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A INTEGRIDADE DA PREGAÇÃO

JOHN KNOX

Professor no Seminário Teológico Unido de Nova York


Traduzido por FLÁVIA BRAZIL ESTEVES
ASTE - SÃO PAULO

Título do original THE INTEGRITY OF PREACHING


Abingdon Press, New York, 1.a edição, 1957

Edição em língua portuguesa, com colaboração do Fundo de Educação Teológica, pela Associação de
Seminários Teológicos Evangélicos
São Paulo 1964

Associação de Seminários Teológicos Evangélicos


CONSELHO DELIBERATIVO:
Júlio A. Ferreira - Presidente
Joaquim Beato, Thurmon Bryant, Roberto Grant, Wilson Guedelha, V. James Mannoia, David Mein,
Harding Meyer, A. Benjamin Oliver, Paulo Pierson, Isnard Rocha, Arnaldo Schmidt
Aharon Sapsezian - Secretário geral

Edições da A. S. T. E.

À VENDA

VOCABULÁRIO BÍBLICO, de J.-J. von Allmen


O PROTESTANTISMO BRASILEIRO, de É. Léonard
O CATOLICISMO ROMANO - um simpósio protestante
O PENSAMENTO DA REFORMA, de H. StrohI
PEDRO - DISCÍPULO, APÓSTOLO E MÁRTIR, de O. Cullmann

NO PRELO
A PESSOA DE CRISTO, de G. C. Berkouwer
PSICOLOGIA DA RELIGIÃO, de P. Johnson
DEUS ESTAVA EM CRISTO, de D. M. Baillie
O ENSINO DE JESUS, de T. W. Manson

EM PREPARAÇÃO
A IGREJA NO NOVO TESTAMENTO, de G. Kittel
JESUS DE NAZARÉ, de G. Bornkamm
TEOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO, de G. von Rad
TEOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO, de A. Richardson
EPISTOLA AOS ROMANOS, de F.J. Leenhardt
O PREPARO DE SERMÕES, de A. W. Blackwood
A FÉ CRISTÃ, de G. Aulén
A RELEVÂNCIA DOS PROFETAS, de R. B. Y. Scott
FÉ BÍBLICA E ÉTICA SOCIAL, de E. C. Gardner
DOCUMENTOS DA IGREJA CRISTÃ, de H. Bettenson

INDICE
Introdução
I - Quando é Bíblica a Pregação
II - A Relevância da Pregação Bíblica
III - Teólogos e Pregadores
IV - Pregação é Ensino
V - Pregação é Pessoal
VI - Pregação é Culto
VII - Pregação é Sacramento
Notas

INTRODUÇÃO

Dentre todos os muitos pregadores do evangelho, fiéis e capazes, e que, despretenciosamente


de modo geral, f oram meus pro fessores de homilética, aquele que de modo imensurável significou
mais para mim do que qualquer um outro foi o meu próprio pai, Absalom Knox, falecido há mais de
trinta anos. Embora os seus dias tivessem sido passados em lugares obscuros, era ele um grande
pregador (no único sentido em que esse termo jamais deveria ser empregado) e ter-se-ia tornado
maior ainda se a morte não o tivesse derrubado quando ainda em meia idade. Não teve ele a
vantagem de um curso colegial completo, muito menos o de um treino em seminário, porém foi uma
das pessoas mais inteligentes, sensíveis e humanas que jamais conheci e, portanto, uma das mais
cultas. Era muitíssimo bom e reconhecido como tal por todos quantos o conheciam mas, de igual
modo, era uma pessoa ativa e enérgica, possuindo talentos de eloqüência autêntica - algo muito
raro.
Contudo, ao pensar nele como um pregador, não são esses os talentos que vêm à mente em
primeiro lugar e sim a seriedade com que ele pregava e a honestidade absoluta com que fazia isso, o
trabalho cuidadoso e longo que dedicava a fim de preparar-se para esse mister (todos nós sabíamos
que diariamente, durante as primeiras horas, não podíamos "incomodar o papai"), a qualidade bíblica
da pregação, sua solidez e integridade, a maneira pela qual a mesma respondia à vida da igreja, o
modo pelo qual falava ao coração. Mais do que qualquer outra coisa, foi a memória de sua pregação
que sugeriu a palavra "integridade" para o título dessas minhas reflexões com respeito ao pregador e
seu trabalho.
Ao escrever o Capítulo II, extraí-o livremente de um de meus ensaios - "Autenticidade e
Relevância" - publicado há vários anos no The Union Seminary Review.
Sou agradecido ao Deão James Cannon da Divinity School of Duke University e seus colegas
pelo convite que me fizeram para dar preleções lá, em junho de 1956, e pelas muitas gentilezas que
me demonstraram durante êsse período de preleções. Desejo agradecer também a meu prezado
amigo Paul Scherer por ter lido o meu manuscrito e ter-me feito muitas críticas construtivas.

JOHN KNOX

CAPÍTULO I

QUANDO É BÍBLICA A PREGAÇÃO?

Em nossos dias estamos testemunhando uma nova insistência sobre o fato de que a pregação
deve ser bíblica. Nada é mais característico das discussões contemporâneas quanto à pregação do
que essa ênfase. A mensagem do pregador precisa provir não de acontecimentos correntes, ou
literatura em voga, ou de tendências prevalecentes de um tipo ou de outro, não de filósofos,
políticos, poetas e nem mesmo, em último recurso, da própria experiência ou reflexão do pregador,
mas sim das Escrituras . Naturalmente não há nada de realmente novo com relação a isso . O fato de
que é mister repetir tal coisa - e com nova ênfase - significa tão somente que a pregação tem se
desviado nesse ponto de sua própria tradição . Aquilo que estamos asseverando energicamente,
outras épocas tomaram como certo. A pregação nos primeiros séculos e a pregação em todos os
períodos mais vitais e fecundos da história da Igreja tem sido bíblica.
Mas quando é bíblica a pregação? Pregadores usam a Bíblia - e têm sempre usado - em uma
grande variedade de modos. Nem toda a pregação que toma forma de exposição bíblica pode ser
chamada bíblica em qualquer sentido apreciativo ou realmente autêntico. Na verdade, como bem o
sabemos, a exposição bíblica em si mesma pode ser muito infrutífera e enfadonha - e portanto
(atrever-nos-íamos a dizer?) muito não-bíblica. Em um dos livros de William Law, místico inglês do
século XVIII, há uma história encantadora de um presente delicado - um comentário bíblico - feito
por uma mulher a um velho pastor chamado John e sua esposa Betty. O pastor descreve o que
sucedeu:
"Senhora, a esposa do Juiz de nossa cidade, ouvindo falar de como Betty e eu amamos as
Escrituras, trouxe-nos certo dia um enorme livro explicativo sobre o Novo Testamento e nos disse
que ficaríamos entendendo muito melhor as Escrituras lendo naquele livro do que só no Novo
Testamento... No outro Dia do Senhor, quando, de acordo com o que era hábito, dois ou três
vizinhos vieram para se sentar conosco lá pela noitinha, "Betty", disse eu, "traga o grande livro da
Senhora e leia o quinto capítulo de São Mateus." Quando ela terminou, pedi-lhe que lesse o capítulo
quinze da Primeira Carta aos Coríntios. Na manhã seguinte disse eu a Betty: "Carregue de volta à
minha senhora esse enorme livro explicativo a diga-lhe que as palavras de Cristo a seus Apóstolos
são melhores por si mesmas e tal como êles as deixaram. " E, enquanto eu me dirigia às minhas
ovelhas, pensava comigo mesmo : - Esse grande livro explicativo parece ter feito tanto bem a êsse
livrinho do Novo Testamento ao ser acrescentado e misturado ao mesmo, tal como um galão de água
faria para um copinho de vinho verdadeiro ao ser acrescentado ou misturado ao primeiro. Na
verdade o vinho todo estaria lá, porém o seu gosto delicado e o espírito cordial que tinha quando
bebido por si estaria todo perdido e submerso na frieza e insipidez da água." (Devo a meu amigo, o
Rev. George F. Woods, do Downing College, Cambridge, o ter chamado minha atenção para essa
passagem. É encontrada em, Works - Londres, Impresso por J. Richardson, 1762, e provavelmente
reeditado por G. Moreton, 1893, VII, 186.)
Provavelmente os pregadores terão um prazer todo especial nesta história e é bem natural
que o tenham, pois que talvez tivessem sofrido mais do que outros por causa dos comentaristas sem
inspiração e sem esclarecimento. Entretanto, lembremo-nos de que o pregador é também um
expositor e que um sermão pode esconder ou deturpar um texto bíblico de maneira tão certa e
completa como qualquer comentário. Não é somente dos "enormes livros explicativos" dos sábios
acêrca dos quais por vêzes pode ser dito que têm sucesso únicamente em entorpecer "o bom gosto"
do original, diluindo o "seu espírito cordial"; muitas e muitas vêzes os longos discursos expositivos
dos pregadores têm o mesmo efeito. Em outras palavras, o uso da Bíblia - e até mesmo o seu uso
em larga escala - não é suficiente para garantir a pregação bíblica eficiente ou mesmo autêntica.
Tudo depende de como nós a usamos.
Dedicaremos vários dêstes capítulos para uma discussão dêsse "como"; primeiramente,
porém, talvez algo mais devesse ser dito a respeito do "porquê", pois que são os elementos no uso
da Bíblia para a pregação que determinam em grande parte como devem ser julgados os nossos
próprios modos de utilizá-la. A meu ver, êsses elementos podem ser indicados sumariamente do
seguinte modo: Usamos a Bíblia na pregação porque é literatura de alta qualidade, porque é nossa
literatura e porque é, em sentido muito verdadeiro e distinto, a literatura divina. Essas razões
encontram-se em ordem ascendente de importância, mas cada uma delas merece alguma atenção.
Com toda a certeza, uma das razões pelas quais é apropriado usar a Bíblia na pregação e
porque efetivamente nós a utilizamos, é em vista da mesma ser literatura religiosa de alta qualidade.
Talvez não precisemos usar o primeiro adjetivo, desde que em determinado sentido toda a grande
literatura pode ser considerada "religiosa". Inúmeras tentativas têm sido feitas - e por pessoas muito
mais competentes do que eu - para definir "grande" literatura e para dizer justamente o que é um
grande livro. É oportuno afirmar que nenhuma dessas tentativas tiveram perfeito sucesso. O critério
de grande arte não pode ser formulado de maneira precisa e exaustiva. Distinguimos o grande livro
da maneira pela qual conhecemos a grande música - pelo modo com que reagimos
permanentemente ao primeiro, por tudo quanto faz e continua a fazer em nós - e a única
comparação objetiva sobre a nossa impressão dêle é a reação de outros. A literatura mundial de
grande porte é composta de livros sobre os quais muitos homens a mulheres, em muitas gerações,
têm dito para si mesmos : "Este é um grande livro!" Certamente podemos afirmar com segurança
que êsses livros tratarão sempre, não de meras concepções abstratas nem tampouco de fantasias,
mas da experiência humana em sua verdade concreta e existencial. Procurarão descobrir tudo
quanto há de profundo no homem, as fontes de sua grandeza e de sua derrota trágica. Colocá-lo-ão
em um lugar espaçoso, concedendo algum senso de significado último e do mistério de sua vida. E
farão tudo isso por meio de linguagem simples, clara e comovente. Contudo, por mais que tentemos
formular nossa definição de grande literatura, não há dúvida que a Bíblia como um todo, bem como
muitas de suas partes tomadas em separado, podem ser perfeitamente enquadradas como tal. Não é
grande literatura apenas, mas em alguns aspectos é incomparàvelmente grande. É o relato mais
realístico, profundo e comovente do homem que o próprio homem jamais produziu. A pregação, no
entanto, é também profunda e radicalmente relacionada com o homem, sua necessidade e sua
redenção, sendo que sua eficiência e genuinidade dependem da compreensão profunda, certa a
verdadeira do pregador relativamente à situação humana. A Bíblia provê recursos magníficos para
essa compreensão. Por esta razão, se não por outra, o pregador utiliza êsse livro.
Entretanto, uma razão ainda mais potente para o uso da Bíblia na pregação é a de ser a
mesma nossa literatura. Quero dizer com isso, naturalmente, que é a literatura da Igreja. Os livros
do Antigo Testamento (ou pelo menos os da Lei e os Profetas) podiam ser encontrados por séculos e
séculos e em uso familiar entre os judeus, antes que êsses mesmos livros fôssem adotados pela
comunidade cristã. Desde tempos primordiais tais escritos foram associados com a vida da Igreja e
essa associação foi feita do modo mais significante e íntimo. Jesus conhecia tais livros e citou-os,
assim como Paulo. As próprias cartas e outros documentos especificamente cristãos, de modo
especial os Evangelhos que descreveram a carreira de Jesus e registraram suas palavras, logo
conseguiram o mesmo status elevado, desfrutando dêsse mesmo uso familiar. Por vinte séculos, a
Igreja - verdadeiramente tôda a Cristandade - está sendo nutrida com êsses escritos antigos.
Imagens e também concepções bíblicas têm penetrado na urdidura e na composição da cultura
ocidental; a linguagem da Bíblia não sòmente foi o ingrediente básico na linguagem da liturgia e
devoção da Igreja, mas também afetou profundamente tanto nossa literatura em geral assim como
nossa linguagem comum. Com toda a probabilidade, os hinos ensinados por nossas mães eram bons,
porém não é só a sua excelência intrínseca que os torna preciosos para nós. Amamo-los muito
menos por seu conteúdo e por si mesmos do que por causa de nossas mães e, sem dúvida alguma,
nossas avós que também gostavam dêsses hinos. De igual modo, a Bíblia conseguiu obter significado
e valor mais elevados pelo uso que a Igreja faz da mesma. Passagens como o salmo vinte e três, os
primeiros versículos do capítulo cinco de Romanos, ou algumas afirmações de Jesus nos Evangelhos,
têm hoje um valor que não poderiam ter tido quando primeiramente expressados ou escritos. Por
vêzes uma frase bíblica familiar pode evocar todo um mundo de significados passados e, por vêzes,
meio esquecidos. Na verdade, alguns dêsses significados mais profundos mal podem ser evocados de
qualquer outro modo. Contudo, justamente êsses significados - concretos e existenciais - a pregação
procura comunicar. Não é de se espantar, pois, que a Bíblia seja usada! Como se poderia fazer de
outra forma?
Mas a terceira razão é realmente a decisiva: é a literatura de Deus. É, conforme afirmamos, "a
Palavra de Deus. " Se não pudesse ser chamada Palavra de Deus, não só seria altamento dubitativo
que fôsse utilizada para a pregação, mas também que fôsse empregada com tanta familiaridade - ou
até mesmo que existisse algo como a pregação. Se, na história que teve início com Abraão e
culminou com Cristo e na vida comunal que pertenceu a essa história ou à qual essa história
pertenceu (pode-se olhar de dois modos para essa interrelação) , os homens não tivessem
encontrado ali a própria presença e a ação poderosa de Deus, não haveria nem Igreja, nem Bíblia,
nem tampouco pregação. A Bíblia é denominada a Palavra de Deus não porque ela seja composta de
palavras de Deus, ou contenha essas palavras (como se Deus se expressasse por palavras) , mas
porque transmite a nós a presença e a ação poderosa de Deus. Pois bem, a pregação cristã procura
transmitir essa mesma presença e essa mesma ação poderosa. Tal como a Bíblia em si mesma, a
pregação se preocupa com o evento de Cristo, procurando comunicar sua realidade e sua relevância,
interpretar o seu significado para os homens de cada geração e para o homem em todas as
gerações. A Bíblia, portanto, não é apenas útil na pregação; é absolutamente indispensável. É mais
do que um recurso supremamente útil; pertence essencialmente à própria fonte da pregação. Não é
somente ver
dadeiro que a pregação devesse ser bíblica; a pregação autêntica tem de ser assim!
Perguntamos novamente, porém: que é pregação bíblica? Agora já o suficiente foi dito para
indicar que não se pode definir a pregação bíblica em têrmos de qualquer conexão mecânica -
externa ou meramente formal - conexão esta feita entre a Bíblia e o sermão. Não se pode dizer, por
exemplo, que a pregação bíblica seja a simples pregação de um texto bíblico. Lembro-me de ter
