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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

Teologia

Rebecca Domingues

RESENHA: PIEDADE PERVERTIDA, DE RICARDO QUADROS GOUVÊA.

História da Teologia

São Paulo

2021
A obra “Piedade Pervertida” de Ricardo Quadros Gouvêa possui dezoito capítulos.
Começando por uma breve introdução, Gouvêa dá um testemunho pessoal, em que
demonstra sua indignação para com aqueles líderes que discordam de algo como o apelo
para que um indivíduo reconheça Cristo como Salvador. Para o autor, há fundamentos da fé
importantes a serem consumados, e um destes fundamentos é justamente a confissão a
pública. Sua crítica dirige-se ao fundamentalismo, o qual Gouvêa acredita se tratar de um
abandono severo da fé cristã.
É pauta, então, o primeiro capítulo da obra, que carrega o título de “o
esmorecimento do protestantismo brasileiro”. Nele, o autor questiona o abandono de
princípios essenciais do cristianismo por parte das igrejas evangélicas brasileiras. Para
Gouvêa, esse apego ao “evangelicalismo” aparece como um problema para o Corpo, pois
nele encontra-se uma porta certeira para o fundamentalismo e para o individualismo, já que
essa "vertente" foi inspirada pelo capitalismo.
A resposta mais adequada para esse fenômeno, explica Gouvêa, é a volta aos ensinos
da Reforma. Um erro que cometemos é o de olhar para esse feito como um evento histórico
passado, quando, na realidade, ele é um paradigma cristão que deveria nos nortear ainda
hoje. Com os princípios oriundos da Reforma Protestante a Igreja atual entenderia a
necessidade de se conhecer a Deus e de ser subserviente somente a Ele, sabendo analisar
criticamente a postura de uma Igreja que se desvia para longe dos caminhos bíblicos e se
aproxima cada vez mais da deturpação medieval contra a qual os reformadores tanto
lutaram.
O capítulo dois, chamado de “o fundamentalismo como fenômeno religioso”, trata de
uma análise do fundamentalismo presente em diferentes religiões e algumas de suas
características. O autor justifica que o fundamentalismo é uma forma fanática e neurótica de
religiosidade (p. 35) e que sempre demonstra-se quenofóbico (levando em consideração o
termo grego “kainos”, i.e, “novo”). Assim, o fundamentalista sempre se dispõe à guerra
contra qualquer um (ou qualquer coisa) que ele entenda como inimigo, e procura estar
cercado somente de pessoas que também adiram a essa cosmovisão. Não obstante, há certa
ignorância nestes que o fazem se conceber como “donos da verdade”, e suas ideias,
incontrariáveis.
“Os três pilares do fundamentalismo” é o nome do terceiro capítulo, e tem seu
começo com Gouvêa apontando o erro das igrejas em demonizar a cultura e não incentivar
seus membros na produção de arte para além da que tange assuntos paraeclesiásticos.
Outro grande erro apontado pelo autor é o descaso da Igreja para com as mulheres e para
com as minorias de maneira geral, não somente não se opondo à opressão contra estas,
como assumindo a própria posição de opressão. Não obstante, as igrejas falham em ser uma
família heterogênea, e frequentemente, por meio da uniformização de seus membros,
encontram uma forma de manipulá-los. Esse capítulo encerra-se com uma cirúrgica opinião
do autor, que compreende que a teologia é boa quando é missiológica.
O quarto capítulo chama-se “ser cristão hoje”, e nele Gouvêa problematiza o fato de
muitos se auto proclamarem “cristãos” sem serem; ou de se auto proclamarem
"protestantes" sem o serem; assim sucessivamente. De maneira geral, o que definirá um
cristão como tal é seu modus vivendi, que deve estar em conformidade com a oração que
afirma “Venha o Teu Reino; seja feita a Tua vontade, ó Pai Celeste, assim na terra como é no
céu”. Assim, ser cristão, como explica o autor, é ter a disposição de seguir os passos de Cristo
e ser um discípulo deste.
O título “As igrejas” dá nome ao quinto capítulo, e neste o autor afirma que há uma
única igreja, o Corpo de Cristo; esta é santa, universal e fundada em todo ensino apostólico.
No entanto, há uma pluralidade de outras igrejas e, neste ponto, há algumas críticas
direcionadas ao pentecostalismo e ao puritanismo das igrejas históricas, que acabam por se
mesclar com outras filosofias, fugindo da essência apostólica.
No sexto capítulo (intitulado de “os pastores”), Gouvêa compreende e compartilha
sua compreensão de que o pastorado é algo para homens e mulheres muito bem separados
para esse fim. Ou seja, Deus chama pessoas a este ofício, mas há um aproveitamento da
parte de lobos que utilizam o mesmo segundo a própria vontade e sem vocação alguma.
Assim, o verdadeiro pastor deve ser aquele que possui uma vida de discipulado cristão que
serve como um exemplo aos membros. Como ele diz, um “médico de almas”, que se dedica
ao cuidado da vida espiritual de suas ovelhas, influenciando, por fim, a sociedade na qual
está inserido.
“A teologia” é tratada no sétimo capítulo, e neste é tratado a maneira como a
teologia deve ser trabalhada hoje. Em suma, o papel do teólogo, segundo o autor, é
repensar a tradição constantemente. Não é nem repetir, nem rejeitar a mesma, mas, sim,
traduzi-la e atualizá-la. Desse modo, precisa estar em constante contato com as fontes
primárias, mostrando seu vigor e valor, mas a polindo.
“Um programa de ação” é o oitavo capítulo, e encontramos nele algumas
características de movimentos extremistas; algumas delas são a intolerância, o
obscurantismo, o sectarismo, o dogmatismo, o superficialismo bíblico, o legalismo, o
exclusivismo, etc. Cabe lembrar que nesse capítulo Gouvêa guarda críticas severamente
duras ao puritanismo, afirmando que qualquer um que queira abraçar o espírito genuíno da
reforma protestante precisa se afastar do mesmo, e, da mesma forma, do fundamentalismo
e dos carismáticos.
Tocando em tolerância, é justamente esse o tema do nono capítulo: “Tolerância em
vez de intolerância”. Em suma, o autor explica a necessidade de ser tolerante para com as
opiniões diversas, sabendo discutir de maneira decente as divergências existentes no meio
cristão. Algo que ele aprofunda no capítulo dez, “Diálogo em vez de sectarismo”, no qual
compreende que o diálogo é uma implicância natural do ato de tolerar.
Seguindo a estrutura dos “em vezes”, Gouvêa propõe, no décimo primeiro capítulo,
“clareza em vez de obscurantismo”. Ou seja, encoraja o conhecimento de outras ciências
com diferentes cosmovisões, entendendo que isso pode ser benéfico àquele que possui uma
fé firmada na rocha. Mais: acredita que alguém que facilmente perde a fé diante do
conhecimento de outras áreas pode encontrar benefícios em, de fato, perder uma fé falsa e
fraca; assim, o indivíduo poderá encontrar uma fé legítima e ancorada corretamente onde
deve estar. Como ele afirma no décimo segundo capítulo, intitulado de “Espírito irênico em
vez de espírito belicoso”: “O fruto do obscurantismo é a ignorância, e o fruto do sectarismo
é a indisponibilidade e incapacidade para o diálogo. A consequência de tudo isso é o
belicismo” (GOUVÊA, 2012, p. 85).
Próximo a isso temos o dogmatismo, tratado no décimo terceiro capítulo. O que o
autor faz questão de pontuar é que não existe problema em confessar um dogma, mas é
necessário se afastar do confessionalismo [que difere-se de confessionalidade], ou seja, todo
aquele apego aos dogmas de maneira absolutizadora; um apego que impõe dogmas sem
gerar a liberdade de reflexão sobre o mesmo. É necessário que a igreja examine as doutrinas
e veja a necessidade de alterá-las, adaptá-las, atualizá-las ou mesmo conservá-las.
É justamente esse dogmatismo que gera uma presunção epistêmica, colocada em
cheque no capítulo catorze. Para Gouvêa, os fundamentalistas colocam sua tradição
dogmática acima da própria Bíblia, lendo-a de acordo com seus pressupostos dogmáticos
em vez de a lerem para que estes possam ser formados. Essa presunção é bastante vista,
inclusive, nos comentários bíblicos desenvolvidos no Brasil [como ele explica no décimo
quinto capítulo], onde as editoras parecem pender a um fundamentalismo que monopoliza
a interpretação bíblica. Esse mal só pode ser combatido se houver a capacitação do povo
cristão para a investigação acurada das Escrituras, sem que estejam aprisionados a uma
liderança corrupta e manipuladora.
Assim sendo, é necessário pluralidade (como afirma o capítulo dezesseis,
“Pluralidade em vez de exclusivismo ou inclusivismo”), de forma a possibilitar que os
indivíduos apresentem originalidade e diversidade. Além disso, é necessário a quebra de
certos padrões errôneos e bastante exclusivistas, como ocorre com a ideia de que mulheres
não podem e não devem estar envolvidas com a liderança da igreja e com assuntos
profissionais.
Não obstante, a Igreja não pode fechar-se em si mesma. Gouvêa explica no décimo
sétimo capítulo (“Cumprimento do mandato em vez de guetoísmo eclesíastico”) que o Corpo
precisa preocupar-se com mais do que a difusão do Evangelho da graça, mas em
efetivamente aplicar este evangelho na cultura que em vivemos, propagando os valores e
princípios do Reino de Deus e os tornando parte ativa na sociedade brasileira. Assim, a obra
encerra-se no décimo oitavo capítulo, no qual o autor nos instiga a sair do fundamentalismo,
para estarmos abertos ao diálogo que poderá nos fazer crescer enquanto Igreja.

