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“Como trabalhar com sonhos na perspectiva junguiana?


Por: Igor Fernandes
É uma dúvida recorrente. Afinal de contas, o que fazem os junguianos com os sonhos?
Tentaremos responder tendo em vista o modo como Jung trabalhava, suas diferenças em
relação a Freud e apontaremos para o modelo de James Hillman como uma possibilidade viável.
Não há em toda obra de Jung um único volume dedicado exclusivamente aos sonhos e sua
interpretação. Diferentemente de Freud e seus dois volumes de “A interpretação dos sonhos”, os
artigos sobre sonhos de Jung estão espalhados por alguns livros das obras completas.
Entretanto, isso não significa que este autor dava menos importância aos sonhos que o outro,
pelo contrário, Jung apresentou nova abordagem para com os conteúdos oníricos. Essa nova
maneira de lidar com os sonhos estava postulada em cima de uma perspectiva de finalidade em
contraposição à maneira causal usada pela psicanálise. Mais adiante falaremos mais sobre estas
perspectivas. Antes, gostaria de posicionar o interesse de Jung pelos sonhos sem muita demora.
Foi pela via do sonho que se deu o encontro e desencontro entre Jung e Freud. Não nos
esqueçamos que foi através da leitura de “A interpretação dos sonhos” que Jung “conheceu”
Freud. Ali estava escrita uma teoria que encontrava eco em suas pesquisas e o fascinava. E foi
também através de um sonho seu em 1909 voltando da viagem que fizeram para os EUA para a
comemoração dos vinte anos da Universidade Clark que Jung teve o sonho da casa de três
pavimentos. Como se sabe, Jung apresenta o sonho a Freud e este interpreta redutivamente o
mesmo deixando-o insatisfeito. Shamdasani citando Bennet escreve, “Jung achava a
manipulação dos sonhos que Freud realizava um caso de sua tendência para fazer com que os
fatos se encaixassem em sua teoria” (2005). Também foi nessa mesma viagem em que ele, Freud
e Ferenczi analisavam os sonhos uns dos outros que Freud não quis arriscar sua autoridade
negando detalhes de sua vida íntima para que Jung pudesse melhor analisar seu sonho. Jung
sentenciaria em sua autobiografia, “Esta frase [Não posso arriscar a minha autoridade!] ficou
gravada em minha memória. Prefigurava já, para mim, o fim iminente de nossas relações.”
(1961, grifo meu).
A visão finalista do sonho que encontramos em Jung foi, na verdade, proposta por Theodor
Flournoy. Este dizia que a teoria de Freud era “limitada demais” porque os sonhos não
expressam somente desejos e sim tendências sem falar da não necessidade dos conteúdos dos
mesmos estarem reprimidos. Após a morte de Flournoy, Jung diz que este o ajudou a ver “onde
estavam as fraquezas de Freud”. Podemos ler de maneira bem mais completa esta história no
livro de Sonu Shamdasani, “Jung e a construção da psicologia moderna” (2005).
Voltando às interpretações dos sonhos, nas obras completas podemos achar no volume VIII dois
grandes artigos, que facilmente poderiam formar um pequeno volume sobre o tema, “Aspectos
gerais da psicologia do sonho” e “Da essência dos sonhos”. É aqui que Jung começa a colocar sua
perspectiva e mutuamente, vai distinguindo-a da perspectiva psicanalítica, além de nos apontar
a importância de ficarmos atentos aos sonhos, pois esses possuem um “significado intrínseco
próprio” que, em última análise, falam daquilo que está inconsciente para nós.
Jung propõe que, se o sonho é um produto psíquico como outro qualquer, então este não tem
porque supormos que sua natureza e finalidade são diferentes dos outros conteúdos da psique.
A partir disto, infere que devemos tratar os sonhos analiticamente “como qualquer outro
produto psíquico” (1928). James Hillman mais tarde desenvolverá essa premissa propondo que
todo material falado em análise possa ser ouvido como onírico, sem que haja distinção. Há aqui
então, uma pequena inversão; se em Jung o sonho deve ser tratado como qualquer outro
material psíquico, em Hillman, qualquer material psíquico deverá ser tratado como sonho. Mas
é sem dúvida a partir da proposição de Jung que Hillman pode fazer o jogo de palavras que
torna sua leitura da obra junguiana tão interessante.
