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Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

Direito
à Saúde
Análise à luz
da judicialização

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Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

Clenio Jair Schulze


João Pedro Gebran Neto

Direito
à Saúde
Análise à luz
da judicialização

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Catalogação na Fonte
S391d

Schulze, Clenio
Direito à saúde análise à luz da judicialização / Clenio
Schulze, Joao Pedro Gebran Neto. – Porto Alegre : Verbo
Jurídico, 2015.
260 p.

ISBN: 978-85-7699-508-1

1. Direito À Saúde. 2. Direitos Fundamentais. 3. Poder


Judiciário. I. Gebran Neto, João Pedro. UU. Título.

CDD 341.27

Bibliotecário Responsável
Ginamara de Oliveira Lima
CRB 10/1204

Editoração e projeto de capa: Daniel Scheer

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Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

SUMÁRIO
Prefácios
Ministro Teori Albino Zavascki.................................................................... 07
Professor Álvaro Atallah ................................................................................. 17

Introdução .......................................................................................................... 21

1. Direito à saúde e o Poder Judiciário ............................................... 27


1.1. Considerações iniciais ............................................................................. 29
1.2. Direitos fundamentais sociais.............................................................. 30
1.2.1. Dignidade da pessoa humana e mínimo existencial
em saúde................................................................................................................ 31
1.2.2. Dever de progresso e proibição de retrocesso ......................... 34
1.3. A extensão do direito fundamental à saúde. A possibilidade
de restrição........................................................................................................... 37
1.4. A crise do Estado brasileiro .................................................................. 43
1.5. Protagonismo do Poder Judiciário ..................................................... 45
1.6. Quais são os limites do Poder Judiciário? ....................................... 48
1.6.1. Entre o ativismo judicial e a autocontenção judicial .............. 50
1.6.2. Critérios para a teoria da decisão em processos
judiciais sobre saúde pública e saúde suplementar............................ 65
1.6.3. Diálogos institucionais ........................................................................ 71
1.7. Considerações finais ................................................................................ 75

2. Novas perspectivas sobre a judicialização da saúde ............. 77


2.1. Considerações iniciais ............................................................................. 79
2.2. O papel do CNJ na judicialização da saúde ..................................... 79
2.2.1. Iniciativas do Fórum da Saúde do CNJ .......................................... 83
2.2.2. Núcleos ou Câmaras de Apoio Técnico......................................... 83
2.2.3. Enunciados ............................................................................................... 84
2.2.4. Cartilhas..................................................................................................... 85
2.2.5. Mutirões de conciliação ...................................................................... 85
2.2.6. Especialização de varas de saúde pública ................................... 86
2.2.7. Jornada de direito da saúde do CNJ ............................................... 87
2.2.7.1. Enunciados de saúde pública........................................................ 88
2.2.7.2. Enunciados de saúde suplementar............................................. 89

5
2.2.7.3. Enunciados de biodireto ................................................................. 91
2.3. Novas perspectivas de atuação do Legislativo, do
Executivo e do Judiciário................................................................................. 92
2.4. Legitimação democrática da decisão judicial ................................ 96
2.5. Casuística judicial ................................................................................... 102
2.6. Considerações finais .............................................................................. 107

3. Molduras jurídicas e fáticas do direito


constitucional da saúde ............................................................................ 119
3.1. Considerações iniciais ......................................................................... 121
3.2. Moldura constitucional do direito à saúde ................................. 124
3.3. Moldura fática do financiamento à saúde ................................... 132
3.4. Princípio republicano: escolhas, escassez
e racionamento ................................................................................................ 140
3.5. Aspectos positivos e negativos da judicialização .................... 154
3.6. Considerações finais .............................................................................. 158

4. Buscando uma lógica organizativa na judicialização


da saúde ............................................................................................................. 161
4.1. Considerações iniciais ......................................................................... 163
4.2. Contextualizando o problema .......................................................... 164
4.3. Um efetivo sistema público de saúde ............................................ 170
4.4. O que a judicialização tem a ver com isto? ................................. 172
4.5. O futuro da judicialização .................................................................. 193
4.6. Considerações finais ............................................................................. 196

