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“Cristologia do Novo Testamento’’, de Oscar Cullmann, é uma obra dividida em

quatro partes, sendo elas os títulos cristológicos referentes à obra terrena de Jesus,
os referentes à obra futura, à obra presente e à preexistência de Cristo,
respectivamente. O autor defende sua tese, que é dividida e categorizada por meio
destas quatro partes, partindo de um olhar analítico, que abraça a filologia e a
história, examinando cada título conferido a Jesus Cristo de maneira separada,
levando em consideração o idioma original de passagens bíblicas, tal como as
crenças judaicas e helenísticas que poderiam ter influenciado os títulos
cristológicos.
Na tentativa de compreender a funcionalidade e aplicabilidade dos títulos, Cullmann
começa pelo de “profeta”, referente à obra terrena de Cristo. No período
neo-testamentário, havia duas definições, distintas, a respeito do que era um
profeta. A primeira definição tinha o profeta como um entre os muitos profetas que
haviam existido; este era alguém levantado por Deus para revelar sua vontade e,
possivelmente, trazer predições sobre o juízo do Senhor. A segunda, por sua vez,
fazia referência a um profeta escatológico, ou seja, aquele que viria como realização
última de todas as profecias anteriores, trazendo uma mensagem a respeito do fim
dos tempos e preparando o caminho de Yahweh. Por meio da análise filológica e
histórica, Cullmann conclui que Jesus Cristo cumpre o papel de profeta na medida
em que é um pregador, revestido de autoridade, que prepara o caminho de Yahweh.
No entanto, o título de profeta não satisfaz toda a cristologia. Ele não abarca
questões como o Cristo assentado à direita do Pai, o Cristo preexistente, sua obra
redentora ou sua obra expiatória. O título de profeta apenas diz respeito a uma
“missão preparatória”, e não pode explicar toda a obra terrena de Jesus, tampouco a
esperança presente nos cristãos que viveram e vivem posteriormente ao período
neo-testamentário.
O segundo título analisado é o de “Ebed Iahweh”; o “servo sofredor” parece ser uma
figura de grande importância na cristologia. Para Cullmann, o Ebed Iahweh é, na
realidade, o centro da cristologia do NT, tendo como base principal a ideia de
substituição progressiva e de uma aliança. No entendimento do autor, esse título
cabe perfeitamente em Jesus, se relacionando com a obra e vida de Cristo. É
possível concluir que a noção de substituição e aliança eram aspectos presentes na
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obra de Jesus, relacionando-o perfeitamente com o Ebed Iahweh prefigurado na


crença judaica e em passagens do AT.
O terceiro título é o de “Sumo Sacerdote”; a figura do sumo sacerdote possui uma
influência muito importante tanto na crença judaica, como no cristianismo primitivo.
Recorrendo aos idiomas originais, Cullmann mostra que essa figura se revela como
parte essencial na cristologia, relacionando-se, inclusive, com a de Ebed Iahweh. Os
primeiros cristãos reconheceram em Cristo o sumo sacerdote, e tinham essa parte
de sua cristologia fundamentada principalmente no livro de Hebreus. O autor deste
livro tem uma grande preocupação, principalmente no capítulo 7, de apresentar
Jesus como aquele que havia consumado, de maneira absoluta, o sacerdócio.
Dessa maneira, Cristo desqualificaria todo e qualquer outro sacerdote, uma vez que
nele se encontrava a plenitude e o cumprimento da função mediadora sacerdotal.
Esta função, por sua vez, se conecta com a de Ebed Iahweh no sentido de que o
sacerdote oferece o sacrifício, mas o Ebed é aquele que é sacrificado. Dessa
maneira, ao ser sacrificado, Cristo cumpre tanto a função sacerdotal como a função
de servo, pois ele é aquele que dá sua vida voluntariamente (oferecendo o sacrifício
a Iahweh) e morre em favor de muitos (sendo o sacrifício em favor do povo). Dessa
maneira, Jesus como sumo sacerdote, realiza o centro da história da salvação. Por
meio de sua realização sacerdotal, Cristo torna-se, como Cullmann explicará, o
“chefe da nova humanidade” e o “autor da salvação”, oferecendo a possibilidade de
que os homens novamente apresentem-se diante de Deus.
O quarto título, agora referindo-se à obra futura de Jesus, é o de “Messias”; É
possível ver nos Evangelhos (Mc 14.61; 15.2; 8.27; 14.61) que Cristo sempre pareceu
evasivo no que diz respeito a receber o título de Messias; ele não o abraçava,
tampouco o rejeitava. Sempre muito cauteloso em suas respostas àquelas que o
indagavam acerca disso, preferia falar sobre si mesmo como o Filho do Homem.
Isto, no entanto, possui um motivo muito pertinente: as ideias judaicas sobre o
Messias são essencialmente políticas, o que entra em conflito direto com a missão
de Jesus. Cristo não nega o messianismo presente em si, o que ele rejeita é
essencialmente o Messias político esperado pelos judeus. Muito provavelmente o
entendimento messiânico em sua época já não estava atrelado somente a política,
de maneira que ele parece abraçar a figura messiânica em sua abordagem
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soteriológica, mas não em sua abordagem política; assim sendo, a cautela em


