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Entre
e“guerras
santas”:
dinâmicas e linhas de
religioso
força do campo
brasileiro MARCELOAYRES
CAMURÇA
éprofessordo
Programade
MARCELOAYRESCAMURÇA Pós-Graduaçãoem
CiênciadaReligião
edoProgramade
Pós-Graduaçãoem
CiênciasSociaisda
A Pierre Sanchis, nos seus 80
anos, inspirador de muitas UniversidadeFederal
ideiasdestetexto. deJuizdeFora.
Seguindo essa trilha, gostaria de apre-
sentar uma abordagem sobre as relações
estabelecidas entre as religiões dentro do
campo religioso brasileiro numa direção,
qual seja: a que averigua as linhas de força
que marcam as interações e interseções
entre as religiões e seus adeptos no Brasil;
e a que avalia os seus processos de atração,
indiferença e de repulsão.
PARADOXOS DA CONVIVÊNCIA:
SINCRETISMO E “GUERRA
SANTA” ENTRE AS RELIGIÕES
NO BRASIL
Pensamos que as fricções e interfaces
INTRODUÇÃO existentes entre as distintas religiões que
convivem em solo brasileiro obedecem a
Já faz parte de um consenso acadêmico linhas de forças que as colocam ora em
na sociologia e antropologia da religião a situações de trocas, interpenetrações e
ideia do declínio da hegemonia católica e comunicações, ora em situações de dife-
da gradativa constituição de um pluralismo renciação, competição e enfrentamento.
no universo religioso brasileiro (Giumbelli, A essa sinergia acrescem-se momentos
1996; Machado & Mariz, 1998; Sanchis, mais ambivalentes, em que a mistura e a
1997; Steil, 2001, Teixeira & Menezes, distinção articulam-se produzindo vetores
2006)1. surpreendentes a quem procura soluções
Mas quais seriam as características formais. Esquadrinhar esse movimento é
desse cenário plural em construção das o meu propósito, buscando reconhecer as
religiões no Brasil? Quais e de que tipo as configurações e reconfigurações produzidas
relações que as distintas religiões, segundo no processo dinâmico do campo religioso
o seu peso e inserção nos segmentos da brasileiro.
população, estabelecem entre si e frente à
sociedade?
Pensando nos marcos de um panorama
das religiões no Brasil, Carvalho (1992, p. Duplo ou múltiplo
134) fala da “tarefa gigantesca” que seria
1 Emboraemtextorecente “procurar um nexo lógico-estruturante que pertencimento religioso:
osociólogoAntônioFlávio permita apreender como uma totalidade
Pierucci(2006,p.49)tenha
perguntado“Cadêanossa as interfaces, superposições, oposições, sob o império da matriz de
diversidadereligiosa?”devi- continuidades e singularidades dentro
doaumaexpressivamaioria
cristã, pois, segundo ele, deste campo”. Porém diz que é possível religiosidade tradicional
somando-se os 73,8% de perguntas sobre se as religiões “formam
católicoscomos15,4%de
protestantes,tem-seasoma ou não universos simbólicos autônomos Podemos apresentar como característica
de 89,2%, sobrando para ou integrados; se há ou não princípio de matricial das crenças e práticas religiosas
a diversidade a“apertada
faixa de 3,5%” (Pierucci,
comensurabilidade entre elas” (Carvalho, no Brasil a constituição de uma linguagem
2006,p.50). 1992, p. 135). comum que se forjou a partir da combinação
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das crenças das religiões tradicionais: a – e as que depois aportaram no país, para
dominante, católica, com as subalternas, in- ter êxito, tinham de se compatibilizar ou
dígenas e africanas (configurando um molde funcionar como instâncias complementares
que em seguida conformava outras religiões dela (Carvalho, 1992, p. 134; Machado &
emergentes e recém-chegadas)2. Nesse sen- Mariz, 1998, p. 5). A força inclusiva dessa
tido, alguns autores chegaram a falar numa “matriz religiosa brasileira”, que se mos-
“religiosidade mínima brasileira” (Droogers, trava na forma católica, exemplifica-se nos
1987) e outros em “matriz religiosa brasilei- depoimentos das mais conhecidas ialorixás
ra” (Bittencourt Filho, 2003). do candomblé se dizendo católicas; ou na
A nosso ver, um dos pilares dessa lin- chamada conversão do espiritismo cienti-
guagem comum é a crença compartilhada ficista francês de Kardec a uma “religião
de que o nosso mundo está envolvido por espírita” quando chega ao Brasil (Aubrée &
outra dimensão “encantada” que produz Laplantine, 1990; Warren, 1984; Damazio,
uma constante comunicação nossa com 1994); ou ainda no isolacionismo do cha-
seus seres “sobrenaturais”: “almas”, “es- mado protestantismo histórico, exceção ao
píritos”, “santos”, “anjos”, “demônios”, estilo “sincrético”, dessa forma reduzido ao
“orixás”, “aparições da Virgem”, “posse papel de uma “contracultura” a essa matriz
do Espírito Santo”3. A influência desse religiosa hegemônica (Mendonça, 1989).
outro plano e seus seres no destino dos A força tendencial dessa modalidade
homens adquire conotações benéficas e/ou intercomunicante de religiosidade, além de
maléficas. Ou seja, há uma estreita relação marcar as religiões tradicionais – católica,
causal de tudo que ocorre na nossa reali- africana e indígena – com uma “porosida-
dade com uma interferência proveniente de” e “contaminação” umas em relação às
desses seres sobrenaturais (Brandão, 1986; outras (Sanchis, 1997; 1988), forjou em solo
Sanchis, 1997). Dessa forma, a relação es- brasileiro religiões tipicamente brasileiras
tabelecida entre as poderosas entidades do pela articulação de elementos retirados
2 Paraexemplificaressaten-
plano espiritual e os humanos se caracteriza dessas mesmas religiões tradicionais, como dência, Carlos Rodrigues
pela proteção das primeiras aos segundos, a umbanda e, mais recentemente, o Santo Brandão traz uma fala do
personagem RiobaldoTa-
correspondida, por sua vez, nas promessas Daime (Guimarães, 1996, p. 126). tarana do Grande Sertão:
e oferendas realizadas pelos segundos Propomos, então, dois níveis de in- VeredasdeGuimarãesRosa:
“Muita religião seu moço!