● Considerações pessoais:
A obra de Gouvêa trata assuntos muito pertinentes com relação ao momento que
temos enfrentado hoje; a Igreja brasileira tem passado por crises seriamente relacionadas
ao fundamentalismo e outros extremos com os quais o autor trabalha ao longo de seu livro.
Dessa forma, acaba por ser uma leitura um tanto quanto importante para a realidade
eclesiástica atual no Brasil.
O autor sabe desenvolver suas ideias de maneira bastante clara e inteligível mesmo
àquele que pouco conhece a respeito de Teologia e seus termos. Ele consegue demonstrar
na prática aquilo que propõe teoricamente, fazendo dessa obra uma obra bastante acessível
tanto em linguagem quanto em extensão, já que o livro é significativamente curto, e propõe
discutir os extremos que a Igreja tem passado sem se alongar de forma cansativa.
Por fim, é claro que é possível pontuar algumas poucas coisas negativas: em
momentos bastante específicos temos a impressão de que Gouvêa não apresenta limites
bem estabelecidos a respeito de onde começa e onde termina a tolerância das divergências,
isso não em relação ao respeito que se deve aos indivíduos, mas, sim, em relação ao limite
do diálogo que permite determinadas variações de dogmas, doutrinas, etc. Há, também, em
capítulos como o nono, certa ausência de dados bibliográficos que poderiam incrementar
muito a discussão da obra. No entanto, creio que isso não interfira na boa edificação que o
autor consegue nos trazer ao longo da leitura, e é importante que a igreja se proponha a
uma autoavaliação entendendo as críticas do autor e aprendendo com as mesmas.

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