A crítica de Jung à interpretação causal, é que ela somente levará em conta os conteúdos
psíquicos que a precederam, ou seja, tudo aquilo que aparece em um sonho, por exemplo, em
algum momento já passou pela consciência e está recalcado. A perspectiva causalista reduzirá os
conteúdos psicológicos aos seus antecedentes e contenta-se com eles. Chega a nos dar um
exemplo de um rapaz que vai por uma rua e, de repente vê uma criança que brinca à sua frente
ser atropelada por um automóvel. A análise causal irá dizer que a rua é reconhecida como sendo
uma rua em que passou na véspera do sonho, a criança é identificada como o filho do irmão que
ele vira ao visitar no dia anterior e o acidente lembra-lhe um acidente descrito nos jornais em
dias anteriores. Jung aqui lança mão da especificidade da imagem para criticar tal redutivismo:
O sonhador percorreu muitas ruas na véspera, e por que motivo seu sonho escolheu justamente
esta rua? Leu notícias a respeito de numerosos acidente, e por que motivo escolheu este, de
preferência a outros?
(JUNG, 1928, §453)
É interessante aqui fazer um parêntesis e notar que essa acabou sendo uma crítica feita pelos
pós-junguianos a muitos junguianos da chamada escola clássica ou, contemporâneos de Jung e
seus seguidores. Estes tomados por uma perspectiva excessivamente arquetipalista, acabaram
cometendo o mesmo reducionismo criticado por Jung, só que ao invés de buscarem as causas no
inconsciente pessoal, buscavam a imagem no inconsciente coletivo como se a qualidade de uma
representação onírica em lugares distintos, pudesse ter o mesmo valor somente por se tratar de
uma mesma representação dita arquetípica. Dessa maneira, ficaria sub-entendido que
poderíamos separar o que é arquetípico e o que não é. Via de regra, o arquetípico, segundo esse
grupo de junguianos, está sempre representado por motivos mitológicos, grandiosos, medievais,
primitivos, figuras folclóricas, etc. Contudo, sob esse tipo de “análise” passa-se a dar muito mais
valor aos objetos da imagem e não à imagem como um todo. É com se pegássemos a pintura da
santa ceia e só pudéssemos enxergar Jesus nela. Esquecemos do restante do quadro que, como
um todo, conta uma narrativa e só faz de Jesus a figura principal por estar ali com os outros
elementos. Não fosse assim, poderia ser somente um homem barbado com roupas de época.
Mais à frente falaremos sobre o trabalho com as imagens.
Voltando para a diferenciação das analises causalista e finalista, Jung nos explica que tal modelo
de interpretação, o baseado nas causas, não pode ser cientificamente satisfatório tendo em vista
que a não especificidade da imagem, ou seja, a atribuição unilateral e imediata de significado ao
conteúdo é arbitrária, pois “só a influência de várias causas é capaz de dar uma determinação
verossímil das imagens do sonho” (1928). Mas não é determinista nem irredutível e confirma:
Quando se trata de explicar um fato psicológico, é preciso não esquecer que todo fenômeno
psicológico deve ser abordado sob um duplo ponto de vista, ou seja, do ponto de vista da
causalidade e do ponto de vista da finalidade.
(JUNG, 1928, §456)
Por finalidade, Jung pretende “designar simplesmente a tensão psicológica imanente dirigida a
um objetivo futuro” (idem). Seu ponto de vista para frente, não implica, como ele mesmo
ressalta, uma negação das causas de um sonho, mas trata de abordá-lo de maneira diferente. Ao
invés do por quê?, usamos o para quê? Lembrando que estas questões podem ser aplicadas a
qualquer material psíquico.
Jung, diferentemente de Freud (ainda que em 1911 tenha dito o contrário na primeira versão
de Metamorfoses e símbolos da libido por proximidade a este último), não acha que o sonho
tenta esconder seu significado nas imagens que produz. Para ele, o sonho é a maneira mais clara
que o inconsciente achou para passar a sua mensagem. Elie Humbert nos lembra que “o
inconsciente permanece ‘inconsciente’ e é preciso abordar cada sonho de maneira a aprender
algo com ele, e não para encontrar uma confirmação do que já se sabe” (1985).