(Fernandes, 1988), o que redunda numa terpretação para o fenômeno, os quais se Eu cá, não perco ocasião
ritualização e sacralização de lugares, complementam, um com ênfase maior no de religião.Aproveito de
todas. Bebo água de todo
imagens e objetos, como manifestação ou caráter histórico do processo e outro no rio. Uma só, para mim é
hierofania desse “mundo superior invisí- caráter estrutural. pouca, talveznãomeche-
vel” no mundo terreno.
gue. Rezo cristão, católico
De caráter histórico, é a interpretação […] e aceito as preces
Contemporâneo e propiciador dessa de Sanchis (1997, 1988) de que a tendência de compadre Quelemém,
(meta)crença comum e articuladora de à hibridização entre as religiões no Brasil doutrinadele,deCardéque
[Kardec].Masquandoposso,
todas aquelas singulares, um movimento estaria marcada pela “sociogênese” da vounomindubim,ondeum
sócio-histórico desenvolvido nos primór- nação. Esta se deu no encontro (desigual) Matiasécrente,metodista:a
genteseacusadepecador,lê
dios do Brasil logrou alinhavar social e de três povos desenraizados nesta terra altoaBíblia,eoracantando
culturalmente – a partir do imaginário brasilis marcado pela dominação da cultura hinosbelosdeles.[…]tem
uma preta: Maria Leôncia
religioso – o mundo europeu e nativo em europeia/portuguesa sobre as duas seguintes […]asrezasdelaafamam
uma totalidade. Sob o manto encompassador – do nativo e do africano – e na qual, “no emvirtudeepoder. Poisa
elapago,todomês–enco-
do catolicismo, deu-se todo um processo avesso ou no interstício”, ocorreram “mi- mendaderezarpormimum
de empréstimos mútuos entre crenças croprocessos do jogo das identidades”, de terço,todosantodia,e,nos
católicas e africanas, fazendo do Brasil, “porosidades e contaminações mútuas” que domingosumrosário.Vale,
sevale”.
segundo palavras de Sanchis (1997, p. impediram uma compartimentação e uma
3 “Encarna,dessaforma,aideia
105), “nem África pura, nem Catolicismo distinção significativa entre essas culturas. daqueles estudiosos que
europeu”. Submetidas à força dessa matriz As bandeiras, a casa grande e a senzala são acham que a religiosidade
predominante no Brasil é,
de “catolicidade sincrética”, as religiões exemplos eloquentes dessa “co-presença” de fato, de tipo espírita”
primevas – católica, indígenas e africanas entre essas culturas/religiões, não limitadas (Carvalho,1992,p.160).
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a uma “existência paralela”, mas a aberturas lidade” em relação às outras – segundo o
e articulações e “contaminações mútuas”. modelo de Berger (1985), – mas de compor
De caráter estrutural, é a ideia de que dentro da totalidade “encantada” de “todos
está numa matriz tradicional a possibilida- os santos”, incluindo sempre aqueles de
de, enquanto leito, de proporcionar o fluxo sua preferência, numa ação complementar
onde ocorrem as hibridizações nas religiões infinita. Daí a fala do personagem de Gui-
brasileiras. Ainda em Sanchis (1997, p. 104) marães Rosa, para quem “uma religião é
encontramos o conceito de “pré-moderno” pouco”, devendo-se “aproveitar de todas”.
que dá conta desse domínio: “um universo Nesse sentido, podemos pensar a eficácia
religioso fundamentalmente ritual (‘mági- simbólica de um catolicismo no Brasil em
co-religioso’) em consequência dominado compatibilizar dentro do mesmo templo e
pela ‘obrigação’, e imperfeitamente ético, na circularidade de um calendário litúrgico,
para nosso olhar contemporâneo”. diferentes santos, cada qual com seu nicho,
Aqui estamos operando com o registro com sua especialidade e virtude, com seu
da matriz tradicional, marcada fundamen- dia e sua festa, com suas devoções e devotos
talmente pelo mito4. A noção de crença, articulados no rol das necessidades daqueles
dentro do mito, difere radicalmente da a quem a eles recorrem (Fernandes, 1988,
racionalidade ocidental, na qual a crença p. 102). Ou ainda pensar o paroxismo disso,
diz respeito a conjecturas, especulações de numa genuína religião brasileira que é o Vale
um sujeito em direção ao desconhecido, ao do Amanhecer, que reúne “inúmeras falan-
não palpável e provado. A crença dentro do ges de entidades, muito mais numerosas do
mito, ao contrário, é de caráter totalizante, que em qualquer outra casa de umbanda ou
um dado que se impõe, pois o mito preexiste de kardecismo. Há falanges asteca, maia,
e preenche toda a realidade. Não se conce- inca, egípcia, indiana, tibetana, cristã …
be um sobrenatural, pois tudo é percebido todas as que se possam imaginar, pois […]
como natural. Natural este que está em deixou espaço aberto para acolher todos os
toda parte, pois sempre esteve desde todo espíritos possíveis” (Carvalho, 1992, p. 156
o sempre. Tratando-se então, os homens, – grifos nossos).