ouvido, quando me encontrava no seminário, acêrca da distinção entre sermões tópicos e textuais.
Talvez esta possa ser uma distinção útil para determinados propósitos, porém de nada servirá com
relação a todos os sermões textuais como sendo bíblicos e todos os sermões tópicos como não-
bíblicos. Todos nós sabemos ser possível tomar de um texto bíblico e proceder à pregação de um
sermão bem não-bíblico. Poder-seá fazer isso de várias maneiras. Uma delas é citar algumas poucas
palavras da Escritura como uma espécie de frontispício ornamental para um discurso que, na
realidade, nada deve a qualquer uma dessas palavras ou qualquer outra parte da Escritura. Recordo-
me, por exemplo, de ter ouvido há vários anos - e confesso, com vergonha, que eu próprio uma vez
preguei - um sermão dêsse tipo (que foi pregado primeiramente, tanto quanto saibamos, por Charles
Reynolds Broom) sôbre a pergunta feita certa vez a Jacó por Faraó, "Quantos são os dias dos anos
de tua vida?" (Gn 47.8) - sermão êste em tôrno das "dimensões da vida." Nesse caso e em inúmeros
outros semelhantes, é puramente acidental qualquer conexão entre o sermão e qualquer outra coisa
sôbre a qual a Bíblia esteja realmente interessada a dizer. Ou, então, pode-se tomar de um texto a
depois interpreta-lo mal, como quando alguém emprega "Examinai as Escrituras" - a tradução de Jo
5.39 - como texto para um sermão relacionado com o dever da leitura da Bíblia. Outra alternativa é
alguém extrair da Bíblia um texto relativamente não-bíblico - isto é, um ou dois versículos que não
sejam típicos ou representativos - tratando depois dos mesmos, talvez de modo íntimo e fiel, mas
sem referência alguma ao que a Bíblia, como um tôdo, está afirmando. Em uma só palavra, a
pregação de um texto - ou até mesmo o que denominamos pregação expositiva - como tal não é
pregação bíblica.
A pregação bíblica tampouco pode ser definida como pregação quando tem a Bíblia como seu
assunto ou quando se baseia na Bíblia em grande parte de sua matéria. Carl S. Patton em seu livro
The Use o f the Bible in Preaching, parece admitir o fato de que a pregação bíblica significa pregar
acêrca da Bíblia. Êle descreve, por exemplo:
"Não sustenho que tôda a pregação devesse ser bíblica. Longe disso. A religião está em
formação durante todo tempo. Acontecimentos correntes na vida política, econômica e Internacional
apelam fortemente por um comentário e por uma intepretação Cristã pelo profeta Cristão. Tanto o
pensamento científico contemporâneo como o filosófico movimentam-se frequentemente,
apresentando novos significados sôbre as crenças e práticas religiosas. É inútil pretender que as
únicas coisas sôbre as quais precisamos falar do púlpito devam ser encontradas na Bíblia." (Esta
citação e as seguintes são de The Use of the Bible in Preaching, Copyright 1936 por Harper &
Brothers e usadas com a permissão dos mesmos. Reconhecemos que as citações não representam
devidamente todo o livro, o qual tem muitos méritos.)
A idéia parece ser a de que a pregação pode ser bíblica e ocupar-se da Bíblia, ou então ser
relevante e tratar do que na realidade está acontecendo no mundo porém não ambas as coisas.
(Com relação a essa idéia errônea algo mais será dito no próximo capítulo).
A história de Patton acêrca de como êle foi iniciado na pregação "bíblica" é tão viva e divertida
como devem ter sido os seus sermões:
"Em certa ocasião, entretanto, talvez há quinze ou vinte anos, experimentei fazer um sermão
bíblico. Suponho que assim fiz porque ninguém havia sido morto durante aquela semana, a respeito
do qual coubesse uma pregação, e nada sucedera no Japão ou na Itália, ou tampouco na Liga das
Nações que requeresse uma elucidação de minha parte - e eu precisava urgentemente de um tópico.
Estivera lendo a velha história da Torre de Babel. Foi assim que num rasgo de coragem - ou, quem
sabe, de desespêro - disse comigo mesmo : "Vou fazer um sermão extraído disso. " Senti-me um
tanto apologético a êsse respeito. Por que arrastar a minha gente moderna e atualizada para aquêle
passado tão longínquo e para aquela tôrre inacabada? Entretanto, não consegui pensar em outra
coisa naquela semana e assim teve que ser aquilo mesmo. Para meu espanto, os comentários em
tôrno daquele sermão quase me levaram a supor que o pessoal da minha congregação havia passado
noites inteiras em claro pensando naquela velha história."
Patton mal faz alusão ao conteúdo dêsse primeiro sermão "bíblico. " Êle é mais explícito em
sua descrição da segunda tentativa que êle fez.
"Fiz outra tentativa. Tomei o trecho menos indicado de material homilético que pode ser
encontrado em todo o Antigo Testamento - o quinto capítulo de Gênesis. Tentei fazer isso de modo
um tanto realista. Indaguei por que aquêles anciãos puderam viver tanto tempo e o que estava
errado com a medicina e a higiene atuais em vista de não podermos competir com os primeiros.
Perguntei como é que se divertiam depois de atingirem a idade de quinhentos ou seiscentos anos.
Levantei a questão sôbre se êles chegavam a ficar doentes e, se ficassem, será que teriam artrite
(suponho que teria sido reumatismo ao tempo dêles) por uns dez ou quinze anos como todo o
mundo tem hoje em dia, ou então no decurso de uns duzentos anos. Inquiri se as mulheres
chegavam a viver tanto como os homens, e qual a idade em que qualquer um dêles seria
considerado realmente adulto e pronto para ser independente de seus pais ou mães. Expliquei, então
- e com toda a franqueza - que espécie de história era aquela, de acôrdo com o meu pensamento:
não uma história verídica, mas um lindo trecho folclórico no qual os hebreus de um período posterior
haviam descrito uma idade de ouro, tempos atrás, quando o homem era ainda um menino aos
cinqüenta anos, tornava-se jovem aproximadamente aos seiscentos ou setecentos anos e começava
a sentir que a velhice se aproximava por volta da casa dos novecentos anos. Isso parecia ser uma
novidade para aquela gente. E mostraram-se mesmo muito interessados naquilo tudo. De fato, êsse
mesmo sermão chegou a ser requisitado e impresso no periódico de uma de nossas escolas
teológicas." (Chicago, Willet CLark and Company, 1936. Os vários trechos citados foram usados com
a permissão de Harper & Brothers, atuais editores.)
É oportuno dizer que Patton acrescenta: "Se tais pregações só fôssem interessantes, não nos
levariam muito longe. Contudo, êsse tipo de pregação é informativo - educativo - de duas maneiras.
" Ao lê-lo, porém, constata-se que tanto uma como outra dessas "maneiras" tem muito a ver com o
fato de que as pessoas começavam a ter idéias mais inteligentes a respeito da própria Bíblia.
Não culparemos Patton pelos defeitos de compreensão que talvez se encontrem nesse seu
livro cheio de vida. Reconheceremos as passagens citadas como representações satisfatórias do clima
teológico de certas secções do Protestantismo na geração passada. No entanto, tais trechos também
servem para nos fazer lembrar que a pregação bíblica não pode ser definida como simples pregação
que tem a preocupação explícita e grande dos componentes bíblicos - pouco importando quais êsses
componentes e como são tratados. Na realidade, a diferença entre a pregação bíblica e a não-bíblica
tem muito pouco a ver com a estrutura do sermão e se sua forma é tópica ou expositiva. A diferença
é mais profunda do que isso. Se fôr possível - como já temos afirmado - pregar um sermão bem não-
bíblico sôbre um texto bíblico, de igual modo sera possível pregar um sermão bem bíblico sem base
em texto algum.
Como, pois, podemos definir pregação bíblica? Muito do restante dêste livro procurará
responder a esta questão, de modo que não se fará tentativa aqui a êste respeito. Estabeleçamos de
modo resumido quatro pontos que não podem ser claramente separados um do outro. Podemos
afirmar primeiramente que pregação bíblica é a que permanece próxima às idéias bíblicas
características e essenciais: a transcendência, a santidade, o poder e soberania, o amor de Deus; sua
exigência de justiça ética; seu julgamento do pecado; a criação do homem, sua condição de pecador;
sua necessidade de perdão e liberdade; o significado de Cristo como a vinda real de Deus para nossa
história com o auxílio de que precisamos; a eficácia da reconciliação e da redenção, da vida, do gôzo
e da paz na nova comunidade do Espírito que Deus criou através de Cristo e para a qual podemos
entrar mediante a condição única de penitência e fé. E, na pregação bíblica, essas idéias não
aparecerão simplesmente como tais - não só como largas concepções gerais - mas sim como parte
integrante no contexto concreto da tradição e da vida eclesiástica. A pregação bíblica não se
preocupa com abstrações. Já era "existencialista" muito antes que os filósofos começassem a
empregar êste têrmo. Na verdade, não foi mero acidente que Kierkegaard, o pai do existencialismo
moderno, tivesse sido um pregador bíblico.
Em segundo lugar, pregação bíblica é a que se preocupa essencialmente com o acontecimento
bíblico principal - o evento de Cristo. O simples tratamento de incidentes na narrativa bíblica ou
fragmentos de ensino, até mesmo quando feitos de maneira fiel e edificante, não qualificam a
pregação como sendo bíblica, a não ser que êsses incidentes e ensinos sejam vistos e apresentados
em sua relação com o ato completo da redenção divina que culminou com a vida a morte de Jesus, a
Ressurreição, a vinda do Espírito e a criação da Igreja. Sinclair Lewis, em Babitt, apresenta alguns
comentários satíricos com relação às várias preleções sóbre "filosofia e etnologia oriental", as quais
estavam sendo dadas por "solteironas sinceras", nas diversas classes de uma escola dominical. As
discussões de componentes bíblicos serão precisamente essas preleções (quer sejam ou não
informativas, quer maçantes como as que Lewis tem em mente, ou interessantes e até divertidas
como as que Patton por vêzes nos dá) ou então serão meras exortações moralistas e provavelmente
sentimentais, a não ser que sua preocupação primária seja o estabelecimento do significado da nova
relação de Deus com os homens tal como foi cumprido através do evento e incorporado à Igreja.
A própria palavra "pregar" deveria lembrar-nos êsse propósito primário e o caráter da
pregação. A forma original inglêsa dessa palavra era prechen, uma derivação imediata do francês
antigo prechier (o prêcher moderno) e finalmente de praedico, forma latina que significa declarar em
público, proclamar, publicar. Geralmente se supõe que êsse têrmo latino corresponde ao grego
prophêteuo, profetizar. Entretanto, prophêteuo e prophêteia, tal como aparecem no Nôvo
Testamento, são transliterados regularmente nas versões latinas, aparecendo como propheto e
prophetia. Praedico traduz kêrysso e praedicatio, kerygma; e essas palavras, tanto gregas como
latinas, denotam uma declaração pública, uma proclamação e, na realidade, um anúncio no sentido
mais simples e geral. O kêryx era um arauto e kerygma as notícias que proclamava. Desde que as
notícias são boas, o Nôvo Testamento prefere evangelion a kerygma. O pregador é o arauto das boas
novas. Proclama o ano aceitável do Senhor. Da maneira pela qual essa função está desenvolvida na
Igreja, pregar é estar convicto, mais do que uma simples proclamação, portanto. Embora o latim
praedico restitua apenas o têrmo grego único kêrysso, o próprio ato de pregar chegou a incluir
funções originalmente designadas por outros têrmos, notadamente "profecia" e "ensino. " Mas o
significado fundamental de "pregação" ainda anuncia algo além daquilo que sucedeu; e o sentido
mais complicado e inclusivo do têrmo pode ser verdadeiramente compreendido tão sòmente se
aquêle significado fundamental fôr conservado na mente. Antes de qualquer outra coisa, o pregador
ainda é o anunciador do Evangelho. Sua mensagem é, pois, determinada primariamente por um
acontecimento antigo - aquêle que está centralizado na morte a ressurreição de Jesus Cristo.
Somente uma pregação dêsse tipo é bíblica.
Em terceiro lugar, pregação bíblica é a que dá respostas e nutre a vida essencial da Igreja.
Isso porque o acontecimento que proclama é mais do que uma ocorrência antiga por nós conhecida
só por meio de relatos documentados da mesma, que por um acaso foram escritos e que
sobreviveram também por acaso. Êsse acontecimento e seu verdadeiro sentido estão perpetuados na
nova comunidade do Espírito. Aqui está a realidade da Ressurreição. O pregador não repete
incessantemente uma crônica antiga; dá o testemunho da qualidade e significado da nova vida
comunitária em que Deus torna accessível a nós uma nova saúde a salvação. Sua pregação é como
se fôra uma elipse que se movimenta em tôrno de dois focos, um da antiga ocorrência e outro da
continua vida nova do Espírito. Desde que só se pode falar verdadeiramente do evento na luz da
experiência contínua da Igreja e que só se pode, na realidade, interpretar a vida da Igreja à luz do
acontecimento relembrado, os dois focos tendem a se tornar um único centro. A verdadeira forma da
pregação, porém, é uma elipse e não um círculo e a tensão entre o acontecimento e o Espírito é tão
importante como a reciprocidade dos mesmos. Muitas vêzes a pregação fracassa em vista de ambos
serem identificados de modo por demais fácil, ou então porque um ou outro é simplesmente
ignorado. O problema básico da pregação é conservar juntos os dois elementos em sua completa
integridade e fôrça distinta, mas conservá-los juntos.
Finalmente, pregação bíblica será aquela em que o acontecimento seja recorrente no sentido
real da palavra. O Deus que atuou nos acontecimentos através dos quais surgiu a Igreja, age
novamente na palavra do pregador. A pregação do evangelho é, em si mesma, uma parte do
Evangelho. O verdadeiro pregador bíblico não discute simplesmente acontecimentos do passado (tal
como um professor de história), nem tampouco esboça meras lições edificantes de sua vida (como
um guia moral ou filósofo). O acontecimento passado chega a suceder novamente em suas palavras
inspiradas. A verdadeira pregação é em si mesma um evento - e um evento de um tipo especial.
Nesse evento a revelação de Deus em Cristo é, na realidade, recorrente. O acontecimento
escatológico, que teve início com a vinda de Cristo e terminara com o julgamento final e com o
cumprimento da história, está sendo realizado recorrentemente ou, se o preferir, de modo continuo,
nos sacramentos e na pregação da igreja. Se isso não for verdade, pouca importância têm os
sacramentos ou mesmo a pregação. Na verdade, se tudo isso não fôr verídico, os sacramentos e a
pregação não existem de maneira alguma em nenhum sentido autêntico.
As Escrituras Cristãs chegaram a nós diretamente da vida da Igreja primitiva e nos foram
transmitidas por meio da vida da Igreja desde então, através de todos os séculos. Seu valor principal
está no fato de que trazem até nós, em seu caráter concreto, o acontecimento em que a Igreja
começou e que determinou a natureza inicial e essencial da Igreja. Desta maneira, as Escrituras
correspondem à vida da comunidade primitiva em resposta a êsse acontecimento como se, ao lê-las,
sejamos postos em contacto com o evento e capacitados a participar na vida. A verdadeira pregação
bíblica é aquela que tem êsse mesmo efeito em tôda a qualquer época.

