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Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Programa de Pós-Graduação em Estudos Urbanos e Regionais

Artigo apresentado ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Urbanos e Regionais em


cumprimento às atividades avaliativas da disciplina EUR1007 - Globalização, Trabalho e
Sociedade em Transformação - T01 (2021.1 - 3M456) em 03/08/2021.
Docente: Ana Patrícia Dias Sales
Discente: Analúcia de Azevedo Silva.

Título: Trabalho e smart city: ponderações sobre o teletrabalho e a desigualdade digital.

INTRODUÇÃO

A smart city vem se projetando em um contexto de economia Mundializada


(CHESNAIS, 1996), ou, como denomina Sassen (2010), globalizada, inserida em governos
neoliberais (HARVEY, 2004) que, por vezes, podem obstar as condições de acesso aos seus
supostos benefícios à sociedade como um todo. No bojo dessas barreiras de acesso está, por
exemplo, a forma de entrada desse novo paradigma de cidade na agenda pública (ciclo da
política pública) esclarecida no artigo. Não menos importante, pode-se dizer, é a total
negligência da proposta smart city frente à realidade do trabalhador urbano nos países com
significativas desigualdades sociais, como é o caso do Brasil.

A ideia de uma cidade inteligente, ligada à questão da inovação urbana e tecnológica,


que promete ser instrumento de modernização, crescimento inclusivo e sustentável,
melhorando a qualidade de vida das pessoas pelo intenso uso de infraestruturas smarts, não
poderá incluir aquele trabalhador com pouca ou nenhuma condição de acesso ao trabalho
digital e/ou trabalho remoto por ser este um excluído digital (SORJ, 2003). A desigualdade
digital implica, assim, no acesso direto às vagas abertas ao teletrabalho (BRIDI, 2020).

A partir da problemática apresentada e da hipótese levantada acerca da exclusão


digital no mundo do trabalho no século XXI também no contexto de uma agenda de política
pública simpática à proposta smart city, o artigo apresenta para o debate as discussões acerca
da sociedade no âmbito do teletrabalho, as ideias de Antunes (2018) e Bridi (2020) trazendo à
baila alguns diálogos que podem se estabelecer entre smart city, poder político
(POCHMANN, 2001), teletrabalho e emprego no mundo da globalização (DUPAS, 2001).

O objetivo do artigo não é provar que a smart city é responsável pela exclusão digital
nos países historicamente desiguais. Outrossim, ele se propõe a refletir sobre as possibilidades
de aumento do desemprego na referida cidade em razão do apelo desta por um
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desenvolvimento urbano (social e econômico) umbilicalmente e funcionalmente dependente


de ferramentas e equipamentos como computadores e internet.

No sentido de alcançar a coesão das ideias, o artigo está estruturado em três (03)
partes. Na primeira, encontram-se algumas reflexões sobre o poder político e a formação da
agenda pública no Brasil; conceituações e revisão da legislação sobre o teletrabalho e as
possíveis implicações dessas modalidades na cidade do paradigma smart. Na segunda parte,
tem-se a descrição dos atributos de uma smart city. As considerações gerais compõem a
terceira e última parte deste artigo acadêmico que, refletindo sobre a opção por uma cidade
digitalizada, questiona quais as perspectivas de emprego e renda para o trabalhador comum
menos escolarizado e pobre na cidade inteligente.

1. Poder e agenda pública.

1.1 – Política, agenda e trabalho.

No início do século XXI, como bem acentua Pochmann (2011), o tema do trabalho
voltou ao centro do debate, revestido de novas questões diante da predominância do
pensamento conservador e das políticas de corte neoliberal no Brasil, evidenciados nos
governos de Sarney (1985-90), Collor (1990-92) e Cardoso (1995-2002). Governos que
constrangeram por mais de duas décadas as oportunidades de crescimento do emprego e da
renda em decorrência da adoção de uma agenda pública de regressão do papel do Estado e do
enfraquecimento das forças do trabalho (POCHMANN, 2011).

