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PODER E MEMÓRIA: O communism".

Considering that in
AUTORITARISMO NA IGREJA discourse one which is established in the
PRESBITERIANA DO BRASIL NO church and in the analysis of social
situation, the Order, was the analytical
PERÍODO DA DITADURA CIVIL-
category preeminent take for our analysis
MILITAR PÓS 1964.
bourdieuiana the idea of religion as the
Valdir Gonzalez Paixão Junior legitimacy of the order favoring
instrument established in the field of
Resumo political power .
Neste trabalho analisamos as disputas de
poder que se deram no âmbito da Igreja Keywords: Presbyterianism,
Presbiteriana do Brasil, como forma de institutional, military coup
reprodução do modelo autoritário
instalado no Brasil a partir de 1964.
Tentamos operar na reconstituição dos
INTRODUÇÃO
fatos mediante o estudo da memória a
partir da rememoração por parte
O presente texto tem por
daqueles atores presentes no meio deste objetivo trazer uma reflexão sobre o
campo religioso. À margem de todo o fato de que, em pleno período da
processo de gestão da denominação ditadura civil-militar no Brasil,
presbiteriana e considerados inimigos a estabeleceu-se, também, um período
serem vencidos para a sobrevivência de ditadura eclesiástica na Igreja
denominacional e triunfo sobre o Presbiteriana do Brasil (IPB), em que
“comunismo ateu”. Considerando-se que
os líderes desta Igreja, mais
no discurso que se instaura na igreja e na
precisamente, do seu órgão gestor
análise da conjuntura social, a Ordem,
era a categoria analítica preeminente máximo o Supremo Concílio (SC-
tomamos para a nossa análise a ideia IPB), utilizaram mecanismos de
bourdieuiana da religião como exclusão, dominação e manutenção
instrumento de favorecimento da do poder, em muitos aspectos
legitimação da ordem estabelecida no semelhantes aos utilizados pela
campo do poder político. ditadura político-militar instaurada no
Brasil a partir de 1964.
Palavras-Chaves: Presbiterianismo,
A análise do autoritarismo
ordem institucional, golpe militar
religioso na IPB no período do
autoritarismo político decorrente do
Abstract golpe civil-militar no Brasil em 1964
This study analyzes the power struggles traz consigo a reconstituição dos
that occurred within the Presbyterian fatos mediante o estudo da memória
Church of Brazil as a way to reproduce a partir da rememoração por parte
the authoritarian model installed in Brazil daqueles atores presentes no meio
since 1964.We try to operate in the deste campo religioso. Esses foram
reconstitution of the facts by the study of
deixados à margem tanto da gestão
memory from the remembrance by those
do poder eclesiástico denominacional,
actors present in the middle of this
religious field.On the sidelines of the
quanto do espaço religioso e, ainda,
process management of the Presbyterian foram relegados ora ao olvido dos
denomination and considered as enemies fatos que marcaram os
to overcome to denominational survival acontecimentos nesta Igreja, ou seja,
and triumph over the "godless deixados à margem de todo o
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processo, ora sendo colocados como
A estrutura das relações entre o
“os inimigos” a serem vencidos para
campo religioso e o campo do poder
a sobrevivência denominacional e comanda, em que cada conjuntura, a
triunfo da “fé” sobre as ideias configuração da estrutura das
“comunistas”. Segundo a versão relações constitutivas do campo
religioso que cumpre uma função
oficial, infiltravam-se na igreja e
externa de legitimação da ordem
ameaçavam a preservação tanto da estabelecida na medida em que a
ortodoxia e pureza da fé, quanto da manutenção da ordem simbólica
ortopraxia, isto é, a maneira correta contribui diretamente para a
manutenção da ordem política, ao
do crente se comportar frente à
passo que a subversão da ordem
sociedade, herança do ideal do simbólica só consegue afetar a ordem
comportamento religioso puritano. política quando se faz acompanhar por
uma subversão política desta ordem
(BOURDIEU, 1998, p. 69).
O PODER POLÍTICO E O PODER
RELIGIOSO EM QUESTÃO
Desta forma, o que se
As relações entre o poder
verifica é que a igreja contribui para
político e poder religioso traz consigo
a manutenção da ordem política
a necessidade de um “corte
mediante o reforço simbólico das
metodológico”, de uma opção
divisões desta ordem mediante sua
metodológica com a qual o
contribuição para a manutenção da
pesquisador busca analisar o objeto
ordem simbólica.
pesquisado dentro de seu quadro
Dois fatores, elencados por
referencial teórico, tarefa esta que se
Bourdieu, contribuem para esta
coloca como um desafio pela própria
interação entre o campo político e o
imprecisão que existe em torno do
religioso: a posição ou “peso” dos
que se entende por “pesquisa da
leigos mobilizados nas relações de
religião”, segundo Júlio de Santana
força entre as classes sociais e da
(In: SOUZA, 1998:51) ou dos
qual dependem a autoridade religiosa
religious studies como caracteriza as
e a temporal e o fato das estruturas
escolas inglesa e norte-americana.
das relações objetivas entre as
A análise das relações entre
instâncias que ocupam posições
a Igreja Presbiteriana do Brasil e o
diferentes nas relações de produção,
autoritarismo político no Brasil pós
reprodução e distribuição dos bens
64 é analisada aqui a partir dos
religiosos dependerem diretamente
conceitos de campo e campo religioso
das relações de força entre os grupos
desenvolvidos por Pierre Bourdieu
ou classes sociais, ainda que,
bem como as possíveis interações e
segundo o autor, sob a forma
“trocas” entre o governo ditatorial
transfigurada e disfarçada de um
civil-militar e a referida instituição
campo de relações de força entre
religiosa.
instâncias em luta pela manutenção
O campo religioso na
ou pela subversão da ordem
perspectiva bourdieuiana contribui
simbólica (BOURDIEU, 1998, p. 70).
para a legitimação da ordem
Na sua função de
estabelecida no campo do poder
manutenção da ordem política, a
político e isso se processa em virtude
igreja lança mão de vários
do fato de que:
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instrumentos, quais sejam: A APLICAÇÃO DO CONCEITO DE
inculcação de esquemas de CAMPO E CAMPO RELIGIOSO À
percepção, pensamento e ação os ANÁLISE DO PRESBITERIANISMO
quais levam à naturalização da E SUAS RELAÇÕES COM O
legitimação suprema que gera o AUTORITARISMO POLÍTICO NO
consenso acerca da própria ordem do BRASIL PÓS 64
mundo e a afirmação e reafirmação O campo religioso traz
solene do consenso mencionado por consigo suas subdivisões ou sub-
meio da festa ou cerimônia religiosa campos. O presbiterianismo histórico
via a eficácia simbólica dos símbolos brasileiro enquadra-se dentro desta
religiosos, a qual reforça a crença categoria de análise e coloca-se
coletiva em sua eficácia e a utilização como um sistema simbólico
da autoridade religiosa para estruturado e estruturante, no
combater, no terreno simbólico, as sentido de que traz consigo a
tentativas consideradas heréticas de capacidade de inculcar nos membros
subversão da ordem simbólica. da sociedade brasileira (aqueles que
Não somente isso. Para se colocam como seus fiéis ou
Bourdieu, a igreja, por estar presente adeptos) um sistema de práticas e
na estrutura do campo religioso e por representações diretamente
ser responsável da manutenção da relacionadas à estrutura social ou de
ordem simbólica, contribui para a classe. A preocupação principal em
manutenção do campo político, ou se analisar o campo religioso
seja, a igreja contribui para a protestante volta-se para um sub-
manutenção da ordem política ao campo do mesmo, a partir da
contribuir para a manutenção da categoria apontada por Bourdieu
ordem simbólica e isto ocorre a partir como igreja, ou seja, a Igreja
de uma correlação entre a posição da Presbiteriana do Brasil.
igreja no campo religioso e a posição Assim sendo, a Igreja
das frações dominantes das classes Presbiteriana do Brasil coloca-se
dominantes no campo do poder e nas como um espaço social e de relação
relações de classe (BOURDIEU, 1998, de forças. Além das distinções,
p. 73). O que se percebe em utilizadas por Bourdieu, entre os
Bourdieu é que na estrutura das especialistas (sacerdotes) e os leigos
relações entre o campo do poder e o – relações de desigualdades entre
campo religioso comanda a dominantes e dominados – há
configuração da estrutura das também as relações de forças
relações constitutivas do campo externas, de concorrência e de
religioso (1998, p.73). transação entre os especialistas e os
grupos e classes de consumidores
dos bens religiosos, como também,
as relações internas de conflito,
oposição, concorrência e de aliança
as quais visam a manutenção do
monopólio sobre os bens e capital
religioso.