de reiterar e agir segundo o modelo daquilo Dessa forma, a mentalidade mítico-
que simplesmente é: o mito (Eliade, 1972). tradicional não vê o campo religioso
“Desse ponto de vista, afirmar a crença brasileiro como resultado histórico dos
em certos deuses e espíritos não significa movimentos de igrejas e religiões institu-
4 Segundo Bourdieu (1974, acreditar/duvidar que eles ‘existam’, porque cionais, mas como expressão, efeito direto
p. 40), esses“sistemassim-
a crença […] é um fato da experiência” de uma ordem transcendente interligada
bólicos”quesãoos“mitos
(sistemasmítico-rituais)”se (Birman, 1992, p. 173). ao nosso mundo pela vontade dos seres
caracterizamporum“domí- Trazendo esse registro de um sistema místicos e mágicos que a compõem. Logo,
niopráticodeumconjunto
deesquemasdepensamen- tradicional-mítico para entendermos um dos a repartição em que toma forma o campo
toedeaçãoobjetivamente movimentos mais peculiares da dinâmica religioso obedece a determinações desse
sistemáticos, adquiridos
em estado implícito por entre as religiões no Brasil (o sincretismo), plano totalizante. Cada religião, então, tem
simples familiarização, e defendemos a hipótese de que, no Brasil, uma ligação com dimensões da esfera “de
portanto comuns a todos
os membros do grupo
a forte presença de uma mentalidade de cima” que lhe concerne e está destinada
e praticados segundo a cunho tradicional operou uma “diluição nas a reproduzi-la. A variedade, distinções e
modalidade pré-reflexiva”,
segmentações” do que poderia ser as iden- clivagens no campo religioso são vistas
opondo-se às“ideologias
religiosas(teogonias,cosmo- tidades marcadas e em competição de um não como produções do devir histórico,
gonias,teologias)”marcadas “campo religioso”, “tornando compatíveis ou estando submetidas ao primado de
pelo“domínio erudito de
um corpus de normas e elementos que se apresentam excludentes uma ética universal que divide as coisas
conhecimentos explícitos, entre si” (Birman, 1992, 174). Não consiste em bem e mal, mas como pertencimentos
explícitaedeliberadamente
pertencentesaumainstitui- em eleger, dentre as várias opções religiosas, a dimensões dessa totalidade (mítica) que
çãosocialmenteincumbida uma verdadeira, exclusiva, ou prioritária, a tudo preexiste e a tudo determina.
de reproduzir o capital
religiosoporumaaçãope-
a que se apresenta ao optante como a que A questão aqui, não está em escolher
dagógicaexpressa”. reúne as melhores condições de “plausibi- entre o verdadeiro e o falso, mas em ade-
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rir a sua linhagem – quase totêmica –, seu (1986). No primeiro caso teríamos o indi-
santo, orixá, guia, mentor, sua falange, etc., víduo diante de um mercado composto por
ou compor relações entre elas: “É sempre várias agências religiosas que competem
melhor se sentir concernido a todas as linhas pela preferência e adesão desse indivíduo.
(espirituais) do que […] negar qualquer rela- O indivíduo teria livre-arbítrio para optar
ção” (Birman, 1992, p. 182). De acordo com por uma delas, podendo essa “‘preferência
o modelo de pensar de Riobaldo Tatarana religiosa’ ser abandonada tão prontamente
do romance Grande Sertão: Veredas, “Em quanto é adotada” (Berger, 1985, p. 146).
se tratando do relacionamento com essas Nesse sentido, “a religião não pode ser
esferas sobrenaturais, nunca se peca por mais imposta, mas tem que ser posta no
excesso” (Birman, 1992, p. 182). mercado” (Berger, 1985, p. 156), o que
Na mentalidade tradicional não existe a instaura um “princípio de mutabilidade”
possibilidade de especular sobre o transcen- oposta ao império do “eterno retorno” da
dente; sobre a existência ou não dos seres narrativa tradicional-mítica: “Torna-se
que supostamente possam viver “no alto”; cada vez mais difícil manter as tradições
se existe o mito com seus personagens e religiosas como verdades imutáveis […]
narrativas, eles e suas sagas existem de fato. os conteúdos religiosos tornam-se sujeitos
Acreditar não é questão de especulação, à ‘moda’” (Berger, 1985, pp. 156-7). No
mas de credibilidade, de confiança na(s) segundo caso, teríamos a constituição de
entidade(s) a quem se filia e com quem se instâncias legitimadas “de gestão de bens
pactua5. de salvação por um corpo de especialistas
A fé na matriz religiosa tradicional impli- religiosos, socialmente reconhecidos como
ca estabelecer um vínculo – na verdade um detentores exclusivos desta competência
maior número de vínculos possíveis – para específica” para o atendimento das deman-
assegurar a proteção, em troca da lealdade e das de leigos consumidores desses bens de
filiação a essas entidades, acompanhada de salvação (Bourdieu, 1986, p. 39).
oferendas e rituais que expressam sempre a De acordo com Steil, a pluralidade de
renovação dos vínculos estabelecidos. crenças e visões religiosas do mundo altera
de maneira significativa o papel da religião
na sociedade, passando da condição de “fun-
dante do social” para se restringir à esfera
Escolha com exclusividade; da cultura e da produção de significados e
símbolos que fornecem um sentido para a
distinção, competição subjetividade do indivíduo moderno (Steil,
2001, p. 116). Sem fundar a sociedade sobre
e enfrentamento; as religiões um único princípio religioso, a dinâmica 5 “PortodaaBíblia,Abraãoé
chamadodehomemde‘fé’.
moderna passa a organizar essa mesma so- Hojetendemosadefinirfé
modernas ciedade em princípios seculares autônomos comoaaceitaçãointelectual
de um credo, mas, como
que permitem a existência e convivência vimos, os autores bíblicos
Segundo Machado e Mariz (1998, p. 5), de diversas religiões como expressões do nãoviamaféemDeuscomo
uma crença abstrata ou
a partir das décadas de 60 e 70, consolidan- livre-arbítrio desse indivíduo. Constitui-se
metafísica.Quandolouvam
do-se nos anos 80 e 90, um novo fenômeno um campo religioso que se alarga indefini- a‘fé’ deAbraão, nãoestão
constitui-se no cenário das religiões no damente com o surgimento em aberto de comentando a ortodoxia
dele (a aceitação de uma
Brasil, instaurando o que chamam de um novas religiões, de acordo com as opções e opinião teológica correta
pluralismo institucional. Ou seja, uma nova adesões desses indivíduos modernos (Steil, sobre Deus) mas a sua
confiança, mais ou menos
tendência parece irromper, sobrepujando 2001, p. 116). comoquandodizemosque
a estrutura tradicional do sincretismo e No Brasil, a tendência à pluralidade reli- temosfénumapessoaou
numideal.NaBíblia,Abraão,
constituindo no país o modelo do merca- giosa se intensifica, segundo Machado e Ma- éumhomemdeféporque
do religioso, tal como descrito por Peter riz, com o advento do pentecostalismo nas confiaemqueDeuspoderá
cumprirsuapromessas,mes-
Berger (1985); ou do campo religioso, décadas de 60-70 e do neopentecostalismo e moquepareçamabsurdas”
no sentido proposto por Pierre Bourdieu do movimento carismático nos anos 80-90, (Armstrong,1995,p.29).