CAPÍTULO II

A RELEVÂNCIA DA PREGAÇÃO BÍBLICA

Mais para o fim do capítulo anterior apresentei a pregação como tendo, por assim dizer, a
forma de uma elipse com dois focos - o evento antigo e a vida sempre nova do Espírito. É necessário
dizer mais a respeito da integridade e distinção de cada uma dessas questões, assim como acêrca da
reciprocidade essencial das mesmas.
Há poucos anos, ao principiar um relato sobre sua experiência religiosa e escrevendo em uma
de nossas revistas, uma mulher observou que no começo de sua carreira voltara-se contra a Igreja
porque lhe parecera que a mesma tinha muito pouca relação, quer fosse com o século primeiro ou
com o século vinte para ter significação. Não me recordo do título de seu artigo ou até mesmo de
seu próprio nome e não posso lembrar-me de nada com respeito ao contexto de sua afirmativa ou
mesmo o curso geral de seu argumento ou confissão; não me esqueci, porém, da agulhada daquela
observação aberta, a decisão clara de sua saída da Igreja. Será que alguém pode negar que haja
verdade em sua acusação? E quem discutirá que, tanto quanto seja verdade, é uma acusação
absolutamente rejeitável? Com toda a certeza os críticos podem argumentar que temos o direito de
esperar que a Igreja esteja em contacto com a realidade em qualquer ponto: se não com o nosso
próprio século, pelo menos então com o primeiro século; se não com o primeiro século, de qualquer
modo então com o século vinte. Ou, para estabelecer o problema do ponto de vista Cristão, que
poderíamos nós dizer com respeito à justificação de um Cristianismo - ou de uma pregação Cristã -
que fôsse tanto não-bíblica como inaplicável?
Demos ênfase às comparações na observação que citei, porém não estou certo se a escritora
gostaria que tivéssemos feito tal coisa. Entretanto, tenho certeza de que o fato de assim fazermos
esconde uma parte importante de seu significado. Essa leitura sugere que talvez fôsse possível à
Igreja entrar em contacto com o primeiro ou com o século vinte sem ter relação com ambos, que
talvez fôsse possível à pregação ser bíblica sem ser relevante, ou ser relevante sem ser bíblica. Isso,
porém, não é verdade. Nesse caso, pelo menos a relevância e a autenticidade histórica são dois lados
de uma só moeda.
Por exemplo, considere-se o pregador que crê que sua pregação esteja no mais íntimo
contacto com o primeiro século - ele está convicto de pregar o "verdadeiro Evangelho" - quando, na
realidade, falta à pregação um toque qualquer com o século vinte. Não está obviamente enganado
com respeito à sua conexão com o primeiro século? Estar em contacto com o primeiro século não
significa a pura e simples repetição das palavras do primeiro século ou freqüentes referências
lisonjeiras ao primeiro século; significa, na verdade, algo mais, tal como compartilhar da experiência
do primeiro século, conhecendo as fontes de poder que o mesmo conheceu, possuindo uma vida
comum com essa época. Mas uma Igreja não pode estar em contacto com o primeiro século nesse
sentido sem que seja uma comunidade viva; e uma comunidade viva, além de estar em relação
orgânica com a vida do passado, pertence organicamente à vida de seu próprio período. Realmente é
só num presente vivo que se pode ter qualquer contacto vital com o passado, ou que o passado em
si pode ser considerado como existente. Estar em contacto com um passado vivo é mais do que
meramente ter tido um tal passado; é mais do que saber que alguém o teve, ou continuar
freqüentemente lembrando a si mesmo e a outros que tem êsse passado; na realidade, é ser uma
continuação viva dele.
Entretanto, a mesma coisa pode ser dita da Igreja que não tem conexão real com o primeiro
século, mas pensa que está em relação das mais frutíferas com o século vinte. Essa Igreja se engana
ao supor que uma sociedade pode ser uma Igreja de qualquer modo, sem manter um contacto vivo
com o primeiro século e todos os outros desde então. De outra maneira poderá ser contemporânea,
porém não é uma Igreja contemporânea. Isso devido à razão pela qual a Igreja tem o seu caráter
distinto em todo e qualquer século em virtude de sua relação com os acontecimentos que ocorreram
no primeiro; e somente nesse caráter tem ela qualquer palavra importante para dizer ou qualquer
serviço realmente adequado para executar.
Resumindo, se nós, como pregadores, não estamos falando às necessidades do mundo
contemporâneo, pode-se claramente supor que não ouvimos realmente o Evangelho da Igreja
primitiva. Por outro lado, por mais que tenhamos muita preocupação relativamente ao mundo
contemporâneo, essa ansiedade não é Cristã a não ser que seja originada da convicção de que um
acontecimento ocorreu no primeiro século à luz do qual somente pode ser compreendido o
significado da cena contemporânea e no poder do qual somente pode ser concretizada a comunidade
que procuramos. Só a autêntica pregação bíblica pode ser realmente relevante; só a pregação
essencialmente relevante pode ser realmente bíblica.
O reconhecimento dessa interrelação entre autenticidade histórica e relevância faz com que o
teólogo e o pregador bíblicos se aproximem muito mais intimamente do que parecia, geralmente
falando, e seja revelado o campo comum em que ambos permanecem se cada um deles estiver
desempenhando a sua própria função. A diferença entre ambos não é a que um esteja preocupado
com a verdade histórica e o outro com o valor contemporâneo. Ambos estarão interessados nessas
duas coisas, embora uma diferença de ênfase dê a cada um deles um papel distinto.
Considere-se primeiramente a introdução estritamente histórica, - isto é, a introdução
dominada pelo interesse na história por seu próprio fim. Agora, os fatos externos da história podem
ser estabelecidos ou não, conforme for o caso, sem referência nenhuma à relevância. Mas o
significado interior da história (e isso nada mais é do que a realidade concreta) só pode ser
apreendido por alguém que seja sensível ao significado de sua própria época. Há aqui uma relação
mútua, uma espécie de alternação ou ritmo, o passado lançando luz ao presente e o presente ao
passado; no entanto, desde o início e em certa medida, devem estar presentes a preocupação pela
relevância e o interesse pela autenticidade. O estudante de história precisa levar consigo, pelo
menos, a capacidade para uma compreensão profunda do presente se jamais tiver que alcançar
qualquer compreensão profunda do passado. O livro de Herbert Butterfield, Christianíty and History,
(Nova Iorque, Charles Scribner's Sons, 1950.) é um brilhante exemplo dessa verdade. "É quase
impossível", escreve ele a certa altura, "apreciar de modo apropriado os desenvolvimentos mais
elevados na reflexão histórica do Antigo Testamento, a não ser que seja em outra época que tenha
experimentado (ou que tenha enfrentado) um cataclisma colossal, um período como este em que
vivemos. " E poder-se-ia acrescentar que, quanto mais profundamente determinado historiador sentir
o impacto e o significado do cataclisma presente, tanto mais profundamente autêntica pode ser a sua
compreensão do que os profetas procuram afirmar. Estamos testemunhando agora um notável
despertamento de interesse com relação ao Antigo Testamento. Cometeríamos um erro se
atribuíssemos isso simplesmente aos Pergaminhos do Mar Morto ou ao fato de que justamente agora
existem tantos sábios e professores brilhantes nesse campo. O fator primeiro e realmente decisivo é
a história trágica de nossos próprios dias, a qual tem feito com que o Antigo Testamento se torne de
novo relevante e tem, portanto, possibilitado primeiramente a nossos professores e depois a nós
mesmos a que ouçamos com nova compreensão a sua voz autêntica.
De igual modo o nosso entendimento do Novo Testamento e dos acontecimentos que o
criaram depende, para sua profundeza e verdade, muito mais de nossa capacidade de discernimento
do significado de nossa existência presente do que de qualquer equipamento técnico que porventura
tenhamos para o estudo de documentos antigos ou qualquer grau de aprendizagem e erudição -
valiosos e indispensáveis para determinados propósitos importantes, como, sem dúvida alguma, são
tais qualificações. Cristo precisa viver por nós, precisa entrar em nossa própria existência, precisa
encontrar-nos onde estamos, se é que vamos chegar a conhecer a maravilha da Encarnação ou o
poder - e, portanto, a verdade da ressurreição. Milner-White começa uma de suas orações da
seguinte maneira: "Ó Cristo, cujo nascimento maravilhoso nada significa, a não ser que nasçamos de
novo, cuja morte e sacrifício são nada, a não ser que morramos para o pecado, cuja ressurreição é
nula se tu ressurgires sozinho..." (A Cambridge Bede Book , Nova Iorque, Longmans Green &
Company, 1936, pág. 15.) Seja o que for dito da história em geral, não pode haver conhecimento
autêntico da história para a qual o Cristão se volte - aquilo que os alemães chamam de
Heilsgeschichte - sem que haja esse tipo de participação; e uma participação que, preocupada com a
autenticidade, deixe de lado todas as considerações de relevância, terminando por perder, não
somente a relevância, mas também a autenticidade.
O anverso, contudo, é também verdadeiro. Considere-se o caso do pregador que se aproxima
da, história bíblica com um interesse primário na relevância. Êsse alguém está em perigo todo
especial de se tornar desconexo. Isso é verdade porque, em grande parte, a relevância da história
bíblica jaz no desafio que apresenta, com relação a hipóteses convencionais e modos costumeiros de
se pensar, enquanto que a atenção para a relevância tende unicamente para a modernização e a
assimilação. A Bíblia foi feita, para responder somente nossas perguntas - isto é, aquelas que
fazemos conscientemente - e evita responder as que são suas em primeiro lugar, mas que,
propriamente falando, tendo sido apresentadas, provam também ser nossas mais profundas
questões. Os pontos em que a Bíblia é mais relevante com relação ao século vinte são precisamente
aquêles em que a mensagem Cristã original era a mais relevante para o primeiro século - em sua
maior parte, no entanto, estes não são pontos de acordo e conformidade, mas sim pontos de
diferença e confronto.
Há uma geração, o modernismo bíblico estava ocupado em reduzir esses pontos de confronto,
tanto como o fundamentalismo estava ocupado em multiplicá-los - o modernismo negando que a
Bíblia e a Igreja tivessem qualquer coisa a dizer que ainda não conhecêssemos como sendo verdade,
e o fundamentalismo afirmando que tudo quanto a Bíblia e a Igreja tinham a dizer era, em sua maior
parte, o que bem sabíamos não ser verdade. Tanto um como outro tinham falta de relevância - o
modernismo porque tornou o Cristianismo fácil demais; e o fundamentalismo, não porque fizesse o
Cristianismo difícil demais, mas porque tornava-o difícil em lugares errados. O modernista teria
reduzido toda a oposição essencial da Igreja e do mundo ao status de diferenças de cultura
meramente acidentais entre o primeiro século e o século vinte; o fundamentalista teria elevado todas
as diferenças acidentais de cultura entre o primeiro século e o século vinte ao status de diferenças
essenciais e permanentes entre a Igreja e o mundo.
A Igreja do primeiro século levanta-se contra o mundo moderno; os acontecimentos do
primeiro século confrontam e desafiam o século vinte - o termo bíblico severo é "escandalizam".
Qualquer modernista se acha em perigo de esquecer esse fato. No entanto, os pontos em que eles
desafiam assim o século vinte são precisa e unicamente aquêles em que também desafiaram ao
primeiro século; é esse fato que qualquer fundamentalismo ou dogmatismo tende a ignorar. Somente
através de um esforço fiel e desinteressado para ver o Cristianismo em seu cenário original e de
ouvir a sua mensagem como os seus primeiros ouvintes a escutaram - só através de um esforço pela
verdade histórica - é que podem ser discernidos esses pontos de confronto e, portanto, de maior
relevância. A verdadeira pregação bíblica é a que discerne tais pontos de relevância e, fazendo isso,
recupera o significado autêntico do texto bíblico.
Tanto o teólogo como o pregador bíblicos estão sujeitos a perigos característicos. O perigo do
sábio é o de uma especialização estreita demais - isto é, uma especialização tão limitada que malogre
em seu próprio fim. Já ouvimos, provavelmente ad nauseam, que um especialista é alguém que
"conhece cada vez mais sobre cada vez mais" sobre "cada vez mais coisas. " Isso porque, de verdade
nesse epigrama como na grande maioria de epigramas; porém, se por "especialista" quisermos
significar um sábio competente em qualquer campo, precisamos reconhecer que deve saber "cada
vez mais" sobre "cada vez mais", se na realidade ele tiver que saber "cada vez mais" sobre "cada vez
menos"; ou, para dizer a mesma coisa de outro modo igualmente verdadeiro, se realmente ele está
aprendendo "cada vez mais" sobre "cada vez menos coisas", também está aprendendo "cada vez
menos coisas". Naturalmente, há certa parcela qualquer que seja o problema especial em que se
tenha empenhado, se tiver algum significado, suas ramificações são literalmente intermináveis e o
contexto em que pode ser examinado de modo frutífero é literalmente sem limite. Desse modo, o
sábio bíblico, preocupado com problemas técnicos especiais na pesquisa em que supõe nada ter a
aprender do estudo da pregação ou teologia contemporânea, para não mencionar a filosofia
moderna, a literatura ou a política, não só está enganado, mas também está a si mesmo pondo um
fim à possibilidade da mais elevada aquisição em seu próprio campo.
Em conexão a isso, o perigo característico para o pregador é o de impaciência prematura com
o especialista. Por vêzes esquece-se de que é preciso ter ferramentas para certo trabalho e que,
muitas vezes, leva-se mais tempo a fazer ou conseguir as ferramentas necessárias do que realmente
fazer o serviço final e mais óbviamente importante. Reli, e não há muito, Robinson Crusoe, e fiquei
impressionado com o quanto de seu tempo foi gasto em confeccionar ferramentas que não tinham
utilidade alguma como finalidades em si mesmas. Passou ele meses inteiros fazendo uma pá, tanto
como podemos passar meses inteiro aprendendo grego. Talvez a pá e o grego sejam mais do que
um degrau removido de aplicabilidade final; porém, para a realização de determinados alvos últimos
e importantes, pode ser que não sejam só relevantes, mas indispensáveis. Ou pode ser que a nossa
concepção de relevância seja prematura em si e, conseqüentemente, superficial ou grosseiramente
utilitária em demasia. Rejeitamos as descobertas do especialista antes que tenhamos tido tempo de
descobrir o quanto tem a contribuir para a nossa compreensão de questões muito além dos limites
de seu campo aparentemente estreito; ou, então, rejeitamos porque de nosso ponto de vista atual é
irrelevante tudo quanto poderia nos ter dado um novo ponto de vista do qual novas cadeias inteiras
de relevância teriam sido reveladas. Ficamos impacientes com nossos dirigentes especializados
porque nem sempre estão nos apresentando uma visão esplêndida das coisas. Ou talvez decidamo-
nos a dispensar completamente os dirigentes, preferindo a vista que já temos ou a que podemos
facilmente achar por nós mesmos, ao invés de seguir a trilha sinuosa através das longas passagens
sombrias até atingirmos o pico. Rejeitamos completamente tudo isso porque não nos provê um
sermão que, no entanto, se fora dado tempo, poderia nos ter fornecido um evangelho!
O processo educacional, o crescimento em direção à maturidade intelectual, poderia ser
descrito - e realmente quase ser definido - como o processo de descobrir constantemente regiões
cada vez mais extensas de relevância. Entretanto esse processo não é indolor, nem tampouco o seu
alvo está à plena vista a qualquer momento. Certamente que uma das marcas do sábio é sua
habilidade de estar interessado por um número surpreendente de coisas, e, como poderá parecer a
outros, em coisas surpreendentemente desinteressantes - e tudo porque ele aprendeu que muitas
vezes existem possibilidades de relevância em lugares bem insuspeitos e muito pouco prometedores.
Aprendeu ele que se lhe for dado tempo, a verdade - qualquer que seja a sua espécie tem um modo
de se tornar não só interessante, mas importante; que todo o descobridor da verdade, seja qual for o
campo, tem algo de significativo a dizer, embora se deva por vêzes estar pronto a esperar que o
significado se revele a si mesmo; que a verdade é finalmente uma só e que, portanto, nenhum
pedacinho dela, seja qual for o campo, em último recurso pode ser discrepante ou irrelevante.
Contudo, se é possível dizer de todos os pesquisadores da verdade que eles se acham
empenhados numa tarefa comum e, portanto, estão sob a obrigação de confiança mútua e ajuda,
será que, relativamente ao sábio e pregador bíblicos, tal referência não pode ser feita com ênfase
toda especial? Êles pertencem e servem a uma comunidade especial - e essa comunidade é a de
Cristo. Ambos estão procurando conhecer o significado de sua comunidade - suas origens, sua
natureza e sua tarefa. O teólogo ou pregador que diz ao outro, "Não preciso de você", falhou em ver
não só a natureza da Igreja e o significado da qualidade de ser membro da mesma, mas também a
natureza de seu próprio trabalho. Em vista dele não estar desejoso de receber, verdadeiramente não
pode dar. E, malogrando em contribuir para um empreendimento comum, está destituído de
qualquer realização significativa de si próprio. A disposição para aprender de outros - tanto ávida
como pacientemente - não é só uma das graças do amor; é o próprio coração da sabedoria.

