático,
resumir sob a noção de tarefa, tudo o que implica modificação em dupla direção a partir do
sujeito e para o sujeito (...) uma noção que englobe, ao examinar o sujeito, sua relação com os
outros e com a situação” (PICHON-RIVIÈRE, 1994, p.21). Novamente, é a partir dos trilhos
de um movimento dialético que podemos visualizar a dinamicidade do processo grupal.
Para entender os medos e dificuldades dos sujeitos frente às situações de mudança Pichon-
Rivière utilizou-se da teorização de Melanie Klein sobre ansiedade básica. A teoria kleiniana
demonstra que o sujeito pode reagir a partir de duas ansiedades básicas frente às exigências do
meio: a ansiedade depressiva e a ansiedade paranóide. Pichon-Rivière entendeu que em um
73
grupo a ansiedade depressiva apareceria como uma defesa frente ao medo da perda de
estruturas já conhecidas e a ansiedade paranóide como um medo frente ao novo. A resistência
à mudança seria desta forma interpretada como a união destas duas formas de ansiedade que
atuariam de forma cooperativa sobre o fazer grupal. O diferencial para a interpretação destas
ansiedades no grupo seria a localização de seu acontecimento e de sua superação no fazer
grupal. O processo de esclarecimento destas pautas seguiria o movimento de uma
interpretação no sentido de tornar o implícito (destes posicionamentos) explícito (durante o
fazer grupal). Neste contexto grupal, as interpretações se dirigiriam ao conteúdo atual do fazer
grupal em relação à tarefa, privilegiando como foco a relação do grupo com a tarefa
(desvencilhando-o da relação do sujeito com o coordenador/terapeuta). Assim,
A tarefa pode ser compreendida através de seus quatro momentos da função operativa:
estratégia, técnica, tática e logística. Onde se compreende a logística como o
A partir deste caráter operativo da execução da tarefa percebe-se a atuação ativa e criativa dos
membros do grupo a partir dos vários elementos em jogo no aqui agora do grupo. Entramos,
assim, então, na idéia de projeto ou produto “que seriam aquelas estratégias e táticas para
produzir uma mudança que, por sua vez, voltariam a modificar o sujeito com o qual o
processo se põe outra vez em marcha” (BAREMBLITT, 1994, p.190). O projeto emerge,
assim, como um planejamento para o futuro e uma forma de superação da perda com o fim do
grupo e/ou com a resolução da tarefa. O projeto também pode ser considerado um aspecto
positivo da pertença dos membros ao grupo, quando o fizer torna-se do grupo e não de cada
membro em separado.
1.4.3 APRENDIZAGEM-COMUNICAÇÃO
75
transformar-se, modifica o meio, e ao modificar o meio, modifica-se a si mesmo” (PICHON-
RIVIÈRE, 1994, p.48-177).
Aprender, portanto, vem a ser uma nova leitura da realidade e apropriação ativa da
mesma, no aqui, agora e comigo. Não estando somente no discurso, mas nas ações
mais ordinárias do cotidiano. (...) onde o sujeito deixa de ser espectador e passa a ser
o protagonista de sua história e da de seu grupo. Parte da informação apropria-se
dela e transforma-a em gestos. Deixa de ser aluno que recebe passivamente
conservas de saber e passa a ser aprendiz que, ao fazer, vai aprendendo (ABDUCH,
1999).
77
esquema referencial próprio definido como um “conjunto de experiências, conhecimentos e
afetos com os quais o indivíduo pensa e age que adquire unidade através do trabalho em
grupo” (PICHON-RIVIÈRE, 1994, p.90). O compartilhamento destes esquemas permitiria o
incremento da comunicação grupal entre os membros do grupo e, assim, através da
comunicação seria possível a construção de um ECRO representante do grupo no aqui-agora
da realização da tarefa. Desta forma, cada vez mais ocorreria entre os membros do grupo a
experiência de uma comunicação livre de ruídos e voltada para os objetivos grupais. Assim,
79
os papéis são desempenhados de acordo com as leis da complementaridade” (PICHON-
RIVIÈRE, 1994, p.53). Por outro lado, quando o jogo de assunção de papéis ocorre de forma
suplementar, o grupo é invadido por competições que tiram o foco da tarefa.
12
Os universais seriam os medos básicos de perda e de ataque, o medo da mudança e a resistência à mudança, um
sentimento básico de insegurança, os processos de aprendizagem e de comunicação, as fantasias básicas de
doença, tratamento e de cura (PICHON-RIVIÈRE, 1994, p.44,45).
80
avaliar o processo em que o conjunto de membros do grupo vai se tornando um Grupo
Operativo através da forma como eles estariam agindo em relação à tarefa.13
A pertença, a afiliação, a cooperação e a pertinência são vetores guias para avaliar a relação
dos membros com o grupo e com a tarefa. A filiação de um membro ao grupo se dá pelo
coeficiente de sua vinculação ao grupo. É o primeiro momento onde o sujeito aceita pertencer
a determinado grupo constituído para tarefa. A pertença já seria um segundo momento,
quando a tarefa passa a não ser vista mais como do grupo, mas do sujeito, é o assumir a tarefa
do grupo como sua com todas as conseqüências desta escolha. Na dinâmica grupal, ela pode
ser medida em relação à presença no grupo, à pontualidade e às intervenções. A cooperação
de um grupo diz da relação de cada membro para com os outros objetivando a execução da
tarefa. Em uma boa imagem de Baremblitt (1994), a cooperação “se vê na justiça dos passes,
13
A partir desta colocação surge a pergunta sobre a qual grupo Pichon-Rivière estaria se referindo (ao número
dos membros empíricos que constituem o grupo ou a toda a grupalidade (família, classe social, fantasmas
grupais) da qual o grupo é expressão). Segundo Baremblitt, a insistência de Pichon-Rivière “sobre os problemas
sobre a ideologia e sua expressão na vida cotidiana nos faz pensar a favor desta segunda hipótese”
(BAREMBLITT, 1994, p. 195). Segundo este autor, Pichon-Rivière insistia na colocação de que “a avaliação
que surge destes vetores é sempre grupal, já que a avaliação individual só poderia ser explicada em função de
toda a dinâmica grupal que a determina” (BAREMBLITT, 1994, p.195).
81
na exatidão das jogadas gerais” (BAREMBLITT, 1994, p.196).
O vetor tele é uma das contribuições da sociometria de Moreno para a teoria pichoniana. O
vetor tele pode ser entendido como o termômetro do clima afetivo do grupo. Desta forma,
está claramente relacionada com a boa execução da tarefa. É mais provável que um grupo
consiga operar estando sob um bom clima afetivo do que em um clima de desarmonia ou
disputa.
A avaliação destes vetores não é um objetivo em si para o coordenador. Para mim, este
instrumento de avaliação é mais um elemento guia para o coordenador na execução de seu
papel. A partir de constantes momentos de avaliação destes vetores o coordenador poderá
entender em que momento os membros do grupo estão. Este processo de avaliação da
interação grupal seria como a leitura de um mapa para o coordenador que parte com o grupo
da pré-tarefa para constituir um projeto grupal.
83
Para Baremblitt (1994) a intervenção de um coordenador de Grupo Operativo se limita a
sinalizar as dificuldades que impedem ao grupo de realizar a tarefa. Para isto ele dispõe “de
um ECRO a partir do qual tentará decifrar essas dificuldades e (...) irá propondo ao grupo
hipóteses que lhe permitam tomar-se a si mesmo como objeto de estudo e ir revelando as
dificuldades que aparecem na comunicação e na aprendizagem” (BAREMBLITT, 1994,
p.200). Por outro lado, este autor alerta que não cabe ao coordenador “responder às questões,
mas (para) ajudar o grupo a formular aquelas que permitirão o enfrentamento dos medos
básicos. Seu instrumento é a sinalização das situações manifestas e a interpretação da
causalidade subjacente” (BAREMBLITT, 1994, p.200).
Uma das regras de ouro desta coordenação é não assumir uma função que possa ser realizada
por outro membro do grupo. O coordenador é visto como co-pensor por pensar junto com o
grupo a relação dos membros entre si e com a tarefa. O coordenador guia-se pelo respeito
pelos membros do grupo, mas sem colocar-se como igual. Ele é como um juiz de futebol
sempre atento aos passes entre os jogadores, mas sem participar diretamente do jogo. A sua
linguagem baseia-se na metalinguagem e na interpretação, servindo-se desta para a pontuação
do texto da discussão livre entre os membros do grupo, dando-lhe sentido e promovendo
mudança. Assim, facilitar a comunicação entre os membros do grupo, evitando posições
conflituosas e dicotômicas, é o foco de atuação do coordenador para que cada
membro/jogador possa contribuir para o bom andamento do grupo/jogo.
84
Sobre estes pilares conceituais a proposta de trabalho com Grupos Operativos foi amplamente
difundida fora da Argentina e, coerentemente com o proposto por Pichon-Rivière, adotada
com os mais variados públicos e objetivos. Em um relato de experiência sobre a utilização da
técnica do Grupo Operativo, no final da década de 60, Pichon-Rivière (1994) afirmou que
“as técnicas operativas são utilizadas não só na formação de psicólogos, mas também na
criação publicitária, no trabalho institucional, na formação de líderes, no estudo da direção e
interpretação teatral” (PICHON-RIVIÈRE, 1994, p.130).
Abduch (1999) também afirma que os grupos operativos podem ser utilizados nos mais
“diversos contextos com adolescentes, familiares, grupo de terceira idade, grupos de
trabalhos, grupos de egressos, de pais, teatrais, esportivos, drogadictos desde que seus
integrantes estejam centrados na tarefa” (1999). Luchese (2007), por sua vez, defende o uso
do Grupo Operativo na assistência da enfermagem, no ensino e na pesquisa como uma técnica
de coleta de dados em pesquisas qualitativas.
85
Na educação o grupo operativo tem sido utilizado, por exemplo, com professores/as:
-com Síndrome de Burnout (BOCK; SARRIERA, 2006);
-de escolas para portadores de necessidades especiais (DAL FORNO, 2006);
A partir desta amostra da produção brasileira sobre a utilização do Grupo Operativo pode-se
perceber sua aplicabilidade com variados públicos-alvo e com vários objetivos diferenciados,
o que coaduna com a proposta de Pichon-Rivière. O Grupo Operativo utilizado na Educação
como uma didática de ensino e como método de coleta de dados em pesquisas qualitativas
demonstra uma convergência com a discussão de Pichon-Rivière sobre o processo de
aprendizagem-ensino, sobre a relação entre aluno-professor/professor-supervisor e
pesquisadores-participantes de pesquisa. Neste contexto, qualquer um destes pares é
compreendido com uma unidade de trabalho não dicotômica onde razão, ação e sentimento
não são dissociados. Estes trabalhos, cada um com seu mérito, são exemplos de práxis, onde a
pesquisa e ação se relacionam para a construção do conhecimento.
86
resumir o grupo a um ambiente de repasse de informações pelo coordenador deve ser uma
preocupação constante. O grande diferencial desta proposta de atendimento em grupo é
justamente a não dissociação dos aspectos afetivos, comportamentais e cognitivos. Assim,
para mim, o mérito da opção por esta técnica se vincula a capacidade de se conseguir a
apropriação da dinâmica como um conjunto ensino-aprendizagem-mudança. Como afirma
Pichon-Rivière (1994) “as técnicas de grupo operativo sejam quais forem seus objetivos
propostos tem como finalidade que seus integrantes aprendam a pensar em uma co-
participação do objeto de conhecimento, entendendo-se que pensamento e conhecimento não
são fatos individuais, mas produções sociais” (PICHON-RIVIÈRE, 1994, p.179). Entendo
que esta visão mais ampla da técnica é que imprime um caráter revolucionário e emocionante
no fazer grupal.
Vale ressaltar a opção da escolha do Grupo Operativo como método de coleta de dados em
pesquisas qualitativas. Segundo Luchese e Barros (2007), esta utilização do grupo operativo
vem se desvelando “como uma técnica que vai além da coleta de dados, visto que,
proporciona trocas vivenciais entre os sujeitos pesquisados, possibilitando a revisitação e
reflexão do cotidiano, exteriorização de sentimentos latentes, apropriação e reconstrução da
realidade” (LUCHESE; BARROS, 2007, p.797).
Assim, percebe-se que a escolha por este método diz de uma compreensão do processo de
coleta de dados, da relação entre pesquisador e objeto de pesquisa e do próprio desenho do
processo de pesquisar. Em uma pesquisa com este viés a própria coleta de dados já é um
momento de intervenção na realidade e de construção/reconstrução do objeto/objetivos do
estudo. A dinamicidade e a plasticidade na delimitação das funções do pesquisador são um
diferencial, pois ele pode ser o coordenador ou o observador do Grupo Operativo de seu
estudo, ou utilizar-se de um grupo já constituído. Assim, ocorre uma ampliação das
responsabilidades do pesquisador que além de se preocupar com os aspectos metodológicos
de sua pesquisa pode se guiar pelos recursos de um coordenador de Grupo Operativo. Esta
escolha metodológica aponta para um posicionamento do pesquisador como participante ativo
no par pesquisador-sujeito da pesquisa. Para mim, a preocupação com a apreensão da
realidade a partir da dinâmica entre pares complementares é um dos aspectos mais
significativos da teoria pichoniana que contribui com dinamicidade para o entendimento dos
fenômenos. Por fim, devemos admitir que apesar de encontrarmos relatos de utilização de
87
técnicas grupais com mulheres em situação de violência (tanto como método de pesquisa ou
como esquema terapêutico), a minoria, se baseava na teoria e técnica do Grupo Operativo.
Como exemplos desta utilização com este público foram encontrados relatos de sua aplicação
como método de pesquisa na Delegacia Especializada de Crimes contra as Mulheres de Belo
Horizonte (AZERÊDO, 2001, 2004, 2007) e como esquema terapêutico no Centro de
Referência de Atendimento a Mulheres em Situação de Violência de Contagem/MG (PMC)-
Espaço Bem- Me- Quero (OLIVEIRA, 2008; AZERÊDO, 2001).
Neste trabalho, observa-se a utilização do Grupo Operativo como método de coleta de dados
aliada ao suporte terapêutico para mulheres sobreviventes à violência de gênero. Considero
que esta forma de utilização pode ser profícua tanto por dar mais dinamicidade ao desenho da
pesquisa como pela possibilidade de que as sobreviventes à violência de gênero possam se
debruçar sobre sua situação a partir de um enfoque grupal. Acredito que o enfrentamento a
esta problemática como uma tarefa a ser realizada em grupo potencializa os processos de
mudança nos Ciclos de Enfrentamento à Violência iniciados pelas sobreviventes que aceitam
o convite de participar do Grupo. A acolhida, a possibilidade de aprendizagem e de
negociação de estratégias e sentidos para a violência sofrida e seu enfrentamento seriam
aspectos a serem apontados como diferenciadores e reforçadores neste processo.
2 OBJETIVOS
88
construção coletiva de estratégias para o fim do ciclo de violência;
Investigar se e como a participação no grupo atua para o questionamento da matriz
hegemônica de gênero e para a transformação das relações de gênero na vida das
mulheres;
Descrever e analisar as práticas institucionais, a partir dos relatos das mulheres em
suas trajetórias de sobreviventes à violência de gênero, realizadas na Rede de
Enfrentamento à Violência de Contagem/MG.
3 MÉTODO
O objeto de estudo desta pesquisa é o Grupo de Psicologia ofertado pela instituição que foi
implantado por mim em março de 2008 e que ainda vem sendo realizado. As sessões são realizadas
uma vez por semana com uma duração média de uma hora e trinta minutos e com a participação de,
aproximadamente, seis mulheres em cada sessão. A coordenação das sessões é sempre realizada por
mim e por uma estagiária de Psicologia, cumprindo o papel de observadora, seguindo a metodologia
dos grupos operativos desenvolvida por Enrique Pichon-Rivière.
Participaram desta pesquisa quatorze mulheres que frequentaram as sessões do Grupo de Psicologia
do Espaço Bem-Me-Quero durante o período em que se realizou a pesquisa (julho/agosto de 2009).
Optou-se por apresentar as informações relativas às participantes da pesquisa através da
elaboração de três tabelas intituladas: 1- Dados sócio-econômicos das mulheres sobreviventes à
violência de gênero (ANEXO 01), 2 - Trajetória afetiva das mulheres sobreviventes à violência de
gênero (ANEXO 02) e 3 - Trajetória das mulheres sobreviventes à violência de gênero na Rede de
Enfrentamento à Violênica de Contagem/MG (ANEXO 03).
Com o objetivo de registrar a história do Grupo e facilitar a condução e análise pela equipe de
coordenação, algumas sessões do Grupo foram gravadas. Dentre estas sessões, foram selecionadas
cinco para material de análise desta pesquisa. As sessões selecionadas se destacaram no conjunto
das gravações pela riquaeza de dados referentes aos objetivos desta pesquisa e pela possibilidade de
observação da dinâmica das sessões do Grupo. Para a utilização destas sessões como material de
pesquisa foi solicitada permissão à Coordenadoria Especial de Políticas para Mulheres
(CEPOM/PMC) e à Secretaria de Direitos e Cidadania/PMC (ANEXO 04), órgãos aos quais o
Espaço Bem- Me-Quero está vinculado. Ressaltamos ainda que este projeto foi aprovado pelo
Comitê de Ética da Universidade Federal de Minas Gerais sob o número 314/09 e que todos
90
os procedimentos éticos foram respeitados sendo os nomes das participantes alterados para se
manter a segurança e privacidade das mesmas. Além disso, todas as participantes das referidas
sessões foram contactas para permitir a utilização do material, tendo sifo assinado por cada uma o
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (ANEXO 05).
O processo de análise iniciou-se pela escolha das sessões a serem utilizadas nesta pesquisa.
Este processo foi importante por permitir uma escuta da produção do Grupo guiada pelos
objetivos desta pesquisa. Esta escuta foi interessante por possibilitar que eu me escutasse
como coordenadora do Grupo, pois, neste caso, meus posicionamentos também seriam
analisados. Esta, no mínimo, minha dupla vinculação também era mais um aspecto a ser
analisado, guiado pelas referências teóricas desta pesquisa (feminista/grupo operativo). Foi
selecionada uma sequência de sete sessões, sendo que, dentre estas, duas não foram
analisadas. A primeira (sessão de 29 de julho de 2009) por ter sido uma sessão de exibição de
filme e a outra (sessão de 05 de agosto de 2009) devido à baixa qualidade da gravação do som
e à ausência da observadora. É interessante, porém, observar que a forma como esta análise
foi desenhada, guiada pelo processo do próprio Grupo, faz com que a dinâmica destas sessões
também seja referência para a análise (a constante referência ao filme nas sessões utilizadas e
a alteração da dinâmica de coordenação pela ausência da observadora). Desta forma, no
desenho desta análise interessa todos os processos que envolvem as sessões do Grupo, tanto
institucionais quanto da história do Grupo e das participantes neste serviço e na instituição.
Assim, as sessões são localizadas nestas trajetórias e isto é um ponto muito importante da
análise por possibilitar que o conhecimento produzido não assuma o aspecto de um recorte,
mas, na medida do possível, procure apresentar as interconexões presentes no Grupo.
As sessões selecionadas foram transcritas na íntegra e após este primeiro momento foi
realizada nova leitura do material juntamente com a escuta das gravações, buscando-se
registrar silêncios, sobreposições de falas, tom das vozes e interrupções internas e externas
das sessões. Este primeiro momento foi importante por permitir uma escuta voltada para a
91
busca da relação entre a fala e a percepção da expressão de sentimentos pelas participantes e a
percepção da tele do Grupo.
Optou-se, nesse trabalho, por uma variação da análise de conteúdo clássica (FRANCO, 2003;
VALA, 2003), privilegiando-se, mais do que a frequencia, a co-ocorrência dos elementos de
interesse (temas e vetores) em um mesmo segmento da sessão.
Assim, nova leitura foi realizada buscando-se perceber os temas recorrentes discutidos nas
sessões bem como a sequência seguida neste processo, indiferente dos objetivos da pesquisa.
Eles foram apontados junto das partes referentes da transcrição da sessão inteira, a partir de
um quadro simplificado com apenas duas linhas de análise: uma relacionando partes da
transcrição a conteúdos teóricos e outra elencando temas variados e comentários variados
sobre a sessão (ANEXO 06). O interesse neste processo mais amplo é perceber a dinâmica de
apresentação de temas pelas participantes e pela coordenadora. Este aspecto é interessante por
possibilitar elencar os temas discutidos pelas participantes para, depois, contrastá-los com os
objetivos da pesquisa.
Continuando o processo de análise, foi elaborado um segundo quadro com eixos construídos a
partir de conteúdos/temas pré-selecionados a partir do primeiro quadro e da leitura das
sessões. A partir destes conteúdos foram criadas as linhas: estratégias, sentimentos, Grupo
fala, comunicação, converge x diverge, com trechos exemplificando os conteúdos. Para além
dos temas diretamente relacionados aos objetivos da pesquisa (estratégias e comunicação) se
construiu um eixo complementar com os sentimentos apresentados pelas mulheres, o que
possibilitou relacioná-los a temas que os desencadearam e aos eixos intitulados
“convergência” e “divergência”. Esses eixos de análise possibilitaram a visualização do
processo de negociação de sentidos entre as participantes, segundo os objetivos da pesquisa,
bem como a tele do Grupo (ANEXO 07).
A partir da visualização dos quadros construídos para todas as sessões, foi elaborado um
relato de cada sessão orientado pelas percepções possibilitadas durante todo o processo de
construção dos quadros e das sucessivas leituras/escutas das sessões. A intenção destes relatos
é apresentar uma narrativa das sessões a partir dos objetivos propostos. Assim, além do seu
aspecto descritivo estas narrativas já são produtos da análise dos dados. Os dados foram
92
organizados, a partir dos objetivos da pesquisa, privilegiando uma apresentação que pudesse
facilitar a compreensão dos resultados e o acompanhamento da discussão.
4 RESULTADOS
A história deste Grupo começa com uma adaptação forçada de tema e com uma grande
aposta emocional na proposta de se discutir a temática do enfrentamento à violência de
gênero em grupo. Enfim, como uma grande surpresa...
O primeiro encontro (que não era encontro) aconteceu em um evento para a comemoração do
Mês de Março de 2008 acordado pelo Espaço Bem-Me-Quero com o Programa Municipal de
DST/AIDS da Prefeitura de Contagem/PMC (onde eu trabalhava anteriormente). Foi
sugerido que se realizasse uma oficina sobre sexualidade focalizando a prevenção as
DST/AIDS com mulheres atendidas pelo Espaço Bem-Me-Quero. A dinâmica deste encontro
foi construída e desenvolvida por mim e por Sâmia Grasinoli Alves (psicóloga do Programa).
Apresentamos como proposta de tarefa a construção, em grupo, de cartazes sobre a
sexualidade feminina utilizando-se de palavras chaves apresentadas por nós (como tesão,
AIDS, amor, sexo, carinho, entre outras) e de recortes de revistas. As mulheres rapidamente
começaram a produzir, mas qual não foi a surpresa quando começaram a falar. Elas falaram
da violência vivida em casa, dos sonhos de amor romântico não correspondido, da descrença
e desilusão com o casamento e também da vontade e esperança de que seus casamentos
seguissem os caminhos sonhados anteriormente; sutilmente falaram de sexo e nada sobre as
DST/AIDS. Ou seja, nossa proposta foi desconstruída e reconstruída por elas. As palavras
sugeridas por nós foram utilizadas para falar do que era emergencial para elas; uma vida
onde a violência disputava espaço com os sonhos de um casamento feliz. Quando a primeira
mulher falou: “Sexo tem tanto tempo que eu não faço isto... Nem lembro...” Sâmia me
cutucou e falou “Não tinha nada a ver realmente a gente vir falar disto, temos que ouvir o
93
que elas querem...” E aí deixamos fluir e foi muito produtivo e emocionante. Ao final do
encontro, percebendo a animação e o entrosamento entre as mulheres, eu decidi propor um
grupo semanal no Espaço Bem- Me- Quero para que pudéssemos continuar discutindo as
questões iniciadas naquele encontro. Elas concordaram com a idéia imediatamente. Ao lado
da disputa entre a violência e o amor havia a necessidade de se falar sobre esta situação e de
ser ouvida e acolhida. Assim começou o nosso Grupo no dia 10 de março de 2008, com o
aceite de onze mulheres. Após este primeiro encontro outras mulheres foram convidadas e
um grande número reafirmou o aceite inicial. A importância deste aceite se deve a forma
como foi pensado o enquadre para este Grupo: aberto e de livre participação, ou seja, sem
obrigatoriedade de presença ou com número de sessões pré-determinado para participação.
Como uma grande vitória deste Grupo, nunca foi marcada uma sessão onde não comparecesse
nenhuma mulher. A única exceção foi quando meu pai faleceu e não foi possível avisá-las.
Algumas das mulheres que compareceram, após receber a notícia foram para a praça próxima
ao Espaço e ficaram conversando por um bom tempo, indo depois ao centro comercial da
cidade juntas. As mulheres que tomaram esta iniciativa são algumas das que participam há
94
mais tempo no Grupo. Com o passar das sessões e com a chegada de novas mulheres no
Grupo ficou aparente esta distinção tanto para elas quanto para mim. Elas começaram a se
nomear como “veteranas” (Camila, Graça e Cíntia). Na dinâmica grupal este posicionamento
é legitimado por mim quando me refiro a elas como “exemplos” não de mulheres que
resolveram definitivamente a situação de violência, mas como mulheres que estavam
nitidamente percebendo mudanças em si e em seus ciclos de violência, apesar das muitas
dificuldades financeiras, familiares, institucionais, jurídicas, afetivas e emocionais. Elas, por
sua vez, apontam este processo de mudança como consequência direta da acolhida minha e da
instituição e da participação no Grupo.
95
potencializar as discussões sobre o enfrentamento à violência de gênero com informações de
cunho jurídico.
Um evento marcante ocorreu em março de 2009 quando o Grupo foi, pela primeira vez,
convidado para o tradicional “Café da manhã com a Prefeita” em comemoração ao dia 08 de
março/Dia Internacional das Mulheres. Para esta ocasião, como há muito desejado por elas,
foram confeccionadas pela Coordenadoria Especial de Políticas para Mulheres
(CEPOM/PMC) camisas especiais (ANEXO 08) para este dia. Antes disto, elas sempre se
remetiam ao desejo de ter esta marca do Grupo para mostrar fora do Espaço. Pensaram até em
pagar pela confecção das camisas, mas, como é um serviço oferecido pela Prefeitura, a sua
publicidade tem que ser aprovada pela equipe de Comunicação Social da Prefeitura. Na
96
camisa ficou escrito “Grupo de Mulheres” com as logomarcas da Prefeitura logo abaixo. O
Grupo ainda não tem “um nome”, mas pode-se dizer que já tem uma localização política e
histórica na cidade e na instituição Assim, compareceram a este evento político de grande
porte como representantes do Espaço Bem-Quero e do Grupo 12 mulheres. Uma delas,
inclusive, entregou uma carta nas mãos da Prefeita agradecendo o atendimento recebido no
Grupo e no Espaço e falando do seu desejo de conseguir um emprego. Em novembro de 2009,
como mais uma forma de compartilhar informações sobre o enfrentamento à violência de
gênero, o Grupo foi convidado para participar do “IV Seminário da Rede de Enfrentamento à
Violência”, a ser realizado em Contagem. Quatro mulheres se inscreveram e tiveram a
oportunidade de se inteirar da discussão realizada por outros atores sociais e instituições sobre
o enfrentamento da violência.
Para além destes eventos externos, também são marcantes as sessões de fechamento de
semestre para as quais são convidadas todas as mulheres que frequentaram o Grupo durante o
semestre. Esta é uma forma de revê-las, obter notícias e reafirmar o convite inicial para
participarem do Grupo. É um momento festivo e de reflexão onde, geralmente, fazemos uma
avaliação do andamento do Grupo e delas neste processo, tiramos fotos e são utilizados meios
alternativos como mensagens e slides para auxiliar as discussões. Nos encontros de final de
ano de 2008 e 2009 foi realizado um amigo oculto, por sugestão das participantes, onde nos
organizamos de forma que todas trouxessem de casa um brinde e um lanche para ser
compartilhado. Considero que a possibilidade de reencontrar as outras participantes e de
(re)pensar a trajetória grupal e individual do último semestre importante para a história do
Grupo e das participantes neste processo reafirmando a responsabilidade delas com a proposta
e nossa com as trajetórias de cada uma.
97
Compreendo estes momentos como passos para a visibilidade e legitimidade política e
institucional da proposta do Grupo e da trajetória de suas participantes. Vale também destacar
a seleção de duas participantes para o Projeto “Mulheres da Paz”, iniciativa do Programa
Nacional de Segurança Pública com Cidadania (PRONASCI) do Governo Federal com a
Prefeitura Municipal de Contagem (PMC), através do qual elas estão realizando um curso de
formação de 150 horas que as capacitará a discutir em suas comunidades o enfrentamento à
violência.
Por fim, a partir do contato iniciado por mim com a Voglia Produções Ltda para a solicitação
de uma cópia do filme “Dias e noites” para exibição no Grupo e a, posterior leitura dos
produtores sobre a proposta do Grupo e os relatos de mudanças nas trajetórias de suas
participantes, foi realizado um convite para as mulheres do Grupo participarem da gravação
do documentário “Silêncio das inocentes”14. Cíntia e Camila foram escolhidas pela produção
do filme, entre as participantes indicadas por mim, devido às peculiaridades de suas histórias.
A gravação ocorreu no dia 27 de abril de 2010 e foi um momento muito emocionante para
elas e toda a equipe do Espaço Bem-Me-Quero. A proposta inicial do diretor é utilizar destes
depoimentos no final do documentário como um contraponto às outras histórias de ciclos de
violência colhidas em outros pontos do Brasil, por ele ter percebido na história de Cíntia e
Camila um posicionamento diferenciado frente à violência.
Sessão nº 01-
14
Para maiores informações: <http://www.cinemadobrasil.org.br/produtora.php?id_produtora=90>. Acesso em
15 de maio de 2010.
15
No anexo 11 apresentarei uma transcrição na íntegra da sessão do dia 19 de agosto de 2010.
98
Sessão do Grupo nº 59
Data: 22 de julho de 2009
Duração: 1 hora e 46 minutos
Participantes: Rosa, Janaína, Fernanda, Elis, Cíntia, Camila, Marília, Sâmia, Nina.
Coordenação do Grupo: Simone (coordenadora) e Rafaela (observadora)
Cíntia e Camila são algumas das mulheres que participam do grupo a mais tempo, bem como
Graça, que não compareceu nesta sessão, mas foi citada e lembrada pela coordenadora e por
outra participante: “Cíntia (fala baixo): eu falei com a Graça que eu ia puxar a orelha dela
que ela não chegou até agora. Simone: ela deve estar chegando...”. A diferenciação entre as
16
Em alguns trechos das sessões não foi possível identificar de qual participante era a voz. Nestas situações, em
toda a dissertação, mantive a fala com a indicação mulher para demarcar que se tratava de uma fala de
participante não identificada.
99
participantes, segundo o tempo de participação no grupo, declarada por Camila e reafirmada
por Cíntia, foi neutralizado pela coordenadora que afirmou não haver um lugar
predeterminado para as participantes.
Sâmia, muito tímida, após se apresentar se espantou com a idéia de que o grupo era para
mulheres em situação de violência. Nina, então, fez um paralelo para ela sobre a situação
vivida pelas duas como uma forma de definir o que seria uma situação de violência. Este
excerto representa bem a dinamicidade da comunicação no grupo, bem como a capacidade
das participantes de acolhida.
Simone: Mas é só para entender, porque aqui as pessoas que vêm, geralmente, é
porque estão passando por uma situação de violência, você tem alguma situação
assim na sua vida?
Sâmia: Um pouquinho
Simone: Fala do pouquinho
Camila: Fala um pouco do pouquinho...
Sâmia: Você não tinha me falado disso não. (Voltando-se assustada para Nina)
Nina: por que a violência...
Elis: eu posso explicar um pouquinho porque ela mora lá no bairro
Cíntia: O que fala aqui permanece aqui é igual... Aqui você pode ficar tranqüila,
Camila: aqui é igual à confissão de igreja.
Elis: esse negócio de bairro é meio chatinho mesmo. Ela mora lá no meu bairro.
Nina: O tipo de violência que ela esta falando Sâmia, é igual, porque igual o D. me
bate?
Sâmia: Não.
Nina: o que ele faz comigo é o que o G. faz com você.
Elis: isso é violência psicológica.
Simone: Uma das coisas que a gente vai trabalhar aqui é justamente o que é
violência, violência não e só violência física, mas você vai pegar o ritmo da coisa...
Após a abertura, os assuntos a serem discutidos são trazidos pelas mulheres de acordo com os
últimos acontecimentos em seus ciclos de violência. Também ocorre das mulheres que estão
comparecendo pela primeira vez, apresentarem o motivo porque estão no grupo bem como
suas trajetórias afetivas e de violência até o momento. Indiferente de qual seja a dinâmica do
desencadeamento da discussão, a comunicação caracteriza-se por relatos, em sua maioria, das
100
cenas de violência e da trajetória de atendimento pela Rede de Enfrentamento à Violência. O
relato de Cíntia, por exemplo, inicia-se pelo momento em que seu ex-companheiro recebe a
intimação para a primeira audiência de separação, divisão de bens, guarda e pensão dos filhos.
Ela relata que apenas por saber que seu ex-marido recebeu a intimação ficou doente e que seu
filho e sua mãe ficaram amedrontados. Ela ressalta que vem recebendo apoio, mas que nem
por isso, a situação de violência terminou.
Ela disse que foi bem atendida pela advogada e pela gerente do Espaço Bem-Me-Quero que,
por sua vez a encaminhou ao “advogado” dos Direitos Humanos. Segundo ela, este a indicou
o Disque Denúncia dos Direitos Humanos, (o 0800) como uma forma de solucionar a
situação. Eu afirmei para ela que no Espaço Bem-Me-Quero não existia nenhum funcionário
do sexo masculino e ela também não sabia dizer o nome de quem havia conversado com ela.