De maneira geral, as discussões sobre governo e poder trouxeram no bojo de suas


reflexões a questão dos interesses econômicos mais salientes em nível local, quando
observado o padrão de financiamento das campanhas eleitorais, influenciado pelas diferentes
orientações ideológicas e pela composição diversa dos atores econômicos envolvidos nos
rumos do desenvolvimento urbano das cidades. Nas trilhas do neoliberalismo, as cidades
foram fortemente transformadas pela financeirização da economia e pelo aprofundamento
mundial das desigualdades com rebatimento no mundo do trabalho, com fortes implicações na
geração de emprego e renda e do desmonte da legislação de proteção social e trabalhista.
Sobre o referido desmonte, Dupas (2001) esclarece que foi uma exigência dos capitais
globais, ampliando a destruição dos direitos sociais, arduamente conquistados pelos
trabalhadores, desde a Revolução Industrial e, especialmente, após os anos de 1930, inclusive
no Brasil.
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A formação da agenda nos anos de 1990, década de efervescência das reformas


neoliberalismo no Brasil, significou a desarticulação do regime de bem-estar social, e o
emprego sofreu retrocessos de avanços importantes resultando em alto desemprego e forte
precarização das ocupações. A consequência foi o decréscimo da participação do rendimento
do trabalho na renda nacional e a maior desproteção social entre ocupados.

Em razão do que Pochmann (2011) observou acima, é importante entender que a


formação da agenda pública se dá por meio de interações entre os atores políticos envolvidos
na sua elaboração. Isso inclui líderes políticos, grupos de interesse e burocratas. Os atores
envolvidos com o processo eleitoral, como os partidos políticos e as campanhas dos
candidatos, também afetam a agenda de políticas públicas. Há, então, grupos de atores mais
visíveis e grupos escondidos no ciclo das políticas públicas (KINGDON, 1995). A
identificação dos atores, seus recursos e potencial de influência na formação da agenda,
auxiliam na análise sobre o caráter da política pública.

Sabe-se que para sair das crises cíclicas, os operadores do capital inventam novas
formas de lucro e suas estratégias contam com o auxílio direto do poder político. Antunes
(2018) enfatiza que quando a crise mundial de 2008 alcançou os países capitalistas centrais, o
governo brasileiro (ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva) adotou medidas no sentido de
incentivar, através do Estado, a retomada do crescimento econômico, por meio da redução de
impostos em setores fundamentais da economia, como o automobilístico, o de
eletrodomésticos e o da construção civil, sendo todos estes expressivos incorporadores de
força de trabalho. Essa agenda pública foi continuada no governo da ex-presidenta Dilma
Rousseff com ênfase no crescimento econômico baseado na expansão do mercado interno e
benefícios para os capitais da indústria automobilística e da construção civil, por exemplo.

Passados os anos dos governos de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff que
apresentaram uma variante de agenda pública social-liberal (ANTUNES, 2018), que, na
medida do possível, e mesmo com momentos de contradições nessa agenda, buscou a
universalização dos direitos sociais, a seguridade social, a proteção social – que se traduziram
em políticas efetivas de caráter reformista/redistributivo, o Brasil retornou à agenda neoliberal
que reivindica a diminuição da participação do Estado como agente econômico, cedendo
assim espaço para a primazia de instrumentos e atores do mercado na consecução de objetivos
sociais. Antunes (2018) chama esse nefasto momento da agenda pública brasileira de „a
contrarrevolução neoliberal e o desmonte da legislação social do trabalho‟.
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Os fatos e eventos citados demonstram a relevância da ampliação das reflexões sobre


interesse e ideologia na formulação da agenda pública que pode ser mais transparente e
participativa - bottom-up, ou mais pró-mercado e conservadora - top-down (KINGDON,
1995). É nesse contexto de contrarrevolução neoliberal e de desmonte da legislação social do
trabalho que o presente artigo, a seguir, apresenta uma discussão travada por Bridi (2020)
acerca do trabalho na atualidade representado aqui na atividade ‘home office’ e/ou remoto –
uma modalidade do „teletrabalho‟, na qual ela a conceitua e analisa as condições do
teletrabalhador no Brasil. .

1.2 Teletrabalho e a exclusão digital.


O que é teletrabalho?