CAPÍTULO III

TEÓLOGOS E PREGADORES

Tendo lançado as bases de alguns princípios gerais sobre a relação da Bíblia com a pregação,
poderemos discutir agora como esses princípios podem ser postos em prática. De modo geral, até
aqui estivemos preocupados com o uso da Escritura pelo pregador; consideraremos agora a utilização
de determinados textos da Bíblia em sermões especiais. Será o uso do pregador limitado à intenção
consciente do texto? Se não, até que ponto ou sob quais condições pode ele partir daquele sentido
original? Pode ser encarado como legítimo o desenvolvimento de significados meramente implícitos?
Na Igreja, até que ponto o emprego extensivo de um versículo bíblico, com certo significado, pode
justificar o seu uso continuado com esse mesmo sentido, conquanto o estudo histórico tenha deixado
bem claro que esse versículo possuia significado bem diferente no original? Será legítimo focalizar a
atenção em determinado sermão acerca de um aspecto especial e comparativamente sem
importância do significado de um versículo, mesmo que seja apresentado um tratamento altamente
desproporcional no qual o ponto principal do texto receba atenção deficiente ou na verdade nem
mesmo apareça? Embora eu não me aventure a oferecer respostas detalhadas e definitivas a essas
diversas questões, elas indicam o problema geral deste capítulo. De modo nenhum é um problema
simples ou fácil de ser resolvido.
O primeiro passo para a solução, porém, está bastante claro: o uso do texto pelo pregador
precisa começar por um conhecimento do significado original do mesmo. Seja o que for que ele fizer
com o texto, precisa saber o que está fazendo; e isso significa conhecer o que o texto, na realidade,
significou para o seu escritor e o que êste pretendia que o mesmo significasse para seus primeiros
leitores. Por certo é impossível saber o que alguns textos bíblicos pretendiam transmitir
originalmente, quer seja porque o fraseado original é incerto ou ambíguo ou por alguma outra razão.
Não há, entretanto, desculpa alguma para nossa falha em conhecer tanto quanto possível, e, na
maioria dos casos, o sentido original é bastante claro se o mesmo for pesquisado. Ernest C. Celwel
escreve:
"De modo geral, há somente dois métodos de interpretação da Bíblia. São os métodos de
"modernização" e "histórico". Cada um dêsses métodos tem inúmeras modificações e formas, porém
os dois estão separados um do outro por um golfo que é tão vasto a ponto de restringir tôdas as
divisões menores. O método chamado de modernizador tem os seus pés plantadas sólidamente no
período em que o intérprete vive; encontra o significado básico da Bíblia com referência ao período
"moderno" em que, naturalmente, o intérprete está mais interessado. O método histórico, por outro
lado, descobre o significado básico da Bíblia com referência à situação em que ela foi escrita. (The
Study of the Bible (Chicago, University of Chicago Press, 1937, págs. 103 em diante. Copyright 1937
pela Universidade de Chicago. A citação foi permitida pela University of Chicago Press.)
A ênfase nas duas últimas sentenças deveria recair sobre a palavra "básico". Temos já visto
que, na realidade, nenhum de nós poderá compreender o que a Bíblia disse à sua própria época, se
não ouvirmos também o que está falando à nossa. Entretanto, tal como o capítulo precedente deixou
claro, não há dúvida com respeito a onde começa o processo de compreensão. Principia com o
significado do texto em seu cenário original. O sentido básico, tanto para o pregador e não menos
para o sábio bíblico, é o significado histórico.
Pois bem, todos nós reconhecemos que o pregador está sob a tentação extraordinária de
negligenciar nesse primeiro passo. Não é ele um historiador preocupado pela história como um fim
em si. Está, sim, preocupado com o significado do Evangelho para a sua própria época e sente
grandes responsabilidades para com os homens e mulheres modernos, tanto em sua congregação
como na sociedade em geral, cujos problemas e necessidades requerem a sua atenção de todos os
ângulos. Está sob a mais urgente pressão de "servir a geração atual. " Não é estranho que grande
parte das vezes sua primeira indagação acerca de um texto bíblico seja: "Como posso empregar êsse
texto para ajudar minha gente?" ao invés de: "Qual o sentido original desse texto?"
A tendência para descuidar do sentido original é encarecida pelo ponto de vista um tanto
comum da natureza da Bíblia como a Palavra de Deus. Como tal de acordo com essa idéia, ela não é
só infalível, mas também incalculàvelmente convincente e misteriosamente grávida. Literalmente
falando, não há limite ao que o texto possa significar. Tudo quanto as palavras sugiram ao intérprete
- ou, como ele diria grande parte das vezes, tudo quanto o Espírito Santo comunique - deve ser tudo
ou, pelo menos, uma parte daquilo que o texto pretenda transmitir. Em vista do significado que as
palavras inicialmente tiveram para seus leitores não determinar ou limitar em grau algum o
significado real das mesmas, para que se dar ao incômodo de inquirir a esse respeito? Desse modo,
acontece que as próprias concepções do pregador tomam precedência às palavras da Escritura em si
e apropria afirmação do significado ilimitado da Bíblia passa a ser uma negação da mesma. Talvez
nenhum de nós chegaria a se expressar como aquêle pregador que disse: "Não sou matemático, nem
biologista, nem tampouco gramático, mas quando se trata de manejar a Bíblia eu derrubo verbos,
quebro preposições e pulo por sobre adjetivos." Não é sem freqüência, porém, que agimos com igual
arrogância, passando, sem consideração nenhuma por sobre o significado claramente planejado do
texto, a fim de estabelecer o nosso próprio ponto. Quando se pensa a este respeito, é de se espantar
que alguém possa fazer isso sob a impressão de que, desprezando o significado original das palavras
da Escritura, de certo modo está exaltando a Palavra de Deus. Se esta fosse falada por meio de um
evento ou desenvolvimento histórico, torna-se então vital reaver aquele desenvolvimento ou evento
tão completa e verdadeiramente como pudermos. Daí a importância, do trabalho do sábio bíblico. Daí
também a importância do pregador começar a empregar determinado texto com uma compreensão
tão clara quanto possível do seu significado original.
Não é necessário que se diga aqui muita coisa a respeito do método para conseguirmos essa
compreensão. O terreno já foi palmilhado muitas vêzes e é conhecido. Está claro que é mister que se
conheça, se possível, o que o texto realmente afirma - querendo isto dizer que dever-se-ia conhecer
o texto grego ou hebraico. Se o manuscrito ou outra antiga evidência torna incerto o fraseado exato,
o pregador deveria estar preparado para considerar as várias possibilidades e chegar a uma
conclusão inteligente quanto à forma apropriada do texto. É preciso, então, que ele traduza o texto
utilizando-se dos muitos recursos que o conhecimento moderno põe à disposição - dicionários,
gramáticas, concordâncias, comentários - de acordo com o limite de suas capacidades (e com prática
e disciplina essas capacidades podem ser aumentadas). Caso o pregador não conheça as línguas
originais, é mister que dependa inteiramente de outros, tanto para a determinação do texto correto
como para a sua tradução. Contudo, para esse pregador, ricos recursos também estão disponíveis,
com o grande número de excelentes traduções modernas, sendo que ao fazer um acomparação das
mesmas, ele estabeleceria, com vantagem, tanto um texto de maior autoridade como uma versão
mais acurada para sua língua.
Quando alguém traduz um texto ou se decide com respeito à tradução feita por outra pessoa,
começou já a interpretar. Na verdade a tradução dificilmente poderá vir a ser certa e definitiva até
que seja completado - ou pelo menos bem adiantado - o processo de interpretação. Muitas e muitas
vezes não é simples nem tampouco fácil esse processo de descobrir o que o texto significava em sua
origem. É mister que se conheça tão bem quanto possível o livro bíblico do qual é extraído o texto - a
situação histórica e cultural que é refletida no mesmo e para a qual é dirigida; seu propósito geral e o
curso geral de seu argumento; e a relação do texto com esse argumento e propósito. É preciso que,
tanto quanto possível, o texto seja visto em sua composição imediata e total. É necessário colocar-se
de modo inteligente no lugar do escritor e compreende-lo à luz daquilo que se conhece acerca dele -
suas circunstâncias, suas experiências, suas idéias e suas responsabilidades. É preciso que se entre,
de modo imaginário, na situação dos primeiros leitores, sentindo tão concretamente como possível os
interesses e necessidades dos mesmos. Uma vez mais podemos lembrar-nos que o moderno
conhecimento bíblico tem ricas capacidades para nos ajudar a conseguir esse tipo de compreensão
histórica.
Assim, o conhecimento adquirido pelo pregador nem sempre precisa ser narrado
minuciosamente à congregação durante o seu sermão. Um sermão bíblico não é preleção sobre a
Bíblia - mesmo que seja preleção cheia de humor, como alguns dos sermões de Patton que dariam
essa impressão, ou mesmo uma preleção mais séria. É verdade que os sermões deveriam ser mais
reveladores quanto à Bíblia em si e os problemas literários e históricos que a mesma apresenta, do
que grande parte das vezes dão mostras de ser. Um pregador interessado em levantar o nível geral
do conhecimento da Bíblia que sua congregação tem, sempre encontrará meios de compartilhar
diretamente com ela os resultados mais importantes de seus próprios estudos. E Patton tem toda a
razão ao afirmar que as pessoas estão mais preparadas para receber informações do que muitas
vêzes damos crédito a elas com relação a isso. Ainda assim, pelo menos no que diz respeito ao
sermão, a indicação de uma simples informação será um interesse subordinado e incidental. Porém,
isso não quer dizer que a propria posse do conhecimento disponível e relevante tanto literário como
histórico seja subordinado e incidental enquanto ele se prepara para pregar sôbre certo trecho em
qualquer sentido ou grau. Êsse conhecimento é indispensável. Por mais que existam modos legítimos
ou ilegítimos de se empregar um texto na pregação, não pode haver a utilização apropriada de um
texto que não comece por uma compreensão verdadeira, tanto quanto possível, de seu sentido
original ou histórico.
Mas, legitimamente falando, que tem a ver o sermão com o texto? Quais os usos apropriados
que podem ser feitos dele? Que "partidas" podem ser permitidas do mesmo? Numa só palavra, que
resposta ou respostas podem ser dadas às questões que foram apresentadas no início deste
capítulo?
Geralmente constatamos que, se alguém principiar com um reconhecimento claro do sentido
original do texto, êsse tipo de problema não surgirá. Se o texto for uma parte vital da Escritura e,
portanto, realmente valha a pena ser pregado, sendo constatado o que, na realidade, significa em
seu contexto bíblico e histórico, de modo geral o pregador sentir-se-á movido a pregar esse
significado. O sermão será um esforço de transmitir e aplicar o sentido original do texto e não haverá
dúvida quanto à "partida" do mesmo. O próprio entendimento que alguém tenha do significado do
texto original, tal como vimos no capítulo anterior, envolve um sentido vivo de sua importância
presente e o impulso completo para usar o texto na pregação provém dessa compreensão. Em tais
casos, o conhecimento do que o texto disse à sua geração é o conhecimento do que tem a dizer à
nossa - e o pregador estará interessado em apresentar e aplicar de novo e de modo preciso aquêle
significado, e nenhum outro. Se a grande maioria de nossos sermões não estão relacionados aos
textos dos mesmos, desse modo direto e imediato, temos boa razão para suspeitar da solidez de
nossos métodos de pregação.
Quando falamos do "sentido original" de uma passagem ou de seu significado em seu
"contexto original", deveríamos ter em mente não apenas as suas relações lógicas dentro da
sentença, parágrafo, capítulo ou livro em que seja encontrado, mas também algo muito mais rico e
muito mais significativo. O "contexto original" não é mera forma de palavras, mas sim a vida real da
antiga comunidade religiosa em que primeiramente o texto foi ouvido e conservado. Posso imaginar,
por exemplo, três tipos de sermões acerca da conhecida história de Bartimeu no Evangelho, o
mendigo cego que exclamou, quando Jesus passava, "Jesus, Filho de Davi, tem compaixão de mim!"
(Mc 10.46) e a quem Jesus curou com uma só palavra. Um sermão encontrará nesse incidente a
prova de que Jesus era o Messias - ele foi chamado "Filho de Davi" e demonstrou que merecia esse
título através de seu ato miraculoso. O propósito do sermão será o despertamento ou a confirmação
da crença de que verdadeiramente Jesus era o Cristo. O segundo sermão porá ênfase na compaixão
humana de Jesus. Jesus está passando, preocupado com outras questões, quando ouve o clamor do
mendigo. Êle pára, pergunta o que o homem deseja e bondosamente vai de encontro à necessidade
dele. O propósito do sermão será o de animar semelhante sensibilidade, cortezia e generosidade. O
primeiro dêsses dois sermões pode considerar-se mais fiel ao texto, sendo, mesmo assim, inaplicável
e, portanto, por mais verdadeiro que seja, não é um sermão verdadeiro. Ninguém pode ser
convencido de que Jesus era o Cristo, por um simples incidente do passado. Uma convicção
intelectual baseada em fato passado dessa espécie não teria significação alguma. O segundo sermão
talvez poderia fazer melhor reinvidicação quanto à relevância; mas certamente que o uso tão
superficial de um texto não pode ser autêntico. Não foi por causa dessa espécie de significado
encontrado nela que a história chegou a ser relembrada e finalmente registrada no Evangelho.
No entanto, o terceiro sermão não tratará o incidente como um evento passado do qual
podemos extrair lições verdadeiras ou úteis - quer sejam doutrinárias ou éticas - mas como um
acontecimento em nossa própria história. Somos como o cego Bartimeu. Cristo nos pergunta: "Que
queres que eu te faça?" Somos nós quem respondemos, ou deveríamos responder: "Mestre, que eu
torne a ver. " E, na medida de nossa fé, somos tirados das trevas para a sua maravilhosa luz. É óbvio
que somente quando o texto é compreendido dêsse modo chega a ser profundamente aplicável. Mas
é bem verdade também que só uma compreensão dessas é historicamente autêntica. Êsse é o tipo
de significado que o texto possuía desde o princípio. Em vista de responder desse modo às
realidades da vida da Igreja primitiva é que se tornou uma parte de sua pregação e mais tarde foi
incorporado no Evangelho. Êsse uso do texto não é uma alegorização imaginativa. Descansa sobre o
único tipo adequado de exegese. Isso porque se não escutarmos esses textos como se fossem
falados a nós, não os ouvimos como o foram na Igreja primitiva e, portanto, não os ouvimos em seu
contexto verdadeiro e original.
Incidentalmente, pode-se assinalar que o reconhecimento do fato do terceiro sermão ser o
único verdadeiro sobre o texto, aluda a resolver o problema com que a crítica histórica e literária da
Bíblia parece, por vêzes, confrontar o pregador. Uma vez constatado que o significado autêntico do
texto é o sentido que possuia - e ainda possui - no contexto da vida da Igreja, tornaram-se
grandemente irrelevantes as indagações relativas a quem primeiro o pronunciou ou escreveu, ou
acerca de sua proximidade com algum incidente ou fato real. A verdade do texto depende
inteiramente da autenticidade com que é estabelecido o significado do evento histórico, tal como este
era conhecido dentro da Igreja primitiva e como agora é conhecido ou pode ser conhecido dentro da
vida da comunidade histórica ininterrupta. ( Uma discussão mais completa dêste princípio de
interpretação é encontrada em meu livrinho Criticism and Faith, Nova Iorque e Nashville, Abingdon,
1952, especialmente o capítulo final "Crítica Histórica e Pregação.")
Algumas vezes, porém, verificaremos e também seremos movidos a pregar sobre significados
de textos, dos quais há boa razão para duvidarmos, sobre o que os escritores originais pretendiam ou
o que os primeiros leitores reconheciam. Nesse caso, a questão de fidelidade está em sabermos se
os significados estão realmente implícitos no texto, se são vistos erroneamente ou se são
francamente introduzidos nele. Se o significado do sermão não for encontrado - quer seja consciente
ou implicitamente - o uso do texto é ilegítimo, não importando quão inteligentemente o ministro faça
com que as meras palavras do mesmo sirvam para seu propósito. Muitas vêzes são flagrantes e
inequívocas nossas violações desse princípio de justeza. Ninguém duvidara, por exemplo, que esteja
implícito na pergunta de Faraó a Jacó: "Quantos são os dias dos anos da tua vida?" um sermão sobre
as dimensões da vida, qualquer que seja o seu sentido ou grau. Mas não raras vezes a questão de
fidelidade é muito mais difícil de responder e grandes exigências são feitas com respeito a nossos
poderes de honesta discriminação. Ainda assim, o princípio permanece, por mais difícil que seja a
aplicação em determinados casos. Não se pode honestamente dar a aparência de que se extrai de
um texto o que não há nele. Tampouco não é direito ou prudente basear um sermão sobre algum
texto que não possa suportá-lo com firmeza.
Entretanto, é preciso que se reconheça a realidade - e muitas vêzes a rica variedade - de
significados meramente implícitos. O significado completo de uma afirmação qualquer é
conscientemente apreendida por aqueles que primeiro a ouvem ou até mesmo por aquêles que a
pronunciam pela primeira vez. O grande pensador ou poeta está sempre expressando mais do que
tem consciência de ter dito, e o grande arquiteto está sempre edificando mais sabiamente do que
imagina. As palavras do profeta hebraico, do salmista, de Paulo, de João ou até mesmo do próprio
Jesus (na realidade, principalmente dele) são mais fecundas além do próprio conhecimento deles e
são verídicas em sentidos que seus ouvintes jamais poderiam ter sonhado. Por vezes, qualquer
acontecimento ou desenvolvimento nos tempos modernos não só ilustrara de novo ou confirmará um
antigo texto, mas também revelará plenamente novas dimensões de significado dentro do mesmo.
Ocasionalmente, até mesmo alguma experiência pessoal de alguém revelara alguma capacidade ou
aplicação do texto e que o escritor original dificilmente teria estado a par.
Semelhantemente, um incidente na narrativa bíblica pode ilustrar alguma verdade universal ou
eterna acerca de Deus, do homem, do dever ou da salvação, sendo que todos quanto a registraram -
sem falar daqueles que originalmente testemunharam dele - nunca chegaram a pensar. Quando, na
crucificação de Jesus entre dois ladrões, Reinhold Niebuhr vê uma exemplificação da verdade de que
a sociedade convencional tende a tratar seus criminosos e santos de modo idêntico, não esta
empregando mal o seu texto, embora seja quase certo que ele esteja estabelecendo um ponto que
os observadores da crucificação, nem tampouco os escritores do Evangelho jamais tivessem
pensado. Ainda assim o ponto é verdadeiro, repetidamente ilustrado, tanto na história como na vida
comum e estabelecido de modo supremo nas circunstâncias da morte de Jesus para que o vejam
todos quantos têm olhos. Não é introduzida: encontra-se lá. Do mesmo modo, poder-se-â ver na
resposta de Jesus a Marta, quando ela solicitou que ele chamasse a atenção de sua irmã, ou na
resposta do Mestre ao homem anônimo que se queixava contra seu irmão com respeito a uma
herança - isto é, em ambos os casos poder-se-á ver na resposta de Jesus um lembrete de que,
quando permanecemos diante de Deus estamos sempre na posição de acusados e nunca de
acusadores. Deus não ouve nossas queixas contra outros; antes, ele pergunta - "E tu? Olha para ti
mesmo!" Tal significado pode ou não ter sido visto nesses incidentes pelo escritor do Evangelho que
os registrou, mas lá está.
Em outras palavras, um sermão não "parte" de seu texto quando encontra um novo
significado nele. O uso autêntico dum texto não precisa ser "insípido"; a utilização imaginativa não é
necessariamente extravagante e falsa. Na verdade, se nosso uso de certo texto for realmente sem
imaginação e enfadonho, não pode ser autêntico. Não se pode estabelecer regras rígidas de
fidelidade nesse domínio. Só se pode confiar na inteligência, integridade, bom gosto e só isso é que
satisfaz - contanto que o pregador sempre comece por uma compreensão tão clara quanto possível
do significado original. Sem essa compreensão ele se encontra sem leme ou compasso para
empregar a Escritura, por mais inteligente, honesto ou sensível que seja. Com isso ele achará difícil
extraviar-se demasiadamente.