Quando consegui definir quem era a pessoa, expliquei que ele não era servidor do Espaço
Bem-Me-Quero, mas sim da Secretaria de Direitos e Cidadania18 à qual o Espaço Bem-Me-
Quero é vinculado institucionalmente. Indiferente disto e da ressalva feita por ela sobre o
17
Esta mulher move uma ação de reconhecimento de paternidade contra seu ex-companheiro. Na sessão anterior,
ela havia nos relatado, entre lágrimas, que sofrera a maior de todas as violências, pois fora detida por desacato à
autoridade após ter se recusado a assinar uma intimação sem antes conversar com seu advogado. Ela foi
algemada e levada de camburão ao CERESP de Contagem (local destinado a presos do sexo masculino após o
julgamento) onde permaneceu detida por uma noite. A intimação se referia a uma denúncia por parte de seu ex-
companheiro de invasão de propriedade. Após discussão no Grupo, a encaminhei para receber orientações
jurídicas da advogada do Espaço Bem-Me-Quero. As mulheres do Grupo, muito sensibilizadas com o sofrimento
e fragilidade demonstrados por Camila, concordaram com esta proposta e também com a estratégia apresentada
por ela de denúncia contra o Estado por abuso de autoridade.
18
Temporariamente, esta Secretaria funcionou na mesma casa onde se localiza o Espaço Bem-Me-Quero, por
questões administrativas da Prefeitura (o que pode ter levado a mulher a se confundir).
102
“excelente tratamento” recebido de mim, da advogada e da gerente do Espaço Bem-Me-
Quero e da acolhida pelas mulheres do Grupo ela continuou questionando o posicionamento
institucional do Espaço-Bem-Me-Quero.
Camila apresenta-se pequena frente ao sistema que a violentou e entende que o Espaço Bem-
Me-Quero seria um local onde poderia ser apoiada e fortalecida no enfrentamento à violência
policial.
Fernanda: Só pegando um gancho com a história dela (de Camila), igual o meu caso,
eu saí de casa todo mundo fala: você saiu da sua casa. Mas não é que eu saí da
minha casa. Eu saí da minha casa porque eu fui agredida psicologicamente,
moralmente e fisicamente e o meu filho também, mas mesmo com tudo isso eu sai
com o resultado da separação de corpos. A juíza então, como se diz, disse que eu
podia abandonar o meu lar porque eu estava na lei que eu estava sendo agredida
então ele não foi não pronunciou então como diz
Simone: tem alguma audiência marcada?
Fernanda: Ela marcou agora no dia 11 de agosto. Nesse meio tempo, igual, vocês já
sabem, eu estou morando em um barracão de um quarto com um banheiro.
Mulher: seus filhos estão com você?
Fernanda: meus filhos estão comigo, dormindo na mesma cama e tem dia que eu
faltei aqui porque eu não pude vir mesmo (começa a chorar) porque ele dá 50 reais,
mas... Acabou o gás, fiquei 30 dias no escuro que a fiação não funcionava. Aquela
menina a Graça (participante do grupo) ela viu, ela não está aqui hoje no grupo, ela
comprou duas peças de doze reais para me ajudar. E esse homem chegou dentro da
minha casa parou o carro foi entrando e eu atendendo e falou assim: eu não vou por
um centavo aqui, sua vagabunda, perto da cliente, sua vagabunda porque você tem
homem aqui para sustentar, porque tinha uma mulher com o marido dela lá
comprando (...). Porque eu estava dentro de casa e ele foi dentro da minha casa
ainda.
Simone: Porque que ele foi lá?
Fernanda: Ele foi lá para me infernizar. Aí ele gritou assim eu vou trocar a fechadura
da casa e aí eu falei assim: a casa é minha e eu entro na casa na hora que eu quiser,
porque eu não saí, eu não abandonei casa, eu saí por motivo de violência e de
agressão e eu posso entrar lá. Mas é igual o caso da Camila.
Simone: se bobear você vai tentar entrar lá e vai sair presa.
Mulheres comentam juntas um pouco.
Fernanda: Eu estou esperando o oficial de justiça entrar lá dentro comigo, mas eu
posso entrar lá sabe por que eu saí com o documento que o juiz determinou e ele não
quer que eu vá lá ao sacolão porque o que o que ele quer é me humilhar, me pisar
não quer me dar nada. Eu não tive nem aquela reação de chamar que eu já fui tão
violentada depender de Polícia que ela não chegava e não resolvia nada. Ele falou
que não ia resolver. O policial uma vez que eu chamei falou não chama não que
você vai é tomar chá de cadeira que eu falei com ele e ele não me ouvia.
Simone: ele falou que não ia fazer nada?A própria Polícia...
Fernanda: A pergunta que eu vou te fazer agora se eu fizer, mas porque eu não saio
do meu barraco que eu tô pagando do meu bolso porque eu quero ir com o oficial da
justiça depois da primeira audiência, mas não interessa se eu quisesse entrar lá hoje
e ele trocar a fechadura, a casa é minha, ele poderia? Simplesmente...
104
A reação das mulheres à pergunta de Fernanda foi de grande alvoroço. A percepção de que
apesar de Fernanda ter feito tudo de acordo com o determinado em juízo e ainda assim, estar
sendo violentada pelo ex-companheiro as revolta. A família dela, neste contexto, não apóia a
sua decisão de separar-se alegando que ela “tinha saído de casa por que queria”, “que estava
era inventando estas violências” e “coitado do marido dela que estava lá trabalhando”.
Como estratégia para sair desta situação ela se afastou de seus familiares e pediu para eles não
falarem mais com ela sobre o assunto. Cíntia, frente ao relato, reafirma que ela fez certo ao
sair de casa e que não deveria voltar apesar da opinião da família dela. No caso de Fernanda,
a morosidade da justiça tem levado a repetidas cenas de violência e a dificuldades financeiras.
Uma das consequências imediatas da estratégia de sair de casa para a mulher e seus filhos,
geralmente, é a dificuldade financeira durante o processo de negociação de direitos (como a
pensão e a divisão de bens) durante o período de separação. Os filhos adolescentes dela,
acostumados com uma condição financeira tranquila, não estão conseguindo se adaptar a
morar com ela durante este período de escassez de recursos. A cada ida e vinda dos filhos
entre as casas dos pais repetem-se cenas de violência. Este exemplo de dificuldade financeira
enfrentada durante o período de separação é temido e apontado como um dos motivos para o
adiamento do fim do relacionamento violento. Janaína resume esta situação assim:
Janaína: Deixa eu te falar Simone, sabe por que eu tô te falando isso, Simone,
porque não tenho para onde ir.
Simone: eu concordo.
Janaína: Ele paga aluguel, ele é tão mentiroso, porque ele pagava trezentos e trinta e
eu fui olhar é trezentos e setenta e seis reais,
Simone: Mas é obrigação dele, Janaína
Janaína: eu tenho medo de ficar com ele, tenho medo de ficar com ele dentro de
casa, mas eu não tenho como quem diz quem paga o aluguel, então ele grita: você
não tem para onde ir, você não tem dinheiro para pagar aluguel, você não tem onde
morar.
Frente ao sofrimento demonstrado por Fernanda, Nina também se solidariza e aponta outro
aspecto compartilhado pelas participantes frente a esta situação: a vulnerabilidade afetiva e
emocional.
Nina: eu só vou fazer uma colocaçãozinha. O que mais me incomoda, não sei se é
por causa do que eu tô sentindo pelo que eu tô passando, na historia dela a gente vê
no olho dela, cada vez que igual no caso dela parece que o que ela fala é o que eu tô
sentindo. (Mulher do grupo concorda) porque a dor que ela tá sentindo gente não se
resume a ele pagar duzentos reais e pôr no bolso dela mensais não. (Mulheres
concordam) Olha a situação dela, ela foi casada com ele vinte anos, tem filho com
ele e hoje não pode entrar na própria casa.
105
Camila complementa a constatação da complexidade da situação ao questionar a qual
instituição as mulheres sobreviventes à violência de gênero podem recorrer.
Camila: Eu não posso entrar na minha própria casa que é totalmente independente
dele, por medo, porque ele me deixou acuada, tem duas semanas que eu tô fora da
minha casa.
Nina: Aí você chama a Polícia, igual o caso dela aqui (referindo-se a Camila).
Participantes do grupo falam juntas comentando a situação de dificuldade frente à
violência.
Camila: Eu vou chamar quem?
Nina reafirma que o motivo da separação de um casal não deve ser questionado, pois se a
separação foi efetivada algo deve ter ocorrido. Ela explica como está a situação com seu
marido atualmente e que apesar de sempre deixar claro que ainda gosta dele percebeu como
está insustentável a manutenção da relação nos moldes antigos. Ela apresenta que ambos
continuam desempenhando seus papéis dentro do casamento, mas que a violência não teve
fim.
Nina: Se coloca no meu lugar, imagina você tá aqui pagando o aluguel, colocando
comida dentro de casa, carne, verdura porque isso ele não deixar faltar nada, aí ele
fala assim: é porque tudo que eu faço é pouco. Não é tudo que você faz é pouco não,
mas se coloca no meu lugar, você fazendo isso tudo porque eu tô aqui, eu tô fazendo
isso tudo, cuidando das meninas, cuidando de você, lavando e cozinhando.
Mulher: é
Nina: e vendo que você tá fazendo, aí eu viro para você em plena quarta-feira eu
falo assim: Você fica com as meninas hoje porque eu tô indo dormir com meu
namorado tá, se coloca no meu lugar. E nessa altura do campeonato ele virou para
mim e falou assim: Se você não tivesse saído de casa se você tivesse aguentado um
pouco ia tá tudo do jeito que tava.
Mulher: aguentando traição
Nina: Aí eu falei com ele assim: Mas estava bom do jeito que tava? Aí ele falou
assim, não, não estava bom, pois é eu tive a oportunidade e a coragem de fazer o que
você não tava tendo coragem de fazer aí ele virou para mim e falou assim... E é o
que vai acontecer com ela se ela for lá e chamar a Polícia porque é isso que
acontece. Ela saiu de casa porque ela foi atrás de macho, porque foi isso que ele
falou comigo, você saiu de casa porque foi correr atrás de homem, entendeu?
Fernanda afirma que também tentou manter uma relação amigável e que apesar de continuar
desempenhando o papel de mãe/mulher/companheira adequadamente a violência não teve
fim.
Cíntia, por sua vez, relata sua história de como resolveu estudar e passar por cima de todas as
dificuldades e traições do ex-marido na escola onde estudavam juntos. Frente ao incentivo
dela para que ele começasse a estudar ele reagiu com traição e violência.
Cíntia: quando ele me viu que eu formei a oitava série, ele voltou a estudar aí eu
carreguei as folhas dele, quinhentas folhas no braço de um bairro para o outro aí fiz
a matrícula dele (...) não demorou um mês ele tava com uma mulher para lá e para
cá, amiga da escola que ia à minha casa, mas só que eu não via, aí começaram a
falar comigo, você é tão bonita e seu marido com aquela ridícula e eu também não
via, aí eu procurava também não ver. Mas aí resumindo essa historia, ele pegou e
começou a sair mesmo com essa mulher aí eu vi e pedi a separação.
As participantes assim relataram como a estratégia de manter a relação não foi bem sucedida e
quais as decisões tomadas frente a isto: Nina resolveu sair de casa, Fernanda saiu de casa e
107
aguarda o andamento processual para ter seus direitos garantidos e continua trabalhando
muito e Cíntia resolveu continuar estudando, mas se separar definitivamente. Janaína, que
estava em silêncio até este momento, resume a história:
Janaína: É o que eu tô falando para vocês aqui, homem só muda de nome e endereço
continua tudo pilantra,
Mulher: É.
Janaína: sem vergonha, não respeita a mulher que lava, passa, cozinha e cuida dos
filhos deles não, eles só querem aproveitar de vocês, eles ficam com as outras na rua
e quando chega em casa quer porque quer que você se entregue para ele, assim que
o lá de casa é.Falas de mulheres concordando com Janaína sobre sua opinião sobre
os homens.
Simone: Pelo que vocês estão contando, vou pegar o gancho com a Camila sobre o
que vocês estavam comentando, eu não esqueci não, semana passada eu perguntei
justamente isso né, como é que toda situação, quer dizer, seja amante, seja traída,
seja trabalhadora, não trabalhadora, seja quem trabalha todo dia, seja quem nunca
trabalhou, a situação é igual você falou ,é de marginalização, não respeito de
direitos. Eu acho que eu posso falar isso porque é isso que vocês estão me contando,
quem não concordar pode, vocês concordam, querem completar?(...) tem sido criado
instituições como o Espaço Bem-Me-Quero para tentar ajudar a enfrentar essa
situação, aí eu comecei falando da Polícia que eu já tenho observado que eu já até
falei numa sessão atrás que teve uma reunião aqui que inclusive eu falei com a
psicóloga da Polícia Militar: eu tenho três depoimentos gravados para passar de
instituição para instituição, porque enquanto não está escrito, não está gravado, não
chega né? Aí é de uma instituição com uma instituição, não sou eu como psicóloga
qualquer, é o Espaço Bem-Me- Quero com a Polícia Militar. Igual vocês falam, eu
gosto quando a Camila fala isso porque não pode ser só demagogia, agora também
tem aquela coisa: como construir essa rede contra a violência que é o trabalho que a
gente tenta fazer?
Janaína: os policiais não estavam respeitando ninguém, eles tiveram na minha casa
semana passada (...) eu peguei aquele endereço que você (Simone) me deu e eu
liguei, e eu toda vida ligava e nunca vinha, e como eu liguei nesse endereço eles
apareceram, mas vieram sabe o que é, com licença da palavra, um bando de animal,
um bando de cavalo, eles não têm disciplina eles não têm educação para entrar na
casa da gente eles desacata tanto você como o homem que está bêbado que está te
desafiando você ta te maltratando dentro de casa.
108
Simone: mas o que foi que te incomodou na postura dele, além dele mexer com a
sua neta? O que você acha que ele fez de errado como é que ele devia ter agido?
Janaína: em vez de ele chegar e conversar com ele na boa: chamou ele lá na cama e
pediu: Ô dona eu posso entrar, pode, eu não vou fazer nada com ele, eu só vou
conversar com ele. Ele tem condições de conversar? Eu falei: tem. Numa boa.... Ele
falou: Conversar comigo por quê? Eu não fiz nada.
Simone: eles nunca fazem nada.
Janaína: não agredi, não fiz nada, não roubei, não desacatei ninguém.... Eu trabalhei
trinta e cinco anos, toda vida eu trabalhei nunca fui vagabundo, não sou vagabundo,
não sou maconheiro, não sou drogado, não mexo com droga, não sou ladrão, não sou
marginal, isso é que vocês deviam de tá correndo atrás, de castigar, eu não.
Simone: Porque que eles encostaram a mão nele? Tem que ter um motivo.
Janaína: Ele pegou e falou assim, sabe por causa de que, porque desacatou ele
Simone: Ah! Tinha que ter um motivo.
Camila: mas aí quando desacata e ele fala que você desacatou também.
Janaína: aí eu na hora que o Policial chegou ele passou a mão nos óculos e no
cigarro e foi lá para a sala e o isqueiro, e o que ele fez, pôs o cigarro na boca e o
policial falou com ele: Ô moço, por favor, não faça isso não, não desacata a
autoridade não, tô pedindo, não fuma não, vamos conversar, depois você... Eu vou
acender porque eu tô dentro da minha casa e o senhor está invadindo a minha
propriedade, vocês estão invadindo a minha casa eu falei assim, na hora que ele
falou assim o cara só pegou e passou a mão no cigarro e tá na boca dele, o policial, o
magrelinho pegou e deu um tapão na boca dele.... (Janaína falou com o marido) tem
que respeitar a autoridade sim, estando você errado ou não você tem que respeitar,
porque eles acham que são mais porque eles são formados para isso eles mandam
onde eles tão, eles mandam, até em mulher. Eles vêm me mandando calar a minha
boca, sendo que eu os chamei para me proteger eles mandam calar minha boca e me
desacatam dentro da minha casa também, entendeu.... Aí ele pegou ele pelo pescoço
e só isso que ele falou, pegou ele pelo pescoço, arregalou o olho dele e levou para
viatura e algemou-o e levou para a viatura e aí ele falou assim, e você cala essa
boca. Aí ele falou assim: tá vendo Janaína o que você fez comigo.
Simone: Agora a culpa ainda é sua.
Mulher: concorda com a colocação de Simone
Janaína: e falou assim para mim: Escuta aqui a senhora caça jeito de arrumar alguém
para tomar conta dessas crianças e vai ao vizinho e leva os meninos lá na minha
vizinha que é crente, levou os meninos lá, minha filha enquanto eu tô doida caçando
a identidade, dentro do levar os meninos num lugar agora. Desse jeito: vai agora.
Camila: não pensaram com quem meu filho ia ficar me pegaram pelo cabelo e me
tocaram no carro e o menino de um ano e nove meses ia ficar com quem?
Simone: é.
Fernanda: Simone o dia que e meu marido me agrediu eu tinha ido comer cachorro
quente e aí eu cheguei eu tava com minha colega, cheguei à casa da minha colega e
aí ele me agrediu eu tava chorando pegou meu celular.... começou me ameaçar você
vai morar comigo na minha casa e isso não está certo que você está bêbado, no meio
da rua, você me solta, eu fiquei muito tempo sem sair de casa eu resolvi sair hoje eu
não sei por que você tá aqui e você tá me seguindo e eu vou gritar socorro eu gritei
socorro e o menino que tava no cachorro quente que tava comigo não chamou, não
fez nada aí eu peguei minhas coisas e saí correndo assim e ele veio atrás de mim
com o carro na Abílio Machado.Na Abílio Machado tinha um rapaz sentado assim
109
que parece que já tinha bebido todas, aí chegou e falou assim: negócio é o seguinte:
solta a moça eu não sei o que está acontecendo não, mas eu tô vendo que você está
agredindo ela. Eu falei assim: moço tudo que eu quero fazer é ligar para Polícia e
esse homem não quer deixar e eu queria ligar para a Polícia para o 190 e ele não
quer deixar. E ele me segurava assim pegou meu celular e quebrou, o menino viu ele
quebrando o celular e tava todo tonto veio até a mim sabe e já que não tem nada que
você não deve nada, o que tem ela chamar a Polícia?Porque ela não pode chamar a
Polícia? E eu tava com o celular e ele quebrou meu celular que não funcionava e eu
queria ver se tinha um segurança de um motel lá para eu poder pegar o celular e
ligar, ele não deixou não só que foi o seguinte. Quando eu tentei chamar a Polícia,
ele tinha chamado a ambulância para me prender, ele queria me prender... só sei
dizer que quando a ambulância chegou... Esse menino ligou, aí chegou a ambulância
e falou assim, você tem irmã, tem irmã vai embora porque o problema não é você o
problema é ele, está transtornado. A ambulância conseguiu detectar que o problema
de loucura não era eu, nós estamos em processo de separação, ele me agrediu, tenho
testemunha o pessoal lá, depôs e tudo aí ele falou assim: então você vai para casa da
sua mãe, casa de irmã quem tá com algum problema é ele e eu não posso fazer nada
que o problema é de separação e foi embora. Quando eu fui embora ele veio atrás de
mim de novo e aí eu consegui chamar a Polícia que esse menino que foi embora e
chamou a Polícia para mim. Sabe que aconteceu com a Polícia? A Polícia chegou e
em vez de chegar e conversar comigo que era a agredida, fui agredida e fui a vítima
e que liguei para a Polícia chegar, ele ficou conversando com ele lá
Simone: é isso que eu não agüento.
Fernanda: e na hora que eu cheguei a Policia falou comigo, olhar a minha bolsa...
vai senhora cala a boca que eu tô vendo que a senhora ta alcoolizada. Eu não tava
alcoolizada, eu tava nervosa porque eu tinha sido agredida,
Camila: ele tinha perguntado se eu tinha ficado doida, eles me arrancaram da porta
da minha casa, me tiraram dos braços do meu filho
Fernanda: você entendeu? Eu tinha sido agredida, tava chorando, vem cá eu estou
chorando eu fui agredida, esse homem aí, ele ficou olhando com aquela cara de
cínico para mim, ele bebeu muito mais cerveja do que eu e ainda está dirigindo que
é contra a lei e eu não tenho nada tá aqui minha certidão de bons antecedentes e tudo
e agora o senhor vem me mandar calar a boca, e vocês vêm falar comigo para eu
deixar isso para lá e aí ele falou que não ia levar a gente para a delegacia porque ia
ser só chá de cadeira. Que não vai acontecer nada para ele. Eu fiquei assim, eu fiquei
tão
Camila: pois é eu fiquei com tanto chá de cadeira que eu fui parar no CERESP, eu
tomei tanto chá de cadeira ele falou assim isso não dá em nada. Eu fiquei tão
revoltada e aí eu peguei e dá vontade de processar por... Eu nem peguei a farda da
Polícia, eu me senti um lixo, sabe quando você tá precisando da Lei ali na hora e ela
não acontece, mas eu fiquei assim, a não ser o menino que me ajudou sabe eu me
senti assim, sabe ...
Continuando o relato de Janaína, ela descreve a forma como foi o processo de decisão sobre a
necessidade e forma de se registrar a ocorrência por parte dos Policias. Vale observar a
recorrência do “chá de cadeira” e da chamada “Cala a boca, minha senhora!”, o tratamento
dispensado à mulher autora da queixa e a apuração do suposto crime ocorrido.
110
Janaína: na hora que eles estavam descendo, olha o que o abençoado falou para ele,
nunca mais, nunca mais nunca mais, falou para mim assim: olha o que ele falou para
mim, olha o que ele falou para mim: Oh dona, deixou ele lá na viatura com o
magrelinho, o motorista e me imprensou lá na porta da delegacia e falou assim para
mim: O dona, também não perguntou o meu nome não, o dona a Senhora cala essa
boca porque eu estou aqui para ajudar a senhora e tô com dó da senhora, se a
senhora tá achando ruim eu vou levar vocês dois lá para a furtos e roubos. Eu falei.
Simone: o que tem uma coisa a ver com a outra?
Mulher: é dureza, né.
Janaína: Se for para você me levar para a Furtos e Roubos, você não me tirava lá de
casa não, porque ele pode me bater me matar.
Simone: Aí também não né, Janaína.
Janaína: mas sabe por que eu falei para ele sabe por que eu falei para ele tomar
atitude de homem porque lá vocês não vão tomar chá de cadeira não, lá vocês vão
tomar o que vocês merecem, falou assim para mim, falou assim para mim. Então eu
falei: eu mereço o que? Eu não mereço nada. (Camila comenta) eu vim pedir uma
ajuda e agora vocês vêm me agredir nessa situação, eu não tô te agredindo eu não tô
te respondendo, na hora que ele falou assim que ia me levar para a Furtos e Roubos
eu falei assim: você não vai me levar não.... lá na delegacia com ele mesmo eles não
conversou nada, não falou nada, só comigo, só comigo, ele devia ter chegado igual o
delegado, vocês dois vão conversar com o delegado, falou que nós dois ia conversar
com o Delegado. Nem o Delegado chegou perto de nós, sabe como que eu fui
conversar com o Delegado, que eu passei perto depois que esse Policial me marcou,
me pirraçou, me condenou fazendo ficha lá e eu pedindo: Oh senhor faça com que
esse policial resolve os problemas dessa ficha que eu não fiz nada ele não fez nada e
essa ficha tá tão cumprida que nunca tem fim.... soltou ele sabe por causa de que?
Porque depois que este policial atrevido fez a ficha para mim, para ele lá perguntou
se ele me agrediu que aconteceu eu falei assim moço eu já te falei lá em casa que ele
me agride com palavras, só fica bebendo 24 horas por dia, não dá assistência para os
meninos.
Simone: ele te escutou?
Janaína: então aí eu conversei com ele lá em casa e tive que repetir tudo de novo e
ele algemado lá no canto e sentindo dor porque eles apertam sem dó.
O desfecho desta ocorrência segue a mesma linha de ação da abordagem realizada na casa de
Janaína. Vale a pena observar/analisar a escolha dela de permanecer com o marido como uma
das consequências do tratamento recebido por ela e pela condução dos agentes policiais da
queixa-crime. O episódio onde Janaína pede carona a um taxista após sair da Delegacia é um
exemplo muito forte da vulnerabilidade das mulheres em nossa sociedade. O relato desta
mulher desde o momento que acionou a Polícia para dar queixa da violência até a finalização
da cena com a ida para casa a pé, de madrugada, é um retrato da forma como a violência de
gênero é tratada pelos órgãos policiais.
Janaína: O que ele falou para mim, Janaína pede para eles afrouxar essa algema isso
aqui que eu não to aguentando de tanta dor não.
Simone: e o que você falou?
Janaína: eu com educação.
Simone: você escutou o que ela falou? Fala para ela,
Elis. Eu deixava, eu não sabia nem o que ele falava o deixava lá um dia dois dias,
três dias.
Falas das mulheres discutindo a postura de Janaína e a proposta de Elis.
111
Janaína: Mas sabe por causa de que eu falei isso? (falas) Me deixa só explicar para
vocês eu estava fazendo a ficha e estava preocupada porque eu não sabia se ouvia
ele me gritando lá e se eu ouvia.
Simone: o policial tinha que ter ido lá calar a boca dele não era você.
Janaína: O policial pedindo os dados lá aí de repente quando fizeram a ficha eles
pegaram e me pôs lá de chá de cadeira lá fora no banco, pôs ele lá dentro lá com os
outros caras que estava lá dentro sentado lá e tirou a algema dele e deixou ele lá e
falou que eu ia conversar com o advogado e delegado nem nada, na hora que eu, na
hora que eu passei que eu fui perguntar o policial para ele me salvar, me responder,
o abençoada do Delegado falou assim: o dona, arreda daqui, fui tratada que nem
cachorro, sai fora daqui, racha o fora daqui, eu falei assim: Ô moço eu to só
querendo perguntar por que se ele pegou a identidade dele porque da outra vez ele
não pegou a identidade dele. Aí ele pegou e simplesmente falou comigo assim o
soldado: Oh dona vem cá, vem cá, dona vem cá eu estou indo, a senhora quer ir
comigo pegar seus filhos na casa da vizinha lá? Eu falei não moço, eu não vou não,
sabe por causa de que? Porque eu sabia que eles iam ele deixar tomar chá de cadeira
e ele ia vir de lá para cá a pé, sozinho e depois ele ia chegar e me ameaçar em casa
ele ia vir e ia ficar mais furioso aí que ele ia me arrebentar, ia me arregaçar.
Simone: Aí você voltou com ele juntinho com ele?
Janaína: juntinho com ele não, eu vim sozinha na frente, simplesmente e ele atrás
sem conversar comigo, eu sozinha e Deus.... Aí eu perguntei para um taxista se ele
pegava cartão ele simplesmente respondeu para mim, o dona eu não pego cartão
não, eu estava para o lado de lá do Bairro Amazonas, quando eu chego perto do
Pronto Socorro parou um taxista um descarado danado e por isso que eu falo que
homem não vale nada, e peguei e falei assim: O moço será que dá para você me
levar na Bernardo Monteiro porque tá tão longe e eu não tô mais aguentando andar,
o senhor recebe cartão? Ele só falou assim para mim, entra aí, não é só eu não, meu
marido vem aí atrás.
Simone: ela ia pagar o táxi para ele ainda.
Mulheres comentam e riem olha só para você ver. Ela tinha que deixar ele lá se virar
para ele ver. (Muitas falam juntas).
Camila: olha só que coisa linda...
Janaína: Sabe o que ele falou, sabe o que ele falou que não consegui entender.
Camila: ninguém consegue entender mesmo não.
Janaína: o que ele me falou foi que eu sozinha ele podia me levar porque ajudar
(falam juntas). Ele podia me levar, mas quando eu falei que o homem estava lá atrás
ele (falam juntas) ele falou comigo eu não poso te levar não. Porque que a gente
sozinha duas horas e tanta da manhã e ele podia me ajudar. Simone, ele não ia me
ajudar não, Simone, ele ia rodar comigo e fazer sacanagem comigo. Mais falas.
Mulher comenta: ela ficou com medo de assalto de madrugada Outra mulher
comenta: você devia ter deixado ele vir a pé pela ponte.
Simone: escuta agora.
Janaína: Na hora que ele abriu a porta para eu entrar sozinha eu fiquei com medo
porque muito caso acontece que mulher pega e eles somem com ela (falam juntas).
O alvoroço causado pelo relato de Janaína só foi aumentando à medida que ela contava o caso
dos taxistas e demonstrava sua preocupação com o companheiro e seu temor de ser
novamente violentada, neste caso o taxista. As mulheres concordaram com o perigo de se
pegar uma carona sozinha de madrugada, mas não concordaram com a necessidade de Janaína
de levar o marido consigo e de se preocupar com ele após as recorridas cenas de violência
entre eles. Assim, este trecho de seu relato abriu uma série de questionamentos sobre o seu
posicionamento em relação ao companheiro.
112
Camila: Mas Janaína, você vai me desculpar filha, mas você não podia ter dó dele
não, ele violentou (mulheres do grupo falam juntas) Ele não fez nada?
Janaína: não é ter dó não. Eu não tava, não é ter dó (...)
Nina: ele pode te bater te espancar, te rebentar e você sentir a dor, agora por a
algema nele e tirar o cigarro da boca do bonitão, a dor doeu mais em você do que os
tapas que deu nele.
Janaína: Não foi porque doeu não sabe o que ele fez comigo o policial perguntou ele
assim, você tem o costume de bater em mulher, ele me bate desde os 19 anos.
Nina: pois é.
Janaína: ele negou, nunca encostei a mão nela não.
Nina: pois é. (falas de todas as mulheres reagindo ao posicionamento de Janaína)
Janaína: se eu fosse encostar a mão nela...
Nina: você tinha que dizer bate sim senhor....
Cíntia: A gente tem que começar a crescer, isso aconteceu, mas só que o que
acontece com você é pior do que o Policial chegar e agredir ele, eu sei que foi na sua
frente eu sei que doeu pra caramba, mas pelo amor de Deus (mulheres falam juntas
comentando sem parar)
Janaína: Deixa eu falar Dona.
Cíntia: eu sei, eu entendi tudo que a senhora falou eles fizeram desrespeito com você
(Mais falas juntas) Mulher comenta: Eles tinham que ter falado com ele, com ele.
Cíntia: mas porque você foi lá e falou com o cara não desacata o policial não. Deixa
ele fazer o que quiser.
Mulheres concordam: É
Simone: e até parece que ele ia te obedecer né, Janaína. (Mulheres continuam
falando juntas)
Camila: Ó gente ó, para todas, a gente fica com dó de homem. É para todas. A gente
fica com dó de homem, achando que a gente, às vezes, está passando dos limites.
Quando ele quer fazer terror com a gente eles fazem completo.
Mulher: É eu passei.
Camila: Pelo amor de Deus, o cara entregou minha cabeça sabendo que eu tinha
filho de um ano e nove meses lá, filho dele e ele nem ligou, ele foi e lá perguntou o
porteiro se foi serviço completo.
Após esta longa e tensa sequência de relatos de cenas de violência e tentativas frustradas de
acionamento da Polícia, a coordenadora busca incentivar as participantes, de uma forma mais
amena, a pensarem sobre como deveria ser a abordagem deste tipo de violência pelos agentes
da Polícia.
113
Simone: Nesse caso seu, vamos fazer de conta que a gente tem a varinha mágica
daquela menina que estava aqui no grupo passado, o que você acha que deveria ser
feito? Vamos pensar, como deveria ser então que a Polícia,vamos ensinar a Polícia a
trabalhar, como se fosse assim, você foi violentada como mulher como é que deveria
ter acontecido?
Janaína: Não, Simone sabe o que eu acho assim, que a Polícia deveria ter um pouco
mais de educação, mais seriedade porque a gente tá precisando da ajuda deles então
eles têm que ajudar mesmo, mas ter um pouquinho de educação, pelo menos para
tratar, conversar com a gente, e não é assim chegando igual ela falou lá....
Camila: Eu queria assim que o meu ex-companheiro na época recebesse um
corretivo,
Simone: Corretivo é o que? Tem que falar.
Camila: eu queria que a Polícia.
Simone: Para mim corretivo é isso aí que a Janaína falou.
Camila: Tá. Mas quando eu estive presa, o tempo todo você tinha que assinar, você
foi agredido? Eles fizeram alguma coisa com vocês?
Simone: você fez o que? Você falou não?
Camila: lógico que não, eu fui agredida, eu estava cheia de marca, só que é o
seguinte, aqui dentro desta instituição você foi agredida? O que queria naquele
momento era que fizesse justiça, aqui na lei no Brasil hoje, se você ficar dentro de
uma sala fechada é uma forma de fazer justiça, pela lei.
Simone: É ficar preso?
Camila: ficar preso, então o que acontece, quando eu chamei a Polícia para o K. eles
conduzissem ele até o local lá e depois eles se entendessem com ele, meu filho não
precisaria estar assistindo um horror, o que eu fico revoltada com a policia.
Comentários das mulheres quando percebem as cenas de violência.
Camila: Eles pegam o cara no meio da rua, você tá no ponto de ônibus, você tá na
fila, eles cortam o cara, ele não estão querendo saber quem está em volta porque
todo mundo.
Mulher concorda: eu também acho.
Camila: fica horrorizado. Então o que a Janaína queria? Eu acho que isso
funcionaria para a Janaína, a Janaína já está vivendo o terror tem muitos anos, se
eles chegassem lá e conduzissem o marido dela e falassem: Ô Senhora fica tranquila
se a senhora quiser chamar o advogado para ele nós vamos conduzir ele até tal lugar.
Simone: você queria isso Janaína?
Camila: sem violência.
Mulher: que não o algemasse...
Simone: mas algemado ele tinha que ser porque ele estava sendo preso, ou que
tivesse levado ele para Polícia, mas sem dar soco, para conversar (falam juntas). Não
estou falando que tinha que prender ele, mas sem dar soco que você considerou uma
coisa errada. E tivessem encaminhado ele para o camburão e conversassem com ele
lá na delegacia, o que você acharia dessa historia?
