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Universidade Federal de Minas Gerais

Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas

“MEXENDO NO VESPEIRO”: LEGITIMAÇÃO DOS CICLOS DE ENFRENTAMENTO À


VIOLÊNCIA DE GÊNERO ATRAVÉS DO GRUPO OPERATIVO

Simone Francisca de Oliveira

Belo Horizonte
2010
SIMONE FRANCISCA DE OLIVEIRA

“MEXENDO NO VESPEIRO”: LEGITIMAÇÃO DOS CICLOS DE ENFRENTAMENTO À


VIOLÊNCIA DE GÊNERO ATRAVÉS DO GRUPO OPERATIVO

Dissertação de mestrado apresentada ao


Programa de Pós-Graduação em Psicologia da
Universidade Federal de Minas Gerais como
requisito parcial à obtenção do título de Mestre
em Psicologia.
Área de concentração: Psicologia Social Linha
de pesquisa: Cultura, Modernidade e
Subjetividade.
Orientador: Profº Dr. Adriano Roberto Afonso
do Nascimento
Co-Orientadora: Profª Drª Sandra Maria da Mata
Azerêdo

Belo Horizonte

Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG

2010
150 Oliveira, Simone Francisca de
O48m ‘Mexendo no vespeiro’ [manuscrito] : legitimação dos ciclos de enfrentamento
2010 à violência de gênero através do grupo operativo / Simone Francisca de Oliveira.
- 2010.

219 f.
Orientador: Adriano Roberto Afonso do Nascimento
Co-Orientadora: Sandra Maria da Mata Azerêdo
Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Minas Gerais,
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas.

.
1. Psicologia - Teses. 2. Violência contra a mulher – Teses. 3. Relações de

gênero – Teses. 4. Teoria feminista – Teses. I. Nascimento, Adriano Roberto Afonso.

II. Azerêdo, Sandra. III. Universidade Federal de Minas Gerais. Faculdade de

Filosofia e Ciências Humanas. IV. Título


A Natália,
o nome mais doce,
o amor da minha vida.
AGRADECIMENTOS

Primeiramente a Deus, meu amparo e meu refúgio, por sua misericórdia e providência me
guiando em todos os momentos e colocando em minha vida as pessoas a quem desejo
agradecer:

Minha mãe que cuida de mim desde sempre, de tudo que sou e de tudo que tenho com suas
mãos tão fortes e que me ensinou a ser honesta, trabalhadora, esforçada, incansável.

Meu pai por sua disponibilidade comigo e com a Natália e por ter me ensinado que tudo tem
conserto. As palavras são substituídas por lágrimas...

Minha filha Natália, a luz do meu caminho, a alegria dos meus dias, meu anjo, minha rainha.

Minha irmã Daniela, pelo carinho comigo e com a Natália e minha avó Francisca, primeira
mulher que admirei e que me ensinou o valor da família e da maternidade.

Minha orientadora Sandra Azeredo a quem não me canso de agradecer por tudo que me
ensinou nestes onze anos de convivência. Sua honestidade, integridade, coerência, e entrega
em tudo que faz são exemplos para mim. Sempre serei grata por ter tido a oportunidade de
conhecê-la. Algumas pessoas mudam as nossas vidas de forma definitiva e ela é uma delas.
Sem ela esta dissertação não existiria.

Meu orientador Adriano Nascimento que me acolheu, me respeitou, me esperou, me


organizou, me ajudou a manter o foco e conseguiu o feito de barrar a minha ansiedade
(poucos fizeram isso). Obrigada por sua acolhida serena mesmo nos momentos mais tensos e
pela atenção e leitura cuidadosa. Espero que este trabalho seja apenas o início de nossa
parceria.

Todas as mulheres a quem escutei no Espaço Bem-Me-Quero, principalmente, aquelas que


aceitaram o convite de participar do Grupo. Obrigada pela confiança e carinho e por darem ao
meu trabalho um gosto de esperança e dignidade. Meu respeito e gratidão por terem
compartilhado comigo suas trajetórias.
A toda equipe do Espaço Bem-Me-Quero, da Coordenadoria Especial Mulheres e da
Secretaria de Direitos e Cidadania, em especial a Célia, Gláucia e José de Souza, por me
acolherem e permitirem que eu coloque em prática meus projetos. Fazer parte desta equipe é
um presente para mim.

A toda a equipe do Programa Municipal de DST/AIDS de Contagem, em especial a Luciene e


a Sâmia que me apoiaram na decisão de ir para o Espaço Bem-Me-Quero.

As minhas queridas estagiárias Andréia, Kenia e Rafaela que me ajudaram e aprenderam


junto comigo. Espero ter acrescentado algo em suas trajetórias. Saibam que vocês
conquistaram uma amiga. Desejo continuar aprendendo com vocês...

Aos colegas e professores do Mestrado, especialmente aos que compartilharam comigo as


disciplinas “Gêneros, diferenças e processos de singularização” e “Cultura e processos de
subjetivação” e ao Profº Miguel Mahfoud, foi um prazer aprender com vocês durante aquelas
tardes.

A todos que fizeram parte das equipes de pesquisa coordenada pela profª Sandra Azeredo,
meus irmãos e irmãs de gênero, especialmente à Camila, Fernanda, Glauber, Patrício, Patrícia,
Cíntia, Alessandra, Alane, Janaína e Margarita. Um carinho especial para Liliane, Fernanda e
Kenia que me auxiliaram nas transcrições das sessões e em especial à Marcela (que apesar da
gravidez e da qualificação) cedeu algumas horas para esta tarefa.

Ao Beto, Maria, Cristiano, Bruno, Adriano, Pedro, Matheus, Wagner, Antônio, Micheline,
Augusto, Alessandra, Walter, Elaine, Baltazar, Gleison, Daniela, Izabel, Antonio e em
especial a Carmen, pela acolhida a mim e a minha filha. A disponibilidade de vocês não tem
preço.

A minha companheira de todas as manhãs Marta, meus primeiros incentivadores Marcos e


Christiane, Rebeca, César, João, Ana Vitória, Mariza, Vanderli, Bernardo, Artur, Dirlen,
Valéria, Flávio, Anderson, Jeane e Cristina por todos esses anos dividindo a vida comigo.
“Quem não se movimenta não sente as cadeias que o prendem”
Rosa Luxemburgo
RESUMO

Este trabalho teve como objetivo investigar o processo de enfrentamento à violência de


gênero em um Grupo Operativo com mulheres sobreviventes à violência de gênero. O Grupo
realiza-se no Centro de Referência a Mulher em Situação de Violência da Prefeitura de
Contagem/MG. Os objetivos específicos do trabalho foram: a) a construção/reconstrução dos
sentidos da violência para as participantes do Grupo, e como isto poderia possibilitar a
elaboração coletiva de estratégias para o fim do Ciclo de Violência; b) como a participação no
Grupo atuou para o questionamento da matriz hegemônica de gênero e para a transformação
das relações de gênero na vida das participantes e; c) as práticas institucionais e as trajetórias
das participantes na Rede de Enfrentamento à Violência de Contagem/MG. Quatro sessões
realizadas entre julho e agosto de 2009 com 14 mulheres foram analisadas considerando-se a
teoria do Grupo Operativo e a teoria Feminista. Os resultados indicam a possibilidade de
elaboração de estratégias visando o fim do Ciclo da Violência, a apropriação das propostas
institucionais da Rede de Enfrentamento à Violência, a legitimação dos ciclos de
enfrentamento à violência e a re-significação das relações de gênero nas vidas das
participantes.

Palavras-chaves: Grupo operativo; violência de gênero; teoria feminista.


ABSTRACT

This work proposes to study the process of confronting gender violence in an Operative
Group composed of women who are survivors of gender violence. The group meets at the
Reference Center for Women confronting Violence in Contagem/MG. The specific objectives
of the work were: a) the construction/reconstruction of the meanings of violence and how the
new meanings would allow the group to elaborate strategies to end the Violence Cycle; b)
how participation in the group worked to question the gender hegemonic matrix and to change
gender relations in the lives of women participating in the Group; e c) the institutional
practices and the women’s trajectories in the Network to Confront Violence in
Contagem/MG. Four group sections that took place between July and August, 2009, with
fourteen women were described and analysed according to concepts belonging to the theory
of Operative Group and to Feminist theory. The results point to the women’s possibility of
elaborating strategies aiming at ending the Violence Cycle, their appropriation of institutional
proposal of the Network to Confront Violence, their legitimating the cycles of confronting
violence and their re-signification of gender relations through their participation in the group.

Key-words: Operative group; gender violence; feminist theory.


SUMÁRIO

1. REVISÃO DA LITERATURA..........................................................................................14

1.1 A Rede de Enfrentamento à Violência................................................................................14

1.2 Historicizando e subvertendo conceitos..............................................................................19

1.3 Violência.............................................................................................................................40

1.4 Grupo Operativo.................................................................................................................64

1.4.1 Definição de Grupo Operativo.........................................................................................70

1.4.2 Tarefa...............................................................................................................................72

1.4.3 Aprendizagem-Comunicação...........................................................................................75

1.4.4 Esquema Conceitual Referencial Operativo – ECRO......................................................77

1.4.5 Assunção e adjudicação de papéis...................................................................................78

1.4.6 O modelo do Cone Invertido - Vetores de Avaliação dos processos Grupais.................80

1.4.7 Funções da Equipe de Coordenação................................................................................83

1.4.8 Utilizações do Grupo Operativo......................................................................................84

2 OBJETIVOS.........................................................................................................................88

2.1 Objetivo Geral.....................................................................................................................88

2.2Objetivos Específicos...........................................................................................................88

3 MÉTODO.............................................................................................................................89

3.1 Campo da pesquisa.............................................................................................................89

3.2 Objeto de estudo..................................................................................................................89

3.3 Sujeitos da pesquisa............................................................................................................90

3.4 Procedimento de Coleta de Dados......................................................................................90

3.5 Análise dos dados................................................................................................................91

4 RESULTADOS.....................................................................................................................93
4.1 Um pouco da nossa história................................................................................................93

4.2 Sessão 01- 22 de julho de 2009- “Cala a boca, minha senhora”.........................................98

4.3 Sessão 02- 12 de agosto de 2009-“Dá para aguentar mais um pouco”.............................120

4.4 Sessão 03- 19 de agosto de 2009-“Olha o tanto de coisa que eu fiz...”............................137

4.5 Sessão 04-26 de agosto de 2009-“Se você esta frequentando um grupo, você confia no

grupo”......................................................................................................................................154

5 DISCUSSÃO.......................................................................................................................166

5.1 O Muro / A cartilha / O spa...............................................................................................167

5.2 Ciclo de Violência/ Ciclo de Enfrentamento à Violência.................................................174

5.3 Estratégias de publicização/Estratégias privadas..............................................................180

5.4 Trajetórias de sobreviventes pela Rede de Enfrentamento à Violência de

Contagem/MG.........................................................................................................................188

5.5 Considerações sobre a aplicação da teoria e técnica do Grupo Operativo com

sobreviventes à violência de gênero........................................................................................200

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................209

REFERÊNCIAS....................................................................................................................212

ANEXOS................................................................................................................................219
LISTA DE FIGURAS

Figura 01: Ciclo de enfrentamento à violência.................................................................63

Figura 02: Cone invertido.......................................................................................................81


1 REVISÃO DE LITERATURA

1.1 A REDE DE ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA DE GÊNERO

Durante a graduação participei como bolsista de iniciação científica, da equipe de pesquisa


coordenada pela Professora Drª Sandra Azerêdo nos projetos “O significado da violência de
gênero: comparação e contraste entre perspectivas de homens e mulheres que participam das
cenas de violência” (1999/2000) e “A Representação social da violência de gênero e a
emergência de demandas sociais entre mulheres” (2000/2001). Além disso, realizei o estágio
curricular coordenado pela Profª Sandra Azerêdo na Delegacia de Mulheres de Belo
Horizonte durante um ano. Com estas experiências entrei em contato com a teoria feminista,
com as sobreviventes à violência de gênero e com um conceito que marcaria meu olhar e
minha prática para sempre: gênero - apresentado por Joan Scott como uma categoria útil para
análise e como uma “encrenca” por Judith Butler. Entre a leitura didática da primeira autora
até o conhecimento da escrita subversiva de Butler se passaram onze anos nos quais me
debruço respeitosamente sobre este conceito. É com ele que caminho nesta dissertação de
Mestrado e na minha prática profissional.

Encrencada pelo conceito que me guia neste trabalho (gênero) começo com o problema de
sua definição. Analogamente, como definir meu objeto de estudo: violência contra as
mulheres, violência de gênero, violência doméstica? Por que é tão difícil definir este
fenômeno e por que é tão difícil definir e utilizar o conceito gênero fora da Academia? A
violência de gênero seria uma conseqüência das relações desiguais entre os sexos construídas
culturalmente ou esta própria desigualdade seria uma forma de violência? O próprio
movimento feminista teve em suas várias épocas diferentes definições sobre quem
representava e contra qual adversário lutava. Minha aposta é que a forma de definir o
fenômeno guia o agir, a delimitação do problema e possíveis soluções a ele relacionadas. Não
que seja este meu objeto de estudo direto, mas a escolha teórica que faço de como definir
gênero e violência diz da forma que eu conduzirei meu trabalho de pesquisa.

O debate sobre o direito a não violência como parte dos direitos humanos das mulheres é alvo
de convenções e instrumentos internacionais que atribuem deveres aos estados signatários. A
Declaração de Viena foi o primeiro instrumento internacional a trazer a expressão direitos

14
humanos das mulheres como direitos inalienáveis e parte integrante e indivisível dos direitos
humanos universais. Também neste documento reafirma-se a erradicação das discriminações
de gênero como um dos objetivos prioritários da comunidade internacional. Reconhece a
Declaração de Viena que

a violência contra a mulher infringe os direitos humanos de metade da humanidade e


se realiza geralmente na esfera privada, muitas vezes, doméstica (...) Cabe, portanto,
ao estado e às sociedades em geral, lutar por sua eliminação, no espaço público, no
local de trabalho, nas práticas tradicionais e no âmbito da família. (...) A
Conferência Mundial sobre Direitos Humanos salienta particularmente a
importância de se trabalhar no sentido da eliminação de todas as formas de violência
contra as mulheres na vida pública e privada. (...) A Conferência Mundial sobre
Direitos Humanos apela à Assembléia Geral para que adote o projeto de declaração
sobre a violência contra a mulher e inste os Estados a combaterem a violência contra
a mulher, em conformidade com as disposições da declaração (DECLARAÇÃO DE
VIENA, 1993).

O Brasil assumiu o compromisso perante o sistema global e regional de proteção dos direitos
humanos de coibir todas as formas de violência contra a mulher e adotar políticas destinadas a
prevenir, punir e erradicar a violência de gênero. Entre estas políticas foi criada a Secretaria
Especial de Políticas para as Mulheres (SPM) que assessora direta e imediatamente a
Presidência da República na formulação, coordenação e articulação de políticas para as
mulheres.

Em consonância com a política internacional e nacional, o Estado de Minas Gerais


implementou em 2007 a Coordenadoria Estadual de Políticas Públicas para Mulheres. De
acordo com as indicações do Plano Nacional de Políticas para Mulheres da Secretaria
Especial de Políticas para as Mulheres (2006) de que sejam instituídas redes de atendimento
às mulheres em situação de violência, foi implementada a Rede de Enfrentamento à Violência
contra a Mulher do Estado de Minas Gerais, composta pelas seguintes instituições: Secretaria
Especial de Políticas para Mulheres da Presidência da República (apoio), Secretaria de Estado
de Desenvolvimento Social/MG-SEDESE (apoio), Coordenadoria Especial de Políticas
Públicas para Mulheres do Estado de Minas Gerais, Conselho Estadual da Mulher/MG-CEM,
Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais, Promotoria de Justiça de Defesa dos Direitos
da Mulher do Ministério Público de Minas Gerais, Delegacias Especializadas de Crimes
contra a Mulher de Belo Horizonte e Contagem, Consórcio Regional de Promoção da
Cidadania “Mulheres das Gerais”, Coordenadoria Especial de Políticas para Mulheres de
Contagem-CEPOM, Coordenadoria Especial de Políticas Públicas para Mulheres-CEPAM,

15
Coordenadoria Municipal dos Direitos da Mulher de Belo Horizonte e de Lagoa Santa-
COMDIM, Centro de Referência de Atendimento à Mulher em Situação de Violência de
Contagem-Espaço Bem-Me-Quero, Bemvinda-Centro de Apoio à Mulher de Belo Horizonte,
Centro Risoleta Neves de Atendimento-CERNA, Conselho Estadual da Mulher de Minas
Gerais, Instituto Albam, Superintendência de Políticas Publicas para Mulheres de Sabará,
Secretaria Municipal de Ação Social da Prefeitura Municipal de Nova Lima, Casa Abrigo
Sempre Viva e Polícia Militar de Minas Gerais.

A cidade de Contagem/MG, por sua vez, criou a Coordenadoria Especial de Políticas para
Mulheres (CEPOM/PMC) através do Projeto de Lei Municipal nº 006 de 06/09/2005 com o
objetivo de elaborar, coordenar e executar políticas que assegurem o atendimento das
necessidades específicas da mulher e colaborem no combate às diferentes formas de
discriminação de gênero no município. Entre os programas desenvolvidos pela
Coordenadoria está o Espaço Bem-Me-Quero, que se dedica ao atendimento às mulheres em
situação de violência. O Espaço foi inaugurado no dia 08 de março de 2007, em consonância
com a Norma Técnica de Padronização dos Centros de Referência de Atendimento à Mulher,
da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM) do Governo Federal.

Nesse estudo a articulação em rede entre os poderes federal, estadual e municipal para o
enfrentamento à violência contra a mulher é entendida como um conjunto de saberes e de
estratégias de poder que atua sobre determinada ideologia vigente no Brasil atual em relação à
violência de gênero. Toda esta articulação política vem responder à urgência que as feministas
apontam, principalmente a partir da década de 1980, no Brasil, da necessidade de uma
resposta do poder público para a violência contra as mulheres.

Considero que o dispositivo de enfrentamento à violência de gênero da forma como se


apresenta atualmente incita a penalização e criminalização da violência doméstica em
contraposição a sua privatização, coloca as instituições públicas como instrumentos
privilegiados na promoção do enfrentamento à violência de gênero, busca desnaturalizar,
desindividualizar e desprivatizar a violência ao apostar na produção de políticas públicas
como resposta social para o problema, referencia-se pelo respeito aos direitos humanos das
mulheres e é, ainda, produtor de subjetividades delimitadas para as mulheres, reservando para
estas o lugar de sujeito de direito. Este dispositivo vem ao encontro da necessidade de

16
instaurar uma nova racionalidade sobre a violência contra a mulher.

A legislação produzida mundial e nacionalmente nos últimos quinze anos, por exemplo, é um
dispositivo de poder muito importante na localização do fenômeno violência de gênero, pois

os sistemas jurídicos de poder produzem os sujeitos que subsequentemente passam a


representar. As noções jurídicas de poder parecem regular a vida política em temos
puramente negativos – isto é, por meio de limitação, proibição, regulamentação,
controle e mesmo “proteção” dos indivíduos relacionados àquela estrutura política.
(...) Porém, em virtude de a elas estarem condicionados, os sujeitos regulados por
tais estruturas são formados, definidos e reproduzidos de acordo com as exigências
delas. (...) Os sujeitos jurídicos são invariavelmente produzidos por via de práticas
de exclusão que não “aparecem” uma vez estabelecida a estrutura jurídica da
política. (...) O poder jurídico “produz” inevitavelmente o que alega meramente
representar; conseqüentemente, a política tem que se preocupar com essa função
dual do poder: jurídica e produtiva (BUTLER, 2003, p.18-19).

Da mesma forma, amparado no sistema jurídico, o discurso dos propositores das políticas
públicas e dos responsáveis pelos atendimentos nas instituições da Rede de Enfrentamento à
Violência “produz” o sujeito que diz “representar”, “defender”, “atender” e “encaminhar”.

No Brasil, a principal contribuição para as mulheres vítimas de violência silenciosa e


silenciada em seus lares foi o questionamento sobre o mundo privado e a família. As mulheres
do feminismo incentivaram a denúncia e exigiram do Estado uma solução política para a
violência ocorrida no âmbito privado. Nesse sentido, principalmente a partir da década de 80,
o movimento feminista teve várias conquistas, como a criação das Delegacias Especializadas
de Crimes contra a Mulher (DECCM) e a punição de alguns homens que assassinaram suas
esposas em nome da honra. Neste momento a violência era nomeada como violência contra
as mulheres. Era o início de um diálogo entre o movimento feminista e o Estado, importante
aspecto para a localização da construção do dispositivo de enfrentamento à violência como
está delimitado hoje (RAGO, 1996; e 2003; SILVEIRA, 2006).

Neste capítulo de “Revisão da Literatura” apresentarei no tópico “Historicizando e


subvertendo conceitos” uma discussão sobre os conceitos de sexo/gênero buscando
demonstrar como estes vocábulos assumem diferenciados sentidos de acordo com o momento
histórico e os interesses de quem os utilizam. Apresentarei, assim, a apropriação de algumas
teóricas feministas destes vocábulos e problematizarei sobre algumas possíveis consequências
desta multiplicidade de emprego destes conceitos. Também discutirei sobre a representação

17
do movimento feminista na sociedade, a partir da adoção do objeto mulheres como seu objeto
de interesse e a problemática de se adotar esta proposta abrangente, mas invisibilizadora de
diferenças. Apresentarei também as propostas de Scott (1999) e Butler (2003) de
historicização e subversão destes conceitos como a proposta guia desta dissertação.

No tópico “Violência”, a partir da discussão de Almeida (2007) sobre a dificuldade de


definição e delimitação do fenômeno da violência de gênero problematizarei a adoção dos
conceitos: violência contra mulher, violência doméstica, violência familiar e violência de
gênero. Defenderei neste trabalho a subversão desta última apresentação propondo a sua
definição a partir de seu adjetivo (gênero) como uma forma de dar visibilidade à construção
discursiva deste conceito como um indicativo de violência. Por fim, apresentarei como
proposta para a análise das trajetórias das sobreviventes à violência de gênero, o emprego do
desenho do Ciclo de Violência. Aliada a isto, como uma forma de contribuir com a discussão,
apresentarei o processo de enfrentamento à violência através do desenho do Ciclo de
Enfrentamento à Violência buscando demonstrar como as estratégias de enfrentamento
adotadas pelas sobreviventes podem ser (des)legitimadas, bem como as consequências disto
para o processo de enfrentamento à violência.

No tópico “Grupos Operativos” realizarei uma revisão da proposta de Pichon-Rivière (1994)


sobre os Grupos Operativos atentando para os aspectos teóricos e ideológicos defendidos pelo
autor para além da delimitação da técnica como simples dinâmica grupal. Também
apresentarei uma discussão sobre a utilização desta técnica como método de coleta de dados, a
confluência dos papéis de coordenadora e pesquisadora e os impactos positivos desta na
condução metodológica de uma pesquisa. Também serão apresentadas as possibilidades de
utilização da técnica com públicos, objetivos e áreas de estudo variados. Por fim, realizarei
uma discussão sobre a utilização desta técnica com o público de mulheres sobreviventes à
violência de gênero.

Para contextualizar o Grupo que aceitou participar desta pesquisa comigo apresentarei no
capítulo “Resultados”, no tópico “Um pouco da nossa história”, a trajetória do Grupo (desde
a sua primeira sessão) apresentando os momentos mais marcantes no processo de legitimação
desta proposta e de suas participantes.

18
1.2 HISTORICIZANDO E SUBVERTENDO CONCEITOS

Os que se propõem a codificar os sentidos das palavras lutam por uma causa
perdida, porque as palavras, como as idéias e as coisas que elas significam, têm uma
história. Nem os professores da Oxford nem a academia Francesa foram
inteiramente capazes de controlar a maré, de captar e fixar sentidos livres do jogo da
invenção e da imaginação humana (SCOTT, 1991, p. 1).

A luta de décadas de escritores(as) feministas que se debruçaram sobre as palavras sexo e


gênero, buscando a cada período histórico apropriar-se deles e dar-lhes sentidos que
correspondessem à melhor forma de apresentar e solucionar a questão da desigualdade entre
homens e mulheres construiu uma história para estas palavras. A análise dessa história é
importante por reafirmar a impossibilidade do entendimento de qualquer conceito sem a
contextualização histórica e política do mesmo. As palavras não são inocentemente
empregadas ou assumem seus significados naturalmente, mas sim são investidas de
significados a partir dos interesses dos que buscam capturar seus sentidos. Por mais que se
observe como esta luta é incessante e fugidia no decorrer da história, ela continua, inclusive
aqui...

Partindo da apresentação do significado das palavras sexo e gênero no Novo Dicionário


Aurélio (1999) iniciarei a discussão sobre as utilizações nada inocentes destas palavras.

Sexo: sm. 1. Conformação particular que distingue o macho da fêmea, nos animais e
vegetais, atribuindo-lhes um papel determinado na geração. 2. O conjunto dos que
são do mesmo sexo. 3. Sensualidade, volúpia, lubricidade; sexualidade. 4. Bras. Os
órgãos genitais externos. O belo sexo: as mulheres, o sexo amável, o sexo frágil. O
sexo devoto: As beatas. O sexo forte: Os homens.

Gênero: sm. 1. Antrop. A forma culturalmente elaborada que a diferença sexual


toma em cada sociedade e que se manifesta nos papéis e status atribuídos a cada
sexo e constitutivos da identidade sexual de cada sexo. 2. E. Ling. Categoria
gramatical (q.v) que dispõe os nomes de uma língua em classes (como feminino,
masculino, neutro, animado, inanimado) de acordo com: (a) referência pronominal
(a casa/ela, o menino/ele), (b) a concordância com os modificadores (a menina
bonita, o gato gordo), (c) a presença de determinados afixos um dos predicáveis. 3.
Log. Um dos predicáveis (q.v): característica (s) que uma coisa tem em comum com
a outra e que lhe(s) determina(m) a essência, quando acrescida da diferença.

Nestes significados apresentados para a palavra sexo destacamos quatro aspectos: a


fundamentação na biologia, a apresentação a partir do binarismo macho/fêmea, sua função de
aglutinador de iguais e sua utilização em expressões figurativas.

19
Por sua vez, o vocábulo gênero é apresentado através de sua fundamentação cultural e pela
diferenciação de acordo com o sexo e com a sociedade. Observamos também para esta
palavra a manutenção do binarismo feminino/masculino e do seu entendimento como
aglutinador de iguais, porém, em contraposição ao diferente.

Iniciando uma discussão sobre a forma culturalmente assumida pelo sexo (gênero)
observamos que os adjetivos frágil, belo e devoto são utilizados para o sexo feminino e o
adjetivo forte para o sexo masculino. O aparecimento destas expressões figurativas em um
dicionário diz da sua inteligibilidade e aceitação na linguagem do dia a dia de determinada
sociedade. Utilizarei desses exemplos e definições do dicionário para abordar alguns aspectos
da história dessas palavras e da forma como me aproprio delas nesse trabalho.

Segundo Scott (1991), a apresentação da palavra gênero como uma maneira de referir-se à
organização social da relação entre os sexos foi apropriada pelas feministas interessadas:

 em denunciar a distinção social e não biológica dos sexos na sociedade;


 no aspecto relacional das definições normativas de feminilidade;
 na pesquisa sobre as mulheres como uma forma de mudança dos paradigmas das disciplinas
e como uma reavaliação crítica de premissas e critérios científicos e
 na inclusão no debate científico e histórico dos aspectos pessoal, subjetivo, político e
público.

Para esse último fim, algumas feministas agregaram o estudo do gênero aos de classe
(amplamente discutidos pelos marxistas) e de raça (também em processo de assimilação
política pelos movimentos sociais). A análise das relações entre os sexos a partir desta tríade
é, ainda hoje, um desafio para os/as estudiosos/as do gênero.

Para além destes desafios e interesses, outros se agregam à história da discussão sobre o uso
do gênero/sexo como base política do feminismo. Neste trabalho irei me deter sobre alguns
destes riscos/desafios, quais sejam:

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 a denúncia sobre a construção social da diferença entre os sexos deixar de fora o aspecto
culturalmente construído do uso de palavras como sexo, corpo e natureza e de manter-se fiel
ao binarismo masculino/feminino;

a pesquisa e a luta feminista basear-se em um mito representacional das mulheres


denunciado pelas feministas negras e lésbicas;

o anseio de dar visibilidade política e científica ao feminismo esbarrar, algumas vezes, em


estudos meramente descritivos ancorados em categorias como, por exemplo, experiência e
identidade, ou nos cânones científicos sem a proposição de mudanças.Para esta empreitada
dialogarei, principalmente, com as teóricas feministas Joan Scott, Donna Haraway, Sandra
Azerêdo e Judith Butler.

Em seu texto “Gênero: uma categoria útil para análise histórica”, originalmente publicado
em 1989, Scott alertava para a estratégia característica dos estudos feministas dos anos 80 de
substituição da categoria mulheres por gênero, propondo as duas palavras como sinônimas.
Esta estratégia visava dar legitimidade acadêmica e científica para os estudos sobre as
mulheres em busca de uma objetividade e erudição sem o risco de filiação ao discurso do
feminismo.

Para além desta estratégia, a utilização de gênero como substituto de mulheres refere-se ao
gênero como “um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas
entre os sexos” (SCOTT, 1991, p.14). Apesar da importância da denúncia da construção
social sobre o corpo das mulheres e dos homens, esta não pautava como questão o porquê ou
o como essas relações se constituíam, funcionavam e, por conseguinte, como poderiam ser
modificadas. Faltava aos estudos descritivos uma apropriação da discussão sobre os aspectos
político, histórico e as relações de poder no processo de definição dos conceitos sexo e
gênero. Scott (1991) alerta que sem este posicionamento dificilmente produzir-se-iam
propostas de mudanças, seja dos cânones da ciência ou dos paradigmas da história existente.
Até esse momento histórico, falar de mulheres/gênero era falar de um assunto secundário.

Como proposta para este dilema as historiadoras feministas utilizaram-se basicamente de


quatro proposições teóricas: o conceito do patriarcado, as teorias marxistas e as teorias da

21
escola do pós-estruturalismo francês e da escola anglo-americana das relações de objeto. Cada
um destes diálogos carregou consigo as limitações de uma apropriação teórica e serão
apresentados como contrapontos para a proposta de conceitualização neste trabalho.

Primeiramente apresentarei o conceito do patriarcado (SAFFIOTI, 2004) que pode ser


definido como uma tentativa feminista de explicação sobre as relações entre os sexos baseada
na exploração do corpo e da capacidade de reprodução das mulheres. As teóricas feministas
interessavam-se, assim, em denunciar a submissão das mulheres aos homens. A partir deste
entendimento, homens e mulheres estavam em lados opostos, estas no privado e aqueles no
público. A manutenção dessa dicotomia era sustentada pelo patriarcado que “representa um
estrutura de poder baseada tanto na ideologia quanto na violência” (SAFFIOTI, 2004, p.58).
Com este conceito, buscava-se trazer ao debate sobre as relações entre homens e mulheres:

 a noção de que o privado é político;

 a diferença dos direitos sexuais entre os homens e mulheres na sociedade capitalista e


falocêntrica e

 a existência de um tipo hierárquico de relação vislumbrado em todos os espaços da


sociedade (SAFFIOTI, 2004).

As divergências sobre a validade e a continuidade da utilização do conceito de patriarcado e a


discussão sobre a substituição ou utilização conjunta com o conceito de gênero ocupa as
defensoras do patriarcado e as feministas contrárias a este posicionamento. Entre as
defensoras da continuidade do uso do conceito de patriarcado, Saffioti (2004) argumenta que
as feministas devem adotar a noção de patriarcado como ponto fundamental de discussão para
o fenômeno da dominação das mulheres pelos homens. Esta autora aponta que

não se trata de abolir o uso do conceito de gênero, mas de eliminar sua utilização
exclusiva. Gênero é um conceito por demais palatável, porque é excessivamente
geral, a-histórico, apolítico e pretensamente neutro. Exatamente em função de sua
generalidade excessiva, apresenta grande grau de extensão, mas baixo nível de
compreensão. O patriarcado, ou ordem patriarcal de gênero, só se aplica a uma fase
histórica, não tendo a pretensão da generalidade nem da neutralidade, e deixando
propositalmente explícito o vetor da dominação-exploração. Perde-se em extensão,
porém, se ganha em compreensão. Entra-se no reino da História. Trata-se, pois, da
falocracia, do androcentrismo, da primazia do masculino. É, por conseguinte, um
22
conceito de ordem política (SAFFIOTI, 2004, p. 139).

Saffioti (2004) define gênero como “um conjunto de normas modeladoras dos seres humanos
em homens e em mulheres, normas estas expressas nas relações entre as duas categorias
sociais, ressalta(ndo)-se a necessidade de ampliar este conceito para as relações homem-
homem e mulher-mulher” (SAFFIOTI, 2004, p. 70).

Desta forma denuncia-se a subjugação dos corpos masculinos e femininos às normas culturais
modeladoras, onde o corpo e seu sexo são compreendidos como bases biológicas para este
tipo de normalização.

Saffioti (2004) também apresenta o alerta de Pateman para a teoria feminista sobre o perigo
de abandonar o uso do patriarcado de forma definitiva, pois isto representaria a “perda do
único conceito que se refere especificamente à sujeição da mulher, e que singulariza a forma
de direito político que todos os homens exercem pelo fato de serem homens” (PATTEMAN
apud SAFFIOTI, 2004, p.55).

As críticas a esta interpretação patriarcal se referem a sua pretensa universalidade, seu caráter
reducionista e a não relação ou utilização deste conceito para a explicação de outras
desigualdades sociais (SCOTT, 1991; BUTLER, 2003).

Esta discussão permite observar um dos muitos exemplos de luta pela busca de codificação de
sentidos. Através do percurso do feminismo vale a pena observar esta tentativa de se segurar
uma definição/explicação como única e definitiva, mas o que se percebe é como facilmente
ela escorre pelos nossos dedos como areia. Para além, cabe sempre se deter sobre os interesses
na escolha da utilização dos conceitos.

As feministas marxistas, por sua vez, buscaram guiar-se por uma abordagem histórica,
limitada, porém, pela busca de uma origem/explicação para o gênero. Apesar da rejeição do
essencialismo biológico como determinante para a divisão sexual do trabalho e da aceitação
do fato de que a subordinação das mulheres era anterior à subordinação ao capitalismo,
observa-se nesta abordagem uma constante utilização da causalidade econômica como origem
das desigualdades/diferenças entre os sexos. Aqui os dois sistemas (capitalista e de gênero)
eram vistos como separados, mas agindo reciprocamente na produção das estruturas sócio-
23
econômicas/históricas e de dominação masculina na sociedade. O patriarcado, por sai vez, era
entendido como um sistema separado, mas em interação com o capitalismo. Desta forma,
observamos que as teóricas feministas marxistas avançaram na discussão sobre o biológico
como justificativa das desigualdades, mas atrelaram a origem às desigualdades econômicas.
Observamos assim, que no afã de solucionar a charada da origem, os(as) marxistas
apresentaram uma das consequências das desigualdades como explicação causal e
determinista.

Assim, Scott (1991) conclui que nestas abordagens gênero não assume um estatuto próprio de
análise, seja por ser visto como subproduto das estruturas econômicas, ou por ser visto como
subproduto das estruturas corporais, físicas e culturais.

Apesar das críticas às abordagens patriarcais e marxistas muitos questionamentos podem ser
formulados. Inquestionavelmente, a divisão da sociedade capitalista em classes é um assunto
afim à discussão sobre as desigualdades sociais entre homens e mulheres, porém, o desafio
esta na discussão destas pautas entre si e com outras. Esta dificuldade fica (in)visível, por
exemplo, quando a estas pautas de discussão agregam-se o preconceito racial e/ou a
desigualdade entre as raças. Poucas são as discussões que realmente conseguem integrar estas
três pautas sociais não como afins, nem como justapostas, mas como expressões de poder que
atuam sobre os corpos (de homens e mulheres) de forma reiterada e constitutiva. Da mesma
forma que uma visão dicotômica da realidade pode ser questionada, uma tricotomia também
não serve como base para análise. Ou seja, o estudo da diferença e das desigualdades deve-se
pautar na tríade gênero/classe/raça para não correr o risco de fragmentar o que se deseja
visualizar/resolver/representar (SCOOT, 1991).

Este aspecto está diretamente ligado a outro tema muito caro para o feminismo: sua
representação na sociedade. Afinal que movimento político é este? Quem ele representa?
Como ele representa? Quais são suas estratégias? Como ele luta? Contra o quê e contra quem
é essa luta? Quais são seus aliados?

Para Butler, “embora afirmar a existência de um patriarcado universal não tenha mais a
credibilidade ostentada no passado, a noção de uma concepção genericamente compartilhada
de 'mulheres', corolário dessa perspectiva, tem se mostrado muito mais difícil de superar”

24
(BUTLER, 2003, p.21).

Assim, a categoria mulher e a escolha de sua utilização remetem ao dilema do feminismo


sobre a existência de uma essencialidade das mulheres que as uniria e tornaria possível a
representabilidade e defesa de todas através de um projeto político unívoco. No decorrer da
história do feminismo observamos que, a cada bandeira empunhada na defesa dos direitos de
umas eram deixadas para trás os interesses de outras. A noção de uma identidade comum que
abrangeria todas as mulheres e todos os seus direitos foi questionada. De quais mulheres se
está falando? Contra qual violência se está lutando? Quais direitos estão sendo defendidos?

A permanência da concepção genericamente compartilhada do uso de mulheres demonstra a


força desta construção discursiva que, ao buscar este conjunto universal, produz uma
categoria de mulheres essencializada, passível de representação, deixando fora do discurso
parte do coletivo que diz representar. O perigo deste tipo de definição para o objeto do
feminismo está em vir acompanhada “freqüentemente da idéia de que a opressão das mulheres
possui uma forma singular, discernível na estrutura universal ou hegemônica da dominação
patriarcal ou masculina” (BUTLER, 2003, p.20).

A mudança na utilização, sentido e definição de uma palavra como mulher e, por conseguinte,
em sua representatividade e aceitabilidade não se dá a não ser por meio de disputas, lutas de
poder. As palavras e seus significados não se constituem em um vácuo ou em interações
inocentes, imparciais e objetivas entre os sujeitos. Assim, ao se utilizar o conceito mulheres
deve-se perguntar a que (quais) mulher(es) se está(ão) referindo, qual(is) estão sendo
representada(s) e qual(is) estão sendo posicionadas fora deste discurso.

A defesa da categoria mulheres como composta de um número infinito de possíveis definições


e localizações do que seja uma mulher em contraposição a uma conceituação essencializadora
da categoria mulher influencia definitivamente a agenda de movimentos sociais como, por
exemplo, o feminismo. Este tipo de posicionamento permite uma representação localizada na
busca e definição de direitos. A conclusão é que a utilização do termo mulheres como a
denotação de uma identidade unívoca é uma falácia com consequências para sua
representatividade. Em relação a esta “ficção representacional e fundacional” Butler assim se
posiciona:

25
É minha sugestão que as supostas universalidade e unidade do sujeito do feminismo
são de fato minadas pelas restrições do discurso representacional em que funcionam.
Com efeito, a insistência prematura num sujeito estável do feminismo,
compreendido como uma categoria una das mulheres, gera, inevitavelmente,
múltiplas recusas a aceitar essa categoria. Esses domínios de exclusão revelam as
consequências coercitivas e reguladoras dessa construção, mesmo quando a
construção é elaborada com propósitos emancipatórios (BUTLER, 2003, p.21-22)

Butler não questiona a legitimidade do movimento feminista, mas a pretensão universalisante


de um feminismo que se perde em busca de representatividade. Para ela,

a crítica feminista tem de explorar as afirmações totalizantes da economia


significante masculinista, mas também deve permanecer autocrítica em relação aos
gestos totalizantes do feminismo. O esforço de identificar o inimigo como singular
em sua forma é um discurso invertido que mimetiza acriticamente a estratégia do
opressor, em vez de oferecer um conjunto diferente de termos. O fato de a tática
poder funcionar igualmente em diferentes contextos feministas e antifeministas
sugere que o gesto colonizador não é primária ou irredutivelmente masculinista. Ele
pode operar para levar a cabo outras relações de subordinação hetero-sexista, racial
e de classe, para citar apenas algumas (BUTLER, 2003, p.33-34).

A partir desta discussão adotarei o recorte realizado na categoria mulheres vinculado ao


entendimento de Denise Riley, citada por Cláudia Lima Costa (2002, p.72), sobre o “sujeito”
do feminismo. Para aquela autora a categoria mulheres é

histórica e discursivamente construída, sempre em relação a outras categorias que


também se modificam; “mulheres” são uma coletividade volátil na qual os seres
femininos podem estar posicionados de formas bastante diferentes, de modo que não
se pode confiar na aparente continuidade do sujeito “mulheres”; “mulheres” como
coletividade é uma categoria sincrônica e diacronicamente errante, enquanto que, a
nível individual, “ser mulher” também é algo inconstante, que não consegue
oferecer base ontológica. Ainda assim, deve ser destacado que essa instabilidade da
categoria é o sine qua non do feminismo, que de outra forma se perderia por um
objeto, ficando despojado de lutas, e em resumo, sem muita vida (RILEY apud
COSTA, 2002, p.71).

A discussão sobre a representatividade da categoria mulheres como sujeito do movimento do


feminismo coloca em questão as próprias noções de sujeito e identidade. Situar e fixar
mulheres como um conceito único, fechado e acabado em sua construção apresenta o
feminismo como um movimento de uma massa de sujeitos colocados como iguais. Este é o
erro sedutor das propostas essencialistas e binaristas que apresentam os dois conjuntos
homens e mulheres como dois grupos que se digladiam apenas por não respeitarem as
diferenças entre si. Este discurso produz formas de enfrentamento às questões das
desigualdades e da violência que apontam para soluções frágeis por não se perguntarem sobre

26
como os sujeitos são posicionados na relação e por qual discurso. Partindo de um tipo de
interpretação discursiva apaziguadora e respeitadora das diferenças binárias, por exemplo,
defende-se que caso reinasse o diálogo entre as diferenças/partes/sexos atingir-se-ia o fim das
desigualdades. Assim, não se questiona como cada uma das partes da discussão detém o
poder, sobre quais discursos pautam esta discussão (religioso/jurídico/científico/feminista) e
sobre como estes discursos perpassam e constituem todo o processo de discussão e os sujeitos
participantes.

Esta visualização das relações entre os sexos fundamenta-se na fixação da oposição binária e
antagônica entre masculino-feminino como a única relação possível e como um aspecto
permanente da condição humana. As desavenças se dariam invariavelmente entre os dois
sexos/gênero vistos como uma construção universal, antagônica, fundante do ser humano e
imutável. Este é um dos aspectos que Scott (1991) questiona na apropriação das teorias
psicanalíticas pelas feministas. O que a autora observa é que, apesar de se perceber o processo
da construção da identidade de gênero como um processo e de não se negar a instabilidade
desta identidade, as teorias de base psicanalítica tendem à universalização das categorias, sua
binarização e a reificação do antagonismo subjetivo entre homens e mulheres. O antagonismo
sexual como aspecto inevitável e fundante da aquisição da identidade sexual perpetua e
justifica proposições essencialistas e únicas para a apresentação de homens e mulheres na
sociedade. Desta forma, Scott (1991) demonstra como facilmente a apropriação destas bases
teóricas pode levar algumas feministas a reforçarem justamente a essencialização do feminino
na sociedade.

O primeiro problema que esse tipo de empréstimo coloca é o deslizamento que


acontece frequentemente na atribuição da causalidade: a argumentação começa com
afirmações do tipo “a experiência das mulheres levam-nas a fazer escolhas morais
que dependem dos contextos e das relações”, para chegar à: “as mulheres pensam e
escolhem esse caminho porque elas são mulheres”. Encontramos implicadas nessa
abordagem a noção a-histórica, se não essencialista, de mulheres. (...) Insistindo
sempre sobre as diferenças fixadas (...), as feministas reforçam o tipo de pensamento
que elas queriam combater. Apesar do fato de que elas insistem na reavaliação da
categoria do “feminino” (...) elas não tratam da oposição binária em si mesma
(SCOTT, 1991, p.12).

Em relação à teoria das relações objetais, Scott (1991) critica a limitação do conceito gênero à
esfera da família e à experiência doméstica. Com este recorte esta teoria perde de vista os
aspectos históricos e políticos da representação da sociedade sobre a construção de gênero,
não se perguntando sobre como “os sistemas de significados, isto é, as maneiras que as
27
sociedades representam o gênero, o utilizam para articular regras de relações sociais ou para
construir o sentido da experiência” (SCOTT, 1991, p.10).

A partir destas críticas, Scott (1991) defende que é necessário ao feminismo teorizar sobre sua
prática, utilizar-se do gênero como uma categoria para a análise e historicizar os conceitos
denunciando a apresentação e utilização de algumas categorias analíticas como reificadas e
transcendentes. Assim, ela conclama que

Precisamos de uma historicização e de uma desconstrução autênticas dos termos da


diferença sexual. Temos que ficar mais atentas às distinções entre nosso vocabulário
de análise e o material que queremos analisar. Temos que encontrar os meios
(mesmo que imperfeitos) de submeter, sem parar, as nossas categorias à crítica,
nossas análises à autocrítica. (...) Temos que examinar atentamente os nossos
métodos de análise, clarificar as nossas hipóteses operativas e explicar como
pensamos que a mudança se dá. Em lugar de procurar as origens únicas, temos que
conceber processos tão ligados entre si que não poderiam ser separados (...). Temos
que nos perguntar mais frequentemente como as coisas aconteceram para descobrir
porque elas aconteceram (SCOTT, 1991, p.13-14).

Fazendo coro a este convite Butler proclama que “rir de categorias sérias é indispensável para
o feminismo. Sem dúvida, o feminismo continua a exigir formas próprias de seriedade”
(BUTLER, 2003, p.8).

Desta forma, estudar a busca do movimento feminista por construir uma resposta teórica
diferente das apresentadas para as desigualdades permanentes entre mulheres e homens a
partir da história das várias utilizações da palavra gênero é historicizar o conceito, atentar-se
para seu aspecto discursivo, político, não evidente. Este mesmo exercício é proposto para o
estudo de conceitos como sexo, experiência, raça, mulheres e quaisquer outras categorias
normalmente tidas como auto-evidentes.

De outro lado, teorias e práticas que se apóiam exclusivamente na visibilidade da experiência


da diferença como forma de denúncia das desigualdades perdem de vista o aspecto histórico e
político desta discussão. Scott (1999) questiona a autoridade da categoria experiência como
auto-evidente e origem do conhecimento. A partir deste posicionamento, a experiência
individual é o alicerce das explicações em um jogo de reprodução dos sistemas ideológicos
estabelecidos impedindo um exame crítico das “categorias de representação
(homossexual/heterossexual/homem/mulher, negro/branco como identidades fixas e
imutáveis), suas premissas sobre as quais as categorias significam e como elas operam suas
28
noções de sujeitos, origem e causa” (SCOTT, 1999, p.26,27).

Podemos acrescentar aos questionamentos acima a tomada destas categorias representacionais


como essências definidoras e fundantes dos sujeitos anteriores ao discurso e à política. A
partir deste ponto de vista, ter a experiência de ser negra, mulher, homossexual ou de
apresentar-se com determinada identidade em determinado momento (e todas as outras formas
imagináveis de combinação destes conceitos) seria a base para a explicação e universalização
de identidades e histórias destes grupos. A essência destes representantes grupais seria a
explicação para os fenômenos que os atingem bem como a solução para os mesmos. Assim os
fenômenos relacionados a estas experiências seriam reflexos de uma experiência essencial do
ser (mulher, negro, pobre ou homossexual) e não produtos da política discursiva de
determinado período histórico sobre estas experiências (SCOTT, 1999). O que se nega com
isto é o caráter relacional e histórico destas experiências/conceitos posicionado o “ser” como
independe e anterior às relações/interseções históricas e políticas. Com esta tentativa de
explicação essencializam-se e cristalizam-se conceitos. Para evitar apenas a reprodução da
história de identidades essencializadas, devem-se desmascarar os vestígios de dominação
política, cultural e discursiva sobre as mulheres e suas experiências. Assim, para historicizar
essas experiências partir-se-ia do questionamento do que conta como experiência e quem
determina isso. Assim, não deveríamos basear nossas produções na História, mas “refletir
criticamente sobre a história escrita e sobre o que escrevemos sobre ela (...), sobre os
processos discursivos pelos quais identidades são atribuídas, resistidas ou abraçadas, e quais
processos são ignorados” (SCOTT, 1999, p.37- 40-41).

Historicizar conceitos é não apresentá-los como “a origem de nossas explicações, mas como
aquilo que buscamos explicar, aquilo sobre o qual se produz conhecimento. (...) É tratar as
categorias de análise como contextuais, contestáveis e contingentes (...) e suas histórias como
contestáveis e contraditórias” (SCOTT, 1999, p.27- 46-47).

Essa forma de interpretação remete ao que Foucault, reformulando Nietzsche, chamou de


genealogia. Esta forma de interpretação e registro da história permeia os escritos de algumas
teóricas feministas na discussão sobre o que significa a singularidade das mulheres no mundo
capitalista, falocêntrico e racista e na (des)construção de conceitos transformando-os “em seus
próprios conceitos em sua luta” (AZERÊDO, 2007, p.87).

29
Assim, em contraposição à busca das origens das categorias fundacionais do
sexo/gênero/corpo algumas feministas propõem uma análise crítica destas categorias como
efeitos de uma formação específica de poder. Butler (2003) propõe a subversão e o
deslocamento destas noções naturalizadas e reificadas através de uma genealogia da ontologia
do gênero. Para este fim, ela busca compreender “a produção discursiva da plausibilidade da
relação binária dos sexos” sugerindo “que certas configurações sociais culturais do gênero
assumem o lugar do 'real' e consolidam e incrementam sua hegemonia por meio de uma
autonaturalização apta e bem-sucedida” (BUTLER, 2003, p.58). A crítica genealógica

recusa-se a buscar as origens do gênero, a verdade íntima do desejo feminino, uma


identidade sexual genuína ou autêntica que a repressão impede de ver; em vez disso,
ela investiga as apostas políticas, designando como origem e causa categorias de
identidade que, na verdade, são efeitos de instituições, práticas e discursos cujos
pontos de origem são múltiplos e difusos. A tarefa dessa investigação é centrar-se e
descentrar-se nessas instituições definidoras: o falocentrismo e a heterossexualidade
compulsória. (...) Ela toma como foco o gênero e a análise relacional por ele
sugerida precisamente porque o “feminino” já não parece mais uma noção estável,
sendo seu significado tão problemático e errático quanto o de “mulher”, e porque
ambos os termos ganham seu significado problemático apenas como termos
relacionais (BUTLER, 2003, p.9, grifos meus).

Scott (1991), por sua vez, apresenta sua definição de gênero a partir da conexão entre duas
proposições. Assim, o gênero seria para esta autora,

um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas


entre os sexos implicando em quatro elementos relacionados entre si: (...) símbolos
culturalmente disponíveis que evocam representações múltiplas, (...) conceitos
normativos que colocam em evidência interpretações do sentido dos símbolos que
tentam limitar e conter as suas possibilidades metafóricas, (...) a identidade subjetiva
e uma forma primeira de significar as relações de poder ou um campo primeiro no
seio do qual ou por meio do qual, o poder é articulado (SCOTT, 1991, p.14-16).

As apresentações da definição de gênero, a partir de relações de poder, remetem ao


entendimento desta autora de que se faz necessário “substituir a noção de que o poder social é
unificado, coerente e centralizado por alguma coisa próxima do conceito foucaultiano de
poder, entendido como constelações dispersas de relações desiguais constituídas pelo discurso
nos ‘campos de forças’” (SCOTT, 1991, p.14).

A discussão conjunta sobre poder em Foucault e o processo de construção da(s)


definição(ões) dos conceitos de gênero e sexo é frutífera e nos auxilia para que consigamos

30
evitar as ciladas acima demonstradas. Foucault já nos alertava que se o poder é permitido é
por ele nos dar certa liberdade, sua aceitabilidade se dá justamente por fazer crer que possui
somente uma parte negativa (interditora). “O poder, como puro limite traçado à liberdade,
pelo menos em nossa sociedade, é a forma geral de sua aceitabilidade" (FOUCAULT, 1977,
p.83). Assim, seríamos livres ao obedecer, ou seja, temos o direito à liberdade se não nos
opormos ao caráter negativo e proibitivo do poder. Porém, o caráter mais pernicioso do poder
é o positivo, ou seja, a produção de posições, sujeitos, direitos, discursos, vidas através de
suas indicações. Não são sem consequências que se produzem regras, leis, penas, castigos. Ao
se produzir as normas, também, se produzem os lugares a serem ocupados pelos sujeitos a
quem elas se destinam. O caráter positivo do poder legitima a violência, por exemplo, ao
construir discursivamente quem é forte e quem é fraco, quem será punido ao desrespeitar a
Lei, quem tem o poder de punir, qual tipo de pena será aplicado e a própria construção
discursiva legitimadora do infrator. No caso da violência de gênero, homem e mulher são
produtos da relação de poder positiva e negativa do discurso sobre seus corpos e direitos. A
mulher, por exemplo, transita pelos lugares produzidos pelos dispositivos de poder, ora como
vítima e fraca; ora como responsável pela violência por não ter respondido às expectativas de
seu marido como mulher; ora como a cidadã que deve buscar seus direitos em uma instituição
que foi criada pelo poder estatal para defendê-la. Esta mesma instituição, porém, não hesita
em recomeçar o ciclo de violência posicionado-as discursivamente como passivas ou
responsáveis pela violência. A mulher e o homem dançam em um jogo de poder onde seus
corpos são ocupados por discursos que constituem assim sua subjetividade e seu lugar na
sociedade.

Desta forma, seja a partir de seu aspecto negativo (proibitivo e regulador) ou positivo
(generativo), o poder é entendido por Foucault como algo que não se dá ou se retira de
alguém nem como algo que está além de um ato de vontade individual baseada na liberdade
dos sujeitos. Assim sendo, por não ser possível destruí-lo ou negá-lo o que se pode fazer é
deslocá-lo através dos fossos e fissuras do discurso hegemônico. Acredito que se por um lado
temos a força das normas que tornam inteligíveis os corpos (e os discursos sobre eles) por
outro temos a possibilidade de sua rearticulação, a partir do questionamento da hegemonia
discursiva, “produzindo possibilidades de 'sujeitos' que não apenas ultrapassa os limites da
inteligibilidade cultural como efetivamente expandem as fronteiras do que é de fato
culturalmente inteligível” (BUTLER, 2003, p.54). Neste processo construtivo/desconstrutivo

31
verdades são desmanteladas e outras são iniciadas com o objetivo de produzir novas
categorias que possibilitem identidades de gênero subversivas.

Na caça aos fossos e fissuras do discurso hegemônico e heteronormativo faço eco às


perguntas de Butler (2003):

Podemos referir-nos a um “dado” sexo ou um “dado” gênero, sem primeiro


investigar como são dados o sexo e/ou gênero e por que meios? E o que é afinal o
sexo? Como deve a crítica feminista avaliar os discursos científicos que alegam
estabelecer tais “fatos” para nós? Teria o sexo uma história? Possuiria cada sexo
uma história ou histórias diferentes? Haveria uma história de como se estabeleceu a
dualidade do sexo, uma genealogia capaz de expor as opções binárias como uma
construção variável? Seriam os fatos ostensivamente naturais do sexo produzidos
discursivamente por vários discursos científicos a serviço de outros interesses
políticos e sociais? (BUTLER, 2003, p.25).

Podemos, a partir de pequenas modificações, aplicar esta lista de perguntas aos conceitos de
raça, sexualidade e corpo. As pistas para as respostas a estas questões nos remetem à
discussão sobre a metafísica da presença e a vinculação da materialidade do corpo com a
performatividade do gênero (BUTLER,2003).

Uma forma de iniciar o exercício (sem a pretensão de decifrá-lo totalmente) de resposta às


questões acima é justamente questionar a forma binária como sexo e gênero são apresentados
e como a descontinuidade entre sexo e gênero desconstrói a unidade do sujeito.

Concebida originalmente para questionar a formulação de que a biologia era o destino, a


distinção entre sexo e gênero fundamentou-se na estruturação dicotômica/naturalizante e
binarista (natureza/cultura, homem/mulher, feminino/masculino), onde sexo era originado na
natureza e gênero uma ação da cultura sobre o sexo biológico. O feminismo (em alguns
momentos históricos) propôs

uma forma de dar suporte e elucidar a distinção sexo/gênero adotando a suposição


de haver um feminino natural ou biológico, subsequentemente transformado numa
“mulher” socialmente subordinada, com a consequência que o “sexo” está para a
natureza ou a “matéria-prima” assim como o gênero está para a cultura ou o
“fabricado”. (...) nesta visão, o “sexo” vem antes da lei, no sentido de ser cultural e
politicamente indeterminado, constituindo-se, por assim dizer, na “matéria-prima”
cultural que só começa a gerar significações por meio de e após sua sujeição às
regras de parentesco (BUTLER, 2003, p.65-66).
Neste afã foram apresentadas definições para gênero sem um questionamento sobre o aspecto
dicotomizante e artificial da naturalização e binarização do sexo. Bruschini et al (1998), por

32
exemplo, definem gênero como o “princípio que transforma as diferenças biológicas entre os
sexos em desigualdades sociais, estruturando a sociedade sobre a assimetria das relações entre
homens e mulheres”. Em seu trabalho sobre mulher e violência, Heilborn (1996) define
gênero como

ambiciona(ndo)...distinguir entre o isomorfismo sexual da espécie humana e a


caracterização de masculino e feminino que acompanham nas culturas a presença de
dois sexos na natureza. Este raciocínio apóia-se na idéia de que há machos e fêmeas
na espécie humana, mas a qualidade de ser homem e mulher é condição realizada
pela cultura (HEILBORN, 1996, p.96).

Assim, gênero é apresentado, na maioria das vezes, como uma construção social, histórica e
relacional. Em contraposição, sexo seria o natural dos corpos, biológico, binário e imutável.
Desta forma, a diferença sexual entre homens e mulheres apresenta a sua materialidade em
corpos aprisionados a um discurso onde ter nascido com determinado sexo predetermina toda
a vida social, cultural e relacional do ente biológico. Aqui natureza e cultura são postas em
balanças diferentes e cada uma carrega para seu prato outro conceito: para o lado da natureza
o sexo e para o lado da cultura o gênero. Butler coloca entre aspas o conceito de natureza e,
por conseguinte, o conceito de sexo. Ela afirma que ao ver a natureza como “o prato da
balança do sexo” deixamos de “compreender não apenas que a natureza tem uma história (e
não meramente uma história social), mas, também, que o sexo está posicionado de forma
ambígua em relação àquele conceito e à sua história” (BUTLER, 2007, p.157).

Butler (2003) subverte a normalização binária de sexo e gênero afirmando que

mesmo que os sexos pareçam não problematicamente binários em sua morfologia e


constituição (ao que será questionado), não há razão para supor que os gêneros
também devam permanecer em número de dois. (...) quando o status construído do
gênero é teorizado como radicalmente independente do sexo, o próprio gênero se
torna um artifício flutuante, com a consequência de que homem e masculino podem,
com igual facilidade, significar tanto um corpo feminino como um masculino, e
mulher e feminino, tanto um corpo masculino como um feminino (BUTLER, 2003,
p.24).

Levando em consideração o caráter produtor do discurso, Butler (2003) defende que

sexo não apenas funciona como uma norma, mas é parte de uma prática regulatória
que produz os corpos que governa, isto é, toda força regulatória manifesta-se como
uma espécie de poder produtivo, o poder de produzir, demarcar, fazer, circular,
diferenciar- os corpos que ela controla. Assim, o “sexo” é um ideal regulatório cuja
materialização é imposta: esta materialização ocorre (ou deixa de ocorrer) através
de certas práticas altamente reguladas. Em outras palavras o “sexo” é um construto
33
ideal que é forçosamente materializado através do tempo. Ele não é um simples fato
ou a condição estática de um corpo, mas um processo pelo qual as normas
regulatórias materializam o “sexo” e produzem essa materialização através de uma
reiteração forçada destas normas (Butler, 2007, 153- 154).

O sexo passa então a ser definido como uma construção histórica, social e discursiva, assim
como é gênero. Desta forma, a idéia de um corpo sexuado como um espaço em branco
produto da natureza e escrito pelas linhas do discurso da cultura não é mais adotada ingênua
e acriticamente. Estes questionamentos põem em suspeição as definições apresentadas para
gênero e sexo por algumas feministas.

Esta forma de apresentar sexo (à qual faço coro) compreende sexo como uma categoria
normativa que seria desde sempre gênero. Seguindo Butler percebemos como a aparente
solução encontrada pelo feminismo com a separação de sexo e gênero em dois campos
representativos, por um lado da natureza e por outro da cultura fragilizou ainda mais a noção
de um sujeito unívoco para o feminismo. Se a proposta era não mais ter como destino último
para o corpo da mulher a biologia, por outro lado tomou-se a cultura como o ponto de
ancoragem das apresentações possíveis/permitidas para este corpo. Sem questionar-se a
manutenção do sexo como natural binário (masculino e feminino), como sustentar que gênero
poderia seguir outras formas de apresentação? Apenas mudou-se o endereço da fixidez sobre
a apresentação da mulher nas relações. Assim, agora a mulher se tornava vítima de um gênero
que seguia uma linha de conduta aparentemente unívoca ditada pela cultura para cada um dos
sexos. Esta aparente solução, que se tornou mais uma malha de fixidez, ganha nova roupagem
quando se questiona seu próprio fundamento, o sexo. Assim, uma proposta feminista que não
se guia por estes questionamentos estaria reiterando o lugar da mulher no biológico, a
impossibilidade de mudança sobre o lugar dos corpos na cultura e perdendo de vista as inter-
relações de força que perpassam os corpos femininos na sociedade. Assim, com a manutenção
do binarismo “a 'especificidade' do feminino é mais uma vez totalmente descontextualizada,
analítica e politicamente separada da constituição de classe, raça, etnia e outros eixos de
relações de poder, os quais tanto constituem a 'identidade' como tornam equívoca a noção
singular de identidade” (BUTLER, 2003, p.21).

Na genealogia do gênero apresentada por Butler subverte-se a linha de raciocínio que analisa
sexo e gênero separadamente. A definição de gênero é reconstruída a partir da (des)
construção de sexo. Resumindo esta genealogia de gênero e sexo,

34
se o sexo é ele próprio uma categoria tomada em seu gênero, não faz sentido definir
gênero como a interpretação cultural do sexo. O gênero não deve ser meramente
concebido como a inscrição cultural de significado num sexo previamente dado
(uma concepção jurídica): tem de designar também o aparato mesmo de produção
mediante o qual os próprios sexos são estabelecidos. Resulta daí que o gênero não
está para a cultura como o sexo para a natureza; ele também é o meio
discursivo/cultural pelo qual “a natureza sexuada” ou “um sexo natural” é
produzido e estabelecido como “pré-discursivo” anterior à cultura, uma superfície
politicamente neutra sobre a qual age a cultura. (...) Na conjuntura atual, já está
claro que colocar a dualidade do sexo num domínio pré-discursivo é uma das
maneiras pelas quais a estabilidade interna e a estrutura binária do sexo são
eficazmente assegurada (BUTLER, 2003, p.25).

Desta forma, se o sexo não é o substrato sobre o qual o gênero ocorre caberia então uma
genealogia do corpo visto ser ele o último reduto de materialidade onde aparentemente
ocorrem o sexo e o gênero? Assim mais um conceito deve ser compreendido a partir de sua
construção discursiva: corpo. Se o sexo se apresenta em um corpo pré-dado pela natureza
devemos também realizar sobre ele o mesmo tipo de questionamento? Qual a história deste
corpo? Como se dá sua construção? Seria o corpo um ente realmente pré-discursivo e anterior
à Lei? A cada nova sabatina sobre conceitos apresentados como fundantes e como
inquestionáveis em sua origem, denuncia-se mais a construção discursiva com todas as
implicações históricas, políticas e sociais que isto acarreta. Assim, realizarei a discussão sobre
o corpo e sua materialidade vinculada à discussão anterior sobre a normatização do sexo.
Desta forma sexo/gênero/corpo se materializam a partir das normas regulatórias e não o
contrário, ou seja, não se parte de um corpo/sexo/gênero dado para o qual são ditadas regras,
mas são, justamente, neste processo reiterado de regulação que se configuram suas
materialidades.

Nesse sentido, o que constitui a fixidez do corpo, seus contornos, seus


movimentos, será plenamente material, mas a materialidade será repensada
como efeito do poder, como o efeito mais produtivo do poder. E não há como
compreender gênero como um construto cultural que é imposto sobre a
superfície da matéria, compreendida seja como “o corpo” seja como seu sexo
dado. Ao invés disso, uma vez que o próprio “sexo” seja compreendido em
sua normatividade, a materialidade do corpo não pode ser pensada
separadamente da materialização daquela norma regulatória. Sexo é, pois,
não simplesmente aquilo que alguém tem ou uma descrição estática daquilo
que alguém é: ele é uma das normas pelas quais o “alguém” simplesmente se
torna viável, é aquilo que qualifica um corpo para a vida no interior do
domínio da inteligibilidade cultural (BUTLER, 2003, p.154-155).
Como consequência desta normalização sobre os corpos a partir de uma matriz excludente,
(apresentada por Butler como heterossexual) 1o processo de identificação com um sexo se dá
1
Butler assim explica o termo matriz heterossexual: “Uso o termo matriz heterossexual ao longo de todo o texto
para designar a grade de inteligibilidade cultural por meio do qual os corpos, gêneros e desejos são naturalizados.
35
através de normas que proíbem ou possibilitam determinadas formas de identificação. Este
processo ocorre a partir da abjeção do que não é possibilitado ou proibido. Em outros termos,
o abjeto é o que existe e precisa ser negado para que o sujeito se circunscreva como tal no
processo de assumir um sexo. Neste jogo de espelhamento é pela negação do que não pode ser
que se certifica sobre o que é permitido. “Neste sentido, pois, o sujeito é constituído através
da força da exclusão e da abjeção, uma força que produz um exterior constitutivo
relativamente ao sujeito, um exterior abjeto que está, afinal, 'dentro' do sujeito, como seu
próprio repúdio fundante” (BUTLER, 2007, p.155-156). Esse modelo
discursivo/epistemológico hegemônico da inteligibilidade do gênero produz/
legitima/materializa o corpo humano como inteligível e também os corpos daqueles a quem se
nega o caráter de humano.

A partir desta discussão nega-se a metafísica do sujeito volitivo e anterior ao discurso e à Lei,
lançando questionamentos à própria gramática que se estrutura a partir do sujeito seguido de
um predicado (e nunca o inverso). Butler sugere que é preciso

uma certa desconfiança relativamente à gramática para conceber o tema sob uma luz
diferente. Pois se o gênero é construído, ele não é necessariamente construído por
um “eu” ou por um “nós” que se coloca “antes” daquela construção em qualquer
sentido espacial ou temporal de “antes” (BUTLER, 2007, p.160).

A partir deste deslocamento, gênero é apresentado como performativamente produzido e


imposto, não no sentido de uma atuação teatral nem no formato de um poder substancializado,
mas na medida de que sua construção se dá a partir da reiteração de um conjunto de normas e
práticas reguladoras da coerência de gênero prescritas pela matriz heterossexual excludente
hegemônica (BUTLER, 2003).

Em outras palavras, a norma do sexo assume o controle na medida em que ela é


citada como tal norma, mas ela também deriva seu poder através das citações que
ela impõe. (...) O processo dessa sedimentação - ou daquilo que poderíamos chamar
materialização- será uma espécie de citacionalidade, a aquisição do ser através da
citação do poder, uma citação que estabelece uma cumplicidade originária com o
poder na formação do “eu” (BUTLER, 2007, p.167-170).

Busquei minha referência na noção de Monique Wittig de 'contrato heterossexual' e em menor medida, naquela
de Adrienne Rich de 'heterossexualidade compulsória' para caracterizar o modelo discursivo/epistemológico
hegemônico da inteligibilidade do gênero, o qual presume que, para os corpos serem coerentes e fazerem sentido
(masculino expressa macho, feminino expressa fêmea), é necessário haver um sexo estável, expresso por um
gênero, que é definido oposicional e hierarquicamente por meio da prática compulsória da heterossexualidade”
(BUTLER, 2003, p.216).

36
Posicionando-se sobre as variações de conceituação para estes termos, Azerêdo (2007)
apresenta definições para gênero/sexo e feminino/masculino que vão ao encontro da
discussão apresentada acima:

Gênero/sexo: Gênero é um verbo no gerúndio, produzindo seres sexuados


performaticamente, através de normas constantemente reiteradas. A dicotomia que
separa gênero como sendo meramente cultural apoiado no sexo, meramente
biológico, é um erro, pois apenas substitui uma determinação por outra, perdendo o
elemento performático de produção de sujeitos generificados. Feminino/masculino:
divisão sexual apoiada na reprodução biológica, que se refere às dicotomias
produzidas pela cultura, especialmente através da educação, tais como
passividade/atividade, sensibilidade/agressividade. Refere-se também à fêmea e ao
macho dentro de homens e mulheres, numa tensão permanente, que não pode ser
resolvida, apesar de tentativas permanentes da sociedade de resolvê-las
(AZERÊDO, 2.007, p.118).

Ao posicionar a definição destes construtos conjuntamente como gênero/sexo e


feminino/masculino abandona-se a dicotomia e se dá visibilidade à tensão própria da
produção discursiva. Ousando pensar uma definição para gênero coaduno com a definição de
gênero como verbo. Segundo o Dicionário Aurélio (1999) verbo é “uma classe gramatical que
tipicamente indica ação e que pode, ou constituir sozinha um predicado, ou determinar o
número de elementos que este conterá”. Esta definição de verbo diz de características do
gênero como construção discursiva. Primeiramente, gênero indica ação no gerúndio.
Geralmente, os verbos no gerúndio remetem a um processo e a uma ação acontecendo no
agora. O caráter discursivo da construção do gênero nos remete a esta plasticidade do agora,
do não fixo. Não se pretende fixar gênero em uma definição ou em duas: masculino,
feminino. O verbo também pode sozinho constituir predicados, ou seja, determinar o que o
sujeito da oração fará ou o número de elementos a que este fará referência. Gênero, em suma,
é processo, é um acontecer, não um acontecido, é um estar constituindo-se pelos períodos
históricos. Gênero deve ser compreendido nesta tensão de estar no gerúndio e em movimento.
Assim, gênero não pode ser preso ao aspecto nomeador, definidor, produtor de verdades,
corpos, sujeitos. Teorizar sobre gênero como verbo é considerar seu caráter plástico,
performático. A adoção dos atributos do gênero como performativos e não como expressivos
remete à discussão sobre a própria identidade de gênero e sua fixidez.