Para mim, os sonhos são natureza, que não contém a menor intenção enganosa e diz o que tem a
dizer da melhor maneira possível – como uma planta que cresce ou um animal que busca
alimento. (Humbert apud JUNG, 1985, pág. 26)
Apesar de reconhecer os jogos de deslocamento, condensação e figuração dos sonhos, não os
atribui como atos de censura. Jung atribui esses jogos à polissemia da imagem. A ação onírica,
diz Humbert, seria a encenação dos dinamismos inconscientes e permitiriam conhecer a
natureza e interação no tempo do sonho (idem).
Se não nos preocuparmos com o que o sonho tenta nos dizer, o máximo que conseguiremos é
chegar a um complexo e para tanto, nem mesmo de um sonho precisamos. Jung conta que até
com um aviso municipal e uma inscrição em russo já conseguiu esse mesmo efeito.
Para podermos tornar digeríveis alguns conteúdos oníricos, Jung sugere a amplificação. De
modo geral, esta técnica foi proposta por ele para lidar com os conteúdos do inconsciente
coletivo. A despeito da discussão já aqui explicitada do saber a priori que conteúdo é do
inconsciente coletivo e que conteúdo não é, a amplificação deverá ser utilizada de maneira
criteriosa e tomando muito cuidado para que ela não vire uma demonstração da erudição do
analista ou mesmo uma fuga contratransferencial às questões surgidas entre analista e
analisando.
E no que consiste a amplificação?
Segundo o Léxico dos conceitos junguianos fundamentais, de Helmut Hark, a
Amplificação é a extensão do conteúdo do sonho por meio do enriquecimento e da
complementação das imagens oníricas com símbolos oriundos dos contos de fadas, dos mitos,
da religião, da arte e de todas as tradições culturais da humanidade (Hark, 1988, pág. 13)
Hark reforça que enquanto as associações nos servem para a “trama” dos conteúdos pessoais, a
amplificação estaria da mesma maneira para os conteúdos coletivos (idem). É bem verdade que
o material escolhido para a amplificação deve ser algo que faça parte do mundo em que o
paciente vive, ou seja, algo de sua cultura, que o mesmo reconheça, que faça sentido. Não
adiantaria amplificar um sonho sobre um gato, por exemplo, de um paciente do Rio de Janeiro
com o significado que o gato tem na cultura das Ilhas Fiji. A não ser que o paciente esteja
“sintonizado” com essa cultura de alguma maneira. Voltamos à peculiaridade da imagem a qual
anteriormente falamos. Se mesmo entre os cariocas o gato pode ter múltiplos significados
(bichinho fofinho, ágil, esperto, simpático ou esnobe, sujo ou extremamente limpo, sagrado ou
profano, etc.), imagine que disparidade de significados poderá haver com os cidadãos das Ilhas
Fiji. E esse gato, é arquetípico ou não? Se não for, não amplifico? E se for, é um dever
amplificar?
O trabalho com os sonhos, assim como com qualquer outro material proveniente da psique
humana, exige mais sensibilidade do que regras. Isso não quer dizer que não hajam técnicas,
mas enquadrá-las em um passo a passo ou numa cartilha infalível pode ser o início de uma
análise mal sucedida. Se, como diz Roland Barthes, “o mito é uma linguagem” (1968), então não
podemos “aceitar a mistificação que transforma [somente] a cultura pequeno-burguesa em
natureza universal” (idem, grifo meu). Sendo assim, o mito pessoal de cada um pode passar pela
novela das oito, pelo BBB e também pelos livros de mitologia clássica. Todas essas narrativas
irão contar com as estruturas universais atuando em seus domínios, no entanto, as imagens que
a elas servirão, dirão mais respeito a uma cultura ou à outra. Caso assim não possamos
considerar, cairemos no (infelizmente) ordinário erro de transformar símbolos em signos dando
a estes, significados estáticos e não mutáveis.