responder aquele que o questionam se dá pelo fato de não querer ser visto de
maneira equivocada, tal como a esperança judaica era. Como Cullmann explica,
“Jesus tem a firme convicção de ter de cumprir sua missão pelo sofrimento e pela
morte, não pelo estabelecimento de uma dominação política” (2008, p. 163) e
também “O elemento do messianismo que se pode aplicar a Jesus é o fato de que o
Messias, como tal, realiza a missão de Israel. Porém, a maneira em que Jesus a
cumpre se opõe à esperança judaica, tomada em seu sentido mais restrito” (2008, p.
168).
O quinto título é o de “Filho do Homem”; a figura de Filho do Homem representa um
homem celestial, que julga o mundo e realiza o povo dos santos; percorreu alguns
entendimentos, entre eles a ideia de que Adão, o primeiro homem, se reencarnaria
num evento ‘’escatológico’’. No entanto, em Cristo e posteriormente em Paulo,
veríamos a compreensão mais coerente sobre a implicação do título. O Filho do
Homem une-se, então, com a figura de Ebed Iahweh, concretizando-se num homem
histórico, Jesus Cristo, que não é o primeiro homem Adão, mas repara as faltas
deste. Essa noção caiu em esquecimento pouco a pouco, mas a discussão a
respeito deste título cristológico é essencial para o debate da cristologia uma vez
que Jesus o abraçou mais veementemente do que a qualquer outro, e de mesma
sorte, ele também engloba um problema presente em toda a história da Igreja: a
dupla natureza de Cristo.
O sexto título, agora referente à obra presente de Jesus, é o de “Kyrios”; partindo de
uma análise filológica e histórica do vocábulo ‘’Kyrios’’ entre as religiões helenísticas
e a crença judaica, tal como a fé da Igreja primitiva, Cullmann conclui que o senhorio
atribuído a Jesus por meio do título lhe é, efetivamente conferido, por meio de sua
glorificação, e representa a submissão de todas as coisas, dentre elas potestades, a
si, tal como a exaltação de seu nome sobre todo nome, ‘’o único soberano ao lado de
quem não existe outro”, e sua preexistência. Este senhorio é exercido sobre o mundo
visível e invisível, e acabará por ser cedido a Deus Pai após o regresso de Cristo
Jesus.
O sétimo título é o de ‘’Salvador”; este título, como o próprio autor afirma, “pressupõe
toda a obra de Jesus realizada e sancionada por sua Ascensão” (2008, p. 315). Em
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suma, Cullmann defende a idéia de que o título de Salvador aparece como um