Se os atributos e atos do gênero, as várias maneiras como o corpo mostra ou produz


sua significação cultural, são performativos, então não há identidade preexistente
pela qual um ato ou atributo possa ser medido; não haveria atos de gênero
verdadeiros ou falsos, reais ou distorcidos, e a postulação de uma identidade de
gênero verdadeira se revelaria uma ficção reguladora. O fato de a realidade do
gênero ser criada mediante performances sociais contínuas significa que as próprias
37
noções de sexo essencial e de masculinidade ou feminilidades verdadeiras ou
permanentes também são constituídas, como parte da estratégia que oculta o caráter
performativo do gênero e as possibilidades performativas de proliferação das
configurações de gênero fora das estruturas restritivas da dominação masculinista e
da heterossexualidade compulsória (BUTLER, 2003, p.201).

A proposta é, assim, a subversão (Butler) e a historicização (Scott) destas categorias/conceitos


(sexo/gênero/corpo/raça/natureza/mulheres) tratando-os como categorias contextuais,
contestáveis e contingentes. Visto desta forma, gênero pode ser uma forma de questionar o
biológico como destino único e a partir disto, a violência contra a mulher estaria justamente
em compactuar na fixidez de gênero através de seu caráter determinador de predicados
reiterados discursivamente. A subversão aponta para os possíveis rearranjos discursivos
vislumbrados a partir dos fossos e fissuras do discurso hegemônico e heteronormativo. Assim,
a partir da desconstrução do conceito sexo, Butler propõe uma crise potencialmente produtiva
que abarca consigo outros construtos como gênero/corpo e raça. Nas palavras da autora,

Como construção discursiva sexo é ao mesmo tempo produzido e desestabilizado


no curso dessa reiteração. Como um efeito sedimentado de uma prática reiterativa,
ou ritual, o sexo adquire seu efeito naturalizado e, contudo, é também, em virtude
dessa reiteração, que fossos e fissuras são abertos, fossos e fissuras que podem ser
vistos como as instabilidades constitutivas dessas construções, como aquilo que
escapa ou excede a norma, como aquilo que não pode ser totalmente definido ou
fixado pelo trabalho repetitivo daquela norma. Essa instabilidade é a possibilidade
desconstitutiva no próprio processo de repetição, o poder que desfaz os próprios
efeitos pelos quais o “sexo” é estabilizado, a possibilidade de colocar a
consolidação das normas do “sexo” em uma crise potencialmente produtiva
(BUTLER, 2003, p.163- 164).

Cabe aqui o início do desfiar de um rosário de questionamentos e reflexões sobre a(s)


possível(is) consequência(s) da desconstrução do binarismo sexo/gênero para o discurso
feminista de enfrentamento à violência de gênero. Pode-se pautar que a violência estaria na
apresentação fixa, binária e hierárquica de sexo/gênero e nas conseqüências disso nas relações
produzidas e justificadas por este discurso? Qual seria a melhor forma de definir essa
violência? Valeria à pena situar a violência especificamente nos corpos das mulheres e dos
homens? Pelo menos, devemos pensar que enquanto os corpos são domesticados
discursivamente de determinadas maneiras excludentes e exclusivistas, acredito que localizar
a violência a partir deles amplia e problematiza a discussão. Deixo isto como uma
provocação...
A partir do exposto sobre os questionamentos sobre as modificações discursivas (sobre
corpo/sexo/gênero) durante o percurso histórico do feminismo uma pergunta desponta: como

38
se posicionar frente a apresentações tão diversas e divergentes sobre estes conceitos para os
fins que o próprio movimento se propõe?

A aposta de Butler é em um feminismo que, ciente da não possibilidade de utilização da


noção de gênero como premissa básica da política feminista, advogue a favor de um
feminismo que busque “contestar as próprias reificações do gênero e da identidade, isto é,
uma aposta feminista que tome a construção variável da identidade como um pré-requisito
metodológico e normativo, senão como um objeto político” (BUTLER, 2003, p.23) e que
tomando como instrumento uma genealogia feminista de categorias tidas como auto-evidentes
(mulheres/corpo/gênero/sujeito/identidade/raça/classe/sexo) cientifiquem-se das
conseqüências coercitivas e reguladoras dessas construções mesmo quando
utilizadas/elaboradas com outros propósitos.

Buscando evitar a cilada de me perder na busca de um objeto de estudo que não se define ou
que recebe uma definição tão ampla a ponto de ser acusado de não representar ninguém, adoto
o privilégio da perspectiva parcial, defendido por Donna Haraway (1995). Esta autora
questiona a objetividade defendida pela Ciência e apresenta seu texto como um “argumento a
favor do conhecimento situado e corporificado e contra várias formas de postulados de
conhecimento não localizáveis e, portanto, irresponsáveis. Irresponsável significa incapaz de
ser chamado a prestar contas” (HARAWAY, 1995, p.22). A meu ver, seria uma
irresponsabilidade, portanto, estudar um fenômeno como a violência contra as mulheres, sem
antes posicionar sobre quais são as mulheres sobre quem estou falando, como entendo este
coletivo, como defino a violência e contra qual tipo de violência pretendo dedicar meu estudo.

Algumas vertentes da teoria feminista questionam as bases do cientificismo refém da cultura


machista que o construiu, sustenta e reproduz de forma nada ingênua. As teóricas feministas
questionam a ciência com sua busca pela objetividade e imparcialidade e suas doutrinas
separatórias: com a separação do pesquisador de seu objeto de estudo, da emoção da razão, do
meio interno do meio externo. “A objetividade feminista trata da localização limitada e do
conhecimento localizado, não da transcendência e da divisão entre sujeito e objeto. Desse
modo podemos nos tornar responsáveis pelo que aprendemos a ver” (HARAWAY, 1995,
p.21).

39
Aliado ao saber localizado está o posicionar-se do pesquisador como prática chave, base do
conhecimento organizado. Resumidamente, podemos afirmar que a questão da ciência para o
feminismo diz respeito à objetividade como racionalidade posicionada. Por isso, a
necessidade que sinto de apresentar cada conceito escolhido entre os tantos delimitados, para
dizer de onde falo como e de quem falo nesta dissertação. Adoto a parcialidade como
apresentada por Haraway.

Não perseguimos a parcialidade em si mesma, mas pelas possibilidades de conexões


e aberturas inesperadas que o conhecimento situado oferece. O único modo de
encontrar uma visão mais ampla é estando em algum lugar em particular. A questão
da ciência para o feminismo diz respeito à objetividade como racionalidade
posicionada (HARAWAY, 1995, p.33).

Sobre a pretensão de ao se ocupar o lugar de pesquisadora estar habilitada a falar por outras
mulheres não cientistas ou de dar visibilidade às suas experiências cabe apresentar a definição
do papel do intelectual de Foucault em sua conversa com Deleuze. Para Foucault o papel do
intelectual não seria

mais o de se colocar “um pouco na frente ou um pouco de lado” para dizer a muda
verdade de todos; é antes o de lutar contra as formas de poder exatamente onde ele
é, ao mesmo tempo, o objeto e o instrumento: na ordem do saber, da “verdade”, da
“consciência”, do discurso. É por isso que a teoria não expressará, não traduzirá,
não aplicará uma prática. Ela é uma prática. Mas local e regional: (...) não
totalizadora. Luta contra o poder, luta para fazê-lo aparecer e feri-lo onde ele é mais
invisível e mais insidioso (FOUCAULT, 1979, p.71).

1.3 VIOLÊNCIA

Nesta dissertação trabalho com a noção de que o processo de definição/nomeação de um


fenômeno está diretamente ligado aos caminhos que poderão ser trilhados na tentativa de
compreendê-lo, diagnosticá-lo, apresentá-lo a seus pares e, quando necessário, construir
estratégias para enfrentá-lo. A partir disto, apresentarei algumas contribuições sobre este
processo no que se refere ao fenômeno da violência de gênero. Almeida (2007), ciente da
importância e atualidade da discussão sobre a variedade de posicionamentos sobre a
violência de gênero, chama-a de "violência mal-dita”.

Essa violência que insiste em entrar no debate acadêmico depois de ter deixado
inúmeras, diversificadas e profundas marcas em mulheres, em escala global, ainda
não foi nominada apropriadamente. Maldita ela é para todas/os que a

40
experimentaram e para todas/os que tentaram enfrentá-la e mediá-la. Mal-dita ela é
para todas/os que tentam estudá-la (ALMEIDA, 2007, p.23).

A maldição deste fenômeno faz com que ele receba diferenciadas definições: violência
contra a mulher, violência intrafamiliar, violência doméstica e/ou violência de gênero. Neste
estudo, interessam as consequências dos posicionamentos políticos, teóricos e práticos no
enfrentamento do fenômeno a partir da definição escolhida. Desta forma, sustentamos que a
forma de definir este tipo de violência pode servir para naturalizar, dicotomizar,
essencializar, escamotear, simplificar, obscurecer e/ou dificultar seu enfrentamento.

Iniciarei esta discussão pela conceituação: violência contra a mulher forma comumente
encontrada de referência ao fenômeno, inclusive em materiais produzidos pelos dispositivos
da rede de enfrentamento da violência contra as mulheres nacionais e internacionais:
Declaração de Viena (1993) 2, Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a
Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará) (1994), Declaração sobre a
Eliminação da Violência contra a Mulher (1993), no I e II Plano Nacional de Políticas para as
Mulheres (2004/2008) e na Lei 11340 (2006).

Na Convenção de Belém do Pará (1994), a violência contra a mulher é assim apresentada:


“Para os efeitos desta Convenção deve-se entender por violência contra a mulher qualquer
ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou
psicológico à mulher, tanto no âmbito público como no privado”. Nesta definição, a

2
Art. 22 “A Conferência Mundial sobre Direitos Humanos solicita a todos os Governos que tomem todas as
medidas adequadas, em conformidade com suas obrigações internacionais e levando em devida conta seus
respectivos sistemas jurídicos, para fazer frente à intolerância e formas análogas de violência baseadas em
posturas religiosas ou crenças, inclusive práticas de discriminação contra as mulheres e a profanação de locais
religiosos, reconhecendo que todos os indivíduos têm direito à liberdade de pensamento, de consciência, de
expressão e de religião. A Conferência convida também todos os Estados a aplicarem, na prática, as disposições
da Declaração sobre a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e Discriminação Racial Baseadas em
Religião ou Crenças. (...) Art.38. A Conferência Mundial sobre Direitos Humanos enfatiza particularmente a
importância de se trabalhar no sentido de eliminar todas as formas de violência contra as mulheres na vida
pública e privada, de eliminar todas as formas de assédio sexual, exploração e tráfico de mulheres, de eliminar
preconceitos sexuais na administração da justiça e erradicar quaisquer conflitos que possam surgir entre os
direitos da mulher e as conseqüências nocivas de determinadas práticas tradicionais ou costumeiras, do
preconceito cultural e do extremismo religioso. A Conferência Mundial sobre Direitos Humanos apela à
Assembléia Geral para que adote o projeto de declaração sobre a violência contra a mulher e insta os Estados a
combaterem a violência contra a mulher em conformidade com as disposições da declaração. As violações dos
direitos humanos da mulher em situações de conflito armado são violações de princípios fundamentais dos
instrumentos internacionais de direitos humanos e do direito humanitário. Todas as violações desse tipo,
incluindo particularmente assassinatos, estupros sistemáticos, escravidão sexual e gravidez forçada, exigem uma
resposta particularmente eficaz. (Grifos meus). (DECLARAÇÃO DE VIENA, 1993)

41
ocorrência da violência é baseada no entendimento de gênero como o arcabouço cultural que
diferencia a socialização dos sexos. No artigo oitavo desta Convenção utiliza-se gênero como
sinônimo ou substituindo a noção de sexo biológico binário.

Aos Estados-partes convém adotar, de forma progressiva, medidas específicas,


inclusive programas para: (...) modificar os padrões sócio-culturais de conduta de
homens e mulheres, incluindo a construção de programas de educação formais e
não-formais apropriados a todo nível do processo educativo, para contrabalançar
preconceitos e costumes e todo outro tipo de práticas que se baseiem na premissa da
inferioridade ou superioridade de qualquer dos gêneros ou nos papéis estereotipados
para o homem e a mulher ou legitimam ou exarcebam a violência contra a mulher
(CONVENÇÃO INTERAMERICANA PARA PREVENIR, PUNIR E
ERRADICAR AVIOLÊNCIA CONTRA A MULHER, 2004).

Percebe-se na definição e na proposta apresentadas nesta Convenção a noção da violência


contra a mulher como um fenômeno de base sócio-cultural que ocorre através da
socialização, educação e acesso a direitos de forma diferenciada entre homens e mulheres. O
mesmo se percebe na Convenção de Viena, onde se aborda a violência contra as mulheres
que se baseia em crenças religiosas, por exemplo. O alvo da violência nos documentos
resultantes das duas Convenções é a categoria mulher, o sujeito que pratica a violência não é
nomeado, mas, neste tipo de dispositivo legal, a omissão do Estado é identificada. Ao nomear
propostas de ação para os Governos signatários destas Convenções, elas localizam o
enfrentamento à violência como uma obrigação do Estado, levando a discussão para a esfera
pública. Estes são aspectos interessantes para o debate que vão ao encontro da proposta desta
pesquisa que sustenta o enfrentamento a esta violência a partir de um viés político/
público/social.

No Brasil, em julho de 2004, a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres promoveu,


em Brasília, a I Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres. Nesta Conferência foi
elaborado o “Plano Nacional de Políticas para as Mulheres”, criado para orientar as políticas
desenvolvidas pelo Governo Federal e nortear as realizações municipais e estaduais referentes
às políticas públicas para as mulheres. No capítulo quatro/parte II-“Enfrentamento à violência
contra as mulheres” do referido documento são apresentados como objetivos: a redução dos
índices de violência contra as mulheres, a garantia do cumprimento dos instrumentos e
acordos internacionais, a revisão da legislação brasileira de enfrentamento à violência contra
as mulheres, a implantação de uma política Nacional de Enfrentamento à Violência contra a
Mulher, além da garantia de atendimento integral, humanizado e de qualidade às mulheres em

42
situação de violência. Observam-se alguns aspectos interessantes em relação à definição do
objeto a ser enfrentado. Utiliza-se tanto a expressão violência de gênero quanto violência
contra a mulher, sendo mais frequente a apresentação da última.

Homens e mulheres, em razão da especificidade de gênero, são atingidos pela


violência de forma diferenciada (...). A violência contra a mulher acontece no
mundo inteiro e atinge mulheres de todas as idades, classes sociais, raças, etnias e
orientação sexual. Qualquer que seja o tipo, física, sexual, psicológica, ou
patrimonial, a violência está vinculada ao poder e à desigualdade das relações de
gênero, onde impera o domínio dos homens, e está ligada também à ideologia
dominante que lhe dá sustentação. São muitas as formas de violência contra a
mulher: desigualdades salariais; assédio sexual; uso do corpo como objeto;
agressões sexuais; assédio moral, tráfico nacional e internacional de mulheres e
meninas (SECRETARIA ESPECIAL DE POLÍTICAS PARA AS MULHERES,
2004, p.73).

Como nos outros documentos reconhece-se que a violência contra a mulher é sustentada por
questões culturais e ideológicas. Esta definição é mais abrangente por reconhecer que os
homens também são alvos de violência em decorrência das desigualdades das relações de
gênero, e também por nomeá-los como detentores do poder que os legitima a praticar a
violência contra a mulher, sustentada por esta mesma ideologia. Esta apresentação do
fenômeno é mais próxima do que ocorre na realidade e, de certa forma, retira a mulher do
lugar de vítima ao optar por levar a discussão para as desigualdades nas relações de gênero
que atingem de forma diferenciada aos homens e mulheres. Também considero muito
oportuna a apresentação das desigualdades salariais e o uso do corpo como objeto como
formas de violência contra a mulher, ampliando o debate. Este aspecto vai ao encontro da
compreensão da violência neste estudo, que se encontra muito além das formas elencadas
como: a violência física, sexual e psicológica. Este documento também acrescenta a esta
discussão outras formas de discriminação/violência (raça, etnia, orientação sexual) apostando
em ações que não separem estes eixos de discussão, mas os assumam como interatuantes.

Desta forma a Política Nacional para as Mulheres visa construir a igualdade e


eqüidade de gênero, considerando todas as diversidades – raça e etnia, gerações,
orientação sexual e deficiências. As mulheres são plurais, e as políticas propostas
devem levar em consideração as diferenças existentes entre elas. Para concretizar
estes princípios, o Estado e as esferas de governo federal, estadual e municipal
deverão seguir as seguintes diretrizes: Reconhecer a violência de gênero, raça e etnia
como violência estrutural e histórica que expressa a opressão das mulheres e precisa
ser tratada como questão de segurança, justiça e saúde pública (SECRETARIA
ESPECIAL DE POLÍTICAS PARA AS MULHERES, 2004, p.31).
Desta forma, a violência contra a mulher /de gênero é apresentada como uma consequência
das desigualdades de gênero e todas as políticas e Linhas de Ação do Plano são elaboradas

43
visando o enfrentamento às desigualdades de gênero, raça e etnia, a promoção da igualdade de
gênero e a busca da equidade de gênero (SECRETARIA ESPECIAL DE POLÍTICAS PARA
AS MULHERES, 2004). A discussão sobre a violência contra a mulher é realizada a partir da
constatação de uma desigualdade de gênero (raça, etnia, orientação sexual) e da meta de
elaboração de ações que promovam a igualdade de gênero. Destacam-se entre as ações
propostas o oferecimento de capacitações e qualificações de: agentes públicos em gênero, raça
e direitos humanos e de profissionais das áreas de segurança pública, saúde, educação e
assistência psicossocial na temática da violência de gênero, através da inserção de uma
disciplina, na matriz curricular das Academias de Polícia, que discuta a desigualdade de
gênero e suas conseqüências para mulheres e homens. Além disto, apresentam-se propostas
para incentivar a incorporação do enfoque de gênero na execução de Políticas e Programas do
Ministério da Saúde e para implantar projetos pilotos de um modelo de atenção à saúde
mental das mulheres na perspectiva de gênero também são incentivadas: a promoção de ações
no processo educacional para a eqüidade de gênero, raça, etnia e orientação sexual e o
combate aos estereótipos de gênero, raça e etnia na cultura e na comunicação.

Pelo exposto acima, percebe-se que a definição do objeto de ação define a elaboração das
ações para enfrentá-lo. Por isso, a importância da delimitação adequada do problema alvo.
Quando se debruça sobre a problemática da violência contra a mulher com o intuito de
elaboração de Políticas Públicas faz diferença se a esta discussão se agrega à perspectiva de
gênero, raça e orientação sexual, por exemplo. Desta forma, a definição do fenômeno se dá
como violência contra a mulher, compreendida a partir das desigualdades de gênero. Gênero
sendo apreendido novamente como categoria transversal, analítica e de base sócio-cultural.

Em agosto de 2.007, foi elaborado o II Plano Nacional de Políticas para Mulheres a partir da
discussão realizada entre 2.700 delegadas representantes de todo o país. Diferente do
documento anterior, este foi apresentado não mais como um plano para mulheres: “É um
Plano de Governo. Este não é um Plano que traz benefícios só para as mulheres. É um Plano
que beneficia toda a sociedade” (SECRETARIA ESPECIAL DE POLÍTICAS PARA AS
MULHERES, 2008, p. 07). Esta apresentação, além da reafirmar a importância da categoria
mulher como sujeito das políticas públicas, amplia a discussão, compromisso e consequências
das ações de enfrentamento deste tipo de violência para toda a sociedade. É um caminhar para
a reafirmação do entendimento desta problemática não como privada e relacional, mas como

44
histórica, política e social. O subitem IV do II Plano tem o título “Enfrentamento a todas as
formas de violência contra a mulher” e o mote “Uma vida sem violência é um direito das
mulheres. A violência contra as mulheres realimenta a violência geral na sociedade”. Esta
visão do fenômeno leva em consideração as variadas consequências para a sociedade deste
tipo de violência, demonstrando que esta discussão/ações não se baseia na busca de
privilégios para as mulheres, mas na adoção de propostas equânimes para a sociedade. A
compreensão da dinâmica da violência como cíclica e retroalimentadora leva à adoção de
ações e objetivos de caráter preventivo/educativo e articulado com outras pautas. Desta forma,
neste Plano delimitam-se como objetivos específicos, entre outros:

II. Desconstruir estereótipos e representações de gênero, além de mitos e


preconceitos em relação à violência contra a mulher; III. Promover uma mudança
cultural a partir da disseminação de atitudes igualitárias e valores éticos de irrestrito
respeito às diversidades e de valorização da paz; IV. Garantir e proteger os direitos
das mulheres em situação de violência, considerando as questões étnico-raciais,
geracionais, de orientação sexual, de deficiência e de inserção social, econômica e
regional; (...) VI. Assegurar atendimento especializado às mulheres do campo e da
floresta em situação de violência (SECRETARIA ESPECIAL DE POLÍTICAS
PARA AS MULHERES, 2008, p.17)

Como prioridade, o II Plano delimita ações de enfrentamento da violência de gênero pelas


vias institucional, jurídica e pública.

Ampliar e aperfeiçoar a Rede de Atendimento às mulheres em situação de violência;


Garantir a implementação da Lei Maria da Penha e demais normas jurídicas
nacionais e internacionais; Promover ações de prevenção a todas as formas de
violência contra as mulheres nos espaços público e privado; Garantir o
enfrentamento da violência contra a mulher, jovem e meninas vítimas do tráfico e da
exploração sexual e que exercem a atividade da prostituição; Promover os direitos
humanos das mulheres encarceradas (SECRETARIA ESPECIAL DE POLÍTICAS
PARA AS MULHERES, 2008, p.18)

A priorização destes três eixos (institucional, jurídico e público) é a base das Políticas
Públicas de Enfrentamento á Violência contra a Mulher guiadas atualmente pelos documentos
do Governo Brasileiro.

Para além, também se destacam a adoção da nomeação de grupos de mulheres alvos das
políticas e o princípio da igualdade e respeito à diversidade na elaboração das políticas
públicas de enfrentamento à violência. A nomeação das “mulheres do campo e da floresta, das
encarceradas, das vítimas do tráfico e da exploração sexual e das que exercem a prostituição,
das idosas, das jovens, das lésbicas, das negras e das que vivem em comunidades tradicionais”
45
(SECRETARIA ESPECIAL DE POLÍTICAS PARA AS MULHERES, 2008) como público
alvo no referido documento aponta para a importância e/ou necessidade de localizar as
mulheres na homogeneidade da categoria. Pois, no jogo de abjeção e invisibilidade social,
estas mulheres poderiam estar invisibilizadas pelas “outras” “da cidade grande”, não “putas”,
“livres”, não “encarceradas”, “brancas”, “heterossexuais” e “urbanas”. Entendo esta
redefinição de objetivos e prioridades apresentadas no II Plano como mostra da apropriação
crescente das delegadas e da Secretaria Especial de Políticas para Mulheres das discussões
dos movimentos sociais, como o feminismo, sobre a negação de uma postura essencializadora
da categoria mulheres como guia da agenda de construção de políticas públicas.

Por fim, a discussão é pautada no direito à diversidade mantendo-se o foco sobre o


enfrentamento às desigualdades de gênero interligadas às de raça, etnia e orientação sexual,
sendo a violência contra a mulher uma de suas expressões. Observa-se, também, uma atenção
acrescida à temática geracional, de renda, ambiental e de segurança alimentar neste
documento, ampliando, oportunamente, o debate sobre as desigualdades de gênero. Assim,
percebem-se as propostas dos dois Planos como abrangentes e ao encontro de ações sobre as
várias formas de manifestação da desigualdade de gênero em nosso país.

Pelo exposto acima, a violência contra a mulher é compreendida como uma expressão das
desigualdades estruturais de nossa sociedade (gênero/raça/etnia/orientação sexual)
interligadas. Considero esta uma abordagem possível e interessante, principalmente, por
agregar à discussão da violência de gênero outras pautas que, muitas vezes, são tomadas como
à parte desta discussão. O desafio de interligá-las, apresentado nestes documentos, é um guia
interessante, tanto para ações públicas como para discussões teóricas sobre o assunto. A
importância desta forma de apresentar o fenômeno se dá pela possibilidade de proposição de
políticas de enfrentamento pautadas por esta complexidade do fenômeno, ou pela mal-dição
desta violência, como diria Suely Almeida (2007). Considero que mesmo que efetivamente
não se atinja êxito na implementação destas ações públicas governamentais, pelo menos, se
inaugurou uma discussão da temática no âmbito governamental localizada e parcial.

Assim, percebe-se que a adoção do conceito violência contra a mulher se adotada sem uma
discussão concomitante, por exemplo, sobre as desigualdades de gênero/raça/etnia/orientação

46
sexual, guia-se por uma cristalização da categoria mulheres que polariza a discussão entre
vítimas/mulheres e agressores/homens, enviesando o enfrentamento do fenômeno.

Assim, sobre a adoção da definição violência contra a mulher, Almeida aponta como pontos
problemáticos o fato dela “enfatiza(r) o alvo contra o qual a violência é dirigida. É uma
violência que não tem sujeito, só objeto; acentua o lugar da vítima, além de sugerir a
unilateralidade do ato. Não se inscreve, portanto, em um contexto relacional”
(ALMEIDA,2007,p. 23). Azerêdo, por sua vez, a define como uma violência que “inclui
mulheres de qualquer faixa etária na posição de vitimadas, exclui homens em qualquer
circunstância. Além disso, existem certos tipos de agressão, tipificados como crime, que só
podem ser perpetrados por homens e contra mulheres (o estupro, por exemplo)”
(AZERÊDO, 2007, p.120). Para Pougy (2007), com a adoção da definição do fenômeno
como violência contra a mulher

focaliza um episódio com limitadas possibilidades de despatologizar seus


protagonistas, ao reduzir uma relação social conflituosa a querelas entre vítima e
agressor, assim como ao despolitizar o seu enfrentamento. (...) Compreender
relações de poder entre desiguais como característica patológica dos protagonistas é
limitado e simplório e contribui para a manutenção da ‘guerra dos gêneros’, isto é,
“uma guerra de identidades sexuais, lutando por seus interesses’ (POUGY, 2007,
p.73-74).

Considero muito oportuna a colocação de que a escolha desta terminologia leva a uma
despolitização e patologização do fenômeno dando à discussão um viés individual e
patologizante.

Analisando estas colocações sobre a violência contra a mulher, observamos ser esta uma
forma de conceituação que focaliza a categoria mulher como alvo da violência, não se
ocupando em delimitar quem pratica a violência, dando um enfoque vitimista para o
fenômeno. Recebe como ponto favorável para sua utilização o fato de ser “a única a ressaltar
de forma inequívoca a vítima preferencial de determinadas modalidades de violência”
(ALMEIDA, 2007, p.24). Outro fator a ser questionado sobre a adoção desta definição do
fenômeno é que, apesar de se referir à violência contra as mulheres de todas as faixas etárias,
vale a pena problematizar que as políticas de garantia de direitos das mulheres menores de
dezoito anos e de idade igual ou maior que sessenta anos são abrangidas, respectivamente,
pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, Conselhos Tutelares e Varas da Infância e da
Juventude e pela Defensoria dos Idosos, respaldada pelo Estatuto do Idoso. Ressalta-se que
47
não há nenhuma restrição na Lei Maria da Penha e/ou nas normas de funcionamento dos
Centros de Referência sobre o atendimento a estas clientelas e que, inclusive, as Delegacias
Especializadas em Crimes Contra a Mulher assumiram para si também a clientela das
idosas/os. Porém, na prática, estas faixas etárias são reencaminhadas para outros dispositivos,
no intuito de receberem um atendimento mais especializado. Desta forma, pode-se concluir
que a violência contra as mulheres recebe resposta dos dispositivos de poder governamentais
através de recortes de faixa etária. Assim, reafirma-se a impossibilidade discursiva de se
adotar a categoria mulher como alvo de pesquisas, análises e políticas públicas sem antes
delimitar a qual “grupo de mulheres” se faz referência. Considero que não ocorre um erro
nestes casos, mas uma imprecisão que gera, na prática, situações de revitimização
institucional, burocracia nos encaminhamentos da Rede e incompreensão por parte das
mulheres reencaminhadas.

Outras duas conceituações muito utilizadas são a de violência doméstica e a de violência


familiar, inclusive apresentada como objetos de coibição da Lei 11340, de 07 de agosto de
2006, conhecida como Lei Maria da Penha. A adoção da definição do fenômeno como
violência doméstica/familiar cumpre o papel de dessacralizar o espaço familiar/doméstico e
remete à discussão do mote feminista o privado é público que afirma que “a esfera privada
não é isenta de regulação pelo poder público. Ao contrário, não há uma cisão entre as esferas
pública e privada, o que pode ser valorado positivamente na perspectiva de se assegurar
direitos” (ALMEIDA, 2007, p.25) Contrapondo-se ao jogo de invisibilidade deste fenômeno
(devido a sua localização e a relação afetiva entre seus participantes), o movimento feminista
e os estudos de família denuncia sua ocorrência reiterada apesar de todo movimento de
publicização do fenômeno.

A violência doméstica chega à cena pública basicamente por dois caminhos: pela via
do feminismo e pela via dos estudos de família. Uns e outros se utilizam de
evidências empíricas para mostrar que a casa é um espaço de conflitos, de tensões e
de negociações permanentemente repostas, não sendo apenas um lugar de
construção das identidades, espaço de referência e refúgio. Se a casa atende às
necessidades básicas dos indivíduos, também é campo de lutas declaradas. Os novos
movimentos sociais - em especial, o feminismo - conseguiram incorporar a violência
doméstica como tema ou sub-tema da violência, e no caso em questão, da violência
de gênero - afirmação esta que pode ser parcialmente contestada. O que me chama a
atenção é o fato de se ter tornado um debate público, incorporada sua dimensão
pública, e ampliada a compreensão do que compõe o “lugar da violência” nas redes
sociais (SMIGAY, 2000, p.47-48).

48
Assim, mais uma vez, ressalta-se a importância dos movimentos de publicização da violência
de gênero contra as mulheres que ocorre no ambiente doméstico. Este parece ser um ponto
de acordo entre várias abordagens teóricas e políticas públicas de enfrentamento a este tipo
de violência. Como exemplos, podem-se citar as várias campanhas de órgãos públicos e de
ONGs incitando a mulher (e a sociedade) a procurar ajuda e denunciar a ocorrência desta
violência.

Almeida reafirma que a definição de violência doméstica pauta-se justamente por “uma
noção espacializada que designa o que é próprio à esfera privada - dimensão da vida social
que vem sendo historicamente contraposta ao público, ao político. Enfatiza uma esfera da
vida, independentemente do sujeito, do objeto ou vetor da ação” (ALMEIDA, 2007, p. 23).
Mais uma vez, a autora aponta que esta conceituação não se preocupa em definir as partes
envolvidas na situação, como no caso da violência contra a mulher.

Apresentando outros aspectos e participantes deste tipo de violência, Azerêdo (2007) amplia
o conceito problematizando que na violência doméstica,

os envolvidos vivem, parcial ou integralmente, no mesmo domicílio, cujo espaço pode ser
real ou simbólico. Não ocorre apenas, e necessariamente, entre parentes, alcançando
também agregados e empregadas domésticas abusadas e assediadas sexualmente por seus
patrões, por exemplo. Esta modalidade inclui ainda a violência perpetrada por mulheres
que, embora ínfima quando praticadas contra homens, é significativa quando os vitimados
(as) são crianças e adolescentes (AZERÊDO, 2007, p.120).

A definição de Saffioti para a violência doméstica coaduna com a de Azerêdo. A autora vai
além, chamando a atenção para o fato de que

estabelecido o domínio de um território, o chefe, via de regra um homem, passa a


reinar quase incondicionalmente sobre seus demais ocupantes. O processo de
territorialização do domínio não é puramente geográfico, mas também simbólico
(...). Assim, um elemento humano pertencente àquele território pode sofrer
violência, ainda que não se encontre nele instalado. Uma mulher que, para fugir de
maus-tratos, se muda da casa de seu marido pode ser perseguida por ele até a
consumação do femicídio (SAFFIOTI, 2004, p.71-72).

Chama a atenção, nas duas últimas definições, a afirmação de que o espaço da ocorrência
desta violência não se circunscreve ao geográfico, mas também ao aspecto simbólico,
demonstrando que a delimitação no âmbito doméstico é no mínimo, incompleta e/ou
insuficiente. Esta discussão é importante para que se possam abarcar no debate sobre o

49
enfrentamento a este fenômeno, cenas de violência que ocorrem além dos muros do lar e das
ligações familiares, seguindo a mesma dinâmica da violência ocorrida no âmbito doméstico e
no seio familiar. Como exemplos têm-se os casos de femicídio contra namoradas, ex-esposas
após o divórcio, onde apesar do fim do vínculo afetivo ou da não coabitação a violência
ocorre, nos mesmos moldes da violência doméstica.

A conceituação de violência familiar/intrafamiliar é também muito utilizada e de interesse


para a área da saúde, pois, nestes casos, todos os membros da família sob esta situação de
violência constituem sua clientela de forma direta e rotineira. Também nas definições
apresentadas abaixo se reafirma o aspecto de ocorrência deste tipo de violência para além do
geográfico /familiar.

Violência intrafamiliar aproxima-se bastante da categoria anterior, ressaltando,


entretanto, mais do que o espaço, a produção e a reprodução endógena da violência.
É uma modalidade de violência que se processa por dentro da família. O Ministério
da Saúde assim define a violência intrafamiliar (...) toda ação ou omissão que
prejudique o bem-estar, a integridade física, psicológica ou a liberdade e o direito ao
pleno desenvolvimento de outro membro da família, incluindo pessoas que passam
a assumir função parental, ainda que sem laços de consangüinidade, e em relação
de poder à outra (...) não se refere apenas ao espaço físico onde a violência ocorre,
mas também às relações em que se constrói e efetua. Distingue esta violência da
doméstica porque esta inclui outros membros do grupo, sem função parental, que
convivam no espaço doméstico (ALMEIDA, 2007, p.24, grifo meu).

A definição de Azerêdo (2007) não apresenta muitas diferenças, mas chama a atenção para
um tipo específico de violência familiar o incesto.

Violência familiar apresenta grande sobreposição com a violência doméstica e


também não se restringe ao espaço do lar. Os envolvidos, no entanto, são
exclusivamente membros da mesma família-nuclear ou extensa. Categoria
importante ao estudo do abuso incestuoso, por exemplo, pois, nas situações em que
o agressor é um parente, o trauma costuma ser bastante diferenciado (AZERÊDO,
2007, p.120, grifo meu).

A partir das definições apresentadas acima se percebe que cada teórica, partindo de um
princípio, acrescenta um tópico à discussão, demonstrando como há uma miríade de
tentativas de delimitação deste fenômeno. Aliado a isto, o que ocorre, algumas vezes, é um
uso indiscriminado e impreciso dos conceitos como sinônimos. A violência doméstica, por
exemplo, é muitas vezes entendida ou apresentada como violência familiar ou intrafamiliar.
Para além, também ocorre a substituição da expressão violência contra a mulher por uma
destas outras duas. Estas substituições devem ser problematizadas, principalmente, na

50
elaboração de documentos de políticas públicas, na eleição de objetos para pesquisas, escrita
de artigos e elaboração de ações de enfrentamento a estes fenômenos, pois cada um tem suas
especificidades que não devem ser escamoteadas sob o risco de se produzir materiais que
devido à amplitude correm o risco de não atingir seus objetivos. Concordo com as colocações
de Araújo (2005) e Smigay (2000) sobre o assunto. Smigay (2000) alerta para “um
alargamento do campo que não facilita em nada a comunicação" (SMIGAY, 2000, p.48) e
Araújo (2005) aponta que ao se substituir, por exemplo, violência doméstica por violência
familiar,

homens e mulheres ocupam, indistintamente, a posição de suposta igualdade e


desconsidera-se toda uma tradição sócio-histórica de subjugação da mulher, na qual
a violência é utilizada como um instrumento de controle eficaz. Assim, ao utilizar
expressões aparentemente neutras, corre-se o riso de a vitimização da mulher ser
considerada circunstancial e não uma política efetivamente instituída (ARAÚJO,
2005, p. 63).

Na delimitação do objeto da Lei Maria da Penha, por exemplo, utiliza-se das definições
apresentadas acima de forma muito peculiar. Esta Lei tem como objeto jurídico a coibição da
violência doméstica e familiar contra a mulher, definindo estes fenômenos sociais como
crimes. No quinto capítulo desta Lei é apresentada a definição do crime que ela objetiva
coibir e, no capítulo sétimo, a tipificação das formas de ocorrência destas violências. Estes
dois artigos são de grande importância para o processo de enfrentamento à violência por
apresentarem uma delimitação o mais clara possível para este fenômeno, envolto em tantas
(in) definições.

Art. 5º Para os efeitos desta Lei configura violência doméstica e familiar contra a
mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão,
sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial: I - no âmbito
da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de
pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas; II -
no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos
que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou
por vontade expressa; III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor
conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.
Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de
orientação sexual.
(...)
Art. 7º São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras: I
- a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou
saúde corporal; II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que
lhe cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e
perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações,
comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento,
humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz,

51
insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou
qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à
autodeterminação; III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a
constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada,
mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar
ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer
método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à
prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite
ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos; IV - a violência
patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração,
destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos
pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a
satisfazer suas necessidades; V - a violência moral, entendida como qualquer
conduta que configure calúnia, difamação ou injúria (BRASIL. Lei Nº 11340, de 07
de agosto de 2006).

Estes dois artigos são importantes por serem guias na delimitação do público alvo/crime a
quem a Lei se destina. A importância do artigo sétimo se dá por apresentar as várias formas
de ocorrência do fenômeno, justificando o registro de queixas em unidades policiais contra a
violência psicológica, moral ou patrimonial, indiferente da concomitância de ocorrência entre
estas e com a violência física. Esta é considerada uma das inovações desta Lei, pela
possibilidade de legitimação das queixas sobre estas formas de violências anteriormente
subvalorizadas pela Lei e pelas autoridades policiais e diluídas em outras legislações,
dificultando sua coibição. Outro ganho que merece destaque é a inclusão da orientação
sexual nesta pauta, determinando que a coibição e ocorrência deste tipo de violência
independem da orientação sexual da mulher.

Porém, esta escolha abre brechas na prática da aplicação da Lei, no que se refere ao
entendimento sobre o público alvo e a caracterização do ambiente de ocorrência da violência
e dos participantes das cenas pelos dispositivos de enfrentamento elencados na Lei Maria da
Penha (autoridades policiais, do poder judiciário e da área social, de saúde, educação,
trabalho e habitação). Na prática, a leitura do que inclui/seja o doméstico, o familiar e as
mulheres é bem particular. Comumente violência doméstica é aquela que ocorre dentro no lar
entre marido e mulher, sem alcançar os outros agregados ou familiares, como tios, primos e
irmãos, por exemplo. No caso das adolescentes, entende-se este público-alvo como da
competência dos Conselhos Tutelares, mesmo em casos de violência de ex-namorados, por
exemplo, gerando dupla caracterização do crime, o que só torna mais morosa a apuração do
ocorrido. Outro exemplo, problematizado na definição de Azerêdo (2007), é o das
empregadas domésticas. Nestes casos, poderíamos ter como um dos avanços desta Lei, a
possibilidade de amparo das empregadas domésticas violentadas no ambiente doméstico por
52
seus/suas empregadores/as, mas, na prática, a caracterização desta violência como doméstica
é desqualificada justamente por causa do entendimento do que seja doméstico e familiar
(dentro de casa e entre pessoas da mesma família, prioritariamente marido e mulher). Nestes
casos, algumas vezes os próprios dispositivos encaminham ex-namoradas, ex-companheiras,
adolescentes ou empregadas violentadas para Delegacias comuns. No caso da mulher como a
violentadora no ambiente doméstico, principalmente, em relação aos filhos (mas também em
relação aos próprios companheiros), vale apresentar um ponto de problematização de
Welzer-Lang apresentado por Heleieth Saffioti.

a violência doméstica é masculina, sendo exercida pela mulher por delegação do chefe do
grupo familiar. Como ela é o primeiro modo de regulação das relações sociais entre os
sexos, é desde criança que se experimenta a dominação-exploração do patriarca, seja
diretamente, seja usando a mulher adulta (...). Nos termos de Welzer-Lang “a violência
doméstica tem um gênero: o masculino, qualquer que seja o sexo físico do/da dominante”
Desta sorte, a mulher é violenta no exercício da função patriarcal ou viriarcal (SAFFIOTI,
2004, p.73-74).

A partir desta colocação pode-se problematizar o poder positivo (produtivo) do discurso


patriarcal que (re)posiciona a categoria mulheres no lugar de subjugadas mesmo quando estas
têm comportamentos violentos e/ou cometem crimes (e são julgadas) abrindo a discussão
sobre a participação das mulheres na disputa de poder no ambiente doméstico. Esta é uma
forma de visualizar esta violência sustentada na existência inquestionável de uma Lei do
Patriarcado, onde a mulher ocupa, nas relações de gênero, a posição de dominada. O
apontamento de Saffioti fica como provocação para se observar que este tipo de violência
pode ser compreendido a partir de várias abordagens que, se divergentes sobre nomenclatura,
coincidem, na apresentação das mulheres como as vitimizadas preferenciais.

Ainda em relação à Lei Maria da Penha, vale ressaltar que nela também se baseia a
ocorrência da violência nas desigualdades de gênero, como nos documentos discutidos
anteriormente. Assim, reafirma-se o consenso do discurso do dispositivo de enfrentamento a
esta violência a partir da judicialização e publicização e da proposição de ações. A
delimitação pelas expressões violência contra a mulher e violência doméstica desta forma se
consolidou como objeto de pauta política e permitiu a ampliação, publicização e discussão de
seu enfrentamento.

53
Outra nomeação bastante recorrente é violência de gênero como uma forma de apontar
diretamente o foco da violência para a estruturação da sociedade a partir das desigualdades
de gênero.

Almeida (2007), por exemplo, considera ser esta a melhor definição para o fenômeno, apesar
de não negar que

seu uso deixa intocados os fundamentos da dominação patriarcal, contribuindo para


o desaparecimento da análise das relações de poder entre os sexos em proveito da
neutralidade discussão sobre as relações de poder entre os sexos em proveito de uma
neutralidade quanto aos mecanismos de opressão (Louis, 2000) Pode-se também
argumentar que, em razão da sua suposta neutralidade, é mais facilmente assimilável
no meio acadêmico. (...) A utilização da categoria violência de gênero, também
marcada pela incompletude, apresenta o risco adicional de ter um caráter tão
abrangente que, sendo aplicável a uma multiplicidade de fenômenos e de
discriminações, deixe escapar a as particularidades das relações de exploração e
dominação que se exercem nas relações íntimas. O seu risco é de transbordamento,
não de limitação. Não obstante, permite entender a violência no quadro das
desigualdades de gênero (ALMEIDA, 2007, p.25-27)

Assim, a autora apresenta sua aposta na delimitação da causa ou na veia de análise do


fenômeno da violência de gênero nas desigualdades de gênero que seriam fundadas e
fecundadas a partir da matriz hegemônica de gênero definida como

concepções dominantes de feminilidade e masculinidade, que vão se configurando a


partir de disputas simbólicas e materiais, processadas, dentre outros espaços, nas
instituições cuja funcionalidade no processo de reprodução social é inconteste
marcadamente, a família, a escola, a igreja, os meios de comunicação e
materializadas, ainda, nas relações de trabalho, no quadro político-partidário, nas
relações sindicais e na divisão sexual do trabalho operada nas diversas esferas da
visa social, inclusive nas distintas organizações da sociedade civil. É nesses espaços
e práticas que vão se produzindo, reatualizando e naturalizando hierarquias,
mecanismos de subordinação, o acesso desigual às fontes de poder e aos bens
materiais e simbólicos. (ALMEIDA, 2007, p.27-28).

Observa-se que, para Almeida, o desenho do gênero está em sua construção social e a
violência de gênero estaria diretamente vinculada à desigualdade fundante deste processo
construtivo e constitutivo que se dá através do trabalho constante das instituições sociais,
como a família, para sua reiteração e perpetuação. Percebe-se, portanto, que a violência de
gênero seria um dos resultados/consequências de ações pautadas na matriz hegemônica de
gênero.

Outra forma de abordagem do processo de definição/nomeação do fenômeno da violência de


gênero está diretamente ligada aos caminhos trilhados por algumas feministas na tentativa de
54
compreender sexo/gênero como conceitos não estáveis e não pré-discursivos como
explicitado no capítulo anterior. Quais as consequências da desconstrução destes conceitos
para a construção do conceito de violência de gênero como compreendido neste trabalho?

Partindo da proposta de Butler (2003) de subversão da separação sexo/gênero sugerimos que


se subverta a construção do conceito violência de gênero definindo-o por seu adjetivo (de
gênero). Por este caminho, a própria construção discursiva dos conceitos de sexo/gênero já
seria indicativo da violência. Em outras palavras, a violência de gênero encontra sua veia de
interpretação no questionamento da matriz heteronormativa que delimita os sexos como dois e
constitui a inteligibilidade do humano passando necessariamente por uma destas duas
categorias (feminino e masculino) limitando a possibilidade de escolha ou de aceitação de
novos arranjos e o gênero como uma mera interpretação cultural destes sexos, sem que se
discuta o próprio processo discursivo pelo qual estes conceitos são reiterados pelas práticas
reguladoras. Assim, a aposta a partir desta visão é que a violência se dá, justamente, na e pela
fixidez dos conceitos sexo/gênero construídos e reiterados pela matriz de inteligibilidade
heteronormativa que os funda como estanques. A contribuição de Butler para a discussão
sobre os conceitos está em nos alertar para o caráter produtor do discurso de “corpos que
pesam” e “corpos que não pesam” discursivamente (BUTLER, 2007). Assim, a forma de
apresentação do fenômeno violência de gênero se deve à própria construção e reiteração da
categoria gênero, visto que é a partir da necessidade de clivagem da matriz heteronormativa
de separar, qualificar, predicar e hierarquizar os corpos que se justifica a violência de gênero.
Desta forma, a violência contra os corpos das mulheres se dá pela delimitação de fronteiras
discursivas (e práticas) que não podem ser atravessadas ou questionadas sob pena de
punição/violência/morte. Esta produção discursiva sobre os corpos é a base que justifica todas
as formas objetivas de violência que se tenta delimitar e coibir através das Legislações e
Políticas Públicas. A dificuldade em subverter esta ordem torna compreensíveis os insucessos
de tantas propostas de enfrentamento à violência de gênero. É como atacar apenas a primeira
fileira de soldados inimigos, sem que se busque vencer o quartel general. As discussões que se
ocupam apenas da violência contra a mulher, da violência ocorrida no ambiente doméstico
e/ou de ocorrências violentas entre familiares invisibiliza a matriz heteronormativa que
sustenta e produz justificativas para a permanência da violência de gênero.

55
A subversão produzida pela escrita de Butler deve nos guiar no sentido de instituir
discursivamente um novo domínio para a discussão de temas como a violência de gênero. Ao
colocar entre aspas os conceitos mais caros para o feminismo, Butler redefine esta luta, seus
soldados e seus inimigos. Butler (2003) aposta na subversão de conceitos

como um esforço de refletir a possibilidade de subverter e deslocar as noções


naturalizadas e reificadas do gênero que dão suporte à hegemonia masculina e ao
poder heterosssexista, para criar problemas de gênero não por estratégias que
representem um além utópico, mas da mobilização, da confusão subversiva e da
proliferação precisamente daquelas categorias constitutivas que buscam manter o
gênero em seu lugar, a posar como ilusões fundadoras da identidade
(BUTLER,2003, p. 60).

A fixidez das identidades de gênero e dos papéis sociais de gênero que se mantêm a custa de
muita violência física, psicológica, moral, sexual e patrimonial pode ser comparada a um
Muro constantemente reforçado para que não sejam visibilizadas suas rachaduras e ou
deslizes. A compreensão de sexo/gênero como resultado da reiteração performativa permite,
por outro lado, a possibilidade de que os fossos e fissuras do Muro escamoteados durante o
processo constante de reiteração e justificação discursiva das práticas reguladoras da
coerência do gênero sejam visibilizados.

Assim, ao escolher definir o fenômeno como violência de gênero, em contraposição à


utilização da definição de violência contra a mulher ou violência doméstica, busca negar o
posicionamento da mulher no lugar de vítima que a adoção destas outras definições reitera e
reatualiza e a invisibilidade da matriz heteronormativa nesta discussão que institui e sustenta a
contraposição das categorias homem/mulher e todas as outras categorias dicotômicas, binárias
e naturalizantes que sustentam esta inteligibilidade como negro/branco, rico/pobre,
heterossexual/homossexual. Não negamos a dificuldade de levar este tipo de discurso para o
campo da prática institucional/pública/política, mas também não o consideramos utópico, pois
assim estaríamos reiterando justamente o que procuramos desconstruir.

Neste propósito, interessa-nos o estudo realizado por Mariza Corrêa (1983) sobre “processos
judiciais resultantes de homicídios entre casais, legal ou consensualmente estabelecidos, que
ocorreram em Campinas nas décadas de 50 e 60” (CORRÊA, 1983, p.11) e a dissertação de
Camila de Souza Menezes que analisa o processo de constituição do atendimento na
Delegacia Especializada de Crimes Contra a Mulher de Belo Horizonte, defendida em 2008.

56
Estes dois estudos separados por vinte e cinco anos, com linhas teóricas diferentes, são
consensuais em um aspecto: na apresentação da forma como os “crimes de gênero” são
“atendidos”, “construídos”, “recontados” e “deslegitimados” pelo aparato do judiciário (no
primeiro caso) e pelo aparato policial (no segundo caso) segundo as normas da matriz
heteronormativa. Interessa-nos esta constatação por demonstrar como o processo de
enfrentamento institucional e público da violência de gênero é perpassado pelo discurso que
sustenta justamente o fenômeno que busca coibir, o que pode ser observado também nas falas
das participantes do Grupo.

Corrêa (1983) demonstra como os processos dos chamados “crimes de paixão” são
transformados em fábulas pelos “manipuladores técnicos”: advogados de defesa e acusação,
delegados e juízes. Menezes (2008) busca a partir do “trabalho real” em contraposição ao
“trabalho prescrito” dos agentes da Delegacia, observar como a interpretação realizada por
eles da trama relatada pelas mulheres é o que guia o entendimento e os encaminhamentos da
queixa-crime apresentada. Assim, apesar de um processo de homicídio obedecer a etapas
formalmente prescritas e do trabalho dos policiais civis também seguir um protocolo legal,
estes estudos buscam demonstrar que “a interpretação que é feita (dos atos/autos) está sempre
sujeita às possibilidades discursivas disponíveis, segundo critérios de maior ou menor
visibilidade ocasionados por relações de poder” (MENEZES, 2008, p.32). E também que todo
o caminho percorrido por um processo (da instauração do inquérito até seu julgamento pelo
júri) é marcado por uma liberdade/manipulação dos “manipuladores técnicos” através de uma
série de estratégias empregadas em contraposição às normas escritas técnicas. Como
apresentado por Corrêa (1983)

Os atores jurídicos têm plena consciência da manipulação que realizam todo o


tempo, como veremos. Um promotor, esgotada sua argumentação jurídica, onde
tentava mostrar que o processo segue apenas as linhas predeterminadas, diz afinal:
“claro, por último existem sempre três versões: a sua, a minha e a verdadeira ”
(CORRÊA, 1983, p.41).

Não que a busca da verdade seja o objetivo único dos processos ou dos inquéritos policiais,
mas, cientes desta manipulação cabe perguntar quais são as bases que sustentam este
“processo paralelo” e quais os impactos disto para o enfrentamento à violência de gênero.

Corrêa (1983) sustenta que “os atos são transformados em autos, quer dizer, remontados a
partir de um esquema de ‘crenças’, ‘valores’, ‘normas’, ou ‘usos’ do grupo que encaminha o
57
caso para julgamento e que finalmente decide sobre ele” (CORRÊA, 1983, p.79). Na
apresentação detalhada por ela de vários processos de homicídio e tentativas de homicídio
percebe-se este esquema agindo segundo o sexo do autor do crime, os motivos para o crime e
os argumentos utilizados na defesa e na acusação dos envolvidos. Em seu estudo ela apresenta
como as penas aplicadas são variáveis segundo o sexo do autor do crime e que e os motivos
utilizados para justificar os crimes também são diferenciados.

As penas recebidas pelas mulheres são mais leves e a elas é também atribuído um
número maior de absolvições (...). Se olharmos a argumentação utilizada em sua
defesa veremos que há uma clara preferência pela “legítima defesa” como
justificativa de seus atos. Essa escolha de um argumento que expressa reação a uma
agressão anterior traduz a estratégia básica de defesa dessas acusadas, a sua
apresentação como vítimas, não apenas no momento do crime, mas ao longo de suas
vidas em comum com os homens que foram suas vítimas afinal (CORRÊA, 1983,
p.243).

Enquanto para os homens a “legítima defesa da honra” ou o crime “sob violenta emoção”
eram as justificativas para atenuar as penas ou absolvê-los, entre os motivos de justificativa
para os atos criminosos eram apresentados a infidelidade da esposa (comprovada ou suspeita),
o abandono do casamento por parte da esposa, muitas vezes após uma agressão mútua entre o
casal. Inclusive, ocorre uma escala de penalização entre os crimes e os motivos de sua
ocorrência. Desta forma, os argumentos eram utilizados de forma diferenciada, sendo que
para os casos onde a relação existia há menos tempo ou não havia união civil comprovada
entendia-se que o marido tinha menos obrigações para com a relação, menos motivos de
cobrança das ações de sua companheira e, portanto, de agredi-la. Nestes casos os maridos
recebiam penas mais altas por se entender que eles tinham mais direitos e, também mais
deveres sobre suas companheiras. Nos casos onde o marido não exercia a função de provedor
e onde se apresentava a mulher como ‘honesta’, ‘trabalhadora’ ou ‘sustentada pelos
familiares’ agregava-se culpa/pena ao caso por não ter o marido cumprido com suas
obrigações, sendo o inverso também observado, pois nos casos, onde os companheiros,
independente do tipo de união, conseguiam apresentar provas contra a conduta das mulheres
as penas eram diminuídas. Percebe-se que, realmente, existia, um esquema muito bem
articulado guiando toda argumentação sobre o processo e o destino penal do acusado/acusada.
Este esquema é normatizado no Código Civil “que enumera as razões pelas quais se autoriza
uma ação de desquite no seu artigo 317: adultério; tentativa de morte; sevícia ou injúria grave;
abandono do lar conjugal durante dois anos consecutivos” (CORRÊA, 1983, p.90) O que se
observava então era o aceite de
58
um modelo de casamento como ponto de referência para a discussão do
relacionamento homem-mulher, (onde) os julgadores aceitam também a identidade
social de cada um deles, suposta nesse modelo: o homem como figura ativa e a
mulher como sua subordinada, como figura passiva. A relação do homem com o
trabalho como expressa na lei, é significativa: ela pode dispor de seus frutos como
“bens reservados” enquanto ao marido cabe utilizá-los para cumprir com uma
obrigação assumida ao casar-se, a manutenção da família. Como veremos na análise
dos casos masculinos e femininos, a quebra da lei será aceita como justificativa e os
acusados serão absolvidos apenas quando se adequarem perfeitamente a essas
identidades básicas, seus companheiros tendo sido apresentados como desviantes
delas (CORRÊA, 1983, p.90,91).

Assim podemos dizer pelas análises apresentadas que as bases utilizadas para guiar a
argumentação manipulativa dos defensores/acusadores estavam calcadas nas normas da
matriz heteronormativa onde os comportamentos/posicionamentos delituosos eram punidos,
mas sob o peso do crime de se desviar da matriz. Estes processos e julgamentos paralelos
trazem consequências para o enfrentamento à violência de gênero justamente por reiterar as
bases que sustentam e justificam os “crimes de gênero” 3.

No caso do estudo realizado por Corrêa (1983) temos a oportunidade de observar a


manipulação de casos que foram levados a júri. O estudo realizado por Menezes (2008) tem
seu mérito por permitir que se observe nos dias atuais todo este processo paralelo realizado
antes mesmo da instauração do inquérito policial. Ela apresenta como as queixas-crimes são
abortadas antes mesmo de serem transformadas em inquéritos policiais. Este abortamento
realizado diariamente nas Delegacias Especializadas de Crimes contra as Mulheres e
denunciado pelas mulheres é tema constante tanto do debate teórico quanto das entrevistas de
acolhimento realizadas nos serviços da Rede de Enfrentamento. As conseqüências para o
enfrentamento à violência de gênero são devastadoras justamente por barrar todo o processo
investigativo e punitivo da violência. O que é importante no trabalho de Menezes (2008) é a
análise de como isto ocorre durante todo o atendimento realizado na Delegacia. Para isto, a
autora acompanhou casais atendidos na Delegacia observando como era realizado o trabalho
dos agentes policias desde a recepção até a escuta pelo escrivão. Ela constatou várias
manipulações, liberdades e estratégias interferindo no trabalho prescrito dos agentes. Em um
dos casos analisados, por exemplo, ela apresenta como mesmo

3
Para estudo recente sobre os “crimes de gênero” consultar “Assassinatos de Mulheres: um estudo sobre a
alegação, ainda aceita, da legítima defesa da honra nos julgamentos em Minas Geris do ano de 2000 a 2008”,
RAMOS, 2010.

59
permanece(ndo) os estereótipos de gênero, é nítida a diferença no atendimento pelo
fato de Alice ser uma pessoa branca, de classe média e tendo vindo com dois
advogados, que sabiam instruí-la a respeito de seus direitos e da Lei Maria da Penha.
Houve diferença no tratamento: tanto a delegada quanto as escrivãs ouviram mais a
vítima. (...) Ao final dos procedimentos, pediu-se que Alice lesse e assinasse cada
documento, explicando-se parte por parte e mostrando como seria o
encaminhamento do caso a partir de sua saída da delegacia. Tudo isso mostra que o
preconceito de gênero, que nega direitos às mulheres, está intimamente relacionado
ao preconceito de classe e raça (MENEZES, 2008, p.132)

Este caso é apresentado como exemplo por ter sido realizado um atendimento mais próximo
do trabalho prescrito para o atendimento na Delegacia. Mas mesmo neste atendimento fica
perceptível como há um esquema de crenças, valores, normas e/ou usos que guia a
interpretação dos casos pelos agentes policiais. Entre estas crenças uma merece destaque: a de
que as mulheres retiram a queixa no futuro norteando o atendimento de forma que se
desestimule a representação do crime. Isto também ocorreu no caso de Alice, apesar de todo
esforço em bem atendê-la.

Nesse caso, a decisão de que Alice não representaria criminalmente contra Augusto
partiu da própria delegada, que instruiu a agente e escrivã como fazer o
procedimento, apenas explicando-o ao advogado e posteriormente a Alice. Esta
tentou em vão, argumentar que havia sido vítima de injúria e humilhação, mas, ao
que a delegada lhe aconselhou não se preocupar com isso, a mensagem de
banalização do seu sofrimento se tornou clara para Alice, que responde: “vocês
devem ver isso aqui todo dia, né?”. Além disso, há uma naturalização da violência
na fala da delegada ao entender a ameaça como sendo “natural da separação” e uma
generalização da violência ao associar a agressividade do marido, que
“provavelmente” seja uma pessoa pacata, a um momento de “exaltação”. Através
dessa naturalização e generalização, ela não percebe a especificidade de gênero que
a própria Alice assinala (MENEZES, 2008, p.132).

Como apresentado por Corrêa (1983) não há uma iniciativa por parte dos “manipuladores
técnicos” de negar suas ações sobre os vários aspectos dos processos/momentos de um
atendimento. Na entrevista com a delegada, realizada após o atendimento, ela mostra como
sua manipulação do processo fica apagada através da produção de um “interesse da vítima”
(MENEZES, 2008, p.132).

Para finalizar a análise deste caso e demonstrar como a interpretação e julgamento dos casos
ocorrem neste primeiro atendimento transcrevemos as falas das escrivãs comentando sobre o
caso após a saída da mulher.

Escrivã: encheção de lingüiça. O juiz não vai deferir nada.


Agente: não vai deferir.
Camila: Vocês acham que o juiz não vai deferir as medidas protetivas?

60
Escrivã: sabe, porque tá enchendo lingüiça mesmo é falta do que fazer...
Agente: agora você já imaginou, ela manda pro juiz e o juiz (não dá para entender
porque elas começam a rir)
Escrivã: aqui (lê na oitiva as falas de Augusto que Alice considerou como injúria):
“você é uma pobre coitada, cresceu na favela, eu não tenho a índole que você tem”.
Aonde que tá (o crime)? Me fala! Me fala!Porque cê não estudou? Cê tá aqui
fazendo o quê? (MENEZES, 2008, p.126).

Estes fragmentos de um atendimento realizado na Delegacia servem para demonstrar como o


julgamento paralelo dos casos atua no enfrentamento institucional e público da violência de
gênero, no mínimo, enviesando o andamento dos processos legais. Concordo com Menezes
(2008) quando ela afirma, parafraseando Butler, “que a generalização feita a partir da
constatação (de que algumas mulheres retiram as queixas) produz os próprios efeitos que diz
apenas nomear ou descrever” (MENEZES, 2008, p.135).

A partir desta discussão sobre como as mulheres em situação de violência são posicionadas
durante suas trajetórias pela Rede de Enfrentamento adotamos a noção de sobrevivente
apresentada por Almeida (1998) em contraposição à de vitima por entender que “ela confere
uma dimensão mais afirmativa a categorias subalternizadas, indicando não se tratar de uma
categoria passiva, mas inscrita em condições de vida e em relações de força altamente
desfavoráveis” (ALMEIDA, 1998, p.10). A definição de sobrevivente apresentada por Almeida
(1998) será empregada nesta pesquisa. Para esta autora,

no contexto da violência doméstica, sobrevivente designa o sujeito que foi capaz de


reunir forças para lutar contra intensas e multidimensionais condições de opressão,
expressas, diretamente, através das relações de gênero processadas em contextos
familiares (em sua dimensão crônica) e, indiretamente, por meio de
constrangimentos e limites institucionais, gerados e impostos a partir de um campo
de forças determinado (em sua dimensão extensiva) (ALMEIDA, 1998, p. 10).

A adoção deste termo, embora considerado extremista por alguns, se dá pela aposta na
conversão do posicionamento da mulher fundado em uma construção discursiva queixosa,
individual e vitimizadora pela valorização e legitimação da agência desta mulher que, apesar
das pressões e opressões, busca se posicionar de forma ativa em defesa de seus direitos e de
sua vida.

Desta maneira, queremos sublinhar como as formas para se buscar dar visibilidade à
experiência das mulheres em situação de violência de gênero através dos discursos das
instituições da Rede de Enfrentamento à Violência podem servir para tornar mais coerente e

61
eficiente o processo de enfrentamento à violência. Consideramos que podemos a partir das
definições adotadas para este público entender as propostas teóricas e as políticas públicas
para a erradicação da violência, como também analisar criticamente as identidades que são
reiteradas através deste processo de definição.

Para além, apresentaremos a trajetória das mulheres à violência de gênero pela Rede de
Enfrentamento à Violência através da imagem de um Ciclo de Enfrentamento à Violência.
Com isto pretendemos demonstrar como as queixas-crimes/palavras das sobreviventes à
violência podem seguir um processo de (des)legitimação antes mesmo que a mulher adote,
por exemplo, a estratégia de publicização de instauração de um inquérito policial. Na verdade
este ciclo não ocorre apenas em relação a agentes institucionais, mas também por parte de
familiares, pessoas próximas às mulheres e por seu companheiro.

O primeiro momento do ciclo se caracteriza pelo que chamamos de publicização. Este


movimento da sobrevivente se caracteriza pela busca de apoio, ajuda, consolo, cumplicidade
em qualquer pessoa ou instituição fora da relação com o marido, incluindo familiares, filhos,
vizinhos, amigos, padres, policiais, Centros de Referência ou qualquer outro sujeito percebido
pela sobrevivente como um possível apoio no enfrentamento à violência.

Porém, em alguns casos, quando a sobrevivente decide publicizar a situação de violência, não
é incomum um primeiro momento de descrença, desvalorização ou deslegitimação da sua
fala, sendo seu inverso a legitimação de seu posicionamento por parte de qualquer um dos
sujeitos procurados por ela. Chamo este momento de (des)legitimação, ciente de que podem
ocorrer os dois movimentos frente ao posicionamento de enfrentamento da sobrevivente.
Considero que qualquer forma de deslegitimação do movimento de enfrentamento à violência
de gênero dificulta o processo por reiterar a violência contra a mulher e/ou desmotivá-la a
enfrentar a situação violenta. Podendo levar ao terceiro momento de (des)legitimização do
enfrentamento à violência levando à manutenção da situação de violência por ter a mulher
sido desacreditada em sua queixa-crime/solicitação de ajuda. O sentimento de apatia e
descrença é muito comum e pode dificultar a continuidade da trajetória de enfrentamento à
violência a partir de estratégias de publicização. O ciclo pode recomeçar imediatamente com
adoção de uma nova estratégia de publicização ou pode ficar paralisado e inoperante por
algum tempo.

62
(Des)
Publicização legitimação

(Des)
legitimação do
enfrentamento
à violência

Figura 01: Ciclo de enfrentamento à violência

Considero importante a visualização da trajetória destas sobreviventes como um ciclo para


que se possa dar visibilidade a como uma ação institucional ou individual frente à violência
de gênero pode ser decisiva para que se consiga quebrar o ciclo de violência na vida de uma
sobrevivente. Considero que esta proposta de visualização também possa ser adotada em
outras situações de violência como contra crianças e adolescentes e também para os vários
atendimentos oferecidos, principalmente por serviços públicos.

Aliado a isto, utilizo a descrição do fenômeno da violência a partir do modelo de ciclo de


63
violência. O Manual “Violência Intrafamiliar – orientações para a prática em serviço”,
produzido pelo Ministério da Saúde, em 2002, apresenta a descrição do ciclo de violência em
três fases. A primeira fase caracteriza-se pelo aumento da tensão com pequenos, mas
freqüentes, incidentes de violência. A mulher acredita que ainda tem algum controle sobre o
comportamento do agressor e essa aparente aceitação estimula o agressor a não se controlar.
A segunda fase é caracterizada pelo episódio agudo da violência. São freqüentes nesta fase
sintomas como ansiedade, raiva, terror e medo. A fase três é a do apaziguamento, a lua-de-
mel, quando o agressor sabe que agiu inadequadamente e tenta fazer as pazes e a mulher
agredida, em contrapartida, precisa acreditar que não sofrerá mais violência. Esta fase “dura o
tempo em que novamente se iniciam as cenas de violência. Novamente um crescendo se
instaura, único momento em que a intervenção externa pode ser recebida como eventual
quebra do ciclo/ou círculo” (SMIGAY, 2001, p.15). Outro modelo de descrição para a
dinâmica da violência de gênero é o do espiral “que sugere que a violência funciona em um
crescendo, com períodos de relativa estagnação, mas a virulência é ascendente” (SMIGAY,
2001, p.15).

Aposto na descrição da violência e da trajetória de enfrentamento à violência como um ciclo


por isto possibilitar entender a dinâmica da violência e de seu enfrentamento descrita pelas
mulheres possibilitando antever e buscar formas de quebrar estes ciclos de forma eficiente. A
noção de ciclo também permite desmistificar e questionar construções discursivas
heteronormativas sobre o posicionamento das mulheres nas relações violentas e na trajetória
de enfrentamento à violência apresentando uma nova racionalidade para a descrição da
violência, desmistificando os lugares de vítima passivas utilizados para definir as mulheres.
Partindo desta discussão, é fundamental investigar o modo como às sobreviventes que buscam
as instituições da Rede de Enfrentamento à Violência se posicionam e são posicionadas frente
à questão da violência de gênero e, por conseqüência, como este jogo de poder interfere no
enfrentamento à violência de gênero na vida das sobreviventes.

1.4 GRUPOS OPERATIVOS

Enrique Pichon-Rivière, psiquiatra e psicanalista argentino de origem suíça, contribuiu para a


teorização sobre grupos elaborando a teoria e técnica grupal chamada Grupo Operativo. O
interesse de Pichon-Rivière pelos fenômenos grupais teve início com uma situação vivenciada
64
em sua prática como psiquiatra encarregado do Servicio de Adolescentes del Hospital
Neuropsiquiátrico de Hombres da cidade de Buenos Aires (PICHON-RIVIÈRE, 1994 ,p.130).
Devido a uma greve do setor de enfermagem deste Hospital em 1946, ele teve a iniciativa de
colocar os seus pacientes menos comprometidos no papel de cuidadores dos mais
comprometidos. Com esta prática ele observou que ambos os subgrupos apresentaram
significativas melhoras em seus quadros clínicos. A conclusão foi que a ruptura do papel
estereotipado de quem cuida (setor de enfermagem) aliada ao novo processo de comunicação
possibilitado por esta prática foram os fatores referenciais para o processo de evolução dos
enfermos nesta situação.