Bridi (2020) reúne em sua obra os principais conceituadores da modalidade


teletrabalho. Ela traz a visão de Harvey (1993), na qual este considera ser uma modalidade
advinda da revolução informacional e da comunicação cujo marco temporal data dos anos
1970, institucionalmente adotadas pelas empresas e instituições públicas que demandam
novas aprendizagens e mudanças culturais, alinhadas ao regime de acumulação flexível. Nas
palavras de Castells (1999), deve ser aquela que apoia-se na flexibilidade da produção, dos
processos e das relações de trabalho, podendo ser realizado por trabalhadores com ou sem
vínculos formais de trabalho, público e/ou privado.

Bridi (2020) afirma que é uma modalidade alternativa para reduzir o movimento de
deslocamento casa-trabalho-casa também denominado de „home office‟ ou trabalho remoto. É,
sobretudo, uma opção em atividades econômicas privadas e públicas, cujo trabalho pode ser
realizado a partir da combinação dos meios de comunicação e das máquinas informacionais,
isto é, computadores e softwares (programas) que permitem a produção, a organização e a
distribuição de bens e serviços. Apesar de críticas e resistências, é um modelo tendência no
mundo corporativo. Em sua obra ela também registra que a Organização Internacional do
Trabalho (OIT), entende que trata-se de um trabalho doméstico realizado por meios
eletrônicos, mas que passa a “englobar formas mais complexas que abrangem uma ampla
variedade de regimes flexíveis com diferentes combinações de locais de trabalho: na sede, nas
instalações dos clientes, nos centros satélites ou em casa” . Bridi (2020).

Gunther e Busnardo (2016), também referenciados por Bridi (2020), acrescentam que
o trabalho remoto se refere àquele realizado exclusivamente na residência do trabalhador, por
isso é usado também como sinônimo de home office (escritório em casa). A autora considera
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uma conceituação imprecisa, pois o teletrabalho pode ocorrer nas dependências da empresa. O
que ela identifica como característica do trabalho remoto são suas ferramentas de ação prática,
a saber, realizá-lo em um computador, notebook, tablet ou smartphone, acessando, quase
sempre, plataformas digitais (e-mail e sistemas eletrônicos) ou redes em redes sociais como
Whatsapp, Instagram, Skype ou Facebook.

A autora pontua que o teletrabalho possui vantagens que podem assim ser resumidas:
1) permite uma melhoria na gestão dos trabalhadores; 2) promove maior agilidade quanto às
decisões; 3) permite um maior controle dos dados e informações históricas (dada à facilidade
de seu armazenamento, e acesso a qualquer tempo e lugar) e; 4) resulta em redução de custos
para as empresas que estabelecem ambientes virtuais de trabalho (dispensa de transporte,
alimentação, aluguel).

Quanto às desvantagens do teletrabalho, Bridi (2020) afirma que pode-se dizer: 1) há


uma mudança quanto à posse e ao uso dos meios e ferramentas de trabalho e de produção, e
isso impacta mais negativamente na vida do trabalhador; 2) o trabalhador partilha com a
empresa seus equipamentos informáticos para a realização do trabalho; 3) o teletrabalhador
assume os gastos de consumo de energia, internet, entre outros e; 4) carga de trabalho
ampliada em razão da imprecisão do tempo de trabalho visto que o trabalhador se mantém
vinte e quatro horas conectado com a empresa por meio das mais variadas plataformas ou
aplicativos.

Quem é o teletrabalhador?

Conforme documento da OIT (2016), em razão da dificuldade de se estabelecer uma


definição comum do termo teletrabalho, pois “ três critérios conceituais principais envolvem a
modalidade: a) o modo de organização do trabalho; b) o local de execução e; c) a tecnologia
utilizada”. A regulamentação dessa modalidade nos diversos países observados por Bridi
(2020) expressa tendências de garantir segurança jurídica para as empresas, deixando lacunas,
ou mesmo abismos, na legislação que não abarca as diversas modalidades de contratação
flexíveis que se aprofundaram com as inúmeras reformas laborais no século XXI.

Nesse contexto, os teletrabalhadores são aqueles com contratos formais de trabalho,


excetuando-se os funcionários de call centers, por exemplo, e que foram recrutados
diretamente como teletrabalhadores e/ou que optaram por essa modalidade de trabalho no
decorrer da sua trajetória na empresa. A OIT estabelece diversas recomendações gerais que
podem orientar a realização do teletrabalho, considerando jornadas, proteção à maternidade e
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aquelas referentes às responsabilidades familiares, atributos que ajudam a compreender quem


é o teletrabalhador.