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O que se percebe é que a se revelado um cidadão sereno, 1
Há que se ressaltar
judicioso, bem intencionado e capaz. que o protestantismo
Igreja Presbiteriana do Brasil
Desde as primeiras horas do exercício nasce como fruto da
enquanto categoria de igreja e parte da Presidência, suas palavras Reforma Religiosa do
integrante do sub-campo religioso austeras; sua firmeza; sua moderação século XVI, na Europa,
protestante histórico traz consigo um na vitória, imprimiram aos não podendo ser
acontecimentos um rumo conveniente compreendido sem sua
sistema de práticas e representações
e tranquilizador. Merece, com seu estreita relação com os
que se estabeleceu e se configurou governo, o apoio dos cristãos, que interesses burgueses
principalmente a partir de uma devem constantemente orar a Deus emergentes na época.
relação com os estratos médios da por ele, e positivamente participar da Pode-se remeter aqui
vida nacional. (JORNAL BRASIL ao texto de Engels
sociedade, ou seja, suas práticas,
PRESBITERIANO. São Paulo, ano VII, sobre a Guerra dos
dogmas, rituais e códigos morais nº 9, junho de 1964, p. 3). Camponeses na
trazem consigo as aspirações, Alemanha no período
representações de desejos e José Duarte Jr., pastor mencionado o qual faz
necessidades de tais camadas1. presbiteriano que postulava uma uma análise dos
interesses, expectativas
No que se refere à ideia de atitude teológica e política
e ideais dos
Bourdieu alquimia ideológica, em que fundamentalista2 à semelhança de camponeses e dos
o discurso religioso transforma grande parte dos líderes da Igreja burgueses com a
eficazmente o discurso Presbiteriana do Brasil, com a mesma Reforma Protestante do
século XVI e como o
essencialmente humano em palavras expectativa e apoio ao governo
desdobrar do
sobrenaturais, sob a suposta vontade militar, acima citado, reconhecia que movimento reformador
divina, no período analisado nesta tal governo daria o melhor combate acabou por se
pesquisa, pode-se verificar que o ao comunismo, e com isso se imporá estabelecer junto aos
ideais da burguesia de
discurso religioso articulado pelos ao respeito e à gratidão de todos, se
então. (In: MARX E
responsáveis pela gestão do sagrado realizar as reformas necessárias ENGELS, s/d, p. 115-
na Igreja Presbiteriana do Brasil (JORNAL BRASIL PRESBITERIANO. 142). Não foi incomum,
contribuiu para a naturalização das São Paulo, ano VII, nº 9, junho de também, durante muito
tempo, o
relações sociais e políticas 1964, p. 5).
protestantismo no Brasil
(dissimulação) relacionadas a tal Tal apoio ao governo militar ser visto,
período, bem como para a chegou a ser colocado como uma principalmente, pelas
incorporação de tais relações aos postura daqueles que eram os camadas baixas da
sociedade, como
desígnios divinos (“Deus quis”, considerados verdadeiros cristãos,
“religião de gente rica”.
“vontade de Deus”, dogmas da por Oscar Chaves, também pastor Ora, pode-se verificar
predestinação, providência e presbiteriano, na época: que no Brasil, foi o
soberania divinas, etc.). Todos os verdadeiros cristãos movimento Pentecostal
que encontrou a maioria
Um exemplo do mencionado se regozijaram e estão regozijando
de seus adeptos,
pode ser observado no editorial do com os resultados da gloriosa principalmente, a partir
jornal da referida Igreja, O Brasil revolução de março-abril: o expurgo da década de 50 do
Presbiteriano, em junho de 1964, o dos comunistas e seus simpatizantes, século próximo
passado. Sobre tais
qual estampava o apoio ao regime da administração do nosso querido
questões consultar-se
militar instaurado no país: Brasil. A Providência de Deus se fez (CÉSAR E SHAULL,
sentir na hora certa, quando muitos 1999; CAMPOS JR.,
Cremos que os presbiterianos, seja 1995; READ, 1967;
fiéis, já ansiosos e temerosos,
qual for seu partido político, devem a ANTONIAZZI et al.
si mesmo, a Cristo e à nação, uma pensavam que a nação teria de ser
1996).
atitude positiva de participação nas flagelada pela horda dos anarquistas
tarefas imensas que agluardam o e materialistas - Deus agiu na hora
país. O presidente da República tem-
certa, repetimos usando a coragem e
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o patriotismo das Forças Armadas e cuja obra referencial se intitulou The 2
O termo
de civis (JORNAL BRASIL Fundamentals: A Testimony of the fundamentalismo
PRESBITERIANO. São Paulo, ano VII, Truth, uma espécie de “catecismo” referir-se-á ao
movimento surgido nos
nº 8, maio de 1964, p. 7). do movimento. Um movimento
Estados Unidos no final
religioso, mas que, também, aparece do século XIX e começo
AUTORITARISMO NA IPB NO como movimento político, ideológico do século XX, cuja obra
PERÍODO DO AUTORITARISMO e social. referencial se intitulou
The Fundamentals: A
MILITAR BRASILEIRO Rubem Alves, ao fazer
Testimony of the Truth,
A análise do autoritarismo distinção entre tipos ideais de uma espécie de
religioso na Igreja Presbiteriana do protestantismo, refere-se a um “catecismo” do
Brasil coloca como mister uma destes como sendo o Protestantismo movimento. Um
movimento religioso,
hermenêutica do movimento da Reta Doutrina (PRD) (1979, p.
mas que, também,
fundamentalista o qual responsável 35). As características deste aparece como
pela gênese e estruturação de tal protestantismo, descritas por Alves, movimento político,
autoritarismo na referida enquadram-se dentro da perspectiva ideológico e social.
denominação religiosa. fundamentalista pelo fato de
O termo fundamentalismo privilegiar a concordância com uma
traz consigo ambigüidades e uma série de formulações doutrinárias,
pluralidade de interpretações e tidas como expressões de verdade, e
significações sendo, às vezes, que devem ser afirmadas sem
tomado como sinônimo de nenhuma sombra de dúvida, como
autoritarismo, fanatismo, sectarismo, condição para participação na
conservadorismo (cf. ORO, 1996, p. comunidade eclesial (ALVES, 1979,
23). Para Galindo (1995, p. 167), o p. 35).
fundamentalismo, também, pode Constitui-se, pois, o
aparecer como uma reação violenta fundamentalismo, a princípio, num
às mudanças culturais, como as movimento de caráter religioso e de
apresentadas pelas tradições judia, tradição protestante surgido nas
cristã e muçulmana. Essas reações denominações protestantes norte-
aparecem nos movimentos radicais e americanas no final do século XIX e
são encaradas como reações de começo do XX, cujo fundamento
movimentos fundamentalistas. Além principal era uma ênfase acentuada
do mais, a vertente disciplinar sob a na autoridade da Bíblia como única
qual tal fenômeno é interpretado, regra de fé e de prática, inspirada
seja ela a da sociologia, da teologia, pelo Espírito Santo e, por isso,
da psicologia, da antropologia, da infalível e inerrante, sendo que, as
política, etc., tenderá a vê-lo dentro doutrinas dela derivadas, tornam-se
de seus quadros particulares de dogmas inquestionáveis e de valor
referência, o que possibilitará o absoluto para a comunidade da fé. É
surgimento de uma gama variada de esta absolutização da verdade, como
significados. única maneira possível de se
No fenômeno aqui interpretar a fé que fez surgir no
enfocado, o termo fundamentalismo movimento fundamentalista seu
referir-se-á ao movimento surgido caráter autoritário e exclusivista.