Em consonância com suas contribuições teóricas, Pichon-Rivière construiu uma carreira


aliando prática e teoria, ensino e aprendizagem. Em 1953, fundou a Escuela de Psiquiatría
Social para a formação de pós-graduação de psicoterapeutas com a proposta de apontar
respostas às necessidades emergentes do contexto social. Em 1955, articulado a esta escola,
fundou o Instituto Argentino de Estudios Sociales, IADES. Este instituto desenvolveu
numerosas experiências de trabalho institucional e comunitário, além de cursos de
coordenação de grupos. Estas experiências levaram ao desenho de um novo Esquema
Conceitual Referencial Operativo-ECRO onde os operadores grupais atuariam em espaços de
participação que possibilitariam o esclarecimento dos sujeitos acerca de suas necessidades,
através da visualização e resolução de obstáculos, favorecidos pelo processo de aprendizagem
e comunicação no grupo. A partir destas experiências, em1967, Pichon-Riviére renomeou a
Escuela de Psiquiatria Social, que passou a ser chamada de Escuela de Psicologia Social.4

Em 1958, já como diretor do Instituto Argentino de Estudios Sociales (IADES), Pichon-


Rivière propôs a “Experiência Rosário”, definida por ele como o ponto de partida de suas
investigações sobre os grupos operativos. A proposta de Pichon-Rivière era reunir grupos
interdisciplinares (compostos por alunos e professores de diferentes áreas da referida
instituição, artistas, autodidatas, esportistas e público em geral) com a tarefa de discussão e
construção de uma didática interdisciplinar para o Instituto. Para o início dos trabalhos foram
colados cartazes convites nas proximidades do Instituto, dando publicidade às reuniões. Na
primeira reunião, Pichon-Rivière, como coordenador do grupo, apresentou a proposta da
experiência à platéia. Desde o início desta experiência o papel do coordenador estava focado
4
Disponível em: < http://www.psicologiasocial.esc.edu.ar/nueva. Php?Id=historia>. Acesso em: 12 de julho de
2009.
65
em orientar e favorecer a comunicação intragrupal. Além disto, foi adotado um observador
com a função de registrar os acontecimentos no grupo. Após o primeiro encontro para a
explanação da tarefa do grupo, os outros encontros do grupo heterogêneo focalizaram a
resolução da tarefa. Nos intervalos entre estes encontros, o coordenador e o observador
discutiam os encontros ocorridos buscando uma maior compreensão da dinâmica grupal.
Além disto, também foram realizadas reuniões de grupos homogêneos que se debruçaram
sobre novas tarefas de acordo com especificidades de seus grupos. Por exemplo, foram
criados grupos de alunos portenhos estudantes de Rosário e grupos com a tarefa de operar
frente a problemas da comunidade rosariana. Entre as reuniões dos grupos homogêneos e
heterogêneos Pichon-Rivière realizou outra explanação para os participantes da experiência.
A sua conclusão, neste momento, foi que agora estas pessoas não mais se organizavam como
platéia, mas como um grupo (PICHON-RIVIÈRE, 1994, p.88-90).

Ao definir a metodologia que utilizou na “Experiência de Rosário” Pichon-Rivière delimita


sua forma de atuação em comunidades através de grupos reunidos em laboratórios sociais.
Este posicionamento de Pichon-Rivière aponta para a sua crença nos grupos como meio de
atuação visando à modificação dos indivíduos e do meio em que vivem. Percebe-se,
novamente, o investimento de Pichon-Rivière em uma psicologia social atuante, resolutiva,
que alia ação e pesquisa.

Em Rosário, empregou-se como estratégia a criação de uma situação de laboratório


social; como tática, a grupal, e como técnica, a de grupos de comunicação, discussão
e tarefa. (...) O laboratório social é constituído pela reunião, em uma mesma equipe
de trabalho, de pessoas interessadas em trazer para a comunidade que as rodeia certo
número de modificações de atitudes, sobre a base de um estudo detalhado da
situação e por meio de um programa de ação racionalmente concebido. (...) Na
organização do laboratório (social) a ação e a investigação são inseparáveis.
(PICHON-RIVIÈRE, 1994, p. 91)

A metodologia utilizada em Rosário tem como base teórica as contribuições de Kurt Lewin
sobre a Dinâmica de Grupo, os “laboratórios sociais”, a noção de campo e de situação e
alguns princípios topológicos da aprendizagem5. Aliam-se a essas referências parâmetros
5
Kurt Lewin é conhecido psicólogo que se dedicou ao estudo dos pequenos grupos e seus fenômenos. Suas
pesquisas enfatizaram o estudo do comportamento humano em seu contexto físico e social total. A característica
notável da psicologia social de Lewin é a dinâmica de grupo, de conceitos relativos ao comportamento individual
e grupal. Assim como o indivíduo e o seu ambiente compõem um campo psicológico, assim também o grupo e o
seu ambiente compõem um campo social. Os comportamentos sociais ocorrem no interior de entidades sociais
simultaneamente existentes como subgrupos, membros de grupos, barreiras e canais de comunicação, e delas
resultam. Assim, o comportamento do grupo é uma função do campo total existente em qualquer momento dado.
Lewin também fez pesquisas sobre o comportamento em várias situações sociais (...). Além disso, Lewin
acentuou a importância da pesquisa de ação social e o estudo de problemas sociais relevantes voltados para a
66
psicanalíticos, sobretudo, os aportes de Melanie Klein6. Segundo Osório, em Melanie Klein,
Pichon-Rivière buscou a “compreensão da inércia em relação às mudanças (...) e na Dinâmica
de Grupo, ele encontrou uma forma de operacionalizar sua abordagem grupal através dos
‘laboratórios sociais’ (...) que criariam o clima propício para a indagação ativa a que se
propunham os grupos operativos” (OSÓRIO, 2003, p.30). Ainda em concordância com as
idéias de Kurt Lewin e Klein, Pichon-Rivière coaduna com o princípio sobre a formulação de
uma teoria segundo “a qual toda investigação vai acompanhada de uma operação, ou seja, não
há investigação ‘pura’, ‘inócua’” (PICHON-RIVIÈRE, 1994, p.105). A relação entre teoria e
prática, para Pichon-Rivière, ocorre através de movimento em uma espiral dialética,
característico da práxis.

Além destas influências basilares, Pichon-Rivière também se baseou nas idéias de Ruesch 7
sobre a relação entre os estilos comunicacionais e as estruturas patológicas e nas idéias da
escola de Palo Alto8 para desenvolver a sua teoria sobre comunicação, que é um conceito
chave em seu entendimento da possibilidade de atuação do grupo operativo. Para o
desenvolvimento de sua teorização sobre os papéis desempenhados pelos participantes de um
grupo operativo, Pichon-Rivière utilizou-se dos conceitos de papel e “outro generalizado”, de

introdução de mudanças (SCHULTZ e SCHULTZ, 2002).


6
Psicanalista inglesa que foi “o principal expoente do pensamento da segunda geração psicanalítica mundial. Deu
origem a uma das grandes correntes do freudismo, o kleinismo. (...) Transformou totalmente a doutrina freudiana
clássica e criou não só a psicanálise de crianças, mas também uma nova técnica de tratamento e de análise de
didática, o que fizera dela uma chefe de escola. Sua obra, composta de cerca de cinqüenta artigos e de um livro,
A psicanálise de crianças, foi traduzida em quinze línguas e reunida em quatro volumes. O Kleinismo é
considerado uma escola comparável ao lacanismo que alia um saber clínico a uma teoria (ROUDINESCO e
PLON, 1998).
7
Médico suíço, Jurgen Ruesch trabalhou com Bateson, em 1949, na Clínica neuropsiquiátrica Langley Porter, de
São Francisco. Em 1951, participou da publicação do livro “Communication. The Social Matrix of Psychiatry”.
Neste livro, os autores sustentam que a comunicação é o "único modelo científico a reagrupar os aspectos
fisiológicos, intrapessoais, interpessoais e culturais em um mesmo sistema. De tal modo que a comunicação
constitui a matriz na qual se moldam todas as atividades humanas". Os aportes da cibernética conduziram os
autores a insistir sobre o fato de que a análise de um sistema - como é o sistema comunicacional - não pode ser
pensada a não ser na circularidade dos diversos elementos que o constituem e que, entre si, interagem. Assim
sendo, a epistemologia não existe sem a informação; a informação não existe sem a comunicação; a
comunicação não existe sem aprendizagem; a informação e a comunicação não existem sem uma codificação e
uma avaliação das informações, e assim por diante (SAMAIN, 2004).
8
Escola de Palo Alto “Nome por que ficou conhecido um núcleo de investigação científica, nas áreas da
psicoterapia e psiquiatria, fundada em 1959, em Palo Alto, na Califórnia, oriundo do Mental Research Institute.
Teve como base principal uma equipe de investigadores do início da década de 50 do século XX, liderada por
Gregory Bateson. O seu principal objetivo era a compreensão dos fenômenos de auto-regulação em qualquer
forma de vida, que, por sua vez, tendo como base o pressuposto da similitude formal que acreditavam existir no
funcionamento de todos os seres vivos, conduziria a uma melhor compreensão dos processos da psique humana.
Neste âmbito, a pesquisa e o estudo de parâmetros formais da comunicação entre os seres vivos, por exemplo,
revestia-se de grande importância, envolvendo o trabalho conjunto de psiquiatras e psicoterapeutas. A associação
da Escola de Palo Alto ao Mental Research Institute nunca se revestiu de caráter oficial, uma vez que o grupo
nunca formou uma estrutura organizada e, por isso, ficou também conhecido como Invisible College (Colégio
Invisível) (ESCOLA DE PALO ALTO, 2003).
67
George Mead. Para explicar a relação do sujeito com o outro, parte-se do entendimento de que
existem os papéis prescritos e os assumidos e que, na medida em que estes coincidem, é que
seria possível ao sujeito reconhecer a si e ao outro, atingindo sua operatividade máxima. Na
interação do self com o outro generalizado estrutura-se o mim (papel operativo diferenciado)
presente nos diferentes momentos da operação da tarefa (PICHON-RIVIÈRE, 1994). Para a
construção de um esquema de avaliação grupal a influência da sociometria de Moreno 9 está
presente na utilização do vetor tele, a ser descrito na seção sobre os vetores de avaliação nos
grupos operativos.

Após o momento inicial de sua teorização Pichon-Riviére aliou à psicanálise o materialismo


dialético “numa tentativa de transformar o grupo operativo num instrumento capaz de revelar
os conteúdos ideológicos subjacentes às tarefas de todos os grupos” (BAREMBLITT, 1994,
p.184). Seguindo esta linha, Pichon-Rivière faz uma crítica à noção de instinto de Freud
considerando mais adequado o uso da noção de necessidade como entendida por Marx. Para
ele, a noção de necessidade expressaria melhor a determinação da estrutura social sobre o
indivíduo e sobre suas necessidades que seriam sociais e não naturais. Para esta linha teórica o
ser humano seria um ser de necessidades que só se satisfariam através das relações sociais que
o determinariam (BAREMBLITT, 1994, p.182). Esta imagem do homem como um ser de
necessidades sociais a serem satisfeitas através das relações sociais aliada à noção de sujeito
ativo, atuante, produtor e produto da relação dialética com o meio diz do campo de atuação da
psicologia social na teoria pichoniana e da escolha do grupo como objeto privilegiado de
intervenção.
O sujeito não é só um sujeito relacionado, é um sujeito produzido em uma práxis.
Nele não há nada que não seja a resultante da interação entre indivíduo, grupos e
classe. Se essa relação é o objeto da psicologia social, seu campo operacional
privilegiado é o grupo, que permite a investigação do interjogo entre o psicossocial

9
Jacob Levy Moreno (1889-1974) psiquiatra judaico romeno, conhecido como o pai do Teatro Espontâneo,
Psicoterapia de Grupo, Psicodrama e Sociodrama e Sociometria. A Revolução Criadora moreniana propõe o
rompimento com os padrões de comportamento, valores e formas estereotipadas de participação na vida social,
que acarretam a automatização do homem (conservas culturais). (...) A possibilidade de modificar uma dada
situação implica em criar, e a criatividade é indissociável da espontaneidade (esta permite que o potencial
criativo se atualize e se manifeste). Segundo Moreno, a criança aos poucos, com o desenvolvimento de um fator
inato, chamado Tele, vai distinguindo objetos e pessoas, sem distorcer seus aspectos essenciais; assim Tele é a
capacidade de perceber de forma objetiva o que ocorre nas situações e o que se passa entre as pessoas. Toda ação
pressupõe relação, factual ou simbólica (relação com pessoas reais ou imaginárias, que têm sua presença
representada). Toda relação pressupõe formas de comunicação. O fator Tele influi decisivamente sobre a
comunicação, pois só nos comunicamos a partir do que podemos perceber. Para Moreno, Tele é também uma
“percepção interna mútua entre dois indivíduos”. A empatia é a captação, pela sensibilidade dos sentimentos e
emoções de alguém ou contidas, de alguma forma, em um objeto. Um dos objetivos do Psicodrama, do
Sociodrama e da Psicoterapia de Grupo é descobrir, aprimorar e utilizar os meios que facilitem o predomínio das
relações télicas sobre relações transferenciais (VASCONCELOS, 2006).
68
(grupo interno) e o sócio-dinâmico (grupo externo), através da observação das
formas de interação, dos mecanismos de adjudicação e assunção de papéis
(PICHON-RIVIÈRE, 1994, p.174).

A psicologia social pichoniana pode ser definida como a ciência do homem no campo da
práxis, a ciência das interações voltadas para uma mudança social planificada, uma ciência
operativa, instrumental, voltada para uma crítica da vida cotidiana, através da abordagem do
homem em situação. A objetividade desta ciência fundada na práxis se daria através da crítica
e autocrítica possibilitadas pela prática, com a teoria sendo corrigida por meio de mecanismos
de retificação e ratificação em uma espiral dialética (PICHON-RIVIÈRE, 1994, p.121).

Pichon-Rivière também foi professor e preocupou-se em propor uma didática para a


psicologia social conforme ele a definia. Para ele, a psicologia social seria uma disciplina
interdisciplinar, grupal, instrumental e operacional. Pichon-Rivière entendia a didática como
uma estratégia composta por duas tarefas: a informativa e a formativa, ou seja, ela não
objetivava apenas a transmissão de conhecimentos, mas também o desenvolvimento e
modificação de atitudes. A aprendizagem na teoria pichoniana

está sustentada em uma didática que a caracteriza como a apropriação instrumental


da realidade, para modificá-la. A noção de aprendizagem se vincula intimamente
com o critério de adaptação ativa à realidade (...), que se entende como uma relação
dialética mutuamente modificante e enriquecedora entre sujeito e meio. Aprender é
realizar uma leitura da realidade, leitura coerente, e não aceitação acrítica de normas
e valores. Ao contrário buscamos uma leitura que implique capacidade de avaliação
e criatividade (transformação do real) (PICHON-RIVIÈRE, 1994, p.177).

Merece destaque na definição de aprendizagem pichoniana a reafirmação da práxis como


meio de atuação e posicionamento frente à realidade e o constante apontamento para a
mudança (individual e da sociedade) como objetivos últimos desta teorização em psicologia
social.

Guiada pelo instigante convite da teoria pichoniana apresentarei, a seguir, uma revisão sobre
os elementos definidores desta teoria como: grupo operativo, tarefa, ensino-aprendizagem,
comunicação, esquema conceitual referencial operativo-ECRO, assunção e adjudicação de
papéis, modelo do cone invertido, os vetores de avaliação dos processos grupais e as funções
da equipe de coordenação neste enfoque grupal. Por fim, apresentarei as possibilidades de
utilização do Grupo Operativo em geral e discutirei a utilização com o público alvo mulheres
sobreviventes à violência de gênero.
69
1.4.1 DEFINIÇÃO DE GRUPO OPERATIVO

Enrique Pichon-Rivière definia grupo operativo como “um conjunto de pessoas reunidas por
constantes de tempo e espaço, articuladas por sua mútua representação interna, que se
propõem, implícita ou explicitamente, uma tarefa que constitui sua finalidade” (PICHON-
RIVIÈRE, 1994, p.157). Apesar desta definição clássica de Pichon-Rivière sobre o que seja
um Grupo Operativo a plasticidade de sua obra e as várias formas de apropriação de seu
trabalho tornam necessária uma discussão sobre este tema. Assim, apresentarei a seguir
algumas outras formas de definição de outros autores (não muito diferentes da original) e uma
discussão sobre a melhor forma de definição de um Grupo Operativo. A discussão sobre esse
assunto se baseia no questionamento sobre uma definição para o que seja um Grupo
Operativo: uma teoria, uma ideologia ou uma técnica. Por fim, apresentarei como este termo
será entendido neste trabalho.

Participando desta discussão Baremblitt (1994) declara que para a melhor construção de uma
definição do que seja um grupo operativo é necessária a explicação dos diferentes aspectos
que o constituem. Esta colocação pode ser interpretada como o entendimento do Grupo
Operativo como um corpo teórico que sustenta uma prática. Para esta discussão ele traz a
definição de Bauleo10

Chamamos grupo operativo a todo grupo no qual a explicitação da tarefa e a


participação através dela permite não só sua compreensão, mas também sua
execução (...). O grupo pode ser visualizado em dois planos: o da temática, extensão
de temas que constituirão a armação da tarefa; e o da dinâmica, no qual a
interrelação evidenciará o sentir que se mobiliza em dita temática (BAULEO apud
BAREMBLITT, 1994, p.184-185).

Nesta definição é reafirmado o aspecto principal desempenhado pela tarefa e aponta-se para
os dois planos que perpassam o Grupo Operativo: o da temática e o da dinâmica. Esta
colocação é muito importante, pois a proposta de utilização e interpretação do Grupo
Operativo sempre se dá articulando os vários aspectos da situação. Pichon-Rivière preocupou-

10
Armando Bauleo, falecido em 2008, é um dos mais conhecidos psicanalistas argentinos, discípulo de Pichon e
de Bleger. Bauleo era um médico psiquiatra que fazia sua formação na Associação Psicanalítica Argentina e era
membro do Partido Comunista como Bleger e trabalhava com ele na Faculdade de Filosofia e Letras, no curso de
Psicologia. (...) Além disso, teve uma participação muito importante na experiência de comunidade terapêutica
desenvolvida, em fins de 1968, num serviço do Hospital Alejandro Korn de Melchor Romero, o asilo
psiquiátrico próximo a La Plata (VEZZETTI, 2009).
70
se em questionar em sua teoria as posições dilemáticas e dicotômicas, optando sempre por
uma relação dialética. Assim, ele apresentou: a tarefa como composta por aspectos implícitos
e explícitos e a importância da associação entre o agir, o pensar e o sentir em sua realização.
Para além, ele postulou a análise do grupo não apenas a partir da execução da tarefa, mas
também da análise da dinâmica grupal a partir da interrelação entre os membros, a tarefa e a
coordenação do grupo.

Segundo Fernandes (2003), “para Pichon, o Grupo Operativo é um instrumento de trabalho e


também um método de investigação, mas cumpre uma função terapêutica, o que originou
diversas confusões” (FERNANDES, 2003, p.199). As confusões a que se refere este autor
podem ser percebidas pelas várias formas como o Grupo Operativo pode ser apropriado na
prática, segundo o objetivo e o enfoque de determinado aspecto da teoria priorizado pelo
coordenador. A meu ver, desde que não se desqualifiquem ou se neguem os princípios gerais
de organização e entendimento da dinâmica grupal na teoria pichoniana (que serão discutidos
durante todo este capítulo) esta plasticidade na utilização e definição do que seja um Grupo
Operativo é coerente com a proposta de Pichon-Rivière. Assim a discussão do que seja um
grupo operativo conduz ao entendimento de que ele seria uma teoria, uma ideologia do
processo grupal, uma técnica, um método de investigação com uma função terapêutica. A
confusão talvez ocorra quando se tenta dicotomizar a proposta utilizando-a como apenas um
destes aspectos ou através de uma hipertrofia de apenas um aspecto em desconsideração dos
outros. A meu ver, apropriar-se do Grupo Operativo, por exemplo, como apenas uma técnica
sem se valer de sua ideologia seria uma escolha empobrecida.

Apresentarei a seguir duas definições que se diferenciam principalmente por definir o Grupo
Operativo como uma ideologia. Apesar de aparentemente elas focarem o Grupo Operativo em
seu caráter ideológico se destacam por apontarem para a importância do posicionamento do
coordenador.

Assim, Portarrieu e Tubert-Oklander (1986) aprofundam a discussão do que seja um Grupo


Operativo partindo de uma negação do Grupo como uma simples técnica para uma conclusão
mais ampla.

O grupo operativo não é um termo utilizável para se referir a uma técnica específica
de coordenação de grupos, nem a um tipo determinado de grupo, em função de seu

71
objetivo, como poderia ser “grupo terapêutico”, “grupo de aprendizagem”, mas se
refere a uma forma de pensar e operar em grupos que pode se aplicar à coordenação
de diversos tipos de grupos (PORTARRIEU; TUBERT-OKLANDER, 1986, p.135-
136).

Esta negação, a meu ver, é importante por atentar para o perigo de se apropriar da proposta do
Grupo Operativo como apenas uma técnica de coordenação de grupos sem se atentar para seu
aporte teórico e ideológico. Novamente, eles reafirmam na definição abaixo o entendimento
do Grupo Operativo como algo para além de uma técnica.

Os grupos operativos não são uma técnica, mas uma ideologia, no sentido de um
marco referencial teórico valorativo que organiza a percepção, o pensamento, e a
ação do coordenador de grupos. Desta forma, a única definição opositora ao grupo
operativo seria a posição do coordenador como definidor do saber. (...) Como
consequência, a interrogação sobre a conveniência ou não de abordar uma tarefa
grupal determinada com a modalidade de grupo operativo ou outra não é problema
empírico, mas sim ideológico. É uma questão de qual tipo de processo de
desenvolvimento humano que se considera desejável, que depende da concepção de
mundo e dos valores de cada coordenador, assim como dos membros do grupo. E
esta é a razão pelas quais muitas discussões sobre grupos operativos se transformam
em verdadeiros “diálogos de surdos” toda vez que os interlocutores partem de
pressupostos filosóficos prévios diferentes e incompatíveis (PORTARRIEU;
TUBERT-OKLANDER, 1986, p.139-140).

De acordo com a discussão acima entendo o Grupo Operativo e me aproprio dele como uma
técnica e meio de investigação apoiado em uma concepção ideológica que compreende o ser
humano a partir da constante interação dialética com o meio e se interessa pelas
transformações que ocorrem (nos sujeitos e no meio) durante este processo. Para mim, a
melhor definição de Grupo Operativo é aquela que consegue apresentar todas as
possibilidades de sua utilização com a fluidez de um movimento dialético.

1.4.2 TAREFA

A existência de uma tarefa a ser desempenhada pelo Grupo Operativo é o aspecto central em
sua organização. Assim, para o entendimento do conceito Grupo Operativo faz-se necessário
compreender a noção de tarefa apresentada por Pichon-Rivière. A noção de tarefa é composta
por três momentos: a pré-tarefa, a tarefa e o projeto. “Estes momentos se apresentam em uma
sucessão evolutiva, e sua aparição e interjogo constante podem situar-se diante de cada
situação ou tarefa que envolva modificações do sujeito” (PICHON-RIVIÈRE, 1994, p.19).
Assim, de forma geral, o grupo operativo tem como marco definidor o desempenho de uma
tarefa que funciona como um
72
organizador dos processos de pensamento, comunicação e ação que se dão em e
entre os membros do grupo. (...) A tarefa leva a uma nova rede de comunicações,
possibilitando a mudança e a conseqüente aprendizagem. (...) A referida tarefa
(possui dois aspectos): o externo, ou seja, o trabalho produtivo, cuja realização
constitui a razão de ser do grupo, e o interno, que consiste na totalidade das
operações que devem realizar os membros do grupo de maneira conjunta para
constituir, manter e desenvolver o grupo como equipe de trabalho. A tarefa interna
exige que os membros realizem uma permanente indagação das operações que se
realizam no seio do grupo em função da existência da tarefa externa
(PORTARRIEU; TUBERT-OKLANDER, 1986, p.136- 137).

A partir desta definição destacam-se dois aspectos da tarefa que delimitam a centralidade
deste conceito para o entendimento do grupo operativo: a composição da tarefa em dois
registros e a tarefa como o meio para se atingir o objetivo principal do grupo, a mudança.
Desta forma, a tarefa é compreendida como um para além da simples execução automática de
pautas ditadas por um coordenador para um fim imediato e único. A atuação do coordenador
pautando-se nos dois registros da tarefa é o grande diferencial de uma atuação não
dicotômica, ou seja, que não entende o sujeito (razão e emoção), o objetivo do grupo
(mudança individual e coletiva) e a tarefa (externa e interna) a partir de partes que o
compõem. A proposta de Pichon-Rivière é a superação destas antinomias a favor de uma
visão dialética.

Assim, a tarefa é o fio condutor do Grupo Operativo onde o foco de atuação é a quebra das
condutas estereotipadas e a aprendizagem de novas pautas através deste movimento dialético
entre os membros do grupo e a tarefa proposta. Neste contexto a aprendizagem é entendida
como todo processo de apropriação, manipulação e adaptação à realidade. Sendo que esta
adaptação não compreenderia a passividade do sujeito frente ao meio, mas, uma atuação ativa
onde à reestruturação do sujeito corresponde uma reestruturação do meio. “Seria esquemático,
resumir sob a noção de tarefa, tudo o que implica modificação em dupla direção a partir do
sujeito e para o sujeito (...) uma noção que englobe, ao examinar o sujeito, sua relação com os
outros e com a situação” (PICHON-RIVIÈRE, 1994, p.21). Novamente, é a partir dos trilhos
de um movimento dialético que podemos visualizar a dinamicidade do processo grupal.

Para entender os medos e dificuldades dos sujeitos frente às situações de mudança Pichon-
Rivière utilizou-se da teorização de Melanie Klein sobre ansiedade básica. A teoria kleiniana
demonstra que o sujeito pode reagir a partir de duas ansiedades básicas frente às exigências do
meio: a ansiedade depressiva e a ansiedade paranóide. Pichon-Rivière entendeu que em um
73
grupo a ansiedade depressiva apareceria como uma defesa frente ao medo da perda de
estruturas já conhecidas e a ansiedade paranóide como um medo frente ao novo. A resistência
à mudança seria desta forma interpretada como a união destas duas formas de ansiedade que
atuariam de forma cooperativa sobre o fazer grupal. O diferencial para a interpretação destas
ansiedades no grupo seria a localização de seu acontecimento e de sua superação no fazer
grupal. O processo de esclarecimento destas pautas seguiria o movimento de uma
interpretação no sentido de tornar o implícito (destes posicionamentos) explícito (durante o
fazer grupal). Neste contexto grupal, as interpretações se dirigiriam ao conteúdo atual do fazer
grupal em relação à tarefa, privilegiando como foco a relação do grupo com a tarefa
(desvencilhando-o da relação do sujeito com o coordenador/terapeuta). Assim,

a tarefa é possibilitada através de um trabalho compartilhado de esclarecimento


grupal. Este esclarecimento implica a análise, no “aqui e agora” da situação grupal,
dos fenômenos de interação, dos processos de adjudicação e assunção de papéis, das
formas da comunicação, em relação com as fantasias que geram essas formas de
interação, os vínculos entre os integrantes, os modelos internos que orientam a ação
(grupo interno) e os objetivos e tarefa prescrita do grupo (PICHON-RIVIÈRE, 1994,
p.178).

O momento do processo grupal onde se situam as técnicas defensivas e onde se trabalha a


elaboração da resistência à mudança caracteriza a pré-tarefa. Na pré-tarefa, como uma
resposta à tensão criada pelos medos, ocorre no grupo uma impostura frente à tarefa, ou seja,
ele se posiciona através de condutas parcializadas, dissociadas, semicondutas, maneiras de
não entrar na tarefa. Exemplos destas condutas podem ser observados particularmente no tipo
de manejo do tempo (constante protelação, atrasos, faltas) e também através de um
obsoletismo dinâmico, ou seja, movimentos que aparentam uma ação, mas que na realidade
são realizados para impedir qualquer transformação, (“façamos de tudo para que nada
mude”). Neste momento o grupo se posiciona através de um jogo de dissociação do pensar,
atuar e sentir, postergando o enfrentamento das ansiedades frente às mudanças. Enquanto
ocorre no grupo este movimento, o processo de aprendizagem fica paralisado e as ansiedades
não interpretadas se intensificam. A resistência à mudança apresenta-se no grupo em termos
de dificuldade na comunicação e na aprendizagem. Assim, a rigidez no pensar e no fazer
grupal constitui o ponto principal de atuação (PICHON-RIVIÈRE, 1994).

Considero que a melhor forma de visualização da relação entre a tarefa e a pré-tarefa é de


uma espiral em constante movimento dialético. “Na passagem da pré-tarefa para a tarefa, o
sujeito efetua um salto, ou seja, a acumulação quantitativa prévia de insight realiza um salto
74
qualitativo durante o qual o sujeito se personifica e estabelece uma relação com o outro
diferenciado” (PICHON-RIVIÈRE, 1994, p.21).

A tarefa pode ser compreendida através de seus quatro momentos da função operativa:
estratégia, técnica, tática e logística. Onde se compreende a logística como o

momento da observação do campo inimigo (a resistência à mudança), a estratégia, o


planejamento de longo alcance, a tática, a forma com que se emprega o plano na
prática e a técnica os diferentes recursos ou instrumentos, e as formas como são
utilizados para se operar no campo.Esses quatro passos podem ser sucessivos ou
simultâneos; se a tarefa sair mal pode se averiguar em qual deles existiu dificuldade
(BERSTEIN,1986,p.118).

A partir deste caráter operativo da execução da tarefa percebe-se a atuação ativa e criativa dos
membros do grupo a partir dos vários elementos em jogo no aqui agora do grupo. Entramos,
assim, então, na idéia de projeto ou produto “que seriam aquelas estratégias e táticas para
produzir uma mudança que, por sua vez, voltariam a modificar o sujeito com o qual o
processo se põe outra vez em marcha” (BAREMBLITT, 1994, p.190). O projeto emerge,
assim, como um planejamento para o futuro e uma forma de superação da perda com o fim do
grupo e/ou com a resolução da tarefa. O projeto também pode ser considerado um aspecto
positivo da pertença dos membros ao grupo, quando o fizer torna-se do grupo e não de cada
membro em separado.

1.4.3 APRENDIZAGEM-COMUNICAÇÃO

Para entender o processo de mudança e resistência à mudança na teoria pichoniana dois


conceitos se entrelaçam: a unidade ensino-aprendizagem e a comunicação. Pode-se dizer,
inclusive, que na teoria pichoniana aprender é sinônimo de mudança. Assim, frente a todo
processo de mudança são despertadas ansiedades sobre as quais se trabalha visando à
elaboração da tarefa. A resistência à mudança/aprendizagem, em um Grupo Operativo,
apresenta-se através de dificuldades na aprendizagem e na comunicação e de pautas
estereotipadas no agir e no pensar frente à tarefa.

A superação da resistência à mudança ocorre através de uma adaptação ativa à realidade


proposta por Pichon-Rivière como “um conceito dialético no sentido de que o sujeito, ao

75
transformar-se, modifica o meio, e ao modificar o meio, modifica-se a si mesmo” (PICHON-
RIVIÈRE, 1994, p.48-177).

Assim, a mudança na teoria pichoniana é uma modificação operativa que se dá através da


aprendizagem da realidade que toma forma através de novas pautas, sendo o seu oposto a
reprodução de estereotipias. Deste modo, formar-se em grupo consiste em aprender a
aprender ou aprender a pensar, entendendo-se por aprender a aprender/pensar como “a
redefinição dos modelos de aprendizagem nos quais fomos configurados como sujeitos
cognoscentes, modelos passivos, receptivos, individualistas, competitivos, teoricistas e
autoritários” (QUIROGA, 1991, p.25). Aprender a aprender/pensar através da técnica de
Pichon-Rivière implica na

transformação de um pensamento linear, lógico-formal num pensamento dialético


que visualize as contradições no interior dos fenômenos e as múltipla interconexões
do real. Tenciona-se então uma passagem da dependência à autonomia, da
passividade à ação protagonista, da rivalidade à cooperação (QUIROGA, 1991,
p.25).

O resultado mais importante desse processo é que o sujeito se transforme em agente de


mudança. Assim, a focalização na aprendizagem como um processo ativo, dialético e
transformador faz da teoria pichoniana uma proposta de atuação revolucionária do status quo.

Aprender, portanto, vem a ser uma nova leitura da realidade e apropriação ativa da
mesma, no aqui, agora e comigo. Não estando somente no discurso, mas nas ações
mais ordinárias do cotidiano. (...) onde o sujeito deixa de ser espectador e passa a ser
o protagonista de sua história e da de seu grupo. Parte da informação apropria-se
dela e transforma-a em gestos. Deixa de ser aluno que recebe passivamente
conservas de saber e passa a ser aprendiz que, ao fazer, vai aprendendo (ABDUCH,
1999).

A aprendizagem é compreendida como uma apropriação e modificação da realidade através


de uma relação dialética onde aprender e ensinar sempre opera dentro de um mesmo marco de
trabalho, como uma unidade onde o indagar, questionar, investigar é a mola propulsora nas
relações entre o par aluno-professor, os membros de um grupo ou entre estes e seu
coordenador. Somente assim sendo entendida esta estrutura assume seu caráter operativo e
uma vigência que determinam a forma e função instrumental de uma estrutura dinâmica. A
aposta é no re-descobrir, no re-aprender e no re-ensinar através da constante realimentação
das informações em um processo espiral ascendente, não linear ou cumulativo (PICHON-
RIVIÈRE, 1994). Através das idas e vindas do movimento dialético da unidade ensino-
76
aprendizagem é que “vão ocorrendo os ajustes e correções de conceitos, preconceitos, tabus,
fantasias inconscientes, idéias preconcebidas e estereotipadas (...) desenvolvendo uma atitude
plástica e criativa (...) aberta e investigatória” (ABDUCH, 1999). Assim, observamos como os
conceitos de aprendizagem/ensino e mudança são conectados e como o processo grupal pode
ser o contexto disparador para a mudança. A meu ver este caráter dinâmico do processo de
aprendizagem em um grupo é um dos aspectos mais sedutores desta proposta teórica.

Partindo deste entendimento da dinâmica da aprendizagem/mudança em um grupo operativo,


o coordenador tem como ferramenta os processos comunicacionais entre os membros do
grupo. Assim, uma de suas tarefas essenciais consiste em trabalhar no sentido de possibilitar
uma comunicação com aberturas dialéticas sucessivas, ou seja, uma comunicação que se
apresente através de um círculo aberto e benéfico e não se paute em círculos viciosos,
fechados e dicotômicos. Esquematicamente pode-se dizer que a comunicação em um Grupo
Operativo deve ser ativa, ou seja, criadora. Nesta teoria, “a comunicação é o trilho da
aprendizagem e vive-versa (...) e os processos de aprendizagem e comunicação formam uma
unidade e são interdependentes” (PICHON-RIVIÈRE, 1994, p.45,95). Assim, a comunicação
é um dos pontos focais de um grupo operativo por ser instrumento de possibilidade da
realização da tarefa. A comunicação é assim avaliada como um dos vetores de avaliação de
um Grupo Operativo. Discutiremos mais detalhadamente, este vetor na seção específica sobre
o tema.

1.4.4. ESQUEMA CONCEITUAL REFERENCIAL OPERATIVO – ECRO

Pichon-Rivière defendia que o que possibilitava uma comunicação operativa 11 em um grupo


seria a elaboração de um esquema referencial comum entre seus membros. Para ele, “o
esquema referencial é o conjunto de conhecimentos, de atitudes, que cada um de nós tem em
sua mente e com o qual trabalha na relação com o mundo e consigo mesmo” (PICHON-
RIVIÈRE, 1994, p.61). Em um grupo a comunicação se daria na medida em que as
mensagens pudessem ser decodificadas por uma afinidade ou coincidência dos esquemas
entre emissor e receptor. Em um Grupo Operativo cada membro se apresenta com um
11
Além desta articulação entre os conceitos de comunicação/aprendizagem é fundamental explicar que Pichon-Rivière
apresenta toda sua produção teórica sobre os Grupos Operativos e a didática do ensino da psiquiatria e da psicologia social
como um ECRO. (PICHON-RIVIÈRE, 1994, p.98)

77
esquema referencial próprio definido como um “conjunto de experiências, conhecimentos e
afetos com os quais o indivíduo pensa e age que adquire unidade através do trabalho em
grupo” (PICHON-RIVIÈRE, 1994, p.90). O compartilhamento destes esquemas permitiria o
incremento da comunicação grupal entre os membros do grupo e, assim, através da
comunicação seria possível a construção de um ECRO representante do grupo no aqui-agora
da realização da tarefa. Desta forma, cada vez mais ocorreria entre os membros do grupo a
experiência de uma comunicação livre de ruídos e voltada para os objetivos grupais. Assim,

o grupo deve configurar um ECRO de caráter dialético, onde as principais


contradições que se referem ao campo de trabalho devem ser resolvidas durante a
própria tarefa do grupo. Todo ato de conhecimento enriquece o ECRO, que se
realimenta e se mantém flexível ou plástico (não estereotipado). Este aspecto é
observado através de processos de ratificação de condutas ou de retificação de
atitudes estereotipadas (ou distorcidas), mantidas em vigência como guardiãs de
determinadas ideologias ou instituições (PICHON-RIVIÈRE, 1994, p.94)

Este processo de construção de um ECRO grupal implicaria em “um processo de


aprendizagem ao obrigar aos integrantes do grupo uma análise semântica e sistêmica, partindo
sempre das formas vulgares (cotidianas) do conhecimento” (PICHON-RIVIÉRE, 1994,
p.103). Este seria o material de trabalho que os membros trariam ao grupo para atingir seus
objetivos.

1.4.5 ASSUNÇÃO E ADJUDICAÇÃO DE PAPÉIS

Para Pichon-Rivière a estrutura e função de um grupo estão dadas pelo interjogo de


mecanismos de assunção e a adjudicação de papéis, sendo estes representantes de “modelos
de condutas correspondentes à posição dos indivíduos nessa rede de interações ligados às
suas próprias expectativas e às dos demais membros do grupo” (PICHON-RIVIÈRE, 1994,
p.124).

No início do interjogo de papéis entre os membros do grupo, momento característico da pré-


tarefa, os papéis tendem a ser fixos e estereotipados, até que se configure a situação da tarefa
onde os papéis passam a ser funcionais, intercambiáveis e operativos entre os membros da
forma mais eficaz para cada momento da tarefa. Este processo fluido de assunção de papéis é
um aspecto característico de passagem da pré-tarefa para a tarefa. Entre os papéis
desempenhados pelos membros de um grupo operativo merece destaque o de porta-voz. Este
membro do grupo é aquele que num determinado momento diz ou faz algo que denuncia o
78
aspecto latente do grupo. Diz-se que ao enunciar o porta-voz denuncia. Isto significa que o
porta-voz diz de algo que vive como próprio, mas que “subliminarmente, percebe algo que
acontece no grupo e pode expressá-lo, porque, devido à sua história pessoal encontra-se mais
perto que os demais da referida cena. Ele denuncia no acontecer grupal, as fantasias,
ansiedades e necessidades do grupo” (BERSNTEIN, 1986, p.111-112). Percebe-se assim a
importância do porta-voz para a execução da tarefa. Ao enunciar sua ansiedade como eco da
ansiedade grupal torna-se possível no grupo a emergência das fantasias grupais e das
dificuldades na execução da tarefa. O aspecto individual da história do porta-voz (bem como
de todos os outros membros) caracteriza a verticalidade do grupo. O que deste enunciado no
grupo assume o caráter de compartilhado pelos outros membros constitui a horizontalidade
do grupo. Estes dois vetores se entrelaçam no falar grupal. O porta-voz, em sua fala,
apresenta a síntese no aqui e no agora do grupo com a tarefa. A interpretação do coordenador
se dá sobre estas duas dimensões (horizontal e vertical). Ao assinalar os aspectos individuais
e motivacionais do porta-voz, sua interpretação desoculta o acontecer implícito grupal. Outro
importante papel desempenhado no Grupo Operativo é o de líder. Um membro assume este
papel quando são depositados sobre eles os aspectos bons do grupo. Assim, ele ocupa o lugar
de um líder funcional do grupo em relação ao fazer grupal. Por suas falas e posicionamentos
ele tem no grupo um lugar organizador e de amparo para os outros membros. A relação do
coordenador com este líder deve ser de respeito e abertura, cabendo a ele perceber estes
líderes funcionais como uma produção positiva do grupo. Para mim, o líder é a expressão
criativa do grupo e sinal de sua responsabilidade para com a tarefa grupal. Também é comum
que sobre um dos membros do grupo sejam depositados o aspecto negativo em relação à
tarefa, bem como os medos em relação à mudança. Através de um acordo tácito destina-se ao
bode expiatório o lugar de depósito das ansiedades e fantasias grupais negativas. Ao
coordenador cabe perceber através da fala destes membros como o grupo está lidando com as
ansiedades dificultadoras da tarefa. Assim, a análise deste membro funciona como um bom
termômetro para o grupo. Entre o papel do líder e o do bode-expiatório existe uma ligação,
visto que, através da existência de um, o outro é preservado em um processo de dissociação
ou splitting necessário ao grupo em sua tarefa de discriminação. Por fim, o sabotador seria o
membro que em determinado momento do fazer grupal é o depositário da liderança
dificultadora na execução da tarefa. Pode-se ver o sabotador como o membro representante
dos estereótipos grupais. Assim, “em um grupo sadio, verdadeiramente operativo e aberto à
comunicação, em pleno processo de aprendizagem social, em relação dialética com o meio,

79
os papéis são desempenhados de acordo com as leis da complementaridade” (PICHON-
RIVIÈRE, 1994, p.53). Por outro lado, quando o jogo de assunção de papéis ocorre de forma
suplementar, o grupo é invadido por competições que tiram o foco da tarefa.

1.4.6 O MODELO DO CONE INVERTIDO – VETORES DE AVALIAÇÃO DOS


PROCESSOS GRUPAIS

Aliada à interpretação do interjogo de papéis entre os membros do grupo, Pichon-Rivière


registrou, a partir de suas observações das situações grupais, “um conjunto de processos
relacionados entre si, que permitem, por sua reiteração, considerá-los como fenômenos
universais de todo grupo, em sua estrutura e dinâmica.” (PICHON-RIVIÈRE, 1994, p.43).
Partindo desta constatação ele elaborou um esquema gráfico para representar a dinâmica entre
o explícito e o implícito presente na dinâmica dos processos grupais, conhecido como cone
invertido. Na base do cone localizam-se os conteúdos explícitos, manifestos pela fala do
porta-voz. Ele é mais largo podendo abranger justamente toda a produção visível e audível do
grupo. É o substrato de trabalho do coordenador. No vértice do cone, mais estreito, estão
presentes os conteúdos implícitos, ou as situações básicas, os universais.12A espiral
perpassando o cone representa o movimento dialético de indagação e esclarecimento que vai
do conteúdo explícito ao conteúdo implícito. Este processo de tornar explícito o implícito é a
descrição da interpretação do coordenador do material trazido pelo grupo pela boca do porta-
voz. A interpretação neste esquema do cone invertido segue o movimento existente-
interpretação-emergente. Sendo o emergente o que confirme ou afaste a exatidão da
interpretação. Todo esse movimento visa à produção de novos emergentes que permitam ao
grupo progredir em sua tarefa. O critério para avaliar a correção de uma hipótese
interpretativa é o de operatividade, ou seja, aparição de um novo emergente que permita
superar no grupo a estereotipia e conquistar novos modos de se comunicar e aprender.

Na figura a seguir, elaborada por Medeiros e Ribeiro (1999), pode-se observar a


representação dos conteúdos manifestos e latentes bem como dos vetores a serem analisados
representados como: pertenência (pertença), afiliação, pertinência, cooperação,
comunicação, aprendizagem e tele. Estes vetores são úteis ao coordenador para que se possa

12
Os universais seriam os medos básicos de perda e de ataque, o medo da mudança e a resistência à mudança, um
sentimento básico de insegurança, os processos de aprendizagem e de comunicação, as fantasias básicas de
doença, tratamento e de cura (PICHON-RIVIÈRE, 1994, p.44,45).
80
avaliar o processo em que o conjunto de membros do grupo vai se tornando um Grupo
Operativo através da forma como eles estariam agindo em relação à tarefa.13

A pertença, a afiliação, a cooperação e a pertinência são vetores guias para avaliar a relação
dos membros com o grupo e com a tarefa. A filiação de um membro ao grupo se dá pelo
coeficiente de sua vinculação ao grupo. É o primeiro momento onde o sujeito aceita pertencer
a determinado grupo constituído para tarefa. A pertença já seria um segundo momento,
quando a tarefa passa a não ser vista mais como do grupo, mas do sujeito, é o assumir a tarefa
do grupo como sua com todas as conseqüências desta escolha. Na dinâmica grupal, ela pode
ser medida em relação à presença no grupo, à pontualidade e às intervenções. A cooperação
de um grupo diz da relação de cada membro para com os outros objetivando a execução da
tarefa. Em uma boa imagem de Baremblitt (1994), a cooperação “se vê na justiça dos passes,

13
A partir desta colocação surge a pergunta sobre a qual grupo Pichon-Rivière estaria se referindo (ao número
dos membros empíricos que constituem o grupo ou a toda a grupalidade (família, classe social, fantasmas
grupais) da qual o grupo é expressão). Segundo Baremblitt, a insistência de Pichon-Rivière “sobre os problemas
sobre a ideologia e sua expressão na vida cotidiana nos faz pensar a favor desta segunda hipótese”
(BAREMBLITT, 1994, p. 195). Segundo este autor, Pichon-Rivière insistia na colocação de que “a avaliação
que surge destes vetores é sempre grupal, já que a avaliação individual só poderia ser explicada em função de
toda a dinâmica grupal que a determina” (BAREMBLITT, 1994, p.195).

81
na exatidão das jogadas gerais” (BAREMBLITT, 1994, p.196).

Figura 02: Cone invertido: representando os conteúdos manifestos e latentes e os vetores


A pertinência, por sua vez, refere-se à relação do membro do grupo com a tarefa, ser
pertinente em um grupo diz da coerência com a tarefa grupal. Ela é possibilitada pela pré-
existência dos outros três vetores descritos acima. O sabotador seria avaliado negativamente
nesse vetor. Um grupo ainda em pré-tarefa estaria com um grau baixo de pertinência em
relação à tarefa. Da mesma forma, podemos dizer que o líder e o porta-voz seriam membros
avaliados positivamente nos vetores afiliação e pertença. Ao compartilhar sua história
individual o porta-voz está demonstrando um grau de confiança no grupo, possível para um
sujeito que se sente pertencente/ afiliado a esse mesmo grupo. Por sua vez o vetor
aprendizagem está estreitamente ligado ao vetor comunicação e a avaliação deles se dá de
forma articulada. A aprendizagem relaciona-se também com o critério de adaptação ativa à
realidade e com a capacidade do grupo e de cada um de seus membros de desenvolver
condutas alternativas diante dos obstáculos, ou seja, aprendizagem como a quebra de
estereotipias. A comunicação é um vetor de extrema importância para a avaliação de um
82
grupo. A forma como a comunicação se apresenta em um grupo é um reflexo claro de todos
os outros vetores e da forma como os membros do grupo se relacionam. Um grupo em fase de
pré-tarefa, por exemplo, apresentaria uma comunicação constantemente dilemática,
entrecortada por ambiguidades. À medida que a comunicação no grupo é facilitada pelo
coordenador, voltando-se para a realização da tarefa, aprendizagem e mudança dos membros
do grupo, ela tende a assumir o aspecto de uma espiral dialética, onde a cada resposta, surge
um novo questionamento. A comunicação em grupo que se perde em repetições e em
situações dilemáticas torna-se estagnada impedindo o grupo de levar a execução da tarefa a
termo.

As dificuldades na comunicação e na aprendizagem na teoria pichoniana estariam vinculadas


à fixação em uma fase libidinal anterior mal sucedida. Assim, a resistência à mudança no
fazer grupal levaria o indivíduo a repetir atitudes desta fase que assim impossibilitariam sua
continuação da tarefa. A repetição seria provocada, então, por dificuldades de aprendizagem e
na comunicação que impossibilitam a elaboração de estratégias adequadas ao desempenho da
tarefa.

O vetor tele é uma das contribuições da sociometria de Moreno para a teoria pichoniana. O
vetor tele pode ser entendido como o termômetro do clima afetivo do grupo. Desta forma,
está claramente relacionada com a boa execução da tarefa. É mais provável que um grupo
consiga operar estando sob um bom clima afetivo do que em um clima de desarmonia ou
disputa.

A avaliação destes vetores não é um objetivo em si para o coordenador. Para mim, este
instrumento de avaliação é mais um elemento guia para o coordenador na execução de seu
papel. A partir de constantes momentos de avaliação destes vetores o coordenador poderá
entender em que momento os membros do grupo estão. Este processo de avaliação da
interação grupal seria como a leitura de um mapa para o coordenador que parte com o grupo
da pré-tarefa para constituir um projeto grupal.

1.4.7 FUNÇÕES DA EQUIPE DE COORDENAÇÃO

83
Para Baremblitt (1994) a intervenção de um coordenador de Grupo Operativo se limita a
sinalizar as dificuldades que impedem ao grupo de realizar a tarefa. Para isto ele dispõe “de
um ECRO a partir do qual tentará decifrar essas dificuldades e (...) irá propondo ao grupo
hipóteses que lhe permitam tomar-se a si mesmo como objeto de estudo e ir revelando as
dificuldades que aparecem na comunicação e na aprendizagem” (BAREMBLITT, 1994,
p.200). Por outro lado, este autor alerta que não cabe ao coordenador “responder às questões,
mas (para) ajudar o grupo a formular aquelas que permitirão o enfrentamento dos medos
básicos. Seu instrumento é a sinalização das situações manifestas e a interpretação da
causalidade subjacente” (BAREMBLITT, 1994, p.200).

A equipe de coordenação de um Grupo Operativo é composta pelo coordenador e por um


observador. A existência do observador é um diferencial desta proposta de coordenação
grupal. A sua função é basicamente se ocupar da observação silenciosa e da anotação de todo
material expresso de forma verbal e não verbal pelo grupo em todos os diferentes momentos
grupais. A sua presença funciona como uma tela de projeção por sua característica silenciosa.
Pode também ser utilizado pelo coordenador em momentos limites onde a comunicação
estereotipada e dilemática ameacem o grupo. O material coletado pelo observador sobre cada
sessão auxilia a equipe de coordenação a conseguir uma maior compreensão do grupo entre
as sessões (PICHON-RIVIÈRE, 1994; BAREMBLITT, 1994).

Uma das regras de ouro desta coordenação é não assumir uma função que possa ser realizada
por outro membro do grupo. O coordenador é visto como co-pensor por pensar junto com o
grupo a relação dos membros entre si e com a tarefa. O coordenador guia-se pelo respeito
pelos membros do grupo, mas sem colocar-se como igual. Ele é como um juiz de futebol
sempre atento aos passes entre os jogadores, mas sem participar diretamente do jogo. A sua
linguagem baseia-se na metalinguagem e na interpretação, servindo-se desta para a pontuação
do texto da discussão livre entre os membros do grupo, dando-lhe sentido e promovendo
mudança. Assim, facilitar a comunicação entre os membros do grupo, evitando posições
conflituosas e dicotômicas, é o foco de atuação do coordenador para que cada
membro/jogador possa contribuir para o bom andamento do grupo/jogo.

1.4.8 UTILIZAÇÕES DO GRUPO OPERATIVO

84
Sobre estes pilares conceituais a proposta de trabalho com Grupos Operativos foi amplamente
difundida fora da Argentina e, coerentemente com o proposto por Pichon-Rivière, adotada
com os mais variados públicos e objetivos. Em um relato de experiência sobre a utilização da
técnica do Grupo Operativo, no final da década de 60, Pichon-Rivière (1994) afirmou que
“as técnicas operativas são utilizadas não só na formação de psicólogos, mas também na
criação publicitária, no trabalho institucional, na formação de líderes, no estudo da direção e
interpretação teatral” (PICHON-RIVIÈRE, 1994, p.130).

Abduch (1999) também afirma que os grupos operativos podem ser utilizados nos mais
“diversos contextos com adolescentes, familiares, grupo de terceira idade, grupos de
trabalhos, grupos de egressos, de pais, teatrais, esportivos, drogadictos desde que seus
integrantes estejam centrados na tarefa” (1999). Luchese (2007), por sua vez, defende o uso
do Grupo Operativo na assistência da enfermagem, no ensino e na pesquisa como uma técnica
de coleta de dados em pesquisas qualitativas.

No contexto brasileiro, as áreas da saúde e da educação têm recorrido eventualmente a essa


proposta de trabalho com grupos. Na área da saúde, encontramos, por exemplo, trabalhos
sobre a utilização desta técnica com os seguintes grupos:

-adolescentes na discussão sobre as sexualidades (PROFESSIORI, 2004);


-portadores HIV/AIDS (GUIMARÃES, 2005);
-gestantes adolescentes (ELIAS, 2003);
-diabéticos com caráter educativo (SANTOS, 2007);
-equipes de profissionais de Programa da Saúde da Família/ PSF (MATUMOTO et. al. 2005),
-com equipes de instituição pública de saúde (HUR; OLIVEIRA; KODA, 2008);
-com pacientes psiquiátricos em:- CAPS (MARRUTTI, G. A e col, 2008); hospital geral
como grupo terapêutico (MOREIRA; CIPPA; ZUARDI, 2002) e em enfermarias
(HUMEREZ, D.C e col, 2000);
-homens que fazem sexo com homens na prevenção do HIV (COLOSIO e col, 2007);
-tabagista como suporte psicológico no tratamento do tabagismo (KREISCHE, 2005);
mulheres portadoras de patologias ginecológicas e mastectomizadas (SILVA, 2009) e
pacientes internados em comunidades terapêuticas (FERNANDES, 2003).

85
Na educação o grupo operativo tem sido utilizado, por exemplo, com professores/as:
-com Síndrome de Burnout (BOCK; SARRIERA, 2006);
-de escolas para portadores de necessidades especiais (DAL FORNO, 2006);

Como metodologia de ensino na:


-Psicologia Social (AZERÊDO; SANTANA, 1998, AZERÊDO; 1999);
-Enfermagem (LUCHESE; BARROS, 2002);

Como método de pesquisa no estudo do processo de colaboração, reflexão e aprendizagem


entre professores em formação inicial e uma formadora de professores iniciantes (ARAÚJO,
2004).

A partir desta amostra da produção brasileira sobre a utilização do Grupo Operativo pode-se
perceber sua aplicabilidade com variados públicos-alvo e com vários objetivos diferenciados,
o que coaduna com a proposta de Pichon-Rivière. O Grupo Operativo utilizado na Educação
como uma didática de ensino e como método de coleta de dados em pesquisas qualitativas
demonstra uma convergência com a discussão de Pichon-Rivière sobre o processo de
aprendizagem-ensino, sobre a relação entre aluno-professor/professor-supervisor e
pesquisadores-participantes de pesquisa. Neste contexto, qualquer um destes pares é
compreendido com uma unidade de trabalho não dicotômica onde razão, ação e sentimento
não são dissociados. Estes trabalhos, cada um com seu mérito, são exemplos de práxis, onde a
pesquisa e ação se relacionam para a construção do conhecimento.

A utilização do grupo operativo na área da Saúde, especialmente na Enfermagem segundo os


trabalhos relatados, vale-se da possibilidade de em um grupo deste tipo voltar-se para um
tema/tarefa e sobre ele operar, ensinar a pensar, construir estratégias. A utilização do grupo
como reflexivo, de aprendizagem ou terapêutico é coerente com a proposição de Pichon-
Rivière de que aprender é sempre terapêutico. Como resultados positivos relatados de
utilização do Grupo Operativo com estes objetivos destacam-se a melhora significativa: no
vínculo entre os participantes, na resolutividade do grupo sobre a tarefa, na utilização do
grupo como local de expressão de sentimentos e de idéias e de construção de propostas para o
futuro. Acredito que quando se consegue apropriar do caráter educativo do Grupo Operativo
indo além do repasse de informações é que esta técnica é mais bem aplicada. O risco de se

86
resumir o grupo a um ambiente de repasse de informações pelo coordenador deve ser uma
preocupação constante. O grande diferencial desta proposta de atendimento em grupo é
justamente a não dissociação dos aspectos afetivos, comportamentais e cognitivos. Assim,
para mim, o mérito da opção por esta técnica se vincula a capacidade de se conseguir a
apropriação da dinâmica como um conjunto ensino-aprendizagem-mudança. Como afirma
Pichon-Rivière (1994) “as técnicas de grupo operativo sejam quais forem seus objetivos
propostos tem como finalidade que seus integrantes aprendam a pensar em uma co-
participação do objeto de conhecimento, entendendo-se que pensamento e conhecimento não
são fatos individuais, mas produções sociais” (PICHON-RIVIÈRE, 1994, p.179). Entendo
que esta visão mais ampla da técnica é que imprime um caráter revolucionário e emocionante
no fazer grupal.

Vale ressaltar a opção da escolha do Grupo Operativo como método de coleta de dados em
pesquisas qualitativas. Segundo Luchese e Barros (2007), esta utilização do grupo operativo
vem se desvelando “como uma técnica que vai além da coleta de dados, visto que,
proporciona trocas vivenciais entre os sujeitos pesquisados, possibilitando a revisitação e
reflexão do cotidiano, exteriorização de sentimentos latentes, apropriação e reconstrução da
realidade” (LUCHESE; BARROS, 2007, p.797).

Assim, percebe-se que a escolha por este método diz de uma compreensão do processo de
coleta de dados, da relação entre pesquisador e objeto de pesquisa e do próprio desenho do
processo de pesquisar. Em uma pesquisa com este viés a própria coleta de dados já é um
momento de intervenção na realidade e de construção/reconstrução do objeto/objetivos do
estudo. A dinamicidade e a plasticidade na delimitação das funções do pesquisador são um
diferencial, pois ele pode ser o coordenador ou o observador do Grupo Operativo de seu
estudo, ou utilizar-se de um grupo já constituído. Assim, ocorre uma ampliação das
responsabilidades do pesquisador que além de se preocupar com os aspectos metodológicos
de sua pesquisa pode se guiar pelos recursos de um coordenador de Grupo Operativo. Esta
escolha metodológica aponta para um posicionamento do pesquisador como participante ativo
no par pesquisador-sujeito da pesquisa. Para mim, a preocupação com a apreensão da
realidade a partir da dinâmica entre pares complementares é um dos aspectos mais
significativos da teoria pichoniana que contribui com dinamicidade para o entendimento dos
fenômenos. Por fim, devemos admitir que apesar de encontrarmos relatos de utilização de

87
técnicas grupais com mulheres em situação de violência (tanto como método de pesquisa ou
como esquema terapêutico), a minoria, se baseava na teoria e técnica do Grupo Operativo.
Como exemplos desta utilização com este público foram encontrados relatos de sua aplicação
como método de pesquisa na Delegacia Especializada de Crimes contra as Mulheres de Belo
Horizonte (AZERÊDO, 2001, 2004, 2007) e como esquema terapêutico no Centro de
Referência de Atendimento a Mulheres em Situação de Violência de Contagem/MG (PMC)-
Espaço Bem- Me- Quero (OLIVEIRA, 2008; AZERÊDO, 2001).

Neste trabalho, observa-se a utilização do Grupo Operativo como método de coleta de dados
aliada ao suporte terapêutico para mulheres sobreviventes à violência de gênero. Considero
que esta forma de utilização pode ser profícua tanto por dar mais dinamicidade ao desenho da
pesquisa como pela possibilidade de que as sobreviventes à violência de gênero possam se
debruçar sobre sua situação a partir de um enfoque grupal. Acredito que o enfrentamento a
esta problemática como uma tarefa a ser realizada em grupo potencializa os processos de
mudança nos Ciclos de Enfrentamento à Violência iniciados pelas sobreviventes que aceitam
o convite de participar do Grupo. A acolhida, a possibilidade de aprendizagem e de
negociação de estratégias e sentidos para a violência sofrida e seu enfrentamento seriam
aspectos a serem apontados como diferenciadores e reforçadores neste processo.

2 OBJETIVOS

2.1 Objetivo Geral

 Investigar o processo de enfrentamento à violência de gênero em um Grupo Operativo


com mulheres sobreviventes à violência de gênero.

2.2 Objetivos Específicos

 Descrever e analisar a construção/reconstrução dos sentidos da violência para as


mulheres sobreviventes à violência de gênero, observando o processo de negociação
deste sentido durante a sua participação em grupos operativos;
 Descrever e analisar se e como os sentidos da violência de gênero podem possibilitar a

88
construção coletiva de estratégias para o fim do ciclo de violência;
 Investigar se e como a participação no grupo atua para o questionamento da matriz
hegemônica de gênero e para a transformação das relações de gênero na vida das
mulheres;
 Descrever e analisar as práticas institucionais, a partir dos relatos das mulheres em
suas trajetórias de sobreviventes à violência de gênero, realizadas na Rede de
Enfrentamento à Violência de Contagem/MG.
3 MÉTODO

Os dados não são coletados, mas produzidos


(Tim May).

A prática é um conjunto de revezamentos de uma teoria a outra


e a teoria um revezamento de uma prática à outra. Nenhuma
teoria pode se desenvolver sem encontrar uma espécie de muro
e é preciso a prática para atravessar o muro (Gilles Deleuze).

A fim de compreender o processo de enfrentamento à violência de gênero por mulheres


sobreviventes deste tipo de violência a partir da participação em um Grupo Operativo adotei
uma metodologia voltada, principalmente, para a apreensão do conteúdo das sessões grupais.
A análise ocorreu a partir de várias leituras do material guiadas pelos temas/objetivos do
projeto, mas também pelo interesse na própria dinâmica possibilitada pelo atendimento em
grupo.

3.1 Campo da pesquisa

A instituição escolhida para a realização desta pesquisa foi o Centro de Referência de


Atendimento à Mulher em Situação de Violência de Contagem/MG (PMC), Espaço Bem-Me-
Quero. Este serviço tem como público alvo mulheres em situação de violência doméstica,
residentes na cidade de Contagem/MG, encaminhadas por outras instituições públicas pertencentes
ou não à Rede de Enfrentamento à Violência ou que procuram o serviço espontaneamente. O
Espaço Bem-Me-Quero oferece atendimento interdisciplinar através de uma equipe composta por
psicóloga, advogada e assistente social com o objetivo último de promoção da ruptura da situação
de violência. O atendimento psicológico é oferecido na modalidade individual ou em grupo,
segundo o interesse das mulheres e a percepção da necessidade pela equipe técnica. A definição da
89
forma de atendimento é discutida entre a mulher e a psicóloga, respeitando sempre os interesses da
mulher e os objetivos da instituição.

3.2 Objeto de estudo

O objeto de estudo desta pesquisa é o Grupo de Psicologia ofertado pela instituição que foi
implantado por mim em março de 2008 e que ainda vem sendo realizado. As sessões são realizadas
uma vez por semana com uma duração média de uma hora e trinta minutos e com a participação de,
aproximadamente, seis mulheres em cada sessão. A coordenação das sessões é sempre realizada por
mim e por uma estagiária de Psicologia, cumprindo o papel de observadora, seguindo a metodologia
dos grupos operativos desenvolvida por Enrique Pichon-Rivière.

3.3 Sujeitos da pesquisa

Participaram desta pesquisa quatorze mulheres que frequentaram as sessões do Grupo de Psicologia
do Espaço Bem-Me-Quero durante o período em que se realizou a pesquisa (julho/agosto de 2009).
Optou-se por apresentar as informações relativas às participantes da pesquisa através da
elaboração de três tabelas intituladas: 1- Dados sócio-econômicos das mulheres sobreviventes à
violência de gênero (ANEXO 01), 2 - Trajetória afetiva das mulheres sobreviventes à violência de
gênero (ANEXO 02) e 3 - Trajetória das mulheres sobreviventes à violência de gênero na Rede de
Enfrentamento à Violênica de Contagem/MG (ANEXO 03).

3.4 Procedimento de coleta de dados

Com o objetivo de registrar a história do Grupo e facilitar a condução e análise pela equipe de
coordenação, algumas sessões do Grupo foram gravadas. Dentre estas sessões, foram selecionadas
cinco para material de análise desta pesquisa. As sessões selecionadas se destacaram no conjunto
das gravações pela riquaeza de dados referentes aos objetivos desta pesquisa e pela possibilidade de
observação da dinâmica das sessões do Grupo. Para a utilização destas sessões como material de
pesquisa foi solicitada permissão à Coordenadoria Especial de Políticas para Mulheres
(CEPOM/PMC) e à Secretaria de Direitos e Cidadania/PMC (ANEXO 04), órgãos aos quais o
Espaço Bem- Me-Quero está vinculado. Ressaltamos ainda que este projeto foi aprovado pelo
Comitê de Ética da Universidade Federal de Minas Gerais sob o número 314/09 e que todos
90
os procedimentos éticos foram respeitados sendo os nomes das participantes alterados para se
manter a segurança e privacidade das mesmas. Além disso, todas as participantes das referidas
sessões foram contactas para permitir a utilização do material, tendo sifo assinado por cada uma o
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (ANEXO 05).

3.5 Análise dos dados

O processo de análise iniciou-se pela escolha das sessões a serem utilizadas nesta pesquisa.
Este processo foi importante por permitir uma escuta da produção do Grupo guiada pelos
objetivos desta pesquisa. Esta escuta foi interessante por possibilitar que eu me escutasse
como coordenadora do Grupo, pois, neste caso, meus posicionamentos também seriam
analisados. Esta, no mínimo, minha dupla vinculação também era mais um aspecto a ser
analisado, guiado pelas referências teóricas desta pesquisa (feminista/grupo operativo). Foi
selecionada uma sequência de sete sessões, sendo que, dentre estas, duas não foram
analisadas. A primeira (sessão de 29 de julho de 2009) por ter sido uma sessão de exibição de
filme e a outra (sessão de 05 de agosto de 2009) devido à baixa qualidade da gravação do som
e à ausência da observadora. É interessante, porém, observar que a forma como esta análise
foi desenhada, guiada pelo processo do próprio Grupo, faz com que a dinâmica destas sessões
também seja referência para a análise (a constante referência ao filme nas sessões utilizadas e
a alteração da dinâmica de coordenação pela ausência da observadora). Desta forma, no
desenho desta análise interessa todos os processos que envolvem as sessões do Grupo, tanto
institucionais quanto da história do Grupo e das participantes neste serviço e na instituição.
Assim, as sessões são localizadas nestas trajetórias e isto é um ponto muito importante da
análise por possibilitar que o conhecimento produzido não assuma o aspecto de um recorte,
mas, na medida do possível, procure apresentar as interconexões presentes no Grupo.

As sessões selecionadas foram transcritas na íntegra e após este primeiro momento foi
realizada nova leitura do material juntamente com a escuta das gravações, buscando-se
registrar silêncios, sobreposições de falas, tom das vozes e interrupções internas e externas
das sessões. Este primeiro momento foi importante por permitir uma escuta voltada para a

91
busca da relação entre a fala e a percepção da expressão de sentimentos pelas participantes e a
percepção da tele do Grupo.

Optou-se, nesse trabalho, por uma variação da análise de conteúdo clássica (FRANCO, 2003;
VALA, 2003), privilegiando-se, mais do que a frequencia, a co-ocorrência dos elementos de
interesse (temas e vetores) em um mesmo segmento da sessão.

Assim, nova leitura foi realizada buscando-se perceber os temas recorrentes discutidos nas
sessões bem como a sequência seguida neste processo, indiferente dos objetivos da pesquisa.
Eles foram apontados junto das partes referentes da transcrição da sessão inteira, a partir de
um quadro simplificado com apenas duas linhas de análise: uma relacionando partes da
transcrição a conteúdos teóricos e outra elencando temas variados e comentários variados
sobre a sessão (ANEXO 06). O interesse neste processo mais amplo é perceber a dinâmica de
apresentação de temas pelas participantes e pela coordenadora. Este aspecto é interessante por
possibilitar elencar os temas discutidos pelas participantes para, depois, contrastá-los com os
objetivos da pesquisa.

Continuando o processo de análise, foi elaborado um segundo quadro com eixos construídos a
partir de conteúdos/temas pré-selecionados a partir do primeiro quadro e da leitura das
sessões. A partir destes conteúdos foram criadas as linhas: estratégias, sentimentos, Grupo
fala, comunicação, converge x diverge, com trechos exemplificando os conteúdos. Para além
dos temas diretamente relacionados aos objetivos da pesquisa (estratégias e comunicação) se
construiu um eixo complementar com os sentimentos apresentados pelas mulheres, o que
possibilitou relacioná-los a temas que os desencadearam e aos eixos intitulados
“convergência” e “divergência”. Esses eixos de análise possibilitaram a visualização do
processo de negociação de sentidos entre as participantes, segundo os objetivos da pesquisa,
bem como a tele do Grupo (ANEXO 07).

A partir da visualização dos quadros construídos para todas as sessões, foi elaborado um
relato de cada sessão orientado pelas percepções possibilitadas durante todo o processo de
construção dos quadros e das sucessivas leituras/escutas das sessões. A intenção destes relatos
é apresentar uma narrativa das sessões a partir dos objetivos propostos. Assim, além do seu
aspecto descritivo estas narrativas já são produtos da análise dos dados. Os dados foram

92
organizados, a partir dos objetivos da pesquisa, privilegiando uma apresentação que pudesse
facilitar a compreensão dos resultados e o acompanhamento da discussão.

4 RESULTADOS

4.1 UM POUCO DA NOSSA HISTÓRIA

A história deste Grupo começa com uma adaptação forçada de tema e com uma grande
aposta emocional na proposta de se discutir a temática do enfrentamento à violência de
gênero em grupo. Enfim, como uma grande surpresa...

O primeiro encontro (que não era encontro) aconteceu em um evento para a comemoração do
Mês de Março de 2008 acordado pelo Espaço Bem-Me-Quero com o Programa Municipal de
DST/AIDS da Prefeitura de Contagem/PMC (onde eu trabalhava anteriormente). Foi
sugerido que se realizasse uma oficina sobre sexualidade focalizando a prevenção as
DST/AIDS com mulheres atendidas pelo Espaço Bem-Me-Quero. A dinâmica deste encontro
foi construída e desenvolvida por mim e por Sâmia Grasinoli Alves (psicóloga do Programa).
Apresentamos como proposta de tarefa a construção, em grupo, de cartazes sobre a
sexualidade feminina utilizando-se de palavras chaves apresentadas por nós (como tesão,
AIDS, amor, sexo, carinho, entre outras) e de recortes de revistas. As mulheres rapidamente
começaram a produzir, mas qual não foi a surpresa quando começaram a falar. Elas falaram
da violência vivida em casa, dos sonhos de amor romântico não correspondido, da descrença
e desilusão com o casamento e também da vontade e esperança de que seus casamentos
seguissem os caminhos sonhados anteriormente; sutilmente falaram de sexo e nada sobre as
DST/AIDS. Ou seja, nossa proposta foi desconstruída e reconstruída por elas. As palavras
sugeridas por nós foram utilizadas para falar do que era emergencial para elas; uma vida
onde a violência disputava espaço com os sonhos de um casamento feliz. Quando a primeira
mulher falou: “Sexo tem tanto tempo que eu não faço isto... Nem lembro...” Sâmia me
cutucou e falou “Não tinha nada a ver realmente a gente vir falar disto, temos que ouvir o
93
que elas querem...” E aí deixamos fluir e foi muito produtivo e emocionante. Ao final do
encontro, percebendo a animação e o entrosamento entre as mulheres, eu decidi propor um
grupo semanal no Espaço Bem- Me- Quero para que pudéssemos continuar discutindo as
questões iniciadas naquele encontro. Elas concordaram com a idéia imediatamente. Ao lado
da disputa entre a violência e o amor havia a necessidade de se falar sobre esta situação e de
ser ouvida e acolhida. Assim começou o nosso Grupo no dia 10 de março de 2008, com o
aceite de onze mulheres. Após este primeiro encontro outras mulheres foram convidadas e
um grande número reafirmou o aceite inicial. A importância deste aceite se deve a forma
como foi pensado o enquadre para este Grupo: aberto e de livre participação, ou seja, sem
obrigatoriedade de presença ou com número de sessões pré-determinado para participação.