Janaína: Não, eu acharia assim.
Simone: ou você acha que tinha que conversar com ele lá na sua casa mesmo?
Janaína: do dia que fizeram isso com ele, deveriam ter feito assim, então levasse,
igual ele falou: A senhora vai ter que ir com ele, tudo bem eu vou, mas o que vocês
vão fazer com ele, ele só pegou e falou assim para mim, rodou com nós a João César
inteira pelo amor de Deus,
Simone: Mas o que você queria?
Janaína: Eu queria que eles fizessem com ele assim, levasse ele lá na delegacia e
com ele mesmo eles não conversaram nada, não falou nada, só comigo, só comigo,
ele devia ter chegado igual o Delegado, você dois vão conversar com o delegado e o
delegado nem chegou perto de nós.
114
Camila: não foi a Polícia que fez a violência comigo, foi o pai do meu filho. Eu
passei mais de 24 horas presa. Ele iniciou a violência combinando com os Policiais
só para fazer medo, mas se a Polícia fosse realmente uma instituição séria.
Simone: isto eu concordo.
Camila: o que eles teriam feito, não eu não quero assinar a intimação, não. Tudo
bem nós vamos fazer uma certidão ela tá sabendo o dia e a hora, mas não precisa
assinar, Passe bem senhora e vai embora. E eu estaria sabendo o dia e a hora, porque
eu não sou obrigada assinar, e ainda tenho o direito de consultar meu advogado
porque eu posso ou não estar assinando, senão não existia essa profissão de
advogado. Então eles não me permitiram que meu advogado soubesse do fato e nem
permitiram que eu não assinasse, me prenderam como se eu fosse uma marginal, o
meu filho ficou exposto, sem ninguém sem aparato nenhum.
Fernanda: porque, por exemplo, você aciona o 190 e você tem que ficar porque você
foi agredida e tem filho para criar, tem casa, tem tudo e não ir lá para tomar chá de
cadeira. Lá eles vão passar o sabão nele e lá ele tem o direito de visita e vai chegar e
conversar: eu não vou tirar (a queixa) que você merece estar aí. Até mesmo porque
se ele sair depois ele não vai mais fazer isso com ela porque se não ela vai chamar
de novo e ele vai tomar outro chá de cadeira de novo. O que está errado no sistema é
que, às vezes, você que não é criminoso acaba pagando o crime, porque só de ver
aquelas crianças com aquela cara de sofrimento com o cara lá algemado...
Poder-se-ia resumir as sugestões das mulheres como uma ação policial que não fosse violenta
nem com ela nem com seu parceiro e que, principalmente, fosse realizada a oitiva do parceiro
pelo Delegado e que ele, pelo menos escutasse uma advertência das autoridades policiais
sobre seu comportamento violento/criminoso.
A esta altura da discussão (uma hora e trinta minutos de sessão) o tempo do grupo estava
acabando e era importante que a coordenadora, pelo menos esboçasse um fechamento para
aquela sessão onde foram debatidos assuntos tão delicados e difíceis. Ela concorda com as
colocações das participantes sobre a ineficácia institucional de enfrentamento à violência e
reafirma que compreende os variados sentimentos das participantes durante toda a trajetória
de enfrentamento à violência. Desculpa-se com as participantes que desejavam contar alguma
coisa, mas que não foi possível e reafirma que concorda com a colocação de Camila no que
se refere à negativa de um de um serviço pautado pela demagogia.
Simone: mas aqui só para fechar, isso tudo, esse momento de revolta é um momento
necessário, é importante. Eu acho que a fala da Camila muito séria, se for para fazer
uma demagogia. (Mulher do grupo comenta) eu também estou fora, eu como
profissional e como ser humano, só que eu não sou a instituição, apesar de estar
reapresentando ela.
Camila: eu sei separar isso muito bem.
Simone: Até para mim é complicado, porque ao mesmo tempo eu sou mulher
também, sou a psicóloga de vocês, mas ao mesmo tempo sou funcionária da
115
Prefeitura de Contagem, ao mesmo tempo eu também tenho meus superiores...
Simone: como sugestão eu posso passar para frente (o caso), para o grupo, para cada
uma de vocês, as alternativas, as formas que vocês acham que as instituições
poderiam ajudar. Ela falou no jornal, é uma hipótese, mas têm outras, vamos listar,
entendeu. Eu não posso garantir, não sei o que vocês vão pensar...
Susana: já é um momento, né?
Simone: igual ela falou, tomar providências, às vezes, é ter uma idéia... (...) eu vou
pensar muito no que a Camila falou, do que a Janaína falou, espero que vocês
pensem junto comigo, porque a gente trabalha no grupo é para isso, para a gente
pensar junto né e o que eu falo sempre, igual eu falei aquela vez da traição que a
Nina trouxe que a Elis trouxe é nesse momento elas estão vivendo isso, mas isso não
quer dizer que a gente não possa viver ou a gente não pode ter vivido e essa situação
que a Camila tá vivendo e que a Janaína viveu também, infelizmente, a gente não
pode prometer. Então não é um caso da Janaína e da Camila é um caso das mulheres
nesta situação, agora o que eu acho é que vai ser interessante que eu quero que seja
feito é que com o tempo assim pode ser que é, explicar para vocês novamente o que
o Espaço Bem-Me-Quero é novamente. Essa rede que existe é uma rede falha, em
construção é uma rede que não tem nem cinco anos de existência, quer dizer, em
Contagem já tem três anos em BH ela tem muitos anos. E temos que deixar bem
claro que o que aconteceu com a Camila foi em BH, no caso da Janaína foi de
Contagem.
Camila: Eu tava em Betim, fui para Contagem depois me transferiram para BH.
Simone: Três cidades, então, pior ainda, porque a Polícia de uma cidade conta para a
Polícia de outra cidade. Uma vai passando para a outra e se passou foi porque todo
mundo estava concordando.
Camila novamente demonstra sua insatisfação com o andamento de seu caso e com o
posicionamento do Espaço Bem-Me-Quero.
116
Camila: Exato, mas era isso que eu queria dizer, mas a violência contra a mulher.
Simone: é muito maior.
Camila: no Espaço Bem-Me-Quero trata de que? De pessoas que sofreram violência
então o que eu queria me sentir amparada, uma instituição que eu poderia falar
assim, não, eu estou nesta instituição, eles sabem do meu problema, eu já estou com
eles há um ano e três meses e aconteceu isso, o Espaço Bem- Me-Quero entrasse
para me dar um apoio entendeu.
Mulher do grupo: para te fortalecer.
Camila: para me fortalecer. (Falas das mulheres comentando e concordando)...
Cíntia: Fala pra gente Simone, elas estão passando por isso, eu to vendo a Camila
aqui, eu estou me vendo na Camila, Deus queria me livrar, pelo amor de Deus.
Mulher: eu também.
Camila: Mas o que gostaria do Espaço Bem-Me-Quero Simone, eu acho que é
possível. É possível o Espaço Bem Me Quero fazer, entendeu, é ele sair do que ele
tá daquela plaquinha ali fora, dos profissionais gente boa que vocês são e ir para o
mundo, crescer, entendeu,
Mulher: é.
Mulher: fazer a diferença (as outras concordam)
Camila: quando uma mulher chegar agredida e ela chegar e falar olha eu tô no
Espaço (muitas falas altas).
Janaína: igual àqueles programas que vai que tem reclamação para você ver, igual
tem lá, todo mundo para apoiar então todo mundo para apoiar, tem um advogado
que conversa com todo mundo naquela hora, então a gente precisa é de um grupo
assim para ajudar a gente a resolver esse tipo de problema, porque a Polícia não
resolve, o advogado vai enrolando, enrolando você e não resolve.
117
Camila: Igual aquele negócio da profissão das mulheres que sofrem violência,
ótimo, mas não e só isso que nós precisamos, nós precisamos ter um aparato porque
na hora que a gente sofrer a violência e nós temos que ter consciência, a Polícia não
tem preparação, então se a Polícia souber que existe um espaço que tá olhando pela
gente, mesmo que seja um pouco pela janela, que esteja olhando de verdade sem
demagogia aí eles vão pensar: pô se eu fizer violência com esta dona aqui amanhã
eles estão metendo o ferro de novo, porque elas têm uma instituição que é
verdadeira.
Mulher do grupo concorda
Camila: e que olha pelo direito dela mesmo, não é um advogado para ficar na porta
de cadeia soltando mulheres, mas que façam a diferença mesmo entendeu, o que eu
queria não era que o Espaço arrumasse um advogado não.
Simone: até porque você tem um advogado
Camila: que o Espaço montasse junto comigo, olha ela tem um ano e três meses que
a gente tá acompanhando ela e ela sofreu uma violência sim e o Espaço está
querendo...
Simone: como se fosse confirmar o que você disse?
Camila: Não, não é confirmar, que o Espaço falasse assim, olha ela está com a gente
aqui entendeu e nós estamos com ela então, eu sou uma areinha no meio do deserto
com o Espaço Bem Me Quero seria muito mais entendeu? E o Espaço Bem-Me-
Quero começaria a fazer a diferença quando a gente ligasse para o 180, o 190 e a
mulher falasse assim: Olha, eu tô no Espaço Bem-Me- Quero. E aí peraí, eu vou
começar a tratá-la com uma diferença, porque ela não está desamparada.
Por fim, Camila reafirma a sua aposta na proposta do grupo e do Espaço como um lugar
diferenciado e desafia-os a fazerem a diferença.
Sessão do Grupo nº 60
Data: 29 de julho de 2009
Exibição do filme: “Dias e Noites”
Duração: 2 horas e 45 minutos
Participantes: Nina, Cíntia, Graça, Marília, Kenia, Janaína, Rosa, Susana, Clarice, Fabíola,
Elis, Júlia, Amelina.
Coordenação do Grupo: Simone (coordenadora) e Rafaela (observadora)
“Você deixou de ser mulher, você quis ser gente” (Clotilde, filme “Dias e Noites”).
Nesta sessão foi exibido o filme “Dias e Noites”, em cópia original, ofertada pela produtora
118
Nora Carús da Voglia Produções Ltda. “Dias e Noites” é uma adaptação para o cinema do
romance “Clô Dias e Noites” do escritor Sérgio Jockyman, publicado em 1982, baseado em
fatos reais. O filme conta a trajetória de quase três décadas de Clô. Ela se casou, segundo os
interesses de seu pai, com um homem violento, possessivo e machista. A violência no
casamento ficou mais acirrada com a primeira gravidez, quando o companheiro esperava um
menino, mas nasceu uma menina. Após descobrir as traições do marido, Clô decide sair de
casa e aí se inicia sua trajetória de sobrevivente à violência de gênero, em uma época (1960)
em que o divórcio, as Delegacias de Mulheres e as leis de proteção contra a violência contra a
mulher não existiam. O filme é o retrato de uma época, com cenas magistrais como a da
primeira noite de Clô com seu marido e a cena dela com sua neta no final do filme. Um filme
recomendado para todos e todas.
Antes da apresentação do filme a coordenadora entregou uma folha para que as participantes
registrassem observações relacionando o filme com suas vidas e trajetórias na Rede de
Enfrentamento. Esta folha poderia ser entregue posteriormente. Algumas participantes
entregaram no mesmo dia, outras na sessão posterior e algumas não entregaram. Rosa disse
que não conseguiu fazer o solicitado porque “a vida dela lembrava tanto a da mulher do filme
que ela começou a chorar”. Após o filme, ocorreu um breve momento de discussão e
apresentação de impressões. A observadora realizou as anotações do momento da discussão
que não foi gravada. Janaína imediatamente começou a chorar e disse: “A violência é assim
mesmo, passa de geração para geração”. Seguindo o mote do filme a coordenadora distribuiu
um texto sobre o caso da adolescente Eloá Cristina Pimentel (morta pelo ex-namorado
Lindenberg Fernandes Alves, em outubro de 2008) que apresentava a discussão sobre a
importância de se dizer não. Ocorreu grande identificação das mulheres com a personagem do
filme, com apropriação de suas falas e, também foi possível problematizar a perspectiva
histórica da violência de gênero no Brasil, a partir da trajetória de Clô. O filme ofereceu desta
forma, subsídios para a realização da tarefa grupal. Após este momento de discussão foi
realizado um lanche coletivo. Durante a sessão do filme o Espaço Bem-Me-Quero ofertou
pipoca e refrigerante para as participantes.
Sessão do Grupo nº 61
Data: 05 de agosto de 2009
Duração: 01 hora e 45 minutos
119
Participantes: Nina, Samia, Fabíola, Elisa, Cíntia, Kenia, Rosa, Susana, Elis.
Coordenação do Grupo: Simone (coordenadora)
Esta sessão não pôde ser utilizada para esta pesquisa porque a observadora não compareceu e
a gravação ficou tumultuada por causa do excesso de falas sobrepostas. As nove participantes
estavam eufóricas. A coordenadora fez as anotações da sessão e pontuou a dificuldade para o
registro para as participantes.
Sessão nº 02
Sessão do Grupo nº 62
Data: 12 de agosto de 2009
Duração: 01 hora e 35 minutos
Participantes: Camila e Fabíola
Coordenação do Grupo: Simone (coordenadora) e Rafaela (observadora)
Na abertura desta sessão a coordenadora deu as boas vindas a Camila que não compareceu às
duas últimas sessões. A coordenadora discutiu com ela os motivos de sua ausência e os
sentimentos que ficaram após a sessão onde ela apresentou seu protesto sobre o
posicionamento do Espaço Bem-Me-Quero sobre o seu caso (sessão dia 22 de julho de
2009).
120
dados e as coisas que foram feitas? Essa história não parou aí. Está acontecendo
aqui, é até bom que vocês dão sua opinião, uma reunião uma vez por mês, uma
reunião nova de Contagem, para uma rede nova de Contagem, aí estão vindo duas
psicólogas da Polícia Militar de Contagem. Então eu comentei por alto, mas por alto
mesmo os encaminhamentos que foram feitos. Mas eu acho que tem coisa que tem
que ser ouvida. Não adianta eu falar: Ah, tem uma mulher que eu atendo, entendeu...
Camila: Não. E se assim, se precisar do meu depoimento eu venho, não pela minha
situação,
Simone: Eu sei, eu sei...
Camila: por que quantas mulheres ainda vão fazer um pedido de DNA pro cara que
tem influência? Quantas mulheres vão ser retalhadas como eu fui, entendeu, por não
ter tanto recurso...
Após este momento necessário de acolhida de Camila, ela atualiza o grupo sobre os últimos
ocorridos em seu ciclo. Ela relata que o pai de seu filho a procurou para ameaçar e tentar
desestimular sua decisão de levar o processo de reconhecimento de paternidade adiante. Além
disso, pela primeira vez, ela se referiu a uma cena de violência do passado, onde ele a havia
influenciado para que ela interrompesse uma gravidez através de um aborto (que ela, por fim,
realizou). Para ela, esta situação se comparava com o que estava ocorrendo agora, onde
novamente ele tenta de todas as maneiras dissuadi-la de sua iniciativa de processá-lo.
Fabíola19 que até agora ficou mais na escuta, reage na defesa dos direitos de Camila e de seu
filho, indiferente da opinião do pai.
Coincidentemente, sem ter assistido o filme, Camila diz “inclusive eu até estou me sentindo
superior, agora eu acho que eu cheguei ao auge da terapia, por isso que eu estou feliz e vim
aqui pra contar pra vocês que eu consegui dizer não. (Risos).” O motivo de sua felicidade era
que ela tinha conseguido sair da relação com seu atual namorado (também seu advogado).
Camila: ele aproveitou dessa situação (da prisão) para me intimidar. Ele estava me
escravizando, ele me levou pra casa dele eu tava servindo de tudo.
Fabíola: Socorro.
Camila: de carpinteira, de faxineira, de bombeira hidráulica
Fabíola: Seu advogado, seu advogado?
Camila: de bombeira hidráulica de pintora, eu estava num lelê danado e ele ficava
assim.
Fabíola: você chegou a ficar com esse homem?
Camila: Eu estava que nem mulher dele, eu estava servindo ele literalmente.
Fabíola: ah, tava
19
Fabíola é uma das mulheres assistida há mais tempo pelo setor de psicologia do Espaço Bem-Me-Quero. Ela
iniciou seus atendimentos individualmente em 2007, primeiramente, com a estagiária Andréia Carvalho e depois
com a coordenadora. Assim ela está em atendimento desde antes da entrada da coordenadora na instituição e da
formação do grupo. Fabíola, inclusive, participou da primeira sessão do grupo e veio mantendo regularidade no
grupo desde então. Ela só se ausentou após ter iniciado um trabalho formal com carga horária de 08 horas
diárias. Ainda assim, ela agendou alguns atendimentos individuais e participou de algumas sessões do grupo. Na
última sessão (não analisada nesta pesquisa) antes de iniciar seu trabalho formal, ela se despediu chorando e fez
um apelo emocionante às mulheres presentes para que não permitissem que a violência continuasse.
121
Simone: igual no filme mesmo.
Camila: Um mês e meio que tava morando com ele, ele não deixava nem eu vir na
casa da minha mãe. Inclusive, das duas vezes que eu não vim, é por que eu estava na
casa dele e ele literalmente me prendeu. (Fabíola: nossa que situação) na casa dele
para eu não vir na terapia porque ele achava que aqui era um risco para ele, que aqui
eu me fortalecia.
Fabíola: Mas você conseguiu se libertar dele?
Camila: consegui. Eu fugi dele eu vou para a minha casa eu vou retomar a minha
vida, aí toda hora ele me falava assim: porque eu cobro mais de três mil reais pra
tirar alguém da prisão...
Simone: Com dinheiro.
Fabíola: com ameaça.
Camila: Porque você tem mais é que me servir porque eu não cobrei para te tirar da
prisão. Aí eu falei não e não, aí eu fugi dele aí ele foi atrás de mim. (...) Igual a
minha irmã falou a gente tirava o dinheiro de onde fosse, mas você não tem que ser
escrava de homem não. Eu estava sendo escrava dele.
Simone: até a sua irmã falou...
Camila: a minha irmã que foi atrás com ele pra me tirar da prisão. A gente pagava o
preço que fosse você não tem que se sujeitar a isso, Camila. Você já se sujeitou 12
anos com outro cara. Já apanhou do C. (outro ex-namorado), o que mais você está
querendo da vida?
Neste trecho é interessante notar como a situação vivida por Camila com o namorado revolta
não só a ela, mas também à sua irmã e à Fabíola. A percepção de que a irmã estava iniciando
um novo ciclo de violência fez com que ela questionasse Camila sobre seu posicionamento
frente a toda aquela história. A aparente troca de serviços na qual a relação se baseava
incomodou Fabíola por seu evidente caráter opressor e violento.
Após este relato inicial de Camila, a coordenadora retomou a sessão anterior à qual Fabíola
compareceu apresentando uma série de questionamentos (como é de seu costume). A
sugestão da coordenadora é que se aproveite esta sessão para focalizar a discussão nas
questões que ficaram abertas nos últimos encontros. O fato de Camila e Fabíola participarem
do grupo praticamente desde seu começo possibilita a elas apresentarem uma análise do
processo grupal/terapêutico e do posicionamento das outras participantes neste.
Fabíola: Eu percebo que elas ficam muito perdidas, muito focadas no que o marido
falou, como que o marido tratou, fica assim relatando o que elas vivenciaram em
casa... Eu não tô aqui pra me expor para vocês não... Eu prefiro assim, às vezes, a
gente até responde de certa forma assim... Eu prefiro questionar: porque que eu tô
permitindo isso? O que eu tô fazendo, o que acontece, até onde eu estou agüentando,
mas buscando resposta do questionamento do conflito, do questionamento interno.
Simone: você perguntou por que, a pergunta que você faz há muito tempo, mas a
gente tem que dar um entre aspas desconto porque essas que você fala, elas estão
contando mesmo o caso, elas estão na fase de passar a história. Um dia até a Camila
falou isso: eu não quero contar mais a história. Acho que tem uma hora que é isso
mesmo você vai contando a história... (Camila e Fabíola concordam) Você e a
Camila já faz um ano que vocês estão aqui, eu não quero mais contar a historia. Eu
acho que uma hora a gente vai contando mesmo, a terapia, a história... A gente vai
conversando...
122
Fabíola: é um processo... É um momento
Simone: é só para a gente entender isso, para a gente entender isso. Tem um
momento que talvez seja necessário (Fabíola vai concordando com esta fala).
Fabíola: Até para desabafar...
Simone: Mas é preciso essas perguntas que você faz para dar uma mexida nas outras
também porque se não...
Camila completa minha frase: só fica contando história...
Fabíola: só fica contando história... Se ficar contando não sai do lugar, né?
Camila: Por exemplo, eu vou dar exemplo das pessoas que estão comigo no grupo
que eu observei, a Graça é uma pessoa que já quase não conta mais nada dela, mas
ela já está bem avançada.
Fabíola: refletindo já...
Camila: A Cíntia toda vez que ela vem no nosso encontro ela conta a mesma
historia, a mesma história...
Simone: Como é que é? Pra quem?
Camila: e eu percebi que ela está um pouco perdida. ... Inclusive no dia do processo
dela ela ligou junto com a Graça e eu tive que vir aqui correndo, levei-a na casa dela
para buscar, entrar com os negócios lá do fórum.
Simone: como é que foi o negócio? Você ligou para quem?
Camila: elas ligaram para mim, a Cíntia e a Graça no dia do processo.
Simone: Para que?
Camila: Para contar. Aí eu falei espera que eu estou chegando aí. Aí eu saí correndo
de Betim. Só que ela estava precisando ir lá a casa dela buscar os documentos dela
pra no mesmo dia ela entrar no Fórum para poder receber a pensão alimentícia. Eu
fiquei super feliz de ter ajudado porque realmente ela estava tão perdida, chorando...
Para exemplificar o processo das participantes no grupo Camila relata o ocorrido no dia da
audiência da separação de Cíntia. Segundo ela, Cíntia estava “perdida” e chorando muito,
pois se sentira desacreditada. Esta cena será analisada na próxima sessão. Por enquanto cabe
chamar atenção para o fato de Cíntia ter se reportado a Camila e Graça (que a acompanhou à
audiência) neste momento decisivo de sua trajetória de enfrentamento à violência. Uma
123
estratégia construída e conquistada a partir da participação no grupo e da amizade cultivada
entre elas.
O caso de Cíntia foi apropriado por Fabíola que o utiliza para exemplificar a situação de
descrédito da palavra da mulher. A recorrência desta percepção nas sessões aponta para um nó
a ser desatado no emaranhado da violência de gênero. Camila, como porta-voz do grupo, faz o
movimento de interpretação deste fato individual como um fato social. Esta provocação
converge com a discussão realizada na sessão anterior sobre o lugar da mulher como “areia”
frente ao Muro das instituições.
Fabíola: É por que quanto eles fazem isso com a gente. Eu já passei uma situação
semelhante, a gente fica assim, como é que fala vulnerável diante das autoridades,
das outras pessoas e agora o que ela vai, a gente fica com medo. Será que ela vai
acreditar nele ou em mim, será que... Passa pela cabeça da gente será que ela está
achando que eu menti que eu estou com jogo também. Você fica insegura sobre o
julgamento da outra pessoa.
Camila: Sabe por que eu acho que a gente tira estas conclusões?
Fabíola: ele fala com tanta certeza, com tanta veemência, que chega...
Simone: Ate confundir vocês...
Fabíola: É.
Camila: Eu acho que isso aí já esta na nossa cultura. A gente já é tão marginalizada
desde que a gente nasce, a mulher em si, que a gente acha que tudo que acontece a
gente já pensa: eles vão pensar mal de mim.
Simone e Fabíola concordam reflexivas: é
Camila: Igual uma coisa da gente uma coisa que está entranhada na gente,
entranhada na nossa cultura, a mulher não vale nada.
Fabíola: É...
Simone: Igual eu falei em outra sessão, por que não sei se você lembra: qualquer
frase que eles falam qualquer mulher, todas que aqui já passaram, qualquer frase
deixa você em suspenso...
Fabíola: é.
Simone: Igual aquele exemplo eu chamei para ir a tal lugar e ele não quis ir. Por que
tipo assim, ele fala não vou por que não vou e pronto. A mulher, não, porque igual à
Cíntia falou não vou por causa disso, você justifica. Não vou porque eu estou
gripada, etc, etc...
Fabíola: É.
Simone: é como se a sua palavra tivesse que ter, porque tudo que você fala tem que
ter uma explicação, uma justificativa
Fabíola: é mesmo.
Camila: Eu voltei lá atrás, eu tenho voltado muito na minha, lá no início, então a
gente é muito regrada desde sempre. Você não pode andar de “pererequinha” de fora
por que para menina isso é feio. (Fabíola concordando) então a gente é podada desde
sempre. O menino quando coloca o peruzinho pra fora, igual o meu filho de dois
anos esta com essa mania de tirar para fora e ficar expondo todo mundo acha bonito.
Fabíola: é.
Camila: A menina todo mundo já começa desde nova.
Fabíola: regrando...
Camila: Fica na tua. Não desce a calcinha pra você fazer xixi naquele cantinho, não
por que é feio. Tanto que quando a gente cresce...
Fabíola: A gente não pode nem abrir as pernas. (Fabíola e Simone concordam se
mexendo e fechando as pernas).
124
Este trecho exemplifica o sentido da violência de gênero compartilhado por este grupo: um
fenômeno de base cultural/social que ocorre para além do âmbito doméstico, familiar,
conjugal e afetivo. A partir desta construção do grupo sobre o sentido da violência de gênero a
coordenadora provoca as participantes incluindo na discussão assuntos/situações-problema.
Desde o início desta sessão ela disse que iria “aproveitar da experiência destas veteranas”
para justamente, problematizar assuntos como este.
Simone: Aí fica aquela coisa, tem aquele fato que é uma coisa que a gente pode
pensar também. Então quem está aqui há mais tempo já conseguiu concluir, e vai
lembrando-se da vida quando era mais nova, no primeiro momento você conta sua
história, depois você vai tendo insights, a gente já conversou isto. Até quando a
mulher conta quando eu casei com 18 anos, e eu era virgem, aquelas coisa que a
gente escuta aqui. Primeiro ela conta, nem sempre quando a pessoa conta vem com o
insight junto: nossa é porque a sociedade tipo... Mas, não é todo mundo. Mas aí é
que eu acho que funciona nesse sentido porque aí uma escuta a outra, mas cada uma
no seu tempo. Mas aí iguais vocês duas, eu queria aprofundar mais isso. Aí tudo
bem, a sociedade é assim e daí? Como é que vocês acham que esse momento aqui,
as instituições ajudam, ou atrapalham? Porque aí é que é o negócio, a gente já sabe
como a sociedade é...
Camila: Por isso que eu cobrei do Espaço Bem-Me-Quero.
Simone: tudo bem. Eu entendi.
Camila: atitude porque eu imaginei que o Espaço Bem-Me-Quero estaria à frente
desse tipo de preconceito.
Fabíola: Eu fiz uma pergunta para mim mesma e agora eu estou com raiva de mim
mesma porque quando eu consegui assim chegar ao ponto assim (ela vem com um
caso para responder) de decidir, você sabe a minha história o conflito separa não
separa, vai não vai, vem não vem, aquela coisa. Quando eu chequei meu limite final,
estava insuportável o relacionamento e tudo, agora, há uns 15 dias atrás, eu tomei
uma decisão na minha vida, eu vou chutar o pau da barraca, eu estava decidida, eu ia
125
fazer isto numa questão de enforcamento (Simone concordando) porque eu já não
agüentava mais vivenciar o que eu estava vivenciando. Eu não estava feliz na escola
(onde ela trabalha). Aí eu pedi pra ele fazer a renda do negócio (eles têm um
negócio juntos) aí ele bateu quando eu vi estava gerando quatro vezes mais do que
eu ganho. O que eu estou fazendo nessa escola? O que eu tô fazendo? Por que eu tô
agüentando tudo isso, a troco de que? Eu vou retomar o meu trabalho. O meu
questionamento é porque eu me deixo nas mãos das pessoas?
Simone: Está é uma boa pergunta.
Fabíola: porque eu estou sempre me deixando, eu sempre me deixo, deixo na mão de
uma amiga, de uma irmã, vizinha, de um marido. Se eu arrumar um amante eu vou
me deixar também. Agora eu estou começando a acordar para isso, eu não estou
deixando mais, eu estou me vigiando mais, eu não tô deixando na mão de ninguém
Agora o que eu tenho que fazer eu vou lá e faço, o que eu tenho que perguntar eu
vou lá e pergunto eu não tô deixando, eu tô começando a me alertar para isso. Mas
por muitos anos eu deixei e isso me levou a muito sofrimento, muitas angústias.
Camila: Teve um encontro nosso aqui que eu falei que é igual ao encontro do AA.
Simone: um dia de cada vez.
Camila: um dia de cada vez. Por que eu tenho o mesmo problema de você de estar
na mão de alguém, né Simone, todo encontro eu falo, ou é na mão do meu cunhado,
que não quis me demitir, eu fui demitida. Eu fiz valer a minha opinião ou vocês me
demitem ou eu vou levar vocês na justiça.
Simone: está certa.
Camila: Eu tô conseguindo seguir um dia de cada vez. (risos) O outro homem lá (o
namorado advogado) eu botei ele pra correr: eu não quero você porque se ele não
me quisesse a opinião dele ia valer. Igual o outro (o pai do filho dela) não me quis
mais arrumou outra namorada e foi embora... E nesses doze anos eu tentei sair fora
dele várias vezes e eu não consegui mesmo tendo outro relacionamento ele sempre
fazia valer a opinião dele e eu sempre voltava pra ele.
Fabíola: tá vendo
Camila: ele saiu fora e esse cara que me atormentava (o advogado), você tem que
ficar comigo, você tem que ficar comigo, vai ter festa de família da minha irmã você
tem que ir, uma inhaca danada. E ele ficou um chato aborrecido no outro dia e eu
tava lá igual um fantoche,
Fabíola: se deixando levar...
Camila: e eu continuei vivendo tudo aquilo e me perguntando
Simone: você não estava gostando dele.
Camila: eu não estava gostando dele porque eu estava vivendo a mesma situação
que eu vivi com o pai do meu filho. Tudo contra a minha vontade.
Simone: é.
Este trecho da sessão é rico em informações sobre vários aspectos da dinâmica do grupo (a
coordenadora como uma espécie de diário das histórias do grupo, a apropriação de Camila do
questionamento de Fabíola sobre seu posicionamento frente aos outros e o espelhamento de
Fabíola no caso de Camila), a apresentação de estratégias pelas participantes (questionar-se,
viver um dia de cada vez e posicionar-se) e a exemplificação das possíveis dificuldades
vividas ao se tentar encerrar um relacionamento violento/conflituoso. Vale à pena observar a
construção de mais um par antagônico de sentido para a situação de violência: fantoche X
posicionar-se.
Camila: Tanto é que a gota d'água foi no dia que a gente foi no supermercado, eu
fazendo compras e ele começa a tirar as coisas do carrinho. Ai eu falei: parou, eu to
fazendo compra, não tira nada do carrinho, não.(risos) Mas eu é que to pagando.
Não interessa você me mandou fazer compra não tira nada do carrinho. Aí na hora
de pagar começou: isso é luxinho de pobre.
Simone: Ai meu Deus!
Camila: Então da próxima vez que eu fizer compra eu vou comprar luxo de rico, eu
sei fazer compra de rico também. Eu não sei fazer só compra de pobre não. Aí ele
falou: A próxima vez quem vai fazer compras sou eu. E eu pensei comigo: Da
próxima vez, não vai ter próxima vez.
A partir do relato desta cena a coordenadora inicia uma discussão sobre a disputa do poder
nas relações violentas. Neste caso, desenhou-se uma cena de disputa a partir do poder
financeiro e aquisitivo diferenciado entre Camila e o namorado. No caso do namorado de
Camila, ele tem condições financeiras estáveis que lhe permitem pagar a conta das compras,
mas ele quer deixar claro seu posicionamento de mando na relação: eu escolho, eu mando, eu
pago, o poder é meu. Camila pode até acompanhá-lo, mas no final, a última palavra/escolha é
dele.
A coordenadora recorda outras cenas relatadas por Fabíola de momentos do cotidiano como o
de pagar as contas de água, luz e telefone se tornavam tensos e disparadores de violência entre
ela e o marido. Percebe-se, a partir destes exemplos, que as situações simples do dia a dia
tornam-se disputas sobre o poder de mando e sujeição do outro na relação. Ele que vai dar o
dinheiro? Quem vai pagar? Porque eu é que vou? Estes são exemplos do momento de tensão
do ciclo. Alguns casais realizam uma negociação e o ciclo encerra-se, em outros casos o “eu é
que mando” vira um “soco”, ou seja, ocorre a violência física. Camila relata que saiu da
relação justamente por ter percebido que estava em um ciclo de violência com constantes
momentos de tensão/disputa de poder e que havia uma grande chance de que neste
relacionamento o ciclo se fechasse com cenas de violência. Esta foi uma mudança ativa por
parte de Camila que tem uma trajetória afetiva de ciclos de violência crônica
A partir da referência da discussão iniciada sobre poder /violência Fabíola relata que ela é
violenta com seu companheiro e como se sente “um lixo” com isto. Camila diz que já chegou
a esse ponto também. Nos dois casos, a violência era uma forma de mandar no outro e de
fazer valer a opinião a qualquer custo.
127
Convergindo com este sentido da violência Camila pergunta:
128
Continuando Fabíola diz que se ressente consigo por ter mais uma vez perdido a coragem e
as forças. Após ser questionada pela coordenadora se o alcoolismo do companheiro era a
única desculpa para separar-se ela apresenta outra sequência de situações que a levaram a
repensar sua decisão.
Fabíola: O meu questionamento foi esse, Simone, por que eu agüentei esta situação
tanto tempo, para que? Estava fácil, agora eu vejo com clareza. Era só eu dar um
basta não querer e porque eu não consegui?