Como se estabelece a relação de empregado e empregador no teletrabalho?

Essa pergunta merece, antes de tudo, entender como se organiza o modo de trabalho,
onde ele ocorre e em quais condições. Bridi (2020) explica que o modo de organização dessa
modalidade de trabalho relaciona-se com a sua localização, que pode ser fixa ou móvel. Ou
seja, ela pode ocorrer na casa do trabalhador (home office); nos escritórios coletivos
denominados em língua inglesa como coworking; em escritórios satélites (filiais), que são
extensões de uma empresa central (matriz); em telecentros. Também é considerado
teletrabalho aquele realizado em viagens de negócios, trabalho de campo ou nas instalações
de um cliente.

Em todos esses casos, a frequência do teletrabalho pode ser remota em todos os dias
da semana ou híbrido de forma intercalada entre alguns dias ou meses. Feitas essas
considerações, importa dizer que a relação do empregador x empregado na iniciativa privada,
por exemplo, se dá por meio de contratação via Consolidação das Leis de Trabalho (CLT);
Pessoa Jurídica (PJ) ou através da pessoa jurídica Microempreendedor Individual (MEI) em
jornadas de trabalho, geralmente fixas, mas que também podem ser de jornadas totalmente
flexíveis sem hora para começar e para terminar. A relação empregatícia no teletrabalho
também por ser eventual e sem contrato.

E a legislação para o teletrabalho?

No Brasil, no ano de 2017, a Câmara dos Deputados aprovou a Reforma Trabalhista


sob a Lei nº 13.467/17, ampliando a flexibilização das relações entre patrões e empregados.
Historicamente, esse movimento para flexibilizar os contratos de trabalho vem avançando
paulatinamente no Brasil numa agenda neoliberal. Dias (2014), recorda que o Projeto de Lei
4.302, aprovado também em 2017, permitiu a modalidade de trabalho terceirizado de maneira
ampla, geral e irrestrita. O projeto estava engavetado desde o ano de 1998 no período da
gestão de Fernando Henrique Cardoso (contrarrevolução neoliberal). Ele foi desengavetado,
aprovado em regime de urgência e sancionado pelo presidente interino Michel Temer em 22
de março do citado ano. Os passos de Cardoso e Temer abriram as portas para a tese do
Estado mínimo e impulsionaram a flexibilização dos contratos de trabalho, incluindo o
teletrabalho.
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Quanto ao teletrabalho, a referida reforma trabalhista de 2017 limitou-se a estabelecer


na CLT, em seu artigo 75, alíneas “a”, “b” e “c”, a referida modalidade como uma prestação
de serviços fora da empresa (distinguindo do trabalho externo) e as condições de alteração
(variações) da modalidade, sobre o comparecimento ser ou não na empresa, sendo que as
condições devem ser estabelecidas em acordos individuais, o que segundo (LIMA & BRIDI,
2019) cristalizou uma das mudanças mais perniciosas promovidas pela reforma trabalhista, a
saber, o que vale de fato é o negociado sob o legislado.

Além das desvantagens do teletrabalho listadas acima por Bridi (2020) e de uma
legislação desfavorável ao teletrabalhador brasileiro, um fator determinante, discutido na obra
de Sorj (2003), reside na distribuição desigual do acesso a computadores e Internet no país.
São os ricos que primeiramente passam a usufruir das vantagens do uso e/ou domínio desses
dois elementos novos no mercado de trabalho. É precisamente a falta destes que aumenta as
desvantagens dos grupos excluídos, ou seja, dos mais pobres. Em ambos os casos, os novos
produtos TICs aumentam, em princípio, a pobreza e a exclusão digital.

É notório que, à medida que o sistema produtivo se informatiza, se vale da telemática


e em consequência, muitas vezes do teletrabalho, a certeza de que é necessário dominar esse
instrumento para assegurar maiores chances de trabalho emerge rapidamente entre os diversos
setores sociais, uma vez que seu uso passa a ser encarado como condição para a obtenção,
também, de trabalho e renda. As novas tecnologias da informação aumentam a desigualdade
social, de forma que a universalização do acesso não é mais do que a luta por um novo
nivelamento das condições de acesso ao mercado de trabalho (SORJ, 2003).