As mulheres convidadas, primeiramente, passam por um momento de acolhida e


encaminhamento realizado pela equipe técnica da instituição (atualmente eu e/ou a advogada).
Conforme o interesse da mulher e/ou a percepção da necessidade pelas técnicas, a mulher é
encaminhada para um atendimento psicológico individual realizado por mim. O convite para o
Grupo ocorre nestes primeiros atendimentos psicológicos sendo sempre oferecida à mulher a
oportunidade de escolher entre a continuidade do atendimento psicológico individual ou pela
proposta em grupo. Neste momento eu apresento a dinâmica, horários e o objetivo do Grupo de
partilha de experiência e de construção coletiva de estratégias para a situação de violência. Deixo
claro que é um momento de trocas onde, por mais que a situação de uma participante seja
aparentemente sem saída e ela se mostre muito fragilizada, ainda assim, ela pode contribuir. É
interessante frisar a apresentação deste momento como um convite diferenciado de um simples
encaminhamento, pois, faço questão de assegurar que caso ela não se adapte à dinâmica poderá
receber o atendimento psicológico individual comigo. Até o momento, nenhuma mulher que
compareceu ao Grupo escolheu retornar ao atendimento individual, salvo exceção, por causa de
horário de trabalho ou de escola dos filhos. Desta forma, todas as mulheres que permanecem no
Grupo o fazem por opção e pelo aceite da proposta.

Como uma grande vitória deste Grupo, nunca foi marcada uma sessão onde não comparecesse
nenhuma mulher. A única exceção foi quando meu pai faleceu e não foi possível avisá-las.
Algumas das mulheres que compareceram, após receber a notícia foram para a praça próxima
ao Espaço e ficaram conversando por um bom tempo, indo depois ao centro comercial da
cidade juntas. As mulheres que tomaram esta iniciativa são algumas das que participam há

94
mais tempo no Grupo. Com o passar das sessões e com a chegada de novas mulheres no
Grupo ficou aparente esta distinção tanto para elas quanto para mim. Elas começaram a se
nomear como “veteranas” (Camila, Graça e Cíntia). Na dinâmica grupal este posicionamento
é legitimado por mim quando me refiro a elas como “exemplos” não de mulheres que
resolveram definitivamente a situação de violência, mas como mulheres que estavam
nitidamente percebendo mudanças em si e em seus ciclos de violência, apesar das muitas
dificuldades financeiras, familiares, institucionais, jurídicas, afetivas e emocionais. Elas, por
sua vez, apontam este processo de mudança como consequência direta da acolhida minha e da
instituição e da participação no Grupo.

Desde as primeiras sessões do Grupo, (quando eu ainda estava no início da pós-graduação)


informava constantemente às participantes que, além de psicóloga do Espaço Bem-Me-
Quero, eu estudava na UFMG e que minha pesquisa era sobre como a participação naquele
Grupo às auxiliava no enfrentamento à violência. Ainda hoje, sempre que tenho a
oportunidade de apresentar a proposta do Grupo em seminários ou na pós-graduação
compartilho com elas a receptividade da proposta e divido com elas a responsabilidade e a
vitória por estarmos escrevendo esta nova história para o enfrentamento à violência na cidade
de Contagem. Quando decidi começar a gravar as sessões para poder avaliar o meu trabalho
de coordenadora e também para começar a deixar registrada a história do Grupo também não
houve nenhuma objeção. Inclusive, recentemente uma das mulheres atendidas, percebendo a
minha dificuldade semanal para registrar os dados e conseguir um gravador digital para
gravar as sessões disse que iria me dar um agora que tinha conseguido um emprego. Em
nenhum momento houve vergonha, crítica, dúvida ou negação de participar do Grupo ao
saberem deste, no mínimo, duplo vínculo do Grupo.

Um dos diferenciais oportunizados pela participação no Grupo é um acompanhamento mais


próximo da equipe técnica do Espaço Bem-Me-Quero de toda a trajetória destas mulheres
pelas instituições da Rede de Enfrentamento, ocorrendo se necessário, novos
encaminhamentos e intervenções da instituição. Assim, este Grupo não é fechado em si
mesmo, ele é ponte de diálogo dentro e fora da instituição. Na mesma linha de atuação,
percebendo a grande demanda por parte das mulheres do Grupo paro o setor jurídico, a
advogada do Espaço propôs um Grupo Jurídico (ocorreram quatro sessões até o momento) de
“tira-dúvidas” e discussão da Lei Maria da Penha. Esta proposta é interessante por

95
potencializar as discussões sobre o enfrentamento à violência de gênero com informações de
cunho jurídico.

Outro aspecto interessante na trajetória das participantes do Grupo é a possibilidade de


participação de eventos e cursos externos. Algumas mulheres do Grupo realizaram cursos
profissionalizantes através de Convênio firmado entre a Coordenadoria Especial de Políticas
para as Mulheres de Contagem (PMC) e a Secretaria de Desenvolvimento Social (PMC).
Outras participantes, devido às peculiaridades de suas histórias, já deram entrevistas para TV,
rádio e televisão e uma delas aceitou participar como único sujeito de uma pesquisa de
graduação sobre história de vida de mulheres em situação de violência. É importante ressaltar
que qualquer proposta ou convite ao Grupo ou às participantes só é posto em prática se elas
concordarem. Em dezembro de 2008, por exemplo, o Grupo foi convidado a participar de um
evento do Programa Municipal de DST/AIDS em comemoração ao dia 01 de dezembro – Dia
Mundial de Luta contra a AIDS. A data, porém, coincidiu com o dia de sessão grupal e elas
preferiram não participar para não ficar uma semana sem se encontrarem, sendo esta decisão
foi acatada. Em dezembro de 2009, por sua vez, o convite foi feito novamente e o evento não
coincidiu com o dia da sessão. Assim, desta vez quatro mulheres compareceram como
representantes do Grupo. Da mesma forma, uma das participantes que já tinha dado uma
entrevista para uma revista foi novamente convidada pela gerência do Espaço Bem-Me-Quero
para uma nova entrevista. A princípio ela concordou e depois ligou desmarcando, o que foi
acatado sem questionamentos. Em conversa posterior ela me disse como fez bem para ela
dizer não naquele momento, pois na verdade, ela não queria expor sua história novamente e
“ter que ler que a história de sua vida era aquilo”. Desta forma, procuramos sempre respeitar
o direito ao sigilo e privacidade das mulheres.

Um evento marcante ocorreu em março de 2009 quando o Grupo foi, pela primeira vez,
convidado para o tradicional “Café da manhã com a Prefeita” em comemoração ao dia 08 de
março/Dia Internacional das Mulheres. Para esta ocasião, como há muito desejado por elas,
foram confeccionadas pela Coordenadoria Especial de Políticas para Mulheres
(CEPOM/PMC) camisas especiais (ANEXO 08) para este dia. Antes disto, elas sempre se
remetiam ao desejo de ter esta marca do Grupo para mostrar fora do Espaço. Pensaram até em
pagar pela confecção das camisas, mas, como é um serviço oferecido pela Prefeitura, a sua
publicidade tem que ser aprovada pela equipe de Comunicação Social da Prefeitura. Na

96
camisa ficou escrito “Grupo de Mulheres” com as logomarcas da Prefeitura logo abaixo. O
Grupo ainda não tem “um nome”, mas pode-se dizer que já tem uma localização política e
histórica na cidade e na instituição Assim, compareceram a este evento político de grande
porte como representantes do Espaço Bem-Quero e do Grupo 12 mulheres. Uma delas,
inclusive, entregou uma carta nas mãos da Prefeita agradecendo o atendimento recebido no
Grupo e no Espaço e falando do seu desejo de conseguir um emprego. Em novembro de 2009,
como mais uma forma de compartilhar informações sobre o enfrentamento à violência de
gênero, o Grupo foi convidado para participar do “IV Seminário da Rede de Enfrentamento à
Violência”, a ser realizado em Contagem. Quatro mulheres se inscreveram e tiveram a
oportunidade de se inteirar da discussão realizada por outros atores sociais e instituições sobre
o enfrentamento da violência.

Para além destes eventos externos, também são marcantes as sessões de fechamento de
semestre para as quais são convidadas todas as mulheres que frequentaram o Grupo durante o
semestre. Esta é uma forma de revê-las, obter notícias e reafirmar o convite inicial para
participarem do Grupo. É um momento festivo e de reflexão onde, geralmente, fazemos uma
avaliação do andamento do Grupo e delas neste processo, tiramos fotos e são utilizados meios
alternativos como mensagens e slides para auxiliar as discussões. Nos encontros de final de
ano de 2008 e 2009 foi realizado um amigo oculto, por sugestão das participantes, onde nos
organizamos de forma que todas trouxessem de casa um brinde e um lanche para ser
compartilhado. Considero que a possibilidade de reencontrar as outras participantes e de
(re)pensar a trajetória grupal e individual do último semestre importante para a história do
Grupo e das participantes neste processo reafirmando a responsabilidade delas com a proposta
e nossa com as trajetórias de cada uma.

Continuando a história, em 10 de março de 2010, foi comemorado o segundo aniversário do


Grupo com a participação de 22 mulheres. Este evento foi incluído na programação oficial do
mês de março da prefeitura de Contagem. Nesta ocasião também ocorreu o lançamento do
“Programa de Formação em Gênero” pela CEPOM/PMC que tem como objetivo oferecer
capacitação na temática de gênero para as mulheres atendidas pelo Espaço Bem-Me-Quero.
Novamente fomos convidadas para comparecer ao “Café da Manhã com a Prefeita” no dia 12
de março de 2010, onde, desta vez, o Grupo foi formalmente apresentado para a Prefeita
como um conjunto de mulheres organizado e atuante do Espaço Bem-Me-Quero.

97
Compreendo estes momentos como passos para a visibilidade e legitimidade política e
institucional da proposta do Grupo e da trajetória de suas participantes. Vale também destacar
a seleção de duas participantes para o Projeto “Mulheres da Paz”, iniciativa do Programa
Nacional de Segurança Pública com Cidadania (PRONASCI) do Governo Federal com a
Prefeitura Municipal de Contagem (PMC), através do qual elas estão realizando um curso de
formação de 150 horas que as capacitará a discutir em suas comunidades o enfrentamento à
violência.
Por fim, a partir do contato iniciado por mim com a Voglia Produções Ltda para a solicitação
de uma cópia do filme “Dias e noites” para exibição no Grupo e a, posterior leitura dos
produtores sobre a proposta do Grupo e os relatos de mudanças nas trajetórias de suas
participantes, foi realizado um convite para as mulheres do Grupo participarem da gravação
do documentário “Silêncio das inocentes”14. Cíntia e Camila foram escolhidas pela produção
do filme, entre as participantes indicadas por mim, devido às peculiaridades de suas histórias.
A gravação ocorreu no dia 27 de abril de 2010 e foi um momento muito emocionante para
elas e toda a equipe do Espaço Bem-Me-Quero. A proposta inicial do diretor é utilizar destes
depoimentos no final do documentário como um contraponto às outras histórias de ciclos de
violência colhidas em outros pontos do Brasil, por ele ter percebido na história de Cíntia e
Camila um posicionamento diferenciado frente à violência.

Desta forma, as mulheres participantes do Grupo são um ponto de referência para a


instituição, pois, diferente de outras mulheres que não retornam para atendimentos agendados,
estas mantêm um contato muito próximo com o Espaço. Algumas o chamam de “minha casa”
e a gerente, recentemente, se referiu a elas como “a alegria do Espaço.” Em qualquer evento
externo elas são sempre lembradas, recebendo prontamente os convites. Estes são indícios de
como estar filiada a este Grupo as posiciona de forma diferenciada na apropriação da proposta
da instituição, da própria Rede de Enfrentamento e de suas trajetórias de sobreviventes à
violência de gênero. Este é um pouco da nossa história até agora... E ela continua sendo
escrita a cada semana com a presença e aceite de cada nova mulher. Iniciaremos, nesse
momento, as narrativas sobre as sessões analisadas para esta dissertação15.

Sessão nº 01-

14
Para maiores informações: <http://www.cinemadobrasil.org.br/produtora.php?id_produtora=90>. Acesso em
15 de maio de 2010.
15
No anexo 11 apresentarei uma transcrição na íntegra da sessão do dia 19 de agosto de 2010.
98
Sessão do Grupo nº 59
Data: 22 de julho de 2009
Duração: 1 hora e 46 minutos
Participantes: Rosa, Janaína, Fernanda, Elis, Cíntia, Camila, Marília, Sâmia, Nina.
Coordenação do Grupo: Simone (coordenadora) e Rafaela (observadora)

“Cala boca, minha senhora!” (Janaína)


Esta sessão foi tensa e longa devido aos assuntos trazidos pelas mulheres para discussão.
Ressaltou-se, nos assuntos discutidos, a denúncia sobre o atendimento oferecido pelos
agentes da Polícia Militar aos casos de violência de gênero e o posicionamento institucional
do Espaço Bem- Me-Quero frente a esta problemática.

Na abertura desta sessão, a coordenadora propôs ao grupo, uma sessão de fechamento


semestral (conforme o costume do grupo) para o próximo encontro. Informou que não tiraria
férias (o que muito alegrou as participantes, pois assim o grupo não seria interrompido), mas
que ainda assim considerava interessante esta proposta de um a sessão diferenciada. Caso elas
concordassem, seria apresentado o filme “O Divã”, também foi discutida a possibilidade de
que o grupo se reunisse à tarde (o grupo sempre se reúne no período da manhã). Estas
propostas foram apresentadas para que elas avaliassem e houve concordância de todas as
participantes sobre a alteração do horário, a exibição do filme e a realização de um lanche no
final da sessão. Enquanto se negociavam as propostas Elis chegou procurando um lugar para
sentar-se.

Mulher16: Puxa uma cadeira ali. Ali é o ligar da Nina.


Elis: Ué tem lugar? É sentou no lugar da Elis (bochicho).
Camila: Porque eu sou veterana e eu tenho que mandar mais no babado.
Cíntia: eu estou no meu lugar de veterana.
Elis: Vou sentar ali.
Camila: Pode sentar aqui, eu estava brincando.
Elis: Não aqui mesmo, aqui mesmo. (Elis fala e senta).

Cíntia e Camila são algumas das mulheres que participam do grupo a mais tempo, bem como
Graça, que não compareceu nesta sessão, mas foi citada e lembrada pela coordenadora e por
outra participante: “Cíntia (fala baixo): eu falei com a Graça que eu ia puxar a orelha dela
que ela não chegou até agora. Simone: ela deve estar chegando...”. A diferenciação entre as
16
Em alguns trechos das sessões não foi possível identificar de qual participante era a voz. Nestas situações, em
toda a dissertação, mantive a fala com a indicação mulher para demarcar que se tratava de uma fala de
participante não identificada.
99
participantes, segundo o tempo de participação no grupo, declarada por Camila e reafirmada
por Cíntia, foi neutralizado pela coordenadora que afirmou não haver um lugar
predeterminado para as participantes.

O momento de abertura, além da apresentação da proposta da sessão, também comporta um


momento de apresentação das participantes e da proposta do grupo (quando ocorre de
algumas mulheres não se conhecerem ou quando comparecem pela primeira vez). Nesta
sessão havia uma mulher nesta condição: Sâmia (que veio a convite de Nina). Geralmente, a
coordenadora solicita a alguma das mulheres que estão a mais tempo no grupo que
apresentem a proposta do grupo e, se necessário, complementa com alguma informação.

Sâmia, muito tímida, após se apresentar se espantou com a idéia de que o grupo era para
mulheres em situação de violência. Nina, então, fez um paralelo para ela sobre a situação
vivida pelas duas como uma forma de definir o que seria uma situação de violência. Este
excerto representa bem a dinamicidade da comunicação no grupo, bem como a capacidade
das participantes de acolhida.

Simone: Mas é só para entender, porque aqui as pessoas que vêm, geralmente, é
porque estão passando por uma situação de violência, você tem alguma situação
assim na sua vida?
Sâmia: Um pouquinho
Simone: Fala do pouquinho
Camila: Fala um pouco do pouquinho...
Sâmia: Você não tinha me falado disso não. (Voltando-se assustada para Nina)
Nina: por que a violência...
Elis: eu posso explicar um pouquinho porque ela mora lá no bairro
Cíntia: O que fala aqui permanece aqui é igual... Aqui você pode ficar tranqüila,
Camila: aqui é igual à confissão de igreja.
Elis: esse negócio de bairro é meio chatinho mesmo. Ela mora lá no meu bairro.
Nina: O tipo de violência que ela esta falando Sâmia, é igual, porque igual o D. me
bate?
Sâmia: Não.
Nina: o que ele faz comigo é o que o G. faz com você.
Elis: isso é violência psicológica.
Simone: Uma das coisas que a gente vai trabalhar aqui é justamente o que é
violência, violência não e só violência física, mas você vai pegar o ritmo da coisa...

Após a abertura, os assuntos a serem discutidos são trazidos pelas mulheres de acordo com os
últimos acontecimentos em seus ciclos de violência. Também ocorre das mulheres que estão
comparecendo pela primeira vez, apresentarem o motivo porque estão no grupo bem como
suas trajetórias afetivas e de violência até o momento. Indiferente de qual seja a dinâmica do
desencadeamento da discussão, a comunicação caracteriza-se por relatos, em sua maioria, das
100
cenas de violência e da trajetória de atendimento pela Rede de Enfrentamento à Violência. O
relato de Cíntia, por exemplo, inicia-se pelo momento em que seu ex-companheiro recebe a
intimação para a primeira audiência de separação, divisão de bens, guarda e pensão dos filhos.
Ela relata que apenas por saber que seu ex-marido recebeu a intimação ficou doente e que seu
filho e sua mãe ficaram amedrontados. Ela ressalta que vem recebendo apoio, mas que nem
por isso, a situação de violência terminou.

Cíntia: Simone, eu tô com o pé atrás (Mulher concorda: tem que ficar) eu to


andando, olhando, comecei a vigiar, mas eu não quero ficar paranóica. Simone, a
minha imunidade já abaixou, já tive que correr e ver a médica, tava com a bexiga
doendo com infecção, já comecei a fazer exame, mas, sabe, eu estou conseguindo
apoio de ambos os lados, assim sabe...
Simone: Quem tá te apoiando?
Cíntia: As meninas estão me apoiando, a Graça me liga sempre, uma colega lá, uma
amiga, a família começou de novo...
Camila ri e fala: eu não to conseguindo nem me apoiar...
Cíntia: mas só de te ver já é bom demais... Minha família tá assim, minha mãe já
começou daquele jeito se eu fosse você, da pensão eu ia adiando um pouquinho. Aí
eu falei assim: chega mãe (mulheres do grupo falam junto com ela concordando com
a sua postura) ela tá com medo, por que o cara começou tipo assim, ele não tá
acuando, ele tá falando coisa, assim (...).
Cíntia: aí sabe essa pessoa que eu te falei que eu conheci, eu conheci mesmo (risos).
Camila: aí deu serviço completo.
Cíntia: ele está me dando um apoio danado e tudo me liga tal, a gente sai junto. (...)
Simone: Mas eu quero saber assim, para a questão da violência é importante saber,
você acha que ele está...
Cíntia: Preparando alguma coisa para mim.
Simone: sua mãe também acha sua mãe sempre acha?
Cíntia: Minha mãe acha.
Simone: Mas quem pediu esta audiência, isso que eu quero sabe você ficou um ano
separada, você não tinha entrado com processo porque sua mãe falou para não
entrar, foi isso?
Cíntia: por causa de ameaça contra meus irmãos e agora...
Simone: Agora de novo ele está fazendo a mesma coisa?
Cíntia: Agora ele está com o psicológico em cima do meu filho, para o meu filho
contar para mim.
Simone: e o que o seu filho acha?
Cíntia: Meu filho está desesperado, morrendo de vergonha: mãe aonde você vai e,
depois. Porque o pai tá preparando alguma coisa, cuidado, cuidado. Está com medo
de alguma coisa, mas eu procuro evitar que o menino converse sobre isso porque
graças a Deus estou conseguindo uma clínica a partir de agosto para psicólogo para
os dois né. Então assim vai ser bom, mas o menino fica desesperado, outro dia na
escola ele falou: mãe não vai, não vai porque o pai vai estar lá, não vai, mas aí eu
teimei e fui e não vi ele. Assim, mas, Simone eu não tenho medo dele...

Continuando a apresentação dos últimos acontecimentos nos ciclos de violência, Camila


relata sobre seu andamento processual e a ocorrência de uma nova cena de violência. Faz
parte da dinâmica do andamento do grupo, uma participante iniciar sua fala a partir do que a
outra contou sobre seu caso, comparando, exemplificando, complementando e, mais
raramente, contradizendo a outra. Camila diz que conseguiu sair da casa do namorado atual
101
(definida por ela como uma situação de “prisão domiciliar”). Como no caso do ex-
companheiro de Cíntia, a reação foi de raiva após a iniciativa dela de encerrar a relação. No
caso do andamento processual contra seu ex-companheiro, ele se ausentou do trabalho para
não receber a intimação e com isso dificultar o andamento do processo. Validando a
colocação de Camila sobe os comportamentos de seus ex-companheiros Rosa arremata: “Eles
fazem tudo com a gente não tem jeito, né.”. Após o arremate de Rosa, Camila 17 anuncia o
porquê de ter vindo àquela sessão:

Camila: Bem, gente, eu vim hoje para protestar!


Simone: protesta Camila.
Camila: O Espaço Bem-Me-Quero me deixou decepcionada com ele.
Simone: O que foi?
Camila: Eu vim aqui buscar forças e apoio porque foi feita a maior das violências
violenta de todas, que junta psicológica, familiar etc, etc, etc, todos os tipos de
violência foi feito comigo né. O pai do meu filho armou a situação para estar me
incriminando, falando que eu invadi a casa dele, quebrei a casa dele, dois policiais
civis que não se identificaram me levaram presa, eu fiquei uma noite no CERESP
algemada, fizeram tortura psicológica.
Mulher: Nossa. Há pouco tempo agora?
Camila: há duas semanas.
Mulher: que isso!
Camila: todo tipo de violência, fiquei dentro do camburão algemada, igual
assaltante, eu sofri todos os tipos de violência. Eu tô doida, eu tô doida, (ri) e eu
cheguei aqui procurando um apoio e simplesmente o advogado do Espaço Bem-Me-
Quero disse para eu ligar para o 0800.

Ela disse que foi bem atendida pela advogada e pela gerente do Espaço Bem-Me-Quero que,
por sua vez a encaminhou ao “advogado” dos Direitos Humanos. Segundo ela, este a indicou
o Disque Denúncia dos Direitos Humanos, (o 0800) como uma forma de solucionar a
situação. Eu afirmei para ela que no Espaço Bem-Me-Quero não existia nenhum funcionário
do sexo masculino e ela também não sabia dizer o nome de quem havia conversado com ela.
Quando consegui definir quem era a pessoa, expliquei que ele não era servidor do Espaço
Bem-Me-Quero, mas sim da Secretaria de Direitos e Cidadania18 à qual o Espaço Bem-Me-
Quero é vinculado institucionalmente. Indiferente disto e da ressalva feita por ela sobre o

17
Esta mulher move uma ação de reconhecimento de paternidade contra seu ex-companheiro. Na sessão anterior,
ela havia nos relatado, entre lágrimas, que sofrera a maior de todas as violências, pois fora detida por desacato à
autoridade após ter se recusado a assinar uma intimação sem antes conversar com seu advogado. Ela foi
algemada e levada de camburão ao CERESP de Contagem (local destinado a presos do sexo masculino após o
julgamento) onde permaneceu detida por uma noite. A intimação se referia a uma denúncia por parte de seu ex-
companheiro de invasão de propriedade. Após discussão no Grupo, a encaminhei para receber orientações
jurídicas da advogada do Espaço Bem-Me-Quero. As mulheres do Grupo, muito sensibilizadas com o sofrimento
e fragilidade demonstrados por Camila, concordaram com esta proposta e também com a estratégia apresentada
por ela de denúncia contra o Estado por abuso de autoridade.
18
Temporariamente, esta Secretaria funcionou na mesma casa onde se localiza o Espaço Bem-Me-Quero, por
questões administrativas da Prefeitura (o que pode ter levado a mulher a se confundir).

102
“excelente tratamento” recebido de mim, da advogada e da gerente do Espaço Bem-Me-
Quero e da acolhida pelas mulheres do Grupo ela continuou questionando o posicionamento
institucional do Espaço-Bem-Me-Quero.

Simone: Mas o que você esperava?


Camila: Eu esperava qualquer tipo de apoio de menos esse, porque eu tenho o
telefone, se eu não liguei ainda é porque eu queria que o Espaço Bem-Me-Quero
fizesse a diferença na situação porque foi uma situação de violência extrema.
Simone: Mas o que seria a diferença você tem que falar Camila.
Camila: Que seja pelo menos chamar o jornal para estar fazendo esse tipo de
cobertura, eu já iria me sentir saciada entendeu, eu acho assim é a Lu. (Advogada)
sempre foi muito bacana, você sempre foi muito bacana...
Simone: O que a Lu falou?
Camila: Não, a Lu fez de tudo para me ajudar, ela disse que os recursos humanos vai
te dar um apoio.
Simone: Direitos humanos...
Camila: Direitos humanos vai te dar um apoio, e eu queria esse apoio, porque sou eu
sozinha contra o sistema e eu queria que o Espaço Bem-Me-Quero mostrasse a cara
dele, porque eu tô aqui há mais de um ano e eu queria que o Espaço-Bem-Me-Quero
mostrasse que não é demagogia isso aqui, é uma coisa que realmente faz a diferença,
mesmo que seja chamar um jornal e publicar o que aconteceu comigo, porque eu
não cometi o crime.
Simone: Porque tem que ver qual é o limite do poder do Espaço Bem-Me-Quero,
qual o limite da instituição.
Camila: pois é, mas olha só...
Simone: Eu estou entendendo o que você falou, mas você pensou em outra
alternativa, sem ser essa do jornal, você pensou em mais alguma coisa?
Camila: Outra alternativa seria entrar com uma ação de abuso de poder então...
Simone: Aí tem outra situação, mas eu não te encaminhei para nenhum dessas
situações...
Camila: Tudo bem.
Simone: mas a gente pode encaminhar você para outro local...
Camila: mas aí já que não pode acontecer isso, pelo menos o Espaço Bem-Me-
Quero mostrar: nó essa pessoa tal tá sendo assistida aqui com a gente, e pelo menos
chamar um jornal, porque foi uma injustiça que fizeram comigo. Eu sou uma mãe de
família entendeu, forjaram a situação, eu fui presa, algemada igual a uma marginal,
fui agredida porque até poucos dias atrás meu corpo estava todo roxo, porque os
caras me violentaram, me apertaram, enforcaram lá, puxaram meu cabelo e não deu
em nada,
Simone: mas você não fez uma queixa?
Camila: eu fui presa, fui presa...

Camila apresenta-se pequena frente ao sistema que a violentou e entende que o Espaço Bem-
Me-Quero seria um local onde poderia ser apoiada e fortalecida no enfrentamento à violência
policial.

As participantes do grupo escutaram Camila atentas, com exclamações durante os momentos


percebidos como de maior violência. A coordenadora buscou com suas pontuações
compreender o caso, o posicionamento da mulher, do ex-companheiro e da Polícia no
episódio, bem como incentivar a mulher a construir estratégias para a situação.
103
A cena de violência policial e os encaminhamentos posteriores apresentados por Camila
causaram impacto nas participantes. A partir do exposto do ocorrido com Camila, Fernanda,
Janaína, Nina e Cíntia relataram suas experiências de enfrentamento à violência focalizando e
denunciando a participação (violenta) policial. Fernanda “pega um gancho” na história de
Camila e pergunta se no seu caso poderia ocorrer o mesmo que com Camila, já que ela saiu
de casa e ainda não estar decretada oficialmente a partilha de bens, a pensão e a guarda dos
filhos menores. Ela se emociona ao relatar como está sobrevivendo sem os bens materiais
construídos durante o casamento, a presença diária dos filhos e com a continuidade da
violência por parte de seu ex-companheiro.

Fernanda: Só pegando um gancho com a história dela (de Camila), igual o meu caso,
eu saí de casa todo mundo fala: você saiu da sua casa. Mas não é que eu saí da
minha casa. Eu saí da minha casa porque eu fui agredida psicologicamente,
moralmente e fisicamente e o meu filho também, mas mesmo com tudo isso eu sai
com o resultado da separação de corpos. A juíza então, como se diz, disse que eu
podia abandonar o meu lar porque eu estava na lei que eu estava sendo agredida
então ele não foi não pronunciou então como diz
Simone: tem alguma audiência marcada?
Fernanda: Ela marcou agora no dia 11 de agosto. Nesse meio tempo, igual, vocês já
sabem, eu estou morando em um barracão de um quarto com um banheiro.
Mulher: seus filhos estão com você?
Fernanda: meus filhos estão comigo, dormindo na mesma cama e tem dia que eu
faltei aqui porque eu não pude vir mesmo (começa a chorar) porque ele dá 50 reais,
mas... Acabou o gás, fiquei 30 dias no escuro que a fiação não funcionava. Aquela
menina a Graça (participante do grupo) ela viu, ela não está aqui hoje no grupo, ela
comprou duas peças de doze reais para me ajudar. E esse homem chegou dentro da
minha casa parou o carro foi entrando e eu atendendo e falou assim: eu não vou por
um centavo aqui, sua vagabunda, perto da cliente, sua vagabunda porque você tem
homem aqui para sustentar, porque tinha uma mulher com o marido dela lá
comprando (...). Porque eu estava dentro de casa e ele foi dentro da minha casa
ainda.
Simone: Porque que ele foi lá?
Fernanda: Ele foi lá para me infernizar. Aí ele gritou assim eu vou trocar a fechadura
da casa e aí eu falei assim: a casa é minha e eu entro na casa na hora que eu quiser,
porque eu não saí, eu não abandonei casa, eu saí por motivo de violência e de
agressão e eu posso entrar lá. Mas é igual o caso da Camila.
Simone: se bobear você vai tentar entrar lá e vai sair presa.
Mulheres comentam juntas um pouco.
Fernanda: Eu estou esperando o oficial de justiça entrar lá dentro comigo, mas eu
posso entrar lá sabe por que eu saí com o documento que o juiz determinou e ele não
quer que eu vá lá ao sacolão porque o que o que ele quer é me humilhar, me pisar
não quer me dar nada. Eu não tive nem aquela reação de chamar que eu já fui tão
violentada depender de Polícia que ela não chegava e não resolvia nada. Ele falou
que não ia resolver. O policial uma vez que eu chamei falou não chama não que
você vai é tomar chá de cadeira que eu falei com ele e ele não me ouvia.
Simone: ele falou que não ia fazer nada?A própria Polícia...
Fernanda: A pergunta que eu vou te fazer agora se eu fizer, mas porque eu não saio
do meu barraco que eu tô pagando do meu bolso porque eu quero ir com o oficial da
justiça depois da primeira audiência, mas não interessa se eu quisesse entrar lá hoje
e ele trocar a fechadura, a casa é minha, ele poderia? Simplesmente...
104
A reação das mulheres à pergunta de Fernanda foi de grande alvoroço. A percepção de que
apesar de Fernanda ter feito tudo de acordo com o determinado em juízo e ainda assim, estar
sendo violentada pelo ex-companheiro as revolta. A família dela, neste contexto, não apóia a
sua decisão de separar-se alegando que ela “tinha saído de casa por que queria”, “que estava
era inventando estas violências” e “coitado do marido dela que estava lá trabalhando”.
Como estratégia para sair desta situação ela se afastou de seus familiares e pediu para eles não
falarem mais com ela sobre o assunto. Cíntia, frente ao relato, reafirma que ela fez certo ao
sair de casa e que não deveria voltar apesar da opinião da família dela. No caso de Fernanda,
a morosidade da justiça tem levado a repetidas cenas de violência e a dificuldades financeiras.
Uma das consequências imediatas da estratégia de sair de casa para a mulher e seus filhos,
geralmente, é a dificuldade financeira durante o processo de negociação de direitos (como a
pensão e a divisão de bens) durante o período de separação. Os filhos adolescentes dela,
acostumados com uma condição financeira tranquila, não estão conseguindo se adaptar a
morar com ela durante este período de escassez de recursos. A cada ida e vinda dos filhos
entre as casas dos pais repetem-se cenas de violência. Este exemplo de dificuldade financeira
enfrentada durante o período de separação é temido e apontado como um dos motivos para o
adiamento do fim do relacionamento violento. Janaína resume esta situação assim:

Janaína: Deixa eu te falar Simone, sabe por que eu tô te falando isso, Simone,
porque não tenho para onde ir.
Simone: eu concordo.
Janaína: Ele paga aluguel, ele é tão mentiroso, porque ele pagava trezentos e trinta e
eu fui olhar é trezentos e setenta e seis reais,
Simone: Mas é obrigação dele, Janaína
Janaína: eu tenho medo de ficar com ele, tenho medo de ficar com ele dentro de
casa, mas eu não tenho como quem diz quem paga o aluguel, então ele grita: você
não tem para onde ir, você não tem dinheiro para pagar aluguel, você não tem onde
morar.

Frente ao sofrimento demonstrado por Fernanda, Nina também se solidariza e aponta outro
aspecto compartilhado pelas participantes frente a esta situação: a vulnerabilidade afetiva e
emocional.

Nina: eu só vou fazer uma colocaçãozinha. O que mais me incomoda, não sei se é
por causa do que eu tô sentindo pelo que eu tô passando, na historia dela a gente vê
no olho dela, cada vez que igual no caso dela parece que o que ela fala é o que eu tô
sentindo. (Mulher do grupo concorda) porque a dor que ela tá sentindo gente não se
resume a ele pagar duzentos reais e pôr no bolso dela mensais não. (Mulheres
concordam) Olha a situação dela, ela foi casada com ele vinte anos, tem filho com
ele e hoje não pode entrar na própria casa.

105
Camila complementa a constatação da complexidade da situação ao questionar a qual
instituição as mulheres sobreviventes à violência de gênero podem recorrer.
Camila: Eu não posso entrar na minha própria casa que é totalmente independente
dele, por medo, porque ele me deixou acuada, tem duas semanas que eu tô fora da
minha casa.
Nina: Aí você chama a Polícia, igual o caso dela aqui (referindo-se a Camila).
Participantes do grupo falam juntas comentando a situação de dificuldade frente à
violência.
Camila: Eu vou chamar quem?

Nina reafirma que o motivo da separação de um casal não deve ser questionado, pois se a
separação foi efetivada algo deve ter ocorrido. Ela explica como está a situação com seu
marido atualmente e que apesar de sempre deixar claro que ainda gosta dele percebeu como
está insustentável a manutenção da relação nos moldes antigos. Ela apresenta que ambos
continuam desempenhando seus papéis dentro do casamento, mas que a violência não teve
fim.

Nina: Se coloca no meu lugar, imagina você tá aqui pagando o aluguel, colocando
comida dentro de casa, carne, verdura porque isso ele não deixar faltar nada, aí ele
fala assim: é porque tudo que eu faço é pouco. Não é tudo que você faz é pouco não,
mas se coloca no meu lugar, você fazendo isso tudo porque eu tô aqui, eu tô fazendo
isso tudo, cuidando das meninas, cuidando de você, lavando e cozinhando.
Mulher: é
Nina: e vendo que você tá fazendo, aí eu viro para você em plena quarta-feira eu
falo assim: Você fica com as meninas hoje porque eu tô indo dormir com meu
namorado tá, se coloca no meu lugar. E nessa altura do campeonato ele virou para
mim e falou assim: Se você não tivesse saído de casa se você tivesse aguentado um
pouco ia tá tudo do jeito que tava.
Mulher: aguentando traição
Nina: Aí eu falei com ele assim: Mas estava bom do jeito que tava? Aí ele falou
assim, não, não estava bom, pois é eu tive a oportunidade e a coragem de fazer o que
você não tava tendo coragem de fazer aí ele virou para mim e falou assim... E é o
que vai acontecer com ela se ela for lá e chamar a Polícia porque é isso que
acontece. Ela saiu de casa porque ela foi atrás de macho, porque foi isso que ele
falou comigo, você saiu de casa porque foi correr atrás de homem, entendeu?

Fernanda afirma que também tentou manter uma relação amigável e que apesar de continuar
desempenhando o papel de mãe/mulher/companheira adequadamente a violência não teve
fim.

Fernanda: mas eu tentei no meu relacionamento na separação de corpos nós


tentamos, porque a gente tem um comércio junto, eu tentei trabalhar com você, ser
sua amiga, mas isso aí não dá o direito de ir à casa da minha mãe, pegar minha bolsa
assim, pegar meu celular e começar a me chamar de vagabunda, tudo é vagabunda,
tudo é piranha, e outra coisa eu fiquei vinte anos casada com você e nunca fiquei
com outro homem, nunca sequer olhei para outro homem... Aquela coisa que você
está falando: eu te servi vinte anos... Porque as coisas estão ficando difícil lá, ele não
106
dá nada para dentro de casa e a gente está sofrendo para honrar os compromissos e
um arroz. (chorando muito)... quando seu pai falar que eu sou vagabunda, meu filho,
aí você fala com ele assim: minha mãe tá passando, cozinhando. Eu cuido da casa e
ainda vendo meus artesanatos, mas igual uma mulher que esta casada que ainda não
esta separada o papel de uma mulher não é este? Lavar, passar, cozinhar, cuidar do
marido, da mulher o papel e esse e do homem é ajudar ela ficar em casa , a minha
parte eu to fazendo e ele não esta fazendo a parte dele e me chama de vagabunda. Lá
onde eu to agora o pessoal já viu. Igual eu te falei eu limpo a rua onde eu to
morando... e ele fala assim você não vai ter nada essa casa é minha, eu não vou te
dar nada não vou te dar carro, você vai comer o pão que o diabo amassou. Vai
arrumar um homem para cuidar de você.

Cíntia, por sua vez, relata sua história de como resolveu estudar e passar por cima de todas as
dificuldades e traições do ex-marido na escola onde estudavam juntos. Frente ao incentivo
dela para que ele começasse a estudar ele reagiu com traição e violência.

Cíntia: quando ele me viu que eu formei a oitava série, ele voltou a estudar aí eu
carreguei as folhas dele, quinhentas folhas no braço de um bairro para o outro aí fiz
a matrícula dele (...) não demorou um mês ele tava com uma mulher para lá e para
cá, amiga da escola que ia à minha casa, mas só que eu não via, aí começaram a
falar comigo, você é tão bonita e seu marido com aquela ridícula e eu também não
via, aí eu procurava também não ver. Mas aí resumindo essa historia, ele pegou e
começou a sair mesmo com essa mulher aí eu vi e pedi a separação.

Como outra estratégia (para além do institucional/policial/judicial) frente ao ciclo de


violência, Fernanda apresenta uma estratégia chave: posicionamento.

Fernanda: Eu tô aqui porque não é meu dia de comprar, porque eu me posicionei.


Simone: palavra mágica eu me posicionei
Fernanda: Eu me posicionei. Porque eu tenho que ficar lutando,trabalhando,
pegando meu artesanato e vendendo deixando de fazer meu cabelo, arrumar minha
unha para dar pra menino. Aí a minha menina tá assim: porque eles me amam, mas
ontem eles estavam no shopping com o pai e ele vem entrar na minha casa e me
chamar de vagabunda.
Camila: e quando eles não falam, eles fazem a gente se sentir uma vagabunda. O
homem não tem contato comigo mais entendeu Fernanda: sabe por que eu cheguei
aqui hoje porque eu cheguei aqui me posicionando, agora eu faço a listinha, vai lá, e
o seu pai falar que não vai comprar aí vocês infernizam a vida dele lá que ele é pai e
que... E sabe o que mais? Eu decidi ser feliz porque eu sou nova ainda, eu vou
trabalhar, a fazer minha aula de dança, em vez de ficar pegando dinheiro e
comprando óleo, arroz.
Mulher: É.
Fernanda: Eu vejo minha mãe feliz casada de novo, minha irmã separou agora tá
gostando de outro, é um tal de gatinho na minha cabeça porque que eu tenho porque
que eu tenho que ficar sozinha? (Este comentário causa rebuliço e falas nas
participantes) porque eu tenho que ser guerreira, eu tenho que me assumir como uma
mulher nova, uma mulher guerreira, mas que ainda tem vida pela frente.

As participantes assim relataram como a estratégia de manter a relação não foi bem sucedida e
quais as decisões tomadas frente a isto: Nina resolveu sair de casa, Fernanda saiu de casa e

107
aguarda o andamento processual para ter seus direitos garantidos e continua trabalhando
muito e Cíntia resolveu continuar estudando, mas se separar definitivamente. Janaína, que
estava em silêncio até este momento, resume a história:
Janaína: É o que eu tô falando para vocês aqui, homem só muda de nome e endereço
continua tudo pilantra,
Mulher: É.
Janaína: sem vergonha, não respeita a mulher que lava, passa, cozinha e cuida dos
filhos deles não, eles só querem aproveitar de vocês, eles ficam com as outras na rua
e quando chega em casa quer porque quer que você se entregue para ele, assim que
o lá de casa é.Falas de mulheres concordando com Janaína sobre sua opinião sobre
os homens.

A coordenadora faz um apanhado do que as participantes apresentam de suas trajetórias


individuais e sugere a discussão do enfrentamento coletivo/social da violência de gênero.

Simone: Pelo que vocês estão contando, vou pegar o gancho com a Camila sobre o
que vocês estavam comentando, eu não esqueci não, semana passada eu perguntei
justamente isso né, como é que toda situação, quer dizer, seja amante, seja traída,
seja trabalhadora, não trabalhadora, seja quem trabalha todo dia, seja quem nunca
trabalhou, a situação é igual você falou ,é de marginalização, não respeito de
direitos. Eu acho que eu posso falar isso porque é isso que vocês estão me contando,
quem não concordar pode, vocês concordam, querem completar?(...) tem sido criado
instituições como o Espaço Bem-Me-Quero para tentar ajudar a enfrentar essa
situação, aí eu comecei falando da Polícia que eu já tenho observado que eu já até
falei numa sessão atrás que teve uma reunião aqui que inclusive eu falei com a
psicóloga da Polícia Militar: eu tenho três depoimentos gravados para passar de
instituição para instituição, porque enquanto não está escrito, não está gravado, não
chega né? Aí é de uma instituição com uma instituição, não sou eu como psicóloga
qualquer, é o Espaço Bem-Me- Quero com a Polícia Militar. Igual vocês falam, eu
gosto quando a Camila fala isso porque não pode ser só demagogia, agora também
tem aquela coisa: como construir essa rede contra a violência que é o trabalho que a
gente tenta fazer?

Frente ao questionamento da coordenação, Janaína relata a situação de violência ocorrida em


sua casa na semana anterior e a forma como os policias atenderam ao seu chamado telefônico
pelo número 190. Neste trecho extenso é interessante observar o posicionamento da mulher,
do companheiro e dos policiais, a dinâmica entre os três agentes sociais e a forma como foi
conduzida a ocorrência da violência de gênero contra uma mulher pelos agentes da Polícia
Militar.

Janaína: os policiais não estavam respeitando ninguém, eles tiveram na minha casa
semana passada (...) eu peguei aquele endereço que você (Simone) me deu e eu
liguei, e eu toda vida ligava e nunca vinha, e como eu liguei nesse endereço eles
apareceram, mas vieram sabe o que é, com licença da palavra, um bando de animal,
um bando de cavalo, eles não têm disciplina eles não têm educação para entrar na
casa da gente eles desacata tanto você como o homem que está bêbado que está te
desafiando você ta te maltratando dentro de casa.

108
Simone: mas o que foi que te incomodou na postura dele, além dele mexer com a
sua neta? O que você acha que ele fez de errado como é que ele devia ter agido?
Janaína: em vez de ele chegar e conversar com ele na boa: chamou ele lá na cama e
pediu: Ô dona eu posso entrar, pode, eu não vou fazer nada com ele, eu só vou
conversar com ele. Ele tem condições de conversar? Eu falei: tem. Numa boa.... Ele
falou: Conversar comigo por quê? Eu não fiz nada.
Simone: eles nunca fazem nada.
Janaína: não agredi, não fiz nada, não roubei, não desacatei ninguém.... Eu trabalhei
trinta e cinco anos, toda vida eu trabalhei nunca fui vagabundo, não sou vagabundo,
não sou maconheiro, não sou drogado, não mexo com droga, não sou ladrão, não sou
marginal, isso é que vocês deviam de tá correndo atrás, de castigar, eu não.
Simone: Porque que eles encostaram a mão nele? Tem que ter um motivo.
Janaína: Ele pegou e falou assim, sabe por causa de que, porque desacatou ele
Simone: Ah! Tinha que ter um motivo.
Camila: mas aí quando desacata e ele fala que você desacatou também.
Janaína: aí eu na hora que o Policial chegou ele passou a mão nos óculos e no
cigarro e foi lá para a sala e o isqueiro, e o que ele fez, pôs o cigarro na boca e o
policial falou com ele: Ô moço, por favor, não faça isso não, não desacata a
autoridade não, tô pedindo, não fuma não, vamos conversar, depois você... Eu vou
acender porque eu tô dentro da minha casa e o senhor está invadindo a minha
propriedade, vocês estão invadindo a minha casa eu falei assim, na hora que ele
falou assim o cara só pegou e passou a mão no cigarro e tá na boca dele, o policial, o
magrelinho pegou e deu um tapão na boca dele.... (Janaína falou com o marido) tem
que respeitar a autoridade sim, estando você errado ou não você tem que respeitar,
porque eles acham que são mais porque eles são formados para isso eles mandam
onde eles tão, eles mandam, até em mulher. Eles vêm me mandando calar a minha
boca, sendo que eu os chamei para me proteger eles mandam calar minha boca e me
desacatam dentro da minha casa também, entendeu.... Aí ele pegou ele pelo pescoço
e só isso que ele falou, pegou ele pelo pescoço, arregalou o olho dele e levou para
viatura e algemou-o e levou para a viatura e aí ele falou assim, e você cala essa
boca. Aí ele falou assim: tá vendo Janaína o que você fez comigo.
Simone: Agora a culpa ainda é sua.
Mulher: concorda com a colocação de Simone
Janaína: e falou assim para mim: Escuta aqui a senhora caça jeito de arrumar alguém
para tomar conta dessas crianças e vai ao vizinho e leva os meninos lá na minha
vizinha que é crente, levou os meninos lá, minha filha enquanto eu tô doida caçando
a identidade, dentro do levar os meninos num lugar agora. Desse jeito: vai agora.

Camila e Fernanda entram na conversa relatando suas histórias apresentando a semelhança do


ocorrido com elas, em um exemplo de convergências de relatos sobre o posicionamento de
agentes policias/demais cidadãos frente a ocorrências de violência de gênero contra a mulher,
especialmente as que envolvem agressões entre marido e mulher.

Camila: não pensaram com quem meu filho ia ficar me pegaram pelo cabelo e me
tocaram no carro e o menino de um ano e nove meses ia ficar com quem?
Simone: é.
Fernanda: Simone o dia que e meu marido me agrediu eu tinha ido comer cachorro
quente e aí eu cheguei eu tava com minha colega, cheguei à casa da minha colega e
aí ele me agrediu eu tava chorando pegou meu celular.... começou me ameaçar você
vai morar comigo na minha casa e isso não está certo que você está bêbado, no meio
da rua, você me solta, eu fiquei muito tempo sem sair de casa eu resolvi sair hoje eu
não sei por que você tá aqui e você tá me seguindo e eu vou gritar socorro eu gritei
socorro e o menino que tava no cachorro quente que tava comigo não chamou, não
fez nada aí eu peguei minhas coisas e saí correndo assim e ele veio atrás de mim
com o carro na Abílio Machado.Na Abílio Machado tinha um rapaz sentado assim
109
que parece que já tinha bebido todas, aí chegou e falou assim: negócio é o seguinte:
solta a moça eu não sei o que está acontecendo não, mas eu tô vendo que você está
agredindo ela. Eu falei assim: moço tudo que eu quero fazer é ligar para Polícia e
esse homem não quer deixar e eu queria ligar para a Polícia para o 190 e ele não
quer deixar. E ele me segurava assim pegou meu celular e quebrou, o menino viu ele
quebrando o celular e tava todo tonto veio até a mim sabe e já que não tem nada que
você não deve nada, o que tem ela chamar a Polícia?Porque ela não pode chamar a
Polícia? E eu tava com o celular e ele quebrou meu celular que não funcionava e eu
queria ver se tinha um segurança de um motel lá para eu poder pegar o celular e
ligar, ele não deixou não só que foi o seguinte. Quando eu tentei chamar a Polícia,
ele tinha chamado a ambulância para me prender, ele queria me prender... só sei
dizer que quando a ambulância chegou... Esse menino ligou, aí chegou a ambulância
e falou assim, você tem irmã, tem irmã vai embora porque o problema não é você o
problema é ele, está transtornado. A ambulância conseguiu detectar que o problema
de loucura não era eu, nós estamos em processo de separação, ele me agrediu, tenho
testemunha o pessoal lá, depôs e tudo aí ele falou assim: então você vai para casa da
sua mãe, casa de irmã quem tá com algum problema é ele e eu não posso fazer nada
que o problema é de separação e foi embora. Quando eu fui embora ele veio atrás de
mim de novo e aí eu consegui chamar a Polícia que esse menino que foi embora e
chamou a Polícia para mim. Sabe que aconteceu com a Polícia? A Polícia chegou e
em vez de chegar e conversar comigo que era a agredida, fui agredida e fui a vítima
e que liguei para a Polícia chegar, ele ficou conversando com ele lá
Simone: é isso que eu não agüento.
Fernanda: e na hora que eu cheguei a Policia falou comigo, olhar a minha bolsa...
vai senhora cala a boca que eu tô vendo que a senhora ta alcoolizada. Eu não tava
alcoolizada, eu tava nervosa porque eu tinha sido agredida,
Camila: ele tinha perguntado se eu tinha ficado doida, eles me arrancaram da porta
da minha casa, me tiraram dos braços do meu filho
Fernanda: você entendeu? Eu tinha sido agredida, tava chorando, vem cá eu estou
chorando eu fui agredida, esse homem aí, ele ficou olhando com aquela cara de
cínico para mim, ele bebeu muito mais cerveja do que eu e ainda está dirigindo que
é contra a lei e eu não tenho nada tá aqui minha certidão de bons antecedentes e tudo
e agora o senhor vem me mandar calar a boca, e vocês vêm falar comigo para eu
deixar isso para lá e aí ele falou que não ia levar a gente para a delegacia porque ia
ser só chá de cadeira. Que não vai acontecer nada para ele. Eu fiquei assim, eu fiquei
tão
Camila: pois é eu fiquei com tanto chá de cadeira que eu fui parar no CERESP, eu
tomei tanto chá de cadeira ele falou assim isso não dá em nada. Eu fiquei tão
revoltada e aí eu peguei e dá vontade de processar por... Eu nem peguei a farda da
Polícia, eu me senti um lixo, sabe quando você tá precisando da Lei ali na hora e ela
não acontece, mas eu fiquei assim, a não ser o menino que me ajudou sabe eu me
senti assim, sabe ...

No caso de Fernanda é interessante observar os diferentes posicionamentos entre os


indivíduos que foram testemunhas da cena, dos agentes policiais e dos agentes da ambulância
e os sentimentos de Fernanda frente a toda violência.

Continuando o relato de Janaína, ela descreve a forma como foi o processo de decisão sobre a
necessidade e forma de se registrar a ocorrência por parte dos Policias. Vale observar a
recorrência do “chá de cadeira” e da chamada “Cala a boca, minha senhora!”, o tratamento
dispensado à mulher autora da queixa e a apuração do suposto crime ocorrido.

110
Janaína: na hora que eles estavam descendo, olha o que o abençoado falou para ele,
nunca mais, nunca mais nunca mais, falou para mim assim: olha o que ele falou para
mim, olha o que ele falou para mim: Oh dona, deixou ele lá na viatura com o
magrelinho, o motorista e me imprensou lá na porta da delegacia e falou assim para
mim: O dona, também não perguntou o meu nome não, o dona a Senhora cala essa
boca porque eu estou aqui para ajudar a senhora e tô com dó da senhora, se a
senhora tá achando ruim eu vou levar vocês dois lá para a furtos e roubos. Eu falei.
Simone: o que tem uma coisa a ver com a outra?
Mulher: é dureza, né.
Janaína: Se for para você me levar para a Furtos e Roubos, você não me tirava lá de
casa não, porque ele pode me bater me matar.
Simone: Aí também não né, Janaína.
Janaína: mas sabe por que eu falei para ele sabe por que eu falei para ele tomar
atitude de homem porque lá vocês não vão tomar chá de cadeira não, lá vocês vão
tomar o que vocês merecem, falou assim para mim, falou assim para mim. Então eu
falei: eu mereço o que? Eu não mereço nada. (Camila comenta) eu vim pedir uma
ajuda e agora vocês vêm me agredir nessa situação, eu não tô te agredindo eu não tô
te respondendo, na hora que ele falou assim que ia me levar para a Furtos e Roubos
eu falei assim: você não vai me levar não.... lá na delegacia com ele mesmo eles não
conversou nada, não falou nada, só comigo, só comigo, ele devia ter chegado igual o
delegado, vocês dois vão conversar com o delegado, falou que nós dois ia conversar
com o Delegado. Nem o Delegado chegou perto de nós, sabe como que eu fui
conversar com o Delegado, que eu passei perto depois que esse Policial me marcou,
me pirraçou, me condenou fazendo ficha lá e eu pedindo: Oh senhor faça com que
esse policial resolve os problemas dessa ficha que eu não fiz nada ele não fez nada e
essa ficha tá tão cumprida que nunca tem fim.... soltou ele sabe por causa de que?
Porque depois que este policial atrevido fez a ficha para mim, para ele lá perguntou
se ele me agrediu que aconteceu eu falei assim moço eu já te falei lá em casa que ele
me agride com palavras, só fica bebendo 24 horas por dia, não dá assistência para os
meninos.
Simone: ele te escutou?
Janaína: então aí eu conversei com ele lá em casa e tive que repetir tudo de novo e
ele algemado lá no canto e sentindo dor porque eles apertam sem dó.

O desfecho desta ocorrência segue a mesma linha de ação da abordagem realizada na casa de
Janaína. Vale a pena observar/analisar a escolha dela de permanecer com o marido como uma
das consequências do tratamento recebido por ela e pela condução dos agentes policiais da
queixa-crime. O episódio onde Janaína pede carona a um taxista após sair da Delegacia é um
exemplo muito forte da vulnerabilidade das mulheres em nossa sociedade. O relato desta
mulher desde o momento que acionou a Polícia para dar queixa da violência até a finalização
da cena com a ida para casa a pé, de madrugada, é um retrato da forma como a violência de
gênero é tratada pelos órgãos policiais.

Janaína: O que ele falou para mim, Janaína pede para eles afrouxar essa algema isso
aqui que eu não to aguentando de tanta dor não.
Simone: e o que você falou?
Janaína: eu com educação.
Simone: você escutou o que ela falou? Fala para ela,
Elis. Eu deixava, eu não sabia nem o que ele falava o deixava lá um dia dois dias,
três dias.
Falas das mulheres discutindo a postura de Janaína e a proposta de Elis.

111
Janaína: Mas sabe por causa de que eu falei isso? (falas) Me deixa só explicar para
vocês eu estava fazendo a ficha e estava preocupada porque eu não sabia se ouvia
ele me gritando lá e se eu ouvia.
Simone: o policial tinha que ter ido lá calar a boca dele não era você.
Janaína: O policial pedindo os dados lá aí de repente quando fizeram a ficha eles
pegaram e me pôs lá de chá de cadeira lá fora no banco, pôs ele lá dentro lá com os
outros caras que estava lá dentro sentado lá e tirou a algema dele e deixou ele lá e
falou que eu ia conversar com o advogado e delegado nem nada, na hora que eu, na
hora que eu passei que eu fui perguntar o policial para ele me salvar, me responder,
o abençoada do Delegado falou assim: o dona, arreda daqui, fui tratada que nem
cachorro, sai fora daqui, racha o fora daqui, eu falei assim: Ô moço eu to só
querendo perguntar por que se ele pegou a identidade dele porque da outra vez ele
não pegou a identidade dele. Aí ele pegou e simplesmente falou comigo assim o
soldado: Oh dona vem cá, vem cá, dona vem cá eu estou indo, a senhora quer ir
comigo pegar seus filhos na casa da vizinha lá? Eu falei não moço, eu não vou não,
sabe por causa de que? Porque eu sabia que eles iam ele deixar tomar chá de cadeira
e ele ia vir de lá para cá a pé, sozinho e depois ele ia chegar e me ameaçar em casa
ele ia vir e ia ficar mais furioso aí que ele ia me arrebentar, ia me arregaçar.
Simone: Aí você voltou com ele juntinho com ele?
Janaína: juntinho com ele não, eu vim sozinha na frente, simplesmente e ele atrás
sem conversar comigo, eu sozinha e Deus.... Aí eu perguntei para um taxista se ele
pegava cartão ele simplesmente respondeu para mim, o dona eu não pego cartão
não, eu estava para o lado de lá do Bairro Amazonas, quando eu chego perto do
Pronto Socorro parou um taxista um descarado danado e por isso que eu falo que
homem não vale nada, e peguei e falei assim: O moço será que dá para você me
levar na Bernardo Monteiro porque tá tão longe e eu não tô mais aguentando andar,
o senhor recebe cartão? Ele só falou assim para mim, entra aí, não é só eu não, meu
marido vem aí atrás.
Simone: ela ia pagar o táxi para ele ainda.
Mulheres comentam e riem olha só para você ver. Ela tinha que deixar ele lá se virar
para ele ver. (Muitas falam juntas).
Camila: olha só que coisa linda...
Janaína: Sabe o que ele falou, sabe o que ele falou que não consegui entender.
Camila: ninguém consegue entender mesmo não.
Janaína: o que ele me falou foi que eu sozinha ele podia me levar porque ajudar
(falam juntas). Ele podia me levar, mas quando eu falei que o homem estava lá atrás
ele (falam juntas) ele falou comigo eu não poso te levar não. Porque que a gente
sozinha duas horas e tanta da manhã e ele podia me ajudar. Simone, ele não ia me
ajudar não, Simone, ele ia rodar comigo e fazer sacanagem comigo. Mais falas.
Mulher comenta: ela ficou com medo de assalto de madrugada Outra mulher
comenta: você devia ter deixado ele vir a pé pela ponte.
Simone: escuta agora.
Janaína: Na hora que ele abriu a porta para eu entrar sozinha eu fiquei com medo
porque muito caso acontece que mulher pega e eles somem com ela (falam juntas).

O alvoroço causado pelo relato de Janaína só foi aumentando à medida que ela contava o caso
dos taxistas e demonstrava sua preocupação com o companheiro e seu temor de ser
novamente violentada, neste caso o taxista. As mulheres concordaram com o perigo de se
pegar uma carona sozinha de madrugada, mas não concordaram com a necessidade de Janaína
de levar o marido consigo e de se preocupar com ele após as recorridas cenas de violência
entre eles. Assim, este trecho de seu relato abriu uma série de questionamentos sobre o seu
posicionamento em relação ao companheiro.

112
Camila: Mas Janaína, você vai me desculpar filha, mas você não podia ter dó dele
não, ele violentou (mulheres do grupo falam juntas) Ele não fez nada?
Janaína: não é ter dó não. Eu não tava, não é ter dó (...)
Nina: ele pode te bater te espancar, te rebentar e você sentir a dor, agora por a
algema nele e tirar o cigarro da boca do bonitão, a dor doeu mais em você do que os
tapas que deu nele.
Janaína: Não foi porque doeu não sabe o que ele fez comigo o policial perguntou ele
assim, você tem o costume de bater em mulher, ele me bate desde os 19 anos.
Nina: pois é.
Janaína: ele negou, nunca encostei a mão nela não.
Nina: pois é. (falas de todas as mulheres reagindo ao posicionamento de Janaína)
Janaína: se eu fosse encostar a mão nela...
Nina: você tinha que dizer bate sim senhor....
Cíntia: A gente tem que começar a crescer, isso aconteceu, mas só que o que
acontece com você é pior do que o Policial chegar e agredir ele, eu sei que foi na sua
frente eu sei que doeu pra caramba, mas pelo amor de Deus (mulheres falam juntas
comentando sem parar)
Janaína: Deixa eu falar Dona.
Cíntia: eu sei, eu entendi tudo que a senhora falou eles fizeram desrespeito com você
(Mais falas juntas) Mulher comenta: Eles tinham que ter falado com ele, com ele.
Cíntia: mas porque você foi lá e falou com o cara não desacata o policial não. Deixa
ele fazer o que quiser.
Mulheres concordam: É
Simone: e até parece que ele ia te obedecer né, Janaína. (Mulheres continuam
falando juntas)
Camila: Ó gente ó, para todas, a gente fica com dó de homem. É para todas. A gente
fica com dó de homem, achando que a gente, às vezes, está passando dos limites.
Quando ele quer fazer terror com a gente eles fazem completo.
Mulher: É eu passei.
Camila: Pelo amor de Deus, o cara entregou minha cabeça sabendo que eu tinha
filho de um ano e nove meses lá, filho dele e ele nem ligou, ele foi e lá perguntou o
porteiro se foi serviço completo.

O sentimento das mulheres em relação aos companheiros violentos é um tema delicado e


recorrente. Neste trecho o que chamou a atenção foi a convergência das participantes sobre a
inadequação do posicionamento de Janaína. Pode-se dizer que o grupo foi convergente em
uma posição divergente. Percebe-se pela ansiedade e quantidade de falas e opiniões sobre o
tema um indicativo do impacto deste assunto, bem como um interesse em ajudar a outra
participante. O sentimento de dó do companheiro durante o processo de enfrentamento à
violência não é considerado coerente pelas participantes do grupo. Espera-se que a mulher
consiga fazer uma retrospectiva e sinta-se legitimada em seu posicionamento de
enfrentamento à violência.

Após esta longa e tensa sequência de relatos de cenas de violência e tentativas frustradas de
acionamento da Polícia, a coordenadora busca incentivar as participantes, de uma forma mais
amena, a pensarem sobre como deveria ser a abordagem deste tipo de violência pelos agentes
da Polícia.

113
Simone: Nesse caso seu, vamos fazer de conta que a gente tem a varinha mágica
daquela menina que estava aqui no grupo passado, o que você acha que deveria ser
feito? Vamos pensar, como deveria ser então que a Polícia,vamos ensinar a Polícia a
trabalhar, como se fosse assim, você foi violentada como mulher como é que deveria
ter acontecido?
Janaína: Não, Simone sabe o que eu acho assim, que a Polícia deveria ter um pouco
mais de educação, mais seriedade porque a gente tá precisando da ajuda deles então
eles têm que ajudar mesmo, mas ter um pouquinho de educação, pelo menos para
tratar, conversar com a gente, e não é assim chegando igual ela falou lá....
Camila: Eu queria assim que o meu ex-companheiro na época recebesse um
corretivo,
Simone: Corretivo é o que? Tem que falar.
Camila: eu queria que a Polícia.
Simone: Para mim corretivo é isso aí que a Janaína falou.
Camila: Tá. Mas quando eu estive presa, o tempo todo você tinha que assinar, você
foi agredido? Eles fizeram alguma coisa com vocês?
Simone: você fez o que? Você falou não?
Camila: lógico que não, eu fui agredida, eu estava cheia de marca, só que é o
seguinte, aqui dentro desta instituição você foi agredida? O que queria naquele
momento era que fizesse justiça, aqui na lei no Brasil hoje, se você ficar dentro de
uma sala fechada é uma forma de fazer justiça, pela lei.
Simone: É ficar preso?
Camila: ficar preso, então o que acontece, quando eu chamei a Polícia para o K. eles
conduzissem ele até o local lá e depois eles se entendessem com ele, meu filho não
precisaria estar assistindo um horror, o que eu fico revoltada com a policia.
Comentários das mulheres quando percebem as cenas de violência.
Camila: Eles pegam o cara no meio da rua, você tá no ponto de ônibus, você tá na
fila, eles cortam o cara, ele não estão querendo saber quem está em volta porque
todo mundo.
Mulher concorda: eu também acho.
Camila: fica horrorizado. Então o que a Janaína queria? Eu acho que isso
funcionaria para a Janaína, a Janaína já está vivendo o terror tem muitos anos, se
eles chegassem lá e conduzissem o marido dela e falassem: Ô Senhora fica tranquila
se a senhora quiser chamar o advogado para ele nós vamos conduzir ele até tal lugar.
Simone: você queria isso Janaína?
Camila: sem violência.
Mulher: que não o algemasse...
Simone: mas algemado ele tinha que ser porque ele estava sendo preso, ou que
tivesse levado ele para Polícia, mas sem dar soco, para conversar (falam juntas). Não
estou falando que tinha que prender ele, mas sem dar soco que você considerou uma
coisa errada. E tivessem encaminhado ele para o camburão e conversassem com ele
lá na delegacia, o que você acharia dessa historia?
Janaína: Não, eu acharia assim.
Simone: ou você acha que tinha que conversar com ele lá na sua casa mesmo?
Janaína: do dia que fizeram isso com ele, deveriam ter feito assim, então levasse,
igual ele falou: A senhora vai ter que ir com ele, tudo bem eu vou, mas o que vocês
vão fazer com ele, ele só pegou e falou assim para mim, rodou com nós a João César
inteira pelo amor de Deus,
Simone: Mas o que você queria?
Janaína: Eu queria que eles fizessem com ele assim, levasse ele lá na delegacia e
com ele mesmo eles não conversaram nada, não falou nada, só comigo, só comigo,
ele devia ter chegado igual o Delegado, você dois vão conversar com o delegado e o
delegado nem chegou perto de nós.

Camila também questiona o posicionamento da Polícia e apresenta sugestões de como


poderiam ter agido os agentes policiais que a prenderam:

114
Camila: não foi a Polícia que fez a violência comigo, foi o pai do meu filho. Eu
passei mais de 24 horas presa. Ele iniciou a violência combinando com os Policiais
só para fazer medo, mas se a Polícia fosse realmente uma instituição séria.
Simone: isto eu concordo.
Camila: o que eles teriam feito, não eu não quero assinar a intimação, não. Tudo
bem nós vamos fazer uma certidão ela tá sabendo o dia e a hora, mas não precisa
assinar, Passe bem senhora e vai embora. E eu estaria sabendo o dia e a hora, porque
eu não sou obrigada assinar, e ainda tenho o direito de consultar meu advogado
porque eu posso ou não estar assinando, senão não existia essa profissão de
advogado. Então eles não me permitiram que meu advogado soubesse do fato e nem
permitiram que eu não assinasse, me prenderam como se eu fosse uma marginal, o
meu filho ficou exposto, sem ninguém sem aparato nenhum.

Ainda sobre o assunto Fernanda sugere:

Fernanda: porque, por exemplo, você aciona o 190 e você tem que ficar porque você
foi agredida e tem filho para criar, tem casa, tem tudo e não ir lá para tomar chá de
cadeira. Lá eles vão passar o sabão nele e lá ele tem o direito de visita e vai chegar e
conversar: eu não vou tirar (a queixa) que você merece estar aí. Até mesmo porque
se ele sair depois ele não vai mais fazer isso com ela porque se não ela vai chamar
de novo e ele vai tomar outro chá de cadeira de novo. O que está errado no sistema é
que, às vezes, você que não é criminoso acaba pagando o crime, porque só de ver
aquelas crianças com aquela cara de sofrimento com o cara lá algemado...

Poder-se-ia resumir as sugestões das mulheres como uma ação policial que não fosse violenta
nem com ela nem com seu parceiro e que, principalmente, fosse realizada a oitiva do parceiro
pelo Delegado e que ele, pelo menos escutasse uma advertência das autoridades policiais
sobre seu comportamento violento/criminoso.

A esta altura da discussão (uma hora e trinta minutos de sessão) o tempo do grupo estava
acabando e era importante que a coordenadora, pelo menos esboçasse um fechamento para
aquela sessão onde foram debatidos assuntos tão delicados e difíceis. Ela concorda com as
colocações das participantes sobre a ineficácia institucional de enfrentamento à violência e
reafirma que compreende os variados sentimentos das participantes durante toda a trajetória
de enfrentamento à violência. Desculpa-se com as participantes que desejavam contar alguma
coisa, mas que não foi possível e reafirma que concorda com a colocação de Camila no que
se refere à negativa de um de um serviço pautado pela demagogia.

Simone: mas aqui só para fechar, isso tudo, esse momento de revolta é um momento
necessário, é importante. Eu acho que a fala da Camila muito séria, se for para fazer
uma demagogia. (Mulher do grupo comenta) eu também estou fora, eu como
profissional e como ser humano, só que eu não sou a instituição, apesar de estar
reapresentando ela.
Camila: eu sei separar isso muito bem.
Simone: Até para mim é complicado, porque ao mesmo tempo eu sou mulher
também, sou a psicóloga de vocês, mas ao mesmo tempo sou funcionária da
115
Prefeitura de Contagem, ao mesmo tempo eu também tenho meus superiores...