Simone: dar um basta quer dizer o que?
Fabíola: quando eu cheguei nessa situação de tomar coragem vou pedir para sair da
escola, vou entrar com o processo de separação e vou retomar o meu negócio. Eu ia
fazer estas três atitudes. Eu vou chutar o pau da barraca e não quero nem saber. Aí
quando eu chego lá na escola começou a me desarmar porque duas semanas antes
ele parou de beber, começou a ficar mais em casa, aí ficou aquela calmaria, sem
brigas, aí eu comecei a perder as forças... (...)
Simone: mas deve ter outra justificativa para não ter separado.
Fabíola: é feliz eu não estou não. Mas eu estou nessa...
Simone: fala com ela Camila.
Fabíola: Aí, agora, eu sempre tenho uma desculpa.
Simone: ela tem uma sequência de desculpa
Fabíola: eu tenho uma sequência de desculpas e no final das contas eu nem sei o que
eu fiz mais. Aí os meus meninos estão tudo encaminhado profissionalmente. A
minha filha tem o emprego dela lá na firma grande o meu menino iniciou o curso
dele no SENAI aí a empresa contratou e tal aí o caçula de 16 anos veio até aqui foi
encaminhado para o estágio. E aí gente e agora?
Camila: e agora está tudo bom que coisa chata. (Risos)
Fabíola: ele parou de beber, financeiramente eu estou ótima, estou até viajando. Aí
tá tudo bem. (Camila ri)
Simone: aí está tudo bem
Fabíola: está tudo bem entre aspas. Aí que começa a confusão eu vou mexer em uma
coisa que está aparentemente arrumada.
Camila: você vai mexer no vespeiro. Vai mexer na colméia.
Simone: a pergunta é: está bom para você se estiver bom para você.
Fabíola: eu vou mexer nos meninos eles não têm estrutura para isso.
Simone: É sempre a mesma história toda mulher fala isso, a gente já conversou isso
aqui, toda mulher, não tem como fugir. Os filhos sempre sofrem com isso, mesmo
casados, depois que tiver neto, isso não tem jeito, aí não adianta projetar, ficar
imaginando...
Fabíola: eu vou arrumar outra confusão.
Camila: eu sei lá eu acho é que você esta adiando o sofrimento, lógico que é uma
idéia extremista, é a mesma coisa assim deu falar: eu tenho câncer e falar ah o
câncer não tá doendo, não. ... Não vou tirar ele agora, não.
Fabíola: dá para agüentar mais um pouco.
A “decisão” de aguentar mais um pouco uma relação violenta, seja por meio de quais forem
as estratégias ou desculpas, retrata um aspecto recorrente no processo de enfrentamento à
violência de gênero. O ciclo se cronifica e toma ares de um câncer que aparenta não ter cura,
mas tratamento. A imagem escolhida por Camila consegue representar bem a cronicidade que
a relação de gênero adquire em algumas relações, bem como a dificuldade para as mulheres
de se tratar. Tanto a conclusão de Fabíola como a imagem apresentada por Camila
129
representam quão dramático pode ser o processo de negociação das mulheres dentro de um
ciclo de violência de gênero.
Simone: É eu acho que a pergunta é essa aí: toda mulher resumindo é isso aí dá pra
agüentar mais um pouco. No final da história a negociação é assim: eu agüento mais
um pouquinho? O mais triste nisso tudo é que, lógico que tem gente que fala
claramente fica mais um pouquinho, as suas mães geralmente falam com vocês.
Igual a mãe da Nina que falou com ela agüenta só mais quatro anos até pagar o (seu
marido) acabar de pagar o carro do seu pai. Mas o pior é quando vocês falam com
vocês: dá para eu sofrer só mais uns três anos. Dá para eu sofrer só mais um ano.
Camila: igual a minha mãe ela sofreu só mais um pouquinho.
Fabíola: mas a minha vida é assim, sempre foi assim
Simone: sempre foi assim?
Fabíola é porque eu vou aguentar vai ser deste jeito, agora eu estou negociando
comigo mesma olha até onde vai a minha loucura. Ah, eu vou aguentar porque eu
vou ter um amante lá, ah eu vou agüentar porque eu vou viajar vou sempre viajando,
vou dando meus pulinhos e vou agüentando assim...
Camila: mas aqui, imagina que isso seja um câncer e que um dia ele vai te doer que
vai te levar para o buraco. Eu tô te falando com extremismo porque eu acho que é
isso mesmo por que a minha mãe foi agüentando mais um pouquinho, por que eu
sou uma mulher pacífica os meus filhos precisam alimentar, os meus filhos precisam
estudar e no final o meu pai morreu e se nós não estivéssemos correndo atrás igual
nós estamos ia ser pior. Ele deixou tudo de bom pra amante dele, amante que virou
esposa. Atualmente, ele deixou tudo para a amante dele e minha mãe se ela bobear
perde até a parte dela nessa casa dela. Ele deixou 150 mil pra mulher e pra filha que
ele tem com ela. (...) é um sofrimento...
Fabíola: é uma pressão maior ainda.
Fabíola apresenta uma série de estratégias que seguem a linha de manutenção da relação
violenta apesar da insatisfação com o companheiro como viajar ou ter um amante. Estas
estratégias, porém não vão ao encontro do questionamento da relação violenta, podem ser
percebidas como paliativos para que se “aguentar mais um pouco” a relação. O exemplo da
mãe de Camila que viveu esta situação por toda a vida confirma a perenidade que o ciclo pode
assumir caso não se adotem estratégias de enfrentamento à violência. Assim, este processo de
negociação entre “perdas e ganhos”, no caso de Fabíola e de outras participantes do grupo, se
resume a mais perdas que ganhos.
Fabíola: ganhos e perdas. De todo jeito são mais perdas. Se você perguntar: eu estou
sempre perdendo.
Simone. Aí que está o problema.
Fabíola: porque emocionalmente é uma perda enorme.
Simone: Então, aí que eu acho que é preocupante.
Camila: eu também negocio...
Fabíola: porque por mais que me vire de um jeito ou de outro que eu negocie de um
jeito ou de outro Eu tenho um avanço assim na minha personalidade, no meu jeito de
ver as coisas, mas eu tô sempre perdendo.
Simone: a sua sensação é que você está sempre perdendo?
Fabíola: é sempre. Perdas emocionais, conflitos, são sempre conflitos,
questionamentos, questionamentos, questionamentos. Isso tá me saturando.
130
Simone: Mas, satura mesmo. Camila concorda também.
Fabíola: e o pior, agora que está acontecendo é que eu tô sentindo raiva de mim. E
eu vou me machucar mais. Eu do jeito que tô, eu vou fazer coisas que vão me
machucar porque eu tô com raiva de mim.
Simone: Isso é uma verdade.
Fabíola: e agora?
Fabíola como sempre apresenta questionamentos totalmente coerentes, mas para os quais não
construímos respostas ainda. Camila, novamente se apropria das definições de Fabíola para
explicar sua situação e apresenta como está negociando consigo mesma atualmente.
Segue-se uma discussão onde Camila reafirma sua decisão de ter se separado do namorado e
sobre os sentimentos que o companheiro de Fabíola lhe desperta. Camila conclui que apesar
de tudo a melhor relação que teve foi com K (outro ex-namorado), pois ela conseguia manejá-
lo melhor. A coordenadora põe em questão a maneira de Camila definir a melhor forma de se
relacionar. Manejar, não seria nestes casos uma forma de mandar, impor, tirar proveito? A
coordenadora pontua a diferença entre relações baseadas no manejo e na negociação e
reafirma o risco da relação acabar se resumindo a um processo de “perdas e ganhos” tanto no
aspecto afetivo como financeiro, principalmente durante um processo de separação.
Fabíola, por sua vez, questiona-se sobre a “confusão” de sentimentos que seu casamento se
tornou, que sentimento afinal ela tem pelo parceiro e ele por ela. Ele fica a adulando e
implorando atenção. Ela por sua vez, mesmo após ele parar de beber sente vontade de bater
nele e, às vezes, tem relações sexuais satisfatórias.
131
Fabíola: Tem horas que eu gosto. Tem hora que eu o acho bonito, eu to te falando,
eu tô tentando. Ah, eu não vou ter coragem de por ele pra fora. Tem hora que eu
tenho vontade. Mas tem hora que eu volto atrás. Que confusão é essa?
Camila diz que o que sente por K. é posse, pois não consegue saber que ele está com outra e
que fica com ele porque ele é bom com seu filho. Mas por fim, ela não sabe definir muito bem
o que ele representa para ela. Atualmente eles estão se encontrando, segundo ela, mais por
causa da criança. A partir desta reaproximação de Camila de seu ex-namorado que também
fora violento com ela, a coordenadora pontua o risco e instabilidade desta situação, visto ter
ocorrido violência nesta relação recentemente.
Simone: Mas, não deixa de... O problema de não falar do C. é por que daqui a pouco
você está. Ele chamou a policia para você também. Acho que tem esse problema,
você esquece muito rápido
Camila: eu não esqueci nada. Tanto é que eu
Simone: Há uns 20 dias atrás estava um inferno, agora acabou tá tudo ótimo. Foi
quando mesmo? Há uns três meses?
Camila: foi em fevereiro (após uma discussão onde houve violência física por parte
dele).
A dúvida sobre os sentimentos que levam à manutenção destas relações violentas e a própria
instabilidade do relacionamento são indicativos dos momentos do ciclo de violência através
do qual as relações violentas se organizam. A coordenadora, a partir do exposto pelas
mulheres, problematiza como esse movimento cíclico, geralmente, é percebido por quem está
fora da relação, inclusive, por (alguns) agentes das instituições da Rede de Enfrentamento à
Violência.
Fabíola: Aí Simone isso cai naquele vai e volta. Me dá raiva que eu lembro o que ele
me fez, aí me dá raiva e vontade de: aí me vem a vontade de separar, eu não vou
perdoar o que ele me fez. Ai eu tenho raiva de mim mesmo por ta perdoando de ta
com ele mais assim, de uma forma mais ampla, satisfatória, mais demorada, com
mais toque, aí eu fico com raiva de mim mesmo, por ta aceitando isso. Ai tem hora
que eu acho: então ta, vou perdoar, eu acho que eu estou perdoando,é melhor para
mim mesma... Mas não to perdoando nada. ...
Simone: o que as pessoas falam das mulheres que apanham? As pessoas que eu falo
inclusive Polícia, vocês vão entender o que eu falei. O que as pessoas não
conseguem entender é isso: como é que vocês esquecem tão rápido? Como é que
vocês, porque Polícia não faz representação? Isso é uma questão séria, não estou
dizendo que é certo ou errado. Porque você vai à Delegacia de Mulheres e eles têm
preguiça de fazer a representação, porque eles sabem que daqui a 15 dias, eles
pensam que daqui a 15 dias, a experiência deles diz que daqui a 15 dias ele vai parar
de beber e ela vai desistir do negócio. Isso é tão sério, que isto trava todo mecanismo
de repressão à violência contra a mulher. Eles partem do pressuposto. Ele chamou a
Polícia em fevereiro para você (Camila), mas agora já passou mesmo então deixa. E
se você tivesse feito representação do C. e agora?
Camila: Eu iria até o final.
132
Simone: Ia até o final com ele morando na sua casa?
Camila: Não, ele não está morando na minha casa. Eu fico com ele, eu fiz a
ocorrência dele
Fabíola: Por que isso acontece?Porque ela se permite?
Simone: A minha pergunta também é essa, é a pergunta de todas as políticas...
Fabíola: Por que a gente não aguenta, é piedade, ele falar manso com a gente, ouvir
uma voz, um elogio, pedido de perdão, uma súplica?
Camila: é comodismo?
Novamente Fabíola pergunta indignada por que a mulher se permite ser violentada, porque
ela agüenta mais um pouquinho. A mulher nesse emaranhado é o corpo violentado e é
também o sujeito incompreendido e julgado por si e pelos outros. Ao focalizar a mulher
sobrevivente à violência nesta análise tenta-se vislumbrar como ela posiciona-se e é
posicionada na sociedade. O tom acusatório é recorrente. Cabe refletir sobre o por quê?
Considero que este trecho é interessante por três motivos. Primeiro, pelo uso do pronome nós
por Fabíola, o que desindividualiza a sensação de “constrangimento” que ela sente de
permanecer na situação de violência e, segundo, por Camila apontar uma estratégia de
publicização para a situação, bem como de conseguir demonstrar o caráter social/coletivo do
fenômeno. Em terceiro, por iniciar uma discussão que se refere ao que espera uma mulher ao
procurar a Delegacia de Mulheres. A noção de que ao procurar a publicização pela denúncia
da violência ocorrida vincula-se o desejo de separação do casal é questionada. Frente a isso a
coordenadora questiona sobre os objetivos e soluções esperadas pelas mulheres ao se dirigir a
uma instituição policial e qual o papel a ser desempenhado por elas.
133
Simone: você acha que a pergunta é medo, você acha que tem que sentir medo? Será
que o cara tem que sentir é medo, então?
Camila: Sim porque quando você tá a fim de comprar aquele carrão e você não
chega lá na concessionária e pega o carrão à força. Você sabe que vai responder
processo, que você vai ser preso, que é crime. Se a Lei Maria da Penha e se a Polícia
Civil estivessem realmente fazendo a Lei Maria da Penha valer, ele, o cara, na hora
que ele levantasse a mão pra meter a mão na cara da mulher ia pensar: eu vou ser
preso. E parava com aquilo. Agora, o que tá acontecendo: o cara tá ficando sem
vergonha. Eu meti a mão na “oreia” da minha mulher, ela foi fazer uma denúncia
que não deu nada pra mim. É a mesma coisa do povo do tráfico, a Polícia também tá
fazendo tráfico. Pra que eu vou deixar de fazer tráfico? Tá aumentando o tráfico.
Fabíola: é verdade esta explicação faz sentido
Camila: Às vezes a mulher quer ir à Delegacia não é para separar
Fabíola: existem muitas leis que não se exerce.
Simone: aí eu vou fazer o advogado do diabo, sabe o que a Polícia fala? Que não faz
porque você não quer. E o que eu falei. Aí que entra o nó. Tem a lei, mas a gente
fala com ela se ela quer prender o cara, ela chora. ... Mas, aí ele vai apanhar, não
bate nele não. ... Eles falam: ela é sem vergonha mesmo, eu tô querendo prender o
marido dela e ela.
Fabíola concorda: é verdade.
Camila: a lei deveria ter uma ressalva. Crime inafiançável, a partir do momento que
você.
Simone: mas a lei já tem você só pode tirar o seu processo na frente do juiz 20
Camila: então, essa lei esta igual àquelas leis lá do Senado que só fica no papel. Por
que a mulher, eles já sabem, ela vai e volta, vai e volta, por quê? Ela não é safada
não, ela tem uma vida inteira em volta daquele senhor que espancou ela e que neste
momento ela quer que pare tudo, não é que ela é safada. Ela quer que a violência
pare que ele tenha medo de fazer uma segunda vez, talvez ela não queira separar. A
Polícia não tem que ficar: Oh, eu vou prender ele aqui, mas você tem que separar
dele. Está errado! A mulher tem o direito de fazer a escolha dela: eu quero ficar com
esse cara, mas eu quero que ele pare de me bater. Eu quero que ele tenha medo de
me bater e ir pra cadeia. De verdade, mesmo contra a vontade dela. Então, eu acho
que na hora que isso realmente... Igual eu fiz duas denúncias contra o K. Eu acho
que se da primeira vez ele tivesse levado uma coça e dormido uma noite na cadeia,
eu te garanto que na segunda vez ele não teria feito isso comigo.
Simone: você acha que a solução é a Polícia bater no cara?
Camila: Não, eu acho que a solução é a Polícia fazer valer a lei. É crime bater em
mulher, então ela chega lá.
Simone: É uma pergunta que eu faço e que eu gostaria que vocês pensassem
comigo: as mulheres acham que é crime bater em mulher?
A discussão que se seguiu à provocação de Camila sobre o papel das Delegacias de Mulheres
e da Lei Maria da Penha no enfrentamento à violência levou ao questionamento sobre a
legitimação da violência de gênero no âmbito doméstico e familiar como um crime. Quando
questionadas sobre a legitimidade da definição da violência doméstica como crime as
participantes do grupo divergiram em sua opinião.
20
“Art. 16. Nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a
renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da
denúncia e ouvido o Ministério Público” (BRASIL, Lei nº 11.340).
134
Camila: Eu acho que sim. Eu...
Fabíola: eu entendo que não porque eu no meu momento de raiva eu agredi ele
muito, meu marido, ele já saiu com marca de mordida feia de um lado e de outro,
eu já te falei, eu agredi de deixar hematoma ele poderia ter me denunciado. Mas na
hora a minha intenção não era de cometer um crime.
Simone: você não queria matar.
Fabíola: é.
Camila: você acha que quando você chega à cadeia e pergunta pro traficante: se ele
queria causar tanto estrago na vida dos caras que compravam a droga na mão dele?
Ele vai falar que não, eu estava querendo ganhar meu pão. Ele também não tinha
intenção de viciar o cara a, mas como que tem para ele, o que tem é vender a droga
dele ele não está muito interessado se o cara vai morrer de droga não. Eu me
arrependi. Igual a menina que ficou presa comigo lá no dia, assaltando os outros
com estilete perto do Carrefour. Porque você fez isto? Eu não queria fazer isto não.
Simone: então porque ela fez?
Camila: eu acho que é a mesma coisa com a agressão física. Eu não queria bater não.
Então por que você bateu? Ah foi um momento de raiva minha. É crime sim, na hora
que você está num momento seu de raiva, stop eu não posso fazer isso que é crime.
Fabíola: eu quase fiz um crime lá em caca, eu te falei...
Camila: porque você não vai pegar o revólver e dar um tiro no peito do cara?
Fabíola: eu bati nele com minha sandália de salto, deu um galo, imagina se acontece:
ele pode cair bater a cabeça e morrer, acontece.
Camila: seria um crime inafiançável você vai pegar no mínimo 15 anos. (...) Eu acho
que é crime. Eu acho que as pessoas têm que ficar apreensivas de falar assim: eu não
posso fazer isto porque vai me dar problema sério.
Simone: se ela não consegue parar por ela mesma ela vai ter que parar pela
justiça. ... Então, pra gente pensar junto, o cara tinha que ter o mesmo pensamento.
Bati na minha mulher uma vez, mas agora tem uma lei. Tem até um cara (marido de
uma mulher atendida) que falou com os filhos em vocês eu posso bater, mas na sua
mãe não porque tem uma lei.Pode ser que funcione, a lei é pra isso...
Camila: lógico que vai ter situação que o cara não vai respeitar e vai preso, mas se a
maioria respeitar, valeu.
Camila: eu acho que a Polícia deve partir do princípio de que a mulher teve coragem
de ir lá denunciar. A mulher só tem coragem de ir lá denunciar, por que o negócio
passou dos limites. Eu te garanto que no primeiro tapa na cara ela não denuncia,
Fabíola: isso é mesmo...
Camila: no segundo ela não denuncia, no terceiro murro na cara ela pensa duas
vezes, no quarto murro junto com o tapa na cara, ela vai lá e denuncia....
Fabíola: é como um pedido de socorro desesperadamente é igual quando eu vim
aqui... Ela tirou a queixa, então ela deveria responder por isso também. Você tirou a
queixa então você vai responder junto com seu marido. Por que nós não somos
palhaços pra ficar ouvindo você tirar e colocar, acho que você deveria responder
junto com o homem.
Simone: É uma idéia.
135
Fabíola: é uma idéia ou quem sabe não estar mudando, tipo ao invés de tratar só as
mulheres, tratar com os homens? Na hora de colocar assim: você tem que... Você
tem que sair daqui sabendo, uma vez denunciado, que agora é crime, independente...
Camila: a inspetora ou sei lá o que ela é, ela falou comigo você está fazendo esta
denúncia aqui, mas depois não pode retirar não se você retirar você também vai
responder por isso. Eu falei: eu tenho consciência disso. Até chegar a este ponto que
a gente diz que se sente acuada quando eles viram para a gente e falam você tem
certeza disso. Eu acho que não deveria ter essa pergunta não.
Simone: essa pergunta é horrível. Mas eu estou fazendo estas perguntas é para
entender como é que está esse jogo. Eu faço essas perguntas, Fabíola é para entender
essa disputa entre as instituições, agora virou a Polícia contra as mulheres?
Fabíola: é mesmo.
Simone: as Delegacias contra as mulheres, as mulheres contra a Delegacia? Daqui a
pouco as mulheres contra o Bem-Me-Quero, antes de acontecer eu vou embora...
Camila: não, o Espaço não.
Simone: ninguém esta a cima de tudo, não. O Espaço Bem-Me-Quero é só mais uma
instituição com essas perguntas, porque pergunta é que faz a gente pensar mesmo,
Fabíola.
Camila: eu acho Simone que a divulgação é muito importante.
Simone: mas como fazer a divulgação?
Camila: Por exemplo, no meu caso (retomando) que foi uma violência extrema, eu
acho que o Espaço Bem- Me-Quero tinha que ter o advogado, mas eu acho que o
Espaço Bem-Me-Quero divulgar: uma pessoa que estava no Espaço já fazendo o
acompanhamento há mais de um ano sofreu uma violência dessas. Isso pra mim já
seria, já me sentiria muito feliz, o Espaço Bem-Me-Quero olhou por mim.
Fabíola: aí ajuda a gente mais a perdoar, vai pra igreja, ora, ora, ora. Deus vai dar
um jeito no seu problema. Quer dizer a gente fica naquela.
Simone: eu estou dando o exemplo nesse sentido.
Fabíola: aí você vai ficando...
Percebe-se desta forma como é decisivo o tipo de encaminhamento dado a uma denúncia de
violência. Continuando, Camila reafirma sua opinião sobre a responsabilização da mulher
sobre a sua denúncia e Fabíola aponta para outro aspecto importante do atendimento o repasse
das informações necessárias para a mulher no momento de apresentação de uma queixa.
Camila: porque é uma coisa conflituosa, quanto mais falar mais vai piorar. Então
vão fazer a lei, a mulher procurou você tem que ter consciência que você vai assinar
um termo que se você retirar vai responder junto com o homem. A mulher que
chegar lá vai dizer eu me prontifico a responder junto com ele se eu retirar a queixa.
136
Acabou não tem que ficar: a senhora tem certeza? Isso é uma pergunta idiota. A
pergunta mais idiota que pode existir na face da Terra. Se eu fui à Polícia, a última
pessoa que eu queria chamar a Polícia é para o homem que eu amo. Se eu chamei é
por que ele está passando do limite, entendeu? Não tem que me perguntar se tenho
certeza não.
Fabíola: não tem que me perguntar, não.
Camila: é uma pergunta imbecil (risos). Aí você fica naquele jogo vulnerável, será
que eu...
Simone: vulnerável frente às autoridades, frente aos outros?
Fabíola: é quer dizer eu tenho certeza, quer dizer que não era para eu fazer isso?
Você fica confusa
Camila: essa é a pergunta mais idiota.
Fabíola:não era para eu fazer isto então não, pois a autoridade está me questionando.
Simone: eu concordo
Fabíola: eu acho que não devia ter questionamento da autoridade. Deveria informar
à mulher o que vai acontecer com esse homem que ela denunciou, seja marido, o
agressor, o que vai acontecer, a partir daquele momento que ela denunciou. Porque
às vezes, passa na cabeça da gente assim, que nunca, que é leigo que vai para a
cadeia, que vai ser estuprado, que vai ser isso, vai ser aquilo, às vezes não é assim,
né. Aí a gente fica com dó, com medo...
A sessão foi muito produtiva (a despeito do número de participantes) tanto pelos temas
discutidos como pelos questionamentos que as participantes realizaram sobre suas trajetórias
de sobreviventes à violência de gênero tanto pelo viés de superação individual como pela
crítica aos posicionamentos institucionais.
Sessão nº 03
Sessão do Grupo nº 63
Data: 19 de agosto de 2009
Duração: 01 hora e 35 minutos
Participantes: Camila, Elis, Clarice, Graça, Nina, Susana
Coordenação do Grupo: Simone (coordenadora) e Rafaela (observadora)
“Olha o tanto de coisa que eu fiz...” (Elis)
137
Na abertura desta sessão, a coordenadora contou que na última sessão compareceram Camila
e Fabíola e que esta tinha sido muito produtiva. Camila estava presente nesta sessão e
confirmou a colocação da coordenadora. Fabíola, apesar de ausente nesta sessão e em
algumas anteriores, é conhecida de algumas participantes.
Nina iniciou dizendo que queria justificar sua falta na sessão passada, apesar de não serem
solicitadas justificativas desta ordem. Depois de Nina as outras participantes que não
compareceram também se justificaram. Nina e Clarice contaram que estavam doentes e que
ficaram internadas (elas relacionaram as doenças com a situação de violência reafirmando o
impacto da violência na saúde das mulheres) e Elis disse que estava viajando (ela já havia me
informadoem um atendimento individual que iria viajar como uma estratégia para “se afastar
da situação da violência”. Susana não teve um motivo específico para não comparecer, mas
disse que estava tudo bem com sua saúde.
Nesta sessão dois movimentos se destacam: o relato de processos de adaptações ativas por
parte das participantes e o movimento da coordenadora de elencar e avaliar com as
participantes a eficácia de algumas estratégias de enfrentamento à violência adotadas por elas.
Para além, no final da sessão, ocorre uma discussão sobre a diferença da apropriação dos
corpos das mulheres e dos homens na sociedade.
Susana relata sua iniciativa de colocar a faixa anunciando que sua casa está à venda. Esta
estratégia foi muito comemorada, pois em sessões anteriores, ela dizia de sua dificuldade de
tomar uma iniciativa para que sua casa fosse vendida mesmo após este acordo ter sido
realizado em sua audiência de conciliação.
138
marido” continuam morando na mesma casa. Este período de convivência forçada traz
consigo uma série de dúvidas e de sentimentos que tornam a espera pelo andamento do
processo judicial tensa. Uma série de estratégias foi construída por Susana para este período.
A experiência de Graça com este tipo de situação possibilita que ela ajude Susana.
Simone: e alguém já te ligou? Como é que tá? Susana: de vez em quando aparece
alguém lá pra olhar.
Simone: como é que é? Você já colocou pra vender? Mas ele continua lá? Qual dia é
seu dia mesmo? Que dia você vai lá ao juiz?
Susana dia 03 de setembro e deixa eu te falar, ele tem que ir também?
Simone: mas chegou carta pra ele?
Susana: é isso que eu não sei.
Graça: costuma chegar para você primeiro.
Susana: porque dia 03 está perto.
Graça: a minha chegou uma semana, primeiro.
Simone: não, tem que chegar. Depois que nem o caso dela (Graça) se não chegar
você vai lá e fala, porque depois perde uma audiência, se ele não for depois perde
(Mulheres concordam com a colocação)
Susana: então como é que eu tenho que fazer?
Simone: dá um tempinho... (Mulheres concordam).
Graça: calma recebe uma semana antes... (Mulheres concordam).
Susana relata a cena familiar que a fez tomar a iniciativa de vender a casa. Neste relato chama
atenção a diferença entre o posicionamento do filho e da filha no período de separação, as
estratégias adotadas e sua definição de violência.
Susana: sabe por que agora eu resolvi vender, eu tive iniciativa mesmo, porque teve
um belo dia lá, que chegou meu filho com ele. Lindo né, adoro ver o pai com o filho
junto, é a melhor coisa que tem. Aí chegaram do futebol, chegaram com a camisa do
Cruzeiro. E é difícil eu ficar até tarde fazendo alguma coisa, eu peguei umas coisas
na escolinha e levei lá pra casa pra fazer, aí geralmente onze horas eu tô dormindo
há muito tempo, porque eu faço de tudo pra não encontrar com ele, sabe, eu vou pro
meu quarto assistir televisão e lá eu durmo. Aí chegaram alegres e tal e eu tô lá
quietinha, continuei fazendo minhas coisas. Eles ficam rindo e eu não tenho graça
mais de ficar rindo mais perto dele. Eles estavam rindo do povo feio, gorda com os
peitos na barriga e não sei o que e falou da Célia minha colega. Aí ele falou dela e
minha menina já falou comigo: “mãe, tudo que o pai falar para te ofender, você fica
calada”. Mas tem hora que a gente não agüenta, não.
Mulher concorda: é.
Susana: Aí na hora que ele falou da minha amiga me atingiu. Aí eu falei com ele
“não fala da Célia não”. Aí o meu menino, riu.... No caso aí, igual tô te falando, foi
aonde meu menino falou “oh mãe, mas a senhora corta o barato da gente. A gente
chegou tudo feliz e alegre, não sei o quê”. Aí eu peguei e fiquei calada. E é a
segunda vez que me chama a atenção perto dele. Aí ele ficou assim “mãe não me
ignora não, fala comigo, olha pra mim, tá dando uma de coitadinha”. E já é a
segunda vez que ele faz isso, me xingar perto dele. Quer dizer por que ele não
manda o pai deles ficar calado, na hora que ele falou da minha amiga? Então o que
eu pensei? Falei com minha menina, se eu continuar do jeito que eu estou aqui, eu tô
com sessenta, setenta anos, fazendo as coisas, aguentando humilhação, tolerando,
ouvindo desaforo ainda.
Apesar das estratégias privadas adotadas por Susana para evitar contato e conversas com o
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“ex-companheiro”, o fato de estarem na mesma casa possibilita que cenas como estas ocorram
repetidamente. Neste caso, Susana se sentiu violentada tanto pela colocação em relação à
amiga (que se estende a todas as mulheres gordas), pela falta de apoio do filho, mas
principalmente, pela certeza de que caso não tomasse uma iniciativa a violência permaneceria.
Susana: meu filho é rapaz, tem 21 anos, porque homem defende o pai, eles não
enxergam igual domingo, estava lá com a namorada. Fiz uma lasanha beleza pra
eles. Minha menina também estava com o namorado. Tinha uma sobremesa bacana,
mas eles não vêem isso, sabe o que eles enxergam principalmente rapaz, sabe o quê
eles enxergam? Eles enxergam que o pai está dentro da casa, que o papai assiste
jogo.
Simone: o pai é legal.
Susana: não é? O pai é legal. (Mulheres concordam). Porque é assim Simone?
Simone: é. Porque é assim Camila?
Camila: por causa da cartilha... Você lembra da cartilha. (muitos comentários das
mulheres juntos)
Simone: você não está fazendo nada além da sua obrigação e o pai está fazendo uma
coisa...
Camila: uma dádiva divina... o pai se deu ao trabalho de ir ao jogo comigo...
O que chama a atenção é a discrepância de exigências por parte dos filhos do desempenho do
papel de mãe e do de pai. O par antagônico formado aqui é mãe fortaleza e pai doente levando
a um acréscimo de exigências no papel de Susana que também tem que se preocupar com o
cuidado da saúde do marido.
Susana: sabe o que é que é, é porque ele tem reumatismo (o “ex-marido”), não
consegue abrir uma garrafa de café, eu é que carregava ele, eu dava banho nele...
Camila: mas é por isso.
Elis: mas eles têm que tratar ele bem então...
Simone: meu pai é doente e a minha mãe é gente boa...
Camila: minha mãe é uma fortaleza, então pra ela fazer essas obrigações é fichinha,
agora meu pai tem reumatismo, é todo fudido e vai assistir ao jogo do Cruzeiro
comigo.
Clarice ri.
Camila: Ele é o máximo. (Mulheres concordam).
A conclusão de Susana é que sair de casa é a melhor solução, além disso, ela pretende mudar
de cidade após a separação e a divisão de bens serem concluídas. Uma de suas grandes
preocupações é com os filhos (já adultos) durante e após o processo de separação. Ela relata
que há uma diferença muito nítida entre o posicionamento dos filhos. O filho homem apóia o
pai, mas não deseja ficar longe dos cuidados maternos e a filha mulher “prefere” se ausentar
140
da discussão, mas apóia a mãe em suas estratégias privadas, em um posicionamento passivo
frente à violência. Susana diz sentir ódio e vontade de chorar por causa do posicionamento do
filho homem. Elis apresenta sua situação divergente da de Susana, diz que em sua casa é
diferente, pois o seu filho homem a apóia e nem conversa com o pai por causa da situação dele
com a mãe. É interessante esta colocação de Elis sobre sue filho homem para demonstrar
como não é, isoladamente, o fato de ser homem ou mulher que define as opiniões dos filhos.
Susana e Elis continuam comparando suas situações e Susana diz que talvez o que acontece
agora seja porque seus filhos não ficaram sabendo da traição de seu marido com sua irmã que
ocorreu quando eles eram muito pequenos. Elis diz que os filhos dela sempre souberam das
inúmeras traições do pai, inclusive com uma de suas primas.
Simone: só pra gente entender. Quer dizer que faz diferença, igual você falou que
sua família te apoiar, igual suas filhas, isso faz diferença na hora de tomar as
decisões. É isso que a gente tem que saber. Faz diferença?
Elis: muito, nossa, você me viu aqui nos primeiros dias como é que eu estava. Hoje
não, porque os meninos mesmo falam “mãezinha, a senhora não merece não,
homem que trái, homem que fica aprontando, a senhora não tem que aguentar isso
do paizinho”.
Simone: mas aqui só para continuar... Além da família, todo mundo já falou um
pouco da família. A família, os filhos, mãe, pai, é importante esse apoio. Além desse
apoio o que mais vocês conseguem pensar que ajudou vocês, de alguma forma. Não
é que resolveu o problema, mas pelo menos dá uma empurrada pra frente, que deu
uma ajudada, além da família.
Clarice: o atendimento psicológico é muito importante, porque se a gente não tivesse
um (risos) não tem jeito, igual a mim, eu tava perdida assim de tudo, entendeu? E
agora eu cheguei do hospital, ele tinha tomado conta do quarto todo, tava dormindo
na cama de casal.
Graça concorda com Clarice:
Graça: a terapia ajuda muito. A última vez que minha mãe teve aqui eu tava muito
deprimida.
Simone: você até chorou...
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Graça: eu deprimi muito. E agora ela teve aqui de novo, sabe.