É nesse contexto que o artigo inicia o debate sobre a referida modalidade de trabalho
no centro de um desenvolvimento urbano pautado na ideia smart e materializado em projetos
urbanos como a smart city. Esse modelo de cidade é promovido via inovação tecnológica e
suas soluções inteligentes, disseminadas em discursos mercadológicos e debatidas em âmbito
acadêmico. Esse investimento ocorre mesmo diante das inegáveis reproduções de
desigualdades sociais evidenciadas em países pobres e suas cidades de infraestruturas
precárias e com tendência a se estender para um novo tipo de diferenciação: a desigualdade
digital. Importa, portanto, definir aqui o que é uma smart city para em seguida refletir sobre o
teletrabalho e a exclusão digital na cidade global e neoliberal.
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2. O que é a smart city?

Hoje, a agenda pública e privada, está às voltas com o paradigma smart (esperto;
inteligente). Apostas na transformação de cidades clássicas em smart cities já se espraiaram
por todos os continentes. Há experiências na Europa, em cidades como Barcelona (Espanha) e
Águeda (Portugal); na América do Norte, em Boston (USA) e Toronto (Canadá); na Ásia,
Dubai (Emirados Árabes Unidos) e Songdo (Coreia do Sul); na África, em Maputo. Na
América Latina, no Brasil, de acordo com o Instituto Brasileiro de Cidades Inteligentes,
Humanas e Sustentáveis (IBCIHS, 2020), muitas cidades também abraçaram a proposta.
Mundialmente, são cidades das mais variadas dimensões geográficas, adensamento
populacional e desenvolvimento sócio econômico, investindo no modelo.

Dessa forma, a agenda pública tem se centrado no investimento em Cidades


Inteligentes que têm se tornado veículo de projeção futurista para as cidades. No Brasil, como
um mercado deveras promissor, surgem no contexto do paradigma da inovação, diversas
iniciativas que estão se concretizando em projetos inseridos na abordagem top-down: Smart
City Laguna/CE e Região Metropolitana de Natal; Projeto Itatiba + Inteligente/SP; Cidade
Inteligente Búzios/RJ; #POAdigital/RS, Programa Aracaju Humana, Inteligente e
Criativa/SE, etc. (AUNE, 2017). Parte dessas ações se deu pela relação direta da proposta
smart com o mercado imobiliário.

Há um fetiche na teoria neoliberal nas mudanças tecnológicas. Nele, se crê que para
todo e qualquer problema há um remédio tecnológico, uma solução pela via do mundo
informacional, levando assim o mundo, mais uma vez, a uma ciranda de novas feitiçarias
tecnológicas, deixando evidente uma onda de inovação que não se sabe efetivamente de onde
virá, embora sejam as principais candidatas àquelas vindas dos Estados Unidos da América
(HARVEY, 2004).

Nesse sentido, o uso das novas tecnologias e inovações para resolverem os problemas
das cidades tais como governança, mobilidade, energia, comunicações, saúde, educação,
segurança, habitação, meio-ambiente, desenvolvimento econômico, envolvimento
comunitário, etc., surgiram paulatinamente nos últimos anos por meio de propostas como as
de Cidade Digital (digital city), Cidade do Futuro (future city), Cidade Global (global city),
entre outras.

A “smart city” é certamente um dos conceitos “smart” mais proeminente a conquistar


a imaginação pública e privada na última década. Também é um dos termos que traz mais
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consequências e é da maior importância política ao informar e moldar o trabalho de


planejadores urbanos, arquitetos, operadores de infraestrutura, incorporadoras imobiliárias,
secretários de transporte, prefeitos e indústrias inteiras (MOROZOV, E. & BRIA, F., 2019).

O termo Cidades Inteligentes surgiu em princípio nos EUA entre o staff das empresas
International Business Machines Corporation (IBM) e Cisco Systems (Cisco) que através do
uso de TICs, propunham a digitalização das cidades como ferramenta para assessorar as
administrações na correção dos seus diversos problemas. É um termo cunhado por vários
autores os quais têm em comum o entendimento de que Cidades inteligentes (smart cities) são
aquelas que possibilitam o empoderamento e a melhoria na qualidade de vida da população,
que utilizam as Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) como ferramenta para a
melhora na infraestrutura e nos serviços da cidade e na otimização do uso dos seus recursos
(KON; SANTANA, 2016).