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6 Diversosautores,acomeçar que criam, para o fiel brasileiro, alternativas A atitude de acusação e intolerância às demais
por Berger (1985, p. 164),
consideram que, diante da institucionais exclusivas em relação àquela religiões e religiosidades (afro-brasileiras,
“situação pluralista”, uma inclusividade sincrética que se dava sob o kardecismo, esoterismos), com a conse-
dasopçõespossíveiséade
“entrincheirar-se atrás das manto do catolicismo tradicional. Essas quente rejeição a outras práticas religiosas
estruturas sociorreligiosas novas alternativas permitem ao indivíduo fora do âmbito de seu credo, parece levar
que possam manter […]
e continuar a professar as
optar e ter um pertencimento exclusivo e a clivagens e competições, inaugurando no
velhas objetividades tanto uma identidade religiosa definida, como cenário religioso brasileiro uma nova forma
quantopossível”.PeterBeyer
também impõem às religiões tradicionais de convivência – distinta daquela tradicional
(1998,p.414)falaque,fruto
da globalização, surge“a uma dinâmica de “mercado”, em que estas dos “empréstimos mútuos” – semelhante
opção conser vadora (a passam a adestrar-se para a competição por aos modelos de mercado religioso e campo
reafirmação da tradição
apesar da modernidade)” fiéis – o caso da influência da Renovação religioso, descritos acima.
como“aspectovitaldaglo- Carismática Católica impelindo a Igreja A questão que se coloca, então, é de como
balização,enãodenegação
da mesma”. Da mesma Católica para essa nova configuração mais uma atitude de beligerância e enfrentamento
forma, Steil (2001, p. 118) definida quanto a uma identidade e mais por parte de pentecostais e carismáticos pôde
sublinhou a“afirmação do
exclusivismo,quedelimitaria
competitiva frente a outras religiões em redundar num quadro de mercado religioso
oseuuniversoaumcírculo ascensão é ilustrativo dessa nova tendência ativo e não de desagregação, de “guerra de to-
restritodeadeptos”como
(Oro, 1996; Carranza, 1998). dos contra todos”, enfim, de “guerra santa”7.
umadasalternativasàsitua-
çãodepluralismo. O que parece verificar-se com o advento Pensamos como hipótese que, pela cultura
7 Asigrejaspentecostais,parti- desses novos grupos no cenário religioso do “empréstimo mútuo” sob estrutura hierár-
cularmenteaIgrejaUniversal brasileiro é uma tendência no sentido da quica tradicional ser tão forte e arraigada na
doReinodeDeus,têmsido
enquadradas em infrações modernidade, marcada pelo primado do nossa mentalidade religiosa, esta só poderia
porferirdispositivosdoprin- indivíduo, sua livre escolha através da ser quebrada por uma iniciativa radical, ou
cípio de liberdade religiosa:
consciência com a consequente fixação do seja, a intolerância e demonização da reli-
como a denúncia contra o
bispoMacedopor“vilipêndio princípio de identidade: “Estes grupos se gião do outro, promovida por esses grupos
aocultoreligioso”quandono destacam por defender uma afiliação reli- emergentes. A consequência de uma atitude
seu livro Orixás, Caboclos e
Guias,segundoospromoto- giosa exclusiva, rejeitar qualquer mistura intolerante em contexto de sincretismo não
res,“atacaoutrasreligiõese religiosa e pregar um maior compromisso parece ter sido de explosão de violência
provocatransformaçõesnos
fiéis”.Tambémháoregistro do indivíduo com a instituição” (Machado generalizada, mas de ter resultado apenas
de uma ação indenizatória & Mariz, 1998, p. 7 – grifos nossos). em conversão integral, na renúncia de uma
movida pela Federação de
Umbanda e CultosAfro- Pierre Sanchis (1997, p. 108) também crença anterior e numa nova atitude crítica
Brasileiros de Diadema, e aponta que é na vaga evangélico-pentecostal frente a ela: em suma, modernidade!