5. Como usar a Saúde Baseada em Evidências ............................. 199


5.1. Considerações iniciais ........................................................................ 201
5.2. Protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas – PCDT’s ........ 202
5.3. A CONITEC e os protocolos .............................................................. 208
5.4. O que é medicina baseada em evidências – MBE? .................. 213
5.5. Como buscar as evidências ............................................................... 224
5.6. O papel dos Núcleos de Apoio Técnico – NAT’s ....................... 239
5.7. Considerações finais ............................................................................ 243

Bibliografia ...................................................................................................... 247


Sites para pesquisas de medicina baseada em evidências ... 257

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Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

PREFÁCIO
No quadro atual dos debates que se travam, tanto no pla-
no doutrinário, quanto na jurisprudência, a respeito do sentido e
do alcance das cláusulas constitucionais que asseguram o direito
fundamental à saúde, mostra-se de enorme oportunidade a obra
que tenho a honra de agora prefaciar, escrita por dois experi-
mentados magistrados federais, Clênio Jair Schulze e João Pedro
Gebran Neto. O tema, como referido, vem sendo objeto de trato
doutrinário e jurisprudencial, com posições de diversos matizes
e escassas convergências em pontos fundamentais, notadamen-
te quanto ao conteúdo desse direito fundamental e aos limites
das prestações que a ele correspondem como plexo de deveres
estatais, discussão que leva também a balizar o maior ou menor
nível controle jurisdicional suscetível de ser exercido.

Como juiz, defendi, a respeito desses temas, orientação


mais restritiva do que a predominante nos Tribunais brasileiros.
Assim, em voto que proferi perante o Superior Tribunal de Justi-
ça – STJ, em demanda pleiteando do Estado o fornecimento gra-
tuito de medicamento de alto custo, tive oportunidade de expor
minha posição pessoal sobre a matéria:

“2. Algumas premissas de ordem geral são indispensáveis


ao exame do caso. A primeira é a que diz respeito ao con-
teúdo normativo do direito à saúde inscrito na Constitui-
ção. Há várias referências a respeito dele no texto consti-
tucional. Arrolado no art. 6º entre os direitos fundamen-
tais sociais, como a educação, a moradia, o trabalho e ou-
tros, o direito à saúde está assim especificado nos arts.
196 a 198 (...).

Não existe, portanto, um direito subjetivo constitucional


de acesso universal, gratuito, incondicional e a qualquer
custo a todo e qualquer meio de proteção à saúde. Há vá-
rias razões que determinam limites ao referido direito, a
começar pela identificação do que seriam os meios ade-
quados de proteção à saúde. Não são certamente apenas
os que se dirigem a recuperar a saúde já comprometida

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(hospitalização, atendimento médico, fornecimento de
medicamentos). Para a proteção da saúde concorrem, de-
cisivamente, as medidas preventivas de toda a natureza
(alimentação, moradia, saneamento básico, educação).
Ademais, conforme registram os especialistas, “Ainda que
soubéssemos exatamente que políticas são eficazes para se
garantir o mais alto grau de saúde possível a toda a popu-
lação, seria impossível implementar todas essas políticas.
Nenhum país do mundo, nem mesmo o mais rico de todos,
teria recursos suficientes para atingir esse objetivo. Isso
porque, enquanto as necessidades de saúde são pratica-
mente infinitas, os recursos para atendê-las não o são, e a
saúde, apesar de um bem fundamental e de especial impor-
tância, não é o único bem que uma sociedade tem interesse
em usufruir”.(FERRAZ, Octávio Luiz Motta; VIEIRA, Fabío-
la Sulpino. Direito à saúde, recursos escassos e eqüidade,
in Dados – Revista de Ciências Sociais, RJ, vol. 52, p. 226).