nos Estados Unidos no final do Os pilares doutrinais deste
século XIX e começo do século XX, movimento podem assim ser
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resumidos:1. Inspiração e inerrância associação coordenadora do
da Bíblia considerada como única movimento. Nesta período, aparece
regra de fé e prática; 2. A divindade em destaque a figura de Carl
de Jesus Cristo; 3.O nascimento Mcintire, o qual influenciou, o
virginal de Maria; 4. A doutrina presbiterianismo brasileiro,
Com o decorrer do tempo, principalmente, no nordeste.
surgiram literaturas fundamentalistas Como se verifica, o
de caráter exegético-teológico com o fundamentalismo é conhecido pelo
objetivo de combater o secularismo e seu “zelo” com a “sã doutrina”,
o liberalismo americano; esta considerado como um “zelo santo”.
literatura apresentava não somente Sua preocupação é a defesa da fé
caráter religioso, mas, também, contra o liberalismo teológico. É
caráter sócio-político (ORO, 1996, preciso frisar que esta preocupação
59) e isto, não sem razão. doutrinária do fundamentalismo é
O fundamentalismo, além do tida como inegociável no movimento
mais, nasceu como um conflito entre devendo ser estabelecida a qualquer
teólogos evangelicais conservadores preço, pois expressa a “vontade de
e aqueles que eram considerados Deus” a qual os fundamentalistas
liberais. Esta controvérsia se trava no foram chamados a defender e manter
final do século XIX e começo do in nomine Dei. No fundamentalismo,
século XX no meio das igrejas é denunciado tudo o que vem
protestantes históricas dos EUA. É, marcado por matizes da modernidade
pois, o movimento fundamentalista, como suspeito de trair a verdadeira
um movimento de reação contra as fé. Ou ainda, a novidade é sempre
correntes intelectuais críticas em julgada suspeita de heresia (ORO,
torno de questões como: a evolução 1996, p. 122, 123).
(darwinismo), a inerrância da Bíblia O rigorismo doutrinário do 3
Termos que se
(criticismo bíblico), a questão entre fundamentalismo converte-se em referem a correntes
pré e pós-milenismo3 e o dogmatismo, verdade absoluta que escatológicas dentro da
teologia. O pré-
compromisso social como parte da se cristaliza em ortodoxia. Aqueles milenismo acreditava na
missão (Evangelho Social). que não pensam conforme a suposta volta de Cristo e
Com o decorrer do tempo, a “verdade doutrinária” definida pelo posterior instauração
oposição a estes movimentos toma fundamentalismo são tidos como definitiva de uma época
paradisíaca; O pós-
um caráter militante, de combate às hereges, inimigos da sã doutrina, os milenismo acredita que
heresias e de preservação da quais devem ser combatidos. o mundo iria
verdadeira e sã doutrina. É neste Neste sentido, Alves, ao melhorando
momento de militância que o analisar o PRD, coloca a progressivamente e, no
final, Cristo voltaria.
movimento ultrapassa a esfera do racionalidade como um fator decisivo
teológico indo para a esfera do social na pretensão da busca do
buscando inibir qualquer tipo de conhecimento absoluto. A fé que, a
pensamento que colocasse em perigo princípio, na vida do neófito,
as doutrinas bíblicas como combinava-se com a dúvida, com o
interpretadas pelos fundamentalistas. decorrer do tempo, é eliminada pela
É neste período que foi racionalização desta fé e pelo
criada a World Christian assentimento a um código de
Fundamentals Association como verdades previamente estabelecidas.
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A fé, assim, transforma-se em dogma A lógica da ética
(1979, p. 85). fundamentalista é que convertendo o
A partir daí, torna-se indivíduo, automaticamente,
inviável e impossível qualquer melhora-se a sociedade, uma
abertura para o novo o que é herança puritana de vivência da fé.
demonstrado pela pouca criação e A conversão a Cristo, no
muita reprodução de conhecimento fundamentalismo, com seu caráter
teológico no fundamentalismo, pois o pessoal, individualista e personalista
conhecimento absoluto pressupõe a leva os fiéis à vivência de uma ética
imutabilidade e a eternidade das que, embora intramundana objetiva,
essências (Alves, 1979, não a transformação do mundo, num
p.107)..Neste sentido, o livre exame, primeiro momento, mas a salvação
ideal da Reforma Protestante do pessoal com vistas à vida eterna
século XVI, fica impossibilitado de ser paradisíaca. A esta visão contrapõe-
vivenciado pela comunidade dos fiéis. se a ótica do Evangelho Social,
Outra característica considerada, pelos fundamentalistas,
importante no fundamentalismo como um inimigo a ser vencido.
relaciona-se a sua postulação de Com o passar dos anos o
vivência ética. A partir da crise social, fundamentalismo ultrapassou as
exposta anteriormente, inclusive fronteiras do religioso e assumiu,
como fator importante, não único, também, a esfera do político, de
para o surgimento do onde se depreende outra de suas
fundamentalismo, aparece, por características: a da demonização de
proposta deste, um caminho viável seus inimigos. Para Oro, isto tem a
para mudança da sociedade, ou seja, ver com o projeto fundamentalista de
a mudança de comportamento do defender a verdade absoluta e de
indivíduo, sua atitude moral, a qual combater seus inimigos (1996, p.
se dá o nome de conversão: 132).
O fundamentalismo, de um Importante destacar neste
lado, interpreta a crise como sinal de aspecto é que o fundamentalismo
ruína moral. Não há outra solução a desde cedo demonstrou uma
não ser o arrependimento e a facilidade de coalizão ou coligação
conversão individuais. A religião não com as direitas políticas, no sentido
pode fazer outra coisa senão de apoio ou assentimento ético-
anunciar o evangelho como político. No fundamentalismo
chamamento a uma mudança de fundante, o inimigo da fé, o demônio,
atitude moral. Globalmente, o mundo é transportado para o inimigo político
não pode ser salvo nem melhorado; da nação, o comunismo. Este último
está no caminho irremediável da era visto como estando presente, no
catástrofe apocalíptica. Dada sua que se refere à sua filosofia, no
rejeição pré-milenarista do mundo e pensamento teológico liberal.
seu conceito individualista e Assim, o inimigo da fé se
personalista da religião, o convertia num inimigo político e o
fundamentalismo demonstra-se inimigo político se transformava no
apolítico. inimigo da fé. Aqui, as esferas do
político e religioso se coligavam na
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batalha contra o inimigo comum. seu sobrinho, os quais se colocaram 4
Dispensacionalista:
Nesta coligação, o fundamentalismo como os pilares do movimento termo referente à
tornou-se um aliado poderoso para a fundamentalista nesta região. Não vertente da
causa nacionalista e direitista norte- somente externavam suas interpretação
apocalíptico-
americanas, e estes numa força concepções ultraconservadoras e escatológica que dividia
sustentadora e de propagação do suas teologias escatológicas pré- a história humana em
fundamentalismo. milenistas dispensacionalistas4 como 07 períodos principais:
No Brasil, muito embora também suas obsessões pela pureza 1.O homem em estado
de inocência; 2. O
embriões do autoritarismo da fé e conseqüente destruição dos Homem em estado de
fundamentalista já estivessem inimigos que pudessem contaminá- consciência; 3. Domínio
presentes no final do século XIX, la5. do Homem sobre o
Mendonça e Velasques Filho trazem Mcintire personagem de mundo; 4. Homem sob
a promessa de Deus; 5.
como referência o livro de Alfredo maior expressão no movimento Homem sob a Lei; 6.
Borges Teixeira , Maranata no ano fundamentalista norte-americano Homem sob a graça, e;
de 1921, como seu marco referencial esteve, por ocasião de sua vinda ao 7. Milênio (cf.
de chegada (1990, p. 141). Brasil, no Seminário Teológico de MENDONÇA e
VELASQUES FILHO,
Na Igreja Presbiteriana do Campinas, São Paulo, no Seminário 1990, p. 124).