o mais recente processo
que chega às amplas camadas da população Nessa linha, Luiz Eduardo Soares
contra o bispoVon Helder
pelo affaire do“chute na a ideia de conversão pessoal, movida pela (1993, p. 31), de uma forma ousada, jul-
santa”(Giumbelli,1996,p.8). “opção de fé de cada um”, entrega pessoal gou ver, no conflito religioso da “guerra
Também,comoatitudesque
marcamachamada“guerra em Jesus, atitude ética que muda a relação dos pentecostais contra o afro-brasileiro”,
santa”,podemserarrolados: consigo mesmo e com o mundo, na assun- “dimensões democráticas”. Para ele, o
osexorcismosquesereali-
zamnostemplosevangélicos ção da condição de “salvo”. Ou seja, essas conflito religioso em curso tem o mérito
associandoosdemôniosàs correntes religiosas parecem introduzir de separar “com radicalidade […] fundar
entidades da umbanda e
candomblé; o episódio da princípios racionalizantes na religiosidade bases de uma experiência de sociabilidade
“fogueira santa”, em que o brasileira: uma ética de salvação em lugar […] associado a uma postura cultural ex-
antigo“macumbeiro” quei-
da noção de proteção da religiosidade média cludente e diferenciadora, oposta à nossa
ma diante da comunidade
evangélica“todososobjetos dos brasileiros (Fernandes, 1990, pp. 4-5), tradição inclusiva e neutralizadora das
pessoaisereligiososligados a escolha pessoal movida pela fé e não pela diferenças que o sincretismo expressa de
a sua antiga crença”; assim
comotentativasdeinvasões participação em rituais, e uma identidade modo ímpar” (Soares,1993, p. 45 – grifos
a terreiros e agressões a religiosa baseada numa crença (produto de nossos). Segundo ele, está se operando hoje
adeptosdaumbandanarua
vestidos com trajes rituais uma escolha pessoal) e não num seguimento um “reordenamento do campo religioso
–debrancoecomkelêno da tradição atávica. brasileiro, até então marcado por uma in-
pescoço – registradas pelo
Ipelcy,entidadededefesada A forma de diferenciação assumida por tegração bem sucedida” de corte “vertical
comunidadeafro-brasileira,e esses grupos se expressa no embate travado ou assimilação hierárquica” capitaneado
pelodeputadoÁtilaNunes,
por eles com as outras religiões presentes no pelo catolicismo tradicional inclusivo. Esse
ligado à umbanda (Soares,
1990,pp.75-105.) campo6, consideradas, por eles, demoníacas. “reordenamento” que ora se dá em função do
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enfrentamento entre “membros das classes se litúrgica e doutrinariamente na direção
subalternas, tanto os pentecostais quanto o (neo)pentecostal, para ficarem mais compe-
povo de santo” adquire uma feição “hori- titivas em relação aos neopentecostalismos;
zontal” (Soares, 1993, p. 45), indicador de no campo católico, o papel da Renovação
que “as classes subalternas se aproximam, Carismática Católica buscando dar à Igreja
se ligam entre si, organicamente através mais visibilidade na esfera pública, através
[…] da principal de suas linguagens, a de técnicas emocionais, lúdicas e midiáticas,
religiosidade” (Soares, 1993, p. 46). Dessa muito próximas dos pentecostais, ades-
forma, quando os elos “entre a Casa Gran- trando a instituição a competir no mercado
de e a Senzala começam a fragilizar-se e religioso, na conquista e preservação dos
a partir-se”, as classes subalternas podem seus fiéis (Oro, 1996; Carranza, 1998; Ma-
interagir – mesmo que de forma abrupta, chado, 1996; Prandi, 1997); no campo afro,
mas dispensando a mediação hierárquica – a o “abandono da ideia de ‘religião étnica’ e
partir de uma “orientação igualitária”, nive- transformação do candomblé em religião
lada. O que Soares depreende do fenômeno universal, dessincretização (Prandi, 1991;
é “a substituição da tolerância complacente Silva, 1995), tentativa de sua ‘purificação’
estamental pelo confronto igualitário”; pois, e ‘restauração’ na sua pureza, liberado de
no antigo “sincretismo os termos se articu- qualquer contaminação ‘católica’” (San-
lam, não se excluem” e, dessa maneira, “a chis, 1997, p. 108).
nova linguagem religiosa purificadora do
pentecostalismo guerreiro” vem instaurar a
diferenciação nas mentalidades das cama-
das populares, o que pode ser uma via para A revanche do sincretismo
a instituição da noção de individualidade,
condição básica para a intersubjetividade e contra a identidade:
o diálogo. Concluindo, afirma que a dinâ-
mica competitiva estabelecida rompe com a continuidades sob rupturas
reiteração da “velha camuflagem sincrética”
(Soares, 1993, p. 48). A imputação à religião do outro da pecha
Nesse sentido, uma provável “guerra de ser demoníaca, associada à intenção de
santa” aberta, com um consequente esgar- manter a “pureza da fé” e uma identidade
çamento do tecido social – como aquele a religiosa exclusivista, sem dúvida, é um
que assistimos na Sérvia e Croácia, na Índia, traço central de religiões – como as dos
Sri Lanka e Argélia – no Brasil, pelo quadro pentecostais e carismáticos – que emergem
descrito acima, de uma tensão/conjugação com força no cenário religioso brasileiro.
entre sincretismo/intolerância, parece levar Essa ascensão acentua uma forte tendência
a uma neutralização de ambos os polos, antissincrética, redefinindo esse cenário
constituindo uma nova situação de competi- dentro dos marcos e clivagens de um campo
ção equilibrada, e se encaminhando para o religioso. Porém, um estudo mais aprofun-
modelo de mercado bergeriano através das dado aponta que “à revelia desse discurso,
seguintes tendências: estruturas religiosas ou seja, dos propósitos e dos projetos des-
cada vez mais semelhantes umas com as ses sujeitos e grupos […] não se nega que
outras (Berger, 1985, p. 151) e uma padro- em sua prática ocorre um sincretismo não
nização cada vez maior dos bens religiosos intencional e inconsciente” (Machado &
oferecidos pelas instituições religiosas de Mariz, 1998, pp. 9-10).
acordo com a demanda dos clientes (Berger, Na verdade, parece ocorrer uma re-
1985, p. 159). vanche da esfera do sincretismo contra
Dessa forma, alterações substantivas a definição de identidades, que faz com
ocorrem no campo religioso, como por que, nas práticas, crenças e rituais desses
exemplo: no campo evangélico, o fato de as grupos religiosos exclusivistas, ocorram
igrejas evangélicas clássicas modificarem- incorporações e permanências das antigas
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crenças e cultos rejeitados. Pois rejeição – O uso de elementos mágicos dos cultos
não significa descrença e indiferença aos e superstições populares do Brasil, entre
antigos credos – candomblé, umbanda e kar- eles, o sal grosso (para afastar maus espí-
decismo – mas uma redefinição da natureza ritos), a rosa ungida (usada nos despachos
desses fenômenos, vistos agora com “sinal e oferendas a Iemanjá), a água fluidificada
trocado”: o que era considerado positivo e (usada pelos credos espiritualistas a fim
bom passa a ser negativo e mau; o que era de trazer a imanência espiritual para o
considerado uma dádiva dos deuses ou dos corpo humano), fitas e pulseiras especiais
guias espirituais passa a ser visto como obra (semelhantes na sua designação às fitas do
do demônio e sua legião. chamado Senhor do Bonfim), o ramo de
A capacidade mimética das igrejas neo- arruda (usado para afastar coisas más) e
pentecostais, como a Igreja Universal do uma quantidade enorme de apetrechos aos
Reino de Deus, de conciliar um discurso quais empresta supostos poderes espirituais
exclusivista e intolerante em relação às que podem ser passados para seus usuários”
outras religiões (catolicismo, espiritismo (Vinde, 1996).