CAPÍTULO IV

PREGAÇÃO É ENSINO

Já vimos que a palavra "pregação" é derivada do latim praedicatio, que por seu turno traduz o
grego kerygma, palavra esta que, em seu sentido mais geral, significa a proclamação de um fato ou
de um acontecimento. É usada regularmente no Novo Testamento para descrever a mensagem e
(em sua forma verbal) a atividade dos evangelistas Cristãos, os quais tinham "boas novas" supremas
para contar, boas novas de que, em Cristo, Deus visitou e redimiu o seu povo e que a salvação
estava sendo oferecida gratuitamente a todos quantos se arrependessem e pusessem sua confiança
nele. Os pregadores eram os arautos do reino de Deus. Anunciavam o fato da obra bondosa de Deus
em Cristo e chamavam seus ouvintes para reagirem de modo apropriado em penitência e fé. Eram,
como temos visto, os pregadores do Evangelho.
Em nossas mentes, a palavra "evangelho" primeiramente está associada aos livros no começo
do Novo Testamento; esse, porém, é um uso derivado e não primário do termo. Nenhum dos
Evangelhos foi originalmente chamado por êsse nome, nem tampouco, na realidade, essa palavra foi
muitas vêzes empregada nesses livros. Lucas emprega freqüentemente a forma verbal correlata que
significa "proclamar boas notícias", porém o substantivo "evangelho" não é encontrado em Lucas ou
João e aparece onze vezes apenas conjuntamente em Marcos e Mateus. Aparece duas vezes em
Atos, uma vez em I Pedro, uma vez no Apocalipse e em nenhum outro lugar do Novo Testamento,
exceto nas epístolas Paulinas - onde é encontrado umas sessenta vezes! Paulo, que pode ser
suspeito de ter realmente cunhado essa palavra em seu sentido Cristão, certamente não estava
pensando num livro quando a empregou. Pensava, sim, no conteúdo da pregação Cristã. Não
sabemos ao certo como o termo chegou a designar um livro ou um cânon de livros. Talvez isso tenha
acontecido sob a influência do primeiro versículo de Marcos, "O princípio do evangelho de Jesus
Cristo", uma frase encontrada na sentença introdutória, tornando-se assim o título do livro e daí o
título de outros livros do mesmo tipo. Pode ser que isso tenha ocorrido sob a influência de Márcion, o
primeiro a canonizar qualquer um de nossos livros do Novo Testamento e cujas escrituras continham,
entre outros, um documento bem parecido com o nosso Lucas, mas chamado por Márcion
simplesmente de "o evangelho" (sem dúvida nenhuma corresponde à "lei" no cânon judaico, que ele
rejeitara). Como apoio a essa explicação, pode ser citado o fato de que, quando os outros
Evangelhos chegaram a ser estabelecidos como canônicos, não eram denominados "Evangelhos" de
Marcos, Mateus, Lucas e João. A forma no singular sugere o significado original da palavra
"evangelho" - não um livro, mas uma mensagem, que poderia ser apresentada de forma diversa por
diferentes autores, mas que em si era necessariamente singular e única. No princípio de tudo não
havia tais documentos como os nossos evangelhos. O "Evangelho" da ação salvífica de Deus em
Cristo primeiramente não foi uma história escrita num livro, mas uma proclamação nos lábios dos
pregadores primitivos.
C. H. Dodd principia seu pequeno opúsculo The Apostodio Preaching (Chicago, Willet Clark &
Company, 1937) chamando a atenção para a distinção entre pregação e ensino feita na Igreja
primitiva. Ensino (didachê), justamente com exortação (parakIésis), em sua maior parte era uma
instrução ética e apelo endereçado a pessoas já estabelecidas na fé. Pregação (kerygma) era
primariamente dirigida a não-Cristãos. Era proclamação e não instrução ou exortação. Não pode
haver dúvida quanto à solidez dessa distinção tudo quanto tem sido dito relativamente ao significado
da palavra "pregação" indicará outro tanto. Contudo, indago se a distinção entre "pregação" e
"ensino" era tão pronunciada como Dodd dá a entender e, mais particularmente, se as funções do
pregador e do professor eram, na realidade, tão separadas na vida da comunidade primitiva.
Estudantes da Igreja primitiva estão acostumados a falar (como, por exemplo, em discussões
das origens e desenvolvimento da tradição do Evangelho) dos "primeiros pregadores e professores
Cristãos. " Será que eles querem com isso dizer duas classes de pessoas, ou estão eles se referindo a
dois tipos de atividades que as mesmas pessoas poderiam exercer? Seja o que for que signifiquem, é
muitíssimo difícil que duas classes separadas de funcionários existissem, de fato, e uma pergunta
pode ser feita de modo apropriado com respeito a quão pronunciadamente as duas funções seriam
distintas uma da outra. Não se poderia proclamar as boas novas de Cristo sem procurar, ao mesmo
tempo, explicar o seu significado e fundamentar o mesmo com argumentos e exemplos, sem
esquematizar algumas de suas implicações éticas. E não se poderia, à maneira do professor,
interpretar o significado da vida Cristã em si, sem trazer constantemente à lembrança de seus
próprios ouvintes, o acontecimento de Cristo. Embora o verbo "pregar" na mais das vezes tenha
como seu objeto um termo como "o evangelho" ou "o reino de Deus", Paulo pode (em Rm 2.21) falar
em "pregar que não se deve furtar. " E, embora aparentemente verdadeiro que "ensino" fosse
geralmente endereçado aos crentes, lemos (em At 13.12) que o procônsul pagão Sérgio Paulo "creu
maravilhado com a doutrina (ou ensino) do Senhor. " Na realidade, há muitas indicações que
"ensino" era um termo vasto que podia incluir a proclamação dos fatos do Evangelho bem como
instrução ética e advertência.
De fato, a distinção entre os ministros Cristãos primitivos que é mais freqüente no Novo
Testamento, não é entre "professores" e "pregadores", mas sim entre "professores" e "profetas".
Paulo, na lista primitiva que possuimos das funções da Igreja e dos funcionários (1 Co 12.28), fala
inicialmente de "apóstolos", "profetas", "professores", nessa ordem. É quase certo que os "apóstolos"
são o grupo limitado dos líderes de autoridade em toda a Igreja - aqueles a quem, assim se cria, - o
próprio Jesus, imediatamente depois de sua ressurreição, havia comissionado como seus
representantes e os enviara para proclamar o Evangelho e estabelecer Igrejas. Com êles outros
evangelistas foram associados, os quais serviam sob as ordens dos primeiros ou que os
acompanhavam em suas viagens - homens como Tito, Timóteo, Barnabé, Marcos - e estes também,
em certas ocasiões, podiam, talvez, ser chamados "apóstolos". Entretanto, de qualquer modo que
sejam definidos, os "apóstolos" pertenciam à Igreja como um todo, e não as congregações locais. Os
ministros locais principais são os "profetas" e os "professores". É claro que a pregação será uma das
funções mais importantes do apóstolo - ele é o evangelista por excelência - mas será que devemos
supor que também não houvesse evangelistas nas Igrejas locais? Será que o Evangelho seria
proclamado naquele lugar tão somente quando um apóstolo autorizado visitante estivesse presente?
Fazer uma pergunta dessas é quase respondê-la. Cada congregação Cristã, estabelecida num vasto
ambiente pagão, era consciente de uma constante oportunidade e tarefa evangelística. Mas ainda
mais importante que isso é o fato de que as "boas novas" precisam ser, e podem ser, revistas
continuamente. O evento de Cristo precisa ser continuamente declarado - tanto na assembléia dos
santos como na dos descrentes. Aquilo que Dodd denomina pregação apostólica teria lugar em toda
e qualquer igreja local, dia após dia, semana após semana. Entretanto, não ouvimos falar de
"pregadores" em conexão a isso. A pregação era feita pelos "profetas" e "professores". Que podemos
saber acerca desses ministros da Igreja primitiva?
Os "profetas" certamente devem ser vistos contra o cenário de fundo da profecia hebraica. Os
profetas aparecem claramente em Israel nos primórdios, tão cedo como do início da monarquia,
porém suas origens são muito mais antigas. Eram "homens de Deus", identificados como tais por um
dom pessoal notável. Essas pessoas são encontradas em toda a comunidade primitiva. Estão de
modo especial sujeitos a transe e êxtase e sentem serem possuídos pelo mana divino, o Deus
misterioso. São "inspirados". Alguns dos mais antigos profetas foram homens de inteligência fora do
comum e de poder moral, tais como Samuel e Elias. Alguns deles eram dervixes errantes. Amós,
Oséias, Isaías, Miquéias e outros como eles também foram profetas. Esses homens de dons pessoais
e intelectuais bem extraordinários tiveram cuidado para se distinguirem do tipo comum: "Eu não sou
profeta, nem filho de profeta" (7.14), afirma Amós. Eles, porém, tinham isto em comum com outros
profetas - e é a coisa essencial - a de que se julgavam (ou eram julgados) como que em contínua e
íntima relação com Deus, recebendo a palavra diretamente dele e também a capacidade
extraordinária de comunicar em um sentido da realidade e do poder temeroso do divino.
Tudo nos faz crer que homens e mulheres dessa espécie foram os profetas da Igreja primitiva.
Sem dúvida nenhuma alguns deles eram o tipo do dervixe primitivo, e alguns desses eram imitações
conscientes ou inconscientes. Luciano, um escritor pagão do segundo século, escreveu uma sátira
divertida a respeito de um deles, um homem chamado Peregrinus que alcançou sucesso explorando
caridade e credulidade dos Cristãos. O escritor do Didaquê, um manual primitivo da ordem da Igreja,
chama a atenção das congregações para essas pessoas. As indicações dadas para experimentar os
"profetas" são simples, mas perspicazes. Se um profeta visitante pedir hospitalidade, deve ter
permissão de ficar, "não mais do que um dia ou, sendo necessário, dois; se não, pessoalmente
participará da mesma; se o fizer, é um falso profeta... Nenhum profeta que pedir uma refeição
pessoalmente participará da mesma; se o fizer, é um falso profeta... Se pessoalmente pedir dinheiro
ou qualquer outra coisa, não se deve ouvi-lo. " O escritor resume: "Nem todo aquele que fala
pessoalmente é profeta; é profeta só se tiver o comportamento do Senhor. " Mas não pode haver
dúvida de que a maioria dos profetas provaram ser verdadeiros.
O comportamento não era a única prova; o verdadeiro profeta deveria "ensinar a verdade. "
Suas palavras edificarão a Igreja. Paulo também estabelece esse ponto ao falar da mais extrema das
formas de êxtase em Corinto, aqueles que falam em línguas estranhas. Embora não coubesse a ele
inquirir acerca da genuinidade e valor desse tipo de falar extásico, não deu ao mesmo o nome de
profecia. Essa designação foi reservada para o discurso inteligente que provasse seu valor pela
edificação da congregação. "Quem fala em outra língua, não fala a homens, senão a Deus, visto que
ninguém o entende, e em espírito fala mistérios. Mas o que profetiza, fala aos homens, edificando,
exortando e consolando" (1 Co 14.2-3).
Como, então, os profetas diferiam dos professores? Eu não creio que as duas classes fossem
completamente distintas uma da outra na Igreja primitiva, ou que qualquer separação clara, até de
função, existisse entre elas. (Vide o artigo muito útil The Christian Teacher in the First Century, por
Floyd V. Filson, Journal of Biblical Literature, LX, 317, 28.) O têrmo "professor" designava a categoria
mais extensa, mais geral. Os profetas eram todos professores, porém nem todos os professores
eram profetas - tal como os apóstolos todos podem ter sido profetas, porém todos os profetas não
foram apóstolos. Os profetas eram professores com um tipo especial de inspiração, homens e
mulheres dotados de maneira característica com um poder misterioso de comunicar a presença de
Deus. O profeta ficava, de modo todo especial, possuído pelo Espírito e era capaz de "ensinar" com
um poder também especial, despertando emoções e movendo a consciência tão bem quanto
iluminando a mente. Não se deve supor que o "professor" não tivesse esses dons "pneumáticos"; ele
também era inspirado "pelo mesmo Espírito" (1 Co 12.4-11). Entretanto, era menos ricamente
dotado com respeito a isso, embora em outros aspectos (tal como, por exemplo, na capacidade de
explicar de maneira coerente e com persuasão racional) pudesse - em determinado caso - ter sido
mais dotado do que muitos dos profetas. Ainda assim, tal como os profetas, com uma autoridade
mais vasta e mais elevada na Igreja, eram "apóstolos", também os professores mais inspirados eram
"profetas". Nada há para indicar que os vários grupos tivessem coisas diferentes a dizer - todos
estavam preocupados com o "evangelho", a "pregação", e todos sentiam a responsabilidade de
iluminar as mentes e consciências de seus ouvintes. Todos tinham responsabilidades, tanto
evangelísticas como pastorais. Os apóstolos eram professores bem como pregadores, e os profetas e
professores locais todos eram pregadores assim como professores. Pelo menos os apóstolos e
profetas tiveram outras tarefas. Assim é que os apóstolos tinham responsabilidades administrativas
importantes e os profetas aparentemente eram responsáveis, de modo geral, pela conduta do culto
normal da congregação. Êsse o significado de tais termos na Igreja primitiva.
O ministro moderno, tal como o antigo bispo, combina as funções de todos os três tipos primitivos,
tanto quanto um homem pode fazê-lo. Êle é o pastor e o cabeça administrativo da Igreja, o líder do
culto, e o pregador. Nossa preocupação com respeito a ele está na última dessas três funções, e
nessa capacidade ele corresponde de modo mais íntimo com o professor. Sendo dotado de
determinado tipo de sensibilidade e eloqüência, capacitado, acima de outros professores, de sentir e
comunicar a realidade concreta do Espírito, ficará bem próximo ao profeta primitivo quanto ao tipo
(e, na situação moderna, tanto quanto na antiga, haverá muitos falsos profetas, pois que há muitos
tipos de espíritos, tanto na atualidade como antigamente). O pregador, no entanto, quer seja ou não
profeta, será professor. A palavra "ensinar", porém, implica em uma cadeia sem limites de conteúdo.
No sentido antigo está preocupada com nada menos do que a proclamação e interpretação do
Evangelho - o anúncio da ação de Deus em Cristo e a introdução de toda a vasta riqueza de seu
significado para a história humana e para tôda a criatura humana. E o critério de seu sucesso é a
edificação da Igreja, tanto em número como na compreensão e devoção.
Não raras vezes os termos "ministério de ensino" ou "sermão de ensino" têm sido usados
entre nós num sentido restrito, se não um tanto depreciativo. Pregação é algo mais do que isso - ou
mesmo outra coisa - que ensino, segundo se supõe. Precisamos compreender que, a não ser que
pregação seja ensino, não é pregação. Para estar certo, pregação é o ensino altamente distinto por
causa do caráter e significado de seu conteúdo, por causa de sua determinação no culto, por causa
da inter-relação pessoal que o pregador mantém com sua mensagem, e porque ele está se dirigindo,
não somente às mentes de seus ouvintes, mas também à sua vontade a eles verdadeiramente como
pessoas completas em si mesmas. Procura não só convencê-Ias, mas também levá-las a uma
decisão. Consideraremos essas notas de distinção nos capítulos subseqüentes. O pregador, contudo,
é ainda basicamente o professor. Sua responsabilidade primária é para com a compreensão da
verdade e o significado do Evangelho e para a comunicação dessa verdade e significado (inclusive
todas as implicações lhe é dado constatar) tão clara e persuasivamente quanto possível. A não ser
que o ensino seja este, é meramente som - ou, talvez, som e fúria - por mais fervoroso ou atraente
que seja. Quando a pregação deixa de ser iluminadora, não se torna "profecia", como, por vezes,
podemos supor em vão, mas "línguas" - e "línguas'" de um tipo todo característico, irresponsável e
sem sentido algum. De acordo com Paulo, os que falam línguas estão falando para Deus. A pregação
que não for iluminadora - quer seja porque é ininteligível, irrelevante ou trivial - não fala a Deus nem
tampouco ao homem.
Já definimos o "ensino" nessa conexão de maneira muito extensa, como estou certo de que
deveríamos fazê-lo; poderemos, porém, terminar esta discussão de maneira apropriada, lembrando
que até mesmo no sentido mais estreito em que comumente é empregado o termo quando falamos
de "sermões de ensino" - mesmo nesse sentido, o ensino tem a maior importância. Ouvimos
freqüentemente falar do "analfabetismo" das congregações de modo geral -homens e mulheres que
são inteligentes com relação a outros assuntos e que, porém, são completamente simples ou
desesperançadamente confusos em seu pensamento com respeito à Igreja e sua fé. Por que é isto
verdade? Sem dúvida nenhuma podem ser encontradas muitas causas; entretanto, não será que
uma das mais significativas seja a falha da pregação da Igreja no sentido de ser realmente
educativa? Muitas e muitas vezes essa falha aparecerá no caráter acidental dos assuntos de pregação
- o pregador sem fazer esforço aparente para tratar de modo compreensivo durante um período
extensivo com os temas importantes da fé e vida Cristãs, quer seja pela seqüência ao ano litúrgico
da Igreja ou de qualquer outro modo. Contudo, a falha poderá também se manifestar no nível
constantemente elementar da pregação - os mesmos temas sendo manipulados de modo idêntico
ano após ano, o pregador aparentemente não tendo nenhuma expectativa de que sua congregação
possa crescer em compreensão. Há grande sabedoria em não se dar carne a pessoas que só estão
prontas para o leite; mas algo está errado quando uma congregação fica permanentemente numa
dieta de leite.
Será que não precisamos confessar que o que muitas vezes está errado em tais casos é que o
pregador mesmo só toma leite?