Simone: toda vez que a sua mãe vem dá uma balançada.
Graça: só que dessa vez eu vou fazer diferente. Eu contei minha história pra ela,
porque “a benção” (o marido) tá achando que eu quero voltar pra ele, porque eu não
to falando em separar mais....
Simone: Mas o que foi que a sua mãe te falou?
Graça: Aí eu contei essa história pra mãe e falei o seguinte, escuta aqui ele não tem
nada a ver com a minha vida mesmo, não tem nada a ver com o sentimento dele
mesmo. Eu não sei o que vai acontecer comigo, se ele arrumar outra pessoa, eu não
tenho nada a ver e eu não vou dizer pra vocês que eu não arrumo.
Camila: aí já mudou.
Simone: que você falou?
Camila: você já mudou.
Graça: eu falei assim eu não vou dizer que eu não arrumo outra pessoa e eu não sei o
que vai acontecer, mas se eu tiver que arrumar.
Camila imitando Graça: depois de separada, eu não quero arrumar ninguém, eu
quero ficar sozinha...
Graça: Mas aí minha mãe não falou nada. Mas Graça, ficar sozinha é muito ruim.
Mulheres comentam juntas.
Simone: a sua mãe era contra você ter alguém a questão é toda essa,
terminantemente contra...
Graça: ela não aceita, eu ter outra pessoa, porque é pecado eu arrumar outra pessoa.
Simone: mas você estava falando da terapia e que mais?
Graça: eu acho assim porque eu venho enfrentando ela. (silêncio do grupo). Outra
coisa eu aprendi também, as pedras que as pessoas jogam na gente, é com elas que
vou construir meu castelo. (Silêncio do grupo)
Susana: É isso aí.
Elis: porque essa semana eu estou ouvindo muito o Padre Marcelo, que fala sobre
traição essa semana ele falou. (As mulheres se interessam pelo assunto e se voltam
para ela).
Simone: O que o Padre Marcelo fala sobre isso?
Elis: não, ele faz as orações, as pessoas mandam, escreve pra ele, falando que foi
traído, contam casos e tem casos que é pior que o meu, tem gente que cai na
bebedeira, tem gente que cai no vício da droga por causa de separação.
Susana: é
Elis: Então, tem cada caso, sabe. Tem gente que muitas vezes não pede ajuda de
ninguém e ajuda é muito importante.
Graça: é muito importante.
Todas concordam.
Elis: aqui, nossa, mas a D. e a M. pularam de alegria. Ontem mesmo a M. ligou
“mãezinha a senhora ta indo amanhã?” (na sessão do grupo). Falei “tô, tô indo”. Lá
em São Paulo eu estava lembrando de vocês eu tava nesse horário na Igreja da Sé.
Simone: bom que você não se esqueceu de nós.
Elis: Eu estava na igreja da sé nessa hora, a Igreja da Sé é muito linda, lá em SP, e
eu tava na hora fazendo minhas orações e lembrei-me de vocês aqui. Então, isso
ajuda.
Simone: então você acha que a igreja ajuda?
Elis: ajuda muito, muito. Se a gente não tiver Deus menina, independente de sua
religião. Porque eu sou católica, mas a igreja católica,
Susana: tem que procurar né?
Elis: tem. Se a gente não tiver Deus...
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Susana declara que, no seu caso, o Espaço Bem-Me- Quero fez a diferença.
Susana: eu, por exemplo, não tenho família aqui. Minhas irmãs, minha mãe tudo lá
em Sete Lagoas. Então o que me ajudou mesmo foi aqui, o Bem- Me- Quero. Mas
mesmo assim a D. minha colega, que trabalha lá na escolinha que me indicou.
Convergindo com o tema desenvolvido na sessão, Camila relata que também agiu diferente
em seu ciclo no último fim de semana. Apesar de ter saído com C. ela diz que pelo menos,
conseguiu parar a sequência do ciclo, não permitindo que após uma cena de violência ele
retornasse com ela para sua casa. Chamam atenção neste relato: as estratégias que Camila
adotou, sua iniciativa e percepção do movimento do ciclo durante os acontecimentos e a
discordância, por parte das outras participantes, de alguns comportamentos de Camila.
Camila conta que ela e K. foram a uma festa familiar e que, percebendo o aumento da tensão
entre eles, se posicionou alertando-o para que ele não continuasse com insinuações sobre ela.
Em sessões anteriores, Camila apresentou uma longa lista de cenas de violência por parte de
K. em festas familiares/rua, quando ele bebia. Nestes episódios, muitas vezes, ela também era
agressiva com ele. Assim, temendo por uma nova situação de violência em público, ela
decidiu ir embora da festa e ele a acompanhou em seu carro. Durante o trajeto a situação ficou
mais tensa com. K. continuando as provocações, xingando-a e falando palavrões. Camila
tentou novamente negociar para que ele parasse e ele manteve o comportamento. A partir
disto, ela pediu para ele sair do carro e recebeu nova negativa por parte de K. Por fim, ela
decidiu procurar um policial para que a ajudasse a retirar K. do carro. A reação de K. foi de
intimidá-la dizendo que “se bobear você é que vai presa, já tem a ficha suja” (referindo-se à
prisão irregular de Camila).
143
Camila: eu não fiz nada. Aí eu fui, parei lá na Delegacia de Mulheres. Aí tinha uma
viatura lá, um cara lá...
Clarice: uma hora da manhã?
Camila: Não, eu fiquei quase duas horas, eu saí da casa da minha prima era seis e
meia e fiquei rodando quase até dez horas da noite. Esse ciclo todo até dez horas da
noite.
Susana exclama: quatro horas atrás da Polícia!
Camila: e o outro me xingando, falando palavrão, pelo menos eu consegui não levar
ele pra minha casa.
Simone: qual o custo benefício disso Camila?
Camila: o custo benefício foi que eu consegui não levar ele para minha casa.
Simone: isso eu concordo, mas porque ir com ele para a festa?
Camila: foi isso que minha mãe falou comigo...
Simone: o ciclo Camila, tem que ser antes dele começar...
Camila: não é, mas aí...
Simone: não, eu estou concordando com o que você fez.
Camila: ... é que eu não levei ele para a minha casa, porque se ele fosse pra minha
casa, a gente ia discutir, nós dois ia se atracar um com o outro. (Mulheres comentam
muito).
Simone: aí eu concordo, concordo plenamente.
Camila: aí eu fui pedir os policiais para tirar ele do carro.
Simone: eles foram legaizinhos.
Camila: eles foram: Ai meu Deus do céu, hoje é hoje.
Simone: ele falou isso?
Camila: ai meu Deus, porque tinha outro casal brigando, porque a menina não queria
(risos) acho que ele tava com ciúme dela e ela tava lá na Delegacia pra falar pra ele
não ter ciúme dela. (Mulheres exclamam). Aí eu cheguei lá (Mulheres falam.). Oh
meu amigo, o senhor está alcoolizado, vai pra casa descansar, amanhã vocês
conversam. Aí ele, baixinho, eu não fiz nada com ela, (risos) ela não quer que eu
vou pra casa dela. (Risos de Clarice). Aí eu olhei assim pra eles, fiz assim pra eles.
Aí eles: não, desce do carro, por favor, e vai embora pra sua casa.
O que se problematiza em cenas como esta é a postura do Policial Civil frente a uma situação
de violência entre um casal e, ao mesmo tempo, a dificuldade da mulher para fazer valer sua
decisão sem esta ajuda externa. Estes são os nós que as mulheres sobreviventes à violência de
gênero têm que desatar rotineiramente.
Elis, Clarice, Susana e Graça continuam a discussão sobre a relação no período de separação
144
falando sobre manutenção de algumas atividades domésticas neste momento. Elas dizem que
continuam exercendo-as e que os “ex-companheiros”, assim, continuam desfrutando das
comodidades do casamento, como a elaboração do almoço e jantar. A necessidade da
manutenção do status quo doméstico (indiferente das ocorrências de violência e das
ocupações extras fora do lar das mulheres) faz com que os membros da família reajam
imediatamente no sentido de que tudo permaneça como antes, inclusive a mulher.
Clarice: agora eu não faço comida, não faço janta, não faço almoço, eu estou liberta!
Susana: eu faço comida lá em casa só por causa da marmita da minha menina.
Clarice: eu? Nem marmita de menina, (Mulheres falam juntas) se quiser ela faz...
Elis: eu no meio de semana eu faço. Agora marmita eu mando pra ele também,
porque eu tenho que fazer comida pra menina de 15 anos que vai pra aula. Aí como
ela já vai pra aula, eu pego e arrumo a marmita e falo deixa lá pro seu pai.
Em mais uma situação percebe-se que as sobreviventes adotam estratégias diferentes durante
o processo de enfrentamento à violência e que o confronto de opiniões no grupo ocorre
naturalmente, em um processo positivo para a dinâmica do Grupo Operativo.
Graça solicita a palavra para fazer uma pergunta. O assunto é, novamente, a relação dos pais
com os filhos, como apresentado por Susana, no início da sessão.
Graça: Simone me deixa só fazer uma perguntinha, porque que o filho, igual, por
exemplo, o meu fez 12 anos, tudo ele vem falar comigo, se é pedir dinheiro ele vem
falar comigo. Às vezes saiu e fez compra, oh mãe você compra tal coisa assim. Meu
pai comprou o negócio que eu estava querendo aqui à tarde. Meu filho pergunta o
seu pai. Porque ele vem a mim?
Simone: você sabe o porquê, tá careca de saber. (risos)
Graça: tudo sou eu, sabe, até uma coisinha que ele queria comprar e estava junto do
pai dele. Oh mãe, meu pai comprou aquilo pra mim, que eu pedi? Você tem que
perguntar pro seu pai.
Simone: você tem que ensinar ele a perguntar. O porquê você já sabe.
Graça: mas tudo é pra mim, tudo que ele quer é comigo, ele não fala nada com o pai
dele.
Simone: mas ele foi criado assim, agora vai mudar depois de doze anos num plim?
Graça: eu que o criei assim?
Simone: eu não fui. Foi você Camila?
Camila: a primeira vez que você veio no grupo você virou e falou assim: Eu que
tenho que tomar a frente de tudo, eu indico tudo. Até a rua que ele entra que ele sai
com o carro.
Simone: quem o pai do...
Camila: é. Ele aprendeu.
Graça: que ele é dependente. (muitos comentários das mulheres).
Simone: então, o importante é que ainda está em tempo.
Graça: se o pai fica com o dinheiro, porque que tem que pedir dinheiro à mãe, não
sou eu não? (Mulheres falam do assunto baixinho).
Susana: é minha filha, mas tudo é a mãe.
Simone: mas criou o filho assim.
Susana: é a mãe que criou com aquele jeitinho assim
145
Simone: pergunta para o seu pai, pergunta para o seu pai tem que mandar perguntar,
ainda mais que já tem doze anos, ele já pode realmente perguntar.
Clarice também segue esta linha de ação. Mesmo em seu caso onde o filho nunca conviveu
com o pai, ela considera que seja importante o posicionamento da mãe no sentido de
apresentar ao filho seus direitos e também se preocupa com o impacto da violência sobre seu
filho, tema reiteradamente discutido e que desperta o interesse de todas.
É interessante que a partir da discussão sobre a relação com os filhos Susana queira retornar
ao assunto sobre os sentimentos da mulher na relação. Em uma espécie de conclusão, ela
apresenta uma sequência de pensamento que afirma o amor das mães aos filhos como
verdadeiro em contraposição ao amor de pai, a partir do desempenho diferenciado destes
papéis.
146
A dinamicidade e acolhida do grupo é evidenciada no trecho seguinte da sessão em que a
coordenadora e as participantes se voltam para Nina que (sempre é muito participativa)
estava calada e com uma expressão muito triste. Também é muito interessante a imagem que
Camila utiliza para definir a situação da mulher quando está se sentindo “mau” –“mangue”.
Simone: Nina você não quer falar porque está triste, está doente, está de mal da
gente, o quê que foi?
Nina: tô morta. (...)
Graça: A gente tem recaída, é normal. Tem que desabafar, para mostrar que tá
lutando.
Elis: você lembra aquele dia que eu vi você aqui de manha, aquele dia eu estava mal
né?
Simone: antes de viajar né,
Elis: é antes de eu ir para a casa das minhas filhas.
Simone: não, tá mal é normal.
Camila É o primeiro passo pra gente sair da nossa, do nosso, como é que fala? Como
é que chama aquele negócio do... (Simone: lá vem ela com as idéias) do nosso
mangue! Mangue não é um local cheio de lama, cheio de tudo?
Susana: é que atola... Vai atolando.
Simone: qual é o primeiro passo Camila?
Camila: É a gente não sentir dó da gente mesmo.
Susana: isso mesmo!
Camila: o textinho da vítima é claro com relação a isso. A gente não sentir dó,
quando a gente se sentir fraca, a gente tem que ressurgir das cinzas. Opa! Eu sou a
mulher maravilha.
Clarice: rainha maravilha!
Elis: eu fico sábado o dia inteiro lá no curso. É sábado de manhã, começa oito e vai
até quatro horas da tarde.
Susana: oh, que bom! Faz falta, né...
Graça: eu tô pegando o ônibus e tô adorando. (Falam juntas)
Simone: você tá gostando de fazer?
Graça: ah, eu tô gostando, amo. É uma maneira de sair da rotina sabe. É muito bom,
sabe? É um ambiente muito bom, sabe.
Elis: o que?
Simone: ela está participando de todo o movimento político de Contagem.
Graça: mas é muito bom, muito bom. Eu fiz parte da Conferência Municipal de
Assistência Social, nós ficamos um dia todo no SENAI, no SESC/SENAI, tava
ótimo viu!
Camila: você se achou?
Graça: eu acho bom, aquela mulher que ficava muito ali, embora isso esteja
incomodando demais.
Simone: é claro.
Graça: meu filho até falou, mas, eu não estou importando muito com isso não. Eu
estou fazendo uma coisa que eu gosto eu realmente.
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Simone: Como é que seu filho falou com você?
Graça: ah mãe, agora não estou tendo mãe mais não...
Camila: é porque eu fui acostumada
Simone: é porque está assustando porque é uma coisa diferente...
Graça: enquanto, como se diz, eu não estiver trabalhando fora e puder fazer uma
coisa útil, eu estou fazendo, eu gostei disso...
Mulher: deve ser porque ele está acostumado a chegar a casa e achar a mãe lá em
casa.
Clarice: ele quer a mamãe em casa. (falam juntas concordando)
Simone: fazendo lasanha.
Camila: lasanha boa.
Simone: salada de frutas.
Graça tenta continuar explicando que seu filho queria sair para um local e ela para outro, mas
começa uma série de comentários que a interrompem. Elis diz no meio do tumulto “tudo que
mulher faz está errado mesmo, homem nunca está errado”. Susana “pega um gancho” neste
comentário e apresenta o exemplo de um personagem da novela das oito que após ser traído é
aconselhado pelo amigo a fazer o mesmo, reafirmando as diferenças de posicionamentos e
lugares para homens e mulheres na sociedade.
A coordenadora faz um resumo sobre o que foi apresentado até agora pelas participantes
Simone: mas eu não tô entendendo, quando vocês fazem essas coisas assim. Vocês
falaram da família, falaram do atendimento psicológico, aí eu posso juntar aqui, por
exemplo, quando vocês estão assistindo uma novela, quando vocês estão assistindo
um filme, quando estão lendo um livro, e quando vocês estão em um movimento,
participando de uma coisa coletiva, fez um curso e tal. Isso também ajuda. Eu quero
entender isso.
Graça: ah, ajuda. É muito mais gostoso fazer o que você gosta.
Elis: Ficar dentro de casa não dá. Quem tá com problema assim igual eu passei, tô
falando pra Nina para ela arrumar uma coisa pra fazer. A Nina está precisando fazer
alguma coisa.
Graça: que nem eu!
Elis: a Nina não tá fazendo nada.
Camila: o provérbio diz mente vazia ocupação pro diabo.
Susana: e não é verdade?
148
companheiros. Esta proposta foi bem acolhida pelas participantes. Graça que já esta há mais
tempo no grupo lembra que já foi apresentado um projeto de oferecimento de cursos pela
própria instituição. A coordenadora confirma a existência da proposta e diz que já foi criado
um projeto para ser implementado em 2010. Ela também endossa a proposta de Nina e
reafirma a importância de que as mulheres tragam idéias como estas para o grupo.
Continuando Nina desabafa o motivo de seu silêncio e faz também uma provocação sobre a
eficiência do caráter terapêutico do Grupo. Frente a isto, as outras participantes divergem e
apontam para a eficiência da participação no grupo juntamente com a adoção de várias outras
estratégias. A coordenadora concorda com as mulheres sobre a importância de participação no
grupo como mais uma estratégia a ser adotada.
Nina: meu ex está me aporrinhando tanto, que eu tô preferindo nem falar pra não
chorar mais. Então, se a gente ficar falando aqui batendo toda quarta-feira na mesma
tecla, (Susana concorda) toda quarta eu saio daqui ou chorando ou rindo
Camila: mas isso faz parte, eu e ela, tem um ano que nós estamos aqui. Um ano e...
Graça: tem mais. Eu entrei em maio (fazem as contas)
Nina: mas tem mais coisas né...
Simone: é aquela coisa, a terapia é uma das coisas, eu tenho muito claro na minha
cabeça e eu acho que vocês também têm a terapia não é a única coisa que você faz
pra melhorar. (Nina: com certeza.) A terapia é mais uma coisa.
Elis: olha o tanto de coisa que eu fiz.
Simone: é viajar, é sair, é encontrar com a família, a terapia é mais uma coisa...
Clarice: cada santo com o seu dia, porque não adianta nada você não chorar aqui e
chegar em casa você desabar.
Graça: eu acho importante, o que a Simone fala, dá vontade de falar, fala, dá
vontade de chorar, chora, desabafa. Isso é muito importante, se não você fica
segurando e isso fica te fazendo mal. Se você sente que a fase de chorar passou,
então vamos para a outra fase.
Nina: exatamente.
Camila apresenta mais uma imagem para ilustrar esta fase de melhoras e recaídas do processo
terapêutico - “convalescença” e apresenta o Grupo como um lugar indicado para vivenciar a
convalescença e se recuperar dos impactos do ciclo. Esta é uma imagem interessante por
reforçar o apoio e acolhida às sobreviventes à violência de gênero em sua trajetória de
enfrentamento à violência e também como indicativo de apropriação da proposta do Grupo
pelas participantes.
Camila: ah, eu penso assim a gente tem que dar tempo pra gente. É igual quando a
gente está num momento de convalescença (risos), você tem aquele momento que
você tem que dar tempo pro seu organismo se recuperar, entendeu? (Mulher
concorda) Então é a mesma coisa quando a gente sofre uma desilusão muito forte,
eu acho que o nosso organismo fica debilitado, então eu acho que a gente tem que
dar tempo pra gente mesmo... Quando você tá sentindo aquela fadiga, aquele
149
cansaço, aquele mal-estar, aquela falta, aquela vontade de que um caminhão passe
em cima de você e acaba com tudo. Aí você fala assim, gente vou parar um pouco e
vou deixar meu organismo recuperar, pra daí a pouco eu consegui ressurgir das
cinzas e dar a volta por cima. Então, se a gente ficar afobada, eu já tive muito isso de
ficar afobada, gente eu tenho que parar de chorar, eu tenho que parar de chorar, eu
tenho que parar de chorar, entendeu? (Risos) Eu tenho, eu aprendi a dar tempo pra
mim mesmo, hoje eu não choro mais, hoje eu até me divirto. E olha que a minha
vida tá uma loucura, mas eu não tô mais deixando meu organismo sofrer tanto igual
eu deixava, porque eu dei um tempo pra ele respirar e chegar nesse nível. Não tô
curada não, mas tô aprendendo a manejar mais pra não ficar sobrecarregada...
Simone: então eu acho que é por aí mesmo, sabe Nina, chorar, não tem jeito de não
chorar, a gente chora mesmo (...) não existe um horário pra chorar...
Clarice: cada um tem as suas coisas, né? Ela preferia que o marido tivesse e eu tô
doida pro meu sair. (Risos de Susana).
Elis: eu queria que se o meu não tivesse problema eu queria que o meu ficasse
também sabe, eu acho que o casamento, sabe, que o casamento está dando muito
problema desde o mês passado.
Elis, por exemplo, após décadas de traições e violência chamou a Polícia para o companheiro
após uma cena de violência. O chamado não foi atendido, mas, neste caso, a novidade da
estratégia fez efeito, o companheiro fugiu e ficou com medo. Ela relata que os vizinhos e
alguns familiares a pressionaram por causa desta atitude, mas ela se manteve firme (pelo
menos com ele) não relatando que após ele ter fugido a Polícia não havia comparecido e
reafirmando que realmente ela não o queria em casa da forma que estava. Ela conta que
chorou e ficou nervosa depois disto tudo, mas há de se valorizar sua iniciativa.
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causa de violência.
Susana: o que minha mãe passou, eu tô fazendo de tudo pra não passar, você
entendeu? Eu já tenho exemplo na minha família gente, pra quê que eu vou fazer.
Minha mãe até hoje fala: faz por onde conviver. (O grupo explode em comentários).
Simone: essa frase mata né...
Susana: ela acha um horror eu estar separando, (mais falas) minha vó ta lá com
depressão...
Elis: eu não achei ninguém que falasse isso comigo, era eu mesma que tava boba.
Simone: você não acha ninguém não, você mesmo falou.
Elis: é, ninguém, é isso mesmo. Deixa de ser boba!Larga esse homem, já te traiu.
Todo mundo, não teve essa pessoa, é família, é família dele, também, até a minha
sogra.
Simone: então pronto.
Elis: você não é a primeira mulher separada, você não vai ser nem a primeira e nem
a última.
Clarice: eu achei alguém pra falar comigo, faz por onde.
Simone: quem falou com você?
Clarice: a irmã dele.
A partir desta discussão, Graça conta um caso de sua avó tentando mostrar como o fato dela
ser conservadora a tinha levado a um quadro de depressão crônica. Graça diz que sua avó
estava revoltada com seu avô, pois ele não estava a respeitando mais, pois, quando ele foi dar
banho nela, tirou o short e tomou banho junto com ela. A avó dela nunca tinha visto o marido
nu até aquela data. Após o assombro das participantes e da coordenadora teve início uma
interessante discussão sobre o corpo da mulher e do homem na sociedade através dos tempos.
151
Confirmando esta diferença da apropriação dos corpos masculinos/femininos pela mídia
Graça dá o exemplo da novela Pantanal (década de 80) que causou alvoroço porque teve uma
cena onde apareceu o perfil de um homem nu pulando no rio. Ela relata que sua mãe a proibiu
de assistir esta novela desde esse dia. Camila reflete que deve ser por isso que as esculturas de
corpos masculinos nus de Michelangelo devem ter feito tanto sucesso, pela sua coragem na
exposição do sexo masculino. Como exemplo de uma produção mais atual e onde o corpo
masculino é exposto sem estar em uma cena de sexo e sem causar grande alvoroço midiático,
a coordenadora apresenta o exemplo de um filme romântico de 2005, “Ressaca de Amor”.
Neste filme, o ator principal é filmado em nu frontal nos primeiros dez minutos do filme com
a repetição da cena no final do filme. O mote do filme é a superação por este personagem do
término de um namoro após uma traição da namorada, ou seja, neste filme o papel de
abandonado/traído/deprimido é o de um homem heterossexual. A partir deste exemplo, a
coordenadora, questiona se estaria ocorrendo uma mudança na forma de expor os corpos
masculinos e no papel dos personagens masculinos atualmente. O grupo concorda que apesar
de algumas mudanças, ainda causa impacto a aparição do corpo nu masculino e que ainda são
poucas as criações artísticas que subvertem os papéis masculinos/femininos nas relações
afetivo-sexuais. Camila, novamente, faz a ligação deste tema com a discussão sobre a
violência e Nina complementa a sequência interpretando este fenômeno como atingindo a
todas as mulheres.
Camila: agora trazendo, transferindo aquilo tudo aqui pra nossa vida cotidiana, eu
acho que é por isso que nós mulheres sofremos tanto, porque eu acho que detalhes
tão sórdidos quanto este é que fazem a diferença, porque que nos sentimos tão
reprimidas sabe. Porque nós nos cobramos tanto quando a gente falha alguma
coisa...
Nina: às vezes a gente também se sente tão usada.
Camila: exatamente, então eu acho assim que esse estatuto que nós saímos fora, que
nós estamos comentando aqui. (Mulheres concordando). Eu acho que se a gente
transferir para a nossa vida cotidiana, nós sofremos muito com esse tipo de coisa.
Simone: igual você falou aí, tenta puxar mais um pouquinho Camila, o que tem a ver
lá o homem estar pelado, com a mulher aparecer com o
Camila: eu acho que...
Simone: o que pode ser usado
Nina: por mais que a gente não saia numa Playboy da vida, a playboy ainda tá
bonitinha, por mais que a gente não sai em filme pornográfico ou numa revista de
baixo calão, indiferentemente disso, a gente não deixa de ser mulher. A gente passa
na rua, se voe vê, eu estava até comentando com meu namorado uma vez, que se
você vira pra um cara, homem tem muito medo de mulher, não sei se vocês assim já
viram alguma cena de filme ou alguma coisa assim, mas na vida cotidiana mesmo,
se uma mulher pára na rua e de olho no cara fala “nossa, você é um tesão de cara!”...
Camila: nossa, quebrou ele. (risos e falas)
152
Continuando, Nina exemplifica como os corpos de homens e mulheres são abordados
publicamente apontando para um aspecto geracional de transmissão sobre os códigos de
conduta de homens e mulheres e sobre a vulnerabilidade das mulheres nessas situações.
Nina: o menino de oito anos, ele falou com a minha filha, eu lá em casa de
shortinho, faxinando a casa, ele falou “nossa, sua mãe é uma puta gostosa!”. Mas o
menino não sabe nem o que muitas vezes está falando. (falas altas). Mas o vô dele
fala o pai dele fala, o vizinho fala. (Mulheres concordam)
Camila: eu tenho que falar igual meu pai meu tio, meu avô.
Nina: a mulher acaba se sentindo usada por isso, porque querendo ou não, não é o
nosso corpo que está sendo exposto lá, mas aquilo ali não deixa de ser a gente e eles
sabem disso.
Camila: pois é, então essa situação eu acho que a violência o tempo inteiro...
As conclusões apresentadas por Camila e Nina definindo os relatos e a exposição dos corpos
femininos como violência é incisiva. A discussão continua apresentando mais exemplos de
como homens e mulheres se apropriam e tem seus corpos apropriados de forma diferenciada
pela sociedade. Nina comenta que as mulheres não ficam conversando sobre formatos ou o
tamanho de seus órgãos genitais enquanto para os homens isto é um tema recorrente. Segundo
ela “a gente nem ousa se preocupar com isso.” Clarice se lembra de uma propaganda de
esmalte que foi retirada do outdoor, após causar muitos comentários do público, por
apresentar uma mulher com a mão na vagina. Nina comenta sobre uma amiga que “dá
cantada em homens” e que nesses casos, os homens não gostam. Clarice diz que quando
“beliscou a bunda de um homem” ele não gostou e “virou e fez uma cara feia para ela”. A
profusão de exemplos é um indicativo de como este assunto tem ressonância na vida das
mulheres.
Simone: Ou vai ter igualdade, então a mulher tem tanto direito de fazer isso ou
nenhum dos dois deve fazer isso. Vamos lá, só pra tentar pensar...
Graça: eu acho que tinha que ter igualdade.
Nina: eu acho que nenhum dos dois.
Simone: nenhum dos dois devia fazer igualdade? O quê que você acha?
Clarice: ah, sei lá. Tem que ter igualdade sim.
Camila: eu acho que eu não sou a melhor pessoa para dar essa opinião. Tá tão
entranhado na nossa cultura. Eu tentei ser uma pessoa diferente e eu paguei um
preço muito caro por isso. (Muitas falas). Eu acho que isso está longe, nem na
criação do meu filho vai fazer isso.
Clarice: o que a gente aprendeu é que a mulher é mais frágil que o homem.
Camila: ditaram um dia que a mulher tinha que ser mais frágil que o homem, porque
as mulheres hoje são pai e mãe de família e dão conta muito bem, obrigada. Então
nós não somos tão frágeis.
Clarice: a gente é mais inteligente.
Graça: o homem é mais forte que a mulher mesmo.
Camila: nós somos nós temos menos massa muscular pra dá porrada, isso aí é um
fato.
Susana: os homens a maioria das mulheres hoje trabalham, nenhuma das mulheres
quer ficar em casa. Então tem que ter muito respeito um com outro, porque mulher
hoje não agüenta.
Elis: eles estão casando hoje, porque igual a minhas filhas uma é bióloga, outra
administradora. A namorada do meu menino faz Engenharia e elas falam: Eh
mãezinha! Coitado dele que fizer isto aqui. E tudo que têm lá elas que ajudaram a
comprar. (Mulheres falam juntas: tem que respeitar.)
Clarice: eles hoje já namoram pensando em dividir a conta. (Todas concordam).
Graça fala tem que ter igualdade.
Camila: igual quando eles pensaram a religião e inventou que a mulher saiu da
costela de Adão já ferrou o resto. Mas porque Deus não deu o trabalho de fazer a
nossa matéria igual a do homem.
Clarice: porque tinha que ser dependente, mas eles é que são dependentes...
Elis: igual depois que casa...
Susana: eles vão ter que ajudar a mulher...
Sessão nº 04
Sessão do Grupo nº 64
Data: 26 de agosto de 2009
Duração: 1 hora e 20 minutos
Participantes: Kenia, Nina, Susana, Camila e Cíntia.
Coordenação do Grupo: Simone (coordenadora) e Rafaela (observadora)
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“Se você está frequentando um grupo você confia no grupo” (Cíntia)
Na abertura desta sessão, antes mesmo que a coordenadora se sentasse, Nina aproveita-se de
uma brincadeira sobre filhos para falar de sua impressão sobre a coordenadora, demonstrando
curiosidade. A coordenadora, por sua vez, responde às perguntas de Nina e se posiciona como
uma “mulher separada” que “chora como qualquer outra”.
Susana pega um gancho na fala da coordenadora e apresenta o caso de sua irmã que foi traída
e se separou, mas não está demonstrando tristeza, pelo contrário ela tem um relacionamento
feliz com outra pessoa. Susana conclui que a irmã tem sorte porque para ela está difícil, pois,
“esse negócio de separação desestrutura, separa a família”.
155
Nina diz que depende, pois considera que com filhos pequenos é mais difícil. Susana
discorda, para ela, com filho pequeno é mais fácil, porque quanto menos contato mais fácil
para o filho se adaptar à separação (como no caso de Camila). A divergência sobre o assunto,
na verdade, se resume na convergência sobre a preocupação das mulheres/mães com seus
filhos (as) durante o período de separação. Nina conta como suas filhas estão reagindo à
separação de forma diferenciada: a filha de onze anos diz “mãe desencana” e que não vai ser
boba como a mãe: “Eu não vou correr atrás de homem. Eu não corro atrás de homem como a
minha mãe. Eles é que vão correr atrás de mim. Minha mãe é uma idiota que fica ligando
para o meu pai.” A filha menor de nove anos diz que “não vai se casar” e disse que queria
conversar com a psicóloga da mãe.
Nina: A L. já me pediu: Oh mãe, você sabe a sua psicóloga, a Simone. Você fala
com a sua psicóloga que eu quero ir lá conversar com ela. (Susana: Oh meu deus!)
Nina: foi ontem à noite chorando. Por que minha filha? Pode ser amanhã, mãe? Não,
tem que conversar com a Simone, primeiro pra marcar um horário.
Simone: eu não atendo criança senão eu choro.
Nina: O dia que você vê ela você ver ela você vai chorar. Tem que ver por que ela
quer falar com você. Por que eu tô muito estranha, mãe pode ter mil pessoas perto de
mim, eu tô dentro da sala, no recreio
Simone: ela tem que conversar com o pai dela.
Nina: eu venho aqui pra casa tá você e o J., eu vou para a casa do meu pai,tem gente
lá, tá lá a minha vó com meu pai,.mas eu não sei, eu olho pra todo lado e tô me
sentindo sozinha é como se eu tivesse sozinha no mundo é como se eu não tivesse
ninguém. Aí eu quero ir lá pra conversar com a psicóloga porque eu acho que eu tô
com algum problema. Tô com uma dor na minha barriga. Ela só fica reclamando
dessa dor na barriga.
Este relato da filha de Nina é um exemplo do impacto nos filhos de situações de violência de
gênero entre os companheiros. Apesar de não saber se expressar ela sente que alguma coisa
está acontecendo com ela. Mesmo que sua reação seja diferente da irmã, percebe-se que
ambas estão reagindo à tensão no período de separação de seus pais. A coordenadora afirma
que uma das grandes consequências da violência de gênero entre companheiros é justamente
este tipo de exposição dos filhos, o que pode ser considerado um tipo de violência psicológica
contra a criança por parte dos pais. Para elas, o ideal seria prevenir, evitando a recorrência
destas situações na frente dos(as) filhos(as).
Kenia concorda com a coordenadora e diz que está preocupada com seu filho por que o pai
dele a ameaça na frente da criança e Nina diz que saiu de casa porque as filhas assistiam o pai
saindo de casa para se encontrar com a amante e ficavam chorando quando a mãe chorava e
também passavam mal. Percebe-se como o impacto sobre os filhos é um sinal que empodera
156
as mulheres a tomarem iniciativas para enfrentar a situação de violência. Kenia fala muito
nervosa que “por isso que eu quero conversar com o advogado para ver se tem como entrar
com um processo na justiça. Minha única defesa é entrar na justiça contra esse homem. Pra
poder esse homem não me ameaçar mais, pra esse homem não poder mais”.
Kenia relata que novamente seu ex-companheiro foi à casa de sua mãe e ameaçou novamente.