e afro-brasileiras) e ao mesmo tempo in-
corporar dimensões fundamentais dessas Sanchis (1997, p. 109), em seu estudo,
religiões à sua estrutura tem levado ao também ressalta o reencontro dessa “terceira
assombro os próprios evangélicos e pen- vaga pentecostal” – da qual a Universal do
tecostais ditos históricos, como expressa Reino de Deus é exemplar – com a tradi-
esse manifesto da Associação Evangélica ção brasileira do catolicismo inclusivista
Brasileira (AEVB), ao discordar das “prá- através da escolha/repetição por essa igreja
ticas da Igreja Universal do Reino de Deus de “processos de intensa ritualização, de
que apresentam elementos radicalmente mediação institucional e, senão de ‘sa-
contrários à fé evangélica e à melhor he- cramentos’, pelo menos de sacramentais
rança bíblica da Igreja Protestante e Pente- múltiplos […] como o sal grosso, o óleo, a
costal”8. Em seguida listam essas práticas água” (Sanchis, 1997, p. 109). No que tange
– que segundo eles destoam da orientação à força de permanência dos conteúdos da
evangélica/pentecostal – e que são, na crença anterior afro-brasileira, agora rejei-
verdade, provenientes e características ora tados, mas sempre implicados, ele chama
do catolicismo, ora do kardecismo, ora dos atenção para como “o terreiro é reconstituído
cultos afro-brasileiros: no interior mesmo do culto pentecostal,
quando exus e pombagiras são adorcizados
“– A compra de indulgências (prática do para serem triunfalmente exorcizados. É o
catolicismo medieval), ou seja, a compra de mesmo universo, nunca totalmente desen-
sucesso através das intermináveis correntes cantado, que parece agora ser assumido
da prosperidade que demandam do fiel que como assombrado, numa apropriação com
doe dinheiro em cada culto sob pena de não inversão de sentido” (Sanchis,1997, p. 109
alcançar a bênção. – grifos nossos).
– A aceitação das nomenclaturas e identida- Birman ao estudar as passagens de
des dos espíritos dos cultos afro-ameríndios indivíduos vinculados aos cultos de pos-
8 Manifesto “Os fiéis da (exemplo: pretos velhos, exus, pombas gi- sessão do candomblé e da umbanda para o
Universal merecem todo
ras, etc.) como sendo entidades por aqueles pentecostalismo, viu a postura de determi-
carinhoeencorajamentona
fé”assinadopelosdiretores cultos afirmadas. Os evangélicos creem nados convertidos em face do exorcismo
da AEVB: pastores Caio na existência de tais espíritos, mas não pentecostal como uma reelaboração de sua
FábioD’AraújoFilho,Darci
Dusilek, Samuel Carrara, reconhecem sua designação como sendo antiga posição de destaque como médium,
Argemiro Hoffman, Adriel as dadas pelos cultos afro-ameríndios, ou influenciando na sua posição no novo cam-
de Souza Maia, Geremias
doCouto, LucianoVergara seja, espíritos humanos desencarnados ou po pentecostal. Ou seja, as qualificações e
VilaçaMoraes,AdailCarva- deuses primitivos, mas discerne-os, antes de atributos que o indivíduo possuía nos cultos
lhoSandoval,LuisWesleyde
Souza(Vinde,RevistaGospel
tudo, como espíritos malignos ou demônios, de possessão, seu grau de mediunidade, vão
doBrasil,1996). conforme o Novo Testamento. condicionar, para esse indivíduo, a forma
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como elaborará sua “libertação” da condição tempos de sua vinculação à umbanda. Ela
anterior e a necessidade de passar ou não dizia possuir “Jesus de berço”, numa alusão
pelo ritual de exorcismo para alcançar sua aos médiuns umbandistas especiais que
nova posição de membro da igreja (Birman, possuem “um santo de berço”, dispensados
1996, pp. 94-6). dos ritos de iniciação da “feitura da cabe-
Trabalhando com dois eixos distintos das ça”, por essa ligação espontânea ao santo.
crenças religiosas – o da predeterminação Se não passou pelos ritos de iniciação nas
ou destino, proveniente da religiosidade religiões afro-brasileiras por ter um “santo
tradicional, e o da salvação através da es- de berço” – no caso, Jesus –, dona Maria
colha, da religiosidade moderna – ela vê também não passará pelos ritos de exor-
que em indivíduos que realizam a passagem cismo na sua entrada no pentecostalismo
de um credo para outro opera-se uma arti- (Birman, 1996, p. 100).
culação entre esses dois níveis, a princípio Aqui se evidencia mais uma vez a força
incompatíveis. tendencial do sincretismo marcando a rela-
À passagem clássica – da opção por ção entre as religiões no Brasil, e revelando
uma religião com a negação da outra –, por trás dos níveis de diferenciação e de
acrescenta-se a permanência da influência clivagem as impregnações de uma religião
da antiga opção por dentro da nova. Dessa na outra, ou as impregnações das duas no
forma o registro da escolha por salvação mesmo indivíduo.
se soma à qualidade anterior do pertenci- Também Wagner Gonçalves da Silva
mento ao guia espiritual via mediunidade, (2006, p. 209), em outro ensaio, chama
produzindo com isso efeitos marcantes nas atenção para o fato de que entre as igrejas
novas atividades religiosas pentecostais. neopentecostais e as religiões afro-brasi-
A conciliação dessas oposições permite leiras “há […] muito mais semelhanças
colocar no novo sistema religioso quali- que distâncias”. Partindo do esquema lévi-
dades desenvolvidas no antigo. No caso da straussiano de que “a diferenciação social
“informante” dona Maria, antes médium da é consequência da proximidade estrutural”
umbanda, sua “aceitação de Jesus” na nova (Silva, 2006, p. 209), ou seja, de que a
religião pentecostal esteve menos marcada diferença entre dois sistemas sociais (em
pela escolha/opção e mais por uma “des- confronto) expressa arranjos diferentes dos
tinação pessoal a Jesus” sentida desde os mesmos elementos presentes em ambos,
Silva visa mostrar que neopentecostais e
afro-brasileiros são “versões diferentes
do mesmo mito” (Silva, 2006, p. 225).