CAPÍTULO V

PREGAÇÃO É PESSOAL

Chegamos a constatar que toda a pregação, além de qualquer outra coisa, é ensino.
Obviamente, porém, nem todo o ensino - até mesmo o ensino com respeito a um assunto religioso -
é pregação. Num de nossos seminários há um "sermão" especial feito anualmente por um sábio
visitante. Há alguns anos o assunto desse sermão foi "O Texto Ocidental de Atos." Bem, nenhuma
falta foi encontrada no pregador nessa ocasião especial, tendo suas próprias características
tradicionais; os que dentre nós temos trabalhado com problemas de crítica textual sabemos o quão
fascinante esse assunto pode ser. Entretanto, poder-se-ia imaginar o pastor de uma congregação
anunciando esse tema para o seu sermão de domingo de manhã? E, contudo, por vezes nós agimos
tão erroneamente "pregando" sobre a autoria dos Hebreus, ou o número de Isaías, ou mesmo sobre
a organização do trabalho missionário de nossa denominação, ou até a constituição das Nações
Unidas. Sermão não é preleção, isso é bem certo. Mas em que é ele diferente? O que, além de seu
conteúdo geralmente religioso ou até mesmo Cristão, distingue a pregação de outros tipos de
ensino? Os capítulos restantes dêste livro preocupar-se-ão com esta matéria. A resposta, assim o
creio, está na natureza pessoal da pregação e na relação que a mesma tem com o culto normal, de
um lado, e com o Espírito e o evento de Cristo, de outro.
Podemos começar, então, por dar ênfase ao caráter pessoal da pregação. O pregador é uma
pessoa dirigindo-se a outras pessoas. Seu discurso vai direta e imediatamente a um grupo de
ouvintes, sendo tirado da experiência e compreensão pessoal. Qualquer professor se dirige a um
grupo de ouvintes, naturalmente, mas poderá estar falando menos como uma pessoa a outras
pessoas do que como um especialista sobre o assunto de sua preleção a uma audiência
presumivelmente interessada em aprender mais acerca daquele assunto. O pregador não é um
especialista em religião dando informações a aprendizes interessados, mas sim alguém que está
repartindo algumas de suas experiências mais íntimas e profundas com outras pessoas. Pregação
não é discurso sobre religião; é uma pessoa religiosa falando.
Esse caráter pessoal da pregação é que torna tão importante a integridade moral do pregador.
Argumenta-se muitas vezes que a validez e eficácia dos sacramentos da Igreja não são elevadas nem
tampouco deterioradas pelo caráter moral do sacerdote que está oficiando. Seria muito mais árduo
estabelecer este ponto com respeito à pregação. O grau de nossa boa qualidade, como pregadores,
depende - não completamente, mas (não cometa erro!) primariamente - no grau de nossa bondade
como homens. E que não haja má compreensão sobre o que desejo dizer com "o grau de nossa
bondade. " Quero significar com isso o quão honestos somos, o quão íntegros e sinceros, o quão
livres de orgulho, falsidade, pretensão, complacência própria ou preocupação com os nossos próprios
problemas. Quero também dizer com isso o quão penitentes somos, com que paixão ou desejo
procuramos a Deus, quão prontos estamos a nos submeter à sua vontade, quão preocupados
estamos em agradar-lhe, quão constantemente compreendemos nossa necessidade de perdão, quão
fielmente dependentes de sua graça, quão insubmissos em nossa disciplina, quão incontidos em
nossa devoção. Quero dizer o quão genuinamente preocupados estamos com outros, quão prontos a
compreendê-los e ajudá-los, quão pacientes com êles e quão amorosos e sensíveis aos anseios mais
profundos dos mesmos, porque nós próprios estamos vivendo verdadeira e profundamente. Ninguém
dentre nós estará pronto a reivindicar que, nesse sentido, somos boas criaturas; entretanto,
travamos conhecimento com homens como esses e todos nós sabemos que essa bondade é a
qualificação mais importante que o pregador tem mais do que qualquer montante de conhecimento e
eloqüência que porventura possua.
Na realidade, o conhecimento ou eloqüência podem ser, tal como a riqueza, uma armadilha
para pegar e destruir nossas almas. É tão difícil para o assim chamado grande pregador entrar no
reino do céu como para qualquer outro homem ou mulher de sucesso - talvez até mais difícil. As
tentações para o orgulho são quase que irresistíveis, e desde que o pregador esteja numa situação
em que precise parecer humilde a fim de ter uma base socialmente aceitável para o seu orgulho, o
pecado mais grosseiro da hipocrisia é tudo, menos inescapável. Ao homem de muitos talentos, assim
como para o homem de grande riqueza, Jesus diz: "Se quiseres ter vida, deixa todo o apoio que tens
em tua riqueza, renuncia a todo o teu orgulho nela e no poder que isso te concede; vem, toma a tua
cruz e segue-me" e, tal como o outro fez, este muitas vezes "vai-se com tristeza", pois que a riqueza
não é apenas o nosso único bem ou aquilo que há de mais íntimo, ou mesmo aquilo em que
possamos ter maior orgulho. Além disso, pode-se solucionar o problema da riqueza - ou pelo menos
escapulir dele - desembaraçando-se do mesmo; não se pode, contudo, desperdiçar os próprios
talentos. É pecado exibi-los ou explorá-los egoisticamente, porém de igual modo é pecado enterrá-
los.
E, naturalmente, o homem de um único talento pode ser tão orgulhoso dêste seu talento e tão
egocêntrico no uso que fizer dele como o homem de dez talentos seja dos seus. O homem rico pode
estar em perigo todo especial de cobiça, porém os pobres não estão isentos disso. Ocasionalmente o
homem rico não só é mero participante de sua abundância, mas, na realidade, consagra a
abundância em si e, por vezes, antes de dar todo o seu sustento, a viúva pobre junta as suas duas
moedas. Pode ser certo que "todo o poder corrompe", porém não é necessário que se possua riqueza
para ser corrompido pela mesma; basta ser somente ambicioso, invejar de outros a posse de bens.
Cobiça significa ambição, inveja, e o orgulho tanto pode torcer como destruir a alma humana com
poucos dons, tanto como a do homem com muitos talentos. Não há pregador tão verdadeiro e tão
honesto que não sinta freqüentemente como Paulo, o temor desesperado: "ai de mim se não pregar
o Evangelho." Êsse é um temor saudável e muito realístico, de modo especial, quando nos tornamos
mais velhos e os músculos de nossa disciplina tenderem a se enrijar e os pulsos de nossa devoção
baterem mais vagarosamente. Quando se olha para isso, de certa maneira, não será de se estranhar
que por menor prospecto que tenhamos de desfrutar deste mundo, de algum modo, mais precioso se
torna para nós? Parece mais fácil ao jovem entregar tudo do que ao ancião entregar o pouco que lhe
resta. Isto é tão verdadeiro com ministros como para outros. Demas não foi o último ministro a
abandonar o seu chamado, "tendo amado este mundo presente." A "deserção" não precisa ser
aberta e, geralmente falando, não o é. A grande maioria dos Demas prosseguem com as atividades
de sua profissão e provavelmente eles mesmos não sabem quão distantes estão de Cristo e quão
frias e mortas tornaram-se as brasas que uma vez ardiam sobre o altar de seus corações.
Como qualquer um que esteja em conexão com a educação teológica, muitas e muitas vezes
tenho tido que tratar com um estudante que luta contra o que parece ser um chamado para o
ministério. Uma de suas queixas mais freqüentes é: "Não sou suficientemente bom para ser um
ministro. " A resposta invariável a essa queixa é : "Mas ninguém é ou pode ser. Na verdade a pessoa
que mais clara e certamente seja imprópria para o ministério seria aquela que pensasse ser
suficientemente boa para isso. " Sem dúvida nenhuma, isso é a verdade em toda sua clareza e, no
entanto, é algo de sólido o sentimento instintivo do estudante quanto a uma conexão especial entre
a bondade espiritual e o trabalho do ministério. Com toda a certeza, o estudante de medicina é
menos propenso a dizer: "Não sou bastante bom para ser médico"; ou o estudante de direito: "Sou
moralmente incapaz de ser advogado." Na realidade, seria difícil - e uma presunção intolerável -
estabelecer como que uma prova moral adequada para o candidato ao ministério, pois que o tipo de
bondade que estamos abordando não pode ser medido em termos legais. Entretanto, há provas de
caráter que o ministro precisa enfrentar - nos lugares secretos de seu coração, se não for em outra
parte qualquer - e o verdadeiro sucesso de seu ministério está, em primeiro lugar, nesse encontro
que tiver com eles.
Quando me recordo dos homens que mais me têm ajudado no ministério, não penso naqueles
que são bem dotados, mas sim nos que são bons. Alguns dentre os bons também eram dotados, mas
o pensar em seus talentos é um fato quase que incidental. Quer tenha conhecido os mesmos,
recentemente ou há anos, lembro-me de modo particular o que êles foram e não o que disseram.
Tanto no púlpito, como fora dêle, o que, na realidade deram a mim, foi o que tinham de si mesmos.
Esse caráter essencialmente pessoal da pregação pesa com a mesma importância no que diz
respeito à preparação do pregador para pregar. A resposta à provocante decisão de, se é melhor
alguém escrever os seus próprios sermões ou dize-los sem anotações, ao acaso, está nesse ponto. O
método que determinado pregador adota não tem, realmente, importância, enquanto não for violada
a natureza da pregação como comunicação pessoal, querendo isso dizer, enquanto o sentido de
contato pessoal entre pregador e ouvintes for mantido entre ambas as partes. O pregador bem
sucedido que escreva seus sermões é capaz, enquanto escreve, de se colocar a si mesmo através da
imaginação, na presença de sua congregação e na situação do culto, pondo deste modo no
manuscrito, o que, na realidade, ele se sentir movido a dizer quando for o momento dele falar. No
entanto, o sermão formal - quer seja ou não escrito - poderá, na verdade, separar o pregador de sua
congregação, tornando-se mais uma barreira do que um meio de comunicação. Ao ouvir determinado
pregador, muitas vezes, certamente, você pensou: "Se tão somente ele jogasse fora êsse sermão e
falasse realmente para nós, certas coisas começariam a acontecer!"
A esta altura tratamos daquilo que talvez seja o problema supremamente difícil e importante na arte
ou técnica da pregação - isto é, o problema de como fazer o preparo necessário, sem perder a
realidade da comunicação pessoal. Agora não haverá disputa com relação a necessidade de
preparação - ainda mais que a preparação precisa incluir não só mera leitura e reflexão de um tipo
que, geralmente falando, seja de auxílio (embora essa espécie de preparo para a pregação seja
importante e, muitas vezes, negligenciada), mas também a composição mais ou menos detalhada do
que se deseja dizer em cada ocasião particular. Na verdade, não teríamos a confessar que uma das
razões pelas quais nossa pregação não seja mais eficaz é porque não damos atenção suficiente e
séria para a preparação de nossas mensagens. Todos nós reconhecemos que esta não é a causa
mais profunda da derrota e que essa não seria, de forma alguma, uma causa, se não houvesse
outras mais profundas. Quero dizer que, se estivéssemos certos com respeito à substância de nossa
pregação, não precisaríamos ficar tremendamente perturbados com sua forma e seu estilo. Poderia
bem ser que não falássemos de acordo com os modelos mais aprovados da arte de homilética,
porém falaríamos de modo suficientemente eficiente. Paulo nos diz que não sabia muito acerca das
regras de oratória, e que muitos o encaravam como um pregador pretencioso; no entanto, quem
pode duvidar da eficiência de Paulo como pregador do Evangelho? Ainda assim, mesmo que Paulo
não tenha sido um mestre de estilo, não há dúvida alguma que dispendeu muito tempo pensando
àrduamente no que diria em sua pregação e que muitas e muitas vezes, deu séria atenção ao modo
pelo qual pregaria. Certamente tudo isso é verdade se ele teve tanto cuidado com seus sermões
como com suas epístolas.
A verdade da questão é que podemos facilmente distinguir de maneira bem clara entre
substância e estilo, quer seja na pregação ou em outro domínio análogo. A capacidade de pensar e
sentir, bem como a habilidade de expressão andam muito mais juntas do que muitas vêzes podemos
supor. Não há dúvida alguma que isso é certo com relação a nosso pensamento. Pensamos com
palavras. Aquele que não pode escrever ou expressar-se claramente não tem, tampouco, o
pensamento claro. O curso de composição em inglês de que melhor me recordo tinha como texto um
livro denominado Sentences and Thinking. (Norman Foerster e John M. Steadman, Boston, Houghton
Mifflin Co., 1923.) O livro era bom. O título era perfeito! Nossos sentimentos poderão ser tão
profundos a ponto de causarem lágrimas, porém o mesmo não se pode dizer das palavras. Mas
quando somos assim tão inarticulados, certifiquê-mo-nos que seja devido à profundidade de nossos
sentimentos e não devido à pobreza, inatividade e falta de cultura de nosso discurso. Afinal de
contas, os grandes poetas conseguem expressar alguns de seus pensamentos mais profundos. E
embora se creia que até mesmo eles podem dizer somente uma parcela do que sentem, suspeita-se
que podem sentir mais profundamente, em parte devido a poderem dizer tanto. A maestria da
técnica de expressão e capacidade para discernimento e verdadeira emoção vão juntas, qualquer que
seja a arte; e tão relacionadas estão como causa e efeito que, muitas vêzes, é impossível dizer com
qual delas começa o círculo. O pregador, então, que luta para adquirir um estilo adequado, quer seja
escrevendo ou reescrevendo o sermão no seu escritório, ou dizendo repetidamente suas sentenças e
parágrafos para a floresta ou para o mar (tal como, assim nos é dito, fazia Demóstenes), está
fazendo algo mais do que polir a superfície de sua pregação; toda a sua substância, em maior ou
menor grau, está envolvida.
Todos nós, alguma vez, já agüentamos o pregador que não se prepara para pregar. Pode ser
que se o pregador de alguma seita "primitiva" que segue de modo muito literal a injunção do
Evangelho de que não se pode pensar de antemão o que se deva dizer e que se deve depender
completamente na promessa de que o Espírito dará, tanto a mensagem como as palavras
apropriadas, quando a hora chegar. Ou, então, ele poderá ser uma espécie de pregador mais
admirável - e, infelizmente, menos rara - que se apóia somente em certa loquacidade natural ou
adquirida. Mas, quer seja de um tipo ou de outro, sabemos bem como não é edificante o discurso de
um pregador sem preparo prévio, especialmente se ele tiver que falar, domingo após domingo, para
as mesmas pessoas. Lembro-me do que meu pai contava acêrca de um pregador de seu
conhecimento, que se gabava de nunca ter preparado um sermão, mas que, quando chegava o
momento dêle falar, dizia ele que era como se um grande funil tivesse sido colocado no alto de sua
cabeça e o Senhor derramasse as palavras que devesse falar. Meu pai prosseguiu, dizendo que tendo
mais tarde ouvido esse mesmo pregador, decidira que o funil deveria ter sido colocado de cabeça
para baixo com o pequeno orifício para cima. Muitos pregadores são sofisticados demais para crerem
no funil, mas na realidade seguem a mesma linha, sendo igualmente irresponsáveis e ineficazes.
E, no entanto, quase tão ruim como a falta de preparo é o preparo que unicamente chama
atenção para esse ponto. O sermão não deve ser parecido com algo tremendamente elaborado para
que a atenção do ouvinte seja sempre distraída daquilo que está sendo dito para o modo inteligente -
ou até mesmo bonito - com que o pregador o está dizendo. De fato, um sermão desses não
aparecerá de maneira alguma, idealmente falando. O propósito e a natureza real da pregação são
malogrados e violados pelo sermão que atrai atenção para si mesmo por sua habilidade, tanto como
pelo sermão que chame atenção para si mesmo por sua má qualidade. Naturalmente é um sermão;
mas, quanto menos conspícuo for, melhor é. Sob o aspecto humano, os elementos essenciais na
situação da pregação são o pregador e a congregação; o sermão não é um terceiro elemento, mas
sim a ação de um dos elementos sobre o outro, ou, melhor talvez, o movimento de um dos
elementos em direção ao outro. Se o sermão aparecer em cena como um elemento, de maneira tal
que o pregador não esteja pensando na congregação e o que deseja dizer a seus ouvintes, mas sim
no sermão que ele preparou na semana anterior, cujas palavras estão diante dele num manuscrito ou
mesmo foram memorizadas e, se a congregação tiver a impressão de estar ouvindo, não ao
pregador, mas esse mesmo sermão - desta forma a pregação não está sendo realizada. Sermão não
é ensaio literário; é ato oral de comunicação. E mesmo assim precisa ser preparado cuidadosamente,
não só planejado em seu esboço de linhas gerais, mas preparado até em sua linguagem. Portanto,
será que não se pode concordar em que o problema central na técnica de pregação está no modo de
fazer êsse preparo sem prejudicar o caráter pessoal e direto da pregação em si mesma?
Não tenho solução a propor. Na realidade, é plausível que o problema seja solucionado
individualmente pelo pregador e que duas soluções dificilmente sejam idênticas. Entretanto, o alvo
preparado é bem claro; é um homem preparado e não um sermão. O sermão precisa ser um
elemento na disposição pessoal do homem para o momento da pregação. Não se deve pensar que o
sermão realize o trabalho do pastor, ou que mesmo seja um mero instrumento com que ele o faz. O
melhor sermão é o próprio homem realizando o seu trabalho. O sermão é o pregador pregando -
uma ação, não uma coisa. É um ato de expressão e de comunicação pessoal, não um depósito de
experiência e reflexão prévias. É esse fato que torna tão difícil a pregação de um sermão antigo. O
sermão é uma criação pessoal, íntima, pertencendo essencialmente ao próprio momento da
pregação. A antecipação do momento precisa dominar completamente a disposição com que o
pregador se prepara para pregar. Quanto mais ele puder antecipar aquele momento de modo
verdadeiro, fecundo e vivo, mais intensamente ele pode experimentá-lo de antemão e tanto mais
apropriado e eficaz pode ser o seu preparo. Êle estará preparando não um sermão, mas a si próprio;
ou, para talvez expressar melhor o que desejamos dizer, o preparo de um sermão seu, na verdade,
será um preparo de si próprio, e seu preparo próximo será, em parte, o preparo de um sermão.
Portanto, o sermão é uma expressão humana. Não é o arejamento da opinião do pregador -
até mesmo opiniões acêrca de assuntos importantes - mas a par, ticipação de suas convicções mais
sérias e íntimas. É mais do que isso; ele se atreve a crer - e, na verdade, não pode deixar de crer -
que tudo quanto declara tem vindo a ele, para ele mesmo, como sendo a Palavra de Deus. Desse
modo, tem ele o fardo de um senso único de responsabilidade, elevado por um único senso de
privilégio. "Falou o Senhor Deus, quem não profetizará?" (Am 3.8). "Ai de mim se não pregar o
Evangelho" (1 Co 9.16). De certa maneira o artista se encontra na mesma relação com seu trabalho.
Pense em Ghiberti e as portas do batistério florentino nas quais ele trabalhou por cinqüenta anos
consecutivos. Aquelas portas grandiosas não foram tanto sua obra como o foi sua vida. O trabalho do
pregador é pessoal dessa mesma maneira íntima e necessária. Deu-se-lhe algo - a ele, única e
pessoalmente - que precisa procurar declarar. Êle foi admitido "ao lugar mais secreto do tabernáculo
do Altíssimo" e sabe que ouviu lá uma palavra que ninguém mais ouviu em sua particularidade e
concretização. Com respeito a esse senso especial de vocação ele não falará muitas vêzes, ou mesmo
talvez nunca chegue a se referir. (Note a aversão com que Paulo toca nesse ponto em 2 Co 12). É
significativo demais, sagrado demais e íntimo demais para si mesmo. Entretanto, ele leva esse gozo e
peso em seu coração e isso dá significado, não somente a seu ministério de pregação como um tôdo,
mas para toda e qualquer ocasião em que ele pregar.
No entanto, a pregação é pessoal, não só porque provém desse senso de vocação
profundamente pessoal e porque quando está sendo realizada o pregador é uma pessoa real
procurando expressar o que para ele, como uma pessoa, é o mais importante e o mais
profundamente verdadeiro, mas também em vista de ser endereçada a pessoas. De certo modo, isso
não precisa ser mencionado, pois que a própria palavra "pessoa" implica relações com outras
pessoas. Falar a outros como uma pessoa é, por definição, falar-lhes como pessoas. Por algum
tempo fui capelão de uma instituição educacional onde recebíamos a visita de muitos pregadores; era
digno de nota o número de vezes em que o pregador parecia estar sob a impressão de que, numa
universidade, a congregação era composta de estudantes e não pessoas, sendo que o sermão se
tornava preleção sobre religião, ou qualquer outra coisa, menos uma proclamação do julgamento e
do amor de Deus e um convite ao arrependimento e obediência. Em outras palavras, o pregador
tinha a prevenção de falar como uma pessoa, de maneira proveitosa e produtiva, devido à sua falsa
suposição de que não estávamos preparados para ouvir como pessoas.
Isso não significa que tudo quanto foi dito proveitosamente para alguns, possa ser dito com
igual eficácia a todos. É bem possível que o bom sermão que o pregador visitante tivesse dado à sua
própria congregação na semana anterior, não fosse apropriado para a capela do colégio, embora seja
bem possível que o fosse. Mesmo assim, divergem em diferentes ocasiões a linguagem e a forma e,
até certo ponto, a substância da genuína comunicação pessoal. Aqui o que alcança o próprio coração
de um grupo pode ser simplesmente inteligível para outro. O que fala decisivamente às necessidades
sentidas por alguns, só servirá para confundir a outros. De modo inverso, o que é muito relevante e
útil para uma congregação, pode ser óbvio demais para ser interessante ou realmente de auxílio para
outra. Entretanto, com respeito a isso, devemos dizer que tudo quanto é falado de coração - simples,
direta e honestamente - com toda a probabilidade alcançará outros corações. Pessoas humildes e
simples podem aprender verdades tão profundas quanto qualquer sábio, contanto que sejam
verdades conhecidas concretamente através da experiência, mais do que meras abstrações - e, de
qualquer modo, são estas as únicas verdades que pertencem devidamente à pregação. Por outro
lado, a integridade, simplicidade e sinceridade não ofenderão de modo algum aos mais iluminados,
pois que, ser simples, não significa necessariamente ser superficial ou óbvio. E uma congregação, por
mais bem educada ou sofisticada que seja, será melhor servida, quer ela saiba ou não (e
provavelmente ela o saberá) com o pastor honesto, mas relativamente sem talentos, que conhece e
fala às profundas necessidades pessoais de seus ouvintes, do que com o especialista brilhante de
uma simples arte, por mais inteligente que seja ou por mais engenhosamente construído e impecável
que seja o ensaio que ele entrega como sermão, no domingo de manhã.
O que estamos fazendo aqui é repetir simplesmente o fato de que a pregação precisa ser
relevante, com a qualificação de que por "relevância", nesse sentido, queremos significar relevância à
vida pessoal dos ouvintes de alguém. A pregação é dirigida a indivíduos e precisa ter como alvo o
encontro de suas necessidades pessoais. Esses indivíduos são, naturalmente, membros de
comunidades - da Igreja, da nação, da família, e assim por diante. Não se pode falar a eles sem
tomar em consideração a composição do grupo ou existência corporada em que estão envolvidos.
Mas é mister que se fale a eles. O contexto mais vasto só preocupa se afetar a eles. Cada ouvinte,
em sua própria situação pessoal, é o foco de atenção necessário do pregador.
Para se certificar, precisa ele estar ciente da literatura contemporânea, dos desenvolvimentos
científicos contemporâneos e do pensamento contemporâneo, tanto teológico como filosófico. Ele
precisa compreender ao máximo o espírito de seus dias. Isso é certo, porém, só porque o seu povo é
afetado pessoal e individualmente por êsses fatores. São irrelevantes as citações de literatura, as
alusões à tecnologia, até mesmo as discussões teológicas e, portanto, pior do que inúteis, a não ser
que iluminem a situação pessoal do ouvinte, ajudando-o a melhor compreender a si mesmo, a ver o
seu dever mais claramente, a conhecer de modo mais real o significado do Evangelho e a aprender
verdadeiramente o auxílio que Deus lhe oferece em Cristo. Sermões "aprendidos" podem ser tão
ruins como os inteligentes.
De igual modo, determina-se a relevância das discussões de acontecimentos atuais e fatos
políticos e econômicos correntes por sua referência à vida pessoal dos membros da congregação. Há
cerca de trinta anos, quando eu me encontrava no seminário, constantemente ouvíamos que o
pregador deveria ser um profeta - não no sentido daquele têrmo que consideramos no capítulo
anterior, mas sim em sentido bem diverso. O "profeta" era um pregador cujos sermões eram quase
que inteiramente descrições e denúncias dos males sociais - guerra, injustiça na indústria,
descriminação racial e coisa semelhante. De modo geral, essas fulminações "proféticas" do pregador
eram dirigidas não só aos males, mas também à sua congregação - como se tais homens e mulheres
fôssem mais responsáveis por aquêles males do que ele próprio! Geralmente falando, também, ele
nada tinha a propor, quer fosse como solução para aquêle mal em larga escala, ou como forma de
vida para o indivíduo em presença do mesmo mal. E quando, depois de toda a sua paciência, o povo
começava a ficar cansado de ir à Igreja para ser alimentado e, ao invés de pão, receber pedras (e
pedras atiradas neles), decidindo-se a querer outro pregador, o "profeta" estava convicto de ser um
mártir pela verdade, uma vítima da reação econômica e política. Na realidade, na grande maioria das
vêzes o seu sofrimento sobreveio porque malograra em falar como pessoa para outras pessoas,
falhara no modo de lidar com as pessoas onde elas se encontravam (para usar uma frase corrente)
em termos de sua própria situação existencial, isto é, falhara realmente em pregar.
Não precisamos dizer que não se pode pregar dessa maneira sem levar em consideração os
fatos econômicos e políticos que condicionam a vida dos homens e também os fatos econômicos e
políticos com que eles se defrontam. Há um julgamento de Deus contra as ordens injustas dêste
mundo, tão certo como contra os pecados individuais, sendo que, portanto, precisamos almejar por
uma sociedade nova e melhor, e não pura e simplesmente pessoas regeneradas. Entretanto, a
discussão de fatos sociais (ou quaisquer outros) é algo apropriado e que auxilia na pregação,
somente quando serve para iluminar o estado assim como o dever de cada ouvinte. Para cada
pregador do evangelho social que é rejeitado por sua congregação, outro pode ser encontrado e que
esteja tão preocupado pela justiça social e tão sincero ao expressar esta sua participação em atos e
palavras que a congregação continua a ser leal a ele. A diferença está - nem sempre, naturalmente,
mas muitas vezes no fato que num caso os males sociais e objetivos são tratados no verdadeiro
contexto pessoal da pregação, enquanto que no outro isso não acontece.
Não podemos nos esquecer - com o perigo de perdermos nossas almas - que é fácil
racionalizar aqui e supor que estamos sendo verdadeiros a nosso chamado quando, na realidade,
nossa atuação é tão desonesta como covarde. O martírio - algo para se deplorar sempre (mesmo
quando é o seu próprio! ) - por vezes não pode ser evitado. A vida Cristã não é uma escapatória da
responsabilidade social; o Evangelho não é narcótico. O pregador que não é sensível à injustiça
social, ao compromisso dos não privilegiados, a cada exemplo de desumanidade do homem para com
o homem, e que não trata realisticamente com tais condições em sua pregação, não é um pregador
no real sentido da palavra. Sua pregação não é realmente importante, por mais popular que possa
ser no decorrer de determinado tempo. Entretanto, "realismo" nesse sentido designa um tipo de
compreensão não só das condições que alguém está descrevendo, mas também das pessoas a quem
se está dirigindo, e, para que a discussão de alguém seja relevante, é mister que seja relevante a
eles.
Nesse sentido, como em qualquer outro, a pregação é pessoal.