Brasil (IPB), tal mentalidade pode ser Teológico do Recife onde instou os
relacionada desde cedo à ala professores a se prepararem para
5
Quando da visita, no
Brasil, de Marc Boegner,
conservadora da Igreja, cujo defenderem a fé contra o
líder da Igreja
referencial era o Seminário modernismo que corrompia a Igreja Reformada da França e
Presbiteriano de Campinas. Nesta e, posteriormente, em Fortaleza onde vice-presidente do
escola teológica, professores como pregou na Igreja de Natanael Cortez, Conselho Mundial de
Igrejas (CMI) em 1949,
Guilherme Kerr (professor em presidente do Supremo Concílio da
Israel Gueiros, reagiu
Campinas de 1926-1956, ano de sua IPB (MENDONÇA e VELASQUES procurando impedi-lo de
morte) Jorge Goulart e, FILHO, 1990, p. 413). tal visita.
posteriormente, Júlio Andrade A controvérsia entre Posteriormente, foi
articulada a visita de
Ferreira e Waldyr Carvalho Luz simpatizantes do Concílio Mundial de
Carl McIntire, fundador
traziam consigo a grata satisfação da Igrejas (CMI) de um lado e, e presidente do Concílio
reta doutrina ali ensinada. Num simpatizantes do Concílio Internacional de Igrejas
discurso a seus alunos Kerr dizia: Internacional de Igrejas Cristãs Cristãs (CIIC) e líder do
movimento
(CIIC) e de Mcintire do outro lado,
A Igreja Presbiteriana do Brasil deseja fundamentalista, ao
resultou num pronunciamento da IPB Recife. Em suas
apenas ser grande e digna de sua
tradição se continua intransigente em de posicionamento de eqüidistância prédicas ali, McIntire
sua fidelidade à doutrina dos dos dois órgãos6 em 1950: confrontava os ideais do
Apóstolos e repele inovações CMI bem como a
doutrinárias do indesejado Nós, da Igreja Cristã Presbiteriana do entrada da Igreja
modernismo (...) o preço da verdade Brasil, não queremos as idéias Católica no mesmo o
doutrinária ortodoxa é intransigência modernistas do Concílio Mundial de que, para ele, era uma
eterna (PIERSON, 1974, p. 405). Igrejas, se é que ele as tem, nem afronta à ortodoxia
também queremos transplantar para o protestante pois que a
identificaria com a
A grande ingerência do seio de nossa Igreja no Brasil as
divergências que o Rev. Dr. Carl Igreja Católica (cf.
fundamentalismo na IPB, no entanto, PIERSON, 1971, p.
McIntire alimenta, com ou sem razão,
dar-se-ia na região nordeste, para com o referido Concílio Mundial, 408).
principalmente no Recife onde residia ou os seus próceres, e para com a
a família Gueiros. Jerônimo Gueiros Igreja Presbiteriana dos Estados
Unidos, o Board de Nova York e o
e, posteriormente, Israel Gueiros,
Concílio Federal de Igrejas. O bom
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senso nos diz que nos devemos visto como aquele que aceitava as 6
A decisão de 1950 foi
manter eqüidistantes desses
teorias das ciências da natureza (por reafirmada em 1954
movimentos antagônicos e que se
processem fora dos limites exemplo, o darwinismo) para a mediante Consulta do
Presbitério de Niterói
eclesiásticos. Graças a Deus os explicação cosmogônica. Ora, tais
(RJ), o qual
resultados dos meus entendimentos explicações científicas opunham-se a demonstrava
pessoais parecem satisfatórios (apud
explicação bíblica criacionista da preocupação com a
REILY, 1984, p. 244, 245).
origem do universo em seis dias. questão do CIIC.
"Quanto à consulta do
O primeiro inimigo do Neste eixo ocorreram os confrontos e
Presbitério de Niterói
fundamentalismo que se verifica era discursos apologéticos entre ciência e sobre a interpretação a
o catolicismo. Não é um inimigo fé. Aliava-se a esta concepção ser dada ao item h da
novo. O protestantismo brasileiro, cosmogônica, o desenvolvimento, a Declaração Doutrinária
do Concílio
raro um curto período de ausência de partir da moderna ciência bíblica, da
Internacional de Igrejas
perseguição e confronto com o teoria das fontes documentais que Cristãs, o SC resolve
catolicismo, foi marcado pela colocavam sob suspeita a autoria não entrar no mérito do
rivalidade de ambos. Tal mentalidade mosaica do Pentateuco, do livro do assunto objeto da
consulta porque a
anticatólica era reforçada no discurso Profeta Isaías, dentro outros textos
mesma não veio
fundamentalista que o manifestava a bíblicos. Para uma hermenêutica acompanhada dos
tal ponto que a igreja proibia o uso protestante que se apoiava até documentos nela
de pinturas de figuras bíblicas na então, nos métodos conservadores e mencionados" (cf.
DIGESTO
educação religiosa (PIERSON, 1971, fundamentalistas, da leitura literalista
PRESBITERIANO.
p. 189). Uma questão não somente do texto bíblico e da exegese Resolução: SC 54-136).
teológica, mas de legitimação do histórico gramatical, uma aplicação
próprio status religioso, seu discurso dos métodos científicos à leitura do
e sua práxis. Neste sentido, o inimigo texto bíblico, significaria, no mínimo,
a ser enfrentado era a presença uma afronta à fé e uma inigualável
vasta de um ramo do cristianismo heresia.
implantado pelo conquistador, e O resultado da aversão e
solidamente instalado em todos os precaução ao modernismo foi o
segmentos da sociedade e, ainda, retorno ao passado, à tradição e ao
intimamente ligado ao poder político dogmatismo, qualquer inovação
(MENDONÇA, 1995, p. 191). teológica, portanto, era vista com
O segundo inimigo era o suspeitas, bem como qualquer
ecumenismo. Neste sentido, qualquer organização ou movimento acusado
idéia ecumênica que esboçasse um de "modernismo", o que incluía o
diálogo ou participação com o ecumenismo (REILY, 1984, p. 243).
catolicismo seria tida como Por fim, o último inimigo
reprovável. que aqui se menciona era o
Em 1956, após consulta comunismo. Para o fundamentalismo,
encaminhada à Comissão Executiva o comunismo era o inimigo político a
do Supremo Concílio a respeito da ser combatido. Não faltaram
questão das relações ecumênicas, A correlações com o anticristo, na
Igreja Presbiteriana do Brasil se interpretação milenarista
colocava eminentemente contra dispensacionalista do
qualquer prática ecumênica. fundamentalismo com o comunismo.
O terceiro inimigo era o A questão por trás de tal correlação,
modernismo. O modernismo pode ser segundo Bonino, é a admiração da
48
ideologia estadunidense e a ideologia 1990, p. 139). Deste modo, o medo
de classe, no caso, da classe média da apostasia mostrou a condenação
com tendências às direitas políticas de inovações e "mundanização" da
(1993, p. 48). igreja e o verdadeiro protestantismo
No Brasil, tal visão foi implicitamente identificado com o
negativista estigmatizadora foi conservadorismo sectário (PIERSON,
atribuída àqueles que militavam em 1971, p. 193).
prol do Evangelho Social. É preciso Estas características do
ter-se em mente que com a virada fundamentalismo presente no
do século XX, a irrupção das duas imaginário dos fiéis da IPB,
Guerras Mundiais, a instauração da consciente ou inconscientemente,
Guerra Fria e, na América Latina, colocar-se-iam como elementos
com o despontar da Teologia da sobre os quais o autoritarismo e o
Libertação, tal corrente de caráter repressivo nesta Igreja, já a
pensamento teológico, considerada partir da década de 50, iriam contar.
com perniciosa à sã doutrina,
transformou-se num inimigo a ser MEMÓRIA E AUTORITARISMO NA
cada vez mais combatido, pois que IPB NO PERÍODO DA DITADURA
tornou-se cada vez mais CIVIL-MILITAR PÓS 64
endemonizado nas prédicas dos Em concordância com Paulo
púlpitos e nas práticas Rivera, entendemos que a
fundamentalistas. “rememoração de um fato
Desta forma, o importante, vivido por uma ou várias
autoritarismo religioso pessoas é o caminho inevitável para
fundamentalista se incrustou na a constituição de uma tradição. Esta
Igreja Presbiteriana do Brasil representa sempre uma tentativa de
durante um longo processo de recuperação e perpetuação de um
construção, processo este que se fato original, que, com o transcorrer
manifestou veementemente no do tempo, vai ficando cada vez mais
período do militarismo no Brasil pós- distante do tempo” (1998, p. 51).