Revela, sob uma superfície (real/social)
de ruptura dada pela oposição declarada
entre determinados termos, um trânsito
entre esses mesmos termos “constituindo
continuidades estruturais entre os sistemas
em conflito” (Silva, 2006, p. 224).
Através da análise de discurso dos livros
Mãe de Santo, do missionário Robert McA-
lister e Orixás, Caboclos e Guias: Deuses
ou Demônios?, do bispo Macedo, e dos
processos rituais dos transes e possessões
nos terreiros e nos templos neopentecostais
seguidos de exorcismo, Silva vai formular
como a tríade homem-Deus/deuses-animal
é articulada de maneira diferente em cada
um dos dois sistemas, permitindo uma ho-
mologia inversa e simétrica dos mesmos
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termos. Enquanto no candomblé sacrifica-se como um todo” ao “incorporar, integrar e
o animal associado ao homem para abrir juntar elementos de diversas tradições ou
canais com os deuses, no neopentecostalis- fontes, compondo sínteses personalizadas
mo sacrifica-se o demônio (exorcismo) de de crenças com um mínimo de mediação
feição animalesca (exus, pombagiras) para institucional”.
restabelecer a comunicação com Deus. No Contudo, essa tendência do “sincretismo
candomblé tem-se “a morte dos cordeiros pós-moderno” acolhido por indivíduos da
em nome dos deuses e dos homens” e no classe média com alto grau de escolarização,
neopentecostalismo “a morte do demônio marcados por um cosmopolitismo e abertura
nos homens em nome do cordeiro” (Silva, a novas experimentações, pode ser qualifi-
2006, p. 223). cada como uma combinação de novo tipo
entre as tendências modernas – como a do
primado do indivíduo, de sua livre escolha,
da instituição de um pluralismo de alterna-
Afinidades entre definição tivas religiosas no mundo, precondição para
a liberdade de escolha e para o respeito pela
na escolha e múltiplo alteridade – e as tendências pré-modernas
– como a da prevalência da totalidade, do
pertencimento a partir de holismo, do “encantamento do mundo”,
dos mitos, de práticas mágicas e rituais, do
um repertório tradicional: místico sobrepondo-se ao racional.
Para o caso do Brasil, Sanchis (1988,
espiritualidades pós-modernas p. 7) fala que, na “esteira desta ‘novidade’
feita de redescoberta do antigo”, o Santo
No Brasil do novo milênio, a ideia Daime é exemplar por realizar “uma re-
moderna de que o indivíduo por seu livre- emergência contemporânea da mais antiga
arbítrio escolhe e opta por uma religião raiz religiosa brasileira” conjugando “numa
dentre outras conjuga-se agora com a ca- experiência espiritual […] segmentos das
pacidade múltipla desse mesmo indivíduo camadas sociais mais representativas da
de combinar aleatoriamente – a partir das modernidade: intelectuais e artistas ao ex-
aspirações do seu self – dimensões as mais trato mais radical do Brasil historicamente
díspares, mas que adquirem sentido na sín- primitivo (o indígena) e topologicamente
tese, mais uma vez sincrética, que se faz profundo e vegetal”.
no seu interior9. Sanchis (1997, p. 7) em outro texto
Sanchis, lembrando um renomado en- lembra que “alguém já definiu a ‘pós-mo-
saísta, afirma que “talvez […] seja preciso dernidade’ como a ‘modernidade’ roída
chegar até o próprio indivíduo para nele pela ‘pré-modernidade’”. Portanto esse
9 “[…] rituais xamanísticos encontrar o verdadeiro fenômeno coletivo: “sincretismo religioso pós-moderno” rea-
e ocultos, práticas mágicas, um viveiro de opiniões e gostos diversos, lizado dentro do indivíduo configura-se,
utilizaçãodeobjetosdota-
dos de poderes misterio- muitas vezes contraditórios”10. nas palavras de autores canadenses, como
sos: cristais, comunicação Essa hiperindividualização crescente “um neoarcaísmo, ou melhor, um retrofu-
com entidades superiores
(transe), contato com ex- que marca os fenômenos culturais e reli- turismo”, pois é “pós-moderno no sentido
traterrestres” (Bergeron; giosos contemporâneos se expressa por de vir após a modernidade e de que o ideal
Bouchard; Pelletier, 1994,
uma forte tendência à hibridização das racionalista não é mais seu princípio regu-
p. 79).“Asviasdesalvação,
oferecidas pelos serviços crenças e práticas religiosas, criando como lador; [e] é pré-moderno, porém, enquanto
da Nova Era são múltiplas
consequência – na contramão do projeto é um retorno a ensinamentos tradicionais e
e variadas” (Amaral, 1994,
p.15). cartesiano moderno – uma desinstituciona- antigos e enquanto reanima os princípios
10J. M. Domenach, Enquête lização religiosa (Machado & Mariz, 1998, arcaicos” (Bergeron et alii, 1994, p. 80).
surlesIdéesContemporai- p. 21). Segundo Steil (2001, p. 122), essa Afinidades entre o “sincretismo pós-
nes,Paris,Ed.duSeuil,1987,
p.113(apudSanchis,1998,
“tendência recorrente nas ‘novas formas de moderno” e o “tradicional” também são
p.10). crer’ […] se estende para o campo religioso apontadas por Steil (2001, p. 123) quando
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afirma que “o tradicional e o pós-moderno religiosa, terminou levando a impasses
religiosos têm em comum o fato de privi- entre o meio laico e religioso. O que tendia
legiarem mais o polo sensorial na produção a prevalecer nessas situações: a “liberdade
de sentidos do que o polo ideológico” e que religiosa” ou os “direitos civis”?