CAPÍTULO VI

PREGAÇÃO É CULTO

Não nos voltamos contra o caráter pessoal da pregação, mas damos a este caráter uma nova
ênfase e um significado ainda mais distinto quando reconhecemos a conexão íntima e necessária
entre pregação e culto. Esta é uma segunda distinção entre pregação e outros tipos de ensino
religioso. Na Igreja primitiva os profetas e professores eram os líderes de seu culto, e isso de igual
modo é bem verdadeiro relativamente à Igreja moderna. Além do mais, comumente, desde o
princípio também o culto providenciou a situação para o pregador falar. Por vezes, para se certificar,
o culto tem sido subordinado ao sermão - o todo à parte - pensando-se dêle como simples moldura
para o discurso do pregador. Hinos, confissões, até mesmo orações foram concebidas como simples
preparação do caminho para o sermão; dessa maneira é que se foi perdendo o senso de realidade e
importância do culto comum. Tudo isso é de se deplorar, tanto no interesse da verdadeira pregação
como por quaisquer outras razões. Mesmo assim, ainda é verdade que o culto - nem sempre, mas
muitas vezes - precisa de um sermão tanto quanto o sermão precisa do culto. Êles se interpretam
reciprocamente. Um é mais significativo porque o outro está presente.
Mas este não é o caminho mais certo para se descrever a conexão entre pregação e culto. A
inter-relação é mais íntima e profunda. A não ser que concebamos a pregação como sendo em si um
ato de culto, perdemos o que há de mais essencial nela e o que a distingue mais radicalmente de
outras espécies de ensino, quer religioso ou secular. A realidade do assunto não é que a pregação
seja simplesmente encaixada no contexto de um culto ou que seja mais eficaz quando tiver êsse tipo
de moldura. Não pode ser pregação, na realidade, a não ser que seja naquele contexto. Se o
contexto de culto não for encontrado, o verdadeiro sermão cria-o. A pregação contribui ou
providencia um meio de culto - ou de maneira nenhuma é pregação.
Esse caráter da pregação se manifesta no período preparatório. O sermão é uma oferta a Deus - ou
antes, é o pregador oferecendo-se a si mesmo a Deus - e o preparo é um ato disciplinado de
devoção. Pregar é, na realidade, orar com outros, levar a outros em oração; preparar-se para pregar
é, sem dúvida nenhuma, sob um aspecto importante, orar por outros e por si mesmo para o bem de
outros. Pergunto-me se a vida devocional particular da maioria dos pregadores não está
grandemente associada com a pregação deles e sua respectiva preparação. Certamente esperar-se-ia
que assim não fosse. Quando o pregador se confronta com a oportunidade de pregação é que sentirá
mais agudamente a sua fraqueza, o seu vazio, o seu pecado. É então que ver-se-á orando com o
mais profundo anseio: "Envia a tua luz e a tua verdade, para que me guiem e me levem ao teu santo
monte" (Sl 43,3). E será no decorrer de seu trabalho preparatório que ele será mais movido à
adoração, à gratidão e ao louvor.
O reconhecimento que o preparo para pregar equivale ao preparativo de uma oferta a Deus,
colocará em sua verdadeira perspectiva a importância desse preparo. Alguém que suba ao púlpito
sem estar preparado não só desperta um certo descontentamento por parte de seus ouvintes; sente-
se culpado da mais grosseira irreverência com relação ao próprio Deus. Lemos no Antigo Testamento
acerca da maneira meticulosa com que tanto os sacrifícios como os sacerdotes precisavam ficar
prontos para os serviços do templo. Com que cuidado ambos deveriam ser escolhidos e preparados!
Ficamos cientes de nossa liberdade diante desses regulamentos; todo o sistema de sacrifícios animais
ficou abolido em Cristo, o qual, como o grande Sumo-sacerdote, ofereceu o seu próprio sangue. Mas
será que Deus é menos santo do que no passado, ou será que temos mais merecimento para nos
aproximar-nos dEle? Será que o culto público da congregação é ainda tão sacro, um evento tão
momentoso como sempre o foi? O pregador é sacerdote, assim como profeta e professor. Possui
uma oferta para levar. Essa oferta não é um animal; é, em primeiro lugar, ele próprio. Êle se
apresenta como "sacrifício vivo." Sua oferta, tal como o cordeiro no altar, precisa ser "santa e
aceitável. " Será que, então, poderá ser algo improvisado e casual? O "culto", afirmamos, tornou-se
mais "espiritual". Mas será que, por causa disso, deverá ser tomado menos a sério? E, no entanto,
alguns dentre nós, habitualmente não nos achamos preparados para pregar. Tenho ouvido
pregadores gracejarem até com respeito à sua falta de preparo, tendo feito já referência ao pregador
que se gaba de sua capacidade de sair-se bem sem nenhum preparo. Como é que podemos ser tão
grosseiramente presunçosos? Como é que nos atrevemos a tanto? Pregador sem preparo é sacerdote
infiel. E, a não ser que o preparo do pregador tenha principiado, continuado e terminado em oração
e louvor, ele não está preparado, por mais sábio, "belo" ou inteligente que seja o seu sermão e por
mais tempo e fidelidade com que tenha labutado no mesmo.
Pensemos em culto como algo que inclui várias disposições ou movimentos - adoração e ação
de graças, confronto com a vontade de Deus, confissão de pecado, procura de perdão e outra ajuda
que precisarmos, afirmação da fé, consagração e vida. A pregação participa em cada uma dessas
ações. Naturalmente não quero dizer que cada sermão envolva todos esses movimentos em igual
medida ou com igual clareza, ou que estejam envolvidos na pregação em qualquer ordem regular,
como pode acontecer numa liturgia. No entanto, pregação sempre incluirá, pelo menos, todas essas
disposições e de tempos em tempos uma ou mais constituirão a intenção total e o efeito do sermão.
Certamente é difícil imaginarmos um verdadeiro sermão que não transmita um senso da realidade,
de modo bem concreto, a majestade, o mistério de Deus e o reconhecimento de nossa dependência
dele, e que não leve os ouvintes a adorá-lo e glorificá-lo por sua bondade soberana. De semelhante
modo, dificilmente pode ser verdadeira a pregação que não confrontar os homens com a lei de Deus
em Cristo, dirigindo-os ao arrependimento, confissão do pecado e obediência renovada. E a natureza
básica da pregação como a proclamação do Evangelho faz com que seja uma afirmação de fé - sendo
esta a razão pela qual sempre andam juntos os estudos da pregação apostólica e dos credos mais
primitivos.
Pois bem, é muitíssimo importante reconhecer que a fé e a necessidade pela qual a pregação
é uma confissão, são uma fé e necessidade comuns. Na confissão de pecado o pregador está
confessando o seu próprio pecado assim como o da congregação, e na confissão de fé o pregador
está confessando a fé, tanto sua como da congregação. Nesses dois pontos ele se encontra não
acima, mas dentro da comunidade e compartilha plenamente com a mesma. Certa ênfase é
apropriada para cada um desses pontos, pois que freqüentemente são negligenciados.
Notamos então, em primeiro lugar, que a fé acerca da qual o pregador fala e que ele declara,
é uma fé comum. O pregador Cristão não é "franco atirador. " É um porta-voz para a comunidade
Cristã e se encontra em posição de grande responsabilidade com respeito à sua tradição. Sua
autoridade é a da verdade tal como é conhecida, não simplesmente em sua própria experiência, mas
na experiência da Igreja. Quando muito, será mero ator e de maneira nenhuma pregador, a não ser
que declare as suas próprias convicções pessoais; porém não é um pregador Cristão a não ser que
suas convicções pessoais sejam as de um Cristão. Além do mais, as convicções de um Cristão não
são simplesmente quaisquer convicções particulares que pessoas sinceras de boa vontade - também
membros da Igreja - tenham por acaso, mas são as de uma comunidade histórica. A mensagem
Cristã não é apenas qualquer espécie de mensagem que o pregador individual, por mais sincero e
devoto que seja, tenha vindo a aceitar. É uma mensagem confiada ao pregador e que ele precisa
transmitir fielmente, sem ter diminuído a outros. É uma confissão de fé da Igreja.
Essa fé não pode ser formulada rigidamente. O que foi dito num capítulo anterior com respeito
à relevância da pregação bíblica precisa ser lembrado aqui. Pode-se destruir uma fé antiga pela
insistência em preservá-la imutável numa nova época, tanto como procurando uma completa
reconstrução da mesma. A fé da Igreja, como a própria Igreja, é algo de vivo. Não podemos
reconstrui-la sem destruí-la; mas, por outro lado, não é possível malograrmos em deixá-la crescer.
Não podemos por uma cerca a seu redor. O pregador que repete meras afirmações antigas, sem
estar de modo algum novamete cônscio de sua verdade para com ele e sua geração é tão infrutífero
e tão infiel ao Evangelho como o é o pregador que pensa que os termos antigos são (se porventura
empregá-los) um meio meramente conveniente de explorar suas próprias noções particulares ou de
ir ao encontro das expectativas da gente que acorre para ouvi-lo. Contudo, é óbvio que ambos estão
errados. A pregação é uma confissão pessoal e viva da fé antiga da Igreja.
Ora, para dizer a mesma coisa de modo um tanto diferente, pregação é uma interpretação
que vem de dentro da vida da Igreja - a espécie de coisa que dirige o crente ouvinte, o qual embora
compartilhe no Espírito, não possui os dons de discernimento e expressão do pregador para dizer
"Amém". Esse "Amém" significa: "O Senhor disse o que sei ser verdadeiro, ainda que talvez não
pudesse tê-lo dito. O senhor apontou para realidades em minha própria experiência como um
participante da vida da Igreja. O senhor está falando a mim, porém mais profundamente ainda para
mim. O senhor está confessando a minha fé. " O pregador - e isso não é menos verdadeiro do que
para o Evangelho - não pode fazer uma cerca à sua volta; é mister que fique livre para apresentar o
significado do Evangelho como o significado que veio diretamente para ele. A não ser que sua
pregação faça vir à tona uma tal reação na Igreja, em vista de ser uma resposta às realidades na
vida da Igreja e uma proclamação do evento que deu margem ao mesmo e determinou o seu caráter
- repito: a não ser que isso seja verdade, sua pregação cessou de ser uma pregação autenticamente
Cristã. E não deveríamos ficar surpresos se essa congregação se rebelar ou, então, morrer.
Mas se o pregador precisa confessar a fé da Igreja e não apenas a sua, precisa então confessar os
seus próprios pecados e não, simplesmente, os da congregação. O pregador se apresenta, então,
com tanta necessidade de perdão como qualquer um dos ouvintes. Naturalmente que esse é um
terreno comum, e nas orações em que ele dirige a congregação esse fato é geralmente reconhecido
de maneira plena. O sermão por vezes, porém, malogra em revelar essa consciência. O pregador fala
não como se ele estivesse escutando a Palavra de Deus, mas como se ele, na realidade, fosse o
próprio Deus falando. Seus modos sugerem que ele está contando às pessoas de alguma eminência
ética o que elas devam fazer. Há alguns anos Reinhold Niebuhr publicou um artigo com respeito a
"Pregação Moralística", definida como "sustentando elevados ideais de fraternidade e amor para com
os homens e as nações na suposição de que nada mais do que sua reiteração continuada afetará
finalmente a realização dos mesmos." (The Christian Century, LXIII, 985 e seguintes.) Essa pregação
consiste principalmente em exortações para que pratiquemos as virtudes Cristãs e em figuras vagas
de quão perfeito tudo seria se as praticássemos. O pregador "moralista" crê aparentemente que os
requisitos éticos de Deus são padrões perfeitamente praticáveis - um tanto difíceis, mas certamente
não impossíveis. Poderiam ser cumpridos se tão somente colocássemos um pouco mais de esforço
neles. Sua pregação consiste em falar acErca do amor sem qualquer sinal de que se está ciente, quer
seja da impossibilidade de fazermos aquilo que o amor pura e simplesmente requer em algumas
situações ou da impossibilidade de sabermos o que requer em outras. A conclusão de cada sermão é
: "Já lhes tenho dito o que fazer. Fazei-o agora! ".
Quase não é necessário apontarmos a falsidade, o enfado e a futilidade dessa espécie de
pregação; e o predomínio da mesma pareceria ser indicado pela própria conotação que a palavra
"pregar" adquiriu em. nossa linguagem comum. Os pais são aconselhados a não "pregarem" a seus
filhOs. A crítica que possivelmente causa mais devastação com respeito a uma novela ou peça é a de
que a mesma "prega um sermão. " Essa má reputação de uma importante palavra Cristã, a qual
basicamente significa o anúncio das supremas boas novas, poderá ser atribuída em parte ao espírito
de nossa época que - se me for dada a permissão de "pregar" um pouquinho - é mais rebelde contra
a autoridade moral do que deveria ser. Entretanto, será que podemos negar que reflete também
falhas na própria pregação? Vale notar que embora as palavras "pregar", "pregador" e "sermão"
continuem a ter sua dignidade própria, em certos meios populares são usados, por vezes, com
sentido de humor, e até pejorativo. É certo que não nos cabe corrigir a semântica dessas palavras,
mas convém indagar das razões dessa depreciação. Nós que pregamos, poderemos de maneira
apropriada perguntar até onde a culpa está em outros - em sua falta de seriedade ou sensibilidade,
ou talvez mesmo em sua perversidade - e até onde está em nós mesmos. E, quando tivermos feito
isso, somos obrigados a reconhecer que uma parte da resposta indubitavelmente está no
"moralismo" fácil e superficial de muitas de nossas pregações.
Entretanto, a pregação pode ser desse tipo sómente enquanto não for confessional. O
pregador que, de fato, tem procurado cumprir com a lei de Cristo e que fala de sua experiência,
saberá muito bem a realidade e poder do pecado na vida humana, bem como as limitações implícitas
em nossa finitude. Verdadeiramente, se ele tiver algo de verdadeiro ou que sirva de ajuda para dizer
acerca do dever de outros, é porque ele próprio tem sido confrontado e confundido pelas tremendas
dimensões de seu próprio dever. Esse alguém vê a si mesmo e a seus ouvintes como se estivessem
num terreno comum absoluto - sob um requisito moral completamente acima do poder de qualquer
um deles para cumprirem e, sendo assim, necessitados de perdão, direção e ajuda acima do poder
de qualquer um deles para suprir. A pregação ética eficiente, tal como a pregação doutrinária eficaz,
é a pregação confessionária.
Alguns anos atrás ouvi, em apenas uma hora, dois sermões por dois estudantes de teologia
sobre a ética Cristã do amor. O primeiro deles era um apelo convencional para que a congregação e
os homens geralmente falando, tanto individual como coletivamente, seguissem o caminho do amor.
Assinalou que se tão somente fizéssemos, isso a humanidade ficaria desembaraçada de todas as
suas dificuldades. O outro pregador, tomando essencialmente o mesmo tema, apresentou em termos
muito realistas e pessoais o que envolveria seguir o caminho do amor num mundo como o nosso.
Poder-se-ia sentir durante todo o seu sermão os seus esforços sinceros, mas finalmente insucedidos
para escapar dos requisitos deste amor ou para cumpri-los; assim, ao falar de sua própria
experiência, ele esquadrinhou profundamente nossos corações.
Essa atitude confessionária também determinará o caminho para alguém proclamar o
"evangelho social." Já fiz referência às, assim chamadas, denúncias proféticas de males sociais
expressas pelo pastor de tal modo como alguém que pensa que sua congregação seja a principal
responsável pelos mesmos. Essas fulminações fúteis seriam evitadas se o pregador reconhecesse não
somente a sua própria implicância nesses males sociais, mas também a inevitabilidade dessa
implicância, tanto para si mesmo como para os outros. Todos nós estamos envolvidos nas
iniqüidades maciças e nas desumanidades da vida social, política e econômica - não sem culpa e, no
entanto, não inteiramente culpados e de qualquer modo completamente incapacitados para nos
libertarmos. É importante que tanto nós como nossas congregações estejam cientes da larga escala
de tais injustiças e desajustamentos sociais, estando sensíveis ao enorme sofrimento humano e
perda que os mesmos acarretam. É importante reconhecermos não só nossa própria implicância
neles, mas, de igual modo, nossa responsabilidade pelo alívio dos mesmos tanto quanto for possível.
Mesmo quando admitimos completamente a solidez e recalcitrância dos males sociais e nossas
próprias limitações tanto em bondade como em sabedoria, ainda assim é mister reconhecermos que
poderíamos fazer muito mais do que fazemos. É absolutamente essencial que vejamos e
confessemos nosso dever e nosso pecado nessa dimensão - que nos arrependamos não só de nossos
pecados individuais, mas dos maiores e que não são menos nossos porque compartilhamos deles
com outros. O pregador, porém, só nos pode levar a fazer isso se ele também se arrepender - e não
ficar simplesmente indignado! Em outras palavras, o problema social pode ser discutido de modo
apropriado e frutífero na pregação só na disposição de um culto comum. Nossa sociedade está
enferma e culpada; todos nós compartilhamos nessa enfermidade e culpa; não podemos nos curar;
somente Deus pode nos perdoar e renovar nossa vida.
Não é fora do comum que o sermão seja precedido e seguido por orações. Isso, porém, não é
suficiente: o sermão precisa ser uma oração em si mesmo. A verdadeira pregação é muito próxima à
oração, a obra do profeta à obra do sacerdote.