64. Neste sentido, se torna mister o
Tal mentalidade recorrer ao estudo da memória a
fundamentalista desceu às bases, partir da historiografia oral, bem
germinou no imaginário da como a uma sociologia da memória.
comunidade presbiteriana, cristãos O estudo da memória na
sinceros, ou seja, aqueles que não historiografia, bem como sua
necessariamente agiam sobre os importância na análise sociológica,
mesmos moldes políticos da liderança acompanha o próprio surgimento e
da Igreja, mas por convicção de desenvolvimento da história das
crença, que viam nas novas idéias mentalidades.
que surgiam em seu horizonte Maurice Halbwachs aponta
religioso um prenúncio da derrocada para a tese de que a lembrança é a
do cristianismo, caso não fossem sobrevivência do passado. De alguma
reencontrados e reafirmados os forma, portanto, lembrar é tornar
postulados básicos da fé cristã vivo o passado a partir das luzes do
(MENDONÇA e VELASQUES FILHO, presente, ideia esta desenvolvida
49
pelo autor, no inicio do século XX, em os princípios e os paradigmas de toda 7
É preciso destacar-se
conduta (1995, p. 90).
seus Les cadres sociaux de la que o estudo da
mémoire e La mémoire collective7. memória por
Neste sentido a memória HALBVACHS passou um
Halbwachs, na linha da
religiosa está vinculada a um processo de evolução, o
escola sociológica francesa e sob a qual pode ser verificado
passado absoluto, um passado que
influência do pensamento de comparando-se sua
se apresenta como elemento
Durkheim, desloca a interpretação da primeira obra Lex
estruturador do próprio grupo cadres sociaux de la
memória como subjetividade livre e
religioso. Reportar-se a esta memória mémoire (1925) e La
conservação espiritual do passado. memoire collective
traz consigo a necessidade de estudo
Esta análise, defendida por Bergson, (1950).
dos ritos, símbolos, festas, discursos,
postula um tratamento da memória
doutrinas, etc. deste grupo religioso.
referida por quadros condicionantes
A elaboração da memória,
de teor social ou cultural, uma
sob este ponto de vista, converte-se
memória coletiva, ou seja, só temos
em tradição. Para Halbwachs, uma
capacidade de lembrar quando nos
verdade, para se fixar na memória de
colocamos no ponto de vista de um
um grupo, deve apresentar-se sob a
ou mais grupos e de nos situar
forma concreta de um
novamente em uma ou mais
acontecimento, de uma figura
correntes do pensamento coletivo
pessoal ou de um lugar. Ora, a
(1990, p. 36).
tradição é a grande responsável por
Se, portanto, lembrar é
esta fixação a qual permite ao grupo
tornar vivo o passado, este só é
religioso sentir-se seguro, estável e
possível dentro de um dado grupo ou
fiel às suas origens e rituais. No caso
comunidade. Assim, Halbwachs
do protestantismo tal fixação
“amarra a memória da pessoa à
converte-se em dogma, pureza da fé
memória do grupo e esta ultima à
e “sã doutrina”.
esfera maior da tradição, que é a
Neste sentido, qualquer
memória coletiva de cada sociedade”
tradição deve a sua existência à
(cf. BOSI, 1994, p. 55). A memória
eficácia na transmissão de uma
individual, portanto, sempre existe a
memória, que, em última instância,
partir de uma memória coletiva.
remete-se a um fato fundador
O estudo da memória
original; são sistemas
sempre ocupou um lugar importante
institucionalizados como os ritos e
no estudo da religião. Mircea Eliade,
todo o aparato litúrgico e doutrinário,
destacado pesquisador das religiões,
responsáveis por preservar uma
coloca a memória religiosa sempre
memória religiosa. Para Halbwachs,
vinculada a um acontecimento
“toda a religião tem também sua
primordial, um acontecimento
história, ou antes, há uma memória
fundante. Para o referido autor:
religiosa feita de tradições que
A memória pessoal não entra em remontam a acontecimentos
jogo: o que conta é rememorar o geralmente muito distantes do
acontecimento mítico, o único digno passado, e que aconteceram em
de interesse, porque é o único criador.
lugares determinados” (1990, p.
É ao mito primordial que cabe
preservar a verdadeira história, a 157).
história da condição humana: é nele
que é preciso procurar e reencontrar
50
Os agentes responsáveis atento de seus próprios testemunhos.
pela manutenção, preservação e É neste ponto, na intersecção entre o
continuidade dessa memória contar e o escutar, “entre o ouvinte e
fundante são os profissionais do o narrador que nasce uma relação
sagrado, legitimamente baseada no interesse comum em
reconhecidos. Os responsáveis pelo conservar o narrado que deve poder
“zelo” religioso, pela “defesa da fé” ser reproduzido” (BOSI, 1994, p. 90).
contra possíveis ameaças de sua No caso dos estigmatizados na
pureza in natura. Ou seja, “os IPB, estes eram concebidos como
interlocutores desta memória sempre "um tumor a ser extirpado".
são sujeitos qualificados, Em todas as esferas da IPB o
institucionalmente legitimados e autoritarismo se fazia presente:
autorizados, sujeitos que dominam igrejas locais, concílios, instituições e
os códigos desta memória e os autarquias, principalmente nas
reelaboram constantemente de regiões de São Paulo, Minas Gerais e
acordo com as demandas dos grupos no Nordeste. Nelas o
religiosos” (WIRTH, 2003, 107). conservadorismo acentuado pela
Ora, a memória, assim, mentalidade fundamentalista tornava
jamais poderia contribuir para uma propício este apoio. Um exemplo
reconstituição de um passado, a deste encontra-se mencionado no
partir da ótica daqueles que foram jornal BP de agosto de 1967, em que
“descredenciados” do discurso aparecia uma recomendação e apelo 8
CE – SC/IPB:
religioso oficial e alijados do centro do Sínodo Setentrional à CE do Comissão Executiva do
do poder religioso. Ora, uma análise SC/IPB8: Supremo Concílio da
da memória religiosa, sob este ponto Igreja Presbiteriana do
[...] Propor a egrégia Comissão Brasil.
de vista, torna-se importante quando
Executiva do Supremo Concílio que,
objetiva reconstituir um passado a observado o que preceitua a Palavra
partir de uma memória “marginal”. de Deus, sejam tomadas as devidas
Ela enfoca mais os ritos, símbolos e providências no sentido de fazer
cumprir e respeitar as ordens
mitos fundantes do que os sujeitos
emanadas dos Concílios, mesmo que,
religiosos enquanto tais. para isso tenham de ser usadas as leis
A memória trabalhada a vigentes da Igreja na aplicação da
partir da experiência religiosa, da devida disciplina aos que, por um
motivo ou outro, vem tentado por
experiência biográfica e religiosa dos
meio de palavras e atos desrespeitar
atores sociais nos remete ao estudo as determinações Conciliares (JORNAL
da “história de vida” dos atores BRASIL PRESBITERIANO. São Paulo,
envolvidos no período estudado. Ano X, n. 14 e 15, agosto de 1967, p
02).