seus adeptos “quer estejam no campo das Todavia, e se dispensássemos tanto ati-
religiões ‘nova era’ quer estejam nos cultos tudes laicas, quanto instâncias reguladoras
populares, se deixam mobilizar muito mais e tomássemos a própria linguagem religiosa
pelo sensível e pela emoção do que pelos como uma via para uma relação positiva
dogmas e verdades de fé”. das religiões entre si? Afinal, de um ponto
de vista êmico, “de dentro”, dos crentes,
em geral há uma concordância com uma
metarrevelação, um sagrado, que ultrapassa
CONCLUSÃO todas suas formas de materialização. E isso
pode ser base para interações entre prati-
Essas diferentes formas de interação têm cantes de modalidades religiosas específi-
marcado a dinâmica do panorama religioso cas na busca de similitudes, comparações
brasileiro, constituindo domínios ora sin- entre as experiências e “verdades” de cada
créticos, constantemente abertos uns aos sistema religioso, uns em relação aos ou-
outros na forma de empréstimos mútuos, tros11. De fato, esse boom ou efervescência
ora excludentes, marcados pela condenação religiosa contemporânea (equivalente à
e evitação do outro, fruto de uma revalo- crise da modernidade) tem favorecido um
rização do novo pertencimento e desqua- amplo sistema de equivalências entre as 11Emoutrotexto,comentan-
lificação do antigo. Em suma: porosidade religiões e estimulado um circuito que va- doumensaiodeJoséJorge
Carvalho, expressei uma
e animosidade dentro do mesmo campo. loriza a metarrevelação como algo crucial avaliaçãomaiscéticaquanto
Essa polaridade fica a exigir de mentes (Carvalho, 1994, pp. 91-6). Isso pode ser àspossibilidadesdialógicas
no campo religioso. Isso a
formalistas uma perspectiva de integração evidenciado nas feiras místicas, nas cele- partir da ideia de que o
sistêmica, incomodadas pela ambivalência brações ecumênicas, nos centros holísticos pluralismo pode também
estrutural dessa situação. e principalmente no trânsito religioso dos levaraumclimade“suspeita
generalizada” das religiões
Na perspectiva de “arrumar” teorica- indivíduos. umasemrelaçãoàsoutras
mente essa ambivalência, buscou-se a ideia Dessa forma, a experiência secular de quantoasuaveracidadee
santidade(Camurça, 2008,
do “denominacionalismo” norte-americano “sincretismo” do campo religioso brasileiro p.100).
visualizada por Peter Berger, em que as muitas vezes classificada pejorativamente 12Mesmoquandoadiferença
religiões enquanto agências religiosas re- de “mistura”, ou sua dinâmica de “perten- pareceradicaleosestilos
conhecem primordialmente a civilidade de cimento múltiplo”, vista como “falta de religiosos levam ao con-
fronto, comonocasodos
um sistema de regras comuns e competitivas coerência”, ou mesmo a recente postura neopentecostaisemrelação
entre elas, como garantia da livre existência. do “crente consumidor” diante do “super- aos afro-brasileiros, como
observa Silva, homologias
Aplicava-se uma solução da modernidade mercado de crenças”, considerada como podem ser estabelecidas.
visando a uma equalização democrática banalização religiosa, pode, ao contrário, ser Enquanto“nas religiões
afro-brasileiras aceita-se a
“de mercado”, no sentido de equacionar as tomada como indicador de vitalidade de um ‘margem’nãoparatransfor-
divergências entre as verdades elementares “estilo espiritual” de ser e de se relacionar, má-lamasparaconsagrá-la
emseupodercontestador
das distintas religiões. Ou seja, cada verdade criativo, movido pela valorização da diver- (osprópriosdeusespodem
oferece plausibilidade para aqueles que a sidade, reconhecendo sempre positivamente serfalíveis, egoístas, malan-
ela aderem e isso tem de ser reconhecido as contribuições da alteridade12. dros,adúlteros,vingativosou
exercitarem…homoerotis-
por todas as demais. Numa contemporaneidade ainda mar- mo)[…]noneopentecos-
Contudo, mesmo nesses países onde a cada por conflitos e genocídios de caráter talismoabraça-seatodosos
estigmatizadosemarginais
modernidade impeliu o Estado como espaço étnico-religioso, as interações entretecidas (alcoólatras,homossexuais,
neutro a tutelar e funcionar como um ter- no campo religioso brasileiro talvez possam drogados, prostitutas, etc.)
comapromessadelibertá-
tius, regulando a relação entre as religiões, ser ensejo de concórdia para o mundo. losdeseusexus-demôniose
enquanto agências, a principalidade dispen- Talvez o Brasil, com a familiaridade que curá-los.Afinal,aconversão
da‘margem’valoriza’o‘cen-
sada ao tratamento legal, secundarizando a cercou o clima das relações aqui travadas tro’: Deus, bispo, Igreja…”
dimensão simbólica e mística da realidade entre as religiões, repercutindo tanto nas (Silva,2006,p.225).
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suas trocas quanto nos seus conflitos – o e a rua (DaMatta, 1987) e, desse modo,
que pode ser ilustrado por um quadro de qualificando as interações e interlocuções
um programa humorístico que mostrava públicas e institucionais entre as religiões
as controvérsias de uma família brasileira (e destas com as instâncias públicas14) com
composta por um pai evangélico, a mãe uma sensibilidade de entender familiar-
hare krishna e os filhos, um padre, outra, mente a alteridade. Nesse contexto, até as
mãe-de-santo –, esteja em meio a essa divergências e conflitos podem ser vividos
descontração familiar13, amplificando a como “briga de família”, que sempre tende
relação de complementaridade entre a casa à reconciliação!
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