A promessa constitucional, portanto, não se traduz em


garantia de prestações desde logo identificáveis objetiva e
concretamente, razão pela qual o conteúdo do direito à
saúde, previsto na Constituição, não tem a configuração
linear e singela que não raro lhe é atribuída. Mais consen-
tânea com nossa realidade é a formulação a esse respeito
adotada pelo Comitê de Especialistas das Nações Unidas
para os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que, ao
interpretar o artigo 12 do Pacto Internacional dos Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966, ratificado pelo
Brasil em 1992 - cujo § 1º assegura o “direito de toda a
pessoa de desfrutar o mais elevado nível de saúde física e
mental” -, observou que “o direito à saúde não deve ser
entendido como direito a estar sempre saudável”, mas,
sim, como o direito “a um sistema de proteção à saúde
que dá oportunidades iguais para as pessoas alcançarem
os mais altos níveis de saúde possíveis” (FERRAZ & VIEI-
RA, op. cit., p. 242).

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Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

O que a Constituição prevê, textualmente, é direito à sa-


úde (e correspondente dever do Estado) “garantido medi-
ante políticas sociais e econômicas que visem à redução do
risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e
igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção
e recuperação” (art. 196). Essa é a garantia constitucional.
Tem esse mesmo conteúdo, conforme já referido, o direito
à saúde previsto no Pacto Internacional dos Direitos Eco-
nômicos, Sociais e Culturais, de 1966, ratificado pelo Bra-
sil em 1992 (art. 12, §§ 1º e 2º).

(...)

3. A segunda premissa conceitual importante é justamen-


te a que diz respeito ao papel do Poder Judiciário nesse
domínio jurídico. É tema igualmente complexo, especial-
mente em face da própria natureza e do conteúdo do di-
reito à saúde. É sabido que os direitos fundamentais soci-
ais (v.g., saúde, educação, trabalho, moradia, lazer, segu-
rança, previdência, todos assegurados de modo explícito
na Constituição – art. 6º), não se revestem, do ponto de
vista institucional, de tutela de intensidade semelhante à
que têm, por exemplo, os direitos de liberdade. Isso se de-
ve fundamentalmente à sua natureza típica de direitos a
prestações, que supõem, necessariamente, atuações posi-
tivas do Estado, e, mais ainda, atuações que dependem,
em regra, da perspectiva autônoma de conformação poli-
ticamente assumida pelo legislador e, na maioria dos ca-
sos, da existência ou da disponibilidade de recursos mate-
riais. É o que se colhe da doutrina, entre outros, de José
Carlos Vieira de Andrade (Os Direitos Fundamentais na
Constituição Portuguesa de 1976, 2ª edição, Livraria Al-
medina, Coimbra, 2001, pp. 395-398). Daí afirmar-se que
a conformação político-administrativa dos direitos fun-
damentais sociais é função reservada ao legislador e ao
administrador, que detém a faculdade de estabelecer os
modos e as condições de atendimento do dever estatal, de
acordo com a capacidade orçamentária e as demais prio-
ridades de gastos. Nessa perspectiva, fora das hipóteses

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resultantes dessa conformação emanada dos órgãos legis-
lativos e administrativos, não se pode, em regra, antever a
existência de dever estatal a prestações, nem pode daí re-
sultar, como contrapartida necessária e imediata, direito
subjetivo universal e incondicionado que possa ser recla-
mado e efetivado por via judicial.

Todavia, isso não significa que a garantia constitucional


seja absolutamente destituída de eficácia. Há certos deve-
res estatais básicos que são imediatamente identificáveis
e, pelo menos em relação a eles, o poder de conformação
não é carta de alforria ao Poder Público para justificar seu
descumprimento. Sob essa perspectiva, em relação ao di-
reito fundamental à saúde, é possível afirmar, na linha
também da doutrina especializada (v.g.: MILANEZ, Danie-
la. "O direito à saúde: uma análise comparativa da inter-
venção judicial", Revista de Direito Administrativo, 237,
p.198), que as obrigações do Estado consistem, antes de
mais nada, no (a) dever de respeito (= o Estado não pode
tomar medidas prejudiciais à saúde, nem mesmo a de su-
primir garantias à saúde já asseguradas, conforme enun-
cia o princípio da proibição do retrocesso social) e no (b)
dever de proteção (= o Estado deve inibir ações de tercei-
ros que possam comprometer a saúde, por exemplo, exi-
gindo que as empresas propiciem ambiente de trabalho e
equipamentos de segurança para preservar a saúde dos
trabalhadores, impedindo a produção, a importação e a
comercialização de medicamentos que possam ser noci-
vos, mediante políticas de prevenção e assim por diante;
mas também no (c) dever de implementação, mediante o
estabelecimento e a execução de políticas públicas que
importem em fornecer bens e serviços de saúde.