complemento de ‘’Kyrios’’, uma vez que Cristo como salvador é derivado da fé no
Cristo ressurreto e glorificado, que já nessa condição atrai para si o título de
“Senhor”.
O oitavo título, agora referente à preexistência de Cristo, é o de “Logos”; a noção
pagã de ‘’Logos’’ teve alguma participação na forma como a noção cristã se
construiu, isto porque o pensamento cristão vale-se do pensamento pagão não
como uma forma de aplicação a Jesus, mas justamente como uma forma de
submeter a interpretação não cristã ou pré-cristã à revelação de Deus em Cristo. No
seio pagão, “Logos” é um ser mitológico, portador da revelação e, em certo aspecto,
um Salvador revestido de forma humana, mas nunca encarnado na mesma.
Entretanto, a noção que de fato mais participa da construção do entendimento de
Jesus como “Logos” é a noção judaica presente no AT. Como expressa Cullmann:
Em resumo, pode-se dizer que para o Novo Testamento a cristologia do
Logos é constituída pelos dois elementos seguintes: o primordial é a
certeza de ser a vida de Jesus o centro de toda a revelação de Deus,
portanto, a certeza de que Jesus é, em sua própria pessoa, aquilo que ele
prega e ensina; com auxílio do relato do Gênesis, que narra a criação pela
"Palavra", uma reflexão teológica acerca da origem de toda a revelação se
apoia sobre esta certeza. O elemento secundário é a utilização de
especulações contemporâneas sobre as hipóstases divinas. No entanto,
esta utilização não chega a um universalismo sincretista, mas a um
universalismo propriamente cristão (2008, pp. 351, 352)
O penúltimo título é o de “Filho de Deus”; analisando este título entre os berços
helenístico e judaico, Cullmann compreende que Jesus, enquanto filho de Deus, em
nada se assemelha à perspectiva helenística, que compreende esta figura partindo
de um ponto de vista politeísta, onde um homem é dotado de “forças divinas”. Em
contrapartida, é possível notar, em partes, uma assimilação entre a fé judaica e a
consumação do título de Filho de Deus em Jesus Cristo, na medida em que Israel é
visto como filho de Deus, tal como o rei e todo aquele que é chamado e vocacionado
a uma missão divina também o são. Dessa maneira, o título de Filho de Deus,
quando relacionado às crenças judaicas, se concretiza em Cristo por meio de sua
obediência. No entanto, essa perspectiva não é capaz de compreender por inteiro o
sentido de Filho de Deus, uma vez que este título, quando aplicado a Cristo,
expressa, em sua essência, a unidade de Jesus com Deus, significando a
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participação total de Cristo na divindade do Pai. Não obstante, há uma relação entre
o título de Sumo Sacerdote e o de Filho de Deus na medida em que o Único Filho,
participante da criação e que veio do Pai assume a qualidade do homem, mediando
a humanidade e Deus.
O último título é o de “Deus”; em resumo, as passagens no qual o título de “Deus” é
atribuído a Cristo revelam ao menos duas coisas: em primeiro lugar, há uma relação
com a elevação de Jesus à dignidade de Kyrios, e em segundo, há por trás a idéia de
que Jesus não somente traz a revelação do Pai, mas é esta revelação.
Dessa maneira, Cullmann conclui a obra “Cristologia do Novo Testamento” por meio
de uma análise filológica e histórica, compreendendo que cada concepção particular
aponta para uma compreensão geral da obra de Jesus. A diversidade de títulos, no
fim, está unida numa mesma história da salvação por meio do esquema do Cristo
encarnado, o que volta, o presente e o preexistente. Tal convicção foi, como bem
mostrado pelo autor, abraçada na Igreja primitiva e deve continuar a ser estudada e
trabalhada pela Igreja contemporânea.

● Conclusão
A obra de Cullmann é rica não somente por proporcionar um estudo completo a
respeito dos títulos cristológicos, mas também pela forma como o autor consegue
dialogar com diferentes vertentes da teologia cristã. Sua tese se comunica tanto
com o liberal, como com o conservador, sendo uma obra intermediária e bastante
imparcial na medida do possível. Apesar de certos aspectos serem de maior
dificuldade, a leitura é bastante envolvedora e consegue prender o leitor e fazê-lo
enxergar os títulos atribuídos a Cristo Jesus de forma muito mais profunda e
consistente. Raros momentos são os que trazem alguma discordância, isto não pela
vertente teológica do leitor, mas pela riqueza de argumentos bem fundamentados
usados por Cullmann. A leitura de “Cristologia do Novo Testamento” foi, sem sombra
de dúvidas, uma das melhores leituras do ano de 2020.

Referência Bibliográfica:

CULLMANN, Oscar. Cristologia do Novo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2008.

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