Segundo os autores, o mais intrigante é que parte desses conceituadores não estabelece
por qual meio tudo isso deve ser alcançado, enquanto outros buscam definir que o alcance de
uma smart city se dá através da construção de uma infraestrutura tecnológica para melhorar os
serviços da cidade, ou seja, uma cidade inteligente é aquela que garante a implantação e o uso
de coisas tais como rede de fibra óptica, sensores, radares e etc. O artigo assume o conceito de
smart city cunhado por Mendes:

Genericamente, pode-se conceituar uma smart city como uma cidade que,
através de uma visão holística, multidimensional/multiparticipativa, e com o
uso intensivo de recursos tecnológicos, é capaz de promover um crescimento
inclusivo e sustentável, com a maximização da eficiência na alocação dos
seus recursos, visando a melhor qualidade de vida da sua população. O uso
de tecnologias digitais, e consequente geração extraordinária de dados,
possibilitariam estratégias mais eficientes de gestão, com maior rapidez de
respostas (muitas vezes em tempo real). (MENDES, 2020. TD. 011 p. 8).

Nesse contexto, Morozov & Bria (2019) atenta para uma necessária reflexão sobre a
geopolítica da pauta das cidades inteligentes. O autor questiona o motivo, por exemplo, da
presença da proposta de smart cities na lista de políticas oficiais prioritárias da missão
europeia do Departamento de Comércio dos Estados Unidos estarem postas ao lado do
Acordo de Parceria Transatlânticas de Comércio e Investimento (TTIP), bem como do
Mercado Único Digital. Ele também questiona quais os verdadeiros interesses das grandes
companhias de tecnologia alemãs, chinesas e americanas ao disputarem os mercados que
intentam desenvolver smarts cities. Segundo ele, a Índia pretende desenvolver mais de cem
smart cities nos próximos anos investindo cerca de um trilhão de dólares.
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Não faz muito sentido construir uma smart city não neoliberal, libertada da
Cisco e da IBM, para no fim descobrir que ela estava desde sempre
subjugada às maquinações do Google ou da Uber. É evidente que o ponto
nevrálgico aqui é uma interpretação específica do caráter smart, mas antes
suas consequências políticas e econômicas – que em geral continuam as
mesmas, independentemente de os serviços em questão serem ou não
caracterizados como “smart” ou apenas como “inteligentes”, “interativos”.
(MOROZOV, E. & BRIA, F., 2019).

A respeito dessas desconfianças, Morozov & Bria (2019) diz ser prudente pesquisar as
ligações existentes entre as infraestruturas digitais que remodelam o cenário digital das
cidades (como câmeras, algoritmos, sensores, telas, roteadores, telefones celulares e muitos
outros ingredientes que emprestam o smart às “smart cities”) e os projetos políticos e
econômicos urbanos atuais prestes a ser implementados. Somente por meio dessa investigação
se encontrará resposta para o verdadeiro intuito do embarque na smart city.

3. Ponderações e conjecturas sobre o teletrabalho na smart city.

As crises cíclicas do capitalismo levam inexoravelmente os operadores do capital a


reinventarem formas de lucro, e o neoliberalismo tem sido a expressão mais aguda desse
embate no qual os agentes do livre mercado e comércio, detentores da propriedade privada,
saem fortalecidos. Em contraposição a isso, Harvey (2008) sugere que uma importante luta
política deve ser travada contra a natureza intensamente antidemocrática do neoliberalismo
fortemente apoiado pelo autoritarismo dos neoconservadores. É imperioso, segundo ele,
desacreditar o conceito torpe e danoso de liberdade sobre o qual o neoliberalismo se erigiu.

Ao mesmo tempo, Mendes (2020. TD. 013), alerta que sem a redução da desigualdade
socioeconômica ampliada pelo neoliberalismo haverá também exclusão digital, o que
praticamente torna impossível, no redesenho do espaço urbano, que toda a população se
favoreça dos proveitos gerados pelas novas tecnologias de forma inclusiva e democrática.