O caso de Kenia é muito delicado, pois seu ex-companheiro é muito violento e inclusive, já
jogou uma bomba na casa da mãe dela e de um de seus ex-namorados. Ele, inclusive, está em
liberdade provisória por causa de um processo de agressão com bombas. Ele teme a Polícia
por causa de sua situação na Justiça, mas não para de ameaçar e perseguir Kenia. Kenia está
desesperada. Devido à gravidade de seu caso o grupo já tinha conversado sobre a hipótese de
ser necessário um encaminhamento para solicitação de Medidas Protetivas.
Simone: Mas, o que ele fez daquele dia até hoje? Ele fez alguma coisa nova?
Kenia: Fez. Ameaçou-me de novo. Ai eu liguei pra Polícia.
Simone: ele foi à casa da sua mãe?
Kenia: foi na casa da minha mãe. Aí eu liguei para a Polícia ele voltou achando que
eu não tinha chamado a Polícia para ele não. Aí a Polícia parou lá na porta. Aí ele
quis correr. Ai a Polícia pegou ele. (...)
Susana: ele correr foi pior. Aí que a policia viu.
Kenia: Aí a Polícia pegou ele e nós descemos lá pra baixo. Aí chegou lá no
Delegado e ele falou a Kenia é doida. Ela é doida toda hora ela registra um BO
contra mim, até já registrou um BO contra mim na Delegacia de Mulher
(ironizando). Simone: ele te ameaça de morte?
Kenia: de morte, de morte, foi dia18 de agosto de 2009. Simone: vai lá conversar
com a L. (advogada do Espaço Bem-Me-Quero) ela chega 10 horas, bate na porta.
Kenia: eu preciso entra na justiça contra esse homem, eu preciso entra na justiça
contra esse homem.
Simone: mas você vai deixar ele ficar preso. Até que deixar eu acho que você deixa.
Mas, você acha que ele vai ser preso?
Kenia: Nem que seja pra ele me dá uma indenização.
Camila: isso aí já foi uma evolução GSM.
Kenia: Por que se ele arrancar do bolso, na hora que for me ameaçar de novo vai
pensar, eu vou ter que ser preso ou vou ter que pagar ela. Ou então, ele pega e me
mata logo de uma vez.
Simone: essa hipótese não existe.
Camila: matar não pode. Simone: mas o que ele faz?
Kenia: eu sofro tanta pressão, tanta pressão (com muita ênfase). Simone: eu sei.
Kenia: eu prefiro morrer a viver desse jeito.
Simone: você não vai morrer.
Camila: você prefere viver, você prefere me ver toda quarta-feira do que morrer.
Susana: você tem que pensar em você e no seu filho. Ele que se dane. Dá um jeito
que vai começar a resolver...
O desespero de Kenia é condizente com a reiteração da violência por parte de seu ex-
companheiro. Ela saiu da casa onde eles moravam e foi morar com os pais, mas, mesmo
assim, não ficou à salva, pois ele utiliza a desculpa de ver o filho para continuar vendo Kenia
157
e a perseguindo. Em uma das brigas, inclusive, ele pegou o filho e fugiu com ele de carro,
além disto, inclusive, ela parou de estudar e trabalhar na rua como vendedora por que ele a
ficava perseguindo nas ruas. As participantes do Grupo sabendo de sua história se solidarizam
e tentam animá-la apesar da preocupação e do medo de que algo aconteça com ela. Apesar de
toda esta situação o pai dela ainda a aconselha a reatar a relação.
Kenia: Meu pai falou assim é Kenia se eu fosse você eu voltava pro L.. Então
porque você não pega o D. e vai morar com ele. (teatral). Se você fosse mulher
(risos)... No outro dia ele falou Kenia eu quero ver se você é mulher, mulher mesmo,
pega o seu menino e vai e volta para o L. (Risos) Aí eu falei: eu quero ver se você é
homem. Homem mesmo pega o D. e vai morar com ele.(risos). Homem que é
homem volta para o L. também pai. (Risos). Porque ele tá querendo que eu volte pro
L. com medo dele jogar uma bomba lá em casa. Você esta achando que eu sou isso
aí, (o pai dela fala). Não é você ta achando que eu sou objeto que você me manda e
desmanda? De jeito nenhum, de jeito nenhum. Eu prefiro continuar aqui a vida
inteira a voltar pra lá, entendeu. (...) Do primeiro tapa que ele me deu na cara,
entendeu, ele vai me dar é muito tapa na cara ainda...
A coordenadora diz para Kenia procurar a advogada do Espaço Bem-Me-Quero para que
sejam feitos os encaminhamentos necessários para a solicitação das Medidas Protetivas. Antes
de ela sair, Camila pede para que ela fique para escutar uma novidade.
Camila entrega para Simone o documento com seu depoimento na Promotoria onde ela afirma
que apesar de ter assinado termo de ciência sobre solicitação de Medida Protetiva ela não
havia sido informada sobre a solicitação. Nesta declaração ela ainda afirma que, atualmente,
não mais se encontra em situação de violência e que não se faz necessária a aplicação da
Medida. A coordenadora concorda com Camila sobre a importância de sua declaração por ela
substanciar as denúncias de várias mulheres do grupo sobre as irregularidades no atendimento
na Delegacia das Mulheres.
Camila: Pois é, eu falei que eu vou meter o cacete, eu não quero nem saber, eu vou
mostrar para aquela Delegacia que não é assim que se trata o ser humano. Eu falei
que o cara me atendeu com o maior sarcasmo, eu me senti novamente violentada.
158
Por que eu fui lá fazer denúncia de um crime que foi cometido contra mim e o cara
começou a perguntar se era isso mesmo que eu queria.
Camila diz que apesar de não necessitar neste momento da aplicação de uma Medida
Protetiva, ela não abriu mão da averiguação do crime cometido.
Camila: Eu falei: eu não vou abrir mão da averiguação, eu quero que o inquérito
continue. No final tá lá, ela tá uma pluminha. Na hora meu coração doeu, mas eu
não tenho que ouvir meu coração porque meu coração já me traiu. Senta que lá vem
história. Para nós mulheres, foi um ganho muito grande porque a promotoria me
ouviu..... O que eles querem saber é se teve a medida protetiva. Eu falei que não
porque aqui está escrito que o rapaz só falou que a Delegada só olha casos extremos.
Este posicionamento de Camila na Promotoria é importante por ser uma estratégia visando
conseguir quebrar o ciclo de vulnerabilidade/violência com seu companheiro e também com a
instituição Delegacia de Mulheres. A sua conclusão sobre o ganho deste acontecimento para
as mulheres é uma confirmação da denúncia de uma situação que ocorreu com ela e que faz
eco com o que outras sobreviventes já relataram.
Camila: aí eu perguntei pro assistente da promotora assim: será que depois que ele
me matasse seria um caso extremo? Ela falou não, com certeza que não. Pois é,
então, hoje ele tá tranquilo numa boa, mas na época, o inspetor falou que a Delegada
só estava atendendo caso extremo. Para mim era um caso extremo e eu acho que tá
fazendo uma sindicância. Todas: tomara.
Camila: Deixa eu falar, deixa eu falar, eu meti o cacete. Eu não fui bem atendida, me
senti violentada novamente. Por que eu já tinha sofrido uma violência, cheguei lá e
fui violentada pelo inspetor porque ele me tratou com o maior sarcasmo.
Cíntia: Eles olham para você... Você nunca esteve lá Simone, tomara que nunca
esteja, mas é como se você que é culpada pelo que o cara fez. Só faltou apontar o
dedo.
Susana: porque tem mulher que igual a Lei Maria da Penha tem uma mulher que já
colocou fogo três vezes no carro do marido dela, que ela ameaça o marido, aí eles
falam por que a Maria da Penha não olha isso? (Todas falam juntas).
159
Camila ciente deste ciclo de deslegitimação assume que ao ser questionada “se ela tinha
certeza se era aquilo mesmo que ela queria” titubeou.
Camila: Na hora que a mulher perguntou se era para o inquérito contra ele continuar,
meu coração doeu, mas eu não vou ouvir meu coração. Por que ele já bateu em duas
irmãs dele, ele já me bateu 800 mil vezes e agora, meu coração vai doer? Não, eu
quero que ele pague pelo crime que ele cometeu. Agora ele tá morrendo de medo
porque agora vai ter o inquérito policial mesmo. E eu frisei que quero que continue.
Não por que ele tá bonzinho agora, por que ele vai, ele uma vez debochou comigo:
cadê sua Maria da Penha? (Mulher comenta: eles debocham mesmo). Eu vou
mostrar pra ele que a Maria da Penha tá começando a funcionar.
Após o relato de Camila, Cíntia pede a palavra para contar sobre o que ocorreu com ela em
sua Audiência de Conciliação e a coordenadora diz que também quer saber o que ocorreu com
ela, mas Nina tomou a palavra para contar que estava muito revoltada, que tinha saído de casa
e que acreditava que desta vez era para sempre e que estava precisando extravasar (xingar,
agredir o companheiro, quebrar seu carro). A partir deste comentário de Nina as mulheres
comentam rindo de seu posicionamento e a coordenadora questiona se esta forma de agir vai
fazer com que ela atinja seu objetivo de trazê-lo de volta para ela. Camila e Cíntia a
aconselham.
Cíntia: eu também ficava assim no início querendo que ele batesse o carro com a
mulher dentro, mas quando eu descobri que ele bateu o carro.
Nina: eu quero que ele tenha prejuízo.
Camila: vou te dar um conselho que eu já dei para ela há mais tempo: neutraliza.
Você não tem que sentir nem amor, nem ódio por ele, você não tem que sentir nada.
Retornando ao caso de Cíntia, ela diz como se sentiu no dia da audiência de Conciliação de
seu processo de separação.
A inclusão deste relato também é interessante por focalizar outro momento institucional da
trajetória da mulher sobrevivente à violência de gênero na Rede de Enfrentamento à
Violência: a Audiência de Separação. Um momento, geralmente, posterior ao de registro de
ocorrências ou de representações de queixas-crimes policiais. Este relato também reafirma
discussões realizadas em outras sessões como: o sentimento de desamparo da mulher em uma
situação de confronto jurídico frente ao companheiro e às autoridades; a negação dos
companheiros sobre as acusações de suas ex-companheiras; o impacto da violência sobre os
filhos do casal, a deslegitimação sobre as colocações das mulheres por parte dos agentes da
Rede e a confiança no Grupo. O que particulariza este caso são a denúncia da insuficiência de
recursos humanos da instituição (Defensoria/Poder Judiciário) e a cobrança direta ao papel da
coordenadora do Grupo.
Cíntia: aí ele falou um monte de bosta, inventou um monte de história e aí ela falou
para ele e eu sou calada, virada de lado para ele, nem para o animal eu olhei igual eu
falei com ela: eu não tenho que conversar com esse senhor. A minha conversa é com
as duas. Aí eu peguei e, nossa, Simone ele é nojento!
Simone: agora seja honesta, você acha que o meu papel ia fazer ele parar de ser
nojento?
Cíntia: não.
Simone: o que eu posso fazer, com os meus limites eu faço, mas todo o meu trabalho
é para vocês aparecerem, não é a Simone que tem que aparecer, ou o Espaço...
Cíntia: mas não é isso que a gente queria.
Simone: eu entendi e eu concordo com você, mas nessa hora eu me preocupo porque
nessa hora poderia ter lá o papel, mas eu acho que para dar peso depende de quem
lesse e que escrevesse...
Cíntia: pro homem dá peso.
Simone: que homem?
Cíntia: pro meu ex dá peso.
Simone: ele não ia saber o que escrevi.
Cíntia: mas se ela lesse.
Simone: é eu vou pensar nisso.
Cíntia: ele ia ficar com medo, vocês não entendem o meu ex tem medo da Maria da
Penha, ele morre de medo do que eu vou fazer na Delegacia das Mulheres. Ele tem
medo. Então assim. Esse papel daria a ele, oh! Se eu for mexer com ela eu tenho que
ter cuidado.
Simone: por que você simplesmente não podia ter falado, todos os casos que você
me conta você não podia ter contado lá?
Cíntia: eu falei. Simone: eu sei que é difícil, mas o que vocês têm que entender é que
a palavra de vocês também tem valor.
162
Assim, a participação em um grupo onde a palavra é o foco de atuação, traz uma nova
possibilidade de se posicionar e ser posicionada na Rede e Enfrentamento à Violência.
Camila, inclusive, já fez esta colocação em sessão anterior.
Cíntia: Mas, se você está frequentando um grupo você confia no grupo.
Simone: eu concordo.
Cíntia: e esse grupo não vai servir de peso não é pra ele, é pra gente aqui dentro. Por
que a gente fica tão sozinha, tão solitária, que este grupo é uma família da gente e a
gente fica mal, entendeu, (mais choro). Nessa hora, que eu fui maltratada igual eu
fui. (choro) a minha família, se não fosse a Graça ir lá.
Camila: É bem humilhante mesmo.
Simone: deve ser.
Cíntia: por mais prevenida que eu fui, na hora você não consegue, entendeu, mas se
elas falassem assim... Eu falar assim, eu estou freqüentando o grupo aqui, onde era a
antiga Delegacia de mulheres, o Bem-Me-Quero. Eu tenho provas que ele me
agrediu... Eu falei pra ela: meus filhos estão mal. Eu tô procurando psicólogos pro
meus filhos e eu tô passando pela psicóloga lá do grupo do Bem-Me-Quero, não sei
se vocês conhecem não to nem aí.
Simone: mas tem que falar assim mesmo porque elas não conhecem, exatamente.
Cíntia: aqui atrás, eu tenho provas disso que eu freqüento lá, meus meninos estão
precisando passar por psicólogo, tudo por causa desse senhor.
Simone: eu acho que você respondeu muito bem. Chorar não tem nada a ver, não.
Chorar é normal.
Cíntia: mas Simone, eu me senti sozinha.
Simone: eu acho assim que é um desamparo normal.
Cíntia: por mais que você prepara.
Cíntia conta o desenrolar de seu processo de enfrentamento à violência e de garantia dos seus
direitos e de seus filhos. No dia e horário acordado, em juízo, para o pagamento da primeira
pensão ele não compareceu. Quando o filho conseguiu falar com ele, o pai disse que tinha
esquecido. Mas como diz Cíntia o “show não pode parar” e no final da noite ele compareceu
na casa dela acompanhado por policiais militares alegando que ela estava se negando a
receber a pensão para prejudicá-lo. O que chama a atenção neste caso é a utilização do aparato
policial por Cíntia e pelo seu companheiro e o posicionamento dos policiais na situação.
Cíntia: boa noite senhores. É que ele está acusando a senhora de não querer receber
a pensão e que a senhora está querendo acusar ele. Aí eu fui e falei para ele: precisa
de dois seguranças para pagar metade do salário? (Falas minhas e delas). Mas você
não acha que ele está bem atrasado não porque o Juiz estipulou seis horas. Aí o
policial foi e olhou e parou e ficou olhando para ele e que a senhora tinha que abrir
uma conta, mas eu não abri porque esse senhor sujou o meu nome e nisto aí a gente
163
tá mexendo para não precisar que ele venha até a minha porta. Aí o policial ficou lá
do lado. Aí eu perguntei o que eu tenho que assinar aí ele começou a conversar
bosta. Aí eu virei para ele e falei assim: nossa moço até no final você é barraqueiro.
E eu quero pedir os senhores para vigiar a minha porta, pelo menos passar de vez em
quando porque esse senhor não para de passar na minha porta. Eu quero medida para
ele parar de passar aqui, para ele me deixar em paz. Era para ele chegar com esse
dinheiro aqui até seis e meia e era para estar dentro do horário. Eu estava tomando
banho que eu sou uma trabalhadora, eu sou honesta.
Simone: aí respondeu bem.
Cíntia: e ele está incomodando todo mundo aqui da rua, aí o policial olhou pra todo
lado e aí o Policial falou você nunca mais passar aqui nessa porta e eu quero isso
mesmo. Eu falei muito obrigada e boa noite e entrei pra dentro aí a minha irmã bateu
palmas.
A coordenadora elogia pelo posicionamento. Susana concorda, mas reafirma que todo esse
show intimida.
Simone: viu como você sabe falar bem.
Susana: ela soube falar na casa dela, mas na hora eu tenho medo de falar bobagem
também. Isto intimida.
Simone: Eu entendo, eu não estava lá na hora, mas eu não creio que ela duvidou da
sua palavra. Eu sei que você se sentiu ruim porque justiça quer prova. Cíntia: ela
queria prova e a justiça quer prova nisso aí e eu não tinha... Simone: mas aí tem uma
coisa. Camila: tem o NUDEM. Simone: mas ela já estava no Nudem, você já é do
Nudem a questão toda é a seguinte: eu vou te falar uma coisa, eu sei que você não
gosta que eu fale isso, mas a Camila já te falou uma vez e eu vou falar porque já foi
dito. Como é que prova a violência? Boletim de ocorrência. A prova que você foi
violentada, no final da história não vai atrapalhar a sua vida, mas...
Cíntia: eu fiz errado.
Simone: O Grupo seria pra quê? Pra provar que você está em tratamento. O que é
muito bom para você é igual a Graça está em tratamento e tal. Eu vou repensar essa
questão de como apresentar a participação de vocês no Grupo para o NUDEM.
Com a aproximação do fim da sessão Cíntia retoma sua discussão sobre a importância do
Grupo.
A princípio, o que se pode compreender da colocação de Camila e Cíntia é que elas querem
tanto o atendimento em grupo quanto o Espaço seja legitimado junto às outras instituições da
Rede. Em complemento, elas seriam legitimadas juntamente com a instituição que as acolheu.
Para além, Cíntia faz questão de frisar como fez bem para ela e outras a participação no
Grupo.
5 DISCUSSÃO
Através da análise dos relatos das sobreviventes à violência de gênero (participantes do Grupo
que aceitou participar desta pesquisa) de suas trajetórias pelas instituições da Rede de
Enfrentamento à Violência da cidade Contagem/MG pôde-se observar:
a malha discursiva que legitima (ou não) as denúncias de violência de gênero e, por
165
conseguinte, a efetividade do enfrentamento a esta violência por parte das sobreviventes e das
instituições;
o jogo de poder que legitima a fala e os posicionamentos destas sobreviventes a partir das
críticas ao atendimento recebido e
Por fim, através deste recorte na história deste Grupo, pôde-se analisar :
a matriz hegemônica de gênero (cunhada por nós como Cartilha/Muro) através dos muitos
questionamentos sobre sua manutenção e legitimidade;
as dificuldades para a transformação das relações de gênero na vida das sobreviventes;
Vale ressaltar que nesta pesquisa não se tem como objetivo buscar a gênese da violência de
gênero a partir da análise de casos individuais. O esforço de análise se volta para como o
Grupo deste estudo se desenvolve como um serviço ofertado por determinada instituição
situada em determinada Rede de Enfrentamento à Violência e, o mais importante, como a
participação neste serviço efetiva e diretamente contribui para o enfrentamento à violência de
gênero.
166
5.1 O MURO / A CARTILHA/ O SPA
Para a análise dos relatos grupais sobre a violência de gênero ocorrida e sobre a trajetória de
enfrentamento a este tipo de violência destaquei para além dos posicionamentos dos homens e
das mulheres o de seus filhos, suas famílias e dos representantes que falam pelas instituições.
Considero que estes posicionamentos podem denunciar a malha discursiva hegemônica que se
tenta escamotear, mas que ecoa nas falas, posicionamentos, decisões e sentimentos dos
homens e das mulheres em situação de violência. Sustento que a reiteração e continuidade do
ciclo, bem como a decisão de sair dele e as dificuldades em colocar em prática esta decisão
devem ser analisadas à luz deste amplo espectro social.
A escolha de utilizar o termo sobrevivente (ALMEIDA, 1998) para definir a mulher no ciclo
de violência objetivou dar visibilidade à carga opressiva deste processo de (re)posicionamento
que margeia todo o enfrentamento à violência de gênero por parte das sobreviventes. O
desabafo de Kenia (sessão de 26 de agosto de 2009) ao dizer que “É tanta pressão, tanta
pressão que prefiro morrer!” dá a dimensão da situação em que estas sobreviventes se
encontram. O relato de Cíntia sobre as reações de sua família (principalmente mãe e filhos) às
suas decisões visando encerrar o ciclo de violência e a defender seus direitos civis e os de seus
filhos (sessão de 22 de julho de 2009) ilustra como algumas instituições como a família,
juntamente com os ex-companheiros, se posicionam contra o enfrentamento à violência.
Apesar da firme decisão de dissolução do casamento, de ter saído da casa própria onde residia
com o companheiro, de não estar recebendo pensão para os filhos e de estar desempregada e
participando ativamente do Grupo, Cíntia demorou meses para se decidir a dar entrada ao
processo de separação, divisão de bens e guarda e pensão dos filhos. A mãe de Cíntia temia
pela reação do ex-companheiro da filha em relação a seus outros filhos e, apesar das
dificuldades financeiras e do abalo emocional de Cíntia, ela sempre lhe recomendava esperar
mais um pouco. Cíntia teve que ir contra a mãe para abrir o processo. Ela relata emocionada
que através da participação no Grupo conseguiu “vencer” o ciclo de violência com o ex-
companheiro e também com a mãe.
169
possibilitador de elaboração de estratégias eficazes para coibir a violência de gênero. Percebe-
se este processo, por exemplo, na discrepância entre os posicionamentos dos familiares e
conhecidos das participantes frente às suas decisões de enfrentamento à violência e o
encontrado pelas mulheres do Grupo durante as sessões. Segundo o relato das participantes a
postura frequente às suas iniciativas de enfrentamento à violência é de aparente falta de apoio
no primeiro caso, em contraponto à aceitação, acolhida e disposição de ajudar das outras
participantes do Grupo. Por isso, quando Cíntia conseguiu dizer não à sua mãe depois de,
praticamente um ano, sem tomar a iniciativa de pedir a separação e a pensão para seus filhos,
houve um regozijo das mulheres durante seu relato (expresso pelo estouro de comentários
quando ela disse “chega mãe”). O mesmo ocorrendo, com o posicionamento de Kenia frente
ao conselho do pai para que ela fosse novamente morar com o ex-companheiro (sessão de 26
de agosto de 2009).
Outro aspecto do Muro que ficou flagrante nos relatos das mulheres foi a situação financeira
como um dos artifícios apropriados na relação violenta para sujeitar as mulheres à
manutenção da relação e/ou à subserviência. Assim, deve-se considerar que a questão da
classe/renda perpassa o enfrentamento ao ciclo da violência agregando à discussão estas
categorias. Como pode se observar na tabela “01 Dados sócio-econômicos das mulheres
sobreviventes à violência de gênero” (ANEXO 01) a maioria das mulheres não tem renda própria,
sendo que as que têm trabalho não têm registro em carteira ou não recebem uma quantia que
permita abarcar todos os gastos familiares. Algumas, inclusive, no momento da pesquisa, não
tinham moradia própria ou tinham as casas ocupadas pelos ex-parceiros. Devido a isto
compreende-se a preocupação e a importância dada à celeridade dos processos de separação,
guarda e pensão dos filhos por parte das mulheres participantes do Grupo, como Camila,
Cíntia, Fernanda e Susana e à própria dificuldade de se manterem financeiramente após uma
eventual separação, como confidenciado por Janaína (sessão de 22 de julho de 2009). Nos
relatos há uma convergência sobre a repetição de casos onde os processos se transformam em
disputas financeiras entre ex-companheiros, indiferente dos interesses dos filhos (no caso de
pensão alimentícia, guarda e reconhecimento de paternidade) e da ex-companheira (nos casos
de separação e divisão de bens).
Nos relatos das participantes do Grupo percebe-se que, de forma geral, a família, os filhos e a
sociedade se ressentem das mudanças que envolvem a performatividade de gênero, definida
de acordo com a matriz heteronormativa do papel de mulher/mãe/do lar. A subversão desta
trilogia envolve ir contra normas escamoteadas e reiteradas no sentido da manutenção do
status quo. Quando uma mulher, por algum motivo, se esquiva da manutenção do perfil
performático determinado socialmente, a família se ressente rapidamente. Para dar
visibilidade e denunciar de forma bem humorada a manutenção da organização e harmonia de
uma zona de conforto doméstica voltada para os homens e mantida através da execução
obrigatória dos afazeres domésticos pelas mulheres, nomeamos esta situação de spa. O spa
pode ser definido como uma ilustração da manutenção da subserviência servil doméstica que
é imposta às mulheres em benefício do conforto e bem estar dos homens (como discutido na
sessão de 26 de agosto de 2009 sobre o caso de Elis). Vinculada a esta imagem dá-se a
discussão sobre o motivo pelo qual uma mulher que está no período de separação tem que
continuar exercendo as atividades domésticas de cuidado de seu ex-companheiro. Nesta
pesquisa, a partir das discussões no Grupo, compreendemos por período de separação o
período em que as sobreviventes deixando ou não de conviver na mesma casa com os ex-
companheiros, permanecem no ciclo de violência por pendências jurídicas, como guarda e
171
pensão de filhos, separação de corpos, divórcio e divisão de bens. A tensão referente a este
tema é recorrentemente denunciada, causando grande alvoroço nas participantes durante as
sessões grupais. Outro debate muito presente é sobre os cuidados com os filhos e os impactos
da situação de violência sobre eles, o que também aponta para a necessidade de manutenção
do lugar da mulher como mãe/cuidadora do lar. Considero que estes são temas importantes
para que se compreenda a dinâmica da manutenção da violência de gênero e que o fato de eles
serem sempre retornados se dá porque a partir deles se podem analisar as dificuldades das
sobreviventes em enfrentar a violência de gênero.
No perfil performático de gênero para o sexo feminino ditado pela matriz heteronormativa a
importância da maternidade, do casamento e do amor romântico (preferencialmente único e
fiel) é decisiva. Apesar de se poder considerar que a sociedade vem se sensibilizando com a
questão do enfrentamento à violência doméstica e familiar (o que se percebe na legislação e
na instalação de instituições voltadas para esta problemática) e com a discussão sobre as
performances dos papéis sexuais não se pode dizer que estas discussões estejam
emparelhadas. Geralmente, a mulher sobrevivente à violência de gênero é reforçada em seu
processo de enfrentamento ao ciclo de violência, desde que não subverta as normas de
heteronormatividade, maternidade, fidelidade e romantismo, o que em parte facilita o
entendimento da ambivalência de sentimentos e posicionamentos não só da mulher, mas da
sociedade (instituições) no processo de enfrentamento à violência. Parece que a regra é assim:
mude, mas sem mudar muito, subverta, mas não tudo. Considero que colocar em pauta o
enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a mulher sem se atentar para a
constituição da subjetividade feminina através deste processo normativo e performático é
reforçar a invisibilidade do Muro que o sombreia.
Assim, além da imagem do Muro utilizamos no Grupo o termo Cartilha para nos referir a
este conjunto de ensinamentos sobre a trilogia casamento/filho/afazeres do lar e afins, ou
seja, sobre o que é ser e como ser mulher em nossa sociedade. A partir da escuta das histórias
afetivas (ANEXO 02), familiares e de trajetória de sobreviventes à violência de gênero
conseguimos em grupo perceber certa constância em algumas colocações e em alguns
princípios norteadores do lugar das mulheres na sociedade. Como a figura do Muro foi e está
sendo delimitada durante o processo grupal, a imagem da Cartilha também segue este
caminho. Ela é como um livrinho invisível que é recitado às mulheres desde seu nascimento,
172
delimitando seu lugar na família durante a infância, a melhor forma de comportar-se durante
a infância e adolescência, principalmente, em relação aos meninos e segue apresentando as
regras do namoro, do noivado e do matrimônio e maternidade. No Grupo, as próprias
participantes apontam a presença da Cartilha quando escutam a história das outras. “Eu me
casei virgem”, “ele foi meu primeiro em tudo”, “meu pai falou que eu não ia casar porque
não sabia fazer bolo”, “Lá em casa tinha que namorar um ano, noivar seis meses e casar”,
“eu nunca o traí”, “eu casei para ser para sempre”, “eu o esperava com a casa limpa e com
um jarrinho de flores em cima da geladeira que ele nunca percebia” frases seguidas,
geralmente, de um estranhamento, pois, apesar de terem seguido a “Cartilha” direitinho, a
violência ocorria/ocorre no casamento. Era como se a boa execução das regras não tivesse
garantido os sucessos do matrimônio e delas como mulheres. Uma mulher chegou a afirmar:
“Eu fiz tudo direitinho, mas não deu certo” 22. Desta forma, no Grupo, estas colocações não
são utilizadas para afirmar o lugar de vítimas, mas para denunciar os efeitos da matriz
heteronormativa. Como exemplo, esta imagem foi evocada para responder à pergunta de
Susana (sessão de 19 de agosto de 2009) sobre o porquê do comportamento diferenciado do
filho entre ela e o pai apesar de ela ser muito solícita com ele.
Susana: é rapaz, tem 21 anos, porque homem defende o pai. Eles não vêem igual
domingo, tava lá com a namorada. Fiz uma lasanha beleza pra eles. Minha menina
também tava com o namorado. Tinha uma sobremesa bacana, mas eles não vêem
isso, sabe o que eles enxergam principalmente rapaz, sabe o quê que eles enxergam?
Eles enxergam que o pai está dentro da casa, que o papai assiste ao jogo.
Simone: o pai é legal.
Susana: não é? O pai é legal. (Mulheres concordam) A mãe?
Susana: Porque que é assim Simone?
Simone: porque é assim Camila?
Camila: por causa da cartilha... Você lembra-se da cartilha? (Falas)
Simone: você não ta fazendo nada além da sua obrigação e o pai tá fazendo uma
coisa.
Camila: uma dádiva divina.
Por fim, as participantes do Grupo utilizam como exemplos para dar visibilidade ao discurso
da matriz hegemônica os variados meios de comunicação (programas de TV, rádio, filmes,
comerciais e novelas) e a instituição Igreja. Em relação aos meios de comunicação eles são
discutidos a partir da denúncia de como o lugar da mulher e do homem é diferenciado na
sociedade (situação muito bem apresentada durante a discussão sobre a diferença de
apropriação dos corpos masculinos e femininos na sessão de 19 de agosto de 2009). Neste
contexto, os meios de comunicação poderiam ser compreendidos no processo reiterativo
performático como os canais que fazem ecoar a normatização na sociedade. Esta discussão, a
partir do entendimento desta função dos meios de comunicação por parte das mulheres, pode
se considerada outra forma/ferramenta para questionar, denunciar e desnaturalizar a matriz
hegemônica.
O discurso da Igreja, por sua vez, é utilizado como apoio espiritual (sessão de 19 de agosto
de 2009) e como um conjunto de preceitos sobre o casamento e o lugar da mulher na
sociedade: casar-se apenas uma vez e/ou não ter outro relacionamento caso venha a separar-
se ou ficar viúva (sessão de 19 de agosto de 2009). No processo de enfrentamento à violência
frente às sombras do Muro, elas não negam a importância do apoio espiritual, mas
questionam os preceitos que atuam para a manutenção de relações conflituosas e violentas.
Assim, percebe-se que a dinâmica grupal permite questionar preceitos e, ao mesmo tempo,
apropriar-se do que pode auxiliar no enfrentamento à violência. Este aspecto é indicativo da
pertinência e criatividade grupal na negociação dos sentidos da violência e na elaboração de
estratégias de enfrentamento.
Pelo exposto, observa-se que a participação no Grupo possibilita um campo aberto para que as
participantes discutam e questionem as normas da matriz heteronormativa e, a partir disto,
durante o processo de participação no Grupo, busquem atuar sobre o ciclo de violência através
de mudanças em suas relações familiares / afetivas. Também considero que a construção
175
coletiva de imagens/figuras (Muro, Cartilha e SPA) para dar visibilidade e denunciar as
normas da matriz é um importante resultado possibilitado pela dinâmica grupal por
instrumentalizar a discussão a partir da criação de um ECRO grupal potencializador de
mudanças.
“A mulher acaba se sentindo usada por isso, porque, querendo ou não, não
é o nosso corpo que está sendo exposto lá, mas aquilo ali não deixa de ser a
gente e eles sabem disso” (Nina).
“Eu cheguei aqui a ponto de matar e morrer e tudo, estava mau mesmo, essa mulher veio
aqui regaçada lá de trás, mas agora esta aqui inteira, tem uma coisa por trás. E o que é?
Uma coisa boa, uma coisa ótima. Eu quero que o juiz saiba que eu aprendi a me cuidar”
(Cíntia).
A partir dos relatos das participantes desta pesquisa sobre os episódios de violência interessa-
nos analisar os sentidos da violência para as mulheres compreendendo que há uma relação
entre estes e o processo de subjetivação destas mulheres e seus posicionamentos nos ciclos de
violência e nos ciclos de enfrentamento à violência de gênero. Para isto, adotamos a definição
de sentido, também apresentada por Azerêdo (2007), segundo Vigotsky (1999), que diferencia
sentido de significado, seguindo Paulhan.
Nas trajetórias cíclicas de violência cada fase tem influências sobre a subjetividade da mulher
e sobre o sentido que a violência pode assumir para ela. Um período que merece atenção para
que se possam compreender as dificuldades de enfrentamento à violência é a lua-de-mel,
característica após um momento de violência e que geralmente desarma as mulheres. Apesar
de as mulheres do Grupo geralmente estarem em um estado constante de tensão, com raros
ou cada vez mais curtos momentos de lua de mel, é interessante o impacto deste período em
seus relatos. Para exemplificar podemos citar o relato de Fabíola (sessão de 12 de agosto de
2009) sobre como ficou sem reação quando, após um período de tensão (onde ela havia
tomado várias decisões), se instalou a lua de mel em sua relação.
Fabíola: O meu questionamento foi esse, Simone: por que eu aguentei esta situação
tanto tempo, para quê? Estava fácil, agora eu vejo com clareza. Era só eu dar um
basta e não querer. Por que eu não consegui?
Simone: dar um basta quer dizer o que?
Fabíola: quando eu cheguei nessa situação de tomar coragem vou pedir para sair da
escola vou entrar com o processo de separação e vou retomar o meu jornal. Eu ia
fazer estas três atitudes eu vou chutar o pé da barraca e não quero nem saber. Aí
quando eu chego lá na escola começou a me desarmar porque duas semanas antes
ele parou de beber, começou a ficar mais em casa, aí ficou aquela calmaria, sem
brigas, aí eu comecei a perder as forças...