Assim sendo, tanto na
análise do autoritarismo político
As resoluções mencionadas,
quanto do autoritarismo religioso na
deliberadas pelo SC/IPB eram
IPB pós 64, é importante levarmos
consideradas como “ordens” que
em consideração aquelas vozes que,
deviam ser cumpridas sem
num período marcado pela censura,
questionamento e, caso não fossem
tanto no campo político como
cumpridas, devia-se apelar à
religioso, só têm oportunidade de
disciplina para obtê-la. Daí
serem ouvidas mediante o escutar
51
depreende-se que não somente o desenfreada política ecumenista, o
excesso de modernismo de alguns dos
SC/IPB, mas também sua CE
nossos pastores, as diversas doutrinas
receberam força para a execução de anti-bíblicas que ultimamente tem
seus planos à medida que apelos aparecido em nosso meio, os
como estes lhe chegavam às mãos. É movimentos chamados de
"Renovação", a nova versão da Bíblia
o caso de uma entrevista dada por
com verdadeiras distorções das
Galdino Moreira ao Jornal “Brasil doutrinas do cristianismo, versão que
Presbiteriano” no final do ano de declara haver Cristo fundado sobre
1967. Nela ele dizia sobre as Pedro e não sobre a Pedra [...]
chegamos à conclusão de que cada
resoluções tomadas pelo SC/IPB: “...
vez mais está precisando a nossa
em regra geral, boas, oportunas e igreja continuar com um presidente
corajosas. Faltou, no entanto, mais que não se deixe influenciar por estas
decisão, energia e autoridade ideias e que mantenha a nossa igreja
distante de todos estes males citados.
disciplinadora [...]” (JORNAL BRASIL
Como deputado ao Supremo, e
PRESBITERIANO. São Paulo, Ano X, consequentemente, como um dos
n. 18, setembro de 1967, p. 5). eleitores, temos procurado examinar
Nem todos os Concílios da os nomes dos nosso líderes, em
virtude da próxima reunião do
IPB, no entanto, assentiam à
Supremo Concílio a realizar-se em
maneira com esta Igreja vinha sendo Belo Horizonte, Minas Gerais, e temos
conduzida. Vários deles foram encontrado dificuldades de fixar-nos
prejudicados e perseguidos pelo fato num que tenha todas as condições de
opor-se a toda essa onda que existe
de se posicionarem contra as
procurando envolver a IPB nesses
medidas de censura que estavam movimentos que, por certo, seria a
sendo praticadas. Exemplos destes derrocada, ou melhor, a divisão.
são: o Presbitério de São Paulo, de Depois de examinarmos nome por
nome, chegamos à conclusão de que,
Vitória, de Colatina, de Ribeirão Preto
no momento, só há um líder em
e o Sínodo de Guanabara. condições de opor-se à avalanche de
A partir de março de 1974, as erros que temos de enfrentar e este
campanhas em prol das eleições do nome é: Rev. Boanerges Ribeiro [...]
(JORNAL BRASIL PRESBITERIANO.
SC/IPB, que deveriam ocorrer no
São Paulo, Ano XV, n. 4 e 5, maio e
mês de julho, acirraram-se. Dois junho de 1974, p. 7).
candidatos apareciam mencionados
no Jornal Brasil Presbiteriano de O autoritarismo presente na
maio-junho de 1974: Boanerges IPB no período da ditadura civil-
Ribeiro e Eduardo Lane, sendo esse militar não teve seu modus operandi
considerado como de “uma linha de restrito ao âmbito eclesiástico. O
oposição à atual administração da inimigo eclesiástico, o herege,
Igreja” (JORNAL BRASIL também passava a ter uma
PRESBITERIANO. São Paulo, Ano XV, identidade sócio-política virtual, era o
n. 4 e 5, maio e junho de 1974, p. subversivo político, o aliado à
01). Esta mesma edição trazia o mentalidade e projetos comunistas.
artigo de um presbítero da IPB, Em alguns casos, pessoas e
Lourival Pinto Bandeira: líderes foram perseguidos pelo
regime militar, em virtude de
A Igreja Presbiteriana do Brasil
denúncias de pessoas da própria
continua necessitando, cada vez mais,
de um presidente "Linha Dura". A Igreja às agências de informação e
52
da polícia como o DOPS9 e o SNI10; [...]. Logo Mardônio veio até nós e 9
DOPS: Delegacia de
disse: “Olha, nós temos de ter
denúncias essas baseadas sobre Ordem Política e Social.
documentos” [...]. Aconteceu que
pressupostos de inferências e João havia escrito um folheto 10
SNI: Serviço Nacional
deduções. analisando a diferença entre de Informação.
Uma destas denúncias foi feita marxismo e cristianismo, quanto à
questão social. Cristianismo
contra João Dias de Araújo, sob o
advogando mudanças pacíficas, não
teor de que o mesmo era violentas. Já tinha apostilas das aulas
“comunista”. Transcrevemos trechos dele, não sei de que forma, mas tinha
do depoimento do Dr. Paul Pierson apostilas, e também já havia enviado
isso para uma pequena imprensa
sobre este episódio:
presbiteriana lá no Recife. Mardônio
disse: “Olha vocês tem que me dar
Então, me lembro muito bem, eu e
aquilo logo” [...]. Então arranjamos
minha esposa levamos o João [Dias
para que fosse imprimido, demos a
de Araújo] e Itamar [esposa João
Mardônio que apresenta isso a outros
Dias] para uma casa de amigos fora
membros da Comissão de Inquérito e,
da cidade e, depois com este homem,
eles disseram: “Mas nós não
Dr. Flávio Marques dos Santos,
entendemos essa coisa de filosofia,
presbítero muito amigo do João,
teologia, etc., o que isso significa”.
muito amigo meu, e mais dois ou três
Mardônio disse: “Significa que João
outros, nós fomos ao comandante da
Dias não é comunista”. Isto dá uma
Polícia Militar do Estado do
ideia do espírito do contexto em que a
Pernambuco, ele nos recebeu muito
gente estava agindo, mas eu sei que
bem, era amigo de infância do Dr.
eu fiquei mal visto por certas pessoas
Flávio Marques dos Santos. [...]. O
por Ter defendido João Dias,
Dr. Disse: “Olha nós temos este
defendido o direito dos alunos em
amigo, há denúncias contra ele e está
estudar estas coisas [questões
em perigo” [...]. O comandante disse:
sociais], e até certo ponto, ainda
“Olha eu não aceito denúncias
antes, alguns membros da Diretoria
anônimas, mas o caso não está em
do Seminário [SPN], alguns pastores,
minhas mãos. Eu vou arranjar para
queriam colocar João Dias para fora
vocês falarem com o coronel que é
[...]. E eu disse: “Olha, se João Dias
Secretário da Segurança” [...]. Nós
sair do Seminário, eu saio”
fomos lá [...]. Então começamos a
(Entrevista, 11 fev. 1999).
conversar [...]. Então nós explicamos
o caso. Havia estas denúncias, que
não eram certas [...]. O coronel disse: João Dias de Araújo, desta
“Vocês tem de provar que ele não é forma, não foi preso pela polícia de
comunista senão ele vai à prisão”. Pernambuco; no entanto, foi proibido
Então fomos conversar com o
de ensinar na classe de universitários
advogado Mardônio Coelho [...].
Mardônio era um presbítero, na Escola Bíblica Dominical da Igreja
advogado, mais conservador Presbiteriana da Boa Vista, no Recife
politicamente, não concordava com o e, posteriormente, foi despojado do
João em certas coisas, mas era um
ministério da IPB.
homem de integridade e ele nos
disse: “Olha eu não concordo com o O depoimento de Pierson nos
João em certas coisas (Mardônio era a mostra que, de alguma maneira, por
favor do golpe militar) mas eu sei que motivos de eliminação mais eficaz
ele não é comunista” [...]. Então ele
dos inimigos internos da Igreja ou
telefonou para o governador [...]. Não
sei se o governador ou outra pessoa por motivos de agrado ao regime
formou uma Comissão de Inquérito militar existiam pessoas na IPB que
para o caso. Mardônio e, creio mais estavam denunciando aos militares
dois outros, não tenho bem a certeza
membros e pastores desta Igreja.