A exposição da confluência de lugares ocupados pela coordenadora e seu posicionamento


frente a eles se deu no sentido de incitar as participantes a perceberem que a proposta do
grupo é pensar junto sobre todo o processo de enfrentamento à violência. A tentativa da
coordenadora de produzir uma demanda grupal frente à violência fica como um desafio ao
grupo e à coordenadora que, neste momento, se coloca como uma mulher na mesma posição
de vulnerabilidade das mulheres participantes do grupo e de toda sociedade.

Simone: como sugestão eu posso passar para frente (o caso), para o grupo, para cada
uma de vocês, as alternativas, as formas que vocês acham que as instituições
poderiam ajudar. Ela falou no jornal, é uma hipótese, mas têm outras, vamos listar,
entendeu. Eu não posso garantir, não sei o que vocês vão pensar...
Susana: já é um momento, né?
Simone: igual ela falou, tomar providências, às vezes, é ter uma idéia... (...) eu vou
pensar muito no que a Camila falou, do que a Janaína falou, espero que vocês
pensem junto comigo, porque a gente trabalha no grupo é para isso, para a gente
pensar junto né e o que eu falo sempre, igual eu falei aquela vez da traição que a
Nina trouxe que a Elis trouxe é nesse momento elas estão vivendo isso, mas isso não
quer dizer que a gente não possa viver ou a gente não pode ter vivido e essa situação
que a Camila tá vivendo e que a Janaína viveu também, infelizmente, a gente não
pode prometer. Então não é um caso da Janaína e da Camila é um caso das mulheres
nesta situação, agora o que eu acho é que vai ser interessante que eu quero que seja
feito é que com o tempo assim pode ser que é, explicar para vocês novamente o que
o Espaço Bem-Me-Quero é novamente. Essa rede que existe é uma rede falha, em
construção é uma rede que não tem nem cinco anos de existência, quer dizer, em
Contagem já tem três anos em BH ela tem muitos anos. E temos que deixar bem
claro que o que aconteceu com a Camila foi em BH, no caso da Janaína foi de
Contagem.
Camila: Eu tava em Betim, fui para Contagem depois me transferiram para BH.
Simone: Três cidades, então, pior ainda, porque a Polícia de uma cidade conta para a
Polícia de outra cidade. Uma vai passando para a outra e se passou foi porque todo
mundo estava concordando.

Camila novamente demonstra sua insatisfação com o andamento de seu caso e com o
posicionamento do Espaço Bem-Me-Quero.

Camila: Porque no momento da violência, eu citei o Espaço Bem-Me-Quero, gente


eu não estou desamparada, eu tenho um lugar que eu posso estar pedindo recurso e
eles vão olhar por mim, então quando eu cheguei e ele olhou para mim, liga para
esse telefone aqui, liga para a corregedoria é o que posso fazer para você, numa boa
Simone, se eu tivesse um pouquinho menos de educação eu mandava ele tomar no
(...) porque esse telefone eu conheço ele também.
Simone: Mas ligar para corregedoria você não acha que seria uma boa também?
Camila: Ô Simone, eu sou uma areia no meio de um deserto, uma areia no meio do
deserto, se eu estiver amparada por uma instituição, não será mais uma areia.
Simone: Mas a Corregedoria, só para entender, a corregedoria aceita, é o local para
reclamação do cidadão.

116
Camila: Exato, mas era isso que eu queria dizer, mas a violência contra a mulher.
Simone: é muito maior.
Camila: no Espaço Bem-Me-Quero trata de que? De pessoas que sofreram violência
então o que eu queria me sentir amparada, uma instituição que eu poderia falar
assim, não, eu estou nesta instituição, eles sabem do meu problema, eu já estou com
eles há um ano e três meses e aconteceu isso, o Espaço Bem- Me-Quero entrasse
para me dar um apoio entendeu.
Mulher do grupo: para te fortalecer.
Camila: para me fortalecer. (Falas das mulheres comentando e concordando)...
Cíntia: Fala pra gente Simone, elas estão passando por isso, eu to vendo a Camila
aqui, eu estou me vendo na Camila, Deus queria me livrar, pelo amor de Deus.
Mulher: eu também.
Camila: Mas o que gostaria do Espaço Bem-Me-Quero Simone, eu acho que é
possível. É possível o Espaço Bem Me Quero fazer, entendeu, é ele sair do que ele
tá daquela plaquinha ali fora, dos profissionais gente boa que vocês são e ir para o
mundo, crescer, entendeu,
Mulher: é.
Mulher: fazer a diferença (as outras concordam)
Camila: quando uma mulher chegar agredida e ela chegar e falar olha eu tô no
Espaço (muitas falas altas).
Janaína: igual àqueles programas que vai que tem reclamação para você ver, igual
tem lá, todo mundo para apoiar então todo mundo para apoiar, tem um advogado
que conversa com todo mundo naquela hora, então a gente precisa é de um grupo
assim para ajudar a gente a resolver esse tipo de problema, porque a Polícia não
resolve, o advogado vai enrolando, enrolando você e não resolve.

Pelas colocações de Janaína e Camila e a concordância das mulheres do grupo pode-se


perceber a necessidade premente de apoio institucional por parte das mulheres sobreviventes
à violência de gênero. O Espaço Bem-Me-Quero apesar de ser reconhecido com a função de
orientação e encaminhamento, mas não suficiente frente às demandas das mulheres em suas
trajetórias de enfrentamento à violência de gênero. Se a partir dos relatos de Janaína e
Fernanda pode-se questionar o posicionamento da Polícia Militar, Camila questiona o Espaço
Bem-Me-Quero. Ela apresenta o embate entre as duas instituições na Rede de Enfrentamento.
A partir de sua fala percebe-se que o Espaço é posicionado pelas mulheres na Rede como
lugar de legitimização e apoio, inclusive frente às ações policias e de outras instituições. O
desabafo de Camila é emblemático. Ela, ao mesmo tempo, diferencia e desafia o poder do
Espaço Bem-Me-Quero na Rede de Enfrentamento à Violência. As participantes de certa
forma entenderam e concordaram com Camila sobre a importância e necessidade de uma
instituição forte para apoiá-las no enfrentamento à violência, inclusive, contra outras
instituições da Rede. Este desafio é forte e a situação de desamparo as apavora.

Camila encerra a discussão reafirmando o desafio ao Espaço Bem-Me-Quero de se posicionar


na Rede de Enfrentamento à Violência no sentido de se legitimar e de ter visibilidade na
Rede, conseguindo, desta forma, um tratamento adequado para as mulheres atendidas por ele.

117
Camila: Igual aquele negócio da profissão das mulheres que sofrem violência,
ótimo, mas não e só isso que nós precisamos, nós precisamos ter um aparato porque
na hora que a gente sofrer a violência e nós temos que ter consciência, a Polícia não
tem preparação, então se a Polícia souber que existe um espaço que tá olhando pela
gente, mesmo que seja um pouco pela janela, que esteja olhando de verdade sem
demagogia aí eles vão pensar: pô se eu fizer violência com esta dona aqui amanhã
eles estão metendo o ferro de novo, porque elas têm uma instituição que é
verdadeira.
Mulher do grupo concorda
Camila: e que olha pelo direito dela mesmo, não é um advogado para ficar na porta
de cadeia soltando mulheres, mas que façam a diferença mesmo entendeu, o que eu
queria não era que o Espaço arrumasse um advogado não.
Simone: até porque você tem um advogado
Camila: que o Espaço montasse junto comigo, olha ela tem um ano e três meses que
a gente tá acompanhando ela e ela sofreu uma violência sim e o Espaço está
querendo...
Simone: como se fosse confirmar o que você disse?
Camila: Não, não é confirmar, que o Espaço falasse assim, olha ela está com a gente
aqui entendeu e nós estamos com ela então, eu sou uma areinha no meio do deserto
com o Espaço Bem Me Quero seria muito mais entendeu? E o Espaço Bem-Me-
Quero começaria a fazer a diferença quando a gente ligasse para o 180, o 190 e a
mulher falasse assim: Olha, eu tô no Espaço Bem-Me- Quero. E aí peraí, eu vou
começar a tratá-la com uma diferença, porque ela não está desamparada.

Por fim, Camila reafirma a sua aposta na proposta do grupo e do Espaço como um lugar
diferenciado e desafia-os a fazerem a diferença.

Camila: Eu insisto nesse grupo há um ano e três meses.


Simone: eu concordo. Camila: porque eu acredito que ele vai sair do papel, por isso
que eu acredito, eu tô insistindo há um ano e três meses porque as pessoas ficam
assim você vai para o grupo de louco, pensem o que vocês quiserem, porque eu
quero sim, que aqui cresça (comentários) e que seja um local que as mulheres
possam sentir amparadas não só para ter apoio psicológico, mas para a mulher
conseguir sair daquela violência, por que a violência doméstica porque quando é ela
e a Polícia, vem a Polícia e a gente desiste da Polícia...

Sessão do Grupo nº 60
Data: 29 de julho de 2009
Exibição do filme: “Dias e Noites”
Duração: 2 horas e 45 minutos
Participantes: Nina, Cíntia, Graça, Marília, Kenia, Janaína, Rosa, Susana, Clarice, Fabíola,
Elis, Júlia, Amelina.
Coordenação do Grupo: Simone (coordenadora) e Rafaela (observadora)

“Você deixou de ser mulher, você quis ser gente” (Clotilde, filme “Dias e Noites”).

Nesta sessão foi exibido o filme “Dias e Noites”, em cópia original, ofertada pela produtora
118
Nora Carús da Voglia Produções Ltda. “Dias e Noites” é uma adaptação para o cinema do
romance “Clô Dias e Noites” do escritor Sérgio Jockyman, publicado em 1982, baseado em
fatos reais. O filme conta a trajetória de quase três décadas de Clô. Ela se casou, segundo os
interesses de seu pai, com um homem violento, possessivo e machista. A violência no
casamento ficou mais acirrada com a primeira gravidez, quando o companheiro esperava um
menino, mas nasceu uma menina. Após descobrir as traições do marido, Clô decide sair de
casa e aí se inicia sua trajetória de sobrevivente à violência de gênero, em uma época (1960)
em que o divórcio, as Delegacias de Mulheres e as leis de proteção contra a violência contra a
mulher não existiam. O filme é o retrato de uma época, com cenas magistrais como a da
primeira noite de Clô com seu marido e a cena dela com sua neta no final do filme. Um filme
recomendado para todos e todas.

Antes da apresentação do filme a coordenadora entregou uma folha para que as participantes
registrassem observações relacionando o filme com suas vidas e trajetórias na Rede de
Enfrentamento. Esta folha poderia ser entregue posteriormente. Algumas participantes
entregaram no mesmo dia, outras na sessão posterior e algumas não entregaram. Rosa disse
que não conseguiu fazer o solicitado porque “a vida dela lembrava tanto a da mulher do filme
que ela começou a chorar”. Após o filme, ocorreu um breve momento de discussão e
apresentação de impressões. A observadora realizou as anotações do momento da discussão
que não foi gravada. Janaína imediatamente começou a chorar e disse: “A violência é assim
mesmo, passa de geração para geração”. Seguindo o mote do filme a coordenadora distribuiu
um texto sobre o caso da adolescente Eloá Cristina Pimentel (morta pelo ex-namorado
Lindenberg Fernandes Alves, em outubro de 2008) que apresentava a discussão sobre a
importância de se dizer não. Ocorreu grande identificação das mulheres com a personagem do
filme, com apropriação de suas falas e, também foi possível problematizar a perspectiva
histórica da violência de gênero no Brasil, a partir da trajetória de Clô. O filme ofereceu desta
forma, subsídios para a realização da tarefa grupal. Após este momento de discussão foi
realizado um lanche coletivo. Durante a sessão do filme o Espaço Bem-Me-Quero ofertou
pipoca e refrigerante para as participantes.

Sessão do Grupo nº 61
Data: 05 de agosto de 2009
Duração: 01 hora e 45 minutos

119
Participantes: Nina, Samia, Fabíola, Elisa, Cíntia, Kenia, Rosa, Susana, Elis.
Coordenação do Grupo: Simone (coordenadora)
Esta sessão não pôde ser utilizada para esta pesquisa porque a observadora não compareceu e
a gravação ficou tumultuada por causa do excesso de falas sobrepostas. As nove participantes
estavam eufóricas. A coordenadora fez as anotações da sessão e pontuou a dificuldade para o
registro para as participantes.

Sessão nº 02
Sessão do Grupo nº 62
Data: 12 de agosto de 2009
Duração: 01 hora e 35 minutos
Participantes: Camila e Fabíola
Coordenação do Grupo: Simone (coordenadora) e Rafaela (observadora)

“Dá para aguentar mais um pouco...” (Fabíola).

Na abertura desta sessão a coordenadora deu as boas vindas a Camila que não compareceu às
duas últimas sessões. A coordenadora discutiu com ela os motivos de sua ausência e os
sentimentos que ficaram após a sessão onde ela apresentou seu protesto sobre o
posicionamento do Espaço Bem-Me-Quero sobre o seu caso (sessão dia 22 de julho de
2009).

Simone: Mais e a Dona Camila como vai?


Camila: Estou bem graças a Deus.
Simone: Tava magoada, né?
Camila: Eu tava, já passou.
Simone: Tava falando com a Célia (gerente do Espaço Bem-Me-Quero) hoje de
manhã deixa a raiva dela passar.
Camila: É eu fiquei chateada, mas é mais por causa do meu problema.
Simone: E qual o balanço que você faz? Isto é importante para mim.
Camila: Não, eu acho que a gente tem expectativa demais, às vezes nem é do jeito
que a gente quer as coisas.
Simone: Você acha que tinha que ser ou não.
Camila: Eu acho que eu merecia uma atenção mais especial, sabe?
Simone: Só você ou qualquer mulher?
Camila: Eu acho que qualquer pessoa. Quando eu falo aqui por eu acreditar no
grupo. Eu acho, não, eu pensei que isso ia ser uma situação que o Espaço Bem-Me-
Quero ia crescer com isso, a entidade aqui. É uma situação de violência extrema.
Mas, talvez eu tenha muita expectativa, acima das possibilidades.
Simone: eu pensei muito.... essa historia não acabou não, pelo menos pra mim ainda
não acabou e pra Célia também não acabou. A gente estava conversando justamente
essa história, o que aconteceu com você e todos os encaminhamentos que foram

120
dados e as coisas que foram feitas? Essa história não parou aí. Está acontecendo
aqui, é até bom que vocês dão sua opinião, uma reunião uma vez por mês, uma
reunião nova de Contagem, para uma rede nova de Contagem, aí estão vindo duas
psicólogas da Polícia Militar de Contagem. Então eu comentei por alto, mas por alto
mesmo os encaminhamentos que foram feitos. Mas eu acho que tem coisa que tem
que ser ouvida. Não adianta eu falar: Ah, tem uma mulher que eu atendo, entendeu...
Camila: Não. E se assim, se precisar do meu depoimento eu venho, não pela minha
situação,
Simone: Eu sei, eu sei...
Camila: por que quantas mulheres ainda vão fazer um pedido de DNA pro cara que
tem influência? Quantas mulheres vão ser retalhadas como eu fui, entendeu, por não
ter tanto recurso...

Após este momento necessário de acolhida de Camila, ela atualiza o grupo sobre os últimos
ocorridos em seu ciclo. Ela relata que o pai de seu filho a procurou para ameaçar e tentar
desestimular sua decisão de levar o processo de reconhecimento de paternidade adiante. Além
disso, pela primeira vez, ela se referiu a uma cena de violência do passado, onde ele a havia
influenciado para que ela interrompesse uma gravidez através de um aborto (que ela, por fim,
realizou). Para ela, esta situação se comparava com o que estava ocorrendo agora, onde
novamente ele tenta de todas as maneiras dissuadi-la de sua iniciativa de processá-lo.
Fabíola19 que até agora ficou mais na escuta, reage na defesa dos direitos de Camila e de seu
filho, indiferente da opinião do pai.

Coincidentemente, sem ter assistido o filme, Camila diz “inclusive eu até estou me sentindo
superior, agora eu acho que eu cheguei ao auge da terapia, por isso que eu estou feliz e vim
aqui pra contar pra vocês que eu consegui dizer não. (Risos).” O motivo de sua felicidade era
que ela tinha conseguido sair da relação com seu atual namorado (também seu advogado).

Camila: ele aproveitou dessa situação (da prisão) para me intimidar. Ele estava me
escravizando, ele me levou pra casa dele eu tava servindo de tudo.
Fabíola: Socorro.
Camila: de carpinteira, de faxineira, de bombeira hidráulica
Fabíola: Seu advogado, seu advogado?
Camila: de bombeira hidráulica de pintora, eu estava num lelê danado e ele ficava
assim.
Fabíola: você chegou a ficar com esse homem?
Camila: Eu estava que nem mulher dele, eu estava servindo ele literalmente.
Fabíola: ah, tava
19
Fabíola é uma das mulheres assistida há mais tempo pelo setor de psicologia do Espaço Bem-Me-Quero. Ela
iniciou seus atendimentos individualmente em 2007, primeiramente, com a estagiária Andréia Carvalho e depois
com a coordenadora. Assim ela está em atendimento desde antes da entrada da coordenadora na instituição e da
formação do grupo. Fabíola, inclusive, participou da primeira sessão do grupo e veio mantendo regularidade no
grupo desde então. Ela só se ausentou após ter iniciado um trabalho formal com carga horária de 08 horas
diárias. Ainda assim, ela agendou alguns atendimentos individuais e participou de algumas sessões do grupo. Na
última sessão (não analisada nesta pesquisa) antes de iniciar seu trabalho formal, ela se despediu chorando e fez
um apelo emocionante às mulheres presentes para que não permitissem que a violência continuasse.

121
Simone: igual no filme mesmo.
Camila: Um mês e meio que tava morando com ele, ele não deixava nem eu vir na
casa da minha mãe. Inclusive, das duas vezes que eu não vim, é por que eu estava na
casa dele e ele literalmente me prendeu. (Fabíola: nossa que situação) na casa dele
para eu não vir na terapia porque ele achava que aqui era um risco para ele, que aqui
eu me fortalecia.
Fabíola: Mas você conseguiu se libertar dele?
Camila: consegui. Eu fugi dele eu vou para a minha casa eu vou retomar a minha
vida, aí toda hora ele me falava assim: porque eu cobro mais de três mil reais pra
tirar alguém da prisão...
Simone: Com dinheiro.
Fabíola: com ameaça.
Camila: Porque você tem mais é que me servir porque eu não cobrei para te tirar da
prisão. Aí eu falei não e não, aí eu fugi dele aí ele foi atrás de mim. (...) Igual a
minha irmã falou a gente tirava o dinheiro de onde fosse, mas você não tem que ser
escrava de homem não. Eu estava sendo escrava dele.
Simone: até a sua irmã falou...
Camila: a minha irmã que foi atrás com ele pra me tirar da prisão. A gente pagava o
preço que fosse você não tem que se sujeitar a isso, Camila. Você já se sujeitou 12
anos com outro cara. Já apanhou do C. (outro ex-namorado), o que mais você está
querendo da vida?

Neste trecho é interessante notar como a situação vivida por Camila com o namorado revolta
não só a ela, mas também à sua irmã e à Fabíola. A percepção de que a irmã estava iniciando
um novo ciclo de violência fez com que ela questionasse Camila sobre seu posicionamento
frente a toda aquela história. A aparente troca de serviços na qual a relação se baseava
incomodou Fabíola por seu evidente caráter opressor e violento.

Após este relato inicial de Camila, a coordenadora retomou a sessão anterior à qual Fabíola
compareceu apresentando uma série de questionamentos (como é de seu costume). A
sugestão da coordenadora é que se aproveite esta sessão para focalizar a discussão nas
questões que ficaram abertas nos últimos encontros. O fato de Camila e Fabíola participarem
do grupo praticamente desde seu começo possibilita a elas apresentarem uma análise do
processo grupal/terapêutico e do posicionamento das outras participantes neste.

Fabíola: Eu percebo que elas ficam muito perdidas, muito focadas no que o marido
falou, como que o marido tratou, fica assim relatando o que elas vivenciaram em
casa... Eu não tô aqui pra me expor para vocês não... Eu prefiro assim, às vezes, a
gente até responde de certa forma assim... Eu prefiro questionar: porque que eu tô
permitindo isso? O que eu tô fazendo, o que acontece, até onde eu estou agüentando,
mas buscando resposta do questionamento do conflito, do questionamento interno.
Simone: você perguntou por que, a pergunta que você faz há muito tempo, mas a
gente tem que dar um entre aspas desconto porque essas que você fala, elas estão
contando mesmo o caso, elas estão na fase de passar a história. Um dia até a Camila
falou isso: eu não quero contar mais a história. Acho que tem uma hora que é isso
mesmo você vai contando a história... (Camila e Fabíola concordam) Você e a
Camila já faz um ano que vocês estão aqui, eu não quero mais contar a historia. Eu
acho que uma hora a gente vai contando mesmo, a terapia, a história... A gente vai
conversando...
122
Fabíola: é um processo... É um momento
Simone: é só para a gente entender isso, para a gente entender isso. Tem um
momento que talvez seja necessário (Fabíola vai concordando com esta fala).
Fabíola: Até para desabafar...
Simone: Mas é preciso essas perguntas que você faz para dar uma mexida nas outras
também porque se não...
Camila completa minha frase: só fica contando história...
Fabíola: só fica contando história... Se ficar contando não sai do lugar, né?
Camila: Por exemplo, eu vou dar exemplo das pessoas que estão comigo no grupo
que eu observei, a Graça é uma pessoa que já quase não conta mais nada dela, mas
ela já está bem avançada.
Fabíola: refletindo já...
Camila: A Cíntia toda vez que ela vem no nosso encontro ela conta a mesma
historia, a mesma história...
Simone: Como é que é? Pra quem?
Camila: e eu percebi que ela está um pouco perdida. ... Inclusive no dia do processo
dela ela ligou junto com a Graça e eu tive que vir aqui correndo, levei-a na casa dela
para buscar, entrar com os negócios lá do fórum.
Simone: como é que foi o negócio? Você ligou para quem?
Camila: elas ligaram para mim, a Cíntia e a Graça no dia do processo.
Simone: Para que?
Camila: Para contar. Aí eu falei espera que eu estou chegando aí. Aí eu saí correndo
de Betim. Só que ela estava precisando ir lá a casa dela buscar os documentos dela
pra no mesmo dia ela entrar no Fórum para poder receber a pensão alimentícia. Eu
fiquei super feliz de ter ajudado porque realmente ela estava tão perdida, chorando...

Este trecho da sessão reafirma a percepção da participação no grupo de forma diferenciada


entre as participantes do grupo “veteranas” e “novatas” como nomeadas por Camila e Cíntia
na sessão discutida anteriormente. Também se percebe que o processo grupal/terapêutico é
composto por momentos: contar a história, desabafar, questionar (se). É interessante que elas
tenham chegado a esta conclusão como um indicativo justamente de que elas próprias estejam
passando por este processo. Fabíola questiona-se sobre seu posicionamento no processo de
enfrentamento à violência: “até onde eu estou permitindo?”. Esta sua provocação perpassará
toda a sessão e servirá para problematizar mais uma linha do emaranhado da violência: a
própria mulher sobrevivente à violência de gênero. Se na sessão analisada anteriormente o
foco dos questionamentos foi o posicionamento das instituições, nesta perceber-se-á uma
focalização sobre a mulher, seus sentimentos, sua relação consigo, seu parceiro e as
instituições. É como uma outra perspectiva para o mesmo emaranhado problematizado a partir
do posicionamento da mulher.

Para exemplificar o processo das participantes no grupo Camila relata o ocorrido no dia da
audiência da separação de Cíntia. Segundo ela, Cíntia estava “perdida” e chorando muito,
pois se sentira desacreditada. Esta cena será analisada na próxima sessão. Por enquanto cabe
chamar atenção para o fato de Cíntia ter se reportado a Camila e Graça (que a acompanhou à
audiência) neste momento decisivo de sua trajetória de enfrentamento à violência. Uma
123
estratégia construída e conquistada a partir da participação no grupo e da amizade cultivada
entre elas.

O caso de Cíntia foi apropriado por Fabíola que o utiliza para exemplificar a situação de
descrédito da palavra da mulher. A recorrência desta percepção nas sessões aponta para um nó
a ser desatado no emaranhado da violência de gênero. Camila, como porta-voz do grupo, faz o
movimento de interpretação deste fato individual como um fato social. Esta provocação
converge com a discussão realizada na sessão anterior sobre o lugar da mulher como “areia”
frente ao Muro das instituições.

Fabíola: É por que quanto eles fazem isso com a gente. Eu já passei uma situação
semelhante, a gente fica assim, como é que fala vulnerável diante das autoridades,
das outras pessoas e agora o que ela vai, a gente fica com medo. Será que ela vai
acreditar nele ou em mim, será que... Passa pela cabeça da gente será que ela está
achando que eu menti que eu estou com jogo também. Você fica insegura sobre o
julgamento da outra pessoa.
Camila: Sabe por que eu acho que a gente tira estas conclusões?
Fabíola: ele fala com tanta certeza, com tanta veemência, que chega...
Simone: Ate confundir vocês...
Fabíola: É.
Camila: Eu acho que isso aí já esta na nossa cultura. A gente já é tão marginalizada
desde que a gente nasce, a mulher em si, que a gente acha que tudo que acontece a
gente já pensa: eles vão pensar mal de mim.
Simone e Fabíola concordam reflexivas: é
Camila: Igual uma coisa da gente uma coisa que está entranhada na gente,
entranhada na nossa cultura, a mulher não vale nada.
Fabíola: É...
Simone: Igual eu falei em outra sessão, por que não sei se você lembra: qualquer
frase que eles falam qualquer mulher, todas que aqui já passaram, qualquer frase
deixa você em suspenso...
Fabíola: é.
Simone: Igual aquele exemplo eu chamei para ir a tal lugar e ele não quis ir. Por que
tipo assim, ele fala não vou por que não vou e pronto. A mulher, não, porque igual à
Cíntia falou não vou por causa disso, você justifica. Não vou porque eu estou
gripada, etc, etc...
Fabíola: É.
Simone: é como se a sua palavra tivesse que ter, porque tudo que você fala tem que
ter uma explicação, uma justificativa
Fabíola: é mesmo.
Camila: Eu voltei lá atrás, eu tenho voltado muito na minha, lá no início, então a
gente é muito regrada desde sempre. Você não pode andar de “pererequinha” de fora
por que para menina isso é feio. (Fabíola concordando) então a gente é podada desde
sempre. O menino quando coloca o peruzinho pra fora, igual o meu filho de dois
anos esta com essa mania de tirar para fora e ficar expondo todo mundo acha bonito.
Fabíola: é.
Camila: A menina todo mundo já começa desde nova.
Fabíola: regrando...
Camila: Fica na tua. Não desce a calcinha pra você fazer xixi naquele cantinho, não
por que é feio. Tanto que quando a gente cresce...
Fabíola: A gente não pode nem abrir as pernas. (Fabíola e Simone concordam se
mexendo e fechando as pernas).

124
Este trecho exemplifica o sentido da violência de gênero compartilhado por este grupo: um
fenômeno de base cultural/social que ocorre para além do âmbito doméstico, familiar,
conjugal e afetivo. A partir desta construção do grupo sobre o sentido da violência de gênero a
coordenadora provoca as participantes incluindo na discussão assuntos/situações-problema.
Desde o início desta sessão ela disse que iria “aproveitar da experiência destas veteranas”
para justamente, problematizar assuntos como este.

Simone: Aí fica aquela coisa, tem aquele fato que é uma coisa que a gente pode
pensar também. Então quem está aqui há mais tempo já conseguiu concluir, e vai
lembrando-se da vida quando era mais nova, no primeiro momento você conta sua
história, depois você vai tendo insights, a gente já conversou isto. Até quando a
mulher conta quando eu casei com 18 anos, e eu era virgem, aquelas coisa que a
gente escuta aqui. Primeiro ela conta, nem sempre quando a pessoa conta vem com o
insight junto: nossa é porque a sociedade tipo... Mas, não é todo mundo. Mas aí é
que eu acho que funciona nesse sentido porque aí uma escuta a outra, mas cada uma
no seu tempo. Mas aí iguais vocês duas, eu queria aprofundar mais isso. Aí tudo
bem, a sociedade é assim e daí? Como é que vocês acham que esse momento aqui,
as instituições ajudam, ou atrapalham? Porque aí é que é o negócio, a gente já sabe
como a sociedade é...
Camila: Por isso que eu cobrei do Espaço Bem-Me-Quero.
Simone: tudo bem. Eu entendi.
Camila: atitude porque eu imaginei que o Espaço Bem-Me-Quero estaria à frente
desse tipo de preconceito.

Frente ao questionamento da coordenadora Camila mantém seu tom de denúncia e desafio


em relação ao Espaço Bem-Me-Quero, instigando a instituição a se posicionar de forma
diferenciada, para além do preconceito percebido pelas mulheres do grupo em sua trajetória
pela Rede de Enfrentamento à Violência. Ela continua seu relato reafirmando a postura
violenta, omissa, e persuasiva do pai de seu filho durante todo tempo. Ele disse a ela “você
só foi presa por sua culpa, você está passando por tudo isso por sua culpa, se você não
tivesse entrado na justiça, eu não teria me afastado de você e a criança continuaria
contando comigo”.

Fabíola responde a pergunta da coordenadora apresentando suas reflexões sobre o assunto


através de mais questionamentos sobre seu posicionamento frente às situações conflituosas
em sua vida, incluindo a relação violenta com seu companheiro.

Fabíola: Eu fiz uma pergunta para mim mesma e agora eu estou com raiva de mim
mesma porque quando eu consegui assim chegar ao ponto assim (ela vem com um
caso para responder) de decidir, você sabe a minha história o conflito separa não
separa, vai não vai, vem não vem, aquela coisa. Quando eu chequei meu limite final,
estava insuportável o relacionamento e tudo, agora, há uns 15 dias atrás, eu tomei
uma decisão na minha vida, eu vou chutar o pau da barraca, eu estava decidida, eu ia
125
fazer isto numa questão de enforcamento (Simone concordando) porque eu já não
agüentava mais vivenciar o que eu estava vivenciando. Eu não estava feliz na escola
(onde ela trabalha). Aí eu pedi pra ele fazer a renda do negócio (eles têm um
negócio juntos) aí ele bateu quando eu vi estava gerando quatro vezes mais do que
eu ganho. O que eu estou fazendo nessa escola? O que eu tô fazendo? Por que eu tô
agüentando tudo isso, a troco de que? Eu vou retomar o meu trabalho. O meu
questionamento é porque eu me deixo nas mãos das pessoas?
Simone: Está é uma boa pergunta.
Fabíola: porque eu estou sempre me deixando, eu sempre me deixo, deixo na mão de
uma amiga, de uma irmã, vizinha, de um marido. Se eu arrumar um amante eu vou
me deixar também. Agora eu estou começando a acordar para isso, eu não estou
deixando mais, eu estou me vigiando mais, eu não tô deixando na mão de ninguém
Agora o que eu tenho que fazer eu vou lá e faço, o que eu tenho que perguntar eu
vou lá e pergunto eu não tô deixando, eu tô começando a me alertar para isso. Mas
por muitos anos eu deixei e isso me levou a muito sofrimento, muitas angústias.
Camila: Teve um encontro nosso aqui que eu falei que é igual ao encontro do AA.
Simone: um dia de cada vez.
Camila: um dia de cada vez. Por que eu tenho o mesmo problema de você de estar
na mão de alguém, né Simone, todo encontro eu falo, ou é na mão do meu cunhado,
que não quis me demitir, eu fui demitida. Eu fiz valer a minha opinião ou vocês me
demitem ou eu vou levar vocês na justiça.
Simone: está certa.
Camila: Eu tô conseguindo seguir um dia de cada vez. (risos) O outro homem lá (o
namorado advogado) eu botei ele pra correr: eu não quero você porque se ele não
me quisesse a opinião dele ia valer. Igual o outro (o pai do filho dela) não me quis
mais arrumou outra namorada e foi embora... E nesses doze anos eu tentei sair fora
dele várias vezes e eu não consegui mesmo tendo outro relacionamento ele sempre
fazia valer a opinião dele e eu sempre voltava pra ele.
Fabíola: tá vendo
Camila: ele saiu fora e esse cara que me atormentava (o advogado), você tem que
ficar comigo, você tem que ficar comigo, vai ter festa de família da minha irmã você
tem que ir, uma inhaca danada. E ele ficou um chato aborrecido no outro dia e eu
tava lá igual um fantoche,
Fabíola: se deixando levar...
Camila: e eu continuei vivendo tudo aquilo e me perguntando
Simone: você não estava gostando dele.
Camila: eu não estava gostando dele porque eu estava vivendo a mesma situação
que eu vivi com o pai do meu filho. Tudo contra a minha vontade.
Simone: é.

Este trecho da sessão é rico em informações sobre vários aspectos da dinâmica do grupo (a
coordenadora como uma espécie de diário das histórias do grupo, a apropriação de Camila do
questionamento de Fabíola sobre seu posicionamento frente aos outros e o espelhamento de
Fabíola no caso de Camila), a apresentação de estratégias pelas participantes (questionar-se,
viver um dia de cada vez e posicionar-se) e a exemplificação das possíveis dificuldades
vividas ao se tentar encerrar um relacionamento violento/conflituoso. Vale à pena observar a
construção de mais um par antagônico de sentido para a situação de violência: fantoche X
posicionar-se.

A dinâmica da relação violenta e de sujeição que estava ocorrendo no novo relacionamento de


Camila é exemplificada em uma cena onde se reafirma a disputa pelo poder de dominar a
126
relação e subjugar o outro. Neste caso, a diferença de classe entre eles é denunciada e
demarcada de forma irônica pelo namorado de Camila.

Camila: Tanto é que a gota d'água foi no dia que a gente foi no supermercado, eu
fazendo compras e ele começa a tirar as coisas do carrinho. Ai eu falei: parou, eu to
fazendo compra, não tira nada do carrinho, não.(risos) Mas eu é que to pagando.
Não interessa você me mandou fazer compra não tira nada do carrinho. Aí na hora
de pagar começou: isso é luxinho de pobre.
Simone: Ai meu Deus!
Camila: Então da próxima vez que eu fizer compra eu vou comprar luxo de rico, eu
sei fazer compra de rico também. Eu não sei fazer só compra de pobre não. Aí ele
falou: A próxima vez quem vai fazer compras sou eu. E eu pensei comigo: Da
próxima vez, não vai ter próxima vez.

A partir do relato desta cena a coordenadora inicia uma discussão sobre a disputa do poder
nas relações violentas. Neste caso, desenhou-se uma cena de disputa a partir do poder
financeiro e aquisitivo diferenciado entre Camila e o namorado. No caso do namorado de
Camila, ele tem condições financeiras estáveis que lhe permitem pagar a conta das compras,
mas ele quer deixar claro seu posicionamento de mando na relação: eu escolho, eu mando, eu
pago, o poder é meu. Camila pode até acompanhá-lo, mas no final, a última palavra/escolha é
dele.

A coordenadora recorda outras cenas relatadas por Fabíola de momentos do cotidiano como o
de pagar as contas de água, luz e telefone se tornavam tensos e disparadores de violência entre
ela e o marido. Percebe-se, a partir destes exemplos, que as situações simples do dia a dia
tornam-se disputas sobre o poder de mando e sujeição do outro na relação. Ele que vai dar o
dinheiro? Quem vai pagar? Porque eu é que vou? Estes são exemplos do momento de tensão
do ciclo. Alguns casais realizam uma negociação e o ciclo encerra-se, em outros casos o “eu é
que mando” vira um “soco”, ou seja, ocorre a violência física. Camila relata que saiu da
relação justamente por ter percebido que estava em um ciclo de violência com constantes
momentos de tensão/disputa de poder e que havia uma grande chance de que neste
relacionamento o ciclo se fechasse com cenas de violência. Esta foi uma mudança ativa por
parte de Camila que tem uma trajetória afetiva de ciclos de violência crônica

A partir da referência da discussão iniciada sobre poder /violência Fabíola relata que ela é
violenta com seu companheiro e como se sente “um lixo” com isto. Camila diz que já chegou
a esse ponto também. Nos dois casos, a violência era uma forma de mandar no outro e de
fazer valer a opinião a qualquer custo.

127
Convergindo com este sentido da violência Camila pergunta:

Camila: Vem uma pergunta que não cala.


Simone: Aí vem a Camila.
Camila: todos. Eu tive de vários ângulos esta experiência como administrar isto para
não chegar à violência?
Simone: como assim administrar?
Camila: Porque eu tive esta experiência em todos os meus relacionamentos Essa
disputa é constante, só que eu tenho uma personalidade muito forte. Eu quero valer
minha opinião de qualquer jeito. Então, acaba gerando conflito. Será que seria
interessante eu ser igual minha mãe com meu pai?
Simone: Mas você está pegando extremo, passividade total, a gente já conversou
isso.
Fabíola: é.
Simone: O que você acha Fabíola?
Fabíola: tem que ter um pouco de estrutura. Nem mais nem menos, nem ser tão
submissa, ser menos submissa, é, não ser submissa. Não ser submissa. Estar sempre
se respeitando, mas eu agora tô olhando meu querer: é bom pra mim? Eu estou
gostando? Então está bom. Mas se arrumar aí eu dou o grito eu não aceito.
Camila: Porque a gente vai ter que chegar naquele ritmo.
Simone: qual é o ritmo?
Camila: porque a maioria das mulheres que trabalham a vida inteira, têm uma
profissão, são elas e o filho.
Simone: por que só tem essa solução?
Camila: Simone, os homens tá entranhado na cultura deles que eles têm que colocar
a mulher debaixo da sola do sapato deles.
Simone: Você não acha que não tem nenhum homem que não é assim?
Camila: eu acho que só na geração, não é nem na geração do meu filho.
Fabíola: não tem nenhum que vai salvar.
Camila: eu acho que nem a geração do meu filho vai conseguir fazer isso, Simone.
Todo relacionamento que eu tive, eu tive homens assim de diferentes
personalidades.
Simone: eu vou falar com você igual o textinho que eu li, em todos os
relacionamentos quem era a única pessoa que estava lá.
Camila: Pois é Por que será que eu vejo todas as mulheres falando a mesma coisa...
Simone: a questão é assim mesmo.
Camila: vizinha, irmã, tudo. A minha irmã para ter um relacionamento estável com o
marido dela, mas tudo é ele que dita.

Os questionamentos e conclusões de Camila são compreensíveis, mas não definitivos. A


coordenadora questiona Fabíola sobre as colocações de Camila e, é interessante sua resposta,
refletindo sobre até quando uma mulher “poderia” ser submissa em uma relação. Por fim ela
conclui que não se deve ser submissa definitivamente e reafirma o posicionamento como
estratégia adequada. A coordenadora retoma, assim, a questão do posicionamento da mulher
na situação de violência. Camila, por sua vez, agrega à discussão o caráter geracional e
cultural da violência. Percebe-se neste trecho a dinâmica da negociação do sentido da
violência no grupo.

128
Continuando Fabíola diz que se ressente consigo por ter mais uma vez perdido a coragem e
as forças. Após ser questionada pela coordenadora se o alcoolismo do companheiro era a
única desculpa para separar-se ela apresenta outra sequência de situações que a levaram a
repensar sua decisão.

Fabíola: O meu questionamento foi esse, Simone, por que eu agüentei esta situação
tanto tempo, para que? Estava fácil, agora eu vejo com clareza. Era só eu dar um
basta não querer e porque eu não consegui?
Simone: dar um basta quer dizer o que?
Fabíola: quando eu cheguei nessa situação de tomar coragem vou pedir para sair da
escola, vou entrar com o processo de separação e vou retomar o meu negócio. Eu ia
fazer estas três atitudes. Eu vou chutar o pau da barraca e não quero nem saber. Aí
quando eu chego lá na escola começou a me desarmar porque duas semanas antes
ele parou de beber, começou a ficar mais em casa, aí ficou aquela calmaria, sem
brigas, aí eu comecei a perder as forças... (...)
Simone: mas deve ter outra justificativa para não ter separado.
Fabíola: é feliz eu não estou não. Mas eu estou nessa...
Simone: fala com ela Camila.
Fabíola: Aí, agora, eu sempre tenho uma desculpa.
Simone: ela tem uma sequência de desculpa
Fabíola: eu tenho uma sequência de desculpas e no final das contas eu nem sei o que
eu fiz mais. Aí os meus meninos estão tudo encaminhado profissionalmente. A
minha filha tem o emprego dela lá na firma grande o meu menino iniciou o curso
dele no SENAI aí a empresa contratou e tal aí o caçula de 16 anos veio até aqui foi
encaminhado para o estágio. E aí gente e agora?
Camila: e agora está tudo bom que coisa chata. (Risos)
Fabíola: ele parou de beber, financeiramente eu estou ótima, estou até viajando. Aí
tá tudo bem. (Camila ri)
Simone: aí está tudo bem
Fabíola: está tudo bem entre aspas. Aí que começa a confusão eu vou mexer em uma
coisa que está aparentemente arrumada.
Camila: você vai mexer no vespeiro. Vai mexer na colméia.
Simone: a pergunta é: está bom para você se estiver bom para você.
Fabíola: eu vou mexer nos meninos eles não têm estrutura para isso.
Simone: É sempre a mesma história toda mulher fala isso, a gente já conversou isso
aqui, toda mulher, não tem como fugir. Os filhos sempre sofrem com isso, mesmo
casados, depois que tiver neto, isso não tem jeito, aí não adianta projetar, ficar
imaginando...
Fabíola: eu vou arrumar outra confusão.
Camila: eu sei lá eu acho é que você esta adiando o sofrimento, lógico que é uma
idéia extremista, é a mesma coisa assim deu falar: eu tenho câncer e falar ah o
câncer não tá doendo, não. ... Não vou tirar ele agora, não.
Fabíola: dá para agüentar mais um pouco.

A “decisão” de aguentar mais um pouco uma relação violenta, seja por meio de quais forem
as estratégias ou desculpas, retrata um aspecto recorrente no processo de enfrentamento à
violência de gênero. O ciclo se cronifica e toma ares de um câncer que aparenta não ter cura,
mas tratamento. A imagem escolhida por Camila consegue representar bem a cronicidade que
a relação de gênero adquire em algumas relações, bem como a dificuldade para as mulheres
de se tratar. Tanto a conclusão de Fabíola como a imagem apresentada por Camila

129
representam quão dramático pode ser o processo de negociação das mulheres dentro de um
ciclo de violência de gênero.

Simone: É eu acho que a pergunta é essa aí: toda mulher resumindo é isso aí dá pra
agüentar mais um pouco. No final da história a negociação é assim: eu agüento mais
um pouquinho? O mais triste nisso tudo é que, lógico que tem gente que fala
claramente fica mais um pouquinho, as suas mães geralmente falam com vocês.
Igual a mãe da Nina que falou com ela agüenta só mais quatro anos até pagar o (seu
marido) acabar de pagar o carro do seu pai. Mas o pior é quando vocês falam com
vocês: dá para eu sofrer só mais uns três anos. Dá para eu sofrer só mais um ano.
Camila: igual a minha mãe ela sofreu só mais um pouquinho.
Fabíola: mas a minha vida é assim, sempre foi assim
Simone: sempre foi assim?
Fabíola é porque eu vou aguentar vai ser deste jeito, agora eu estou negociando
comigo mesma olha até onde vai a minha loucura. Ah, eu vou aguentar porque eu
vou ter um amante lá, ah eu vou agüentar porque eu vou viajar vou sempre viajando,
vou dando meus pulinhos e vou agüentando assim...
Camila: mas aqui, imagina que isso seja um câncer e que um dia ele vai te doer que
vai te levar para o buraco. Eu tô te falando com extremismo porque eu acho que é
isso mesmo por que a minha mãe foi agüentando mais um pouquinho, por que eu
sou uma mulher pacífica os meus filhos precisam alimentar, os meus filhos precisam
estudar e no final o meu pai morreu e se nós não estivéssemos correndo atrás igual
nós estamos ia ser pior. Ele deixou tudo de bom pra amante dele, amante que virou
esposa. Atualmente, ele deixou tudo para a amante dele e minha mãe se ela bobear
perde até a parte dela nessa casa dela. Ele deixou 150 mil pra mulher e pra filha que
ele tem com ela. (...) é um sofrimento...
Fabíola: é uma pressão maior ainda.

Fabíola apresenta uma série de estratégias que seguem a linha de manutenção da relação
violenta apesar da insatisfação com o companheiro como viajar ou ter um amante. Estas
estratégias, porém não vão ao encontro do questionamento da relação violenta, podem ser
percebidas como paliativos para que se “aguentar mais um pouco” a relação. O exemplo da
mãe de Camila que viveu esta situação por toda a vida confirma a perenidade que o ciclo pode
assumir caso não se adotem estratégias de enfrentamento à violência. Assim, este processo de
negociação entre “perdas e ganhos”, no caso de Fabíola e de outras participantes do grupo, se
resume a mais perdas que ganhos.

Fabíola: ganhos e perdas. De todo jeito são mais perdas. Se você perguntar: eu estou
sempre perdendo.
Simone. Aí que está o problema.
Fabíola: porque emocionalmente é uma perda enorme.
Simone: Então, aí que eu acho que é preocupante.
Camila: eu também negocio...
Fabíola: porque por mais que me vire de um jeito ou de outro que eu negocie de um
jeito ou de outro Eu tenho um avanço assim na minha personalidade, no meu jeito de
ver as coisas, mas eu tô sempre perdendo.
Simone: a sua sensação é que você está sempre perdendo?
Fabíola: é sempre. Perdas emocionais, conflitos, são sempre conflitos,
questionamentos, questionamentos, questionamentos. Isso tá me saturando.
130
Simone: Mas, satura mesmo. Camila concorda também.
Fabíola: e o pior, agora que está acontecendo é que eu tô sentindo raiva de mim. E
eu vou me machucar mais. Eu do jeito que tô, eu vou fazer coisas que vão me
machucar porque eu tô com raiva de mim.
Simone: Isso é uma verdade.
Fabíola: e agora?

Fabíola como sempre apresenta questionamentos totalmente coerentes, mas para os quais não
construímos respostas ainda. Camila, novamente se apropria das definições de Fabíola para
explicar sua situação e apresenta como está negociando consigo mesma atualmente.

Camila: tem 15 dias que eu tô negociando comigo mesma. Colocando tudo na


balança, tudo na balança mesmo. Entendeu? Eu tenho os toques que a Simone me
passou não ficaram perdidos no meu chip, estão sempre lá. A minha vida não está
tão ruim assim, pra eu poder me sujeitar a tanta humilhação, meu filho, tá, o meu
filho tá aqui, na casa do cara, rindo, ele falou que ia assumir o menino, ta comprando
fralda pra ele? Mas eu já tenho minha casa, está lá fechada.
Simone: isso é interessante porque quando a Camila entrou aqui a desculpa dela era
que ela não tinha casa. Agora ela tem a casa, a casa é dela, no nome dela....
Fabíola: e como é que eu saio desse emaranhado?
Simone: do mesmo jeito que você entrou, sozinha (risos).

Utilizando-se do exemplo da estratégia de Fabíola de negociar consigo mesma a coordenadora


busca demonstrar como a mulher tem um papel decisivo no processo de enfrentamento à
violência e Camila reafirma a importância dos toques do Grupo para a elaboração de
estratégias.

Segue-se uma discussão onde Camila reafirma sua decisão de ter se separado do namorado e
sobre os sentimentos que o companheiro de Fabíola lhe desperta. Camila conclui que apesar
de tudo a melhor relação que teve foi com K (outro ex-namorado), pois ela conseguia manejá-
lo melhor. A coordenadora põe em questão a maneira de Camila definir a melhor forma de se
relacionar. Manejar, não seria nestes casos uma forma de mandar, impor, tirar proveito? A
coordenadora pontua a diferença entre relações baseadas no manejo e na negociação e
reafirma o risco da relação acabar se resumindo a um processo de “perdas e ganhos” tanto no
aspecto afetivo como financeiro, principalmente durante um processo de separação.

Fabíola, por sua vez, questiona-se sobre a “confusão” de sentimentos que seu casamento se
tornou, que sentimento afinal ela tem pelo parceiro e ele por ela. Ele fica a adulando e
implorando atenção. Ela por sua vez, mesmo após ele parar de beber sente vontade de bater
nele e, às vezes, tem relações sexuais satisfatórias.

131
Fabíola: Tem horas que eu gosto. Tem hora que eu o acho bonito, eu to te falando,
eu tô tentando. Ah, eu não vou ter coragem de por ele pra fora. Tem hora que eu
tenho vontade. Mas tem hora que eu volto atrás. Que confusão é essa?

Camila diz que o que sente por K. é posse, pois não consegue saber que ele está com outra e
que fica com ele porque ele é bom com seu filho. Mas por fim, ela não sabe definir muito bem
o que ele representa para ela. Atualmente eles estão se encontrando, segundo ela, mais por
causa da criança. A partir desta reaproximação de Camila de seu ex-namorado que também
fora violento com ela, a coordenadora pontua o risco e instabilidade desta situação, visto ter
ocorrido violência nesta relação recentemente.

Simone: Mas, não deixa de... O problema de não falar do C. é por que daqui a pouco
você está. Ele chamou a policia para você também. Acho que tem esse problema,
você esquece muito rápido
Camila: eu não esqueci nada. Tanto é que eu
Simone: Há uns 20 dias atrás estava um inferno, agora acabou tá tudo ótimo. Foi
quando mesmo? Há uns três meses?
Camila: foi em fevereiro (após uma discussão onde houve violência física por parte
dele).

A dúvida sobre os sentimentos que levam à manutenção destas relações violentas e a própria
instabilidade do relacionamento são indicativos dos momentos do ciclo de violência através
do qual as relações violentas se organizam. A coordenadora, a partir do exposto pelas
mulheres, problematiza como esse movimento cíclico, geralmente, é percebido por quem está
fora da relação, inclusive, por (alguns) agentes das instituições da Rede de Enfrentamento à
Violência.

Fabíola: Aí Simone isso cai naquele vai e volta. Me dá raiva que eu lembro o que ele
me fez, aí me dá raiva e vontade de: aí me vem a vontade de separar, eu não vou
perdoar o que ele me fez. Ai eu tenho raiva de mim mesmo por ta perdoando de ta
com ele mais assim, de uma forma mais ampla, satisfatória, mais demorada, com
mais toque, aí eu fico com raiva de mim mesmo, por ta aceitando isso. Ai tem hora
que eu acho: então ta, vou perdoar, eu acho que eu estou perdoando,é melhor para
mim mesma... Mas não to perdoando nada. ...
Simone: o que as pessoas falam das mulheres que apanham? As pessoas que eu falo
inclusive Polícia, vocês vão entender o que eu falei. O que as pessoas não
conseguem entender é isso: como é que vocês esquecem tão rápido? Como é que
vocês, porque Polícia não faz representação? Isso é uma questão séria, não estou
dizendo que é certo ou errado. Porque você vai à Delegacia de Mulheres e eles têm
preguiça de fazer a representação, porque eles sabem que daqui a 15 dias, eles
pensam que daqui a 15 dias, a experiência deles diz que daqui a 15 dias ele vai parar
de beber e ela vai desistir do negócio. Isso é tão sério, que isto trava todo mecanismo
de repressão à violência contra a mulher. Eles partem do pressuposto. Ele chamou a
Polícia em fevereiro para você (Camila), mas agora já passou mesmo então deixa. E
se você tivesse feito representação do C. e agora?
Camila: Eu iria até o final.

132
Simone: Ia até o final com ele morando na sua casa?
Camila: Não, ele não está morando na minha casa. Eu fico com ele, eu fiz a
ocorrência dele
Fabíola: Por que isso acontece?Porque ela se permite?
Simone: A minha pergunta também é essa, é a pergunta de todas as políticas...
Fabíola: Por que a gente não aguenta, é piedade, ele falar manso com a gente, ouvir
uma voz, um elogio, pedido de perdão, uma súplica?
Camila: é comodismo?

Novamente Fabíola pergunta indignada por que a mulher se permite ser violentada, porque
ela agüenta mais um pouquinho. A mulher nesse emaranhado é o corpo violentado e é
também o sujeito incompreendido e julgado por si e pelos outros. Ao focalizar a mulher
sobrevivente à violência nesta análise tenta-se vislumbrar como ela posiciona-se e é
posicionada na sociedade. O tom acusatório é recorrente. Cabe refletir sobre o por quê?

Fabíola: é angustiante demais porque os vizinhos presenciam brigas.


Simone: Ela briga ontem aí chega sábado ela está com o cara.
Fabíola: de mãos dadas. (...)
Camila: a lei séria, Simone.
Fabíola: Ah! Lá, ela é sem vergonha. Um dia ela chama a Polícia pro cara e no outro
dia está de beijo e abraço, mas é angustiante demais para nós. Chama a Polícia para
ele, mas está mostrando socialmente que esta junto com ele.
Camila: mas aí qual que á a minha idéia
Fabíola: é vergonhoso, já teve momentos que eu falei com ele não pega na minha
mão não. Eu não conseguia sair de casa, estava todo mundo vendo que eu estava
junto com ele, que a gente estava morando junto, mas eu não queria que ele pegasse
minha mão em público.
Camila: Sabe como eu acho que podia solucionar isto, Simone? As leis são feitas
para regrar as pessoas, certo. Quando chega ao nível da pessoa procurar a justiça, é
porque está querendo que pare alguma coisa. Então, eu acho assim, a Lei Maria da
Penha, a Delegacia das Mulheres é muito bacana nesse ponto, mas tem que valer que
quando a mulher vai à Delegacia fazer a denúncia ela quer que aquilo pare, ela não
quer separar, mas ela quer que o cara tenha medo de violentá-la, eu acho que é nesse
nível, muitas mulheres...

Considero que este trecho é interessante por três motivos. Primeiro, pelo uso do pronome nós
por Fabíola, o que desindividualiza a sensação de “constrangimento” que ela sente de
permanecer na situação de violência e, segundo, por Camila apontar uma estratégia de
publicização para a situação, bem como de conseguir demonstrar o caráter social/coletivo do
fenômeno. Em terceiro, por iniciar uma discussão que se refere ao que espera uma mulher ao
procurar a Delegacia de Mulheres. A noção de que ao procurar a publicização pela denúncia
da violência ocorrida vincula-se o desejo de separação do casal é questionada. Frente a isso a
coordenadora questiona sobre os objetivos e soluções esperadas pelas mulheres ao se dirigir a
uma instituição policial e qual o papel a ser desempenhado por elas.

133
Simone: você acha que a pergunta é medo, você acha que tem que sentir medo? Será
que o cara tem que sentir é medo, então?
Camila: Sim porque quando você tá a fim de comprar aquele carrão e você não
chega lá na concessionária e pega o carrão à força. Você sabe que vai responder
processo, que você vai ser preso, que é crime. Se a Lei Maria da Penha e se a Polícia
Civil estivessem realmente fazendo a Lei Maria da Penha valer, ele, o cara, na hora
que ele levantasse a mão pra meter a mão na cara da mulher ia pensar: eu vou ser
preso. E parava com aquilo. Agora, o que tá acontecendo: o cara tá ficando sem
vergonha. Eu meti a mão na “oreia” da minha mulher, ela foi fazer uma denúncia
que não deu nada pra mim. É a mesma coisa do povo do tráfico, a Polícia também tá
fazendo tráfico. Pra que eu vou deixar de fazer tráfico? Tá aumentando o tráfico.
Fabíola: é verdade esta explicação faz sentido
Camila: Às vezes a mulher quer ir à Delegacia não é para separar
Fabíola: existem muitas leis que não se exerce.
Simone: aí eu vou fazer o advogado do diabo, sabe o que a Polícia fala? Que não faz
porque você não quer. E o que eu falei. Aí que entra o nó. Tem a lei, mas a gente
fala com ela se ela quer prender o cara, ela chora. ... Mas, aí ele vai apanhar, não
bate nele não. ... Eles falam: ela é sem vergonha mesmo, eu tô querendo prender o
marido dela e ela.
Fabíola concorda: é verdade.
Camila: a lei deveria ter uma ressalva. Crime inafiançável, a partir do momento que
você.
Simone: mas a lei já tem você só pode tirar o seu processo na frente do juiz 20
Camila: então, essa lei esta igual àquelas leis lá do Senado que só fica no papel. Por
que a mulher, eles já sabem, ela vai e volta, vai e volta, por quê? Ela não é safada
não, ela tem uma vida inteira em volta daquele senhor que espancou ela e que neste
momento ela quer que pare tudo, não é que ela é safada. Ela quer que a violência
pare que ele tenha medo de fazer uma segunda vez, talvez ela não queira separar. A
Polícia não tem que ficar: Oh, eu vou prender ele aqui, mas você tem que separar
dele. Está errado! A mulher tem o direito de fazer a escolha dela: eu quero ficar com
esse cara, mas eu quero que ele pare de me bater. Eu quero que ele tenha medo de
me bater e ir pra cadeia. De verdade, mesmo contra a vontade dela. Então, eu acho
que na hora que isso realmente... Igual eu fiz duas denúncias contra o K. Eu acho
que se da primeira vez ele tivesse levado uma coça e dormido uma noite na cadeia,
eu te garanto que na segunda vez ele não teria feito isso comigo.
Simone: você acha que a solução é a Polícia bater no cara?
Camila: Não, eu acho que a solução é a Polícia fazer valer a lei. É crime bater em
mulher, então ela chega lá.
Simone: É uma pergunta que eu faço e que eu gostaria que vocês pensassem
comigo: as mulheres acham que é crime bater em mulher?

A discussão que se seguiu à provocação de Camila sobre o papel das Delegacias de Mulheres
e da Lei Maria da Penha no enfrentamento à violência levou ao questionamento sobre a
legitimação da violência de gênero no âmbito doméstico e familiar como um crime. Quando
questionadas sobre a legitimidade da definição da violência doméstica como crime as
participantes do grupo divergiram em sua opinião.

20
“Art. 16. Nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a
renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da
denúncia e ouvido o Ministério Público” (BRASIL, Lei nº 11.340).

134
Camila: Eu acho que sim. Eu...
Fabíola: eu entendo que não porque eu no meu momento de raiva eu agredi ele
muito, meu marido, ele já saiu com marca de mordida feia de um lado e de outro,
eu já te falei, eu agredi de deixar hematoma ele poderia ter me denunciado. Mas na
hora a minha intenção não era de cometer um crime.
Simone: você não queria matar.
Fabíola: é.
Camila: você acha que quando você chega à cadeia e pergunta pro traficante: se ele
queria causar tanto estrago na vida dos caras que compravam a droga na mão dele?
Ele vai falar que não, eu estava querendo ganhar meu pão. Ele também não tinha
intenção de viciar o cara a, mas como que tem para ele, o que tem é vender a droga
dele ele não está muito interessado se o cara vai morrer de droga não. Eu me
arrependi. Igual a menina que ficou presa comigo lá no dia, assaltando os outros
com estilete perto do Carrefour. Porque você fez isto? Eu não queria fazer isto não.
Simone: então porque ela fez?
Camila: eu acho que é a mesma coisa com a agressão física. Eu não queria bater não.
Então por que você bateu? Ah foi um momento de raiva minha. É crime sim, na hora
que você está num momento seu de raiva, stop eu não posso fazer isso que é crime.
Fabíola: eu quase fiz um crime lá em caca, eu te falei...
Camila: porque você não vai pegar o revólver e dar um tiro no peito do cara?
Fabíola: eu bati nele com minha sandália de salto, deu um galo, imagina se acontece:
ele pode cair bater a cabeça e morrer, acontece.
Camila: seria um crime inafiançável você vai pegar no mínimo 15 anos. (...) Eu acho
que é crime. Eu acho que as pessoas têm que ficar apreensivas de falar assim: eu não
posso fazer isto porque vai me dar problema sério.
Simone: se ela não consegue parar por ela mesma ela vai ter que parar pela
justiça. ... Então, pra gente pensar junto, o cara tinha que ter o mesmo pensamento.
Bati na minha mulher uma vez, mas agora tem uma lei. Tem até um cara (marido de
uma mulher atendida) que falou com os filhos em vocês eu posso bater, mas na sua
mãe não porque tem uma lei.Pode ser que funcione, a lei é pra isso...
Camila: lógico que vai ter situação que o cara não vai respeitar e vai preso, mas se a
maioria respeitar, valeu.

A percepção de que a violência entre os companheiros ocorre por motivações diferentes de


outros tipos de violência e/ou o estreito laço afetivo entre os participantes das cenas violentas
deturpa a caracterização da violência como crime inclusive para as próprias mulheres e
principalmente, quando elas também agridem os companheiros. O que Camila questiona é o
fato de instituições como a Polícia Civil e o Sistema Judiciário também sofrerem desta
‘miopia’.

Camila: eu acho que a Polícia deve partir do princípio de que a mulher teve coragem
de ir lá denunciar. A mulher só tem coragem de ir lá denunciar, por que o negócio
passou dos limites. Eu te garanto que no primeiro tapa na cara ela não denuncia,
Fabíola: isso é mesmo...
Camila: no segundo ela não denuncia, no terceiro murro na cara ela pensa duas
vezes, no quarto murro junto com o tapa na cara, ela vai lá e denuncia....
Fabíola: é como um pedido de socorro desesperadamente é igual quando eu vim
aqui... Ela tirou a queixa, então ela deveria responder por isso também. Você tirou a
queixa então você vai responder junto com seu marido. Por que nós não somos
palhaços pra ficar ouvindo você tirar e colocar, acho que você deveria responder
junto com o homem.
Simone: É uma idéia.

135
Fabíola: é uma idéia ou quem sabe não estar mudando, tipo ao invés de tratar só as
mulheres, tratar com os homens? Na hora de colocar assim: você tem que... Você
tem que sair daqui sabendo, uma vez denunciado, que agora é crime, independente...
Camila: a inspetora ou sei lá o que ela é, ela falou comigo você está fazendo esta
denúncia aqui, mas depois não pode retirar não se você retirar você também vai
responder por isso. Eu falei: eu tenho consciência disso. Até chegar a este ponto que
a gente diz que se sente acuada quando eles viram para a gente e falam você tem
certeza disso. Eu acho que não deveria ter essa pergunta não.
Simone: essa pergunta é horrível. Mas eu estou fazendo estas perguntas é para
entender como é que está esse jogo. Eu faço essas perguntas, Fabíola é para entender
essa disputa entre as instituições, agora virou a Polícia contra as mulheres?
Fabíola: é mesmo.
Simone: as Delegacias contra as mulheres, as mulheres contra a Delegacia? Daqui a
pouco as mulheres contra o Bem-Me-Quero, antes de acontecer eu vou embora...
Camila: não, o Espaço não.
Simone: ninguém esta a cima de tudo, não. O Espaço Bem-Me-Quero é só mais uma
instituição com essas perguntas, porque pergunta é que faz a gente pensar mesmo,
Fabíola.
Camila: eu acho Simone que a divulgação é muito importante.
Simone: mas como fazer a divulgação?
Camila: Por exemplo, no meu caso (retomando) que foi uma violência extrema, eu
acho que o Espaço Bem- Me-Quero tinha que ter o advogado, mas eu acho que o
Espaço Bem-Me-Quero divulgar: uma pessoa que estava no Espaço já fazendo o
acompanhamento há mais de um ano sofreu uma violência dessas. Isso pra mim já
seria, já me sentiria muito feliz, o Espaço Bem-Me-Quero olhou por mim.

Em resposta à discussão sobre as dificuldades institucionais e individuas no enfrentamento à


violência as mulheres apresentam algumas estratégias interessantes, principalmente, por
incluírem o homem na discussão e por apostarem na forma de atendimento dos casos de
violência como um aspecto a ser incentivado. Para exemplificar a importância deste último
aspecto, a coordenadora apresenta o exemplo (conhecido) de um policial civil que estava
indicando para as mulheres que procuravam a DECCM a Igreja como uma solução para
solucionar os conflitos. Fabíola é pontual ao interpretar o perigo de indicações como estas.

Fabíola: aí ajuda a gente mais a perdoar, vai pra igreja, ora, ora, ora. Deus vai dar
um jeito no seu problema. Quer dizer a gente fica naquela.
Simone: eu estou dando o exemplo nesse sentido.
Fabíola: aí você vai ficando...

Percebe-se desta forma como é decisivo o tipo de encaminhamento dado a uma denúncia de
violência. Continuando, Camila reafirma sua opinião sobre a responsabilização da mulher
sobre a sua denúncia e Fabíola aponta para outro aspecto importante do atendimento o repasse
das informações necessárias para a mulher no momento de apresentação de uma queixa.

Camila: porque é uma coisa conflituosa, quanto mais falar mais vai piorar. Então
vão fazer a lei, a mulher procurou você tem que ter consciência que você vai assinar
um termo que se você retirar vai responder junto com o homem. A mulher que
chegar lá vai dizer eu me prontifico a responder junto com ele se eu retirar a queixa.

136
Acabou não tem que ficar: a senhora tem certeza? Isso é uma pergunta idiota. A
pergunta mais idiota que pode existir na face da Terra. Se eu fui à Polícia, a última
pessoa que eu queria chamar a Polícia é para o homem que eu amo. Se eu chamei é
por que ele está passando do limite, entendeu? Não tem que me perguntar se tenho
certeza não.
Fabíola: não tem que me perguntar, não.
Camila: é uma pergunta imbecil (risos). Aí você fica naquele jogo vulnerável, será
que eu...
Simone: vulnerável frente às autoridades, frente aos outros?
Fabíola: é quer dizer eu tenho certeza, quer dizer que não era para eu fazer isso?
Você fica confusa
Camila: essa é a pergunta mais idiota.
Fabíola:não era para eu fazer isto então não, pois a autoridade está me questionando.
Simone: eu concordo
Fabíola: eu acho que não devia ter questionamento da autoridade. Deveria informar
à mulher o que vai acontecer com esse homem que ela denunciou, seja marido, o
agressor, o que vai acontecer, a partir daquele momento que ela denunciou. Porque
às vezes, passa na cabeça da gente assim, que nunca, que é leigo que vai para a
cadeia, que vai ser estuprado, que vai ser isso, vai ser aquilo, às vezes não é assim,
né. Aí a gente fica com dó, com medo...

No trecho acima as mulheres conseguiram apresentar como o momento que se segue à


decisão da mulher de apresentar queixa de uma violência em uma Delegacia é muito delicado
e como perguntas como: “Você tem certeza?” feitas rotineiramente nestes serviços atuam no
sentido de vulnerabilizar a mulher e inicia um ciclo de violência institucional. Fabíola resume
assim a situação:
Fabíola: é uma humilhação. (...) são duas violências que a mulher sofre, quando
chega à autoridade outra agressão. Está sofrendo a violência lá na casa e quando
chega na frente das autoridades é outra violência.

A sessão foi muito produtiva (a despeito do número de participantes) tanto pelos temas
discutidos como pelos questionamentos que as participantes realizaram sobre suas trajetórias
de sobreviventes à violência de gênero tanto pelo viés de superação individual como pela
crítica aos posicionamentos institucionais.

Sessão nº 03
Sessão do Grupo nº 63
Data: 19 de agosto de 2009
Duração: 01 hora e 35 minutos
Participantes: Camila, Elis, Clarice, Graça, Nina, Susana
Coordenação do Grupo: Simone (coordenadora) e Rafaela (observadora)
“Olha o tanto de coisa que eu fiz...” (Elis)

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Na abertura desta sessão, a coordenadora contou que na última sessão compareceram Camila
e Fabíola e que esta tinha sido muito produtiva. Camila estava presente nesta sessão e
confirmou a colocação da coordenadora. Fabíola, apesar de ausente nesta sessão e em
algumas anteriores, é conhecida de algumas participantes.

Nina iniciou dizendo que queria justificar sua falta na sessão passada, apesar de não serem
solicitadas justificativas desta ordem. Depois de Nina as outras participantes que não
compareceram também se justificaram. Nina e Clarice contaram que estavam doentes e que
ficaram internadas (elas relacionaram as doenças com a situação de violência reafirmando o
impacto da violência na saúde das mulheres) e Elis disse que estava viajando (ela já havia me
informadoem um atendimento individual que iria viajar como uma estratégia para “se afastar
da situação da violência”. Susana não teve um motivo específico para não comparecer, mas
disse que estava tudo bem com sua saúde.

Nesta sessão dois movimentos se destacam: o relato de processos de adaptações ativas por
parte das participantes e o movimento da coordenadora de elencar e avaliar com as
participantes a eficácia de algumas estratégias de enfrentamento à violência adotadas por elas.
Para além, no final da sessão, ocorre uma discussão sobre a diferença da apropriação dos
corpos das mulheres e dos homens na sociedade.

Susana relata sua iniciativa de colocar a faixa anunciando que sua casa está à venda. Esta
estratégia foi muito comemorada, pois em sessões anteriores, ela dizia de sua dificuldade de
tomar uma iniciativa para que sua casa fosse vendida mesmo após este acordo ter sido
realizado em sua audiência de conciliação.

Susana: coloquei a faixa (Fala abafada pelas outras)


Simone: vende-se urgente... A gente tinha conversado que você ia...
Susana: Ia tomar a iniciativa e ia colocar a casa pra vender.
Simone: a questão é essa: a iniciativa. Muito bem! Aplausos, palmas para ela.
Mulheres aplaudem e exclamam: Muito bem! Parabéns! Evolução GSM. (Em
referência a uma expressão utilizada em um comercial de carros se referindo a uma
grande potência).
Simone: com seu nome?
Susana: ...na faixa.
Simone: (...) pra quem não sabia nem por onde começar.

Susana está no período de separação, já foi realizada a primeira audiência de conciliação


onde foi acordada divisão de bens mas ainda não foi assinada a separação, assim ela e o “ex-

138
marido” continuam morando na mesma casa. Este período de convivência forçada traz
consigo uma série de dúvidas e de sentimentos que tornam a espera pelo andamento do
processo judicial tensa. Uma série de estratégias foi construída por Susana para este período.
A experiência de Graça com este tipo de situação possibilita que ela ajude Susana.

Simone: e alguém já te ligou? Como é que tá? Susana: de vez em quando aparece
alguém lá pra olhar.
Simone: como é que é? Você já colocou pra vender? Mas ele continua lá? Qual dia é
seu dia mesmo? Que dia você vai lá ao juiz?
Susana dia 03 de setembro e deixa eu te falar, ele tem que ir também?
Simone: mas chegou carta pra ele?
Susana: é isso que eu não sei.
Graça: costuma chegar para você primeiro.
Susana: porque dia 03 está perto.
Graça: a minha chegou uma semana, primeiro.
Simone: não, tem que chegar. Depois que nem o caso dela (Graça) se não chegar
você vai lá e fala, porque depois perde uma audiência, se ele não for depois perde
(Mulheres concordam com a colocação)
Susana: então como é que eu tenho que fazer?
Simone: dá um tempinho... (Mulheres concordam).
Graça: calma recebe uma semana antes... (Mulheres concordam).