O cumprimento dos deveres de respeito e de proteção


são, de um modo geral, suscetíveis de tutela jurisdicional
imediata, já que têm como contrapartida natural a exis-
tência de direitos subjetivos individuais. A dificuldade re-
side na terceira classe de deveres, de implementação de
políticas públicas. Já se disse que, no tocante à política de
saúde, a sua implementação não se traduz no dever de

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Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

fornecer gratuita e incondicionalmente, a qualquer pesso-


a, independentemente da sua condição, todo e qualquer
serviço ou prestação médica ou farmacêutica, mas sim os
considerados mais adequados do ponto de vista técnico,
social e de saúde pública, que sejam compatíveis com a
força da nação e que permitam acesso universal e iguali-
tário. Bem se vê, portanto, que a concretização dessa polí-
tica não é uma questão singela, já que supõe, necessaria-
mente, juízos científicos e políticos, com formulação de
escolhas, que importam inclusões e exclusões.

Não cabe certamente ao Judiciário, já se disse, formular e


executar políticas públicas, em qualquer área, inclusive na
de saúde. São atividades típicas e próprias dos Poderes
Executivo e Legislativo. Entretanto, inexistindo políticas
públicas estabelecidas ou sendo elas insuficientes para a-
tender prestações minimamente essenciais à efetividade
de direito fundamental social, abre-se espaço para a atua-
ção jurisdicional. Configura-se, por exemplo, a possibili-
dade de recorrer à ação de inconstitucionalidade por o-
missão (CF, art. 103, § 2°) ou ao mandado de injunção (CF,
art. 5º - LXXI). Mas há, igualmente, o direito de reclamar,
pelas vias jurisdicionais comuns, o que se costuma deno-
minar de mínimo existencial. Considera-se mínimo exis-
tencial, para esse efeito, o direito a uma prestação estatal
que (a) pode ser desde logo identificada, à luz das normas
constitucionais, como necessariamente presente qualquer
que seja o conteúdo da política pública a ser estabelecida;
e (b) é suscetível de ser desde logo atendida pelo Estado
como ação ou serviço de acesso universal e igualitário. É o
que decorre também dos princípios democrático, da iso-
nomia e da reserva do possível: não há o dever do Estado
de atender a uma prestação individual se não for viável o
seu atendimento em condições de igualdade para todos os
demais indivíduos na mesma situação.

(...)

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5. Em suma, não se pode ter como existente direito líqui-
do e certo de obter do Estado, gratuitamente, o forneci-
mento de medicamento de alto custo, não incluído nas lis-
tas próprias expedidas pelos órgãos técnicos de formula-
ção da política nacional de medicamentos e, ademais, con-
siderado pelos órgãos técnicos do Poder Público (Ministé-
rio da Saúde e órgãos colegiados do Sistema Único de Sa-
úde – SUS) e pela opinião da comunidade científica como
ineficaz para o tratamento da enfermidade, na situação
apresentada pelo Impetrante. Acertada, portanto, a deci-
são do tribunal recorrido, de denegar a ordem” (voto pro-
ferido no Recurso Especial 24.197, 1ª Turma, julgado em
04 de maio de 2.010).