Simone: Mas ele começou a beber de novo ou parou até agora?
Fabíola: ele parou. Aí eu comecei a perder as forças porque antes eu tinha um
motivo.
Percebe-se como é difícil sustentar as decisões frente à família, aos filhos, à sociedade e a si
mesma quando ocorre uma mudança (aparente ou temporária?) no comportamento do
companheiro. Desta forma, a questão da manutenção da decisão é muito importante. Decidir
é apenas um ponto inicial, manter as decisões é o nó da situação. Um dos momentos que, às
177
vezes, que pode colocar em xeque as decisões das sobreviventes é o da lua-de-mel. Nestes
casos uma intervenção somente poderia ser favorável para o fim de um ciclo se sustentada
por uma decisão por parte dos dois de enfrentar a violência como responsabilidade conjunta e
como uma situação que exige mudanças e adaptações de ambos. Uma lua-de-mel que se
sustenta em aspectos como o medo da perda da relação ou de incomodar o outro, não
desarticula os mecanismos de ocorrência de uma nova cena de violência. As consequências
deste período aparente de tranquilidade são marcantes. Em seu relato (sessão de 12 de agosto
de 2009) Fabíola descreve como se sentiu:
Simone: mas deve ter outra justificativa para não ter separado.
Fabíola: é feliz eu não estou não. Mas eu estou nessa. Aí, agora, eu sempre tenho
uma desculpa.
Simone: ela tem uma sequência de desculpa
Fabíola: eu tenho uma sequência de desculpas e no final das contas eu nem sei o que
eu fiz mais. Aí os meus meninos esta tudo encaminhado profissionalmente. A minha
filha tem o emprego dela lá na firma grande o meu menino iniciou o curso dele no
SENAI aí a empresa contratou e tal aí o caçula de 16 anos foi encaminhado para o
estágio esta trabalhando. E aí gente e agora?
Camila: e agora ta tudo bom que coisa chata. (Risos)
Fabíola: ele parou de beber, financeiramente eu to ótima estou até viajando. Aí ta
tudo bem. Camila: risos
Simone: aí ta tudo bem
Fabíola: ta tudo bem entre aspas. Aí que começa a confusão eu vou mexer em uma
coisa que esta aparentemente arrumada.
No relato da sessão do dia 12 de agosto de 2009, Camila compara a situação vivida por
Fabíola a um câncer, alertando que, por mais que ela quisesse negar sua existência, ela teria
que iniciar o tratamento mais cedo ou mais tarde. Continuando, Fabíola conclui que nesta
história o que acontece é que ela sempre está perdendo e que a reação imediata foi a de ter
sentido raiva de si mesma por não ter conseguido colocar, novamente, em prática suas
decisões. Percebe-se como é impactante o período de lua-de-mel e como a sobrevivente é
posicionada e se posiciona como a responsável única pelo sucesso ou fracasso da trajetória de
enfrentamento à violência. Considero que as sugestões de estratégias de enfrentamento que
não se atentem para esta discussão podem correr o risco de (re)posicionar a sobrevivente
como a única responsável pelos seus fracassos e dificuldades podendo iniciar um episódio de
deslegitimação do ciclo de enfrentamento à violência.
É interessante também observar no relato de Fabíola a utilização dos termos desculpas e entre
aspas para descrever sua situação. No Grupo chamamos de desculpas as explicações ou
situações que são apresentadas ou citadas como motivos para a “opção” de se manter a
relação violenta após a decisão de encerrá-la ou apesar do desejo de fazê-lo, são desculpas
178
das participantes para si, para as outras, para a coordenadora, para a sociedade e a família
denunciadas durante o processo grupal. Espelhar estas falas como desculpas é sinalizar para a
mulher que ela está criando subterfúgios para voltar atrás em suas decisões, sejam quais
forem. Esses “subterfúgios” são analisados a partir da perspectiva das sombras do Muro e são
apontados para que elas possam percebê-los e enfrentá-los, evitando a naturalização e
banalização do processo de “desculpar-se/culpar-se” por não conseguir sair do ciclo.
Camila é uma participante do Grupo que se apropriou do sentido da violência como um ciclo.
Ela consegue perceber claramente todo o processo tanto no seu caso como no de outras
participantes. Talvez este aspecto tenha siso possibilitado por sua permanência ativa no grupo,
um diferencial que pode ter permitido a ela, apesar da dificuldade em encerrar os ciclos, agir
nos momentos de tensão e lua-de-mel de forma diferenciada, conseguindo diminuir e espaçar
os momentos de violência (sessão de 12 de agosto de 2009). Como motivo para o fim de sua
relação com o último ex-namorado, ela apresentou o fato de ter percebido a tensão constante
na relação e ter previsto um possível episódio de violência.
181
referem à adoção de estratégias que as auxiliaram a atuar sobre os pontos percebidos como
mais difíceis de superar durante o ciclo de enfrentamento. As dificuldades apresentadas se
referem a aspectos familiares, sentimentais, afetivos, financeiros, sociais e relativos ao
próprio companheiro. A oportunidade de avaliar com outras mulheres na mesma situação as
suas decisões e estratégias é um dos aspectos diferenciadores possibilitados pela dinâmica
grupal. Observamos que isto potencializa o processo de tomada de decisões das mulheres,
auxilia nos momentos de deslegitimação do processo, enriquece o processo de construção de
outras estratégias e o ECRO grupal, incentiva às outras participantes a tomarem ou manterem
decisões e estratégias e legitima o ciclo de enfrentamento à violência. Além disto, a partir
dos relatos das situações de violência são elaboradas sugestões para a quebra do ciclo de
violência por parte das outras participantes juntamente com a coordenação. Este processo se
baseia no ECRO grupal, nas estratégias já analisadas para casos similares, na capacidade
criativa do Grupo, sendo a tarefa grupal, justamente, aprender a pensar no Grupo a partir da
problemática grupal utilizando-se dos esquemas referenciais de cada participante e do Grupo.
(PICHON-RIVIÈRE, 1994). A dinâmica de um Grupo Operativo incita à criatividade no
pensar com o abandono de estereotipias no fazer e no criar. Utilizar-se desta proposta no
processo de enfrentamento à violência é o desafio do Grupo analisado nesta pesquisa.
Compreendemos que as participantes, na verdade, deverão decidir sozinhas se e como
encerrarão seus ciclos de violência, mas podendo utilizar-se do aprendizado no Grupo para
este propósito. O aspecto criativo definidor da metodologia do Grupo Operativo reafirma a
proposta de elaboração e utilização de estratégias variadas como forma de enfrentar a
violência e o lugar de destaque da participação no Grupo como uma estratégia de
publicização que as apóia neste processo de (re)criar e (re)avaliar suas trajetórias. Assim,
neste Grupo a tarefa é realizada a partir do processo de negociação das estratégias permitindo
que o Grupo adquira legitimidade e eficiência para as participantes. Durante o processo de
negociação das estratégias nas sessões grupais percebem-se estes movimentos a partir da
convergência e divergência entre as participantes sobre os posicionamentos adotados pelas
participantes e seus parceiros durante o relato de estratégias privadas e em relação ao
posicionamento de terceiros no caso de estratégias de publicização durante o ciclo de
enfrentamento à violência. Em um Grupo Operativo, estes momentos de
divergência/convergência podem ser compreendidos pela heterogeneidade nos esquemas
referencias de cada participante, sendo este aspecto apontado por Pichon-Rivière (1994)
como importante para a dinâmica grupal por potencializar a realização da tarefa.
182
A partir dos relatos analisados temos vários exemplos deste tensionamento necessário para a
negociação. Na sessão de 22 de julho de 2009 observamos como a partir do questionamento
de Camila sobre o atendimento recebido no Espaço Bem-Me-Quero inicia-se uma sequência
de questionamentos sobre a estratégia de publicização de buscar auxílio da Polícia
Militar/Civil. Este movimento grupal foi muito interessante, pois se as participantes não
convergiram com a colocação de Camila sobre o posicionamento do Espaço Bem-Me-Quero,
elas apresentaram relatos que convergiram com a denúncia de Camila sobre a deslegitimação
em suas trajetórias de sobreviventes à violência de gênero. Pode-se observar que as
participantes se utilizaram das colocações de Camila para apresentar situações convergentes
em suas próprias trajetórias (como realizado por Fernanda e Janaína na referida sessão).
Assim, apesar do protesto de Camila ter se dirigido ao Espaço Bem-Me-Quero, a discussão
voltou-se para o desrespeito aos direitos das sobreviventes à violência de gênero por seus
companheiros e pela Polícia Militar, bem como para a dificuldade de ser aceita e
compreendida pelos familiares durante o período de separação. No caso do relato de Janaína
sobre a adoção da estratégia de publicização (chamar a Polícia Militar) é possível perceber o
movimento de apropriação dos relatos pelas participantes durante a discussão sobre os
posicionamentos dos agentes policiais, dela e de seu companheiro. As participantes
convergiram sobre a importância da adoção da estratégia de publicização, da inadequação do
comportamento dos agentes policiais e do companheiro de Janaína, mas divergiram do
posicionamento de Janaína em todo este episódio violento.
183
No caso de Camila, ela tenta demonstrar como sua situação particular de deslegitimação
durante a trajetória de enfrentamento à violência poderia ser utilizada como uma denúncia
visando à mudança deste fenômeno social. O deslocamento entre o eu e o nós aparece nas
estratégias apresentadas por ela (sessão de 12 de agosto de 2009); receber uma atenção
especial da instituição e apresentar seu depoimento para auxiliar no enfrentamento à violência
na sociedade reafirma a apropriação do sentido da violência de gênero como fenômeno a ser
enfrentado no coletivo, através da publicização. Observa-se, assim, a convergência entre o
ECRO grupal e o posicionamento ativo de Camila.
No caso de Cíntia, ela apresenta como estratégia para se contrapor à deslegitimação em seu
ciclo de enfrentamento à violência a visibilidade do Grupo como local privilegiado na Rede
de Enfrentamento à Violência. Esta colocação delimita o Grupo como legitimador das
trajetórias destas sobreviventes na Rede de Enfrentamento, o que justifica a solicitação de
Cíntia de que uma declaração de sua participação no Grupo faria diferença no posicionamento
de seu ex-companheiro e das servidoras na Audiência de Conciliação. Esta solicitação já foi
apresentada por outras participantes do Grupo, o que reafirma o local privilegiado do Grupo
como legitimador na trajetória destas sobreviventes à violência de gênero.
184
agosto de 2009, 12 de agosto de 2009 ,19 de agosto de 2009 e 26 de agosto de 2009). Entre os
relatos sobre o apoio de amigas chama a atenção a estratégia de Cíntia de ir acompanhada por
Graça à Audiência de Conciliação e o apoio recebido por elas de Camila neste dia tumultuado
(sessões dias 19 e 26 de agosto de 2009). Também é interessante observar o apoio que
Fernanda recebeu de Graça (sessão dia 22 de julho de 2009), comprando roupas dela para
ajudá-la financeiramente. Para além, o próprio convite de Elis a Nina para participar do Grupo
e desta para Sâmia (sessão dia 22 de julho de 2009) podem ser analisados nesta linha de
raciocínio como também indicativos do Grupo como um local reconhecido pelas participantes
como legítimo no processo de enfrentamento à violência.
Entre as estratégias privadas destaca-se a adotada por Fabíola (sessão dia 12 de agosto de
2009) de “negociar consigo” mesma, bem como a de Fernanda de “se posicionar” (sessão do
dia 22 de julho de 2009). Podemos considerar estas atitudes como estratégias privadas de
enfrentamento à violência por serem empregadas a partir do entendimento da mulher de que
assim ela pode barrar ou coibir novas cenas de violência. Negociar consigo é uma estratégia
por possibilitar que a mulher não atue no impulso, mas analisando e refletindo sobre a relação
e as circunstâncias e tomando decisões a partir da reflexão sobre a situação de seu ciclo de
violência. A aposta no posicionamento também é interessante visto que assim a mulher se
justifica em sua trajetória por si mesma e a partir de suas decisões. Consideramos ser esta, na
verdade, uma estratégia muito importante e necessária durante o processo de enfrentamento à
violência, pois, como ocorreu no caso de Janaína (sessão de 22 de julho de 2009), a adoção de
uma estratégia de publicização pode ser esvaziada se a sobrevivente não se posiciona
legitimando sua decisão frente às tentativas de deslegitimação de terceiros. A pergunta para
qualquer estratégia apresentada é: ela diminuiu de alguma forma o sofrimento e a violência na
relação? Este é um medidor passível e coerente com a tarefa do grupo. Como resume uma
participante em sessão não analisada nesta pesquisa: “Essa estratégia que eu inventei agora,
está me deixando melhor? Está ótimo. Se não está, eu vou mudar de estratégia”. Esse
exercício de verificação é facilitado e compartilhado no Grupo com outras sobreviventes à
violência de gênero legitimando todo o processo.
185
quais sobreviveu o que ela conseguiu melhor se posicionar foi justamente naquele onde
conseguiu manejar a situação. Cabe analisar os posicionamentos adotados a partir destas
propostas. No caso da Rede, ela se propõe a enfrentar a violência, um posicionamento
pretensamente ativo de confrontas as situações de violência. Sobre os posicionamentos de
negociar e manejar é preciso considerar que quando uma mulher negocia com seus parceiros,
com as instituições da Rede e com a sociedade estratégias para o fim da violência, nestes
casos, elas são as interlocutoras posicionadas ora como vítimas ora como sujeitos
responsáveis pelo fim da violência, mas sempre frente a outros interlocutores(as) que detêm,
na maioria dos casos, o poder (escamoteado ou legitimado) de definição sobre as decisões das
sobreviventes. Porém para que se ocorra uma negociação com legitimidade democrática parte-
se do pressuposto de igualdade de direitos e deveres entre os interlocutores(as). Mas segundo
Butler (2003)
Consideramos que este questionamento deve ser guia para análise de qualquer proposta de
enfrentamento à violência de gênero visto ser esta violência sustentada justamente na
desigualdade de gênero/sexo. O que ocorre nestas condições, caso não se atente para esta
desigualdade fundante, é uma negociação entre interlocutores(as) legitimados(as) em posições
diferenciadas de poder a partir das normas mantenedoras da matriz heteronormativa. Desta
forma, apesar da ocorrência de um ‘diálogo’, há uma diferença normativa de antemão que
influencia/define o “poder de barganha” e os ganhos/mudanças que se pode atingir. A
proposta de ‘manejar’ uma relação violenta também aposta em uma manipulação deste poder
legitimador onde a mulher, não podendo alterar definitivamente os acontecimentos,
administra-os da melhor forma possível, segundo o que lhe é possibilitado/permitido. Assim,
manejar uma relação de violência seria como tentar sobreviver enquanto se administram as
variáveis internas da situação. A pergunta é: através do manejo e da negociação as mulheres
sobreviventes conseguem sair do ciclo de violência? Estar em uma relação de manejo e de
negociação possibilita alternativas para a violência? É possível uma negociação e um manejo
que legitimem a mulher em sua posição de enfrentamento à violência? O que se observa é que
quando uma mulher decide encerrar uma relação violenta inicia-se um processo de
negociação onde as perdas e os ganhos gravitam, geralmente, entre o afetivo e o financeiro. A
186
hipótese de que se percam em ambos os aspectos (com o fim da relação afetiva e com a não
garantia dos direitos civis) bloqueia/retarda a decisão de muitas mulheres de sair de uma
relação violenta, como é apresentado por todas as participantes desta pesquisa em maior ou
menor grau. Tal fato indica, assim, que se deve problematizar a partir de qual proposta estão
sendo guiadas a elaboração e a aplicação das estratégias institucional/individual para não se
incorrer no risco de apenas manejar ou negociar a violência de gênero.
Podemos concluir que o processo de negociação das estratégias no Grupo reafirma o sentido
da violência como cultural e social e seu enfrentamento balizado principalmente por
estratégias de publicização. Mesmo nos casos onde se afirma a importância do processo
terapêutico para as mulheres e seus companheiros remete-se a responsabilidade por estes
atendimentos às políticas públicas através de suas instituições. Cabe perguntar se a
reivindicação de Camila (repetida exaustivamente) de que a Lei Maria da Penha seja
cumprida, aliada à possibilidade de atendimento psicológico para as mulheres sobreviventes à
violência de gênero seria suficiente para o enfrentamento à violência. E ainda, se estes
mecanismos já estão legitimados na Rede de Enfrentamento, por que ela ainda emperra?
Estariam as instituições e a sociedade se posicionando de forma a enfrentar a violência ou de
forma a negociar para que ela permaneça com outra roupagem? É possível problematizar o
enfrentamento à violência de gênero sem questionar as normas que o sustentam?
Pelos relatos (Janaína, Fernanda e Camila - sessão dia 22 de julho de 2009 e Elis - sessão de
19 de agosto de 2009) observa-se que, após a dificuldade inicial de se decidir por adotar a
estratégia de publicização de acionar a Polícia Militar (PM), a trajetória da mulher
sobrevivente à violência de gênero desenvolve-se numa sequência de momentos decisivos
para a (des)legitimação ciclo de enfrentamento à violência, quais sejam:
188
desqualifique o flagrante. Na pior das hipóteses, os agentes policiais não comparecem como
relatado por Elis e Janaína nas sessões de 22 de julho de 2009 e 19 de agosto de 2009.
189
determinados pela Lei e pela missão institucional da Polícia Civil. Como nos exemplos
relatados e criticados na sessão do dia 12 de agosto de 2009 por Camila e por Janaína.
Desta forma, a partir destes relatos pode-se problematizar qual a efetividade para o
enfrentamento à violência de gênero da estratégia de publicização isolada de se acionar o
“190”, visto que, sem a efetivação de uma representação do crime ocorrido, impossibilita-se a
instauração de um processo investigativo e punitivo do crime de violência doméstica contra a
mulher.
Vale ressaltar que a estrutura policial no Brasil é organizada a partir de duas divisões: a
ostensiva (Polícia Militar) e a investigativa (Polícia Civil), informação que não é de
conhecimento da população. Assim, aos agentes da Polícia Militar cabe apurar todas as
ocorrências feitas e à Polícia Civil, neste caso, representada pela Delegacia Especializada em
Crimes contra a Mulher, cabe, após o encaminhamento da Polícia Militar, a condução do
processo investigativo. Esta parte da trajetória na Rede é um nó onde se perdem muitos casos,
pois, a mulher, por desconhecer o funcionamento da Polícia, acredita que só por ter acionado
a Polícia Militar já se configura uma ação criminal-investigativo-punitiva. O que se apresenta
190
é que devido às dificuldades administrativas (como número de efetivos) trabalha-se a partir de
uma escala de prioridades e emergências (como explicitado por agentes destas instituições às
próprias mulheres, conforme denunciado por Camila na sessão do dia 19 de agosto de 2009).
Desta forma, a abertura de inquéritos policiais ocorre de forma desproporcional ao registro de
Boletins de Ocorrência, entre outros motivos, devido às falhas no processo policial, por
ausência da explicação da necessidade da representação para a ofendida e também por medo
desta em tomar a atitude de criminalizar o ato de seu companheiro.
A ação da Polícia Militar serviu, assim, como um paliativo, um genérico de uma ação legal.
Observa-se que os efeitos sobre o ciclo da violência, quando ocorrem, são colaterais, como:
vergonha dos vizinhos, medo de que se chame de novo a Polícia, desconforto de ser retirado
de casa e de ter que levar o famoso chá de cadeira. Desta forma, a violência de gênero no
âmbito doméstico não é enfrentada/punida como um crime, apesar de ser assim objetivada na
Lei Maria da Penha. Infelizmente o que se percebe é que o enfrentamento à violência de
gênero no âmbito doméstico apresenta-se como um teatro urbano de baixo calão. Este
enquadre descaracteriza o crime, deslegitima as ações da mulher, desqualifica a ação policial
e legitima a ação do parceiro que continua certo de sua não punição apesar das tentativas de
enfrentamento à violência por parte da mulher.
24
Artigo 12º: “Em todos os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, feito o registro da
ocorrência, deverá a autoridade policial adotar, de imediato, os seguintes procedimentos, sem prejuízo daqueles
previstos no Código de Processo Penal: I- ouvir a ofendida, lavrar a ocorrência e tomar a representação a termo,
se apresentada; II - colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato e de suas circunstâncias;
(...) V- ouvir o agressor e as testemunhas” (BRASIL, Lei 11340).
191
“revoltada”, “tratada como um lixo”, “um cachorro” (sessão de 22 de julho de 2010 e em
outras sessões não analisadas nesta pesquisa).
Assim, a partir do protesto de Camila e das sugestões das demais participantes sobre o
assunto (sessão de 22 de julho de 2009), pode-se discutir o lugar que o Espaço Bem-Me-
Quero ocupa no imaginário destas mulheres em contraposição à sua missão institucional na
Rede de Enfrentamento. Podemos entender a partir do protesto de Camila que ela esperava
que o Espaço Bem-Me-Quero se posicionasse a seu favor contra a Polícia (que também faz
parte da Rede de Enfrentamento) e seu companheiro. Esta imagem do Espaço Bem-Me-
Quero como um local diferenciado e de apoio incondicional e poder é recorrente nas
colocações das mulheres para diferenciar o Espaço do serviço de outras instituições da Rede.
Assim, ao não ser correspondida pelo Centro a partir deste papel imaginário, ela descreve o
tratamento recebido como traumático. Este aspecto imaginário agregado às instituições da
Rede é fácil de ser compreendido, principalmente se tratando de uma clientela que tem
sofrido com descomposturas e descréditos pelas instituições por onde transitam,
especialmente, a policial. A própria necessidade de criação de Centros de Referência para
acolhimento e encaminhamento das mulheres em situação de violência diz da dificuldade de
interligação entre as instituições de enfrentamento à violência e do desconhecimento por
parte da população destes serviços. Inquestionavelmente, a existência deste serviço em uma
Rede é um ganho para as mulheres, mas também aponta para a necessidade de que os
atendimentos das outras instituições (indiferentemente de suas missões) deveriam sempre
acolher a sobrevivente à violência de gênero e realizar todo o atendimento pautado pelo
respeito a seus direitos e escolhas.
Assim, o diferenciador dos Centros de Referência, talvez, esteja justamente em sua proposta e
posicionamento inicial de acolhida e em seu posicionamento em um local estratégico entre a
Delegacia de Mulheres e a possibilidade de denúncia da violência e as Casas Abrigos, que
seriam os locais destinados às mulheres em risco iminente de morte. Assim, atentando-se para
a dinâmica do ciclo de enfrentamento à violência os Centros seriam estratégicos por estarem
no meio do caminho entre as três estratégias de publicização temidas pelas mulheres: a
denúncia de seus companheiros às instituições policiais, o pedido formal de separação no
193
Núcleo de Defesa da Mulher (NUDEM) e o encaminhamento para uma Casa Abrigo nos
casos de risco de morte. Dessa forma os Centros de Referência posicionam-se (e são
posicionados) na Rede como um local intermediário na trajetória das sobreviventes como
explicitado por Silveira (2006):
não podemos afirmar que já exista um lugar simbólico social para este tipo de
serviço, ao contrário do que ocorre com as delegacias. (...) Entretanto as demandas
das mulheres que buscam os centros são bastante específicas. Elas se caracterizam
pela indefinição quanto ao melhor caminho para romper a relação violenta (...). Isto
sugere que estes equipamentos ofereçam uma possibilidade alternativa de resolução
do conflito violento. (...) Um importante diferencial é que o processo de
ambiguidade é acolhido e enfrentado, enquanto um plano de saída da dinâmica
violenta pode ser desenhado. A aposta é no desejo da mulher, seja ele qual for e no
tempo que for possível e necessário. A ênfase é “no processo” de superação da
relação violenta (SILVEIRA, 2006, p.64).
A partir disto é possível analisar o protesto de Camila e sua dificuldade em aceitar que ao
Espaço Bem-Me-Quero caberia, apenas, acolher e encaminhar seu caso. O seu protesto assim
194
é compreendido a partir de sua necessidade de legitimação frente à violência policial ocorrida.
Fica a pergunta se caberia ao Centro de Referência outro posicionamento/ encaminhamento e
também a qual instituição encaminhar um caso como este. Acredito que estas perguntas
devem servir como guias nas discussões da Rede sobre sua organização e efetividade. Casos
como estes colocam em xeque as propostas de enfrentamento à violência por posicionarem
como violentadoras/deslegitimadoras as instituições dedicadas ao enfrentamento à violência.
Quando uma mulher tem medo de ser violentada, inclusive, pelas instituições, há de se
repensar a missão e a proposta de organização das instituições da Rede. Desta forma, os
desafios e questionamentos das participantes do Grupo estendem-se a todas as instituições que
compõem a Rede. Na minha perspectiva, muito do que ocorre nestes episódios de
deslegitimação é devido ao desconhecimento da missão de cada serviço por parte das
mulheres e também por parte das instituições componentes da Rede. Frente às consequências
deste desconhecimento susta-se o investimento, por exemplo, em formas de divulgação deste
esquema de enfrentamento para toda a população e na adoção de atendimentos institucionais
pautados pela informação em todas as instituições às mulheres e aos seus companheiros
(sessão de 12 de agosto de 2009). A divulgação desta questão serviria ainda para levar a
público a discussão do problema da violência de gênero como um problema de segurança
pública. As denúncias apresentadas por estas participantes devem servir como indicativos de
pontos de reflexão para as instituições da Rede e para toda a sociedade.
A partir do processo de negociação sobre suas trajetórias de sobreviventes pela Rede de
Enfrentamento à Violência de Contagem/MG as participantes também debatem sobre as
dificuldades durante o período de separação no que se refere à garantia de seus direitos civis
e de seus filhos e sobre a atuação do NUDEM e do Sistema Judiciário e apresentam como
contraponto de legitimação a dinâmica do Grupo. Como um exemplo temos o caso de Cíntia
que relatou sobre sua ansiedade/ medo e de seus familiares (sessão de 22 de julho de 2009)
após a decisão de dar entrada nos processos de separação, divisão de bens, guarda e pensão
dos filhos pode ser interpretada. Esta situação pode ser interpretado como um misto do medo
das reações de seu ex-companheiro e do desconhecimento sobre o andamento dos processo na
Justiça. Ao mesmo tempo ela fica ansiosa pela perspectiva da aproximação da audiência e
percebe-se que ela não compreende o que significa este momento e não sabe o que é esperado
nesta audiência, o que gera a ansiedade. Este sentimento de ansiedade é recorrente nas
mulheres participantes do Grupo tanto para as que já iniciaram o processo como para as que
não se decidiram ainda. Apesar de compreenderem a importância e necessidade desta
195
estratégia de publicização, elas temem as consequências desta medida, ou seja, apesar de
adotarem a intervenção jurídica, elas não se sentem seguras de sua eficiência. Este aspecto
contraditório serve para problematizar o sentido do Sistema Judiciário na Rede de
Enfrentamento à Violência. Sustentamos que esta situação pode ocorrer entre outros motivos
pelo longo período que transcorre entre a abertura de um processo civil e seu efetivo
julgamento. A morosidade característica destes processos não condiz com a celeridade dos
ciclos de violência. Além disso, percebe-se pelos relatos das participantes do Grupo, que,
como no caso dos atendimentos pelos agentes policiais, também não são oferecidas pelos
agentes dos setores responsáveis pelo andamento processual todas as informações necessárias
sobre direitos e possíveis dificuldades durante o andamento dos processos. Isto pode ser
constatado, por exemplo, durante os relatos de Susana (sessão dia 22 de julho de 2009), que
estava preocupada com o não recebimento da carta confirmando o agendamento de sua
audiência, de Fernanda (sessão 22 de julho de 2009), que esperava a presença de um oficial de
justiça para acompanhá-la à sua casa para a retirada de seus pertences e de Cíntia (sessão dia
26 de agosto de 2009), que não sabia que ocorria uma Audiência de Conciliação antes da
Audiência na presença do Juiz e que na Conciliação ela não seria acompanhada pela
Defensora responsável por seu caso. A partir disto, vale a pena refletir sobre a continuidade
dos ciclos de violência apesar da decisão da mulher de sair da relação violenta com a adoção
de estratégias judiciais.
O desabafo de Cíntia (sessão de 26 de agosto de 2009) sobre o atendimento recebido durante
a Audiência de Conciliação de seus processos é exemplar para que se perceba o processo de
deslegitimação do ciclo de enfrentamento à violência. Ela afirma que se sentiu desamparada
por estar desacompanhada da defensora e desacreditada em suas colocações e decisões tanto
por seu ex-companheiro como pelas responsáveis pela conciliação. Percebe-se pelo seu relato
como ela teve que constantemente reafirmar a situação de violência em sua relação e defender
seus direitos e os de seus filhos. É interessante também observar que ela não foi informada
sobre como seria realizada esta audiência e seus objetivos, levando-a temer pela garantia de
seus interesses. Desta forma é compreensível o caráter ansiogênico e angustiante que este
momento da trajetória de sobrevivente pela Rede Enfrentamento assume. Novamente, ela se
encontra frente a frente com seu companheiro em uma situação onde tem que se legitimar, se
defender, acusar e defender seus direitos. Devido à dinâmica própria de uma conciliação, os
terceiros que se posicionam entre o casal não atuam na defesa de nenhum dos
interlocutores(as), o que reafirma o posicionamento duplo da mulher como vítima e ao mesmo
196
tempo responsável por sua defesa. Levando-se em consideração que o interlocutor(a) da
sobrevivente nestes casos é prioritariamente seu ex-companheiro violento, depreende-se como
este esquema a princípio proposto a partir da estratégia de publicização judicial visando a
saída do ciclo de violência, pode funcionar como mais um dos momentos do mesmo
(tensão/violência). Novamente, vale questionar aqui as bases sobre as quais são
implementados os mecanismos institucionais para que não se adotem propostas que não têm
como objetivo enfrentar os ciclos de violência, mas manejá-los ou manipulá-los a despeito
dos interesses das sobreviventes à violência de gênero. Percebe-se como o processo de
deslegitimação no ciclo de enfrentamento à violência sustenta-se na manutenção de diálogos
ou negociações que escamoteiam “as relações de poder que condicionam e limitam essas
possibilidades dialógicas” (BUTLER, 2003, p.35). Vale a apena questionar a possibilidade e a
efetividade de uma negociação em um processo civil onde há a concomitância de situações de
violência de gênero no âmbito doméstico/familiar. Esta proposta pode, inclusive, deslegitimar
toda a trajetória da sobrevivente e a participação das instituições judiciais na Rede. Uma
Audiência de Conciliação regida por agentes não atentos para este jogo de poder pode resultar
em violência institucional, descrédito da instituição e da proposta, banalização da situação de
violência e, por fim, em perdas de direitos por parte das sobreviventes.
O caso de Cíntia também permite que se analise a inserção de outra instituição na Rede de
Enfrentamento à Violência de Contagem/MG: o Núcleo de Defesa dos Direitos das Mulheres
da Defensoria Pública (NUDEM). A criação deste mecanismo é mais um das inovações
apresentadas pela Lei Maria da Penha, bem como a possibilidade de criação de Juizados de
Violência Doméstica e Familiar (artigo 34, inciso III e artigo, 14). Percebe-se que estes
mecanismos do judiciário vêm como uma resposta às inúmeras denúncias de dificuldades
enfrentadas pelas sobreviventes à violência de gênero que adotam estratégias de publicização
jurídicas. Esta linha de raciocínio sustentou primeiramente a criação das DECCM, a
implantação da “Central de Atendimento à Mulher-180”, dos Centros de Referência, da
aprovação da Lei Maria da Penha e da própria necessidade de delimitação de medidas
protetivas nesta lei. Assim, é interessante analisar a criação de novos mecanismos legislativos
e institucionais para o enfrentamento à violência como um avanço no interesse de se
publicizar e coibir as ocorrências violentas, mas também como um alerta para a atuação dos
mecanismos já existentes. A formação de uma Rede eficaz não está vinculada somente à
quantidade de serviços oferecidos e à extensão da Rede, mas à execução adequada das
197
atividades de acordo com as missões institucionais. Acredito que a necessidade de criação de
instituições específicas para esta problemática dentro dos Poderes Judiciários, Legislativos e
Executivos aponta por um lado para a relevância do fenômeno, mas também para a
dificuldade destes Poderes em simplesmente inserir em suas agendas a discussão a partir do já
instituído. Assim, não se nega a importância destes novos rearranjos e mecanismos, mas se
questiona sobre quais bases eles estão sendo planejados e se objetivam, em última instância, o
questionamento das normas sociais que sustentam a violência. Partindo-se da premissa de que
os próprios “manipuladores técnicos” (CORRÊA, 1983) do direito são produtores e
reprodutores de certa concepção de justiça que, por vezes, reforçam valores culturais
vinculados à matriz heteronormativa, considera-se importante criticar e denunciar que a
Cartilha que sustenta a violência de gêneros não pode atuar para a manutenção de
preconceito(s) contra as mulheres. Os vestígios da Cartilha aparecem insistentemente em
vários episódios de defesa/reivindicação de direitos. Nesse sentido, a análise destas trajetórias
pode oferecer alguns indicativos da dinâmica de reiteração das normas heteronormativas que
sustentam a permanência da violência de gênero.
Assim, frente à constatação de descrédito relatada por Cíntia, Camila aponta que o fato dela
estar sendo acompanhada pelo NUDEM (sessão de 26 de agosto de 2009) já era uma prova de
sua situação de violência. Apesar da colocação de Camila ser coerente, Cíntia relata que isto
não foi dito durante a Audiência e que ela foi questionada sobre sua situação, apesar de seu
processo estar vinculado ao NUDEM. O que se percebe é que cabe à mulher legitimar suas
ações quando resolve quebrar o ciclo de violência. O relato da ocorrência da violência e a
decisão de enfrentá-la não são suficientes para as instituições legitimarem o posicionamento
da sobrevivente. Esta situação pode trazer como consequências para o processo de
enfrentamento à violência indícios de descrédito da Lei, das instituições e da própria
caracterização da violência como crime.