Susana relata a cena familiar que a fez tomar a iniciativa de vender a casa. Neste relato chama
atenção a diferença entre o posicionamento do filho e da filha no período de separação, as
estratégias adotadas e sua definição de violência.

Susana: sabe por que agora eu resolvi vender, eu tive iniciativa mesmo, porque teve
um belo dia lá, que chegou meu filho com ele. Lindo né, adoro ver o pai com o filho
junto, é a melhor coisa que tem. Aí chegaram do futebol, chegaram com a camisa do
Cruzeiro. E é difícil eu ficar até tarde fazendo alguma coisa, eu peguei umas coisas
na escolinha e levei lá pra casa pra fazer, aí geralmente onze horas eu tô dormindo
há muito tempo, porque eu faço de tudo pra não encontrar com ele, sabe, eu vou pro
meu quarto assistir televisão e lá eu durmo. Aí chegaram alegres e tal e eu tô lá
quietinha, continuei fazendo minhas coisas. Eles ficam rindo e eu não tenho graça
mais de ficar rindo mais perto dele. Eles estavam rindo do povo feio, gorda com os
peitos na barriga e não sei o que e falou da Célia minha colega. Aí ele falou dela e
minha menina já falou comigo: “mãe, tudo que o pai falar para te ofender, você fica
calada”. Mas tem hora que a gente não agüenta, não.
Mulher concorda: é.
Susana: Aí na hora que ele falou da minha amiga me atingiu. Aí eu falei com ele
“não fala da Célia não”. Aí o meu menino, riu.... No caso aí, igual tô te falando, foi
aonde meu menino falou “oh mãe, mas a senhora corta o barato da gente. A gente
chegou tudo feliz e alegre, não sei o quê”. Aí eu peguei e fiquei calada. E é a
segunda vez que me chama a atenção perto dele. Aí ele ficou assim “mãe não me
ignora não, fala comigo, olha pra mim, tá dando uma de coitadinha”. E já é a
segunda vez que ele faz isso, me xingar perto dele. Quer dizer por que ele não
manda o pai deles ficar calado, na hora que ele falou da minha amiga? Então o que
eu pensei? Falei com minha menina, se eu continuar do jeito que eu estou aqui, eu tô
com sessenta, setenta anos, fazendo as coisas, aguentando humilhação, tolerando,
ouvindo desaforo ainda.

Apesar das estratégias privadas adotadas por Susana para evitar contato e conversas com o
139
“ex-companheiro”, o fato de estarem na mesma casa possibilita que cenas como estas ocorram
repetidamente. Neste caso, Susana se sentiu violentada tanto pela colocação em relação à
amiga (que se estende a todas as mulheres gordas), pela falta de apoio do filho, mas
principalmente, pela certeza de que caso não tomasse uma iniciativa a violência permaneceria.

A discussão que se seguiu ao relato de Susana ilustra a cristalização da identidade da


mulher/mãe através da imagem da Cartilha.

Susana: meu filho é rapaz, tem 21 anos, porque homem defende o pai, eles não
enxergam igual domingo, estava lá com a namorada. Fiz uma lasanha beleza pra
eles. Minha menina também estava com o namorado. Tinha uma sobremesa bacana,
mas eles não vêem isso, sabe o que eles enxergam principalmente rapaz, sabe o quê
eles enxergam? Eles enxergam que o pai está dentro da casa, que o papai assiste
jogo.
Simone: o pai é legal.
Susana: não é? O pai é legal. (Mulheres concordam). Porque é assim Simone?
Simone: é. Porque é assim Camila?
Camila: por causa da cartilha... Você lembra da cartilha. (muitos comentários das
mulheres juntos)
Simone: você não está fazendo nada além da sua obrigação e o pai está fazendo uma
coisa...
Camila: uma dádiva divina... o pai se deu ao trabalho de ir ao jogo comigo...

O que chama a atenção é a discrepância de exigências por parte dos filhos do desempenho do
papel de mãe e do de pai. O par antagônico formado aqui é mãe fortaleza e pai doente levando
a um acréscimo de exigências no papel de Susana que também tem que se preocupar com o
cuidado da saúde do marido.

Susana: sabe o que é que é, é porque ele tem reumatismo (o “ex-marido”), não
consegue abrir uma garrafa de café, eu é que carregava ele, eu dava banho nele...
Camila: mas é por isso.
Elis: mas eles têm que tratar ele bem então...
Simone: meu pai é doente e a minha mãe é gente boa...
Camila: minha mãe é uma fortaleza, então pra ela fazer essas obrigações é fichinha,
agora meu pai tem reumatismo, é todo fudido e vai assistir ao jogo do Cruzeiro
comigo.
Clarice ri.
Camila: Ele é o máximo. (Mulheres concordam).

A conclusão de Susana é que sair de casa é a melhor solução, além disso, ela pretende mudar
de cidade após a separação e a divisão de bens serem concluídas. Uma de suas grandes
preocupações é com os filhos (já adultos) durante e após o processo de separação. Ela relata
que há uma diferença muito nítida entre o posicionamento dos filhos. O filho homem apóia o
pai, mas não deseja ficar longe dos cuidados maternos e a filha mulher “prefere” se ausentar
140
da discussão, mas apóia a mãe em suas estratégias privadas, em um posicionamento passivo
frente à violência. Susana diz sentir ódio e vontade de chorar por causa do posicionamento do
filho homem. Elis apresenta sua situação divergente da de Susana, diz que em sua casa é
diferente, pois o seu filho homem a apóia e nem conversa com o pai por causa da situação dele
com a mãe. É interessante esta colocação de Elis sobre sue filho homem para demonstrar
como não é, isoladamente, o fato de ser homem ou mulher que define as opiniões dos filhos.

Susana e Elis continuam comparando suas situações e Susana diz que talvez o que acontece
agora seja porque seus filhos não ficaram sabendo da traição de seu marido com sua irmã que
ocorreu quando eles eram muito pequenos. Elis diz que os filhos dela sempre souberam das
inúmeras traições do pai, inclusive com uma de suas primas.

A coordenadora, a partir destas discussões, conclui com as participantes que o apoio da


família é um diferencial, confirmando a importância do apoio da família (principalmente dos
filhos) à mulher sobrevivente à violência de gênero.

Simone: só pra gente entender. Quer dizer que faz diferença, igual você falou que
sua família te apoiar, igual suas filhas, isso faz diferença na hora de tomar as
decisões. É isso que a gente tem que saber. Faz diferença?
Elis: muito, nossa, você me viu aqui nos primeiros dias como é que eu estava. Hoje
não, porque os meninos mesmo falam “mãezinha, a senhora não merece não,
homem que trái, homem que fica aprontando, a senhora não tem que aguentar isso
do paizinho”.

Juntamente com o apoio familiar as mulheres apresentaram o atendimento psicológico, o


apoio institucional do Espaço Bem-Me-Quero e a importância de um apoio espiritual através
de alguma religião como estratégias frente à violência. Estas foram elencadas uma após a
outra, permeadas por relatos de mudanças nos posicionamentos no ciclo de violência.

Simone: mas aqui só para continuar... Além da família, todo mundo já falou um
pouco da família. A família, os filhos, mãe, pai, é importante esse apoio. Além desse
apoio o que mais vocês conseguem pensar que ajudou vocês, de alguma forma. Não
é que resolveu o problema, mas pelo menos dá uma empurrada pra frente, que deu
uma ajudada, além da família.
Clarice: o atendimento psicológico é muito importante, porque se a gente não tivesse
um (risos) não tem jeito, igual a mim, eu tava perdida assim de tudo, entendeu? E
agora eu cheguei do hospital, ele tinha tomado conta do quarto todo, tava dormindo
na cama de casal.
Graça concorda com Clarice:
Graça: a terapia ajuda muito. A última vez que minha mãe teve aqui eu tava muito
deprimida.
Simone: você até chorou...

141
Graça: eu deprimi muito. E agora ela teve aqui de novo, sabe.
Simone: toda vez que a sua mãe vem dá uma balançada.
Graça: só que dessa vez eu vou fazer diferente. Eu contei minha história pra ela,
porque “a benção” (o marido) tá achando que eu quero voltar pra ele, porque eu não
to falando em separar mais....
Simone: Mas o que foi que a sua mãe te falou?
Graça: Aí eu contei essa história pra mãe e falei o seguinte, escuta aqui ele não tem
nada a ver com a minha vida mesmo, não tem nada a ver com o sentimento dele
mesmo. Eu não sei o que vai acontecer comigo, se ele arrumar outra pessoa, eu não
tenho nada a ver e eu não vou dizer pra vocês que eu não arrumo.
Camila: aí já mudou.
Simone: que você falou?
Camila: você já mudou.
Graça: eu falei assim eu não vou dizer que eu não arrumo outra pessoa e eu não sei o
que vai acontecer, mas se eu tiver que arrumar.
Camila imitando Graça: depois de separada, eu não quero arrumar ninguém, eu
quero ficar sozinha...
Graça: Mas aí minha mãe não falou nada. Mas Graça, ficar sozinha é muito ruim.
Mulheres comentam juntas.
Simone: a sua mãe era contra você ter alguém a questão é toda essa,
terminantemente contra...
Graça: ela não aceita, eu ter outra pessoa, porque é pecado eu arrumar outra pessoa.
Simone: mas você estava falando da terapia e que mais?
Graça: eu acho assim porque eu venho enfrentando ela. (silêncio do grupo). Outra
coisa eu aprendi também, as pedras que as pessoas jogam na gente, é com elas que
vou construir meu castelo. (Silêncio do grupo)
Susana: É isso aí.

Susana apresenta o apoio espiritual como outra força no processo de enfrentamento à


violência e também confirma a validade da participação no grupo.

Elis: porque essa semana eu estou ouvindo muito o Padre Marcelo, que fala sobre
traição essa semana ele falou. (As mulheres se interessam pelo assunto e se voltam
para ela).
Simone: O que o Padre Marcelo fala sobre isso?
Elis: não, ele faz as orações, as pessoas mandam, escreve pra ele, falando que foi
traído, contam casos e tem casos que é pior que o meu, tem gente que cai na
bebedeira, tem gente que cai no vício da droga por causa de separação.
Susana: é
Elis: Então, tem cada caso, sabe. Tem gente que muitas vezes não pede ajuda de
ninguém e ajuda é muito importante.
Graça: é muito importante.
Todas concordam.
Elis: aqui, nossa, mas a D. e a M. pularam de alegria. Ontem mesmo a M. ligou
“mãezinha a senhora ta indo amanhã?” (na sessão do grupo). Falei “tô, tô indo”. Lá
em São Paulo eu estava lembrando de vocês eu tava nesse horário na Igreja da Sé.
Simone: bom que você não se esqueceu de nós.
Elis: Eu estava na igreja da sé nessa hora, a Igreja da Sé é muito linda, lá em SP, e
eu tava na hora fazendo minhas orações e lembrei-me de vocês aqui. Então, isso
ajuda.
Simone: então você acha que a igreja ajuda?
Elis: ajuda muito, muito. Se a gente não tiver Deus menina, independente de sua
religião. Porque eu sou católica, mas a igreja católica,
Susana: tem que procurar né?
Elis: tem. Se a gente não tiver Deus...

142
Susana declara que, no seu caso, o Espaço Bem-Me- Quero fez a diferença.

Susana: eu, por exemplo, não tenho família aqui. Minhas irmãs, minha mãe tudo lá
em Sete Lagoas. Então o que me ajudou mesmo foi aqui, o Bem- Me- Quero. Mas
mesmo assim a D. minha colega, que trabalha lá na escolinha que me indicou.

Convergindo com o tema desenvolvido na sessão, Camila relata que também agiu diferente
em seu ciclo no último fim de semana. Apesar de ter saído com C. ela diz que pelo menos,
conseguiu parar a sequência do ciclo, não permitindo que após uma cena de violência ele
retornasse com ela para sua casa. Chamam atenção neste relato: as estratégias que Camila
adotou, sua iniciativa e percepção do movimento do ciclo durante os acontecimentos e a
discordância, por parte das outras participantes, de alguns comportamentos de Camila.

Camila conta que ela e K. foram a uma festa familiar e que, percebendo o aumento da tensão
entre eles, se posicionou alertando-o para que ele não continuasse com insinuações sobre ela.
Em sessões anteriores, Camila apresentou uma longa lista de cenas de violência por parte de
K. em festas familiares/rua, quando ele bebia. Nestes episódios, muitas vezes, ela também era
agressiva com ele. Assim, temendo por uma nova situação de violência em público, ela
decidiu ir embora da festa e ele a acompanhou em seu carro. Durante o trajeto a situação ficou
mais tensa com. K. continuando as provocações, xingando-a e falando palavrões. Camila
tentou novamente negociar para que ele parasse e ele manteve o comportamento. A partir
disto, ela pediu para ele sair do carro e recebeu nova negativa por parte de K. Por fim, ela
decidiu procurar um policial para que a ajudasse a retirar K. do carro. A reação de K. foi de
intimidá-la dizendo que “se bobear você é que vai presa, já tem a ficha suja” (referindo-se à
prisão irregular de Camila).

Camila: Aí ele foi me enfezando, me enfezando, começou a me xingar, falar


palavrão. Aí eu disse: desce do carro, parei o carro e falei desce do carro. Eu não
vou descer não. Eu falei: dane-se, desce do carro, pega um ônibus e some da minha
reta. Aí ele: eu não vou não. Então eu vou parar uma viatura e vou pedir eles pra te
convidar pra sair do carro porque na minha casa você não pisa hoje. “Você não é
mulher pra fazer isso...”. (Susana comenta: Nossa). Aí volta aquela ladainha. Aí eu
rodei Betim inteiro, quase duas horas, procurando uma viatura
Clarice: Ai.
Camila: e nada de viatura, nenhuma viatura.
Simone: Camila que hora que você vai parar?
Clarice: o seu mau é esse, você falar, você tem que fazer calada.
Camila Aí eu falei K. desce do carro, o meu filho esta dormindo eu preciso levar ele
para tomar banho. Eu não desço, eu não fiz nada com você, me xingou toda, falou
palavrão comigo...
Clarice: eles nunca fazem nada

143
Camila: eu não fiz nada. Aí eu fui, parei lá na Delegacia de Mulheres. Aí tinha uma
viatura lá, um cara lá...
Clarice: uma hora da manhã?
Camila: Não, eu fiquei quase duas horas, eu saí da casa da minha prima era seis e
meia e fiquei rodando quase até dez horas da noite. Esse ciclo todo até dez horas da
noite.
Susana exclama: quatro horas atrás da Polícia!
Camila: e o outro me xingando, falando palavrão, pelo menos eu consegui não levar
ele pra minha casa.
Simone: qual o custo benefício disso Camila?
Camila: o custo benefício foi que eu consegui não levar ele para minha casa.
Simone: isso eu concordo, mas porque ir com ele para a festa?
Camila: foi isso que minha mãe falou comigo...
Simone: o ciclo Camila, tem que ser antes dele começar...
Camila: não é, mas aí...
Simone: não, eu estou concordando com o que você fez.
Camila: ... é que eu não levei ele para a minha casa, porque se ele fosse pra minha
casa, a gente ia discutir, nós dois ia se atracar um com o outro. (Mulheres comentam
muito).
Simone: aí eu concordo, concordo plenamente.
Camila: aí eu fui pedir os policiais para tirar ele do carro.
Simone: eles foram legaizinhos.
Camila: eles foram: Ai meu Deus do céu, hoje é hoje.
Simone: ele falou isso?
Camila: ai meu Deus, porque tinha outro casal brigando, porque a menina não queria
(risos) acho que ele tava com ciúme dela e ela tava lá na Delegacia pra falar pra ele
não ter ciúme dela. (Mulheres exclamam). Aí eu cheguei lá (Mulheres falam.). Oh
meu amigo, o senhor está alcoolizado, vai pra casa descansar, amanhã vocês
conversam. Aí ele, baixinho, eu não fiz nada com ela, (risos) ela não quer que eu
vou pra casa dela. (Risos de Clarice). Aí eu olhei assim pra eles, fiz assim pra eles.
Aí eles: não, desce do carro, por favor, e vai embora pra sua casa.

O que se problematiza em cenas como esta é a postura do Policial Civil frente a uma situação
de violência entre um casal e, ao mesmo tempo, a dificuldade da mulher para fazer valer sua
decisão sem esta ajuda externa. Estes são os nós que as mulheres sobreviventes à violência de
gênero têm que desatar rotineiramente.

Quando questionadas sobre este relato de Camila as participantes divergem de alguns


comportamentos de Camila: como o de sair com um “ex-companheiro” e de antecipar para ele
suas estratégias. Camila é questionada (como na sessão anterior) sobre o sentimento que a
leva a permanecer nesta relação violenta. Ela afirma não ser amor, talvez posse. As mulheres
também discordam deste motivo para sustentar uma relação. Elis, por sua vez, fala
abertamente ainda ser apaixonada por seu “ex-companheiro” e diz que está mudando, se
acostumando a ficar sem ele, a não esperá-lo chegar depois do serviço. Ela conclui que o que
ela tem é costume depois de trinta e nove anos de relacionamento.

Elis, Clarice, Susana e Graça continuam a discussão sobre a relação no período de separação

144
falando sobre manutenção de algumas atividades domésticas neste momento. Elas dizem que
continuam exercendo-as e que os “ex-companheiros”, assim, continuam desfrutando das
comodidades do casamento, como a elaboração do almoço e jantar. A necessidade da
manutenção do status quo doméstico (indiferente das ocorrências de violência e das
ocupações extras fora do lar das mulheres) faz com que os membros da família reajam
imediatamente no sentido de que tudo permaneça como antes, inclusive a mulher.

Clarice: agora eu não faço comida, não faço janta, não faço almoço, eu estou liberta!
Susana: eu faço comida lá em casa só por causa da marmita da minha menina.
Clarice: eu? Nem marmita de menina, (Mulheres falam juntas) se quiser ela faz...
Elis: eu no meio de semana eu faço. Agora marmita eu mando pra ele também,
porque eu tenho que fazer comida pra menina de 15 anos que vai pra aula. Aí como
ela já vai pra aula, eu pego e arrumo a marmita e falo deixa lá pro seu pai.

Em mais uma situação percebe-se que as sobreviventes adotam estratégias diferentes durante
o processo de enfrentamento à violência e que o confronto de opiniões no grupo ocorre
naturalmente, em um processo positivo para a dinâmica do Grupo Operativo.

Graça solicita a palavra para fazer uma pergunta. O assunto é, novamente, a relação dos pais
com os filhos, como apresentado por Susana, no início da sessão.

Graça: Simone me deixa só fazer uma perguntinha, porque que o filho, igual, por
exemplo, o meu fez 12 anos, tudo ele vem falar comigo, se é pedir dinheiro ele vem
falar comigo. Às vezes saiu e fez compra, oh mãe você compra tal coisa assim. Meu
pai comprou o negócio que eu estava querendo aqui à tarde. Meu filho pergunta o
seu pai. Porque ele vem a mim?
Simone: você sabe o porquê, tá careca de saber. (risos)
Graça: tudo sou eu, sabe, até uma coisinha que ele queria comprar e estava junto do
pai dele. Oh mãe, meu pai comprou aquilo pra mim, que eu pedi? Você tem que
perguntar pro seu pai.
Simone: você tem que ensinar ele a perguntar. O porquê você já sabe.
Graça: mas tudo é pra mim, tudo que ele quer é comigo, ele não fala nada com o pai
dele.
Simone: mas ele foi criado assim, agora vai mudar depois de doze anos num plim?
Graça: eu que o criei assim?
Simone: eu não fui. Foi você Camila?
Camila: a primeira vez que você veio no grupo você virou e falou assim: Eu que
tenho que tomar a frente de tudo, eu indico tudo. Até a rua que ele entra que ele sai
com o carro.
Simone: quem o pai do...
Camila: é. Ele aprendeu.
Graça: que ele é dependente. (muitos comentários das mulheres).
Simone: então, o importante é que ainda está em tempo.
Graça: se o pai fica com o dinheiro, porque que tem que pedir dinheiro à mãe, não
sou eu não? (Mulheres falam do assunto baixinho).
Susana: é minha filha, mas tudo é a mãe.
Simone: mas criou o filho assim.
Susana: é a mãe que criou com aquele jeitinho assim

145
Simone: pergunta para o seu pai, pergunta para o seu pai tem que mandar perguntar,
ainda mais que já tem doze anos, ele já pode realmente perguntar.

Clarice também segue esta linha de ação. Mesmo em seu caso onde o filho nunca conviveu
com o pai, ela considera que seja importante o posicionamento da mãe no sentido de
apresentar ao filho seus direitos e também se preocupa com o impacto da violência sobre seu
filho, tema reiteradamente discutido e que desperta o interesse de todas.

Clarice: mas assim o de 12 ele fica revoltado e ele responde.


Susana: sempre tem um né?
Clarice: e ele responde, ele não agüenta, ele fala: mãe que canalha! Tá aqui dentro
de casa, tá comendo, tá bebendo e ainda fica enchendo o raio do saco.
Susana: é dureza né?
Clarice: Entendeu? Aí eu falo meu filho, deixa pra lá, sabe. Foi ele que foi pro
hospital comigo, esse de 12 anos.
Simone: esse de 12 anos é o cara.
Clarice: ele que me levou pro hospital, ficou comigo lá até sair a vaga da internação.
Simone: ele tem 12 anos, ele é criança, ele não é adulto (...). Clarice e Susana
concordam comigo
Clarice: 12 anos, ele não teve, eu falo que ele não teve infância. Isso assim é o que
mais me entristece, porque eu queria que... (Susana concorda sempre com ela).
Susana: por uma parte é boa por outra já é ruim.
Clarice: ele não teve infância, ele sofre porque o pai dele não dá a mínima, não dá
atenção, não leva ele pra passear, entendeu? Então, ele sofre dia dos pais agora, ele
chegou pra mim e falou assim: pois é né mãe, eu não tenho nem um pai pra poder
dar presente.... Aí outro dia eu peguei e falei com ele assim, qualquer dia nós vamos
à Praça do Povo e nós vamos chegar e falar assim: atenção J. H., o pai dele é dono
da imobiliária, você está em falta com seu filho (risos). Aí ele falou assim oh mãe eu
posso fazer isso? Claro meu filho, você tem todo o direito de fazer isso, ele não é
seu pai? Uai!
Susana: agora mudando de assunto eu não acredito que existe amor entre homem e
mulher não.
Simone: essa desiludiu de tudo, desiludiu total. (Clarice ri).
Elis: eu acho também, eu acho também. O meu...
Susana: é costume.
Susana: amor é Deus, pai, mãe e os filhos.
Elis: mais é mãe. (...)
Susana: sabe aquele Antônio Roberto, sábado mesmo ele estava falando, do pedaço
da laranja, como é que é alma gêmea...
Clarice: não existe isso não. (Muitas falas juntas)
Simone: o quê o Antônio Roberto fala?
Graça: Mas o Antônio Roberto fala que mulher faz sexo porque quer carinho...

É interessante que a partir da discussão sobre a relação com os filhos Susana queira retornar
ao assunto sobre os sentimentos da mulher na relação. Em uma espécie de conclusão, ela
apresenta uma sequência de pensamento que afirma o amor das mães aos filhos como
verdadeiro em contraposição ao amor de pai, a partir do desempenho diferenciado destes
papéis.

146
A dinamicidade e acolhida do grupo é evidenciada no trecho seguinte da sessão em que a
coordenadora e as participantes se voltam para Nina que (sempre é muito participativa)
estava calada e com uma expressão muito triste. Também é muito interessante a imagem que
Camila utiliza para definir a situação da mulher quando está se sentindo “mau” –“mangue”.

Simone: Nina você não quer falar porque está triste, está doente, está de mal da
gente, o quê que foi?
Nina: tô morta. (...)
Graça: A gente tem recaída, é normal. Tem que desabafar, para mostrar que tá
lutando.
Elis: você lembra aquele dia que eu vi você aqui de manha, aquele dia eu estava mal
né?
Simone: antes de viajar né,
Elis: é antes de eu ir para a casa das minhas filhas.
Simone: não, tá mal é normal.
Camila É o primeiro passo pra gente sair da nossa, do nosso, como é que fala? Como
é que chama aquele negócio do... (Simone: lá vem ela com as idéias) do nosso
mangue! Mangue não é um local cheio de lama, cheio de tudo?
Susana: é que atola... Vai atolando.
Simone: qual é o primeiro passo Camila?
Camila: É a gente não sentir dó da gente mesmo.
Susana: isso mesmo!
Camila: o textinho da vítima é claro com relação a isso. A gente não sentir dó,
quando a gente se sentir fraca, a gente tem que ressurgir das cinzas. Opa! Eu sou a
mulher maravilha.
Clarice: rainha maravilha!

Retomando a sequência de apresentação e avaliação de estratégias, Elis reafirma a validade de


busca de apoio espiritual, através de um padre para conversar, ela também indica a
participação em cursos profissionalizantes. Graça concorda com Elis e diz como está fazendo
bem para ela a participação em reuniões de movimentos sociais e políticos. Elas relatam como
a adoção destas estratégias tem ajudado-as no período de separação.

Elis: eu fico sábado o dia inteiro lá no curso. É sábado de manhã, começa oito e vai
até quatro horas da tarde.
Susana: oh, que bom! Faz falta, né...
Graça: eu tô pegando o ônibus e tô adorando. (Falam juntas)
Simone: você tá gostando de fazer?
Graça: ah, eu tô gostando, amo. É uma maneira de sair da rotina sabe. É muito bom,
sabe? É um ambiente muito bom, sabe.
Elis: o que?
Simone: ela está participando de todo o movimento político de Contagem.
Graça: mas é muito bom, muito bom. Eu fiz parte da Conferência Municipal de
Assistência Social, nós ficamos um dia todo no SENAI, no SESC/SENAI, tava
ótimo viu!
Camila: você se achou?
Graça: eu acho bom, aquela mulher que ficava muito ali, embora isso esteja
incomodando demais.
Simone: é claro.
Graça: meu filho até falou, mas, eu não estou importando muito com isso não. Eu
estou fazendo uma coisa que eu gosto eu realmente.
147
Simone: Como é que seu filho falou com você?
Graça: ah mãe, agora não estou tendo mãe mais não...
Camila: é porque eu fui acostumada
Simone: é porque está assustando porque é uma coisa diferente...
Graça: enquanto, como se diz, eu não estiver trabalhando fora e puder fazer uma
coisa útil, eu estou fazendo, eu gostei disso...
Mulher: deve ser porque ele está acostumado a chegar a casa e achar a mãe lá em
casa.
Clarice: ele quer a mamãe em casa. (falam juntas concordando)
Simone: fazendo lasanha.
Camila: lasanha boa.
Simone: salada de frutas.

Graça tenta continuar explicando que seu filho queria sair para um local e ela para outro, mas
começa uma série de comentários que a interrompem. Elis diz no meio do tumulto “tudo que
mulher faz está errado mesmo, homem nunca está errado”. Susana “pega um gancho” neste
comentário e apresenta o exemplo de um personagem da novela das oito que após ser traído é
aconselhado pelo amigo a fazer o mesmo, reafirmando as diferenças de posicionamentos e
lugares para homens e mulheres na sociedade.

A coordenadora faz um resumo sobre o que foi apresentado até agora pelas participantes

Simone: mas eu não tô entendendo, quando vocês fazem essas coisas assim. Vocês
falaram da família, falaram do atendimento psicológico, aí eu posso juntar aqui, por
exemplo, quando vocês estão assistindo uma novela, quando vocês estão assistindo
um filme, quando estão lendo um livro, e quando vocês estão em um movimento,
participando de uma coisa coletiva, fez um curso e tal. Isso também ajuda. Eu quero
entender isso.
Graça: ah, ajuda. É muito mais gostoso fazer o que você gosta.
Elis: Ficar dentro de casa não dá. Quem tá com problema assim igual eu passei, tô
falando pra Nina para ela arrumar uma coisa pra fazer. A Nina está precisando fazer
alguma coisa.
Graça: que nem eu!
Elis: a Nina não tá fazendo nada.
Camila: o provérbio diz mente vazia ocupação pro diabo.
Susana: e não é verdade?

Nina resolve participar da discussão apresentando a idéia de oferecimento de cursos


ministrados pelas próprias participantes do grupo. Ela, inclusive, se oferece para ensinar
Photo Shop e lembra que a Prefeitura tem um Projeto de Inclusão Digital, que poderia
oferecer cursos de informática para as mulheres do Espaço Bem- Me-Quero. Ela fala da
importância da profissionalização para as mulheres sobreviventes à violência como uma
forma de enfrentar as dificuldades financeiras que são apontadas por muitas participantes
como o motivo para permanecerem por mais tempo no ciclo de violência. Ela cita como
exemplo a personagem do filme “Dias e Noites” que dependia financeiramente dos

148
companheiros. Esta proposta foi bem acolhida pelas participantes. Graça que já esta há mais
tempo no grupo lembra que já foi apresentado um projeto de oferecimento de cursos pela
própria instituição. A coordenadora confirma a existência da proposta e diz que já foi criado
um projeto para ser implementado em 2010. Ela também endossa a proposta de Nina e
reafirma a importância de que as mulheres tragam idéias como estas para o grupo.

Continuando Nina desabafa o motivo de seu silêncio e faz também uma provocação sobre a
eficiência do caráter terapêutico do Grupo. Frente a isto, as outras participantes divergem e
apontam para a eficiência da participação no grupo juntamente com a adoção de várias outras
estratégias. A coordenadora concorda com as mulheres sobre a importância de participação no
grupo como mais uma estratégia a ser adotada.

Nina: meu ex está me aporrinhando tanto, que eu tô preferindo nem falar pra não
chorar mais. Então, se a gente ficar falando aqui batendo toda quarta-feira na mesma
tecla, (Susana concorda) toda quarta eu saio daqui ou chorando ou rindo
Camila: mas isso faz parte, eu e ela, tem um ano que nós estamos aqui. Um ano e...
Graça: tem mais. Eu entrei em maio (fazem as contas)
Nina: mas tem mais coisas né...
Simone: é aquela coisa, a terapia é uma das coisas, eu tenho muito claro na minha
cabeça e eu acho que vocês também têm a terapia não é a única coisa que você faz
pra melhorar. (Nina: com certeza.) A terapia é mais uma coisa.
Elis: olha o tanto de coisa que eu fiz.
Simone: é viajar, é sair, é encontrar com a família, a terapia é mais uma coisa...
Clarice: cada santo com o seu dia, porque não adianta nada você não chorar aqui e
chegar em casa você desabar.
Graça: eu acho importante, o que a Simone fala, dá vontade de falar, fala, dá
vontade de chorar, chora, desabafa. Isso é muito importante, se não você fica
segurando e isso fica te fazendo mal. Se você sente que a fase de chorar passou,
então vamos para a outra fase.
Nina: exatamente.

Camila apresenta mais uma imagem para ilustrar esta fase de melhoras e recaídas do processo
terapêutico - “convalescença” e apresenta o Grupo como um lugar indicado para vivenciar a
convalescença e se recuperar dos impactos do ciclo. Esta é uma imagem interessante por
reforçar o apoio e acolhida às sobreviventes à violência de gênero em sua trajetória de
enfrentamento à violência e também como indicativo de apropriação da proposta do Grupo
pelas participantes.

Camila: ah, eu penso assim a gente tem que dar tempo pra gente. É igual quando a
gente está num momento de convalescença (risos), você tem aquele momento que
você tem que dar tempo pro seu organismo se recuperar, entendeu? (Mulher
concorda) Então é a mesma coisa quando a gente sofre uma desilusão muito forte,
eu acho que o nosso organismo fica debilitado, então eu acho que a gente tem que
dar tempo pra gente mesmo... Quando você tá sentindo aquela fadiga, aquele

149
cansaço, aquele mal-estar, aquela falta, aquela vontade de que um caminhão passe
em cima de você e acaba com tudo. Aí você fala assim, gente vou parar um pouco e
vou deixar meu organismo recuperar, pra daí a pouco eu consegui ressurgir das
cinzas e dar a volta por cima. Então, se a gente ficar afobada, eu já tive muito isso de
ficar afobada, gente eu tenho que parar de chorar, eu tenho que parar de chorar, eu
tenho que parar de chorar, entendeu? (Risos) Eu tenho, eu aprendi a dar tempo pra
mim mesmo, hoje eu não choro mais, hoje eu até me divirto. E olha que a minha
vida tá uma loucura, mas eu não tô mais deixando meu organismo sofrer tanto igual
eu deixava, porque eu dei um tempo pra ele respirar e chegar nesse nível. Não tô
curada não, mas tô aprendendo a manejar mais pra não ficar sobrecarregada...
Simone: então eu acho que é por aí mesmo, sabe Nina, chorar, não tem jeito de não
chorar, a gente chora mesmo (...) não existe um horário pra chorar...
Clarice: cada um tem as suas coisas, né? Ela preferia que o marido tivesse e eu tô
doida pro meu sair. (Risos de Susana).
Elis: eu queria que se o meu não tivesse problema eu queria que o meu ficasse
também sabe, eu acho que o casamento, sabe, que o casamento está dando muito
problema desde o mês passado.

A acolhida de trajetórias diferenciadas da maioria, como a de Nina e Elis, que relatam


continuarem apaixonadas por seus companheiros e não desejarem a separação ou a saída deles
de casa é muito importante para a heterogeneidade no grupo, potencializadora da
operatividade grupal. Nina e Elis não mudaram seus objetivos ou sentimentos, mas estão se
apropriando da discussão sobre o enfrentamento à violência e de seus direitos.

Elis, por exemplo, após décadas de traições e violência chamou a Polícia para o companheiro
após uma cena de violência. O chamado não foi atendido, mas, neste caso, a novidade da
estratégia fez efeito, o companheiro fugiu e ficou com medo. Ela relata que os vizinhos e
alguns familiares a pressionaram por causa desta atitude, mas ela se manteve firme (pelo
menos com ele) não relatando que após ele ter fugido a Polícia não havia comparecido e
reafirmando que realmente ela não o queria em casa da forma que estava. Ela conta que
chorou e ficou nervosa depois disto tudo, mas há de se valorizar sua iniciativa.

A coordenadora retomou com as participantes a importância da participação no grupo devido


seu caráter terapêutico e também pela proposta de aprender a pensar coletivamente. As
participantes concordam com a coordenadora e começam a dar exemplos de como mulheres
de suas famílias sofreram impactos em sua saúde física e psíquica por causa de anos de
violência de gênero. Susana relata que sua mãe está com Mal de Parkinson e Graça conta a
história de sua avó que foi diagnosticada com depressão crônica. As mulheres concordam
com esta linha de raciocínio e apresentam outros impactos possíveis como stress, câncer,
crises de ansiedade. Susana chega a uma conclusão interessante que leva à discussão sobre
como são reiterados os avisos contra os riscos de uma possível separação apesar e/ou por

150
causa de violência.
Susana: o que minha mãe passou, eu tô fazendo de tudo pra não passar, você
entendeu? Eu já tenho exemplo na minha família gente, pra quê que eu vou fazer.
Minha mãe até hoje fala: faz por onde conviver. (O grupo explode em comentários).
Simone: essa frase mata né...
Susana: ela acha um horror eu estar separando, (mais falas) minha vó ta lá com
depressão...
Elis: eu não achei ninguém que falasse isso comigo, era eu mesma que tava boba.
Simone: você não acha ninguém não, você mesmo falou.
Elis: é, ninguém, é isso mesmo. Deixa de ser boba!Larga esse homem, já te traiu.
Todo mundo, não teve essa pessoa, é família, é família dele, também, até a minha
sogra.
Simone: então pronto.
Elis: você não é a primeira mulher separada, você não vai ser nem a primeira e nem
a última.
Clarice: eu achei alguém pra falar comigo, faz por onde.
Simone: quem falou com você?
Clarice: a irmã dele.

A partir desta discussão, Graça conta um caso de sua avó tentando mostrar como o fato dela
ser conservadora a tinha levado a um quadro de depressão crônica. Graça diz que sua avó
estava revoltada com seu avô, pois ele não estava a respeitando mais, pois, quando ele foi dar
banho nela, tirou o short e tomou banho junto com ela. A avó dela nunca tinha visto o marido
nu até aquela data. Após o assombro das participantes e da coordenadora teve início uma
interessante discussão sobre o corpo da mulher e do homem na sociedade através dos tempos.

Para a discussão sobre a violência sobre os corpos das mulheres as participantes e a


coordenadora utilizaram-se, novamente, de exemplos retirados dos meios de comunicação
(filmes, revistas, novelas) e também da arte em geral (esculturas). Camila inicia a discussão
apresentando o exemplo dos filmes pornográficos da década de setenta onde apenas os órgãos
genitais das mulheres apareciam e o corpo dos homens não era exposto totalmente. Ela
interpreta esta diferença na exposição dos corpos como um reflexo da disparidade de poder
entre homens e mulheres.

Camila: até pouco tempo os filmes mostravam só a parte de mulheres, a parte do


homem não mostrava não.
Simone: como é que é o negócio?
Camila: antigamente, nos anos 70, os filmes pornográficos não mostravam o
homem, só a mulher...
Elis: só mostrava atrás.
Camila: o homem só mostrava a perna e a bunda...
Simone: gente vamos pensar!
Camila: eu acho que é isso que eu discuto aqui o tempo inteiro...
Clarice: como é que é?
Camila: o homem está acima do bem e do mau.

151
Confirmando esta diferença da apropriação dos corpos masculinos/femininos pela mídia
Graça dá o exemplo da novela Pantanal (década de 80) que causou alvoroço porque teve uma
cena onde apareceu o perfil de um homem nu pulando no rio. Ela relata que sua mãe a proibiu
de assistir esta novela desde esse dia. Camila reflete que deve ser por isso que as esculturas de
corpos masculinos nus de Michelangelo devem ter feito tanto sucesso, pela sua coragem na
exposição do sexo masculino. Como exemplo de uma produção mais atual e onde o corpo
masculino é exposto sem estar em uma cena de sexo e sem causar grande alvoroço midiático,
a coordenadora apresenta o exemplo de um filme romântico de 2005, “Ressaca de Amor”.
Neste filme, o ator principal é filmado em nu frontal nos primeiros dez minutos do filme com
a repetição da cena no final do filme. O mote do filme é a superação por este personagem do
término de um namoro após uma traição da namorada, ou seja, neste filme o papel de
abandonado/traído/deprimido é o de um homem heterossexual. A partir deste exemplo, a
coordenadora, questiona se estaria ocorrendo uma mudança na forma de expor os corpos
masculinos e no papel dos personagens masculinos atualmente. O grupo concorda que apesar
de algumas mudanças, ainda causa impacto a aparição do corpo nu masculino e que ainda são
poucas as criações artísticas que subvertem os papéis masculinos/femininos nas relações
afetivo-sexuais. Camila, novamente, faz a ligação deste tema com a discussão sobre a
violência e Nina complementa a sequência interpretando este fenômeno como atingindo a
todas as mulheres.

Camila: agora trazendo, transferindo aquilo tudo aqui pra nossa vida cotidiana, eu
acho que é por isso que nós mulheres sofremos tanto, porque eu acho que detalhes
tão sórdidos quanto este é que fazem a diferença, porque que nos sentimos tão
reprimidas sabe. Porque nós nos cobramos tanto quando a gente falha alguma
coisa...
Nina: às vezes a gente também se sente tão usada.
Camila: exatamente, então eu acho assim que esse estatuto que nós saímos fora, que
nós estamos comentando aqui. (Mulheres concordando). Eu acho que se a gente
transferir para a nossa vida cotidiana, nós sofremos muito com esse tipo de coisa.
Simone: igual você falou aí, tenta puxar mais um pouquinho Camila, o que tem a ver
lá o homem estar pelado, com a mulher aparecer com o
Camila: eu acho que...
Simone: o que pode ser usado
Nina: por mais que a gente não saia numa Playboy da vida, a playboy ainda tá
bonitinha, por mais que a gente não sai em filme pornográfico ou numa revista de
baixo calão, indiferentemente disso, a gente não deixa de ser mulher. A gente passa
na rua, se voe vê, eu estava até comentando com meu namorado uma vez, que se
você vira pra um cara, homem tem muito medo de mulher, não sei se vocês assim já
viram alguma cena de filme ou alguma coisa assim, mas na vida cotidiana mesmo,
se uma mulher pára na rua e de olho no cara fala “nossa, você é um tesão de cara!”...
Camila: nossa, quebrou ele. (risos e falas)

152
Continuando, Nina exemplifica como os corpos de homens e mulheres são abordados
publicamente apontando para um aspecto geracional de transmissão sobre os códigos de
conduta de homens e mulheres e sobre a vulnerabilidade das mulheres nessas situações.

Nina: ...o homem tem medo.


Simone: porque é uma coisa que não...
Nina: agora a mulher passa na rua e o cara fica assim: nossa gostosa! E a gente
passa, a gente anda e fica: ai meu Deus o quê que eu faço...
Camila: ridículo. (Falas e risos).
Nina: a gente acha que ele está com os documentos pra fora pra te estuprar ou você
pensa assim, eu saí aqui fora o cara nossa que delícia Ai pelo menos alguém me viu.
(Falas e risos).
Graça: e quando um pivete fala: “oh gostosa”. Um pivete, que tem o que? Quatorze
ou doze anos, pelo amor de Deus, não tem nada mais chato. O pivete quer usar a
gente, tá com cheiro de fralda ainda.

Nina concorda e dá um exemplo de uma cena que aconteceu com ela.

Nina: o menino de oito anos, ele falou com a minha filha, eu lá em casa de
shortinho, faxinando a casa, ele falou “nossa, sua mãe é uma puta gostosa!”. Mas o
menino não sabe nem o que muitas vezes está falando. (falas altas). Mas o vô dele
fala o pai dele fala, o vizinho fala. (Mulheres concordam)
Camila: eu tenho que falar igual meu pai meu tio, meu avô.
Nina: a mulher acaba se sentindo usada por isso, porque querendo ou não, não é o
nosso corpo que está sendo exposto lá, mas aquilo ali não deixa de ser a gente e eles
sabem disso.
Camila: pois é, então essa situação eu acho que a violência o tempo inteiro...

As conclusões apresentadas por Camila e Nina definindo os relatos e a exposição dos corpos
femininos como violência é incisiva. A discussão continua apresentando mais exemplos de
como homens e mulheres se apropriam e tem seus corpos apropriados de forma diferenciada
pela sociedade. Nina comenta que as mulheres não ficam conversando sobre formatos ou o
tamanho de seus órgãos genitais enquanto para os homens isto é um tema recorrente. Segundo
ela “a gente nem ousa se preocupar com isso.” Clarice se lembra de uma propaganda de
esmalte que foi retirada do outdoor, após causar muitos comentários do público, por
apresentar uma mulher com a mão na vagina. Nina comenta sobre uma amiga que “dá
cantada em homens” e que nesses casos, os homens não gostam. Clarice diz que quando
“beliscou a bunda de um homem” ele não gostou e “virou e fez uma cara feia para ela”. A
profusão de exemplos é um indicativo de como este assunto tem ressonância na vida das
mulheres.

No encerramento desta sessão a coordenadora apresentou a discussão a reportagem exibida no


Fantástico do último domingo sobre um estudo onde se calculou quantas vezes um homem
153
olha para mulheres e vice versa e qual o tempo que um homem gasta em toda sua vida
olhando para o corpo de mulheres e o inverso. A conclusão da pesquisa era que os homens
gastavam em torno de um ano de sua vida nesta situação e as mulheres bem menos e que
enquanto um homem olhava para dez mulheres por dia uma mulher olhava para seis. Qual
seria então a solução para este impasse de exposição?

Simone: Ou vai ter igualdade, então a mulher tem tanto direito de fazer isso ou
nenhum dos dois deve fazer isso. Vamos lá, só pra tentar pensar...
Graça: eu acho que tinha que ter igualdade.
Nina: eu acho que nenhum dos dois.
Simone: nenhum dos dois devia fazer igualdade? O quê que você acha?
Clarice: ah, sei lá. Tem que ter igualdade sim.
Camila: eu acho que eu não sou a melhor pessoa para dar essa opinião. Tá tão
entranhado na nossa cultura. Eu tentei ser uma pessoa diferente e eu paguei um
preço muito caro por isso. (Muitas falas). Eu acho que isso está longe, nem na
criação do meu filho vai fazer isso.
Clarice: o que a gente aprendeu é que a mulher é mais frágil que o homem.
Camila: ditaram um dia que a mulher tinha que ser mais frágil que o homem, porque
as mulheres hoje são pai e mãe de família e dão conta muito bem, obrigada. Então
nós não somos tão frágeis.
Clarice: a gente é mais inteligente.
Graça: o homem é mais forte que a mulher mesmo.
Camila: nós somos nós temos menos massa muscular pra dá porrada, isso aí é um
fato.
Susana: os homens a maioria das mulheres hoje trabalham, nenhuma das mulheres
quer ficar em casa. Então tem que ter muito respeito um com outro, porque mulher
hoje não agüenta.
Elis: eles estão casando hoje, porque igual a minhas filhas uma é bióloga, outra
administradora. A namorada do meu menino faz Engenharia e elas falam: Eh
mãezinha! Coitado dele que fizer isto aqui. E tudo que têm lá elas que ajudaram a
comprar. (Mulheres falam juntas: tem que respeitar.)
Clarice: eles hoje já namoram pensando em dividir a conta. (Todas concordam).
Graça fala tem que ter igualdade.
Camila: igual quando eles pensaram a religião e inventou que a mulher saiu da
costela de Adão já ferrou o resto. Mas porque Deus não deu o trabalho de fazer a
nossa matéria igual a do homem.
Clarice: porque tinha que ser dependente, mas eles é que são dependentes...
Elis: igual depois que casa...
Susana: eles vão ter que ajudar a mulher...

A sessão se encerra com estas perguntas em suspenso.

Sessão nº 04
Sessão do Grupo nº 64
Data: 26 de agosto de 2009
Duração: 1 hora e 20 minutos
Participantes: Kenia, Nina, Susana, Camila e Cíntia.
Coordenação do Grupo: Simone (coordenadora) e Rafaela (observadora)

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“Se você está frequentando um grupo você confia no grupo” (Cíntia)

Na abertura desta sessão, antes mesmo que a coordenadora se sentasse, Nina aproveita-se de
uma brincadeira sobre filhos para falar de sua impressão sobre a coordenadora, demonstrando
curiosidade. A coordenadora, por sua vez, responde às perguntas de Nina e se posiciona como
uma “mulher separada” que “chora como qualquer outra”.

Simone: Hoje estamos sem luz, a luz acabou.


Camila: Da a luz Simone.
Simone: Não to podendo. Já dei a luz uma vez. Não to querendo dar de novo, não. Já
tenho uma luz lá em casa.
Nina: Eu achava que você era solteira. Você é solteira?
Simone: Não sou separada.
Nina: Agora eu entendi essa revolta. (Risos de todas).
Simone: eu vou te contar da minha revolta.
Nina: é que eu vi você mostrando o pezinho da sua filha, semana passada eu estava
arrasada. Eu não acredito a Simone tem filho e é casada e fica escutando a gente
falar essas coisas. (Susana ri concordando). Ela deve chegar a casa e pegar o rolo de
macarrão e bater no marido. Fiquei o tempo todo assim. Agora eu entendi. Você luta
por sua própria causa.
Simone: Sou mulher também, eu não deixei de ser mulher não, uai. Vou resumir,
vou matar a sua curiosidade. Na verdade é importante falar essas coisas. Na verdade
eu estudo este assunto desde que estava na faculdade. Eu casei em 1998? 2000, não
sei, é tão importante que eu até esqueci. (risos) Mas, eu estudo este assunto desde
que eu estou na faculdade, desde o terceiro período, desde noventa e nove que eu
estudo. E eu tive filho em 2002, então muito antes eu já estudava. Ai eu casei e não
deu certo. Mas, esse assunto de violência contra a mulher eu estudo desde sempre
por que é um assunto que eu gosto mesmo, e o casamento não deu certo, mas não
quer dizer que uma coisa está vinculada a outra.
Nina: E não deu certo por quê?
Simone: Aí, já é uma pergunta muito difícil.
Nina: ou a psicóloga não pode falar para a paciente. (Risos concordando).
Simone: o importante é que não foi questão de violência, o meu caso não tinha
violência física. (Burburinho).
Nina: Não deu por que não deu.
Simone: é igual eu falo, essa questão, por isso que eu entendo, namoro acaba,
casamento acaba, Nina você chora?
Simone: é claro todo mundo chora, não tem como não chorar.
Nina: não pode é ficar neurótica.
Simone: Toda mulher vem aqui e fala, mas eu estou chorando e eu digo estranho
seria se você não chorasse...

Susana pega um gancho na fala da coordenadora e apresenta o caso de sua irmã que foi traída
e se separou, mas não está demonstrando tristeza, pelo contrário ela tem um relacionamento
feliz com outra pessoa. Susana conclui que a irmã tem sorte porque para ela está difícil, pois,
“esse negócio de separação desestrutura, separa a família”.

155
Nina diz que depende, pois considera que com filhos pequenos é mais difícil. Susana
discorda, para ela, com filho pequeno é mais fácil, porque quanto menos contato mais fácil
para o filho se adaptar à separação (como no caso de Camila). A divergência sobre o assunto,
na verdade, se resume na convergência sobre a preocupação das mulheres/mães com seus
filhos (as) durante o período de separação. Nina conta como suas filhas estão reagindo à
separação de forma diferenciada: a filha de onze anos diz “mãe desencana” e que não vai ser
boba como a mãe: “Eu não vou correr atrás de homem. Eu não corro atrás de homem como a
minha mãe. Eles é que vão correr atrás de mim. Minha mãe é uma idiota que fica ligando
para o meu pai.” A filha menor de nove anos diz que “não vai se casar” e disse que queria
conversar com a psicóloga da mãe.

Nina: A L. já me pediu: Oh mãe, você sabe a sua psicóloga, a Simone. Você fala
com a sua psicóloga que eu quero ir lá conversar com ela. (Susana: Oh meu deus!)
Nina: foi ontem à noite chorando. Por que minha filha? Pode ser amanhã, mãe? Não,
tem que conversar com a Simone, primeiro pra marcar um horário.
Simone: eu não atendo criança senão eu choro.
Nina: O dia que você vê ela você ver ela você vai chorar. Tem que ver por que ela
quer falar com você. Por que eu tô muito estranha, mãe pode ter mil pessoas perto de
mim, eu tô dentro da sala, no recreio
Simone: ela tem que conversar com o pai dela.
Nina: eu venho aqui pra casa tá você e o J., eu vou para a casa do meu pai,tem gente
lá, tá lá a minha vó com meu pai,.mas eu não sei, eu olho pra todo lado e tô me
sentindo sozinha é como se eu tivesse sozinha no mundo é como se eu não tivesse
ninguém. Aí eu quero ir lá pra conversar com a psicóloga porque eu acho que eu tô
com algum problema. Tô com uma dor na minha barriga. Ela só fica reclamando
dessa dor na barriga.

Este relato da filha de Nina é um exemplo do impacto nos filhos de situações de violência de
gênero entre os companheiros. Apesar de não saber se expressar ela sente que alguma coisa
está acontecendo com ela. Mesmo que sua reação seja diferente da irmã, percebe-se que
ambas estão reagindo à tensão no período de separação de seus pais. A coordenadora afirma
que uma das grandes consequências da violência de gênero entre companheiros é justamente
este tipo de exposição dos filhos, o que pode ser considerado um tipo de violência psicológica
contra a criança por parte dos pais. Para elas, o ideal seria prevenir, evitando a recorrência
destas situações na frente dos(as) filhos(as).

Kenia concorda com a coordenadora e diz que está preocupada com seu filho por que o pai
dele a ameaça na frente da criança e Nina diz que saiu de casa porque as filhas assistiam o pai
saindo de casa para se encontrar com a amante e ficavam chorando quando a mãe chorava e
também passavam mal. Percebe-se como o impacto sobre os filhos é um sinal que empodera
156
as mulheres a tomarem iniciativas para enfrentar a situação de violência. Kenia fala muito
nervosa que “por isso que eu quero conversar com o advogado para ver se tem como entrar
com um processo na justiça. Minha única defesa é entrar na justiça contra esse homem. Pra
poder esse homem não me ameaçar mais, pra esse homem não poder mais”.

Kenia relata que novamente seu ex-companheiro foi à casa de sua mãe e ameaçou novamente.
O caso de Kenia é muito delicado, pois seu ex-companheiro é muito violento e inclusive, já
jogou uma bomba na casa da mãe dela e de um de seus ex-namorados. Ele, inclusive, está em
liberdade provisória por causa de um processo de agressão com bombas. Ele teme a Polícia
por causa de sua situação na Justiça, mas não para de ameaçar e perseguir Kenia. Kenia está
desesperada. Devido à gravidade de seu caso o grupo já tinha conversado sobre a hipótese de
ser necessário um encaminhamento para solicitação de Medidas Protetivas.

Simone: Mas, o que ele fez daquele dia até hoje? Ele fez alguma coisa nova?
Kenia: Fez. Ameaçou-me de novo. Ai eu liguei pra Polícia.
Simone: ele foi à casa da sua mãe?
Kenia: foi na casa da minha mãe. Aí eu liguei para a Polícia ele voltou achando que
eu não tinha chamado a Polícia para ele não. Aí a Polícia parou lá na porta. Aí ele
quis correr. Ai a Polícia pegou ele. (...)
Susana: ele correr foi pior. Aí que a policia viu.
Kenia: Aí a Polícia pegou ele e nós descemos lá pra baixo. Aí chegou lá no
Delegado e ele falou a Kenia é doida. Ela é doida toda hora ela registra um BO
contra mim, até já registrou um BO contra mim na Delegacia de Mulher
(ironizando). Simone: ele te ameaça de morte?
Kenia: de morte, de morte, foi dia18 de agosto de 2009. Simone: vai lá conversar
com a L. (advogada do Espaço Bem-Me-Quero) ela chega 10 horas, bate na porta.
Kenia: eu preciso entra na justiça contra esse homem, eu preciso entra na justiça
contra esse homem.
Simone: mas você vai deixar ele ficar preso. Até que deixar eu acho que você deixa.
Mas, você acha que ele vai ser preso?
Kenia: Nem que seja pra ele me dá uma indenização.
Camila: isso aí já foi uma evolução GSM.
Kenia: Por que se ele arrancar do bolso, na hora que for me ameaçar de novo vai
pensar, eu vou ter que ser preso ou vou ter que pagar ela. Ou então, ele pega e me
mata logo de uma vez.
Simone: essa hipótese não existe.
Camila: matar não pode. Simone: mas o que ele faz?
Kenia: eu sofro tanta pressão, tanta pressão (com muita ênfase). Simone: eu sei.
Kenia: eu prefiro morrer a viver desse jeito.
Simone: você não vai morrer.
Camila: você prefere viver, você prefere me ver toda quarta-feira do que morrer.
Susana: você tem que pensar em você e no seu filho. Ele que se dane. Dá um jeito
que vai começar a resolver...

O desespero de Kenia é condizente com a reiteração da violência por parte de seu ex-
companheiro. Ela saiu da casa onde eles moravam e foi morar com os pais, mas, mesmo
assim, não ficou à salva, pois ele utiliza a desculpa de ver o filho para continuar vendo Kenia
157
e a perseguindo. Em uma das brigas, inclusive, ele pegou o filho e fugiu com ele de carro,
além disto, inclusive, ela parou de estudar e trabalhar na rua como vendedora por que ele a
ficava perseguindo nas ruas. As participantes do Grupo sabendo de sua história se solidarizam
e tentam animá-la apesar da preocupação e do medo de que algo aconteça com ela. Apesar de
toda esta situação o pai dela ainda a aconselha a reatar a relação.

Kenia: Meu pai falou assim é Kenia se eu fosse você eu voltava pro L.. Então
porque você não pega o D. e vai morar com ele. (teatral). Se você fosse mulher
(risos)... No outro dia ele falou Kenia eu quero ver se você é mulher, mulher mesmo,
pega o seu menino e vai e volta para o L. (Risos) Aí eu falei: eu quero ver se você é
homem. Homem mesmo pega o D. e vai morar com ele.(risos). Homem que é
homem volta para o L. também pai. (Risos). Porque ele tá querendo que eu volte pro
L. com medo dele jogar uma bomba lá em casa. Você esta achando que eu sou isso
aí, (o pai dela fala). Não é você ta achando que eu sou objeto que você me manda e
desmanda? De jeito nenhum, de jeito nenhum. Eu prefiro continuar aqui a vida
inteira a voltar pra lá, entendeu. (...) Do primeiro tapa que ele me deu na cara,
entendeu, ele vai me dar é muito tapa na cara ainda...

A coordenadora diz para Kenia procurar a advogada do Espaço Bem-Me-Quero para que
sejam feitos os encaminhamentos necessários para a solicitação das Medidas Protetivas. Antes
de ela sair, Camila pede para que ela fique para escutar uma novidade.

Camila: ontem a promotora mandou uma intimação para eu ir lá prestar


esclarecimentos sobre como eu fui atendida na Delegacia de Mulheres.
Simone: mas de onde saiu isso, mas por quê?
Camila: saiu do Fórum, da declaração que eu fiz. Eu recebi ontem uma carta da
Promotoria Pública pedindo pra eu ir lá prestar um esclarecimento.
Simone: mas de qual caso?
Camila: daquele caso do K do dia vinte de fevereiro ainda.
Simone: mas qual o objetivo?
Camila: abrir um inquérito. Eles queriam que eu fosse lá prestar esclarecimento da
forma que eu fui atendida na Delegacia de Mulheres.

Camila entrega para Simone o documento com seu depoimento na Promotoria onde ela afirma
que apesar de ter assinado termo de ciência sobre solicitação de Medida Protetiva ela não
havia sido informada sobre a solicitação. Nesta declaração ela ainda afirma que, atualmente,
não mais se encontra em situação de violência e que não se faz necessária a aplicação da
Medida. A coordenadora concorda com Camila sobre a importância de sua declaração por ela
substanciar as denúncias de várias mulheres do grupo sobre as irregularidades no atendimento
na Delegacia das Mulheres.

Camila: Pois é, eu falei que eu vou meter o cacete, eu não quero nem saber, eu vou
mostrar para aquela Delegacia que não é assim que se trata o ser humano. Eu falei
que o cara me atendeu com o maior sarcasmo, eu me senti novamente violentada.

158
Por que eu fui lá fazer denúncia de um crime que foi cometido contra mim e o cara
começou a perguntar se era isso mesmo que eu queria.

Camila diz que apesar de não necessitar neste momento da aplicação de uma Medida
Protetiva, ela não abriu mão da averiguação do crime cometido.

Camila: Eu falei: eu não vou abrir mão da averiguação, eu quero que o inquérito
continue. No final tá lá, ela tá uma pluminha. Na hora meu coração doeu, mas eu
não tenho que ouvir meu coração porque meu coração já me traiu. Senta que lá vem
história. Para nós mulheres, foi um ganho muito grande porque a promotoria me
ouviu..... O que eles querem saber é se teve a medida protetiva. Eu falei que não
porque aqui está escrito que o rapaz só falou que a Delegada só olha casos extremos.

Este posicionamento de Camila na Promotoria é importante por ser uma estratégia visando
conseguir quebrar o ciclo de vulnerabilidade/violência com seu companheiro e também com a
instituição Delegacia de Mulheres. A sua conclusão sobre o ganho deste acontecimento para
as mulheres é uma confirmação da denúncia de uma situação que ocorreu com ela e que faz
eco com o que outras sobreviventes já relataram.

Camila: aí eu perguntei pro assistente da promotora assim: será que depois que ele
me matasse seria um caso extremo? Ela falou não, com certeza que não. Pois é,
então, hoje ele tá tranquilo numa boa, mas na época, o inspetor falou que a Delegada
só estava atendendo caso extremo. Para mim era um caso extremo e eu acho que tá
fazendo uma sindicância. Todas: tomara.
Camila: Deixa eu falar, deixa eu falar, eu meti o cacete. Eu não fui bem atendida, me
senti violentada novamente. Por que eu já tinha sofrido uma violência, cheguei lá e
fui violentada pelo inspetor porque ele me tratou com o maior sarcasmo.

Cíntia concorda com a colocação de Camila:

Cíntia: Eles olham para você... Você nunca esteve lá Simone, tomara que nunca
esteja, mas é como se você que é culpada pelo que o cara fez. Só faltou apontar o
dedo.
Susana: porque tem mulher que igual a Lei Maria da Penha tem uma mulher que já
colocou fogo três vezes no carro do marido dela, que ela ameaça o marido, aí eles
falam por que a Maria da Penha não olha isso? (Todas falam juntas).

A constatação de que a palavra da mulher é desacreditada surge em mais esta situação. A


própria Lei Maria da Penha é apropriada como um mecanismo de desvalorização da palavra
da mulher, como se a Lei fosse, apenas mais uma forma de dar crédito ao que não merece
atenção. Assim, está em jogo a credibilidade das queixas-crimes das mulheres através de um
mecanismo que busca desarticular a Lei como legítima.

159
Camila ciente deste ciclo de deslegitimação assume que ao ser questionada “se ela tinha
certeza se era aquilo mesmo que ela queria” titubeou.

Camila: Na hora que a mulher perguntou se era para o inquérito contra ele continuar,
meu coração doeu, mas eu não vou ouvir meu coração. Por que ele já bateu em duas
irmãs dele, ele já me bateu 800 mil vezes e agora, meu coração vai doer? Não, eu
quero que ele pague pelo crime que ele cometeu. Agora ele tá morrendo de medo
porque agora vai ter o inquérito policial mesmo. E eu frisei que quero que continue.
Não por que ele tá bonzinho agora, por que ele vai, ele uma vez debochou comigo:
cadê sua Maria da Penha? (Mulher comenta: eles debocham mesmo). Eu vou
mostrar pra ele que a Maria da Penha tá começando a funcionar.

Após o relato de Camila, Cíntia pede a palavra para contar sobre o que ocorreu com ela em
sua Audiência de Conciliação e a coordenadora diz que também quer saber o que ocorreu com
ela, mas Nina tomou a palavra para contar que estava muito revoltada, que tinha saído de casa
e que acreditava que desta vez era para sempre e que estava precisando extravasar (xingar,
agredir o companheiro, quebrar seu carro). A partir deste comentário de Nina as mulheres
comentam rindo de seu posicionamento e a coordenadora questiona se esta forma de agir vai
fazer com que ela atinja seu objetivo de trazê-lo de volta para ela. Camila e Cíntia a
aconselham.

Cíntia: eu também ficava assim no início querendo que ele batesse o carro com a
mulher dentro, mas quando eu descobri que ele bateu o carro.
Nina: eu quero que ele tenha prejuízo.
Camila: vou te dar um conselho que eu já dei para ela há mais tempo: neutraliza.
Você não tem que sentir nem amor, nem ódio por ele, você não tem que sentir nada.

Retornando ao caso de Cíntia, ela diz como se sentiu no dia da audiência de Conciliação de
seu processo de separação.

Cíntia: Eu falei com a Camila eu me senti desamparada para caramba. Eu cheguei lá


a Graça foi comigo graças a Deus. Eles olharam para mim e eu falei que o cara me
agredia, ele falou: Cíntia eu nunca agredi você. Minhas lágrimas desceram de raiva.
(Cíntia chora ao contar).
Simone: Mas, você desmentiu pelo menos?
Cíntia chorando: Eu me senti desamparada por você igual a Camila se sentiu
naquele dia.
Simone: mas como é que eu ia, eu não posso estar lá com você.
Cíntia: mas relatório alguma coisa...
Simone. Simone: eles não acreditaram em você?
Cíntia: ela olhou para mim e falou assim: ele te agrediu? Mas, não tem nada aqui?
(Choro). Mas eu falei: eu frequento o Grupo ali. Isso as lágrimas desciam.
Simone: mas qual o sentimento que você tinha?
Cíntia: a mulher (a conciliadora) debochou de mim, as lágrimas desciam, mas eu
nunca fiz nada com você, com aquela cara. Eu me lembrei da Camila àquela hora eu
estou me sentindo a Camila e a gente tinha falado para, não ser igual à Camila.
Simone a gente tem que tomar uma atitude para não acontecer comigo. E aconteceu
160
comigo, eu nunca mais ia pisar aqui. Eu até falei com a Graça. A gente confia nisso
aqui. A gente se sente amparada aqui, porque no dia que ela sonhou que isso aqui (o
grupo) ia acabar eu até, sou boba assim mesmo:
Simone: mas você acha que um relatório com meu nome ou com...
Cíntia: com seu nome não, mas, a gente confia nisso aqui, né Camila. A gente quer
chegar lá e se sentir segura. Eu fui maltratada a vida inteira na hora que aquele
homem olhou para mim e falou Cíntia eu nunca agredi você.
Simone: você não sentiu força para falar pra ele: é claro que você me agrediu.
Cíntia: eu falei Simone só que a minha lágrima descia.
Simone: chorar não tem problema.
Cíntia: gente eu estou desamparada.
Nina: ela não tinha uma prova escrita para mostrar.
Cíntia: eu passei por uma bobona que falei que era agredida, como não tinha provas,
como é que eu ia?
Simone: você não tinha nenhum boletim contra ele?
Cíntia: eu tenho um processo contra ele e também tinha uma coisa daqui, mas não é
mais a C. a defensora que está tomando conta do meu caso, uma tal de...
Camila: Eu falei com ela só de você já estar no Nudem já é uma prova que você
sofreu violência.
Cíntia: quando ele virou para mim com aquela cara e perguntou: eu te agredi? Deu
vontade de falar eu vou te agredir agora. Ele me agrediu, para eu estar há um ano e
pouco morta a minha filha que...
Simone: você respondeu isto para ela?
Cíntia: tanto que a minha filha não quer ver ele. Eu preciso tomar uma medida pra
minha filha não ver ele. Ele falou ela tá jogando minha filha contra mim, aquela
coisa que te dá ódio, a minha filha de quinze anos, ela está pondo contra mim.
Amanhã é dia dos pais você tem que, com aquele jeito cínico.
Simone: quem falou isto foi a juíza?
Cìntia: foi aquela conselheira lá, nem sei o que ela é.
Susana: a Drª. C. (Defensora do Nudem) que era para estar lá.

A inclusão deste relato também é interessante por focalizar outro momento institucional da
trajetória da mulher sobrevivente à violência de gênero na Rede de Enfrentamento à
Violência: a Audiência de Separação. Um momento, geralmente, posterior ao de registro de
ocorrências ou de representações de queixas-crimes policiais. Este relato também reafirma
discussões realizadas em outras sessões como: o sentimento de desamparo da mulher em uma
situação de confronto jurídico frente ao companheiro e às autoridades; a negação dos
companheiros sobre as acusações de suas ex-companheiras; o impacto da violência sobre os
filhos do casal, a deslegitimação sobre as colocações das mulheres por parte dos agentes da
Rede e a confiança no Grupo. O que particulariza este caso são a denúncia da insuficiência de
recursos humanos da instituição (Defensoria/Poder Judiciário) e a cobrança direta ao papel da
coordenadora do Grupo.

Simone: sabe qual é o problema? Eu entendo perfeitamente. O que você sentiu eu


entendo, entendo a Camila, eu dei razão, para ela. Eu passei o caso e eu posso até
rever isso, eu escrever lá: está em atendimento no Espaço Bem-Me-Quro, foi isso
que eu escrevi no caso da Graça. Eu também tenho os meus limites.
Cíntia: eu entendo Simone.
Camila: isso Simone que você escreveu já faz...
Simone: faz para vocês porque para o juiz, o juiz... Eu posso até fazer por vocês...
161
Cíntia: então quando ele começou a falar lá eu sou um homem trabalhador, eu nunca
encostei a mão em você, fala para ela. Simone: e por que você não falou?
Cíntia: eu não tenho nada para falar com ele não eu falei então tá, com a mulher, lá.
Então tá, a partir de hoje eu vou passar férias na casa da minha mãe com dois filhos
por que o casamento é uma beleza. Elas olharam para mim e fez assim e depois
olhou para ele e fez assim, menina, aí as minhas lágrimas desciam.
Simone: mas isso atrapalhou você? Cíntia: não atrapalhou porque ele aceitou que eu
assinasse o nome de solteira, a separação porque ele sabe que fui eu que entrei, eu
fiquei com a guarda dos meninos, estipulei horário e tudo, ele aceitou só que do jeito
que ele queria pagar o negócio eu não aceitei. Ele queria pagar cinqüenta por cento
do salário mínimo. Eu não aceitei.

Percebe-se que a negociação do processo foi favorável às solicitações de Cíntia, inclusive, em


relação ao pagamento por parte do ex-companheiro das dívidas que restaram da época do
casamento, em nome de Cíntia. Porém, a sensação de descrédito e de necessidade de
legitimação a sensibilizaram. Frente a isto, ela e as participantes do Grupo solicitam e
reafirmam a importância de um documento escrito pela coordenadora do grupo. Ela, por sua
vez, pontua que compreende o desamparo sentido nestas situações pelas participantes, mas
questiona a validade jurídica deste documento para o andamento dos processos.

Cíntia: aí ele falou um monte de bosta, inventou um monte de história e aí ela falou
para ele e eu sou calada, virada de lado para ele, nem para o animal eu olhei igual eu
falei com ela: eu não tenho que conversar com esse senhor. A minha conversa é com
as duas. Aí eu peguei e, nossa, Simone ele é nojento!
Simone: agora seja honesta, você acha que o meu papel ia fazer ele parar de ser
nojento?
Cíntia: não.
Simone: o que eu posso fazer, com os meus limites eu faço, mas todo o meu trabalho
é para vocês aparecerem, não é a Simone que tem que aparecer, ou o Espaço...
Cíntia: mas não é isso que a gente queria.
Simone: eu entendi e eu concordo com você, mas nessa hora eu me preocupo porque
nessa hora poderia ter lá o papel, mas eu acho que para dar peso depende de quem
lesse e que escrevesse...
Cíntia: pro homem dá peso.
Simone: que homem?
Cíntia: pro meu ex dá peso.
Simone: ele não ia saber o que escrevi.
Cíntia: mas se ela lesse.
Simone: é eu vou pensar nisso.
Cíntia: ele ia ficar com medo, vocês não entendem o meu ex tem medo da Maria da
Penha, ele morre de medo do que eu vou fazer na Delegacia das Mulheres. Ele tem
medo. Então assim. Esse papel daria a ele, oh! Se eu for mexer com ela eu tenho que
ter cuidado.
Simone: por que você simplesmente não podia ter falado, todos os casos que você
me conta você não podia ter contado lá?
Cíntia: eu falei. Simone: eu sei que é difícil, mas o que vocês têm que entender é que
a palavra de vocês também tem valor.