Devo registrar que não é exatamente esse o entendimento


que historicamente vem sendo adotado na jurisprudência dos
Tribunais brasileiros, que, de um modo geral, caminha no senti-
do de assegurar, às pessoas que demonstram tal necessidade, o
direito praticamente absoluto de obter do Estado a satisfação de
prestações de saúde. Entretanto, embora aparentemente tenha
trilhado essa linha em alguns precedentes, não há, ainda, um
pronunciamento seguro do Supremo Tribunal Federal a respeito
da controvérsia. É que vários recursos sobre a matéria foram
processados pelo novo regime da “repercussão geral” e estão
aguardando julgamento do Tribunal (Recurso Extraordinário
566.471-6, sobre a obrigação do Estado de fornecer medicamen-
to de alto custo; Recurso Extraordinário 605.533, sobre a legiti-
midade do Ministério Público de obrigar o Estado a fornecer
gratuitamente medicamentos a pessoas necessitadas; Recurso
Extraordinário 607.582, sobre a possibilidade de sequestrar
recursos públicos para garantir a aquisição e o fornecimento de
medicamentos; Recurso Extraordinário 657.718, sobre a obriga-
ção do Estado de fornecer medicamentos ainda não autorizados
pelas autoridades sanitárias).

Para subsidiar a Corte no julgamento desses casos, foi rea-


lizada audiência pública entre os dias 29 de abril a 07 de maio
de 2009. O resultado dessa iniciativa e os registros dos significa-
tivos depoimentos prestados foram publicados pelo Supremo
Tribunal Federal e estão disponíveis em sua página da internet.
Não se pode ainda avaliar a influência que esses documentos

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Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

terão nas futuras decisões do Tribunal, decisões que serão vin-


culantes para os demais juízes brasileiros. Embora tenha havi-
do, depois da audiência pública, vários julgamentos a respeito, é
prematuro afirmar que eles já representam uma posição defini-
tiva da Corte. É que, em sua maioria, esses julgamentos foram
feitos por decisões individuais de alguns ministros e em proces-
sos de natureza acautelatória e provisória.

Talvez o mais significativo julgamento posterior à audiên-


cia pública tenha sido o tomado pelo plenário do STF na Suspen-
são de Tutela Antecipada – STA n. 175, em sessão de
17/03/2010. Embora também se referisse a medida de nature-
za acautelatória, o exame dos votos então proferidos revela que,
embora convergentes em muitos pontos, há divergências de
opinião sobre aspectos importantes. Dois votos registram isso
com clareza. Colhe-se do voto do Ministro Gilmar Mendes:

“(...) Em razão da inexistência de suportes financeiros su-


ficientes para a satisfação de todas as necessidades soci-
ais, enfatiza-se que a formulação das políticas sociais e
econômicas voltadas à implementação dos direitos sociais
implicaria, invariavelmente, escolhas alocativas. Essas es-
colhas seguiriam critérios de justiça distributiva (o quan-
to disponibilizar e a quem atender), configurando-se co-
mo típicas opções políticas, as quais pressupõem “esco-
lhas trágicas” pautadas por critérios de macrojustiça. É
dizer, a escolha da destinação de recursos para uma polí-
tica e não para outra leva em consideração fatores como o
número de cidadãos atingidos pela política eleita, a efeti-
vidade e a eficácia do serviço a ser prestado, a maximiza-
ção dos resultados etc.

(...)

Não obstante, esse direito subjetivo público é assegurado


mediante políticas sociais e econômicas, ou seja, não há
um direito absoluto a todo e qualquer procedimento ne-
cessário para a proteção, promoção e recuperação da sa-
úde, independentemente da existência de uma política
pública que o concretize. Há um direito público subjetivo
a políticas públicas que promovam, protejam e recuperem
a saúde.

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(...)

A garantia mediante políticas sociais e econômicas ressal-


va, justamente, a necessidade de formulação de políticas
públicas que concretizem o direito à saúde por meio de
escolhas alocativas. É incontestável que, além da necessi-
dade de se distribuir recursos naturalmente escassos por
meio de critérios distributivos, a própria evolução da me-
dicina impõe um viés programático ao direito à saúde,
pois sempre haverá uma nova descoberta, um novo exa-
me, um novo prognóstico ou procedimento cirúrgico, uma
nova doença ou a volta de uma doença supostamente er-
radicada (...)”