quem mais estava naquela Comissão

53
Segundo Jaime Wright, por eram feitas, mais ou menos, no 11
Conferência do
seguinte estilo: eles sempre faziam
vezes, ele foi denunciado aos Nordeste: Realizada de
questão de dizer que: “Jaime Wright 22 a 29 de julho de
militares, no entanto todas as não é da nossa Igreja Presbiteriana, 1962, em Recife, nas
tentativas falharam. Dizia ele: “[...] ele é de outra Igreja Presbiteriana, é dependências do
as autoridades nunca me chamaram de uma Igreja Americana ecumenista Colégio Agnes Erskine1
- e, eles usavam o tom pejorativo
para dar explicações, em nenhum sob o tema "Cristo e o
para falar de ecumenismo; é membro Processo Revolucionário
momento” (Entrevista, 26 mar. do Conselho Mundial de Igrejas- que, Brasileiro", a
1999). Sua tática, de acordo o notoriamente, é um órgão subversivo; Conferência do
próprio Wright, foi a de se antecipar e que, sendo esta Igreja membro do Nordeste era a quarta e
Conselho Mundial de Igrejas e, Jaime
às denúncias, junto aos órgãos mais importante reunião
Wright sendo membro desta igreja, do Setor de
competentes. Para Beato, Wright Jaime Wright, então, é, também,. Responsabilidade Social
tinha o “respaldo de uma pessoa da subversivo e perigoso. Era mais ou da Igreja. Participaram
responsabilidade do Arcebispo de São menos este estilo que eles usavam de tal Conferência
para me denunciar. Quem me falou
Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns” representantes de 14
especificamente sobre isso foi o diferentes
(Entrevista, 27 mar. 1999). O delegado titular do DOPS, em São denominações
Coronel Teodoro de Almeida, Pupo, Paulo, que eu fui visitar, levar um protestantes brasileiras,
foi uma das pessoas que auxiliou na dossiê. A conversa saiu que ele era delegados de cinco
“mackenzista” e ele me contou das
proteção de Jaime Wright e dos igrejas dos EUA, México
tentativas periódicas, no Mackenzie, e Uruguai com
membros da Missão Presbiteriana de reprimir pessoas, professores, observadores. Foram
Brasil Central. O próprio Wright estudantes (Entrevista, 26 mar. representados 17
assim testemunhava este fato: 1999). Estados do Brasil.

[...] fui contemplado com várias Alguns, por motivos de 12


CEB: Confederação
denúncias feitas pelos companheiros perseguição tiveram que exilar-se em Evangélica do Brasil. A
deles [Boanerges e aqueles que Confederação
outros países. É o caso de Jovelino
diretamente estavam relacionados a Evangélica do Brasil foi
ele] e isso eu tenho de fonte muito Ramos e Rubem Alves que foram criada em 1934 da
limpa, porque um amigo que eu tive para os Estados Unidos da América e ligação entre A
durante muito tempo foi o Coronel de Rubem César Fernandes, para a Federação de Igrejas
Teodoro de Almeida (Pupo) que por Evangélicas do Brasil
Polônia. Segundo depoimento de
sua vez tinha um cunhado Coronel, (1932), a Comissão
também. [...] Coronel [Renato] Joaquim Beato: “Eu sei que a Brasileira de
Guimarães. E o Coronel Guimarães, conversa foi de que todos aqueles Cooperação (1915) e o
claro, passava as notícias para o que participamos da famosa Conselho Evangélico de
cunhado, Coronel Pupo, e eu ficava Educação religiosa no
Conferência do Nordeste em 62 11, já
sabendo de antemão dos planos, as Brasil. Buscava uma
estratégias da IPB com relação à saímos de lá fichados pelo Exército" cooperação maior entre
repressão, a tentativa da repressão da (Entrevista, 27 mar. 1999). Esta os protestantes visando
Missão Presbiteriana Brasil Central, e mesma afirmação foi feita por Waldo a coordenação de suas
as denúncias que ele pretendiam forças, sob inspiração
Cesar o qual relatou que, mesmo na
fazer. Razão porque, nesse período, de objetivos comuns,
eu preparei um dossiê com o nome de sede da CEB12, ele chegou a receber sob a pressão de
todos os membros da Missão visita de um delegado do DOPS angústias e problemas
Presbiteriana, com os seus RGs, os querendo saber sobre a questão da idênticos. As Igrejas
seus endereços, e fui quase de porta filiadas à CEB deveriam
subversão que ali estava sendo
em porta, nas agências de repressão manter entre si o cultivo
oferecendo uma cópia, me propagada (Entrevista, 30 nov. da fraternidade cristã
apresentando, dizendo que eu era 1999). uma espécie de modus
responsável por este grupo e que eu Paul Pearson também foi vivendi denominacional
sabia das denúncias que estavam que propugnava um
denunciado junto aos órgãos
sendo feitas contra mim e contra a modus operandi em
Missão Presbiteriana. E, as denúncias

54
nacionais de segurança. Ele dizia professor da Escola Dominical, a que: 1. Os atritos
sobre as acusações que recebera: Igreja Presbiteriana de Florianópolis. denominacionais seriam
reduzidos; 2. As regiões
Segundo Wright:
Me acusaram de receber dinheiro dos ocupadas pelas
Estados Unidos para usar para fins denominações seriam
Houve sim um descaso da Igreja
subversivos, e eu havia recebido reajustadas,
Presbiteriana de Florianópolis. Quando
dinheiro dos Estados Unidos para reordenadas; 3.
ele foi eleito Deputado Estadual a
construir prédios só. Então, na Expansão mediante
Igreja Presbiteriana de Florianópolis
providência divina, havia um coronel ocupação de regiões
passou a marginalizá-lo, ele que era o
Pupo que era amigo do outro coronel ainda não alcançadas
presbítero da igreja, porque ele tinha
que recebeu a ordem. Coronel Pupo pela evangelização
ideias pouco tradicionais. Ele estava
era presbiteriano, era amigo de Jaime protestante;
organizando uma federação de
[Wright], e a esposa do coronel havia 4.Eliminação de litígios
cooperativas de pesca no litoral
sido minha professora de português nas relações mútuas.
catarinense; ele fazia críticas aos
em 56 e gostava de mim, eu era bom velhos líderes tradicionais políticos, e
aluno, ela era crente, mas de outra fazia com toda a razão. Então os
igreja. Então o coronel número um presbiterianos de Florianópolis não
sabendo que eu era missionário estavam acostumados com aquilo, a
presbiteriano fala com o coronel Pupo. Ter um presbiteriano na política, e
Coronel Pupo diz: “Espera vou com aquele estilo de Paulo, de ir à
consultar meu amigo e ver o que há”. tribuna sem gravata e paletó. Ele
Depois de uma semana mais ou acabou sendo cassado pela
mesmo resolveram que não havia Assembleia Legislativa por falta de
nada e eu voltei. Quando voltei ao decoro parlamentar, porque não
Recife falei com três amigos meus, podiam encontrar nada nele, nem
um era o General Bragança [...] havia tinham o direito de cassá-lo, porque
sido meu aluno no curso de leigos [...] isso é da competência do Governo
ele tomava conta daquele projeto Federal, da ditadura [...]. Sim, ele era
hidrelétrico “Paulo Afonso”, muito presbítero da Igreja de Florianópolis,
amigo da gente. Ele escreveu uma onde acabou sendo barrado; não
carta dizendo que: “Paulo Pierson não deixaram mais ele dar aula. Em Escola
é um elemento subversivo”. [...] o Dominical, em fazer oração
segundo era o advogado Mardônio (Entrevista, 26 mar. 1999).
Coelho, presbítero da Igreja da Boa
Vista, amigo do governador, escreveu
Além de cassado de seu
uma carta. O terceiro era o Dr. Flávio
Marcos dos Santos, banqueiro, muito mandato de deputado, Paulo Wright
amigo, presbítero, muito conceituado passou a ser perseguido pelos
na comunidade lá. De modo que eu militares. Numa conversa com um
tinha aquelas três cartas de pessoas
dos delegados do DOPS, Jaime
de destaque, pessoas crentes dizendo
que eu não era elemento subversivo Wright foi informado que Paulo
(Entrevista, 11 fev. 1999). estava em Cuba, o que causou
estranheza no mesmo:
Um caso que não podemos
deixar de mencionar é o de Paulo Ocorreu que no dia anterior eu
[Jaime] estava com ele na Praça da
Wright, irmão de Jaime Wright. Muito
Sé, conversando. Nós tínhamos uma
embora, este último afirmasse que combinação, o Paulo e eu, e ele me
“não houve nenhuma interferência da telefonava e eu não precisava nunca
IPB na prisão e desaparecimento” de me identificar, pela voz sabia quem
era. E disse: “Olha nós vamos nos
Paulo Wright (Entrevista, 23 mar.
encontrar hoje na praça da Sé às 15
1999), não deixou de mencionar a horas”. O que significava nos
falta de solidariedade por parte da encontrar na praça da República às
Igreja da qual ele era presbítero e 14:00. Então era aquela paranóia que
a gente tinha durante o período de
55
ditadura porque os telefones estavam estenderam-se para a família,
sendo vigiados. E, assim, Paulo e eu
esposas e filhos que presenciaram a
nos encontramos dezenas de vezes
para falarmos sobre teologia maneira como o esposo ou pai
principalmente. Ele se recusava a estavam sendo tratados pela
discutir o trabalho dele, ele achava liderança da IPB. Um destes casos foi
que era para a proteção dele e minha,
o da família Wright. Este,
não discutir nada desse assunto.