162
Assim, a participação em um grupo onde a palavra é o foco de atuação, traz uma nova
possibilidade de se posicionar e ser posicionada na Rede e Enfrentamento à Violência.
Camila, inclusive, já fez esta colocação em sessão anterior.
Cíntia: Mas, se você está frequentando um grupo você confia no grupo.
Simone: eu concordo.
Cíntia: e esse grupo não vai servir de peso não é pra ele, é pra gente aqui dentro. Por
que a gente fica tão sozinha, tão solitária, que este grupo é uma família da gente e a
gente fica mal, entendeu, (mais choro). Nessa hora, que eu fui maltratada igual eu
fui. (choro) a minha família, se não fosse a Graça ir lá.
Camila: É bem humilhante mesmo.
Simone: deve ser.
Cíntia: por mais prevenida que eu fui, na hora você não consegue, entendeu, mas se
elas falassem assim... Eu falar assim, eu estou freqüentando o grupo aqui, onde era a
antiga Delegacia de mulheres, o Bem-Me-Quero. Eu tenho provas que ele me
agrediu... Eu falei pra ela: meus filhos estão mal. Eu tô procurando psicólogos pro
meus filhos e eu tô passando pela psicóloga lá do grupo do Bem-Me-Quero, não sei
se vocês conhecem não to nem aí.
Simone: mas tem que falar assim mesmo porque elas não conhecem, exatamente.
Cíntia: aqui atrás, eu tenho provas disso que eu freqüento lá, meus meninos estão
precisando passar por psicólogo, tudo por causa desse senhor.
Simone: eu acho que você respondeu muito bem. Chorar não tem nada a ver, não.
Chorar é normal.
Cíntia: mas Simone, eu me senti sozinha.
Simone: eu acho assim que é um desamparo normal.
Cíntia: por mais que você prepara.

As participantes do Grupo concordam com a colocação de Cíntia e se espelham em seu


posicionamento no episódio relatado por ela demonstrando como causa impacto negativo
cenas de deslegitimação como as relatadas por Camila e Cíntia.

Susana: eu tô chorando à toa...


Nina: mas o que dá mais medo é ter que passar por isso...

Cíntia conta o desenrolar de seu processo de enfrentamento à violência e de garantia dos seus
direitos e de seus filhos. No dia e horário acordado, em juízo, para o pagamento da primeira
pensão ele não compareceu. Quando o filho conseguiu falar com ele, o pai disse que tinha
esquecido. Mas como diz Cíntia o “show não pode parar” e no final da noite ele compareceu
na casa dela acompanhado por policiais militares alegando que ela estava se negando a
receber a pensão para prejudicá-lo. O que chama a atenção neste caso é a utilização do aparato
policial por Cíntia e pelo seu companheiro e o posicionamento dos policiais na situação.

Cíntia: boa noite senhores. É que ele está acusando a senhora de não querer receber
a pensão e que a senhora está querendo acusar ele. Aí eu fui e falei para ele: precisa
de dois seguranças para pagar metade do salário? (Falas minhas e delas). Mas você
não acha que ele está bem atrasado não porque o Juiz estipulou seis horas. Aí o
policial foi e olhou e parou e ficou olhando para ele e que a senhora tinha que abrir
uma conta, mas eu não abri porque esse senhor sujou o meu nome e nisto aí a gente
163
tá mexendo para não precisar que ele venha até a minha porta. Aí o policial ficou lá
do lado. Aí eu perguntei o que eu tenho que assinar aí ele começou a conversar
bosta. Aí eu virei para ele e falei assim: nossa moço até no final você é barraqueiro.
E eu quero pedir os senhores para vigiar a minha porta, pelo menos passar de vez em
quando porque esse senhor não para de passar na minha porta. Eu quero medida para
ele parar de passar aqui, para ele me deixar em paz. Era para ele chegar com esse
dinheiro aqui até seis e meia e era para estar dentro do horário. Eu estava tomando
banho que eu sou uma trabalhadora, eu sou honesta.
Simone: aí respondeu bem.
Cíntia: e ele está incomodando todo mundo aqui da rua, aí o policial olhou pra todo
lado e aí o Policial falou você nunca mais passar aqui nessa porta e eu quero isso
mesmo. Eu falei muito obrigada e boa noite e entrei pra dentro aí a minha irmã bateu
palmas.

A coordenadora elogia pelo posicionamento. Susana concorda, mas reafirma que todo esse
show intimida.
Simone: viu como você sabe falar bem.
Susana: ela soube falar na casa dela, mas na hora eu tenho medo de falar bobagem
também. Isto intimida.

Encerrando a discussão do caso de Cíntia, a coordenadora ressalta outras formas de legitimar


processos como os de Cíntia, além da participação no Grupo.

Simone: Eu entendo, eu não estava lá na hora, mas eu não creio que ela duvidou da
sua palavra. Eu sei que você se sentiu ruim porque justiça quer prova. Cíntia: ela
queria prova e a justiça quer prova nisso aí e eu não tinha... Simone: mas aí tem uma
coisa. Camila: tem o NUDEM. Simone: mas ela já estava no Nudem, você já é do
Nudem a questão toda é a seguinte: eu vou te falar uma coisa, eu sei que você não
gosta que eu fale isso, mas a Camila já te falou uma vez e eu vou falar porque já foi
dito. Como é que prova a violência? Boletim de ocorrência. A prova que você foi
violentada, no final da história não vai atrapalhar a sua vida, mas...
Cíntia: eu fiz errado.
Simone: O Grupo seria pra quê? Pra provar que você está em tratamento. O que é
muito bom para você é igual a Graça está em tratamento e tal. Eu vou repensar essa
questão de como apresentar a participação de vocês no Grupo para o NUDEM.

Com a aproximação do fim da sessão Cíntia retoma sua discussão sobre a importância do
Grupo.

Cíntia: eu queria que você entendesse.


Simone: estou tentando.
Cíntia: a gente não quer que chegue lá e fale que a gente é do Bem- Me-Quero, é
foda e manda e tal. A gente quer o seguinte: eu passei por uma fase muito difícil,
complicadíssima, difícil e o grupo me ajudou. A gente quer que fale que o grupo
ajuda, o grupo ampara, a gente quer, por exemplo, que o Juiz saiba que a gente tem
quem ampare. A gente não quer mostrar, não quer gritar, se puder fazer isso ótimo,
porque tem muita mulher aqui fora que eu estou vendo que está passando por isso. O
que a gente quer é sentir segura, eu fui tratada ali agora eu tô melhor. Vê como eu
estava uma porcaria antes, mas ali eu levantei, ali é uma família. É isso que a gente
quer. A gente não quer que vá uma prova, pode ir por escrito que lá é bom. Mas a
gente quer que o Grupo aqui, eu ajudo, não é só uma pessoa, é muita gente,
entendeu.
164
Camila: deixa eu ver se eu consigo explicar o que a Cíntia esta querendo dizer.
Simone: traduz.
Camila: é o seguinte: lá fora está escrito assim Espaço Bem-Me-Quero, espaço das
mulheres com violência doméstica, então a princípio, se o primeiro ato que você fez
foi procurar o Espaço Bem-Me-Quero é porque você sofreu uma violência
doméstica, aí no caso, é igual eu falei, é de grão em grão que o Espaço Bem-Me-
Quero vai mostrar o seu poder. Então se você tivesse alguma coisa falando que você
procurou o Espaço Bem-Me-Quero a princípio, o primeiro ato, a primeira vez, então
seria o seguinte você foi por quê? Por que você sofreu uma violência doméstica,
você não foi lá... (elas falam juntas concordando).

A princípio, o que se pode compreender da colocação de Camila e Cíntia é que elas querem
tanto o atendimento em grupo quanto o Espaço seja legitimado junto às outras instituições da
Rede. Em complemento, elas seriam legitimadas juntamente com a instituição que as acolheu.
Para além, Cíntia faz questão de frisar como fez bem para ela e outras a participação no
Grupo.

Cíntia: porque eu cheguei aqui doente regaçada e...


Camila: eu estou dizendo que seria o primeiro ato.
Simone: então, você queria mais uma prova além do Boletim de Ocorrência, mais
uma prova que você passou por outra instituição e que você vai dar continuidade,
que você quis sair daquele ciclo.
Cíntia: que existe que fosse uma declaração... O que a gente quer Simone, o que a
gente quer sentir, meu Deus do céu, eu fui amparada ali. Do jeito que eu cheguei
aqui. Eu quero que o juiz saiba que eu aprendi a me cuidar. Puxa eu cheguei aqui
regaçada e aí eu encontrei as meninas. Eu aprendi a me respeitar, a controlar meus
sentimentos. Eu consegui me controlar, me respeitar. Nina: eu sou sua fã. Camila:
mas é o caso só de você estar no Nudem igual ontem eu estive lá... Cíntia: mas isso
tem uma força violenta, mas eles não falaram isso perto dele, tinha que falar? Então
me explica.
Simone: agora o Juiz eu concordo e até fico muito feliz que vocês queiram que o
Grupo apareça na Justiça. Então nós vamos fazer isto.
Camila: isso é bom, isso é muito importante.
Cíntia: gente! Essa mulher tá regaçada (Susana ri) Eu falo besteira mesmo. Eu
cheguei aqui a ponto de matar e morrer e tudo, estava mal mesmo, essa mulher veio
regaçada lá de trás, mas agora tá aqui inteira, tem uma coisa por trás. E o que é?
Camila: uma coisa boa, uma coisa ótima.

Assim, a sessão se encera com uma sensação de alento para o Grupo.

5 DISCUSSÃO

Através da análise dos relatos das sobreviventes à violência de gênero (participantes do Grupo
que aceitou participar desta pesquisa) de suas trajetórias pelas instituições da Rede de
Enfrentamento à Violência da cidade Contagem/MG pôde-se observar:

a malha discursiva que legitima (ou não) as denúncias de violência de gênero e, por
165
conseguinte, a efetividade do enfrentamento a esta violência por parte das sobreviventes e das
instituições;

o jogo de poder que legitima a fala e os posicionamentos destas sobreviventes a partir das
críticas ao atendimento recebido e

a apresentação diferenciada pelas sobreviventes das instituições de acordo com o


posicionamento adotado por estas no acolhimento das denúncias de violência.

Por fim, através deste recorte na história deste Grupo, pôde-se analisar :

o papel e posicionamento da coordenadora/observadora, tema muito importante tanto na


teoria feminista como na pichoniana;

a matriz hegemônica de gênero (cunhada por nós como Cartilha/Muro) através dos muitos
questionamentos sobre sua manutenção e legitimidade;

as dificuldades para a transformação das relações de gênero na vida das sobreviventes;

como o processo de enfrentamento à violência de gênero pode-se dar em um grupo operativo


com a tarefa de construir estratégias coletivas para o fim do ciclo da violência e

como o processo de atendimento em grupo pode ou não influenciar a (re)construção de


sentidos da violência e de estratégias para seu enfrentamento.


Vale ressaltar que nesta pesquisa não se tem como objetivo buscar a gênese da violência de
gênero a partir da análise de casos individuais. O esforço de análise se volta para como o
Grupo deste estudo se desenvolve como um serviço ofertado por determinada instituição
situada em determinada Rede de Enfrentamento à Violência e, o mais importante, como a
participação neste serviço efetiva e diretamente contribui para o enfrentamento à violência de
gênero.

166
5.1 O MURO / A CARTILHA/ O SPA

“Chega mãe!” (Cíntia)

Para a análise dos relatos grupais sobre a violência de gênero ocorrida e sobre a trajetória de
enfrentamento a este tipo de violência destaquei para além dos posicionamentos dos homens e
das mulheres o de seus filhos, suas famílias e dos representantes que falam pelas instituições.
Considero que estes posicionamentos podem denunciar a malha discursiva hegemônica que se
tenta escamotear, mas que ecoa nas falas, posicionamentos, decisões e sentimentos dos
homens e das mulheres em situação de violência. Sustento que a reiteração e continuidade do
ciclo, bem como a decisão de sair dele e as dificuldades em colocar em prática esta decisão
devem ser analisadas à luz deste amplo espectro social.

A escolha de utilizar o termo sobrevivente (ALMEIDA, 1998) para definir a mulher no ciclo
de violência objetivou dar visibilidade à carga opressiva deste processo de (re)posicionamento
que margeia todo o enfrentamento à violência de gênero por parte das sobreviventes. O
desabafo de Kenia (sessão de 26 de agosto de 2009) ao dizer que “É tanta pressão, tanta
pressão que prefiro morrer!” dá a dimensão da situação em que estas sobreviventes se
encontram. O relato de Cíntia sobre as reações de sua família (principalmente mãe e filhos) às
suas decisões visando encerrar o ciclo de violência e a defender seus direitos civis e os de seus
filhos (sessão de 22 de julho de 2009) ilustra como algumas instituições como a família,
juntamente com os ex-companheiros, se posicionam contra o enfrentamento à violência.
Apesar da firme decisão de dissolução do casamento, de ter saído da casa própria onde residia
com o companheiro, de não estar recebendo pensão para os filhos e de estar desempregada e
participando ativamente do Grupo, Cíntia demorou meses para se decidir a dar entrada ao
processo de separação, divisão de bens e guarda e pensão dos filhos. A mãe de Cíntia temia
pela reação do ex-companheiro da filha em relação a seus outros filhos e, apesar das
dificuldades financeiras e do abalo emocional de Cíntia, ela sempre lhe recomendava esperar
mais um pouco. Cíntia teve que ir contra a mãe para abrir o processo. Ela relata emocionada
que através da participação no Grupo conseguiu “vencer” o ciclo de violência com o ex-
companheiro e também com a mãe.

Em um esforço de nomear e dar visualização a esta força opressora utilizamos no Grupo o


167
termo Muro. Esta definição foi construída para denunciar as frases e posicionamentos que
refletiam a barreira invisível, mas real com a qual as sobreviventes se defrontavam quando
questionavam a situação de violência vivida ou a posição da mulher em nossa sociedade. Ela
diz da angústia, da dúvida, das perguntas sem respostas, das expressões consagradas pelo dito
popular, das posturas institucionalizadas, dos momentos de descrédito frente às falas das
mulheres. Com a apresentação recorrente destas situações durante as sessões do Grupo
começamos a nomear este conjunto de situações como o Muro. Era uma imagem em
construção, com exemplos inúmeros, fortalecidos pela repetição, difícil de circunscrever em
definições, mas convergente para o Grupo. Sempre que apareciam estes tijolos que
constituíam este Muro, eu os pontuava até que em uma determinada sessão propus para as
participantes que desenhássemos este Muro (ANEXO 09). Elas aceitaram e começamos a nos
lembrar dos tijolos que conhecíamos por já terem aparecido no Grupo. Sem que eu tivesse que
explicar muita coisa, rapidamente elas começaram a elencar uma série de sentenças. Foi um
momento divertido, mas também angustiante. Fabíola contou os tijolos e, chorando,
perguntou como fazer com tantos impedimentos para a mulher na sociedade. Enquanto
ouvíamos estas sentenças (ditas por mães, familiares, policiais, juízes, padres e outras
mulheres) compreendemos que não se tratavam simplesmente de opiniões individuais.
Entendemos estes tijolos como elementos constitutivos deste Muro que ninguém vê ou sabe
dizer quem criou, mas que deixam marcas na trajetória destas mulheres. Para exemplificar a
força desta imagem, uma mulher que não havia participado da sessão de desenho do Muro
assim resumiu sua situação: “eu vejo como um muro. E eu queria ter umas ferramentas para
21
derrubar este muro. Com minhas mãos eu não consigo... queria ter umas ferramentas...”
Esta colocação validou a imagem do Muro como objeto de expressão do Grupo para se referir
ao posicionamento da mulher pela sociedade e às suas dificuldades no enfrentamento à
violência de gênero. A partir daquela colocação pontuei se ela compreendia as instituições da
Rede de Enfrentamento à Violência como possíveis ferramentas frente a este “Muro”. A
pergunta ficou no ar, como proposta para reflexão para todas, inclusive para mim.

Nesta dissertação, este Muro é compreendido como a representação da matriz


heteronormativa (BUTLER, 2003) que sustenta a manutenção da binarização do sexo e da
apresentação estanque do conceito de gênero. Desta forma, nos interessa como a partir da
matriz heteronormativa homem e mulher são situados(as) em lugares que atribuem
21
Este relato não faz parte das sessões selecionadas para análise nesta pesquisa, mas, por sua vinculação com a
discussão foi incluído.
168
posicionamentos/comportamentos que almejam atingir a todos, a despeito dos desviantes. Nas
falas de Fernanda, Janaína, Cíntia e Nina ao se referirem (sessão de 22 de julho de 2009) aos
impactos emocionais da violência e da inobservância de seus direitos como “mulher que
cumpre suas obrigações” observa-se nitidamente a delimitação das mulheres e dos homens
segundo o Muro. Fernanda (na mesma sessão) explicita: “Lavar, passar, cozinhar, cuidar do
marido, da mulher o papel é esse. E do homem é ajudar ela a ficar em casa, a minha parte eu
tô fazendo e ele não está fazendo a parte dele e ainda me chama de vagabunda”. Há
referências aqui à vinculação da execução dos papéis de gênero determinados segundo a
matriz heteronormativa e da divisão das mulheres entre “trabalhadoras” e “vagabundas”, que
também pode ser lida como a divisão entre as “santas” e as “putas”, as “honestas” e as
“desonestas”. Para além, também se pôde observar a vinculação do desempenho adequado
dos papéis ao direito de não ser violentada, de ter um atendimento diferenciado durante o
ciclo de enfrentamento à violência e ao processo de punição aos agressores, como
demonstrando por Corrêa (1983). Ainda nesta mesma sessão, Cíntia, para animar Nina a se
posicionar, diz: “Levanta a cabeça, mulher! Você é mulher honesta!” Percebe-se como é
insidiosa a presença do Muro no próprio discurso das participantes do Grupo. Questionar e
denunciar a legitimidade desta lógica binarista, dicotômica e perpetradora da violência é
tarefa necessária. Esta sequência da sessão aponta para a convergência do posicionamento das
participantes sobre o assunto e é indicativo dos vetores de cooperação e pertinência grupal.

A partir da mesma lógica, interessa observar como são instituídos dispositivos de


enfrentamento à violência a partir de um discurso coibidor e punitivo, mas sustentado, em
muitos momentos, nesta mesma matriz. A situação, no mínimo, dualizada das mulheres neste
discurso, ora com direitos, mas como vítimas e ora como responsáveis pela iniciativa de
barrar o ciclo de violência, mas desacreditadas e deslegitimadas durante a trajetória de
enfrentamento à violência, é um aspecto constantemente questionado pelas participantes do
Grupo. O processo de reiteração das normas heteronormativas atua contrariamente ao
movimento de enfrentamento à violência desmobilizando e/ou desvirtuando as estratégias
construídas pelas mulheres e pelas instituições. Como em um jogo de contrários, a cada
estratégia contra a violência outras perpetuadoras são reiteradas no sentido da manutenção do
status quo. Considero que este processo possibilita a reiteração da violência de gênero em
nossa sociedade dificultando o processo de enfrentamento a este fenômeno tanto individual
como institucionalmente. Por isso, ela deve ser o alvo de reflexões e críticas como caminho

169
possibilitador de elaboração de estratégias eficazes para coibir a violência de gênero. Percebe-
se este processo, por exemplo, na discrepância entre os posicionamentos dos familiares e
conhecidos das participantes frente às suas decisões de enfrentamento à violência e o
encontrado pelas mulheres do Grupo durante as sessões. Segundo o relato das participantes a
postura frequente às suas iniciativas de enfrentamento à violência é de aparente falta de apoio
no primeiro caso, em contraponto à aceitação, acolhida e disposição de ajudar das outras
participantes do Grupo. Por isso, quando Cíntia conseguiu dizer não à sua mãe depois de,
praticamente um ano, sem tomar a iniciativa de pedir a separação e a pensão para seus filhos,
houve um regozijo das mulheres durante seu relato (expresso pelo estouro de comentários
quando ela disse “chega mãe”). O mesmo ocorrendo, com o posicionamento de Kenia frente
ao conselho do pai para que ela fosse novamente morar com o ex-companheiro (sessão de 26
de agosto de 2009).

Outro aspecto do Muro que ficou flagrante nos relatos das mulheres foi a situação financeira
como um dos artifícios apropriados na relação violenta para sujeitar as mulheres à
manutenção da relação e/ou à subserviência. Assim, deve-se considerar que a questão da
classe/renda perpassa o enfrentamento ao ciclo da violência agregando à discussão estas
categorias. Como pode se observar na tabela “01 Dados sócio-econômicos das mulheres
sobreviventes à violência de gênero” (ANEXO 01) a maioria das mulheres não tem renda própria,
sendo que as que têm trabalho não têm registro em carteira ou não recebem uma quantia que
permita abarcar todos os gastos familiares. Algumas, inclusive, no momento da pesquisa, não
tinham moradia própria ou tinham as casas ocupadas pelos ex-parceiros. Devido a isto
compreende-se a preocupação e a importância dada à celeridade dos processos de separação,
guarda e pensão dos filhos por parte das mulheres participantes do Grupo, como Camila,
Cíntia, Fernanda e Susana e à própria dificuldade de se manterem financeiramente após uma
eventual separação, como confidenciado por Janaína (sessão de 22 de julho de 2009). Nos
relatos há uma convergência sobre a repetição de casos onde os processos se transformam em
disputas financeiras entre ex-companheiros, indiferente dos interesses dos filhos (no caso de
pensão alimentícia, guarda e reconhecimento de paternidade) e da ex-companheira (nos casos
de separação e divisão de bens).

Também é interessante analisar como independente do posicionamento profissional das


mulheres durante a união a ameaça baseada na situação financeira encontra eco antes e após
170
a separação. O que pode ser visualizado na recorrência de exemplos sobre este assunto no
Muro (colecionados durante os dois anos do Grupo): “Se você for embora vai passar fome”.
“Se você for embora eu não vou te dar nada” “Pode ir embora, mas a casa é minha”. No
caso de Janaína, que nunca trabalhou fora de casa durante o casamento, não ter renda/casa
própria ou qualificação profissional poderia justificar sua insegurança em separar-se. No caso
de Fernanda, ela foi atuante na administração do comércio familiar e tem bens que, quando
forem divididos, permitirão que ela sobreviva. Porém, nem o fato de ela ter recorrido à
Justiça (através de um advogado particular) para a garantia de seus direitos civis e nem a sua
trajetória profissional durante o casamento impediram que ela sofresse violência ( e que esta
continuasse mesmo após sua saída do lar) e passasse dificuldades financeiras durante o
período de separação. Ainda sobre esta situação têm-se a descrição do motivo do fim de um
namoro de Camila (sessão de 12 de agosto de 2009) onde ela descreve um episódio ocorrido
no supermercado onde seu ex-namorado faz questão de demonstrar o seu poder na relação a
partir de seu poder aquisitivo impedindo-a de comprar o que ela tinha escolhido visto ser ele
o responsável pelo pagamento da conta.

Nos relatos das participantes do Grupo percebe-se que, de forma geral, a família, os filhos e a
sociedade se ressentem das mudanças que envolvem a performatividade de gênero, definida
de acordo com a matriz heteronormativa do papel de mulher/mãe/do lar. A subversão desta
trilogia envolve ir contra normas escamoteadas e reiteradas no sentido da manutenção do
status quo. Quando uma mulher, por algum motivo, se esquiva da manutenção do perfil
performático determinado socialmente, a família se ressente rapidamente. Para dar
visibilidade e denunciar de forma bem humorada a manutenção da organização e harmonia de
uma zona de conforto doméstica voltada para os homens e mantida através da execução
obrigatória dos afazeres domésticos pelas mulheres, nomeamos esta situação de spa. O spa
pode ser definido como uma ilustração da manutenção da subserviência servil doméstica que
é imposta às mulheres em benefício do conforto e bem estar dos homens (como discutido na
sessão de 26 de agosto de 2009 sobre o caso de Elis). Vinculada a esta imagem dá-se a
discussão sobre o motivo pelo qual uma mulher que está no período de separação tem que
continuar exercendo as atividades domésticas de cuidado de seu ex-companheiro. Nesta
pesquisa, a partir das discussões no Grupo, compreendemos por período de separação o
período em que as sobreviventes deixando ou não de conviver na mesma casa com os ex-
companheiros, permanecem no ciclo de violência por pendências jurídicas, como guarda e

171
pensão de filhos, separação de corpos, divórcio e divisão de bens. A tensão referente a este
tema é recorrentemente denunciada, causando grande alvoroço nas participantes durante as
sessões grupais. Outro debate muito presente é sobre os cuidados com os filhos e os impactos
da situação de violência sobre eles, o que também aponta para a necessidade de manutenção
do lugar da mulher como mãe/cuidadora do lar. Considero que estes são temas importantes
para que se compreenda a dinâmica da manutenção da violência de gênero e que o fato de eles
serem sempre retornados se dá porque a partir deles se podem analisar as dificuldades das
sobreviventes em enfrentar a violência de gênero.

No perfil performático de gênero para o sexo feminino ditado pela matriz heteronormativa a
importância da maternidade, do casamento e do amor romântico (preferencialmente único e
fiel) é decisiva. Apesar de se poder considerar que a sociedade vem se sensibilizando com a
questão do enfrentamento à violência doméstica e familiar (o que se percebe na legislação e
na instalação de instituições voltadas para esta problemática) e com a discussão sobre as
performances dos papéis sexuais não se pode dizer que estas discussões estejam
emparelhadas. Geralmente, a mulher sobrevivente à violência de gênero é reforçada em seu
processo de enfrentamento ao ciclo de violência, desde que não subverta as normas de
heteronormatividade, maternidade, fidelidade e romantismo, o que em parte facilita o
entendimento da ambivalência de sentimentos e posicionamentos não só da mulher, mas da
sociedade (instituições) no processo de enfrentamento à violência. Parece que a regra é assim:
mude, mas sem mudar muito, subverta, mas não tudo. Considero que colocar em pauta o
enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a mulher sem se atentar para a
constituição da subjetividade feminina através deste processo normativo e performático é
reforçar a invisibilidade do Muro que o sombreia.

Assim, além da imagem do Muro utilizamos no Grupo o termo Cartilha para nos referir a
este conjunto de ensinamentos sobre a trilogia casamento/filho/afazeres do lar e afins, ou
seja, sobre o que é ser e como ser mulher em nossa sociedade. A partir da escuta das histórias
afetivas (ANEXO 02), familiares e de trajetória de sobreviventes à violência de gênero
conseguimos em grupo perceber certa constância em algumas colocações e em alguns
princípios norteadores do lugar das mulheres na sociedade. Como a figura do Muro foi e está
sendo delimitada durante o processo grupal, a imagem da Cartilha também segue este
caminho. Ela é como um livrinho invisível que é recitado às mulheres desde seu nascimento,

172
delimitando seu lugar na família durante a infância, a melhor forma de comportar-se durante
a infância e adolescência, principalmente, em relação aos meninos e segue apresentando as
regras do namoro, do noivado e do matrimônio e maternidade. No Grupo, as próprias
participantes apontam a presença da Cartilha quando escutam a história das outras. “Eu me
casei virgem”, “ele foi meu primeiro em tudo”, “meu pai falou que eu não ia casar porque
não sabia fazer bolo”, “Lá em casa tinha que namorar um ano, noivar seis meses e casar”,
“eu nunca o traí”, “eu casei para ser para sempre”, “eu o esperava com a casa limpa e com
um jarrinho de flores em cima da geladeira que ele nunca percebia” frases seguidas,
geralmente, de um estranhamento, pois, apesar de terem seguido a “Cartilha” direitinho, a
violência ocorria/ocorre no casamento. Era como se a boa execução das regras não tivesse
garantido os sucessos do matrimônio e delas como mulheres. Uma mulher chegou a afirmar:
“Eu fiz tudo direitinho, mas não deu certo” 22. Desta forma, no Grupo, estas colocações não
são utilizadas para afirmar o lugar de vítimas, mas para denunciar os efeitos da matriz
heteronormativa. Como exemplo, esta imagem foi evocada para responder à pergunta de
Susana (sessão de 19 de agosto de 2009) sobre o porquê do comportamento diferenciado do
filho entre ela e o pai apesar de ela ser muito solícita com ele.

Susana: é rapaz, tem 21 anos, porque homem defende o pai. Eles não vêem igual
domingo, tava lá com a namorada. Fiz uma lasanha beleza pra eles. Minha menina
também tava com o namorado. Tinha uma sobremesa bacana, mas eles não vêem
isso, sabe o que eles enxergam principalmente rapaz, sabe o quê que eles enxergam?
Eles enxergam que o pai está dentro da casa, que o papai assiste ao jogo.
Simone: o pai é legal.
Susana: não é? O pai é legal. (Mulheres concordam) A mãe?
Susana: Porque que é assim Simone?
Simone: porque é assim Camila?
Camila: por causa da cartilha... Você lembra-se da cartilha? (Falas)
Simone: você não ta fazendo nada além da sua obrigação e o pai tá fazendo uma
coisa.
Camila: uma dádiva divina.

Nesta linha de raciocínio, pode-se compreender a recorrência da desculpa, repetida à


exaustão pelas sobreviventes de não tomarem iniciativas ou adiarem a decisão de encerrar o
ciclo por causa dos filhos. Os impactos físicos, psicológicos, sociais e afetivos de cenas de
violência familiar sobre o desenvolvimento de crianças são relatados diariamente pelas
próprias mulheres. Mas ao lado deste sofrimento fica a incumbência da manutenção do
equilíbrio familiar e do casamento em prol dos filhos. Este não é um assunto simples de se
tratar, mas nossa aposta nesse Grupo é que esta situação perdura a partir da mesma dinâmica
22
Este relato não faz parte das sessões selecionadas para análise nesta pesquisa, mas, por sua vinculação com a
discussão foi incluído.
173
social que localiza a mulher na execução das obrigações domésticas. O papel performático da
mulher na sociedade diz da necessidade da manutenção de seu lugar de mãe, que se
necessário for, se sacrificará pelos filhos, até mesmo com a vida. Considero estes mitos como
sombras do Muro que praticamente aprisionam as sobreviventes na situação de violência de
gênero. A subversão desta lógica é dificultada diariamente a partir da reiteração das normas
que posicionam a categoria mulheres em nossa sociedade. Até certo ponto, compreende-se
que as mulheres questionem a manutenção obrigatória do casamento, porém, questionar as
obrigações materno/domésticas, ainda é um tabu. O peso de ser a responsável pela edificação
do lar é grande e mais forte e eficiente justamente porque naturalizado. Concluo assim, que a
naturalização dos papéis da mulher como mãe e cuidadora oferecem bases para a manutenção
do ciclo de violência. Para além, frente à constante preocupação (fundada) das mulheres
sobre os impactos da violência sobre seus filhos, procuramos problematizar os
posicionamentos que se guiam pelas normas performáticas dos papéis de mãe e pai, não
como uma solução definitiva ou ingênua para o problema, mas como mais uma ferramenta
para encontrar/produzir fissuras no Muro. Assim, apesar de não ser possível, em todos os
casos, a subversão dos papéis performáticos de pai e mãe definidos socialmente, considero
interessante apresentar aos filhos a possibilidade de outras formas de relação
maternal/paternal e entre os casais. Como, por exemplo, em relação a toda a discussão aberta
por Graça (sessão de 26 de agosto de 2009) sobre porque o filho somente se dirigia a ela para
pedir os bens materiais. Procuramos também alertar para a realidade dos impactos na vida de
qualquer pessoa que permaneça em um ciclo de violência, especialmente crianças e
adolescentes (como na sessão do dia 26 de agosto de 2009, em relação à discussão sobre as
filhas de Nina e sobre o filho de Kenia). Desta forma, discutir o enfrentamento à violência de
gênero sem problematizar as sombras do Muro pode levar à proposição de estratégias
parciais e ineficazes.
Da mesma forma, percebemos a dificuldade, entre as participantes do Grupo, em adotar
estratégias de mudança e questionamento desses aspectos performativos devido às contra-
respostas rápidas e às vezes violentas por parte dos parceiros e de outros da sociedade. Elas
relatam que se vêem questionadas em seu papel de mãe/mulher, sendo apontado que elas
23
estão “perdendo” seu lugar “abandonando suas obrigações de mãe e de mulher”.
Geralmente, este ataque/violência psicológica/moral é eficiente, pois, busca ferir justamente
a identidade da mulher e seu status social. Se o lugar da mulher se delineia a partir das
23
Este relato não faz parte das sessões selecionadas para análise nesta pesquisa, mas, por sua vinculação com a
discussão foi incluído.
174
normas da matriz heteronormativa a acusação de não adequação a esta tem grande peso.
Talvez, isto possa explicar o mecanismo da violência psicológica e moral que tanto aflige as
mulheres do Grupo, como percebemos pela indignação no relato de Fernanda (sessão de 22
de julho de 2009) ao ser acusada por todos ter “saído de casa” e chamada de “vagabunda” o
mesmo acontecendo com Nina.

Por fim, as participantes do Grupo utilizam como exemplos para dar visibilidade ao discurso
da matriz hegemônica os variados meios de comunicação (programas de TV, rádio, filmes,
comerciais e novelas) e a instituição Igreja. Em relação aos meios de comunicação eles são
discutidos a partir da denúncia de como o lugar da mulher e do homem é diferenciado na
sociedade (situação muito bem apresentada durante a discussão sobre a diferença de
apropriação dos corpos masculinos e femininos na sessão de 19 de agosto de 2009). Neste
contexto, os meios de comunicação poderiam ser compreendidos no processo reiterativo
performático como os canais que fazem ecoar a normatização na sociedade. Esta discussão, a
partir do entendimento desta função dos meios de comunicação por parte das mulheres, pode
se considerada outra forma/ferramenta para questionar, denunciar e desnaturalizar a matriz
hegemônica.

O discurso da Igreja, por sua vez, é utilizado como apoio espiritual (sessão de 19 de agosto
de 2009) e como um conjunto de preceitos sobre o casamento e o lugar da mulher na
sociedade: casar-se apenas uma vez e/ou não ter outro relacionamento caso venha a separar-
se ou ficar viúva (sessão de 19 de agosto de 2009). No processo de enfrentamento à violência
frente às sombras do Muro, elas não negam a importância do apoio espiritual, mas
questionam os preceitos que atuam para a manutenção de relações conflituosas e violentas.
Assim, percebe-se que a dinâmica grupal permite questionar preceitos e, ao mesmo tempo,
apropriar-se do que pode auxiliar no enfrentamento à violência. Este aspecto é indicativo da
pertinência e criatividade grupal na negociação dos sentidos da violência e na elaboração de
estratégias de enfrentamento.

Pelo exposto, observa-se que a participação no Grupo possibilita um campo aberto para que as
participantes discutam e questionem as normas da matriz heteronormativa e, a partir disto,
durante o processo de participação no Grupo, busquem atuar sobre o ciclo de violência através
de mudanças em suas relações familiares / afetivas. Também considero que a construção

175
coletiva de imagens/figuras (Muro, Cartilha e SPA) para dar visibilidade e denunciar as
normas da matriz é um importante resultado possibilitado pela dinâmica grupal por
instrumentalizar a discussão a partir da criação de um ECRO grupal potencializador de
mudanças.

5.2 CICLO DE VIOLÊNCIA / CICLO DE ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA

“A mulher acaba se sentindo usada por isso, porque, querendo ou não, não
é o nosso corpo que está sendo exposto lá, mas aquilo ali não deixa de ser a
gente e eles sabem disso” (Nina).

“Eu cheguei aqui a ponto de matar e morrer e tudo, estava mau mesmo, essa mulher veio
aqui regaçada lá de trás, mas agora esta aqui inteira, tem uma coisa por trás. E o que é?
Uma coisa boa, uma coisa ótima. Eu quero que o juiz saiba que eu aprendi a me cuidar”
(Cíntia).

A partir dos relatos das participantes desta pesquisa sobre os episódios de violência interessa-
nos analisar os sentidos da violência para as mulheres compreendendo que há uma relação
entre estes e o processo de subjetivação destas mulheres e seus posicionamentos nos ciclos de
violência e nos ciclos de enfrentamento à violência de gênero. Para isto, adotamos a definição
de sentido, também apresentada por Azerêdo (2007), segundo Vigotsky (1999), que diferencia
sentido de significado, seguindo Paulhan.

O sentido de uma palavra é a soma de todos os eventos psicológicos que a palavra


desperta em nossa consciência. É um todo complexo, fluido e dinâmico, que tem
várias zonas de estabilidade desigual. O significado é apenas uma das zonas de
sentido, a mais estável e precisa. Uma palavra adquire o seu sentido no contexto em
que surge; em contextos diferentes altera o seu sentido. O significado permanece
estável ao longo de todas as alterações de sentido. (...) Esse enriquecimento das
palavras que o sentido lhes confere a partir do contexto é a lei fundamental da
dinâmica do significado das palavras (VIGOTSKY, 1999, p.181).

A partir deste entendimento buscaremos discutir, segundo as proposições apresentadas sobre a


matriz heteronormativa (BUTLER, 2003) como o sentido da violência é negociado/alterado a
partir da participação no Grupo e como este novo contexto pode influenciar no sentido da
violência e de seu enfrentamento pelas participantes do Grupo.

Para analisarmos o processo de subjetivação destas mulheres posicionamo-as como


sobreviventes à violência de gênero em contraponto ao posicionamento de vitimização
176
(ALMEIDA, 1998). Aliaremos a isto a compreensão da violência a partir do ciclo de
violência e de seu enfrentamento através do ciclo de enfrentamento à violência (apresentados
no capítulo “Violência”) elaborado por mim em um esforço de compreensão dos efeitos da
trajetória de enfrentamento à violência sobre a subjetividade destas mulheres. Sustento que a
experiência da violência analisada a partir destes ciclos e da participação no Grupo permitirá
desnaturalizar posicionamentos e conceitos e oferecer subsídios para a elaboração de
estratégias de enfrentamento à violência potencializadoras de processos de subjetivação
menos violentos. No que se refere aos relatos das participantes desta pesquisa são recorrentes
as situações de descrédito/deslegitimação em suas trajetórias. O que leva à pergunta: como
defender/reivindicar direitos de uma clientela desacreditada socialmente, constituída a partir
de reiteradas experiências deslegitimadoras?

Nas trajetórias cíclicas de violência cada fase tem influências sobre a subjetividade da mulher
e sobre o sentido que a violência pode assumir para ela. Um período que merece atenção para
que se possam compreender as dificuldades de enfrentamento à violência é a lua-de-mel,
característica após um momento de violência e que geralmente desarma as mulheres. Apesar
de as mulheres do Grupo geralmente estarem em um estado constante de tensão, com raros
ou cada vez mais curtos momentos de lua de mel, é interessante o impacto deste período em
seus relatos. Para exemplificar podemos citar o relato de Fabíola (sessão de 12 de agosto de
2009) sobre como ficou sem reação quando, após um período de tensão (onde ela havia
tomado várias decisões), se instalou a lua de mel em sua relação.

Fabíola: O meu questionamento foi esse, Simone: por que eu aguentei esta situação
tanto tempo, para quê? Estava fácil, agora eu vejo com clareza. Era só eu dar um
basta e não querer. Por que eu não consegui?
Simone: dar um basta quer dizer o que?
Fabíola: quando eu cheguei nessa situação de tomar coragem vou pedir para sair da
escola vou entrar com o processo de separação e vou retomar o meu jornal. Eu ia
fazer estas três atitudes eu vou chutar o pé da barraca e não quero nem saber. Aí
quando eu chego lá na escola começou a me desarmar porque duas semanas antes
ele parou de beber, começou a ficar mais em casa, aí ficou aquela calmaria, sem
brigas, aí eu comecei a perder as forças...
Simone: Mas ele começou a beber de novo ou parou até agora?
Fabíola: ele parou. Aí eu comecei a perder as forças porque antes eu tinha um
motivo.

Percebe-se como é difícil sustentar as decisões frente à família, aos filhos, à sociedade e a si
mesma quando ocorre uma mudança (aparente ou temporária?) no comportamento do
companheiro. Desta forma, a questão da manutenção da decisão é muito importante. Decidir
é apenas um ponto inicial, manter as decisões é o nó da situação. Um dos momentos que, às
177
vezes, que pode colocar em xeque as decisões das sobreviventes é o da lua-de-mel. Nestes
casos uma intervenção somente poderia ser favorável para o fim de um ciclo se sustentada
por uma decisão por parte dos dois de enfrentar a violência como responsabilidade conjunta e
como uma situação que exige mudanças e adaptações de ambos. Uma lua-de-mel que se
sustenta em aspectos como o medo da perda da relação ou de incomodar o outro, não
desarticula os mecanismos de ocorrência de uma nova cena de violência. As consequências
deste período aparente de tranquilidade são marcantes. Em seu relato (sessão de 12 de agosto
de 2009) Fabíola descreve como se sentiu:

Simone: mas deve ter outra justificativa para não ter separado.
Fabíola: é feliz eu não estou não. Mas eu estou nessa. Aí, agora, eu sempre tenho
uma desculpa.
Simone: ela tem uma sequência de desculpa
Fabíola: eu tenho uma sequência de desculpas e no final das contas eu nem sei o que
eu fiz mais. Aí os meus meninos esta tudo encaminhado profissionalmente. A minha
filha tem o emprego dela lá na firma grande o meu menino iniciou o curso dele no
SENAI aí a empresa contratou e tal aí o caçula de 16 anos foi encaminhado para o
estágio esta trabalhando. E aí gente e agora?
Camila: e agora ta tudo bom que coisa chata. (Risos)
Fabíola: ele parou de beber, financeiramente eu to ótima estou até viajando. Aí ta
tudo bem. Camila: risos
Simone: aí ta tudo bem
Fabíola: ta tudo bem entre aspas. Aí que começa a confusão eu vou mexer em uma
coisa que esta aparentemente arrumada.

No relato da sessão do dia 12 de agosto de 2009, Camila compara a situação vivida por
Fabíola a um câncer, alertando que, por mais que ela quisesse negar sua existência, ela teria
que iniciar o tratamento mais cedo ou mais tarde. Continuando, Fabíola conclui que nesta
história o que acontece é que ela sempre está perdendo e que a reação imediata foi a de ter
sentido raiva de si mesma por não ter conseguido colocar, novamente, em prática suas
decisões. Percebe-se como é impactante o período de lua-de-mel e como a sobrevivente é
posicionada e se posiciona como a responsável única pelo sucesso ou fracasso da trajetória de
enfrentamento à violência. Considero que as sugestões de estratégias de enfrentamento que
não se atentem para esta discussão podem correr o risco de (re)posicionar a sobrevivente
como a única responsável pelos seus fracassos e dificuldades podendo iniciar um episódio de
deslegitimação do ciclo de enfrentamento à violência.

É interessante também observar no relato de Fabíola a utilização dos termos desculpas e entre
aspas para descrever sua situação. No Grupo chamamos de desculpas as explicações ou
situações que são apresentadas ou citadas como motivos para a “opção” de se manter a
relação violenta após a decisão de encerrá-la ou apesar do desejo de fazê-lo, são desculpas
178
das participantes para si, para as outras, para a coordenadora, para a sociedade e a família
denunciadas durante o processo grupal. Espelhar estas falas como desculpas é sinalizar para a
mulher que ela está criando subterfúgios para voltar atrás em suas decisões, sejam quais
forem. Esses “subterfúgios” são analisados a partir da perspectiva das sombras do Muro e são
apontados para que elas possam percebê-los e enfrentá-los, evitando a naturalização e
banalização do processo de “desculpar-se/culpar-se” por não conseguir sair do ciclo.

Camila é uma participante do Grupo que se apropriou do sentido da violência como um ciclo.
Ela consegue perceber claramente todo o processo tanto no seu caso como no de outras
participantes. Talvez este aspecto tenha siso possibilitado por sua permanência ativa no grupo,
um diferencial que pode ter permitido a ela, apesar da dificuldade em encerrar os ciclos, agir
nos momentos de tensão e lua-de-mel de forma diferenciada, conseguindo diminuir e espaçar
os momentos de violência (sessão de 12 de agosto de 2009). Como motivo para o fim de sua
relação com o último ex-namorado, ela apresentou o fato de ter percebido a tensão constante
na relação e ter previsto um possível episódio de violência.

Como apresentado nos exemplos acima, as sobreviventes podem iniciar o ciclo de


enfrentamento à violência a partir de um ato de publicização ou de cunho privado durante o
período de tensão ou imediatamente após um episódio agudo de violência. Sustento que estes
podem ser os momentos mais propícios para a efetivação destas estratégias dependendo da
forma como este acontecimento for recebido e encaminhado. Desta forma, sustento que
estratégias formuladas após um período de violência e tensão poderiam surtir mais efeito
desde que legitimadas pelos interlocutores(as) procurados(as) pelas sobreviventes à violência
de gênero. Os impactos sobre o ciclo de enfrentamento à violência a partir da deslegitimação
de uma estratégia de publicização são enormes e, por consequência atuam sobre o sentido da
violência para aquela sobrevivente e sobre suas futuras iniciativas de encerrar o ciclo. Assim,
sustento que o processo de (des)legitimação das estratégias formuladas pelas mulheres atua
sobre a subjetivação e o sentido da violência de forma direta, ou seja, culpabilizando-as e
mantendo a prescrição de posicionamentos baseados na matriz heteronormativa.

Nesse sentido, a proposta é realizar a análise do processo de enfrentamento à violência de


gênero a partir dos diferentes momentos dos ciclos de violência e de enfrentamento à
violência, considerando que, desta forma, seria possível desnaturalizar e redimensionar as
responsabilidades entre as sobreviventes à violência de gênero e seus interlocutores(as). De
179
outra forma, se atuaria, justamente, na manutenção de posicionamentos dicotomizantes, onde
de um lado estão as mulheres e do outro todos os seus interlocutores(as) institucionais e ou
familiares, como exemplificado por Janaína em seu desabafo na sessão dia 22 de julho de
2009. Após a atuação da Polícia Militar no seu caso, ela concluiu: “Nunca mais! Nunca
Mais!”, se referindo à sua decisão de não chamar a Polícia novamente caso ocorresse outro
episódio de violência com seu marido. O saldo de sua estratégia de publicização foi revolta,
humilhação, descrédito na instituição policial, acusação e culpa pela iniciativa.

5.3 ESTRATÉGIAS DE PUBLICIZAÇÃO / ESTRATÉGIAS PRIVADAS

“Olha o tanto de coisa que eu fiz” (Elis).

Nesta pesquisa compreendo as estratégias apresentadas pelas sobreviventes à violência de


gênero, durante a participação no Grupo, como de publicização ou privadas. Por estratégias
de publicização compreendemos aquelas apresentadas pelas sobreviventes à violência de
gênero que remetem à busca de ajuda e ou apoio em recursos externos à relação violenta com
o objetivo de encerrar o ciclo de violência. Por recursos externos compreendemos as
instituições da Rede de Enfrentamento e demais instituições públicas e privadas bem como o
círculo de convivência externa à relação violenta como familiares, amigos, conhecidos e
empregadores (em todos os casos tanto da parte da mulher como de seu companheiro). Por
estratégias privadas entendemos as com foco de atuação na relação da mulher consigo e com
o companheiro, resguardando a relação violenta da exposição pública. A partir das várias
estratégias apresentadas pelas participantes do Grupo percebemos que não há estratégias mais
ou menos eficientes por si mesmas. Até porque para a análise da eficácia das proposições das
estratégias deve ser levada em consideração as especificidades da relação violenta como o
relato de ameaça de morte, transtornos psiquiátricos, uso e abuso de drogas, porte de armas,
tentativa de homicídio, não apoio familiar à separação. O que se pode concluir a partir dos
relatos, é que quando a participante consegue utilizar-se de uma combinação dos dois tipos de
estratégias há maior chance de manutenção de períodos sem violência e/ou um maior
espaçamento entre os momentos do ciclo. Pelos relatos, observa-se que a decisão isolada de
adotar uma estratégia de publicização sem a adoção de estratégias privadas esvazia
rapidamente o impacto da publicização. Por sua vez, também se conclui pela análise dos
relatos, que a manutenção de uma estratégia privada isolada não garante que outras cenas de
180
violência não ocorrerão. Pode-se perceber isto nas situações onde, dificilmente, uma mulher
resolve denunciar um ato de violência no primeiro episódio, optando por estratégias privadas,
ou nos casos, onde até no período da separação há a manutenção de cenas de violência (como
nos casos de Cíntia-sessão de 26 de agosto de 2009/Fernanda-sessão de 22 de agosto de
2009). A sequência de decisões e estratégias adotadas, por exemplo, por Camila em sua
trajetória de sobrevivente à violência de gênero demonstra como pode ser difícil barrar um
ciclo, principalmente em casos como o dela, onde eles são rápidos podendo ocorrer a
sequência dos três momentos em horas (como apresentado no relato do ciclo de violência
durante um almoço familiar sessão de 19 de agosto de 2009). Neste exemplo, observa-se
como no decorrer de um ciclo que se desenvoleu, aproximadamente em três horas, ela foi
decidindo mudar de estratégias. Primeiramente ela optou pelas estratégias privadas (de sair
do ambiente da festa familiar ao perceber que um momento de tensão se iniciava, para não
expor a si e ao companheiro a uma cena de violência em público). Ao sair da festa, no trajeto
para casa, ela negocia com o companheiro, solicitando-lhe que parasse as acusações e as
injúrias e saísse de seu carro. Até este momento, se percebe que Camila optou por manejar
e/ou negociar a situação adotando estratégias privadas evitando o confronto com o
companheiro e a publicização da violência. Como estas estratégias privadas não surtiram
efeito, ela decidiu publicizar a situação de violência, mudando as estratégias e pedindo auxílio
a um terceiro (Polícia Militar) para auxiliá-la a retirar o companheiro do carro. As estratégias
de deslegitimação, descrédito e ameaças por parte do companheiro de Camila são
características do que dificulta o ciclo de enfrentamento e prolonga os momentos de tensão do
ciclo de violência.

O processo de negociação destas estratégias durante o aqui-agora grupal ocorre vinculado ao


sentido da violência sustentado pelo ECRO grupal e a partir da apresentação das estratégias
durante as sessões grupais. Assim as estratégias relatadas podem ser divididas entre as
colocadas em prática e as que são construídas pela coordenação e pelas outras participantes
durante o relato de alguns casos de violência. Entre as já colocadas em prática é interessante
observar que sua apresentação ocorre vinculada a relatos de avanços ou retrocessos em um
ciclo de enfrentamento, o que permite que seja realizada uma avaliação coletiva das
estratégias e de suas consequências. A percepção de que estratégias adotadas estão dando
início a um processo de mudança na relação violenta é valorizada pelas participantes do
Grupo e pela coordenação. Geralmente observa-se que os relatos de adaptação ativa se

181
referem à adoção de estratégias que as auxiliaram a atuar sobre os pontos percebidos como
mais difíceis de superar durante o ciclo de enfrentamento. As dificuldades apresentadas se
referem a aspectos familiares, sentimentais, afetivos, financeiros, sociais e relativos ao
próprio companheiro. A oportunidade de avaliar com outras mulheres na mesma situação as
suas decisões e estratégias é um dos aspectos diferenciadores possibilitados pela dinâmica
grupal. Observamos que isto potencializa o processo de tomada de decisões das mulheres,
auxilia nos momentos de deslegitimação do processo, enriquece o processo de construção de
outras estratégias e o ECRO grupal, incentiva às outras participantes a tomarem ou manterem
decisões e estratégias e legitima o ciclo de enfrentamento à violência. Além disto, a partir
dos relatos das situações de violência são elaboradas sugestões para a quebra do ciclo de
violência por parte das outras participantes juntamente com a coordenação. Este processo se
baseia no ECRO grupal, nas estratégias já analisadas para casos similares, na capacidade
criativa do Grupo, sendo a tarefa grupal, justamente, aprender a pensar no Grupo a partir da
problemática grupal utilizando-se dos esquemas referenciais de cada participante e do Grupo.
(PICHON-RIVIÈRE, 1994). A dinâmica de um Grupo Operativo incita à criatividade no
pensar com o abandono de estereotipias no fazer e no criar. Utilizar-se desta proposta no
processo de enfrentamento à violência é o desafio do Grupo analisado nesta pesquisa.
Compreendemos que as participantes, na verdade, deverão decidir sozinhas se e como
encerrarão seus ciclos de violência, mas podendo utilizar-se do aprendizado no Grupo para
este propósito. O aspecto criativo definidor da metodologia do Grupo Operativo reafirma a
proposta de elaboração e utilização de estratégias variadas como forma de enfrentar a
violência e o lugar de destaque da participação no Grupo como uma estratégia de
publicização que as apóia neste processo de (re)criar e (re)avaliar suas trajetórias. Assim,
neste Grupo a tarefa é realizada a partir do processo de negociação das estratégias permitindo
que o Grupo adquira legitimidade e eficiência para as participantes. Durante o processo de
negociação das estratégias nas sessões grupais percebem-se estes movimentos a partir da
convergência e divergência entre as participantes sobre os posicionamentos adotados pelas
participantes e seus parceiros durante o relato de estratégias privadas e em relação ao
posicionamento de terceiros no caso de estratégias de publicização durante o ciclo de
enfrentamento à violência. Em um Grupo Operativo, estes momentos de
divergência/convergência podem ser compreendidos pela heterogeneidade nos esquemas
referencias de cada participante, sendo este aspecto apontado por Pichon-Rivière (1994)
como importante para a dinâmica grupal por potencializar a realização da tarefa.

182
A partir dos relatos analisados temos vários exemplos deste tensionamento necessário para a
negociação. Na sessão de 22 de julho de 2009 observamos como a partir do questionamento
de Camila sobre o atendimento recebido no Espaço Bem-Me-Quero inicia-se uma sequência
de questionamentos sobre a estratégia de publicização de buscar auxílio da Polícia
Militar/Civil. Este movimento grupal foi muito interessante, pois se as participantes não
convergiram com a colocação de Camila sobre o posicionamento do Espaço Bem-Me-Quero,
elas apresentaram relatos que convergiram com a denúncia de Camila sobre a deslegitimação
em suas trajetórias de sobreviventes à violência de gênero. Pode-se observar que as
participantes se utilizaram das colocações de Camila para apresentar situações convergentes
em suas próprias trajetórias (como realizado por Fernanda e Janaína na referida sessão).
Assim, apesar do protesto de Camila ter se dirigido ao Espaço Bem-Me-Quero, a discussão
voltou-se para o desrespeito aos direitos das sobreviventes à violência de gênero por seus
companheiros e pela Polícia Militar, bem como para a dificuldade de ser aceita e
compreendida pelos familiares durante o período de separação. No caso do relato de Janaína
sobre a adoção da estratégia de publicização (chamar a Polícia Militar) é possível perceber o
movimento de apropriação dos relatos pelas participantes durante a discussão sobre os
posicionamentos dos agentes policiais, dela e de seu companheiro. As participantes
convergiram sobre a importância da adoção da estratégia de publicização, da inadequação do
comportamento dos agentes policiais e do companheiro de Janaína, mas divergiram do
posicionamento de Janaína em todo este episódio violento.

Por este conjunto de relatos é possível concluir a convergência da importância de apoio à


mulher que busca sair do ciclo de violência a partir da adoção de estratégias de publicização,
visto que sobre este aspecto não ocorreu divergência por parte das participantes. Mesmo no
caso de Elis (sessão de 19 de agosto de 2009) onde a Polícia não compareceu após o
chamado, não se questionou a estratégia, mas sim a atuação policial. O que se percebe então é
que é necessário problematizar qual apoio cabe a cada instituição de acordo com suas funções
na Rede de Enfrentamento à Violência e as formas como elas encaminham as solicitações das
sobreviventes à violência de gênero. Este aspecto também está presente no relato de Cíntia
sobre a atuação dos funcionários da Audiência de Conciliação (sessão do dia 26 de agosto de
2009).

183
No caso de Camila, ela tenta demonstrar como sua situação particular de deslegitimação
durante a trajetória de enfrentamento à violência poderia ser utilizada como uma denúncia
visando à mudança deste fenômeno social. O deslocamento entre o eu e o nós aparece nas
estratégias apresentadas por ela (sessão de 12 de agosto de 2009); receber uma atenção
especial da instituição e apresentar seu depoimento para auxiliar no enfrentamento à violência
na sociedade reafirma a apropriação do sentido da violência de gênero como fenômeno a ser
enfrentado no coletivo, através da publicização. Observa-se, assim, a convergência entre o
ECRO grupal e o posicionamento ativo de Camila.

No caso de Cíntia, ela apresenta como estratégia para se contrapor à deslegitimação em seu
ciclo de enfrentamento à violência a visibilidade do Grupo como local privilegiado na Rede
de Enfrentamento à Violência. Esta colocação delimita o Grupo como legitimador das
trajetórias destas sobreviventes na Rede de Enfrentamento, o que justifica a solicitação de
Cíntia de que uma declaração de sua participação no Grupo faria diferença no posicionamento
de seu ex-companheiro e das servidoras na Audiência de Conciliação. Esta solicitação já foi
apresentada por outras participantes do Grupo, o que reafirma o local privilegiado do Grupo
como legitimador na trajetória destas sobreviventes à violência de gênero.

Para além, as participantes do Grupo apresentam como estratégias de publicização o


atendimento psicológico (sessão dia 19 de agosto de 2009) e a aplicação da Lei Maria da
Penha. Para tentar minimizar posicionamentos institucionais violentos, elas apresentam como
estratégia a aplicação de processos criminais contra os policiais/profissionais que atuarem de
forma violenta/deslegitimadora (sessão do dia 12 de agosto de 2009). Desta forma, sem
supervalorizar o saber psicológico (e o atendimento em grupo) vale observar a reiteração da
importância da escuta recebida. As participantes do grupo, inclusive, propõem este tipo de
atendimento aos homens agressores e que seu oferecimento seja ampliado, inclusive para
dentro das instituições policiais, sugerindo a contratação de profissionais “psi” para estas
instituições (sessão do dia 12 de agosto de 2009).

Vale ainda destacar a afirmação das participantes da importância da adoção de estratégias de


publicização da violência para além da busca de auxílio institucional. Pelos relatos percebe-se
a influência (positiva e negativa) do apoio da família, de amigos e conhecidos para a tomada e
manutenção das decisões durante a trajetória de enfentamento à violência (sessões dias 22 de

184
agosto de 2009, 12 de agosto de 2009 ,19 de agosto de 2009 e 26 de agosto de 2009). Entre os
relatos sobre o apoio de amigas chama a atenção a estratégia de Cíntia de ir acompanhada por
Graça à Audiência de Conciliação e o apoio recebido por elas de Camila neste dia tumultuado
(sessões dias 19 e 26 de agosto de 2009). Também é interessante observar o apoio que
Fernanda recebeu de Graça (sessão dia 22 de julho de 2009), comprando roupas dela para
ajudá-la financeiramente. Para além, o próprio convite de Elis a Nina para participar do Grupo
e desta para Sâmia (sessão dia 22 de julho de 2009) podem ser analisados nesta linha de
raciocínio como também indicativos do Grupo como um local reconhecido pelas participantes
como legítimo no processo de enfrentamento à violência.

Entre as estratégias privadas destaca-se a adotada por Fabíola (sessão dia 12 de agosto de
2009) de “negociar consigo” mesma, bem como a de Fernanda de “se posicionar” (sessão do
dia 22 de julho de 2009). Podemos considerar estas atitudes como estratégias privadas de
enfrentamento à violência por serem empregadas a partir do entendimento da mulher de que
assim ela pode barrar ou coibir novas cenas de violência. Negociar consigo é uma estratégia
por possibilitar que a mulher não atue no impulso, mas analisando e refletindo sobre a relação
e as circunstâncias e tomando decisões a partir da reflexão sobre a situação de seu ciclo de
violência. A aposta no posicionamento também é interessante visto que assim a mulher se
justifica em sua trajetória por si mesma e a partir de suas decisões. Consideramos ser esta, na
verdade, uma estratégia muito importante e necessária durante o processo de enfrentamento à
violência, pois, como ocorreu no caso de Janaína (sessão de 22 de julho de 2009), a adoção de
uma estratégia de publicização pode ser esvaziada se a sobrevivente não se posiciona
legitimando sua decisão frente às tentativas de deslegitimação de terceiros. A pergunta para
qualquer estratégia apresentada é: ela diminuiu de alguma forma o sofrimento e a violência na
relação? Este é um medidor passível e coerente com a tarefa do grupo. Como resume uma
participante em sessão não analisada nesta pesquisa: “Essa estratégia que eu inventei agora,
está me deixando melhor? Está ótimo. Se não está, eu vou mudar de estratégia”. Esse
exercício de verificação é facilitado e compartilhado no Grupo com outras sobreviventes à
violência de gênero legitimando todo o processo.

Outro aspecto importante a ser problematizado em relação à violência de gênero é o


posicionamento institucional/individual adotado: enfrentar, negociar ou manejar. Camila
conclui (na sessão de 12 de agosto de 2009) que de todos os relacionamentos violentos aos

185
quais sobreviveu o que ela conseguiu melhor se posicionar foi justamente naquele onde
conseguiu manejar a situação. Cabe analisar os posicionamentos adotados a partir destas
propostas. No caso da Rede, ela se propõe a enfrentar a violência, um posicionamento
pretensamente ativo de confrontas as situações de violência. Sobre os posicionamentos de
negociar e manejar é preciso considerar que quando uma mulher negocia com seus parceiros,
com as instituições da Rede e com a sociedade estratégias para o fim da violência, nestes
casos, elas são as interlocutoras posicionadas ora como vítimas ora como sujeitos
responsáveis pelo fim da violência, mas sempre frente a outros interlocutores(as) que detêm,
na maioria dos casos, o poder (escamoteado ou legitimado) de definição sobre as decisões das
sobreviventes. Porém para que se ocorra uma negociação com legitimidade democrática parte-
se do pressuposto de igualdade de direitos e deveres entre os interlocutores(as). Mas segundo
Butler (2003)

a própria noção de “diálogo” é culturalmente específica e historicamente delimitada,


e mesmo que uma das partes esteja certa de que a conversação está ocorrendo, a
outra pode estar certa de que não. Em primeiro lugar, devemos questionar as
relações de poder que condicionam e limitam as possibilidades dialógicas
(BUTLER, 2003, p.35).

Consideramos que este questionamento deve ser guia para análise de qualquer proposta de
enfrentamento à violência de gênero visto ser esta violência sustentada justamente na
desigualdade de gênero/sexo. O que ocorre nestas condições, caso não se atente para esta
desigualdade fundante, é uma negociação entre interlocutores(as) legitimados(as) em posições
diferenciadas de poder a partir das normas mantenedoras da matriz heteronormativa. Desta
forma, apesar da ocorrência de um ‘diálogo’, há uma diferença normativa de antemão que
influencia/define o “poder de barganha” e os ganhos/mudanças que se pode atingir. A
proposta de ‘manejar’ uma relação violenta também aposta em uma manipulação deste poder
legitimador onde a mulher, não podendo alterar definitivamente os acontecimentos,
administra-os da melhor forma possível, segundo o que lhe é possibilitado/permitido. Assim,
manejar uma relação de violência seria como tentar sobreviver enquanto se administram as
variáveis internas da situação. A pergunta é: através do manejo e da negociação as mulheres
sobreviventes conseguem sair do ciclo de violência? Estar em uma relação de manejo e de
negociação possibilita alternativas para a violência? É possível uma negociação e um manejo
que legitimem a mulher em sua posição de enfrentamento à violência? O que se observa é que
quando uma mulher decide encerrar uma relação violenta inicia-se um processo de
negociação onde as perdas e os ganhos gravitam, geralmente, entre o afetivo e o financeiro. A
186
hipótese de que se percam em ambos os aspectos (com o fim da relação afetiva e com a não
garantia dos direitos civis) bloqueia/retarda a decisão de muitas mulheres de sair de uma
relação violenta, como é apresentado por todas as participantes desta pesquisa em maior ou
menor grau. Tal fato indica, assim, que se deve problematizar a partir de qual proposta estão
sendo guiadas a elaboração e a aplicação das estratégias institucional/individual para não se
incorrer no risco de apenas manejar ou negociar a violência de gênero.

Podemos concluir que o processo de negociação das estratégias no Grupo reafirma o sentido
da violência como cultural e social e seu enfrentamento balizado principalmente por
estratégias de publicização. Mesmo nos casos onde se afirma a importância do processo
terapêutico para as mulheres e seus companheiros remete-se a responsabilidade por estes
atendimentos às políticas públicas através de suas instituições. Cabe perguntar se a
reivindicação de Camila (repetida exaustivamente) de que a Lei Maria da Penha seja
cumprida, aliada à possibilidade de atendimento psicológico para as mulheres sobreviventes à
violência de gênero seria suficiente para o enfrentamento à violência. E ainda, se estes
mecanismos já estão legitimados na Rede de Enfrentamento, por que ela ainda emperra?
Estariam as instituições e a sociedade se posicionando de forma a enfrentar a violência ou de
forma a negociar para que ela permaneça com outra roupagem? É possível problematizar o
enfrentamento à violência de gênero sem questionar as normas que o sustentam?

5.4 TRAJETÓRIAS DE SOBREVIVENTES PELA REDE DE ENFRENTAMENTO À


VIOLÊNCIA DE CONTAGEM/MG

“A senhora tem certeza? Essa pergunta não deveria existir” (Camila).

Nesta pesquisa, enfoco o processo de enfrentamento à violência de gênero a partir de um


processo de negociação entre as sobreviventes a este tipo violência e as instituições da Rede
de Enfrentamento e outros terceiros posicionados entre elas e seus (ex)companheiros
violentos. A escolha de apresentar este processo de garantia de direitos como parte de uma
negociação visa dar visibilidade às dificuldades institucionais e pessoais das sobreviventes na
efetivação e legitimação de seus direitos, tanto no que se refere à tramitação de processos
187
civis como à aplicação da Lei Maria da Penha para o enfrentamento e coibição da violência
doméstica e familiar. Junto a isto se pode problematizar o lugar no imaginário social das
instituições que fazem parte da Rede de Enfrentamento à Violência em contraposição à
missão institucional das mesmas focalizando, principalmente, a Polícia Militar (190) / Policia
Civil (DECCM) e o Centro de Referência (Espaço Bem-Me-Quero), por serem estas
instituições portas de entrada muito comuns da Rede de Enfrentamento.

Neste contexto, é interessante analisar a estratégia de publicização indicada pelas instituições


da Rede de Enfrentamento à Violência às participantes do Grupo (Camila, Cíntia, Elis,
Janaína, Kenia, Fernanda) de intervenção da Polícia Militar (PM) nos episódios agudos de
violência, geralmente através de uma ligação para o 190. Sustentamos que a recorrência da
adoção desta estratégia se deve à missão destinada à PM na manutenção da segurança
pública. Assim, a partir da implementação da proposta de atendimento em Rede, a PM foi
incorporada como uma das portas de entrada tanto pela sua visibilidade pública como por sua
missão institucional. Desta forma, a análise da efetividade desta estratégia de publicização é
muito importante, por serem, geralmente, os agentes da PM os primeiros a entrar em contato
com a situação de violência com seus encaminhamentos e posicionamentos, assumindo, por
isso, importante papel na (des) legitimação do processo de enfrentamento iniciado pela
sobrevivente.

Pelos relatos (Janaína, Fernanda e Camila - sessão dia 22 de julho de 2009 e Elis - sessão de
19 de agosto de 2009) observa-se que, após a dificuldade inicial de se decidir por adotar a
estratégia de publicização de acionar a Polícia Militar (PM), a trajetória da mulher
sobrevivente à violência de gênero desenvolve-se numa sequência de momentos decisivos
para a (des)legitimação ciclo de enfrentamento à violência, quais sejam:

 a espera com a dúvida de que o chamado será atendido:

Neste momento, é recorrente o relato sobre chamadas telefônicas deslegitimadas, por


exemplo, quando os(as) atendentes informam que não é possível o atendimento por falta de
agentes ou de viaturas, ou por não se considerar que este tipo de violência seja da
competência da PM. Em outras situações, após ser acionada, demora-se muitas horas para que
uma viatura compareça ao local do crime, o que possibilita que o homem possa fugir e se

188
desqualifique o flagrante. Na pior das hipóteses, os agentes policiais não comparecem como
relatado por Elis e Janaína nas sessões de 22 de julho de 2009 e 19 de agosto de 2009.

 a chegada dos policiais no local da ocorrência da violência e a apresentação da queixa


pelo indivíduo que acionou a Polícia Militar:

Neste momento, o processo de deslegitimação pode ocorrer, apesar do comparecimento dos


policiais, por exemplo, com a afirmativa de que o ocorrido não é da alçada policial, com a
negação de atenção e escuta à ofendida, com a tentativa de justificar o ocorrido a partir de
sentidos diferentes para a violência e com a proposição de um enfrentamento não criminal. O
caso de Janaína (sessão de 22 de julho de 2009) é exemplar para se demonstrar como este
momento pode se guiar por sentidos/posicionamentos que divergem/dificultam o processo de
enfrentamento à violência.

 a decisão (da mulher /dos Policiais Militares) de levar ao conhecimento da Delegacia o


fato e de se registrar um Boletim de Ocorrência (BO):

Neste caso é mais nítida a negociação de direitos como um processo de deslegitimação do


enfrentamento à violência, pois, ao se negar, omitir ou desqualificar o ocorrido como
justificando a elaboração de BO deslegitima-se e desqualifica-se a violência ocorrida como
um ato a ser apresentado à instituição policial para investigação. O que acontece, muitas
vezes, é a substituição deste registro por orientações ou sugestões que nem sempre se guiam
pela missão institucional da Polícia Militar. Outro fato muito comum é o registro de BO sem a
explicação para a mulher e seu companheiro do que ele representa, suas consequências e os
passos posteriores para que se dê início a um processo investigativo.

 a decisão sobre a realização da representação do crime de violência doméstica e


familiar contra a mulher, segundo as indicações da Lei Maria da Penha:

Nos casos em que as sobreviventes são encaminhadas ou conduzidas para as DECCM


responsáveis pelo prosseguimento do processo de investigação do ocorrido, o processo de
deslegitimação pode ocorrer através: da omissão por parte dos agentes policias das
informações sobre a Lei Maria da Penha, a negativa de se registrar a representação para que se
instaure o processo criminal e/ou de se solicitar as Medidas Protetivas e do oferecimento de
alternativas que se guiem por sentidos da violência e de seu enfrentamento diferente daqueles

189
determinados pela Lei e pela missão institucional da Polícia Civil. Como nos exemplos
relatados e criticados na sessão do dia 12 de agosto de 2009 por Camila e por Janaína.