Frente ao questionamento insistente sobre sua situação de violência e às negativas de seu ex-
companheiro sobre o fato Cíntia apresenta como prova a sua participação no Grupo do Espaço
Bem-Me-Quero (sessão de 26 de agosto de 2009). A sua linha de raciocínio se guia pela busca
de legitimação de sua fala através de um mecanismo apontado por ela como eficiente.
Aparentemente esta sua colocação também não surtiu o efeito desejado, restando a
confirmação de seu desamparo. O fato de Cíntia citar a sua participação no Grupo em um
198
momento de deslegitimação é indicativo de sua pertença e também confirmação da
legitimidade desta proposta para ela. Da mesma forma, considero o fato de Cíntia ter se
reportado a Graça e Camila, quando se sentiu fragilizada uma estratégia de publicização
possibilitada pela pertença ao Grupo, pela confiança e pelo laço de amizade, entre estas
“veteranas”.
199
continuar refletindo sobre a organização da Rede de Enfrentamento e sobre o sentido que a
violência assume para os agentes das instituições de enfrentamento à violência. Sustento que
se não nos debruçarmos sobre esta questão todo aparato de enfrentamento poderá ser apenas
mais um paliativo frente a este fenômeno.
O Grupo que permitiu o uso das gravações utilizadas nesse trabalho tem como proposta
utilizar-se da teoria e técnica do Grupo Operativo no processo de enfrentamento à violência
de gênero. Apesar deste Grupo não seguir alguns dos aspectos apresentados como
característicos da abordagem pichoniana, quais sejam; o número de participantes por sessão e
o fato de ser aberto e de não ter definido, de antemão, o número de sessões, isso não
descaracteriza a sua definição a partir desta construção teórica e nem impossibilita a obtenção
de resultados e da dinâmica grupal.
Desta forma, acredito que a abertura deste Grupo constitui sua força e que este tipo de
proposta adequa-se às peculiaridades de um grupo para mulheres sobreviventes à violência de
gênero devido às inúmeras dificuldades e necessidades apresentadas por esta clientela,
destacando-se: a dificuldade financeira, a necessidade de sigilo sobre a participação nas
reuniões e a própria dificuldade da mulher em lidar com esta nova forma de enfrentamento ao
ciclo da violência. Muitas mulheres relatam que não comparecem ao grupo semanalmente ou
que se ausentaram por um tempo porque não têm dinheiro para pagar o transporte. Outras
relatam as peripécias domésticas para esconder de seus companheiros, filhos e outros
familiares a participação no grupo. Umas chegam atrasadas, outras têm que sair mais cedo,
200
outras trazem os filhos (que ficam na brinquedoteca da instituição), outras faltam porque não
conseguiram alguém para cuidar dos filhos. Desta forma, o enquadre grupal baseia-se na
participação espontânea, não determinada por números de sessões ou regulada por faltas. As
faltas são sentidas, mas não interpretadas como indicativo de ausência de afiliação ou
pertença. Justamente por causa das dificuldades relatadas acima, cada nova participação é
valorizada. O convite feito às mulheres é para um grupo que se encontra toda semana em
determinado horário. Neste convite é frisada a constância das sessões do grupo e não a
regularidade ou obrigatoriedade da presença ou permanência da mulher. A constância e a
regularidade do Grupo possibilitam a algumas participantes se ausentarem por meses e depois
comparecerem sem nenhum constrangimento e, o mais interessante, desta forma pertencer ao
grupo e terem suas histórias constantemente citadas pelas outras. Entendo isto como uma
apropriação da história da “participante ausente” pelo Grupo. Sustento que a certeza da
acolhida, do sigilo e da compreensão das dificuldades permite a continuidade de um grupo
operativo aberto. A não fixação de um número de sessões ou de temas pré-definidos para cada
encontro também são estratégias da coordenação que aposta na participação ativa e
responsável de cada mulher, bem como na proposta de desenvolvimento da tarefa grupal a
partir da criatividade e realidade das participantes.
Por sua vez, os critérios que vinculam este Grupo à proposta pichoniana seriam
principalmente: o fato dele se guiar nitidamente por uma tarefa, o entendimento da formação e
do papel da coordenação, o interesse pela mudança no social como objetivo paralelo a todo
processo, o estudo e aprendizagem da psicologia social baseado em uma práxis e o
entendimento do Grupo como local terapêutico e de aprendizagem. Este conjunto de
propostas-guia baseadas na teoria pichoniana sobre o processo grupal e sobre a psicologia
social sustenta este trabalho e esta pesquisa. Desta forma, este Grupo se apresenta em
processo, em interação, vivo, pulsante, revoltado, solidário, feminista, parodiando Baremblitt,
“de vanguarda”, em suma, coerente com as idéias pichonianas.
201
* A excelência na realização da tarefa de elaboração de estratégias de enfrentamento à
violência, o que é um indicativo da criatividade e da cooperação adotadas pelo Grupo durante
a execução da tarefa;
Cíntia: Tem um ano que eu to aqui em agosto, né criatura, olha só para você ver.
Custei para ficar. Simone: Custou para ficar por quê?
Cíntia: Na primeira vez que eu vim eu falei: eu não volto mais. Simone: Conta para
ela como foi a sua primeira vez.
Cíntia: Eu vim aqui olhei para cara dela (Camila), olhei para cara da Graça, da
Simone e falei nossa. Minha irmã tava lá fora. Ó eu tava de um jeito que minha irmã
tinha que me trazer, eu estava separada tinha um mês, né Simone, do meu marido,
casada há 14 anos, ai eu peguei e falei que não volto mais naquilo ali, senti tão mal
aqui dentro e agora eu empolgo feito doida, eu falei com ela que eu fiquei assim na
quarta feira: Ah meu Deus as meninas estão reunindo e eu não posso, fiquei
desesperada, e eu estava doida para vir.
Para além, no grupo o processo de enfrentamento se guia pelo respeito ao direito da mulher
de decidir sobre como agir, marcando esta experiência como legitimadora das trajetórias
individuais. A negociação para elaboração de estratégias no Grupo tem como espelho as
opiniões das outras participantes e da coordenação, mas se guia primeiramente pelo respeito
204
ao processo de cada participante. O respeito aos papéis desempenhados e ao processo de
cada participante é o guia que cria uma tele favorável à mudança. Aprender a negociar, a
pensar, a construir estratégias coletivamente, a ter opiniões e confrontá-las, e a respeitar as
decisões do outro são tarefas de quem se encontra em um Grupo que se pretende Operativo.
Acredito assim que a aprendizagem possibilitada pelo tipo de comunicação adotada em um
grupo operativo auxilia as participantes em suas trajetórias de sobreviventes à violência de
gênero. Além disso, o fato da dinâmica do grupo se guiar pela imagem de uma espiral
permite que se compreenda que, nas idas e vindas do processo, as resistências e estereotipias
estão sendo alteradas/destruídas, legitimando as trajetórias e (des)naturalizando as críticas às
dificuldades neste processo. Da mesma forma, o percurso de negociação, apresentação e
avaliação coletiva das estratégias permite que o Grupo se configure como operativo e atinja
seu objetivo último de produzir mudanças em suas participantes e na sociedade.
na proposta de atendimento:
205
aproporpriação crítica por parte de suas participantes das propostas das intituições da Rede de
Enfrentamento à Violência de Contagem/MG e da legislação pertinente à problemática;
Apesar disto estamos cientes de que este processo de intervenção é inicial e, coerente com a
proposta a que se filia, contínuo, tanto na vida das participantes como na proposta de
Enfrentamento à Violência a partir de uma Rede de instituições.
O desafio lançado pelas participantes tanto às instituições da Rede como ao Grupo vai ao
encontro de uma organização que se baseia na legitimação do trabalho das instituições entre si
e, principalmente, na legitimação das trajetórias das sobreviventes à violência de gênero por
toda a Rede conforme suas decisões e de acordo com as especificidades de seus casos.
Iniciando um círculo virtuoso, o desafio proposto a elas, a partir da participação do Grupo, é
que a legitimação dos mecanismos e das estratégias se sustente a partir de seus
posicionamentos como sobreviventes ao ciclo de violência e ao ciclo de enfrentamento à
violência. Como apontado por mim à Cíntia na sessão do dia 26 de agosto de 2009:
Simone: por que você simplesmente não podia ter falado, todos os casos que você
me conta você não podia ter contado lá?
Cíntia: eu falei.
Simone: eu sei que é difícil, mas o que vocês têm que entender é que a palavra de
vocês também tem valor.
Cíntia: Mas, se você esta frequentando um grupo, você confia no grupo.
Simone: eu concordo.
Podemos completar esta linha de raciocínio indicando que se a proposta do Grupo delimita-se
como diferenciada daquela indicada em outros momentos nas trajetórias destas sobreviventes,
a própria manutenção da dinâmica grupal só é possível pela aposta e pertença destas
sobreviventes. Assim, sustento que o grande trunfo da técnica do Grupo Operativo está,
justamente, neste movimento dialético onde cada membro do Grupo, através de trocas
comunicacionais aprende a aprender, a pensar e a mudar, ao mesmo tempo em que ensina o
206
Grupo. Desta forma, o ciclo virtuoso anunciado pelas participantes do Grupo, a partir de suas
mudanças, é fruto desta proposta de atendimento que:
Citando Rosa Luxemburgo, considero que “quem não se movimenta não sente as cadeias que
o prendem”. Se fosse necessário resumir a dinâmica deste Grupo, seria através de um convite
a estas sobreviventes: frente a todas as pressões e opressões, convido-as a continuarem a se
movimentar...
Como coordenadora de um Grupo com este objetivo, certamente não me sentiria confortável
se não me guiasse por uma proposta de ciência feminista; pela reafirmação do entendimento
da psicologia social (objeto e didática) nas teses pichonianas, pela convicção na práxis como
método e pelo desejo de fazer de meu trabalho um instrumento de mudança social e
contribuição teórico/científica. Trilho, desde a graduação, uma trajetória onde objetividade
remete a posicionamento e não há como não me posicionar como psicóloga, servidora
pública, pesquisadora, feminista, mãe e mulher antes, durante e depois desta pesquisa e
durante as sessões do Grupo. O posicionamento, para mim, é uma proposta teórica, mas
também um desafio pessoal.
207
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta dissertação é resultado dos últimos dois anos e dois meses de histórias que se
entrelaçaram de uma forma que não se faz possível (ou necessário) saber o que levou a quê ou
quem possibilitou o quê para quem. Elas foram escritas em um processo cheio de desafios,
idas e vindas, lágrimas, risos, derrotas, vitórias, surpresas e descobertas. Nesta dissertação
está presente a história do Grupo; a história de cada sobrevivente que aceitou dele participar e
a minha. Todo o processo de escrita, todas as escolhas, todas as leituras tinham como objetivo
contribuir não só para a discussão acadêmica sobre a violência de gênero, mas para as
sobreviventes desta violência que cotidianamente buscam solucionar este problema em suas
vidas. Não imaginava quais seriam os desdobramentos da proposta para o atendimento em
Grupo das sobreviventes atendidas por mim no Espaço. Se cada novo convite era guiado por
uma aposta na possibilidade de mudança no ciclo de violência de cada sobrevivente e pela
reafirmação da proposta de atendimento em Grupo como dinâmica privilegiada, a cada final
208
de sessão seguiam-se momentos de incerteza sobre a continuidade das participações na
próxima sessão e, mais importante, da pertença de cada uma das participantes naquele Grupo.
Percebo agora que este processo de reafirmação e de legitimação não se dirigia apenas ao
Grupo, mas à trajetória de cada sobrevivente e a minha como profissional, pesquisadora e
mulher.
Cada avanço na espiral dessas histórias aliava-se aos questionamentos propostos para esta
dissertação. Assim, os resultados aqui apresentados foram delineados a partir de alguns
aspectos que se sobressaíram neste processo quais sejam: o relato das participantes de
mudanças nos seus Ciclos de Enfrentamento à Violência; a rapidez com que isto ocorria,
principalmente, nos casos onde a participação era mais frequente; a afirmação contundente da
participação no Grupo como elemento desencadeador para as mudanças e a coerência das
críticas sobre o atendimento recebido em outros serviços/instituições da Rede de
Enfrentamento e os posicionamentos contrários às decisões de encerrar o ciclo de violência.
Estes aspectos observados apontavam para a participação no Grupo como local diferenciado
na Rede de Enfrentamento à Violência, entre outros motivos, pelo meu acolhimento (como
coordenadora do Grupo) e das participantes das várias estratégias adotadas para o
enfrentamento à violência e pela possibilidade de rever no Grupo a colocação em prática das
estratégias elaboradas pelo Grupo. Desta forma, elas eram legitimadas em suas trajetórias de
sobreviventes à violência de gênero pela ternura no convite, a alegria na acolhida e a
reiteração do desejo de mudança. Estes eram aspectos legitimadores e potencializadores das
mudanças, de caráter simples, mas aparentemente não encontrados em outras instituições ou
em outros interlocutores(as).
A estes indicativos une-se a denúncia dos processos deslegitimadores das trajetórias das
sobreviventes à violência escamoteados nos discursos culpabilizadores, vitimizadores,
essencializadores e naturalizadores sustentados pelas normas da matriz heteronormativa que
209
guiam a ação/omissão de agentes das instituições da Rede de Enfrentamento e de outros(as)
interlocutores(as) da sociedade. Para contribuir na denúncia deste processo delineei o Ciclo
de Enfrentamento à Violência como uma forma de dar visibilidade a este processo
repetidamente apresentado pelas sobreviventes em suas trajetórias. A minha aposta é no
diferencial legitimador do atendimento a partir da proposta do Grupo Operativo (que pode ser
replicado em qualquer outro episódio do Ciclo de Enfrentamento à Violência) aliado à
discussão sobre as normas que sustentam a violência de gênero em nossa sociedade.
Para além destas histórias contadas, devo meu reconhecimento à possibilidade de escuta de
outras tantas histórias de sobreviventes (que atendi ou ouvi de terceiros) que devido às
peculiaridades, pressões e opressões de suas trajetórias não participaram do Grupo. Em
especial, à memória de Maria Islaine de Morais e de Eloá Cristina Pimentel, que tiveram seus
assassinatos transmitidos em cadeia nacional, colocando em xeque as políticas públicas de
enfrentamento à violência e a atuação de suas instituições.
Por fim, ser ao mesmo tempo mulher, profissional de uma instituição pública da Rede de
Enfrentamento e pesquisadora feminista poderia dificultar minha trajetória, mas, prefiro me
posicionar não negando esta rede de identificações em que me situo apossando-se disto como
um diferenciador que legitima a mim e ao meu trabalho.
210
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Suely Souza de. Femicídio: algemas (in) visíveis do público-privado. Rio de
Janeiro: Revinter, 1998.
ALMEIDA, Suely Souza de. “Essa violência mal-dita”. In: ALMEIDA, Sueli Souza (Org.)
Violência de gênero e políticas públicas. Rio de Janeiro, UFRJ, 2007.
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da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e
da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher;
dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera
o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras
providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-
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218
ANEXO 01
Nome Idade Cor Escolaridade Ocupação atual Trabalho Renda própria Moradia
Camila 30 negra ensino médio completo desempregada** não tem não própria
Cíntia 37 parda ensino médio completo trabalha assalariada não cedida *
Clarice 40 parda ensino médio incompleto pensionista não tem sim própria
Elis 55 branca ensino fundamental incompleto dona de casa não tem não própria
Fernanda 38 parda ensino médio completo trabalha por conta própria sim cedida*
Fabíola 43 branca ensino médio completo trabalha por conta própria sim própria
Graça 36 parda ensino médio completo trabalha por conta própria sim própria
Janaína 52 parda ensino fundamental incompleto dona de casa não tem não aluguel
Kenia 19 branca ensino fundamental incompleto trabalha por conta própria sim cedida
Marília 46 branca ensino médio incompleto trabalha por conta própria sim própria
Nina 33 parda ensino médio completo desempregada** não tem não aluguel*
Rosa 44 negra ensino fundamental incompleto trabalha por conta própria sim própria
Sâmia* 23 branca ensino médio incompleto desempregada** não tem não aluguel
Susana 49 branca ensino médio completo trabalha assalariada sim própria
*Cíntia, Flávia e Nina têm casa própria ocupada neste momento pelos ex-companheiros
**São consideradas desempregadas as mulheres que já foram assalariadas ou tiveram renda própria
ANEXO 02
Trajetória afetiva das mulheres sobreviventes à violência de gênero
Relato de
Vive Outros violência no
Estado Tempo de Tipo de violência com Relaciona- novo
Nome civil convivência sofrida parceiro mentos relacionamento Idade filhos
união física,psicológica, 01 ano(não é filho do
Camila estável 7 anos moral, institucional não sim sim agressor)
física,moral,sexual,
Cíntia separada* 17 anos psicológica,patrimonial não não não cabe 15,11 anos
11 e 19(não são filhos
Clarice separada* psicológica, moral, sim sim sim do agressor)
física, moral,
Elis casada 32 anos psicológica sim não não cabe 27,25,24 anos
física,psicológica,
Fernanda separada* 20 anos moral, patrimonial não não não cabe 16,14 anos
Fabíola casada 20 anos psicológica, moral sim não não cabe 19,16,14 anos
moral,psicológica, 11, 19(não é filho do
Graça separada* 13 anos sexual sim não não cabe agressor)
física, psicológica,
Janaína casada 31 anos sexual, patrimonial sim não não cabe 28,22 anos
união
Kenia estável 06 meses física, psicológica não sim não 01 ano
psicológica, moral,
Marília separada* 18 anos física sim não não cabe 12,09 anos
moral, patrimonial,
Nina casada 12 anos psicológica não sim não 11,09 anos
física, psicológica,
Rosa casada 26 anos moral sim não não cabe 26,23,05 anos
Sâmia solteira 04 anos moral, psicológica não não não cabe 01 ano
Susana separada* 27 anos psicológica não não não cabe 25,21 anos
* entende-se por separada nestes casos as mulheres que durante o período da pesquisa e participação no grupo estavam com
processos de separação na justiça
ANEXO 03
Trajetória das mulheres sobreviventes à violência de gênero na Rede de Enfrentamento à Violênica de Contagem/MG.
Setor de Tempo de
Nome encaminhamento Encaminhados realizados Acionou Processo de separação Grupo
Polícia Militar e Delegacia de 1 ano e dois
Camila Espontânea Nudem/ 4 vezes Mulheres Não cabe meses*
Conselho Tutelar Decretada medidas protetivas
Posto de Saúde- Saúde Mental
Promotoria de Justiça
Secretaria de Direitos e Cidadania
Comissão Direitos Humanos ALMG
Delegacia de Mulheres
01 ano e 1
Cíntia Cras-Casa da Família Nudem Polícia Militar Sim-nudem mês*
Clarice Espontânea Defensoria Pública Polícia Militar Sim-nudem 15 dias** *
Elis Espontânea Projeto Mulheres da Paz Polícia Militar Não 01 mês * **
Fernanda Cras-Casa da Família Delegacia de Mulheres Polícia Militar Sim/advogado particular 2 meses
1 ano e 4
Fabíola Espontânea Nudem Não Não meses* **
01 ano e 2
Graça Espontânea Projeto Mulheres da Paz Delegacia de Mulheres Sim-nudem meses *
Unidade Básica de
Janaína Saúde Nudem/Delegacia de Mulheres Polícia Militar Não 2 meses
Kenia Nudem Delegacia de Mulheres/Promotoria Polícia Militar/Delegacia de Mulheres Não cabe 15 dias**
Decretada medidas protetivas
Marília Espontânea não Polícia Militar Sim-Puc/Contagem 15 dias**
Nina Convite de Elis Nudem Não Não 15 dias* **
Delegacia de Mulheres/Nudem-
Rosa Conselho Tutelar 2vezes Não Não cabe 1 mês
Sâmia Convite de Nina Não Não Não cabe 15 dias**
Susana Convite de amiga Nudem Não Sim-Nudem 4 meses*
* mulher continua participando do grupo
**primeira participação no grupo aconteceu durante a pesquisa
ANEXO 04
ANEXO 05
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
Prezada Senhora,
Você esta sendo convidada para participar da pesquisa “O grupo operativo como
dispositivo de enfrentamento à violência de gênero” que tem como objetivo principal
investigar o processo de enfrentamento à violência de gênero no dispositivo grupo operativo.
Esta pesquisa tem como pesquisador responsável o Prof. Dr. Adriano Roberto Afonso do
Nascimento e como pesquisadora auxiliar a psicóloga Simone Francisca de Oliveira. Esta
pesquisa se realizará no Espaço Bem-Me-Quero tendo como instituição responsável por sua
execução a Universidade Federal de Minas Gerais através do Departamento de Pós-
Graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas.
De forma mais específica, pretendemos analisar a construção/reconstrução dos
sentidos da violência para mulheres sobreviventes de violência de gênero atendidas em grupos
operativos; analisar se e como os sentidos da violência de gênero podem possibilitar a
construção coletiva de estratégias para o fim do ciclo de violência; investigar se e como a
participação no grupo atua para o questionamento dos papéis de homem e mulher e para a
transformação das relações de gênero na vida das mulheres e, por fim, descrever e analisar as
práticas institucionais realizadas pela Rede de Enfrentamento à Violência de Contagem/MG.
Tais informações podem ser úteis para subsidiar futuros projetos de pesquisa e de intervenção
e políticas públicas de enfrentamento à violência de gênero. Assim, gostaríamos de convidá-la
a participar de um total de oito sessões de grupo operativo onde conversaremos sobre temas
relacionados ao enfrentamento à violência de gênero e realizaremos a gravação das mesmas
(após sua autorização por escrito). O tempo médio de duração das sessões está previsto para 2
horas. A participação na pesquisa e a gravação das sessões não oferecerão à senhora riscos
físicos ou psicológicos adicionais aos já previstos para a participação no grupo. Todavia, caso
a Senhora sinta-se em risco devido à participação na pesquisa e/ou no grupo ou deseje retirar-
se da pesquisa a qualquer momento será lhe oferecida, segundo seu interesse, a continuidade
do atendimento psicológico individual pela equipe de psicologia do Espaço Bem-Me-Quero.
Está garantido o seu anonimato e os esclarecimentos que se fizerem necessários sobre a
metodologia utilizada antes e durante a pesquisa. Esta lhe garantida também a liberdade sem
restrições de se recusar a participar, ou retirar seu consentimento, em qualquer fase da
pesquisa, sem que disso resultem quaisquer tipos de conseqüências para a senhora. As
informações obtidas nessas sessões serão utilizadas exclusivamente para fins de pesquisa e
elaboração de projetos de intervenção psicossocial vinculados ao Departamento de
Psicologia/FAFICH/UFMG. Todas as informações geradas nessas sessões (gravações,
formulários e transcrições) ficarão armazenadas no Departamento de
Psicologia/FAFICH/UFMG por um período mínimo de 02 anos, sob inteira responsabilidade
do professor responsável por essa pesquisa Prof. Dr. Adriano Roberto Afonso do Nascimento.
Informamos também que a sua participação tem caráter voluntário e não resultará em
qualquer tipo de remuneração para a senhora.
Contatos: a) Prof. Adriano R. A. do Nascimento, Departamento de
Psicologia/FAFICH/UFMG, Avenida Antônio Carlos, 6627 – Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas - 4º andar, Universidade Federal de Minas Gerais, Campus Pampulha-Belo
Horizonte, MG -31270-901. Tel.: (31) 3409-6278. b) COEP - Comitê de Ética em Pesquisa -
Avenida Antônio Carlos, 6627 - Unidade Administrativa II - 2º andar, Universidade Federal
de Minas Gerais, Campus Pampulha-Belo Horizonte, MG -31270-901. Tel.: (31) 3409-4592 /
3409-6278. c) Simone Francisca de Oliveira – Espaço Bem-Me-Quero - Rua. José Carlos
Camargos, 218, Bairro Centro – Contagem – 32140-600 - Tel.: (31) 33527543/ 33528091.
Eu, _______________________________________________ (nome da participante),
RG _______________ , Órgão Emissor _________, declaro ter COMPREENDIDO as
informações prestadas neste Termo, DECIDO participar das sessões do grupo operativo
propostas e AUTORIZO a utilização das informações dela decorrentes no Projeto de Pesquisa
intitulado “O grupo operativo como dispositivo de enfrentamento à violência de gênero”.
Estando de acordo, assinam o presente Termo de Consentimento em 02 (duas) vias.
-
------------------------------------------------------------
Participante
---------------------------------------------------------------
Pesquisador Auxiliar
---------------------------------------------------------------
Pesquisador responsável
Belo Horizonte, de de 2009
ANEXO 06
Primeiro tratamento das transcrições (exemplos)
Grupo Operativo Transcrição Temas Comentários
Inicio do grupo Simone: Gente bom dia, bom dia.
coordenadora Começou. Semana passada veio Camila
retoma grupo eu, a Camila e a Fabíola. Foi tudo interlocutora
anterior de bom, né Camila? do grupo com
Líder/transferência Camila: foi tudo de bom! a coordenação
Assunto do grupo Simone: A gente discutiu muita
de hoje coisa importante e vamos
continuar aí.
M: A Fabíola é quem?
S: a Fabíola, uma de cabelo preto,
branquinha, de cabelo lisinho, que
vem desde o início. Apesar da
Pertença M: que esta trabalhando... grande
S: uma branca, bonitinha. E ai? rotatividade
N: vou justificar minha falta, eu no grupo as
fiquei doente participantes
S: doente? E aí? O quê que você sempre estão
arrumou minha filha? Impacto na saúde na memória
N nunca tive não, mas agora to afetiva e
tendo de tudo. temática do
S: tudo aparecendo... grupo.
E: é a imunidade que ta baixa
sabe.
M1: nunca tive nada, não, mas.
Su: A tristeza né, Simone , faz a
imunidade abaixar.
Cla: Eu também fiquei internada,
não te ligaram não? Parta falar...
FALAS
S: ficou internada também, nossa
senhora!
N: O remédio não tava
combatendo tive que tomar direto
na veia (...)
S: me ligaram? Quem? De onde?
Não.
Cla: Eu tive gripe suína...
S: porque você vai internar
também?
MUITAS FALAS PARALELAS.
S: socorro, mas ta bem?
Melhorou?
M: Mas to com o corpo assim...
Su: Lá na escola que eu trabalho
todo dia falta uma...
C: Normal...
S: meio fraco ainda. Ai gente para
de ficar doente.
RISADAS E FALAS
S: é a primeira vez na minha vida
que eu to com medo de uma
doença.
Cla: eu passei mal no meio da rua.
Lá em casa eu tava assim tossindo,
mas sabe aquela tosse alérgica? Aí
quando eu cheguei na rua que eu
fui levar o resultado da minha
menina, aí eu comecei (tosse)...
S: ficou sem ar...
FALAS
S: você também ta tossindo?(para
E.)
FALAS E RISADAS
S: você viajou? Você foi viajar?
E: fui pra São Paulo
S: com quem você foi?
M: Com a minha irmã, fiquei lá Os assuntos
uns três dias. Primeiro fiquei na surgem
casa da minha menina, depois... conforme o
Fiquei lá uns seis dias não, fiquei que elas
quatro. trazem em
S: ai que bom! E você dona Su., alguns grupos
onde você tava, trabalhando? eu inicio a
Fim da introdução Su o que? Quarta-feira passada? conversa com
S: é, todo mundo justificou. Agora alguém
você justifica também. porque foi
(Risos e falas) solicitado ou
Su: eu arrumei um rolo danado pela ansiedade
esses dias. aparente. Ou
S: mas você ta bem né? Ta porque foi
saudável? Dormindo onde acabou o
bem...---------------------------- Iniciativas assunto na
FALAS ultima semana
Su: coloquei a faixa (Fala abafada Sempre há
Estratégia pelas outras) uma certa
S:vende-se urgente... fala abafada ansiedade de
por N e E. que estão conversando algumas para
alto entre si sobre a morte de um ter a fala.
vizinho.
S: vamos fazer o seguinte...eu já as
separei (referindo a Cintia e
Graça.) vou separar vocês duas
(...) senão eu não escuto nada.
FALAS
S: Nina e Elis e todo mundo, Retomando a ultima
vamos concentrar porque senão sessão
depois eu não consigo nem ajudar
Aprendizagem e a gravação também fica péssima. Sugestão do
A gente tinha conversado que você grupo
ia... colocada em
Su: Ia tomar a iniciativa e ia prática após
colocar a casa pra vender. evento do
S: a questão é essa: a iniciativa. ciclo da
Muito bem, aplausos, palmas para violência
ela.
PALMAS/Muito bem!Parabéns!
Evolução GSM.
S: com seu nome? Desavenças de
Su: ...na faixa. postura com marido/o
S: (...) pra quem não sabia nem por antes e o agora deles
onde começar (...)
Su: aí depois que eu falei que eu
ia, já tinha colocado a faixa (...) ele
nunca pegou na enxada, tava
capinando uns capinzinhos lá no
passeio lá fora. A cerca elétrica
fica lá pendurada, que nem trem de
elétrica tem mais, fica lá
pendurada, falou que vai consertar
a cerca elétrica. Aí eu vi o
orçamento de cimento, areia,
dizendo que vai aumentar o muro
(...)
M: mas para que ele esta fazendo
tudo isto?
S: pra valorizar mais...
M: para valer mais...
Su: não que eu não quero fazer
nada lá. Quando eu queria, ele
nunca fez nada. Agora que eu não
quero mais nada mesmo, eu não
quero que faz nada lá na casa, vai
vender do jeito que ela ta.
S: se ele fizer pelo menos aumenta
o valor.
Su: isso é desaforo. Quando ele Data da audiência
Líder defensoria
quer fazer as coisas é que ele faz.
Técnica Quantas vezes eu quis fazer as
Comunicação
coisas, ele nunca fez.
coordenação
Cooperação S: e alguém já te ligou? Como é
que ta?
Su: de vez em quando aparece
alguém lá pra olhar.
S: como é que é? Você já colocou
pra vender? Mas ele continua lá?
Qual dia é seu dia mesmo? Que
dia você vai lá no juiz?
Su dia 03 de setembro e deixa eu Caso da mulher
te falar, ele tem que ir também? anterior como
S: mas chegou carta pra ele? exemplo
Su: é isso que eu não sei.
Graça: costuma chegar para você
primeiro.
Episódio de Su: porque dia 03 esta perto.
violência Graça: a minha chegou uma
semana, primeiro.
S: não, tem que chegar. Depois
que nem o caso dela (Graça) se
não chegar você vai lá e fala,
porque depois perde uma, se ele
não for depois perde (...)
Mulheres concordam....
Su: então como é que eu tenho que
fazer?
S: dá um tempinho... Mulheres
concordam...
G: calma recebe uma semana
antes... Mulheres concordam...
S: (...) se você ver assim que três
Iniciativa/apre Colocar a
ndizagem/ada casa à X Su: coloquei a faixa (Fala
ptação ativa/ venda Relato de abafada pelas outras)
Cooperação iniciativa S:vende-se urgente... A gente
tinha conversado que você ia...
Su: Ia tomar a iniciativa e ia
colocar a casa pra vender.
S: a questão é essa: a iniciativa.
Muito bem, aplausos, palmas
para ela. (PALMAS) Muito
bem!Parabéns!Evolução GSM.
S: com seu nome?
Su: ...na faixa. S: (...) pra quem
não sabia nem por onde
Cena/corpo da Fazer tudo Ódio, mas Quando a começar.
mulher/gênero para não não vou mulher Relato de x
/violência encontrar chorar reage na cena de Su: sabe por que agora eu resolvi
com ele hora da violência vender, eu tive iniciativa mesmo,
em casa violência, Cooperação/ porque teve um belo dia lá, que
Ficar quando Criatividade chegou meu filho com ele. Lindo
calada na percebe do grupo né, adoro ver o pai com o filho
hora da que a -Cartilha junto, é a melhor coisa que tem.
agressão mulher Aí chegaram do futebol,
Não ficar esta chegaram com a camisa do
na mesma agindo cruzeiro. E é difícil eu ficar até
casa após segundo a tarde fazendo alguma coisa, eu
a ”cartilha”, peguei umas coisas na escolinha
separação em relação e levei lá pra casa pra fazer, aí
Mudar de à posição geralmente onze horas eu to
cidade da mulher dormindo há muito tempo,
após a na cena de porque eu faço de tudo pra não
separação violência encontrar com ele, sabe, eu vou
pro meu quarto assistir televisão
e lá eu durmo. Aí chegaram
alegres e tal e eu to lá quietinha,
continuei fazendo minhas coisas.
Eles ficam rindo eu não tenho
graça mais de ficar rindo mais
perto dele. Aí ele lá na cozinha
colocando a janta dele, eu não
sei que assunto surgiu, que ele
tava rindo do buteco, do Peixe
Vivo (Bar de Contagem), que
aparece cada trem horroroso lá
na porta. Tem muita gente
bacana que vai. Eles estavam
rindo do povo feio que vai gorda
com os peitos na barriga e não
sei o que e falou da Célia minha
colega, ela toda vida é mãe, é
irmã, é tudo pra mim. Eu morei
20 anos no Novo Riacho e ela
me ajudou muito quando meus
meninos eram pequenininhos.
Aí ele falou dela, e minha
menina já falou comigo “mãe,
tudo que pai falar para te
ofender, você fica calada”. Mas
tem hora que a gente não
agüenta, não. (Mulher
concorda). Aí na hora que ele
falou da Célia me atingi, aí eu
falei com ele “não fala da Célia
não”. Aí o Gabriel, meu menino,
riu. (...) Su: você entendeu?
Definição de Então quê que eu pensei?
violência/ Juliana! Falei com minha
Traição/lugar Falar menina, J. se eu continuar do
da mulher na palavrão jeito que eu to aqui, eu to com
sociedade/ 60, 70 anos, fazendo as coisas,
filho na cena aguentando
de violência humilhação,tolerando, ouvindo
desaforo ainda.
ANEXO 08
Camisa confeccionada para a comemoração do mês de março de 2009
ANEXO 09
O MURO
ANEXO 10