CAPÍTULO VII

PREGAÇÃO É SACRAMENTO

No capitulo anterior consideramos a pregação como oferta a Deus. O pregador é um sacerdote


representando e falando por seu povo, confessando tanto a sua fé como o seu pecado. Mas a
verdadeira pregação é também o dom de Deus para nós. É até mais do que isso; é Deus na realidade
se entregando a nós. Paulo reconhece tanta a profecia como o ensino como sendo dons do Espírito e
o autor aos Efésios pode falar de apóstolos, profetas, evangelistas, pastores e professores como
sendo "dons" de Deus à Igreja. Assim é que as palavras do pregador são mediadoras no sentido
completo da palavra, não sómente reunindo e levando a Deus as necessidades da congregação, mas
também chegando a ser um meio de comunicação de Deus conosco e, na verdade, de sua ação
salvifica.
É freqüentemente expressa no Novo Testamento a compreensão de pregação como sendo
uma ação do Espírito. Marcos registra que os discípulos de Jesus foram ensinados, em conexão com
sua própria defesa do Evangelho diante de "governadores e reis": "Não vos preocupeis com o que
haveis de dizer, mas o que vos for concedido naquela hora, isso falai; porque não sois vós os que
falais, mas o Espírito Santo" (13.11). Essa prescrição pode ser encontrada em Mateus (10.19)
virtualmente nas mesmas palavras. Lucas escreve de modo um tanto diferente, porém para o mesmo
efeito: "Assentai, pois, em vossos corações de não vos preocupardes com o que haveis de responder;
porque eu vos darei boca e sabedoria a que não poderão resistir nem contradizer todos quantos se
vos opuserem" (21.14-15). E, mais tarde, em Atos (2.4), o mesmo escritor descreve os discípulos
falando "segundo o Espírito lhes concedia que falassem." Seguramente ele está se referindo ao
milagre das línguas, porém teria dito a mesma coisa da profecia em geral e, de fato, muitas vezes o
faz em relação a isso. Além de representar de modo consistente toda a pregação Cristã como sendo
um dom espiritual, Paulo pode falar de sua própria pregação como sendo "não em palavras
ensinadas pela sabedoria humana, mas ensinadas pelo Espírito" (1 Co 2.13).
Já fizemos referência ao pregador moderno que, tomando literalmente a injunção do
Evangelho, recusa-se a fazer qualquer preparo especial para a pregação, mas se apóia no Espírito a
fim de que lhe sejam providenciadas as palavras apropriadas. E vimos que seus ouvintes tendem
muito mais a ficarem chocados com o que falta ao primeiro do que por aquilo que o Espírito
providencia. Seja qual for a verdade e importância que a inspiração do Evangelho tivesse em seu
contexto original, é óbvio que não é regra praticável a ser seguida por um professor de
responsabilidade da congregação. De acordo com todos os três Evangelhos, o contexto original
estava relacionado com um interrogatório diante do magistrado, quando o Cristão é mandado a fim
de fazer a sua defesa. Numa situação como essa, foi talvez a experiência da Igreja primitiva, que
uma explicação bem pessoal e espontânea - sem dúvida nenhuma sem ser preparada e sem ter sido
ensaiada - seria mais eficiente em vista de ser inconfundivelmente mais sincera do que qualquer
argumento cuidadosamente elaborado. Isso é compreensível; na verdade, qual o pregador que não
se viu ocasionalmente em situações quando a mensagem que ele próprio preparara para dar estava
completamente fora de lugar e quando ele teve que simplesmente se esquecer daquilo que tão
cuidadosamente havia planejado e falado - como costumamos dizer, vindo do fundo do coração -
seguindo então livremente conforme a direção do Espírito? No entanto, se há situações ocasionais de
pregação desse tipo, sabemos que há um número consideravelmente maior quando, se não tivermos
"meditado de antemão", vemo-nos sem absolutamente nada que seja útil ou apropriado para
dizermos.
Isso não significa que o pregador devesse depender do Espírito ocasionalmente e mais
freqüentemente em si mesmo. Longe disso; o Espírito precisa dizer-nos sempre "o que falar" se
nossa pregação for genuína. A pregação precisa vir sempre do "fundo do coração" - querendo isso
dizer (bastante paradoxalmente), que não pode ser sempre nossa própria expressão deliberada, mas
uma reação à inspiração do Espírito. É possível que, por vêzes, a inspiração e a reação sejam súbitas
e momentâneas. De repente alguém ouve e precisa falar. Tais momentos de êxtase vêm para a
maioria de nós - embora seja preciso reconhecer que os mesmos raramente coincidem com as
ocasiões formais de pregação. Contudo, de modo geral, a inspiração é menos dramática e irresistível,
porém compassivamente periódica ou persistente; e a reação de alguém, embora ainda uma
verdadeira reação (e não algo que se inicia) é feita de modo mais gradual. O Espírito permanece à
porta e bate - bate silenciosa mas constantemente ou regularmente. Não chega a ser ouvido
completamente a não ser que se ponha à escuta de modo deliberado. O preparo para pregar é essa
ação de ouvir ou de tentar ouvir. A maioria dos bons sermões ficam por meses a fio em processo de
criação, até anos talvez. De início não se está certo de ter ouvido alguma coisa. Gradualmente a
pessoa chega a certificar-se. Finalmente, a batida requer nossa atenção plena e então sabemos que
chegou o momento de responder à mesma. A porta precisa ser aberta. O sermão sobre o texto ou
tema indicado precisa ser pregado. Talvez o pregador dedique uma semana inteira para escutar
aquilo que o Espírito está procurando transmitir. O sermão é sua resposta - sem dúvida nenhuma
uma resposta autêntica pelo tempo requerido para fazê-lo. Na realidade a criação, seja qual for o
campo, nunca é algo de súbito, ainda que por vêzes pareça ser assim. Poderá parecer que ouvimos
de súbito, mas ouvimos somente se tivermos estado à escuta, e não teríamos começado a escutar se
já não tivéssemos começado a ouvir. De começo a fim a verdadeira pregação é obra do Espírito. É
Deus à nossa procura e nos encontrando.
Entretanto, a pregação é esta ação de Deus não só do modo geral que tenho procurado
descrever - o modo em que toda a obra fecunda é ação divina - mas também num sentido Cristão
mais específico. É vital e essencialmente relacionada com a comunidade Cristã e com o
acontecimento no qual a comunidade teve o seu soerguimento. Afirmar como o fizemos, que é uma
resposta do Espírito e, portanto, num sentido muito real a criação dêste último, é afirmar
virtualmente essa conexão, pois que "o Espírito", no sentido Cristão, é aquele em cuja vinda o antigo
evento consistia essencialmente e em cuja presença contínua a vida da Igreja também consiste
essencialmente. Embora essa interrelação tanto da comunidade como do evento, tenha sido
freqüentemente aludida no decorrer dêstes capítulos, é apropriado que concluamos nossa discussão
considerando-a novamente e de modo resumido - fazendo especial referência à natureza da
pregação como a obra do Espírito, como o ato revelador de Deus.
Primeiramente, então, deveríamos reconhecer que quando dizemos que a pregação é movida
pelo Espírito, queremos significar com isso que essa inspiração provém da vida da comunidade. Não
há dúvida nenhuma que vem de Deus -mas vem de Deus tal como ele é concretamente conhecido na
Igreja. Dizer que a mensagem do pregador é dada a ele pelo Espírito equivale afirmar que lhe é dada
como participante na vida divina comum que constitui a natureza essencial da Igreja Cristã. É um
fato surpreendente que o primeiro sermão Cristão registrado - o de Pedro em Pentecostes - foi
ocasionado pela necessidade de explicar, de responder com relação aos fenômenos da nova vida da
comunidade. Coisas estranhas estavam sucedendo e os de fora começavam a se perguntar o que
significariam. Devido ao fato de que o Espírito viera - isto é, a Igreja começava a existir plenamente -
é que Pedro foi movido a falar; foi somente por esta razão que ele teve algo para falar. É verdade
que seu sermão, em grande parte, constituiu uma recordação da vida, morte e ressurreição de Jesus,
porém esse acontecimento foi lembrado a fim de que respondesse pela existência dessa nova
comunidade com sua vida distinta e intrinsecamente significativa. Sem aquela "nova criação" - a
criação da Igreja - Pedro nunca teria tido oportunidade para pregar nem tampouco um texto sobre o
qual falar.
Essa mesma identidade do Espírito que inspira o pregador com o Espírito que constitui a
Igreja, é reconhecida tacitamente quando o autor de I João, ao falar dos "muitos falsos profetas",
insta para que a Igreja "prove os espíritos se procedem de Deus" (4.1). Com que critério podem ser
provados os espíritos de seus profetas e professores a não ser por seu próprio Espírito, o Espírito da
própria Igreja? Com toda a certeza podem existir provas éticas mais objetivas a fim de que sejam
eliminados os charlatães ou os mais óbvios logradores de si mesmos. Porém, em último recurso, a
prova precisa ser espiritual. A não ser que a congregação constate que as asseverações do profeta
chamam e apelam para as profundezas de sua própria experiência compartilhada, não se pode estar
seguro que ele seja movido pelo Espírito. Caso contrário, é mister que se chegue à conclusão que ele
possui um espírito estranho ou maligno, ou nenhum espírito. Suas palavras precisam ir ao encontro
de seus membros em seu nível mais profundo e mais autêntico, em sua consciência de seu pecado,
de sua separação e de sua finitude, de sua necessidade de perdão e cura, e da realidade de salvação
que Deus providenciou em Cristo - a realidade do amor perdoador e sanador de Deus que é posto
constantemente à disposição através da própria vida da comunidade divinamente concedida. O
escritor aos Efésios pode falar do profeta como o dom de Deus para a Igreja, porém é de igual modo
tão certo que os próprios dons do profeta foram conferidos a ele através da Igreja e somente em
consideração a isso é que podem ser reconhecidos como dons do Espírito.
Entretanto, se a pregação deve tudo à comunidade, deve também tudo ao evento. A
mensagem do pregador, embora lhe tenha sido comunicada através da vida da Igreja, foi concedida
primeiramente em alguns acontecimentos antigos. Como tantas vezes ternos lembrado a nós
mesmos, o pregador é o mensageiro do Evangelho - as boas novas desses acontecimentos. O
kerygma era no princípio - como ainda o é - a proclamação da vida, morte e ressurreição de Jesus,
do significado salvador que aquele evento provou ter e tudo quanto ainda se espera dele. É mais do
que isso, porém. Tal como a pregação não discute tanto ou descreve a vida da comunidade Cristã
como expressa e transmite o seu significado concreto, assim a pregação faz mais do que contar
novamente e explicar o antigo evento. O Espírito faz com que o antigo evento, num sentido muito
real, seja um acontecimento que ainda está sendo realizado, e a pregação é um meio da ação do
Espírito para realizar isso. Na pregação, quando realmente é pregação, o acontecimento é continuado
e recorrente. A ação reveladora em Cristo está sendo realizada ainda ou chega a ser novamente
realizada.
É freqüentemente trazido à tona no Novo Testamento esse caráter da pregação como sendo,
não um simples relatório do evento, mas ele próprio uma parte dele. Em Rm 1.16 Paulo escreve:
"Não me envergonho do Evangelho porque é o poder de Deus para a salvação. " Por "Evangelho"
Paulo significa, naturalmente, a pregação; e seu ponto não é simplesmente que o evento proclamado
na pregação é o "poder de Deus" salvífico, mas que a pregação em si mesma participa dêsse
"poder". A pregação é uma extensão do evento em si e não meramente de seu conhecimento. Assim
também em 1 Co 1,21, Paulo fala de "pregação" como sendo o meio através do qual Deus "salvará
aos que crêem. " Cristo crucificado e pregado é "o poder de Deus e sabedoria de Deus".
Semelhantemente, em Lc 4,18, a citação de Cristo do profeta Isaías, "O Espírito do Senhor está sobre
mim, pelo que me ungiu para evangelizar os pobres", parece fazer com que a pregação do Evangelho
seja um elemento do próprio Evangelho em si. Isso é ainda mais claro nas palavras de Jesus aos
discípulos de João, em Lc 7,22: "Ide e anunciai a João o que vistes e ouvistes: os cegos vêem, os
coxos andam, os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos são ressuscitados, e aos
pobres anuncia-se-lhes o Evangelho. "
O acontecimento com o qual o pregador está preocupado é bem antigo, sucedido na Palestina
no primeiro século, sendo muito importante que seja lembrado como tal. Entretanto, não é só isso -
o mesmo ainda está sucedendo, ou se repete constantemente, e uma das maneiras de sua contínua
recorrência é a pregação em si. Aqui está a prova final da pregação Cristã, se for pura pregação,
genuinamente Cristã. Será que, na verdade, transmite a ação salvífica de Cristo? Tal como Deus usou
a vida, morte e ressurreição de Jesus, assim também, quer seja de modo subordinado, está ele
usando a pregação do ministro acerca daquela vida, morte e ressurreição como o meio de seu poder
e amor? Está Cristo dizendo novamente: "Vinde a mim?" e, tendo mesmo ascendido, está ele
atirando-nos para si? Será que, de fato, vêmo-lo morrer por nossa causa, e verdadeiramente em
nossas mãos? Estará ele se mostrando, até mesmo a nós, vivo após a sua paixão, ressurreto para a
nossa redenção? Visto que a pregação está malogrando, aqui está o ponto inicial de sua falha - não
que falhe em ser suficientemente aprendida, ou suficientemente divertida, ou suficientemente
resumida, ou suficientemente "moderna" - e esta falha está em que o poder e ação de Deus não
estão sendo comunicados com eficiência nela. Êsse é o ponto inicial da derrota, pois que, falhando
aqui, a pregação está malogrando como pregação. Um homem expressa suas opiniões - verdadeiras
ou falsas, interessantes ou não - relativamente a assuntos de importância ou sem importância
nenhuma. Deus, entretanto, não está agindo. Algo está sendo dito, mas nada está acontecendo. O
acontecimento decisivo e salvador de Cristo não está sendo recorrente. O Espírito - o "poder
glorioso" de Deus - não está presente.
Nossa afirmação aqui focaliza a natureza sacramental da pregação. Isso porque a inter-relação
dupla com o evento para o qual estamos agora apontando como essencialmente pertencente à
pregação constitui, de igual modo, a natureza essencial da Eucaristia. É certo ver na Ceia do Senhor
um memorial de Cristo; tudo quanto está sendo feito é "em lembrança" dêle, e falhar em lembrar
dêle, seria perder o significado total do sacramento. Contudo, isso não é dizer que o ato de lembrar
seja no sentido total. Seja qual for a sua profissão, nenhum corpo de Cristãos em grande número
encara a Ceia do Senhor como sendo apenas um memorial, um lembrete de algo que aconteceu há
muito tempo. Algo está sucedendo agora; o antigo evento está sendo realizado nesse instante. O que
Deus fez em Cristo está sendo realizado agora. Assim acontece com o sacramento. Assim também
sucede com a pregação. Este é o significado do Espírito que toma as palavras de Cristo e a ação de
Deus - e é assim que as palavras são novamente faladas, a ação está sendo feita novamente.
Se alguém perguntar "como podem ser essas coisas", é mister que se responda que este é o
único milagre final e inescapável no Cristianismo - essa contemporaneidade do que aconteceu há
muito tempo, essa atualidade, no presente, do que é também lembrado no passado. Êste é o milagre
da Ressurreição. Mas ainda que não possa ser explicado e sendo, portanto, um milagre, constitui a
própria existência da Igreja e é, pois, indubitável. É o milagre da própria vida distinta da Igreja. Os
sacramentos só são sacramentos reais e a pregação só é real se tão somente êste milagre fôr
realizado neles.

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