Em cada um destes momentos percebe-se como o processo é permeado pela tomada de


decisões que se baseiam: na legislação, na função dos policiais e nas especificidades do
ocorrido, bem como nos posicionamentos dos policiais, da mulher e do companheiro
atravessados pelo sentido que a violência e seu enfrentamento assumem para cada um destes
participantes no episódio de publicização da violência. Desta forma, se por um lado têm-se
que se seguir os parâmetros legais para a situação, nota-se como ocorre paralelamente um pré-
julgamento da queixa-crime segundo estes sentidos diferentes. As consequências deste
julgamento paralelo para o enfrentamento à violência podem ser observadas a partir do relato
de Janaína (sessão dia 22 de julho de 2009) onde a ação da Polícia Militar foi focalizada na
punição do desacato de autoridade de seu marido e pelo tratamento recebido durante todo o
processo a levando à decisão de nunca mais acionar a Polícia. Este impacto negativo também
ficou para Fernanda, pois no seu caso, a atenção foi dada a seu ex-marido e não ao seu relato
do ocorrido. Assim, Fernanda, Camila e Janaína reclamam porque nestas ações policiais seus
companheiros não foram questionados por suas ações violentas (criminosas) e sim elas que
acionaram a Polícia. Como Camila disse, o que elas desejavam era simplesmente que “fosse
feita a Lei”. (sessão de 22 de julho de 2009).

Desta forma, a partir destes relatos pode-se problematizar qual a efetividade para o
enfrentamento à violência de gênero da estratégia de publicização isolada de se acionar o
“190”, visto que, sem a efetivação de uma representação do crime ocorrido, impossibilita-se a
instauração de um processo investigativo e punitivo do crime de violência doméstica contra a
mulher.

Vale ressaltar que a estrutura policial no Brasil é organizada a partir de duas divisões: a
ostensiva (Polícia Militar) e a investigativa (Polícia Civil), informação que não é de
conhecimento da população. Assim, aos agentes da Polícia Militar cabe apurar todas as
ocorrências feitas e à Polícia Civil, neste caso, representada pela Delegacia Especializada em
Crimes contra a Mulher, cabe, após o encaminhamento da Polícia Militar, a condução do
processo investigativo. Esta parte da trajetória na Rede é um nó onde se perdem muitos casos,
pois, a mulher, por desconhecer o funcionamento da Polícia, acredita que só por ter acionado
a Polícia Militar já se configura uma ação criminal-investigativo-punitiva. O que se apresenta
190
é que devido às dificuldades administrativas (como número de efetivos) trabalha-se a partir de
uma escala de prioridades e emergências (como explicitado por agentes destas instituições às
próprias mulheres, conforme denunciado por Camila na sessão do dia 19 de agosto de 2009).
Desta forma, a abertura de inquéritos policiais ocorre de forma desproporcional ao registro de
Boletins de Ocorrência, entre outros motivos, devido às falhas no processo policial, por
ausência da explicação da necessidade da representação para a ofendida e também por medo
desta em tomar a atitude de criminalizar o ato de seu companheiro.

Este processo de deslegitimação desta estratégia de publicização leva ao abortamento do


Ciclo de Enfrentamento à Violência pelas vias jurídico-policiais deslegitimando-a. Por
conseguinte, ocorre o questionamento da aplicabilidade da Lei Maria da Penha e da eficiência
dos órgãos policias (civis e militares) na atuação sobre este tipo de crime.24

A ação da Polícia Militar serviu, assim, como um paliativo, um genérico de uma ação legal.
Observa-se que os efeitos sobre o ciclo da violência, quando ocorrem, são colaterais, como:
vergonha dos vizinhos, medo de que se chame de novo a Polícia, desconforto de ser retirado
de casa e de ter que levar o famoso chá de cadeira. Desta forma, a violência de gênero no
âmbito doméstico não é enfrentada/punida como um crime, apesar de ser assim objetivada na
Lei Maria da Penha. Infelizmente o que se percebe é que o enfrentamento à violência de
gênero no âmbito doméstico apresenta-se como um teatro urbano de baixo calão. Este
enquadre descaracteriza o crime, deslegitima as ações da mulher, desqualifica a ação policial
e legitima a ação do parceiro que continua certo de sua não punição apesar das tentativas de
enfrentamento à violência por parte da mulher.

Sustento que este posicionamento do aparato policial é um grande complicador para a


efetividade do enfrentamento à violência de gênero, especialmente no ambiente doméstico.
Quando uma mulher decide publicizar a situação de violência a partir deste mecanismo e tem
sua estratégia deslegitimada corre-se o risco de que toda a proposta de atendimento em Rede
de Enfrentamento à Violência seja desmobilizada/desarticulada. A mulher, por sua vez, já
definida como “pequena” frente a este Muro sente-se com “medo”, “envergonhada”,

24
Artigo 12º: “Em todos os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, feito o registro da
ocorrência, deverá a autoridade policial adotar, de imediato, os seguintes procedimentos, sem prejuízo daqueles
previstos no Código de Processo Penal: I- ouvir a ofendida, lavrar a ocorrência e tomar a representação a termo,
se apresentada; II - colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato e de suas circunstâncias;
(...) V- ouvir o agressor e as testemunhas” (BRASIL, Lei 11340).

191
“revoltada”, “tratada como um lixo”, “um cachorro” (sessão de 22 de julho de 2010 e em
outras sessões não analisadas nesta pesquisa).

Em contraposição, percebe-se nos relatos de Janaína, Camila e Fernanda (sessão 22 de julho


de 2010) que o Espaço Bem-Me-Quero é apresentado como uma instituição localizada de
forma diferenciada na Rede tanto em relação às suas funções como ao atendimento prestado.
Desta forma, as participantes reconhecem a função de orientação e encaminhamento do
Centro de Referência, que, segundo elas, é prestado adequadamente transmitindo confiança e
acolhimento. Ainda assim, a partir do questionamento apresentado por Camila (sessão de 22
de julho de 2010) as participantes apresentaram sugestões de novas formas de o Espaço
desempenhar sua missão institucional. O que se percebe a partir da análise da referida sessão
é que, a partir da crítica de Camila sobre o Espaço Bem-Me-Quero, desencadeou-se uma
linha de questionamentos sobre o atendimento da PM e também sobre o do Espaço. Este fato
indica a pertinência do assunto e a cooperação entre as participantes e a criatividade ao
debater este tema tão importante para a compreensão do ciclo de enfrentamento à violência
na Rede de Enfrentamento à Violência de Contagem/MG. Sustentamos que a ocorrência
desta discussão a partir de colocações de uma participante do Grupo é um indicativo também
da apropriação destas sobreviventes de seus direitos como usuárias destes serviços e da
legislação que os sustenta. Os questionamentos apresentados se dirigiram à inadequação do
atendimento prestado à luz das discussões grupais sobre as trajetórias de sobreviventes das
participantes e sobre as missões institucionais segundo a Lei Maria da Penha. Desta forma, o
sentido de desrespeito e de descumprimento das ações institucionais (especialmente as
policiais) foi negociado pelas participantes no grupo legitimando-o como um local
privilegiado para a (re)construção do sentido do enfrentamento à violência pelas
sobreviventes à violência de gênero.

Sobre o protesto de Camila sobre o posicionamento do Espaço Bem-Me-Quero, percebe-se


que ela não o realizou por causa do atendimento interno institucional, mas sim pelo
posicionamento em relação à violência policial ocorrida. Desta forma, pode-se compreender
seu protesto localizando-o como uma incitação a um embate entre as duas instituições da
Rede de Enfrentamento. Ela reafirma o Espaço como local de legitimização e apoio às
mulheres, inclusive frente às ações policiais. Considero, assim, o desabafo de Camila como
emblemático do posicionamento das sobreviventes à violência em suas trajetórias pela Rede
de Enfrentamento. Ela, ao mesmo tempo, diferencia e desafia o lugar e o poder do Espaço
192
Bem-Me-Quero na Rede e em relação à Polícia. Por outro lado, percebe-se que ela se sentiu
legitimada e deslegitimada ao mesmo tempo, demonstrando como a análise das trajetórias
destas sobreviventes é complexa exigindo o conhecimento da Rede e a atenção às
discrepâncias entre as missões e as práticas institucionais delimitadas a partir dos relatos das
sobreviventes.

Assim, a partir do protesto de Camila e das sugestões das demais participantes sobre o
assunto (sessão de 22 de julho de 2009), pode-se discutir o lugar que o Espaço Bem-Me-
Quero ocupa no imaginário destas mulheres em contraposição à sua missão institucional na
Rede de Enfrentamento. Podemos entender a partir do protesto de Camila que ela esperava
que o Espaço Bem-Me-Quero se posicionasse a seu favor contra a Polícia (que também faz
parte da Rede de Enfrentamento) e seu companheiro. Esta imagem do Espaço Bem-Me-
Quero como um local diferenciado e de apoio incondicional e poder é recorrente nas
colocações das mulheres para diferenciar o Espaço do serviço de outras instituições da Rede.
Assim, ao não ser correspondida pelo Centro a partir deste papel imaginário, ela descreve o
tratamento recebido como traumático. Este aspecto imaginário agregado às instituições da
Rede é fácil de ser compreendido, principalmente se tratando de uma clientela que tem
sofrido com descomposturas e descréditos pelas instituições por onde transitam,
especialmente, a policial. A própria necessidade de criação de Centros de Referência para
acolhimento e encaminhamento das mulheres em situação de violência diz da dificuldade de
interligação entre as instituições de enfrentamento à violência e do desconhecimento por
parte da população destes serviços. Inquestionavelmente, a existência deste serviço em uma
Rede é um ganho para as mulheres, mas também aponta para a necessidade de que os
atendimentos das outras instituições (indiferentemente de suas missões) deveriam sempre
acolher a sobrevivente à violência de gênero e realizar todo o atendimento pautado pelo
respeito a seus direitos e escolhas.

Assim, o diferenciador dos Centros de Referência, talvez, esteja justamente em sua proposta e
posicionamento inicial de acolhida e em seu posicionamento em um local estratégico entre a
Delegacia de Mulheres e a possibilidade de denúncia da violência e as Casas Abrigos, que
seriam os locais destinados às mulheres em risco iminente de morte. Assim, atentando-se para
a dinâmica do ciclo de enfrentamento à violência os Centros seriam estratégicos por estarem
no meio do caminho entre as três estratégias de publicização temidas pelas mulheres: a
denúncia de seus companheiros às instituições policiais, o pedido formal de separação no
193
Núcleo de Defesa da Mulher (NUDEM) e o encaminhamento para uma Casa Abrigo nos
casos de risco de morte. Dessa forma os Centros de Referência posicionam-se (e são
posicionados) na Rede como um local intermediário na trajetória das sobreviventes como
explicitado por Silveira (2006):

não podemos afirmar que já exista um lugar simbólico social para este tipo de
serviço, ao contrário do que ocorre com as delegacias. (...) Entretanto as demandas
das mulheres que buscam os centros são bastante específicas. Elas se caracterizam
pela indefinição quanto ao melhor caminho para romper a relação violenta (...). Isto
sugere que estes equipamentos ofereçam uma possibilidade alternativa de resolução
do conflito violento. (...) Um importante diferencial é que o processo de
ambiguidade é acolhido e enfrentado, enquanto um plano de saída da dinâmica
violenta pode ser desenhado. A aposta é no desejo da mulher, seja ele qual for e no
tempo que for possível e necessário. A ênfase é “no processo” de superação da
relação violenta (SILVEIRA, 2006, p.64).

A acolhida dos momentos de ambiguidade e dúvida é um dos aspectos delicados na trajetória


das sobreviventes porque diz do direito a autodeterminação da mulher sobre sua vida e suas
decisões. A mulher sobrevivente à violência de gênero tem o direito à escolha, inclusive, de
permanecer em uma situação crônica de violência (mesmo após ter acionado uma instituição
da Rede) ou de não concordar em levar a cabo os encaminhamentos recebidos. Nos casos em
que a equipe técnica de um Centro de Referência, por exemplo, detecta que a mulher se
encontra em risco iminente de morte a orientação é que se faça o encaminhamento para a
Casa Abrigo e para o registro de uma denúncia formal na Delegacia de Mulheres. Muitas
mulheres não concordam com estas alternativas e têm seu direito de discordar garantido.
Nestes casos, para resguardar a equipe e a instituição e também responsabilizar as mulheres
por suas decisões, a equipe solicita que elas assinem um termo de responsabilidade
afirmando sua escolha em não adotar as medidas propostas. A orientação é que as
instituições construam com as sobreviventes os encaminhamentos para os seus casos e que
respeitem suas decisões mesmo que estas sejam diferentes das apontadas pelas equipes
técnicas. Sustento que uma negociação que ocorre baseada no respeito às escolhas das
sobreviventes permite que se evitem episódios de violência de gênero institucional e a
elaboração de estratégias a partir da (re)afirmação de lugares de poder diferenciados entre as
interlocutores(as). Assim, a possibilidade de eficácia de uma estratégia está diretamente
vinculada à observância deste jogo de poder.

A partir disto é possível analisar o protesto de Camila e sua dificuldade em aceitar que ao
Espaço Bem-Me-Quero caberia, apenas, acolher e encaminhar seu caso. O seu protesto assim
194
é compreendido a partir de sua necessidade de legitimação frente à violência policial ocorrida.
Fica a pergunta se caberia ao Centro de Referência outro posicionamento/ encaminhamento e
também a qual instituição encaminhar um caso como este. Acredito que estas perguntas
devem servir como guias nas discussões da Rede sobre sua organização e efetividade. Casos
como estes colocam em xeque as propostas de enfrentamento à violência por posicionarem
como violentadoras/deslegitimadoras as instituições dedicadas ao enfrentamento à violência.
Quando uma mulher tem medo de ser violentada, inclusive, pelas instituições, há de se
repensar a missão e a proposta de organização das instituições da Rede. Desta forma, os
desafios e questionamentos das participantes do Grupo estendem-se a todas as instituições que
compõem a Rede. Na minha perspectiva, muito do que ocorre nestes episódios de
deslegitimação é devido ao desconhecimento da missão de cada serviço por parte das
mulheres e também por parte das instituições componentes da Rede. Frente às consequências
deste desconhecimento susta-se o investimento, por exemplo, em formas de divulgação deste
esquema de enfrentamento para toda a população e na adoção de atendimentos institucionais
pautados pela informação em todas as instituições às mulheres e aos seus companheiros
(sessão de 12 de agosto de 2009). A divulgação desta questão serviria ainda para levar a
público a discussão do problema da violência de gênero como um problema de segurança
pública. As denúncias apresentadas por estas participantes devem servir como indicativos de
pontos de reflexão para as instituições da Rede e para toda a sociedade.
A partir do processo de negociação sobre suas trajetórias de sobreviventes pela Rede de
Enfrentamento à Violência de Contagem/MG as participantes também debatem sobre as
dificuldades durante o período de separação no que se refere à garantia de seus direitos civis
e de seus filhos e sobre a atuação do NUDEM e do Sistema Judiciário e apresentam como
contraponto de legitimação a dinâmica do Grupo. Como um exemplo temos o caso de Cíntia
que relatou sobre sua ansiedade/ medo e de seus familiares (sessão de 22 de julho de 2009)
após a decisão de dar entrada nos processos de separação, divisão de bens, guarda e pensão
dos filhos pode ser interpretada. Esta situação pode ser interpretado como um misto do medo
das reações de seu ex-companheiro e do desconhecimento sobre o andamento dos processo na
Justiça. Ao mesmo tempo ela fica ansiosa pela perspectiva da aproximação da audiência e
percebe-se que ela não compreende o que significa este momento e não sabe o que é esperado
nesta audiência, o que gera a ansiedade. Este sentimento de ansiedade é recorrente nas
mulheres participantes do Grupo tanto para as que já iniciaram o processo como para as que
não se decidiram ainda. Apesar de compreenderem a importância e necessidade desta

195
estratégia de publicização, elas temem as consequências desta medida, ou seja, apesar de
adotarem a intervenção jurídica, elas não se sentem seguras de sua eficiência. Este aspecto
contraditório serve para problematizar o sentido do Sistema Judiciário na Rede de
Enfrentamento à Violência. Sustentamos que esta situação pode ocorrer entre outros motivos
pelo longo período que transcorre entre a abertura de um processo civil e seu efetivo
julgamento. A morosidade característica destes processos não condiz com a celeridade dos
ciclos de violência. Além disso, percebe-se pelos relatos das participantes do Grupo, que,
como no caso dos atendimentos pelos agentes policiais, também não são oferecidas pelos
agentes dos setores responsáveis pelo andamento processual todas as informações necessárias
sobre direitos e possíveis dificuldades durante o andamento dos processos. Isto pode ser
constatado, por exemplo, durante os relatos de Susana (sessão dia 22 de julho de 2009), que
estava preocupada com o não recebimento da carta confirmando o agendamento de sua
audiência, de Fernanda (sessão 22 de julho de 2009), que esperava a presença de um oficial de
justiça para acompanhá-la à sua casa para a retirada de seus pertences e de Cíntia (sessão dia
26 de agosto de 2009), que não sabia que ocorria uma Audiência de Conciliação antes da
Audiência na presença do Juiz e que na Conciliação ela não seria acompanhada pela
Defensora responsável por seu caso. A partir disto, vale a pena refletir sobre a continuidade
dos ciclos de violência apesar da decisão da mulher de sair da relação violenta com a adoção
de estratégias judiciais.
O desabafo de Cíntia (sessão de 26 de agosto de 2009) sobre o atendimento recebido durante
a Audiência de Conciliação de seus processos é exemplar para que se perceba o processo de
deslegitimação do ciclo de enfrentamento à violência. Ela afirma que se sentiu desamparada
por estar desacompanhada da defensora e desacreditada em suas colocações e decisões tanto
por seu ex-companheiro como pelas responsáveis pela conciliação. Percebe-se pelo seu relato
como ela teve que constantemente reafirmar a situação de violência em sua relação e defender
seus direitos e os de seus filhos. É interessante também observar que ela não foi informada
sobre como seria realizada esta audiência e seus objetivos, levando-a temer pela garantia de
seus interesses. Desta forma é compreensível o caráter ansiogênico e angustiante que este
momento da trajetória de sobrevivente pela Rede Enfrentamento assume. Novamente, ela se
encontra frente a frente com seu companheiro em uma situação onde tem que se legitimar, se
defender, acusar e defender seus direitos. Devido à dinâmica própria de uma conciliação, os
terceiros que se posicionam entre o casal não atuam na defesa de nenhum dos
interlocutores(as), o que reafirma o posicionamento duplo da mulher como vítima e ao mesmo

196
tempo responsável por sua defesa. Levando-se em consideração que o interlocutor(a) da
sobrevivente nestes casos é prioritariamente seu ex-companheiro violento, depreende-se como
este esquema a princípio proposto a partir da estratégia de publicização judicial visando a
saída do ciclo de violência, pode funcionar como mais um dos momentos do mesmo
(tensão/violência). Novamente, vale questionar aqui as bases sobre as quais são
implementados os mecanismos institucionais para que não se adotem propostas que não têm
como objetivo enfrentar os ciclos de violência, mas manejá-los ou manipulá-los a despeito
dos interesses das sobreviventes à violência de gênero. Percebe-se como o processo de
deslegitimação no ciclo de enfrentamento à violência sustenta-se na manutenção de diálogos
ou negociações que escamoteiam “as relações de poder que condicionam e limitam essas
possibilidades dialógicas” (BUTLER, 2003, p.35). Vale a apena questionar a possibilidade e a
efetividade de uma negociação em um processo civil onde há a concomitância de situações de
violência de gênero no âmbito doméstico/familiar. Esta proposta pode, inclusive, deslegitimar
toda a trajetória da sobrevivente e a participação das instituições judiciais na Rede. Uma
Audiência de Conciliação regida por agentes não atentos para este jogo de poder pode resultar
em violência institucional, descrédito da instituição e da proposta, banalização da situação de
violência e, por fim, em perdas de direitos por parte das sobreviventes.

O caso de Cíntia também permite que se analise a inserção de outra instituição na Rede de
Enfrentamento à Violência de Contagem/MG: o Núcleo de Defesa dos Direitos das Mulheres
da Defensoria Pública (NUDEM). A criação deste mecanismo é mais um das inovações
apresentadas pela Lei Maria da Penha, bem como a possibilidade de criação de Juizados de
Violência Doméstica e Familiar (artigo 34, inciso III e artigo, 14). Percebe-se que estes
mecanismos do judiciário vêm como uma resposta às inúmeras denúncias de dificuldades
enfrentadas pelas sobreviventes à violência de gênero que adotam estratégias de publicização
jurídicas. Esta linha de raciocínio sustentou primeiramente a criação das DECCM, a
implantação da “Central de Atendimento à Mulher-180”, dos Centros de Referência, da
aprovação da Lei Maria da Penha e da própria necessidade de delimitação de medidas
protetivas nesta lei. Assim, é interessante analisar a criação de novos mecanismos legislativos
e institucionais para o enfrentamento à violência como um avanço no interesse de se
publicizar e coibir as ocorrências violentas, mas também como um alerta para a atuação dos
mecanismos já existentes. A formação de uma Rede eficaz não está vinculada somente à
quantidade de serviços oferecidos e à extensão da Rede, mas à execução adequada das

197
atividades de acordo com as missões institucionais. Acredito que a necessidade de criação de
instituições específicas para esta problemática dentro dos Poderes Judiciários, Legislativos e
Executivos aponta por um lado para a relevância do fenômeno, mas também para a
dificuldade destes Poderes em simplesmente inserir em suas agendas a discussão a partir do já
instituído. Assim, não se nega a importância destes novos rearranjos e mecanismos, mas se
questiona sobre quais bases eles estão sendo planejados e se objetivam, em última instância, o
questionamento das normas sociais que sustentam a violência. Partindo-se da premissa de que
os próprios “manipuladores técnicos” (CORRÊA, 1983) do direito são produtores e
reprodutores de certa concepção de justiça que, por vezes, reforçam valores culturais
vinculados à matriz heteronormativa, considera-se importante criticar e denunciar que a
Cartilha que sustenta a violência de gêneros não pode atuar para a manutenção de
preconceito(s) contra as mulheres. Os vestígios da Cartilha aparecem insistentemente em
vários episódios de defesa/reivindicação de direitos. Nesse sentido, a análise destas trajetórias
pode oferecer alguns indicativos da dinâmica de reiteração das normas heteronormativas que
sustentam a permanência da violência de gênero.

Assim, frente à constatação de descrédito relatada por Cíntia, Camila aponta que o fato dela
estar sendo acompanhada pelo NUDEM (sessão de 26 de agosto de 2009) já era uma prova de
sua situação de violência. Apesar da colocação de Camila ser coerente, Cíntia relata que isto
não foi dito durante a Audiência e que ela foi questionada sobre sua situação, apesar de seu
processo estar vinculado ao NUDEM. O que se percebe é que cabe à mulher legitimar suas
ações quando resolve quebrar o ciclo de violência. O relato da ocorrência da violência e a
decisão de enfrentá-la não são suficientes para as instituições legitimarem o posicionamento
da sobrevivente. Esta situação pode trazer como consequências para o processo de
enfrentamento à violência indícios de descrédito da Lei, das instituições e da própria
caracterização da violência como crime.

Frente ao questionamento insistente sobre sua situação de violência e às negativas de seu ex-
companheiro sobre o fato Cíntia apresenta como prova a sua participação no Grupo do Espaço
Bem-Me-Quero (sessão de 26 de agosto de 2009). A sua linha de raciocínio se guia pela busca
de legitimação de sua fala através de um mecanismo apontado por ela como eficiente.
Aparentemente esta sua colocação também não surtiu o efeito desejado, restando a
confirmação de seu desamparo. O fato de Cíntia citar a sua participação no Grupo em um

198
momento de deslegitimação é indicativo de sua pertença e também confirmação da
legitimidade desta proposta para ela. Da mesma forma, considero o fato de Cíntia ter se
reportado a Graça e Camila, quando se sentiu fragilizada uma estratégia de publicização
possibilitada pela pertença ao Grupo, pela confiança e pelo laço de amizade, entre estas
“veteranas”.

As colocações de Cíntia sobre as mudanças vivenciadas com a participação no Grupo são


contundentes e ela quer que este movimento também seja legitimado. Assim, a análise de suas
declarações sobre a eficiência do Grupo aponta tanto para a legitimação de sua trajetória
individual como para a trajetória do Grupo como mecanismo legitimador. Estas colocações de
Cíntia coadunam com as de Camila sobre o seu desejo de que o Espaço Bem-Me-Quero
fizesse a diferença frente à violência e à deslegitimação dos agentes policiais em seu caso
(sessão de 22 de julho de 2009). Ela também, frente ao episódio de deslegitimação, se
reportou a sua vinculação ao Espaço Bem-Me-Quero, buscando ter sua trajetória legitimada.
Como apontado por ela, compreendo que estas sobreviventes não reivindicam que o Espaço
ou o Grupo confirmem suas falas, mais do que isso, esperam que o processo de legitimação
iniciado nestes mecanismos seja reconhecido, valorizado e confirmado pelas outras
instituições da Rede.
Assim, percebe-se que o Grupo é visto como um local diferenciado, como um mecanismo
que, através de sua dinâmica, possibilita às mulheres a publicização e desindividuação da
violência de gênero, bem como o questionamento dos mecanismos institucionais de seu
enfrentamento. Vale a pena perguntar em qual outra instância poderia a mulher trazer à tona
suas dificuldades enfrentadas em suas trajetórias de sobreviventes à violência de gênero.
Onde elas poderiam publicizar suas reclamações sobre o atendimento oferecido pela Polícia
Militar/Civil, o Espaço Bem-Me-Quero e outras instituições como as do Poder Judiciário?
Vale a pena questionar o posicionamento destas instituições como tijolos ou ferramentas
frente ao Muro. Também é interessante pensar a qual nós Cíntia se refere quando apela para
que algo seja feito? Nós quem? As mulheres do grupo, a Rede, o Poder Público, a psicóloga, a
Psicologia, a Justiça? Quem deveria ser o responsável por publicizar um caso como o de
Camila? O Centro de Referência? A mulher violentada? O grupo? A psicóloga? A Polícia
Civil? Seria inadequado o encaminhamento para um serviço Disque 0800? E se sim, por quê?
A denúncia anônima é a única forma segura de publicizar o ocorrido? Seria infundado o medo
de Camila de denunciar? A existência de tantas perguntas aponta para a necessidade de se

199
continuar refletindo sobre a organização da Rede de Enfrentamento e sobre o sentido que a
violência assume para os agentes das instituições de enfrentamento à violência. Sustento que
se não nos debruçarmos sobre esta questão todo aparato de enfrentamento poderá ser apenas
mais um paliativo frente a este fenômeno.

5.5 CONSIDERAÇÕES SOBRE A APLICAÇÃO DA TEORIA E TÉCNICA DO GRUPO


OPERATIVO COM SOBREVIVENTES À VIOLÊNCIA DE GÊNERO

O Grupo que permitiu o uso das gravações utilizadas nesse trabalho tem como proposta
utilizar-se da teoria e técnica do Grupo Operativo no processo de enfrentamento à violência
de gênero. Apesar deste Grupo não seguir alguns dos aspectos apresentados como
característicos da abordagem pichoniana, quais sejam; o número de participantes por sessão e
o fato de ser aberto e de não ter definido, de antemão, o número de sessões, isso não
descaracteriza a sua definição a partir desta construção teórica e nem impossibilita a obtenção
de resultados e da dinâmica grupal.

Assim, o Grupo em questão define-se como aberto, contínuo e de participação voluntária, o


que facilita a “escrita” de uma história em movimento que, apesar de curta, consolida-se a
cada semestre. Este aspecto é importante para a coesão grupal, entre outros aspectos, por
permitir que o Grupo (re)conheça-se e (re)consolide-se pela visualização e (re)confirmação
de sua proposta no fio da história, potencializando a afiliação e a pertença das participantes.
Um grupo com a percepção de um passado, um presente e um futuro, está vivo, pulsando em
um movimento criativo, aberto, dialético, afetivo, com memórias e saudades.

Desta forma, acredito que a abertura deste Grupo constitui sua força e que este tipo de
proposta adequa-se às peculiaridades de um grupo para mulheres sobreviventes à violência de
gênero devido às inúmeras dificuldades e necessidades apresentadas por esta clientela,
destacando-se: a dificuldade financeira, a necessidade de sigilo sobre a participação nas
reuniões e a própria dificuldade da mulher em lidar com esta nova forma de enfrentamento ao
ciclo da violência. Muitas mulheres relatam que não comparecem ao grupo semanalmente ou
que se ausentaram por um tempo porque não têm dinheiro para pagar o transporte. Outras
relatam as peripécias domésticas para esconder de seus companheiros, filhos e outros
familiares a participação no grupo. Umas chegam atrasadas, outras têm que sair mais cedo,
200
outras trazem os filhos (que ficam na brinquedoteca da instituição), outras faltam porque não
conseguiram alguém para cuidar dos filhos. Desta forma, o enquadre grupal baseia-se na
participação espontânea, não determinada por números de sessões ou regulada por faltas. As
faltas são sentidas, mas não interpretadas como indicativo de ausência de afiliação ou
pertença. Justamente por causa das dificuldades relatadas acima, cada nova participação é
valorizada. O convite feito às mulheres é para um grupo que se encontra toda semana em
determinado horário. Neste convite é frisada a constância das sessões do grupo e não a
regularidade ou obrigatoriedade da presença ou permanência da mulher. A constância e a
regularidade do Grupo possibilitam a algumas participantes se ausentarem por meses e depois
comparecerem sem nenhum constrangimento e, o mais interessante, desta forma pertencer ao
grupo e terem suas histórias constantemente citadas pelas outras. Entendo isto como uma
apropriação da história da “participante ausente” pelo Grupo. Sustento que a certeza da
acolhida, do sigilo e da compreensão das dificuldades permite a continuidade de um grupo
operativo aberto. A não fixação de um número de sessões ou de temas pré-definidos para cada
encontro também são estratégias da coordenação que aposta na participação ativa e
responsável de cada mulher, bem como na proposta de desenvolvimento da tarefa grupal a
partir da criatividade e realidade das participantes.

Por sua vez, os critérios que vinculam este Grupo à proposta pichoniana seriam
principalmente: o fato dele se guiar nitidamente por uma tarefa, o entendimento da formação e
do papel da coordenação, o interesse pela mudança no social como objetivo paralelo a todo
processo, o estudo e aprendizagem da psicologia social baseado em uma práxis e o
entendimento do Grupo como local terapêutico e de aprendizagem. Este conjunto de
propostas-guia baseadas na teoria pichoniana sobre o processo grupal e sobre a psicologia
social sustenta este trabalho e esta pesquisa. Desta forma, este Grupo se apresenta em
processo, em interação, vivo, pulsante, revoltado, solidário, feminista, parodiando Baremblitt,
“de vanguarda”, em suma, coerente com as idéias pichonianas.

Pelos resultados apresentados, pode se concluir que a proposta delimitada mostrou-se


coerente, apresentando resultados positivos como:

201
* A excelência na realização da tarefa de elaboração de estratégias de enfrentamento à
violência, o que é um indicativo da criatividade e da cooperação adotadas pelo Grupo durante
a execução da tarefa;

* A avaliação positiva do vetor cooperação delimitada através da dinamicidade na forma e no


conteúdo de apresentação dos assuntos e exemplos pelas participantes e no interjogo de
assunção de papéis entre as participantes;

* A pertinência e criatividade na produção de temas para discussão como: o atendimento das


instituições da Rede de Enfrentamento, os sentidos da violência, o questionamento das
normas sociais que sustentam e justificam a violência, os impactos e consequências da
violência sobre as sobreviventes e seus familiares, especialmente, os filhos e sua abertura para
a elaboração de projeto grupal;
* A permanência de uma tele positiva durante todas as sessões analisadas, indiferente de
momentos de divergência de opiniões entre as participantes;

* Um coeficiente positivo de pertença e afiliação das participantes como demonstrado em


inúmeras declarações sobre a importância da participação no Grupo em suas trajetórias, o
interesse em continuar vinculada ao Grupo e na auto nomeação de veteranas por algumas
participantes.

*Vários indicativos de aprendizagem percebidos através dos relatos de mudanças/adaptações


ativas possibilitadas por uma comunicação entre as participantes guiada por processos de
negociação de sentidos durante as sessões analisadas em uma espiral dialética, produzindo
um ECRO grupal que almeja a elaboração de um projeto grupal.

Na dinâmica de um Grupo Operativo, a delimitação da tarefa e o convite para a participação


são importantes para que o sujeito convidado sinta-se motivado para conhecer e filiar-se ao
grupo. Assim, no Grupo analisado nesta pesquisa esta apresentação é, geralmente, realizada
pelas próprias participantes quando, por exemplo, tem-se uma mulher comparecendo ao
Grupo pela primeira vez, cabendo à coordenadora apenas complementar as informações. Para
além, é possível à coordenadora, através da análise da forma de apresentação do Grupo, sua
tarefa e o motivo de afiliação ao Grupo indicativos do entendimento das participantes sobre o
contrato grupal, o sentido da violência e o funcionamento do Grupo. No trecho abaixo, por
202
exemplo, frente à dificuldade de Sâmia de se apresentar/filiar-se ao Grupo em sua primeira
participação. Assim, a coordenadora solicitou que Cíntia contasse como foi sua entrada no
Grupo para facilitar a comunicação entre Samia e o Grupo. Neste trecho, é possível perceber
o processo de pertença e filiação de Cíntia ao grupo, bem como indicativo do vetor
cooperação (sessão de 22 de julho de 2009).

Cíntia: Tem um ano que eu to aqui em agosto, né criatura, olha só para você ver.
Custei para ficar. Simone: Custou para ficar por quê?
Cíntia: Na primeira vez que eu vim eu falei: eu não volto mais. Simone: Conta para
ela como foi a sua primeira vez.
Cíntia: Eu vim aqui olhei para cara dela (Camila), olhei para cara da Graça, da
Simone e falei nossa. Minha irmã tava lá fora. Ó eu tava de um jeito que minha irmã
tinha que me trazer, eu estava separada tinha um mês, né Simone, do meu marido,
casada há 14 anos, ai eu peguei e falei que não volto mais naquilo ali, senti tão mal
aqui dentro e agora eu empolgo feito doida, eu falei com ela que eu fiquei assim na
quarta feira: Ah meu Deus as meninas estão reunindo e eu não posso, fiquei
desesperada, e eu estava doida para vir.

Assim, a participação de algumas mulheres há mais tempo e de forma mais frequente no


Grupo (como no caso de Cíntia) permite que elas sejam testemunhas da história do Grupo e
de seu funcionamento. Este aspecto é valorizado pela coordenadora que se utiliza da
experiência e posicionamentos destas mulheres para auxiliar às outras em seu processo de
afiliação e pertença ao Grupo em um jogo guiado pela tarefa grupal. Este jogo é apresentado
por Pichon-Rivière (1994) como estruturante de qualquer grupo e delimitado pela assunção e
adjudicação de papéis entre os integrantes. Espera-se que neste jogo, bem como na
comunicação do grupo, evite-se sempre a adoção de estereotipias e dicotomias e se organize
pela complementaridade, funcionalidade e operatividade, ou seja, se guiando pelo objetivo
último de execução eficaz da tarefa. No Grupo pode-se perceber que este jogo de poder foi
jogado a favor da execução da tarefa, mesmo nos momentos onde uma participante pediu a
palavra ou interrompeu divergindo ou concordando com as colocações. Mesmo quando a
coordenadora solicitou a opinião de determinada participante ou discordou abertamente de
uma colocação percebe-se que todo o movimento guiou-se pelo objetivo de executar a tarefa
e dinamizar a comunicação. Sustenta-se, assim, que este jogo de poder, em vez de ser negado
ou escamoteado, deve ser jogado a favor da tarefa e do Grupo e não de uma pessoa. Assim,
considero que esse jogo pode ser útil para a dinâmica grupal quando auxilia na execução da
tarefa e não recomendado se produzir colocações de autoridade ou ruídos na comunicação.
Ao coordenador cabe a “tarefa essencial de dinamizar, resolvendo discussões frontais que
ocasionam o fechamento do sistema” (PICHON-RIVIÈRE, 1994, p.92) ou ruídos na
comunicação entre as participantes.
203
Desta forma, a possibilidade de assumir o papel de porta-voz aponta para a capacidade de
denunciar no aqui-agora-comigo do acontecer grupal as fantasias, medos e ansiedades
presentes no Grupo. Este papel foi assumido, várias vezes, por Camila e também por Cíntia,
Fernanda, Elis, Susana, Fernanda e Janaína durante as sessões analisadas para esta pesquisa,
permitindo-se que se perceba a rotatividade esperada para este papel. O fato de Graça ter sido
citada, mesmo ausente (sessões de 22 de julho de 2009 e 26 de agosto de 2009), é indicativo
de sua pertença e cooperação com o fazer grupal, permitindo que ela assumisse o papel de
líder grupal através de seu posicionamento ativo e solidário em sua relação com as outras
participantes, inclusive fora do âmbito do Grupo.

Este aspecto de complementaridade na assunção e adjudicação dos papéis também é


percebido na dinâmica da comunicação do Grupo, onde a cada relato soma-se um exemplo
que vai ao encontro do assunto discutido sempre guiado pela tarefa. Este aspecto aponta para
a pertinência e cooperação grupal favorecendo a execução da tarefa e a elaboração do
ECRO grupal. Da mesma forma, as interpretações da coordenadora são realizadas em dois
tempos, primeiramente “começa-se interpretando o porta-voz (...), no ato seguinte, assinala-
se que o explicitado é também um problema grupal, produto da interação dos membros do
grupo entre si e com o coordenador” (PICHON-RIVIÈRE, 1994, p.105). Este aspecto da
técnica do Grupo Operativo a torna muito adequada para a aplicação com sobreviventes à
violência de gênero, onde, pela história individual de cada participante, a assunção do papel
de porta-voz é facilitada. Ao mesmo tempo, a partir do entendimento compartilhado da base
social da violência e da constatação das dificuldades compartilhadas de encerrar seus ciclos
de violência, a técnica pode instigar à discussão e à procura pela resolução das dificuldades
criadas e manifestadas no campo grupal. A partir dos relatos individuais e das interpretações
busca-se extrair os aspectos que auxiliem a desindividualizar os casos, gerando um processo
de espelhamento e questionamento grupal sobre a experiência das mulheres na sociedade e
na trajetória de enfrentamento à violência. Considero que a apropriação deste aspecto ocorre
a cada sessão do Grupo e a cada participação individual.

Para além, no grupo o processo de enfrentamento se guia pelo respeito ao direito da mulher
de decidir sobre como agir, marcando esta experiência como legitimadora das trajetórias
individuais. A negociação para elaboração de estratégias no Grupo tem como espelho as
opiniões das outras participantes e da coordenação, mas se guia primeiramente pelo respeito
204
ao processo de cada participante. O respeito aos papéis desempenhados e ao processo de
cada participante é o guia que cria uma tele favorável à mudança. Aprender a negociar, a
pensar, a construir estratégias coletivamente, a ter opiniões e confrontá-las, e a respeitar as
decisões do outro são tarefas de quem se encontra em um Grupo que se pretende Operativo.
Acredito assim que a aprendizagem possibilitada pelo tipo de comunicação adotada em um
grupo operativo auxilia as participantes em suas trajetórias de sobreviventes à violência de
gênero. Além disso, o fato da dinâmica do grupo se guiar pela imagem de uma espiral
permite que se compreenda que, nas idas e vindas do processo, as resistências e estereotipias
estão sendo alteradas/destruídas, legitimando as trajetórias e (des)naturalizando as críticas às
dificuldades neste processo. Da mesma forma, o percurso de negociação, apresentação e
avaliação coletiva das estratégias permite que o Grupo se configure como operativo e atinja
seu objetivo último de produzir mudanças em suas participantes e na sociedade.

Vale ressaltar, porém, que, como apresentado por Giffoni (1991),

operar significa uma intervenção na realidade e, neste caso, uma intervenção no


contexto grupal, com a clara intenção de provocar mudança, de promover
modificações. Modificação na forma de trabalhar grupalmente e modificações nas
próprias pessoas que estão imersas nesse contexto grupal. Operar é, portanto,
intervir tendo em vista a transformação. Só que este processo, e vocês estão sentindo
isso na própria pele, leva tempo. Não é possível de imediato, de pronto, um grupo
tornar-se operativo, conseguir operar no verdadeiro sentido da palavra. Leva tempo
porque implica num processo de redefinição das necessidades individuais em
necessidades grupais, comuns ao grupo. É necessário, então, que o grupo possa
reconhecer o caráter social das necessidades presentes nele (GIFFONI, 1991, p.64).

A partir do apresentado acima, consideramos que o Grupo analisado está em processo de


operatividade, ou seja, em sua curta história ele produziu intervenções:

 na proposta de atendimento:

da instituição ao qual está vinculado e da própria Rede de Enfrentamento à Violência como


lugar de legitimação das trajetórias de suas participantes;

 nos ciclos de enfrentamento à violência de suas participantes:

a partir do questionamento da normas da matriz heteronormativa levando à transformação das


relações de gênero em suas relações sociais, afetivas e familiares e também através da

205
aproporpriação crítica por parte de suas participantes das propostas das intituições da Rede de
Enfrentamento à Violência de Contagem/MG e da legislação pertinente à problemática;

 em sua própria dinâmica grupal:

a partir da apropriação da proposta de elaboração, avaliação e aplicação de estratégias


negociadas no Grupo e na proposta de elaboração de um projeto grupal de intervenção na
problemática da violência tanto no nível individual como no nível institucional/social/cultural.

Apesar disto estamos cientes de que este processo de intervenção é inicial e, coerente com a
proposta a que se filia, contínuo, tanto na vida das participantes como na proposta de
Enfrentamento à Violência a partir de uma Rede de instituições.

O desafio lançado pelas participantes tanto às instituições da Rede como ao Grupo vai ao
encontro de uma organização que se baseia na legitimação do trabalho das instituições entre si
e, principalmente, na legitimação das trajetórias das sobreviventes à violência de gênero por
toda a Rede conforme suas decisões e de acordo com as especificidades de seus casos.
Iniciando um círculo virtuoso, o desafio proposto a elas, a partir da participação do Grupo, é
que a legitimação dos mecanismos e das estratégias se sustente a partir de seus
posicionamentos como sobreviventes ao ciclo de violência e ao ciclo de enfrentamento à
violência. Como apontado por mim à Cíntia na sessão do dia 26 de agosto de 2009:

Simone: por que você simplesmente não podia ter falado, todos os casos que você
me conta você não podia ter contado lá?
Cíntia: eu falei.
Simone: eu sei que é difícil, mas o que vocês têm que entender é que a palavra de
vocês também tem valor.
Cíntia: Mas, se você esta frequentando um grupo, você confia no grupo.
Simone: eu concordo.

Podemos completar esta linha de raciocínio indicando que se a proposta do Grupo delimita-se
como diferenciada daquela indicada em outros momentos nas trajetórias destas sobreviventes,
a própria manutenção da dinâmica grupal só é possível pela aposta e pertença destas
sobreviventes. Assim, sustento que o grande trunfo da técnica do Grupo Operativo está,
justamente, neste movimento dialético onde cada membro do Grupo, através de trocas
comunicacionais aprende a aprender, a pensar e a mudar, ao mesmo tempo em que ensina o

206
Grupo. Desta forma, o ciclo virtuoso anunciado pelas participantes do Grupo, a partir de suas
mudanças, é fruto desta proposta de atendimento que:

 possibilita a legitimação de trajetórias individuais de ciclos de enfrentamento à


violência a partir do questionamento das normas que sustentam a violência;

 oportuniza que se aprenda um posicionamento que evite comportamentos e discursos


estereotipados e dicotomizantes e

 instiga à apropriação crítica não só das instituições da Rede de Enfrentamento e das


legislações pertinentes, mas das próprias trajetórias para garantir o direito a uma vida
sem violência.

Citando Rosa Luxemburgo, considero que “quem não se movimenta não sente as cadeias que
o prendem”. Se fosse necessário resumir a dinâmica deste Grupo, seria através de um convite
a estas sobreviventes: frente a todas as pressões e opressões, convido-as a continuarem a se
movimentar...

Como coordenadora de um Grupo com este objetivo, certamente não me sentiria confortável
se não me guiasse por uma proposta de ciência feminista; pela reafirmação do entendimento
da psicologia social (objeto e didática) nas teses pichonianas, pela convicção na práxis como
método e pelo desejo de fazer de meu trabalho um instrumento de mudança social e
contribuição teórico/científica. Trilho, desde a graduação, uma trajetória onde objetividade
remete a posicionamento e não há como não me posicionar como psicóloga, servidora
pública, pesquisadora, feminista, mãe e mulher antes, durante e depois desta pesquisa e
durante as sessões do Grupo. O posicionamento, para mim, é uma proposta teórica, mas
também um desafio pessoal.

207
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta dissertação é resultado dos últimos dois anos e dois meses de histórias que se
entrelaçaram de uma forma que não se faz possível (ou necessário) saber o que levou a quê ou
quem possibilitou o quê para quem. Elas foram escritas em um processo cheio de desafios,
idas e vindas, lágrimas, risos, derrotas, vitórias, surpresas e descobertas. Nesta dissertação
está presente a história do Grupo; a história de cada sobrevivente que aceitou dele participar e
a minha. Todo o processo de escrita, todas as escolhas, todas as leituras tinham como objetivo
contribuir não só para a discussão acadêmica sobre a violência de gênero, mas para as
sobreviventes desta violência que cotidianamente buscam solucionar este problema em suas
vidas. Não imaginava quais seriam os desdobramentos da proposta para o atendimento em
Grupo das sobreviventes atendidas por mim no Espaço. Se cada novo convite era guiado por
uma aposta na possibilidade de mudança no ciclo de violência de cada sobrevivente e pela
reafirmação da proposta de atendimento em Grupo como dinâmica privilegiada, a cada final

208
de sessão seguiam-se momentos de incerteza sobre a continuidade das participações na
próxima sessão e, mais importante, da pertença de cada uma das participantes naquele Grupo.
Percebo agora que este processo de reafirmação e de legitimação não se dirigia apenas ao
Grupo, mas à trajetória de cada sobrevivente e a minha como profissional, pesquisadora e
mulher.

As mudanças comemoradas e os retrocessos apresentados com tristeza por cada participante


uniam-se aos avanços e retrocessos nas horas de estudo e escrita desta dissertação, que eu
confidenciava a elas. A cada semestre finalizado a proposta do Grupo se consolidava
institucionalmente e ia sendo apropriada, por isso, a euforia a cada convite para participação
em eventos externos.

Cada avanço na espiral dessas histórias aliava-se aos questionamentos propostos para esta
dissertação. Assim, os resultados aqui apresentados foram delineados a partir de alguns
aspectos que se sobressaíram neste processo quais sejam: o relato das participantes de
mudanças nos seus Ciclos de Enfrentamento à Violência; a rapidez com que isto ocorria,
principalmente, nos casos onde a participação era mais frequente; a afirmação contundente da
participação no Grupo como elemento desencadeador para as mudanças e a coerência das
críticas sobre o atendimento recebido em outros serviços/instituições da Rede de
Enfrentamento e os posicionamentos contrários às decisões de encerrar o ciclo de violência.
Estes aspectos observados apontavam para a participação no Grupo como local diferenciado
na Rede de Enfrentamento à Violência, entre outros motivos, pelo meu acolhimento (como
coordenadora do Grupo) e das participantes das várias estratégias adotadas para o
enfrentamento à violência e pela possibilidade de rever no Grupo a colocação em prática das
estratégias elaboradas pelo Grupo. Desta forma, elas eram legitimadas em suas trajetórias de
sobreviventes à violência de gênero pela ternura no convite, a alegria na acolhida e a
reiteração do desejo de mudança. Estes eram aspectos legitimadores e potencializadores das
mudanças, de caráter simples, mas aparentemente não encontrados em outras instituições ou
em outros interlocutores(as).

A estes indicativos une-se a denúncia dos processos deslegitimadores das trajetórias das
sobreviventes à violência escamoteados nos discursos culpabilizadores, vitimizadores,
essencializadores e naturalizadores sustentados pelas normas da matriz heteronormativa que

209
guiam a ação/omissão de agentes das instituições da Rede de Enfrentamento e de outros(as)
interlocutores(as) da sociedade. Para contribuir na denúncia deste processo delineei o Ciclo
de Enfrentamento à Violência como uma forma de dar visibilidade a este processo
repetidamente apresentado pelas sobreviventes em suas trajetórias. A minha aposta é no
diferencial legitimador do atendimento a partir da proposta do Grupo Operativo (que pode ser
replicado em qualquer outro episódio do Ciclo de Enfrentamento à Violência) aliado à
discussão sobre as normas que sustentam a violência de gênero em nossa sociedade.

Para além destas histórias contadas, devo meu reconhecimento à possibilidade de escuta de
outras tantas histórias de sobreviventes (que atendi ou ouvi de terceiros) que devido às
peculiaridades, pressões e opressões de suas trajetórias não participaram do Grupo. Em
especial, à memória de Maria Islaine de Morais e de Eloá Cristina Pimentel, que tiveram seus
assassinatos transmitidos em cadeia nacional, colocando em xeque as políticas públicas de
enfrentamento à violência e a atuação de suas instituições.

Por fim, ser ao mesmo tempo mulher, profissional de uma instituição pública da Rede de
Enfrentamento e pesquisadora feminista poderia dificultar minha trajetória, mas, prefiro me
posicionar não negando esta rede de identificações em que me situo apossando-se disto como
um diferenciador que legitima a mim e ao meu trabalho.

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218
ANEXO 01

Dados sócio-econômicos das mulheres sobreviventes à violência de gênero

Nome Idade Cor Escolaridade Ocupação atual Trabalho Renda própria Moradia
Camila 30 negra ensino médio completo desempregada** não tem não própria
Cíntia 37 parda ensino médio completo trabalha assalariada não cedida *
Clarice 40 parda ensino médio incompleto pensionista não tem sim própria
Elis 55 branca ensino fundamental incompleto dona de casa não tem não própria
Fernanda 38 parda ensino médio completo trabalha por conta própria sim cedida*
Fabíola 43 branca ensino médio completo trabalha por conta própria sim própria
Graça 36 parda ensino médio completo trabalha por conta própria sim própria
Janaína 52 parda ensino fundamental incompleto dona de casa não tem não aluguel
Kenia 19 branca ensino fundamental incompleto trabalha por conta própria sim cedida
Marília 46 branca ensino médio incompleto trabalha por conta própria sim própria
Nina 33 parda ensino médio completo desempregada** não tem não aluguel*
Rosa 44 negra ensino fundamental incompleto trabalha por conta própria sim própria
Sâmia* 23 branca ensino médio incompleto desempregada** não tem não aluguel
Susana 49 branca ensino médio completo trabalha assalariada sim própria
*Cíntia, Flávia e Nina têm casa própria ocupada neste momento pelos ex-companheiros
**São consideradas desempregadas as mulheres que já foram assalariadas ou tiveram renda própria

ANEXO 02
Trajetória afetiva das mulheres sobreviventes à violência de gênero
Relato de
Vive Outros violência no
Estado Tempo de Tipo de violência com Relaciona- novo
Nome civil convivência sofrida parceiro mentos relacionamento Idade filhos
união física,psicológica, 01 ano(não é filho do
Camila estável 7 anos moral, institucional não sim sim agressor)
física,moral,sexual,
Cíntia separada* 17 anos psicológica,patrimonial não não não cabe 15,11 anos
11 e 19(não são filhos
Clarice separada* psicológica, moral, sim sim sim do agressor)
física, moral,
Elis casada 32 anos psicológica sim não não cabe 27,25,24 anos
física,psicológica,
Fernanda separada* 20 anos moral, patrimonial não não não cabe 16,14 anos
Fabíola casada 20 anos psicológica, moral sim não não cabe 19,16,14 anos
moral,psicológica, 11, 19(não é filho do
Graça separada* 13 anos sexual sim não não cabe agressor)
física, psicológica,
Janaína casada 31 anos sexual, patrimonial sim não não cabe 28,22 anos
união
Kenia estável 06 meses física, psicológica não sim não 01 ano
psicológica, moral,
Marília separada* 18 anos física sim não não cabe 12,09 anos
moral, patrimonial,
Nina casada 12 anos psicológica não sim não 11,09 anos
física, psicológica,
Rosa casada 26 anos moral sim não não cabe 26,23,05 anos
Sâmia solteira 04 anos moral, psicológica não não não cabe 01 ano
Susana separada* 27 anos psicológica não não não cabe 25,21 anos
* entende-se por separada nestes casos as mulheres que durante o período da pesquisa e participação no grupo estavam com
processos de separação na justiça

ANEXO 03
Trajetória das mulheres sobreviventes à violência de gênero na Rede de Enfrentamento à Violênica de Contagem/MG.
Setor de Tempo de
Nome encaminhamento Encaminhados realizados Acionou Processo de separação Grupo
Polícia Militar e Delegacia de 1 ano e dois
Camila Espontânea Nudem/ 4 vezes Mulheres Não cabe meses*
Conselho Tutelar Decretada medidas protetivas
Posto de Saúde- Saúde Mental
Promotoria de Justiça
Secretaria de Direitos e Cidadania
Comissão Direitos Humanos ALMG
Delegacia de Mulheres
01 ano e 1
Cíntia Cras-Casa da Família Nudem Polícia Militar Sim-nudem mês*
Clarice Espontânea Defensoria Pública Polícia Militar Sim-nudem 15 dias** *
Elis Espontânea Projeto Mulheres da Paz Polícia Militar Não 01 mês * **
Fernanda Cras-Casa da Família Delegacia de Mulheres Polícia Militar Sim/advogado particular 2 meses
1 ano e 4
Fabíola Espontânea Nudem Não Não meses* **
01 ano e 2
Graça Espontânea Projeto Mulheres da Paz Delegacia de Mulheres Sim-nudem meses *
Unidade Básica de
Janaína Saúde Nudem/Delegacia de Mulheres Polícia Militar Não 2 meses
Kenia Nudem Delegacia de Mulheres/Promotoria Polícia Militar/Delegacia de Mulheres Não cabe 15 dias**
Decretada medidas protetivas
Marília Espontânea não Polícia Militar Sim-Puc/Contagem 15 dias**
Nina Convite de Elis Nudem Não Não 15 dias* **
Delegacia de Mulheres/Nudem-
Rosa Conselho Tutelar 2vezes Não Não cabe 1 mês
Sâmia Convite de Nina Não Não Não cabe 15 dias**
Susana Convite de amiga Nudem Não Sim-Nudem 4 meses*
* mulher continua participando do grupo
**primeira participação no grupo aconteceu durante a pesquisa
ANEXO 04
ANEXO 05
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
Prezada Senhora,

Você esta sendo convidada para participar da pesquisa “O grupo operativo como
dispositivo de enfrentamento à violência de gênero” que tem como objetivo principal
investigar o processo de enfrentamento à violência de gênero no dispositivo grupo operativo.
Esta pesquisa tem como pesquisador responsável o Prof. Dr. Adriano Roberto Afonso do
Nascimento e como pesquisadora auxiliar a psicóloga Simone Francisca de Oliveira. Esta
pesquisa se realizará no Espaço Bem-Me-Quero tendo como instituição responsável por sua
execução a Universidade Federal de Minas Gerais através do Departamento de Pós-
Graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas.
De forma mais específica, pretendemos analisar a construção/reconstrução dos
sentidos da violência para mulheres sobreviventes de violência de gênero atendidas em grupos
operativos; analisar se e como os sentidos da violência de gênero podem possibilitar a
construção coletiva de estratégias para o fim do ciclo de violência; investigar se e como a
participação no grupo atua para o questionamento dos papéis de homem e mulher e para a
transformação das relações de gênero na vida das mulheres e, por fim, descrever e analisar as
práticas institucionais realizadas pela Rede de Enfrentamento à Violência de Contagem/MG.
Tais informações podem ser úteis para subsidiar futuros projetos de pesquisa e de intervenção
e políticas públicas de enfrentamento à violência de gênero. Assim, gostaríamos de convidá-la
a participar de um total de oito sessões de grupo operativo onde conversaremos sobre temas
relacionados ao enfrentamento à violência de gênero e realizaremos a gravação das mesmas
(após sua autorização por escrito). O tempo médio de duração das sessões está previsto para 2
horas. A participação na pesquisa e a gravação das sessões não oferecerão à senhora riscos
físicos ou psicológicos adicionais aos já previstos para a participação no grupo. Todavia, caso
a Senhora sinta-se em risco devido à participação na pesquisa e/ou no grupo ou deseje retirar-
se da pesquisa a qualquer momento será lhe oferecida, segundo seu interesse, a continuidade
do atendimento psicológico individual pela equipe de psicologia do Espaço Bem-Me-Quero.
Está garantido o seu anonimato e os esclarecimentos que se fizerem necessários sobre a
metodologia utilizada antes e durante a pesquisa. Esta lhe garantida também a liberdade sem
restrições de se recusar a participar, ou retirar seu consentimento, em qualquer fase da
pesquisa, sem que disso resultem quaisquer tipos de conseqüências para a senhora. As
informações obtidas nessas sessões serão utilizadas exclusivamente para fins de pesquisa e
elaboração de projetos de intervenção psicossocial vinculados ao Departamento de
Psicologia/FAFICH/UFMG. Todas as informações geradas nessas sessões (gravações,
formulários e transcrições) ficarão armazenadas no Departamento de
Psicologia/FAFICH/UFMG por um período mínimo de 02 anos, sob inteira responsabilidade
do professor responsável por essa pesquisa Prof. Dr. Adriano Roberto Afonso do Nascimento.
Informamos também que a sua participação tem caráter voluntário e não resultará em
qualquer tipo de remuneração para a senhora.
Contatos: a) Prof. Adriano R. A. do Nascimento, Departamento de
Psicologia/FAFICH/UFMG, Avenida Antônio Carlos, 6627 – Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas - 4º andar, Universidade Federal de Minas Gerais, Campus Pampulha-Belo
Horizonte, MG -31270-901. Tel.: (31) 3409-6278. b) COEP - Comitê de Ética em Pesquisa -
Avenida Antônio Carlos, 6627 - Unidade Administrativa II - 2º andar, Universidade Federal
de Minas Gerais, Campus Pampulha-Belo Horizonte, MG -31270-901. Tel.: (31) 3409-4592 /
3409-6278. c) Simone Francisca de Oliveira – Espaço Bem-Me-Quero - Rua. José Carlos
Camargos, 218, Bairro Centro – Contagem – 32140-600 - Tel.: (31) 33527543/ 33528091.
Eu, _______________________________________________ (nome da participante),
RG _______________ , Órgão Emissor _________, declaro ter COMPREENDIDO as
informações prestadas neste Termo, DECIDO participar das sessões do grupo operativo
propostas e AUTORIZO a utilização das informações dela decorrentes no Projeto de Pesquisa
intitulado “O grupo operativo como dispositivo de enfrentamento à violência de gênero”.
Estando de acordo, assinam o presente Termo de Consentimento em 02 (duas) vias.
-
------------------------------------------------------------
Participante
---------------------------------------------------------------
Pesquisador Auxiliar
---------------------------------------------------------------
Pesquisador responsável
Belo Horizonte, de de 2009
ANEXO 06
Primeiro tratamento das transcrições (exemplos)
Grupo Operativo Transcrição Temas Comentários
Inicio do grupo Simone: Gente bom dia, bom dia.
coordenadora Começou. Semana passada veio Camila
retoma grupo eu, a Camila e a Fabíola. Foi tudo interlocutora
anterior de bom, né Camila? do grupo com
Líder/transferência Camila: foi tudo de bom! a coordenação
Assunto do grupo Simone: A gente discutiu muita
de hoje coisa importante e vamos
continuar aí.
M: A Fabíola é quem?
S: a Fabíola, uma de cabelo preto,
branquinha, de cabelo lisinho, que
vem desde o início. Apesar da
Pertença M: que esta trabalhando... grande
S: uma branca, bonitinha. E ai? rotatividade
N: vou justificar minha falta, eu no grupo as
fiquei doente participantes
S: doente? E aí? O quê que você sempre estão
arrumou minha filha? Impacto na saúde na memória
N nunca tive não, mas agora to afetiva e
tendo de tudo. temática do
S: tudo aparecendo... grupo.
E: é a imunidade que ta baixa
sabe.
M1: nunca tive nada, não, mas.
Su: A tristeza né, Simone , faz a
imunidade abaixar.
Cla: Eu também fiquei internada,
não te ligaram não? Parta falar...
FALAS
S: ficou internada também, nossa
senhora!
N: O remédio não tava
combatendo tive que tomar direto
na veia (...)
S: me ligaram? Quem? De onde?
Não.
Cla: Eu tive gripe suína...
S: porque você vai internar
também?
MUITAS FALAS PARALELAS.
S: socorro, mas ta bem?
Melhorou?
M: Mas to com o corpo assim...
Su: Lá na escola que eu trabalho
todo dia falta uma...
C: Normal...
S: meio fraco ainda. Ai gente para
de ficar doente.
RISADAS E FALAS
S: é a primeira vez na minha vida
que eu to com medo de uma
doença.
Cla: eu passei mal no meio da rua.
Lá em casa eu tava assim tossindo,
mas sabe aquela tosse alérgica? Aí
quando eu cheguei na rua que eu
fui levar o resultado da minha
menina, aí eu comecei (tosse)...
S: ficou sem ar...
FALAS
S: você também ta tossindo?(para
E.)
FALAS E RISADAS
S: você viajou? Você foi viajar?
E: fui pra São Paulo
S: com quem você foi?
M: Com a minha irmã, fiquei lá Os assuntos
uns três dias. Primeiro fiquei na surgem
casa da minha menina, depois... conforme o
Fiquei lá uns seis dias não, fiquei que elas
quatro. trazem em
S: ai que bom! E você dona Su., alguns grupos
onde você tava, trabalhando? eu inicio a
Fim da introdução Su o que? Quarta-feira passada? conversa com
S: é, todo mundo justificou. Agora alguém
você justifica também. porque foi
(Risos e falas) solicitado ou
Su: eu arrumei um rolo danado pela ansiedade
esses dias. aparente. Ou
S: mas você ta bem né? Ta porque foi
saudável? Dormindo onde acabou o
bem...---------------------------- Iniciativas assunto na
FALAS ultima semana
Su: coloquei a faixa (Fala abafada Sempre há
Estratégia pelas outras) uma certa
S:vende-se urgente... fala abafada ansiedade de
por N e E. que estão conversando algumas para
alto entre si sobre a morte de um ter a fala.
vizinho.
S: vamos fazer o seguinte...eu já as
separei (referindo a Cintia e
Graça.) vou separar vocês duas
(...) senão eu não escuto nada.
FALAS
S: Nina e Elis e todo mundo, Retomando a ultima
vamos concentrar porque senão sessão
depois eu não consigo nem ajudar
Aprendizagem e a gravação também fica péssima. Sugestão do
A gente tinha conversado que você grupo
ia... colocada em
Su: Ia tomar a iniciativa e ia prática após
colocar a casa pra vender. evento do
S: a questão é essa: a iniciativa. ciclo da
Muito bem, aplausos, palmas para violência
ela.
PALMAS/Muito bem!Parabéns!
Evolução GSM.
S: com seu nome? Desavenças de
Su: ...na faixa. postura com marido/o
S: (...) pra quem não sabia nem por antes e o agora deles
onde começar (...)
Su: aí depois que eu falei que eu
ia, já tinha colocado a faixa (...) ele
nunca pegou na enxada, tava
capinando uns capinzinhos lá no
passeio lá fora. A cerca elétrica
fica lá pendurada, que nem trem de
elétrica tem mais, fica lá
pendurada, falou que vai consertar
a cerca elétrica. Aí eu vi o
orçamento de cimento, areia,
dizendo que vai aumentar o muro
(...)
M: mas para que ele esta fazendo
tudo isto?
S: pra valorizar mais...
M: para valer mais...
Su: não que eu não quero fazer
nada lá. Quando eu queria, ele
nunca fez nada. Agora que eu não
quero mais nada mesmo, eu não
quero que faz nada lá na casa, vai
vender do jeito que ela ta.
S: se ele fizer pelo menos aumenta
o valor.
Su: isso é desaforo. Quando ele Data da audiência
Líder defensoria
quer fazer as coisas é que ele faz.
Técnica Quantas vezes eu quis fazer as
Comunicação
coisas, ele nunca fez.
coordenação
Cooperação S: e alguém já te ligou? Como é
que ta?
Su: de vez em quando aparece
alguém lá pra olhar.
S: como é que é? Você já colocou
pra vender? Mas ele continua lá?
Qual dia é seu dia mesmo? Que
dia você vai lá no juiz?
Su dia 03 de setembro e deixa eu Caso da mulher
te falar, ele tem que ir também? anterior como
S: mas chegou carta pra ele? exemplo
Su: é isso que eu não sei.
Graça: costuma chegar para você
primeiro.
Episódio de Su: porque dia 03 esta perto.
violência Graça: a minha chegou uma
semana, primeiro.
S: não, tem que chegar. Depois
que nem o caso dela (Graça) se
não chegar você vai lá e fala,
porque depois perde uma, se ele
não for depois perde (...)
Mulheres concordam....
Su: então como é que eu tenho que
fazer?
S: dá um tempinho... Mulheres
concordam...
G: calma recebe uma semana
antes... Mulheres concordam...
S: (...) se você ver assim que três

dias, dois dias antes, não chegou,

aí... Mulheres concordam


Estratégia
Su: sabe por que agora eu resolvi
vender, eu tive iniciativa mesmo,
porque teve um belo dia lá, que
chegou meu filho com ele. Lindo
né, adoro ver o pai com o filho
junto, é a melhor coisa que tem. Aí
chegaram do futebol, chegaram
com a camisa do cruzeiro. E é
difícil eu ficar até tarde fazendo
alguma coisa, aí geralmente onze
horas eu to dormindo há muito
tempo, porque eu faço de tudo pra
não encontrar com ele, sabe, eu
vou pro meu quarto assistir
televisão e lá eu durmo. Aí
chegaram alegres e tal e eu to lá
quietinha, continuei fazendo
minhas coisas. Eles ficam rindo eu
não tenho graça mais de ficar
rindo mais perto dele.
ANEXO 07
Eixos de análise
Conteúdos Estratégias Sentimentos Grupo fala Comunicação Converg Diverge Exemplos
e
Justificativa de Tristeza Demonstra Espelhament X A tristeza faz a imunidade da
faltas=pertenç ndo o nos gente baixar.
a e filiação interesse exemplos das
Impactos da na saúde outras
violência na das outras/
saúde Empatia

Iniciativa/apre Colocar a
ndizagem/ada casa à X Su: coloquei a faixa (Fala
ptação ativa/ venda Relato de abafada pelas outras)
Cooperação iniciativa S:vende-se urgente... A gente
tinha conversado que você ia...
Su: Ia tomar a iniciativa e ia
colocar a casa pra vender.
S: a questão é essa: a iniciativa.
Muito bem, aplausos, palmas
para ela. (PALMAS) Muito
bem!Parabéns!Evolução GSM.
S: com seu nome?
Su: ...na faixa. S: (...) pra quem
não sabia nem por onde
Cena/corpo da Fazer tudo Ódio, mas Quando a começar.
mulher/gênero para não não vou mulher Relato de x
/violência encontrar chorar reage na cena de Su: sabe por que agora eu resolvi
com ele hora da violência vender, eu tive iniciativa mesmo,
em casa violência, Cooperação/ porque teve um belo dia lá, que
Ficar quando Criatividade chegou meu filho com ele. Lindo
calada na percebe do grupo né, adoro ver o pai com o filho
hora da que a -Cartilha junto, é a melhor coisa que tem.
agressão mulher Aí chegaram do futebol,
Não ficar esta chegaram com a camisa do
na mesma agindo cruzeiro. E é difícil eu ficar até
casa após segundo a tarde fazendo alguma coisa, eu
a ”cartilha”, peguei umas coisas na escolinha
separação em relação e levei lá pra casa pra fazer, aí
Mudar de à posição geralmente onze horas eu to
cidade da mulher dormindo há muito tempo,
após a na cena de porque eu faço de tudo pra não
separação violência encontrar com ele, sabe, eu vou
pro meu quarto assistir televisão
e lá eu durmo. Aí chegaram
alegres e tal e eu to lá quietinha,
continuei fazendo minhas coisas.
Eles ficam rindo eu não tenho
graça mais de ficar rindo mais
perto dele. Aí ele lá na cozinha
colocando a janta dele, eu não
sei que assunto surgiu, que ele
tava rindo do buteco, do Peixe
Vivo (Bar de Contagem), que
aparece cada trem horroroso lá
na porta. Tem muita gente
bacana que vai. Eles estavam
rindo do povo feio que vai gorda
com os peitos na barriga e não
sei o que e falou da Célia minha
colega, ela toda vida é mãe, é
irmã, é tudo pra mim. Eu morei
20 anos no Novo Riacho e ela
me ajudou muito quando meus
meninos eram pequenininhos.
Aí ele falou dela, e minha
menina já falou comigo “mãe,
tudo que pai falar para te
ofender, você fica calada”. Mas
tem hora que a gente não
agüenta, não. (Mulher
concorda). Aí na hora que ele
falou da Célia me atingi, aí eu
falei com ele “não fala da Célia
não”. Aí o Gabriel, meu menino,
riu. (...) Su: você entendeu?
Definição de Então quê que eu pensei?
violência/ Juliana! Falei com minha
Traição/lugar Falar menina, J. se eu continuar do
da mulher na palavrão jeito que eu to aqui, eu to com
sociedade/ 60, 70 anos, fazendo as coisas,
filho na cena aguentando
de violência humilhação,tolerando, ouvindo
desaforo ainda.
ANEXO 08
Camisa confeccionada para a comemoração do mês de março de 2009
ANEXO 09

O MURO
ANEXO 10

Parecer do Comitê de Ética em Pesquisa/UFMG

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