É nesse contexto que a política de cidades inteligentes vem sendo implementada no


Brasil, ao ingressar paulatinamente na agenda pública, por meio de políticas do tipo top-down,
forjadas por decisões econômico-ideológicas materializadas na coalizão urbano-tecnológica-
financeira (público-privadas) e apartada da agenda pública social-liberal. É mister esclarecer
que o marketing e a promoção das cidades inteligentes podem gerar uma grande
competitividade, contribuindo para tomadas de decisão ditadas por interesses comerciais,
assumindo uma enorme distância da escala humana.
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A opção por smart cities trará para as cidades de maneira universal as soluções
urbanas e econômicas mais adequadas, incluindo as mais variadas classes de trabalhadores
nas benesses desse modelo de cidade ou o modelo servirá como estratégia voltada às
necessidades do empregador? O teletrabalho, por sua característica flexível nos processos de
produção e nas relações de trabalho, bem como por se tratar de uma modalidade que ocorre a
partir do uso imprescindível do computador e da internet, empurrará o trabalhador sem
qualificação adequada para uma condição de pleno desemprego?

A pertinência dessa inquietação reside no fato, por exemplo, daquilo que Dupas (2001)
evidenciou sobre o setor de serviços ter sido a grande esperança de geração de empregos na
segunda metade do século XX, em razão da chegada e uso intensivo das novas tecnologias
poupadoras de mão-de-obra na área de informática, automação e teleprocessamento. O autor
assevera que o que se viu na prática, foi que a inovação festejada causou mais desemprego na
área de serviços, até mesmo do que no setor industrial, justamente pela falta das qualificações
requeridas para os novos postos de trabalho. Isso aconteceu porque as habilitações
acumuladas dos trabalhadores da referida área não tinham relação com as novas tecnologias e
estes tiveram os seus postos de trabalho destruídos, alterando o equilíbrio de forças entre
diferentes tipos de trabalhadores. Esse fenômeno poderá se repetir no âmbito da cidade
inteligente e do trabalho online (teletrabalho, home Office, remoto, digital, etc.)?

Pelo exposto, as cidades do século XXI, tornadas ou já nascidas inteligentes (smart) se


tornam uma incógnita quanto à concretização dos seus objetivos de promover um crescimento
inclusivo e sustentável por meio das tecnologias digitais, pois, o modelo idealizado pode não
abranger o conjunto da sociedade e se tornar mais um instrumento reprodutor de mais
distorções e injustiças sociais como a desigualdade digital. Quanto ao teletrabalho, Antunes
(2018) observa de maneira muito incisiva que este é a entrada para a eliminação dos direitos
do trabalho e da seguridade social que devem ser de responsabilidade das empresas. Outro
fator negativo é o de incentivar o trabalho isolado, sem sociabilidade, desprovido do convívio
social e coletivo e sem representação sindical.

A partir do pensamento de Antunes (2018), pode-se dizer que é, também, na desejada


smart city que o capitalismo informacional e digital poderá aprimorar sua engenharia de
dominação, azeitado desde o século passado por meio do mito criado em torno do avanço das
tecnologias da informação e comunicação (TICs). Algo, que, como uma certeza de felicidade
humana, trazida pelo teletrabalho (on-line, digital, informacional) para a redenção da classe
trabalhadora, ainda não se consolidou.
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REFERÊNCIAS

ANTUNES, Ricardo. O privilégio da Servidão: o novo proletariado de serviços na era


digital. (cap. I; Fotografias do trabalho precário global/ Cap III: Infoproletariado,
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DIAS, Ana Patrícia. A Terceirização da força de trabalho: Precarização, Desigualdades e
conflitos. Natal/RN: EDUFRN, 2014. (. Cap.IV).
DUPAS, Gilberto. Economia Global e Exclusão Social: pobreza, emprego, Estado e o
Futuro do capitalismo. (cap.III).São Paulo: Paz e Terra, 2001.

BRIDI, Maria Aparecida. Teletrabalho em tempos de pandeia e condições objetivas que


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CHESNAIS, François. A Concentração de Capital e operações descentralizadas: empresas-
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HARVEY, David. A acumulação via espoliação (Cap.IV). In: O novo imperialismo. São
Paulo: Edições Loyola, 2004.
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