“Por esse motivo, sempre disse a meus alunos: ‘Aprendam tanto quanto vocês puderem sobre
simbologia, mas esqueçam de tudo quando estiverem analisando um sonho’. Fiz desse conselho,
de grande importância para a prática, uma regra para mim mesmo”. (Hark apud JUNG, 1988,
pág. 77)
Podendo olhar qualquer imagem como arquetípica, como propões James Hillman,
transformando o arquétipo de substantivo para adjetivo, podemos então amplificá-la sim. Não
porque transformamos conteúdos pessoais em arquetípicos, mas porque essa delimitação do
campo, como nos acostumamos a ver nos livros os modelos desenhados para a psique, passe a
ser somente didática. Na prática, esses conteúdos estão misturados e discernir sua natureza
talvez seja o que menos interesse para o tratamento do paciente. Portanto, a amplificação é um
recurso que recorre às semelhanças entre narrativas. Elie Humbert nos revela que já os mais
antigos onirocritas se utilizavam deste método (1985). Assim já dizia Jung, “Os símbolos do
sonho são de natureza essencialmente individual”. A amplificação é uma técnica que “não busca
fornecer significados mas tornar o sonhador sensível ao que se passa nele”, arremata Humbert
(1985).
Mas ouvir um sonho não significa amplificar. Não é um dever sair amplificando todo e qualquer
material psíquico. É uma técnica interessante, mas “interpretar” sonhos não depende
exclusivamente dela. O excesso de amplificação pode fazer com que analista e paciente percam
de vista o objetivo da mesma e isso fará com que a hipótese de resistência a esse material deva
ser seriamente considerada.
Há uma outra técnica tão importante quanto a amplificação no trato com as imagens, a circo-
ambulação. Curiosamente esse método está quase que em oposição à interpretação. Circo-
ambular é girar ao redor da imagem; poder olhá-la sob os mais diversificados ângulos; ter as
mais variadas perspectivas da mesma; desdobrá-la no maior número de possíveis significações.
Esse método nos livra da matança do símbolo. Se de antemão já soubermos o que uma imagem
significa (por exemplo, se uma mulher sensual no sonho já significar anima logo de cara, ou uma
figura negra e suspeita for sombra sem questionamentos), matamos a possibilidade desse
símbolo “falar” o que gostaria. Pior, matamos a possibilidade do paciente dizer o que pensa do
mesmo; antes dele, nós já demos a resposta. É uma astúcia e tanto!
Uma outra questão para qual Jung chamará a atenção é para a função compensatória dos
sonhos. Diz ele, “os sonhos, afirmo eu, comportam-se como compensações da situação da
consciência em determinado momento” (1928). A importância de atentarmos a essa função do
sonho fica explícita como mais uma maneira do sonho tentar chamar nossa atenção para o que
acontece na vigília. O sonho de Jung da paciente que ele achava intelectualmente inferior a ele o
alertou através da compensação que sua atitude poderia atrapalhar a análise dessa paciente.
Jung sonha com essa paciente gigante e ele bem pequenino ao seu lado. Obviamente, só
podemos tomar todas essas funções do sonho e algumas outras não descritas nessa trabalho se
tomarmos a perspectiva finalista do sonho.
Os sonhos e o trabalho com as imagens compõem na obra de Jung e de seus seguidores, papel
principal. Não é por conta disso que devemos forçar nossos pacientes a trazerem sonhos toda
sessão ou mesmo perguntar se trouxeram algum sonho para àquela sessão. Mesmo seguindo os
passos de Jung, encontraremos em suas Memórias sua posição quanto ao material trazido pelos
pacientes à análise na época em que estava mais confuso, no seu “confronto com o inconsciente”
(1961). Jung admite que buscava uma nova atitude para com seus pacientes e então, deixava-os
trazer espontaneamente seus sonhos e fantasias. E assim devemos manter essa atitude,
confiando em nossos pacientes.
Referências bibliográficas:
Barthes, Roland (1968). Mitologias. Rio de Janeiro: Difel [2003].
Hark, Helmut (1988). Léxico dos conceitos junguianos fundamentais. São Paulo: Loyola
[2000].
Hillman, James (1983). Entre Vistas. São Paulo: Summus [1989].
Humbert, Elie G. (1983). Jung. São Paulo: Summus [1985].
Jung, C. G. (1961). Memória, sonhos, reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira [22ª Ed. 2003].
_________ (1928). Aspectos gerais da psicologia do sonho. In: A Natureza da Psique.
Petrópolis: Vozes [6ª Ed. 2003].

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