Então nós discutimos muita teologia expressando-se sobre as marcas
(Entrevista, 26 mar. 1999). desse período de repressão na Igreja
dizia:
Paulo Wright, na verdade, não
estava em Cuba. Ele, como centenas Uma das marcas foi a saída dos meus
filhos da igreja, porque eles
e milhares de outros brasileiros
percebiam as coisas, compartilhavam,
perseguidos sob a ditadura civil- eu compartilhava com eles, explicava
militar “desapareceram” neste o que estava acontecendo. Mas o que
período. eles passaram a sentir nas
congregações locais, especialmente
Em 19 de outubro de 1999 o
quando morávamos em São Paulo, a
Conselho da Igreja Presbiteriana de pressão que os pastores sentiam para
Florianópolis fazia constar em ata nº evitar que os jovens estivessem
1284 uma resolução de restauração envolvidos em qualquer atividade com
cunho social ou ecumênico. E os meus
“post mortem”, a qual fazia restaurar
filhos passaram então a se
a condição de membro da primeira desencantar com a igreja local [...].
Igreja Presbiteriana de Florianópolis, Então todos tem uma preocupação
Paulo Stuart Wright. especial com o bem-estar das
pessoas, motivados certamente pelos
Na vida daqueles que foram
princípios cristãos, mas de uma forma
estigmatizados, neste período, as geral eles não se identificam com a
marcas que ficaram imprimiram em igreja (exceto Anita), e eu estou
suas mentes e vivência social uma muito próximo deles nesse final de
vida (Entrevista, 26 mar. 1999).
memória de cuja existência tornou-se
impossível de se desvencilhar. É o
A mesma consequência
que se vê nos relatos abaixo.
familiar foi vivida por Joaquim Beato.
Em entrevista, Rubem Alves
A esposa de Beato teve sérios
dizia que o que mais lhe causou
problemas de saúde em virtude da
decepção enquanto membro e pastor
situação de desemprego em que ele
da IPB foi o “asco”, a indiferença, o
se encontrava ao regressar ao Brasil
medo que as pessoas tinham de
após seus estudos em Oxford:
conversar, de se relacionar com
aqueles que estavam sendo alvo do Uma das marcas foi, como eu já disse
estigma da direção da Igreja aqui, a doença psicológica, lesão
psicológica para minha mulher,
(Entrevista, 08 jun. 1998). Este
primeira mulher [...]. Ela é claro
medo de aproximação por parte de poderia ter essa tendência, mas isso
muitos fez com que tais se agravou [...]. Outra das
estigmatizados se sentissem consequências foi o fato de meus
filhos, nenhum deles, exceto a caçula
isolados, objetos do repúdio
que chegou a fazer profissão de fé na
daqueles. Igreja Presbiteriana, mas nenhum
Na vida de outros líderes da deles depois quis saber da igreja
IPB, na época, as marcas cristã. E no meu caso de permanecer

56
numa igreja cristã e presbiteriana
[IPU], porque eu não tenho mais para [...] deixar de lado, não convidar para
onde ir, não é? Quer dizer, eu achei pregar, nem para ser professor na
que o caminho de Jesus Cristo era Escola Dominical, nem para fazer
esse, e fora de Cristo para mim não palestras, nem congressos. As
tem, não tem salvação (Entrevista, 27 pessoas locais evitavam, para não
mar. 1999). serem mal vistas, pela própria direção
da igreja [...]. Uma das saídas foi
No que se refere a Paul procurar apoio entre si mesmo,
procurando desabafar [...]. O primeiro
Pierson, sua grande decepção foi com
sentimento que a gente teve foi o de
o fato de que ele estava se decepção. Segundo a ideia de que a
preparando para retornar ao Brasil e gente não podia mais confiar na igreja
exercer a docência no Seminário para sobreviver, então a maioria
daquela época procurou se preparar
Presbiteriano do Norte, em Recife
para Ter uma garantia de
(SPN), e o projeto foi interrompido: sobrevivência, especialmente os que
estavam começando a vida de
Fiquei chocado, até foi um elemento casados [...]. Outros falavam: “Bom,
desmoralizador para mim porque eu já que a gente não foi aceito pela
estava naquela fase de me preparar igreja, vamos procurar uma outra
para exames muito difíceis para profissão fora da igreja, uma outra
passar nos exames de doutorado e a liderança mas fora da igreja, na igreja
finalidade toda era servir a igreja no não é possível mais”. Achavam que o
Brasil e, a motivação de fazer o regime militar não ia sair tão cedo do
doutorado estava desaparecendo. país, enquanto o regime militar
Quer dizer, foi uma situação estivesse no país, a igreja era nos
emocionalmente, muito difícil para mesmos moldes [...] Ah! Medo era a
mim, mas eu continuei e consegui coisa que mais sentia porque você
[...]. Então estava ficando cada vez não tinha segurança de sair à rua,
mais claro que não havia lugar para naquela fase mais dura da repressão
mim aqui no Brasil, na IPB, e meu (Entrevista, 01 jul. 1998).
ministério estava acabado. Eu vou te
dizer que foi uma da vezes em minha
vida quando passei por uma
CONSIDERAÇÕES FINAIS
experiência muito grave de depressão
(Entrevista, 11 fev. 1999). O autoritarismo instalado na
IPB, principalmente após o ano de
Uma outra marca difícil de ser 1966, em pleno vigor do regime
superada foi a da decepção com a militar neste país, relacionava-se aos
Igreja enquanto instituição, ou mecanismos utilizados pela liderança
melhor a dificuldade em crer que desta Igreja, no intuito de eliminar
esta possa ser um locus de atuação aqueles que, de alguma maneira, não
divina. Claude Labrunie dizia: “Ficou se enquadravam dentro de um
muito difícil do ponto de vista paradigma colocado como o “correto”
psicológico e do ponto de vista por parte destes líderes. Surgia,
humano acreditar e continuar a crer então, um período de repressão,
na igreja institucional” (Entrevista, perseguição e estigmatização nos
25 mar. 1999). concílios e dentro das comunidades,
Além destas marcas que se estenderia para além das
mencionadas, Araújo menciona fronteiras destas, culminando com a
algumas outras características que repressão imprimida pela ditadura
marcariam a vida daqueles que civil militar no Brasil pós Golpe 64.
foram estigmatizados:
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Mecanismos de vigilância e fazendo com que, em vários casos, a
disciplina foram empregados, neste própria decepção com a religião,
sentido: delações, acusações, enquanto instituição, se fizesse
denúncias ao DOPS e às agências presente. A IPB por sua vez deixava
brasileiras de informação, cassações, de contribuir eficazmente no cenário
despojamentos etc. Como resultado político-social brasileiro e ao mesmo
muitos líderes que estavam dando tempo enclausurava-se em suas
suas contribuições na vida Igreja próprias fronteiras, fechava-se para o
romperam com a mesma em virtude novo e excluía expoentes
das constantes pressões sofridas. intelectuais, hoje conhecidos no
Pastores, líderes e famílias, tiveram cenário teológico, sociológico e
marcas impressas em suas mentes, filosófico brasileiro.

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Entrevistas
Claude Labrunie; Jaime Wright; Joaquim Beato; João Dias de Araújo; Jovelino
Ramos; Paul Pierson; Richard Shall; Rubem Azevedo Alves; Waldo César

Recebido em: 13/06/2014


Aprovado em: 30/06/2014

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