É em sentido diferente o voto do Ministro Celso de Mello,


do qual se colhem os seguintes excertos:

“O objetivo perseguido pelo legislador constituinte, em


tema de proteção ao direito à saúde, traduz meta cuja
não-realização qualificar-se-á como uma censurável situ-
ação de inconstitucionalidade por omissão imputável ao
Poder Público, ainda mais se se tiver presente que a Lei
Fundamental da República delineou, nessa matéria, um
nítido programa a ser (necessariamente) implementado
mediante adoção de políticas públicas conseqüentes e
responsáveis.

(...)

Impende assinalar, contudo, que a incumbência de fa-


zer implementar políticas públicas fundadas na Cons-
tituição poderá atribuir-se, ainda que excepcional-
mente, ao Judiciário, se e quando os órgãos estatais
competentes, por descumprirem os encargos político-
jurídicos que sobre eles incidem em caráter mandató-
rio, vierem a comprometer, com tal comportamento, a
eficácia e a integridade de direitos individuais e/ou
coletivos impregnados de estatura constitucional, co-
mo sucede na espécie ora em exame.

(...)

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Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da “reserva


do possível” - ressalvada a ocorrência de justo motivo ob-
jetivamente aferível - não pode ser invocada, pelo Estado,
com a finalidade de exonerar-se, dolosamente, do cum-
primento de suas obrigações constitucionais, notadamen-
te quando, dessa conduta governamental negativa, puder
resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos
constitucionais impregnados de um sentido de essencial
fundamentalidade.

Tratando-se de típico direito de prestação positiva, que se


subsume ao conceito de liberdade real ou concreta, a pro-
teção à saúde – que compreende todas as prerrogativas,
individuais ou coletivas, referidas na Constituição da Re-
pública (notadamente em seu art. 196) – tem por funda-
mento regra constitucional cuja densidade normativa não
permite que, em torno da efetiva realização de tal coman-
do, o Poder Público disponha de um amplo espaço de dis-
cricionariedade que lhe enseje maior grau de liberdade de
conformação, e de cujo exercício possa resultar, parado-
xalmente, com base em simples alegação de mera conve-
niência e/ou oportunidade, a nulificação mesma dessa
prerrogativa essencial.

(...)

Tal como pude enfatizar em decisão por mim proferida no


exercício da Presidência do Supremo Tribunal Federal, em
contexto assemelhado ao da presente causa (Pet
1.246/SC), entre proteger a inviolabilidade do direito à
vida e à saúde - que se qualifica como direito subjetivo i-
nalienável a todos assegurado pela própria Constituição
da República (art. 5º, “caput”, e art. 196) - ou fazer preva-
lecer, contra essa prerrogativa fundamental, um interesse
financeiro e secundário do Estado, entendo, uma vez con-
figurado esse dilema, que razões de ordem ético-jurídica
impõem, ao julgador, uma só e possível opção: aquela que
privilegia o respeito indeclinável à vida e à saúde huma-
nas.

(...)

15
Cumpre não perder de perspectiva, por isso mesmo, que o
direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa
jurídica indisponível, assegurada à generalidade das pes-
soas pela própria Constituição da República. Traduz bem
jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integrida-
de deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a
quem incumbe formular - e implementar - políticas soci-
ais e econômicas que visem a garantir, aos cidadãos, o a-
cesso universal e igualitário à assistência médico-
hospitalar.

(...)

Não basta, portanto, que o Estado meramente proclame


o reconhecimento formal de um direito. Torna-se es-
sencial que, para além da simples declaração constitu-
cional desse direito, seja ele integralmente respeitado e
plenamente garantido, especialmente naqueles casos
em que o direito - como o direito à saúde - se qualifica
como prerrogativa jurídica de que decorre o poder do
cidadão de exigir, do Estado, a implementação de pres-
tações positivas impostas pelo próprio ordenamento
constitucional.

Bem se percebe a importância do tema e o relevo dos fun-


damentos que conduzem a um ou a outro resultado. Nesse con-
texto, mostra-se fundamental a participação, no debate, dos
doutrinários e especialistas, razão pela qual é de se louvar, como
inicialmente registrado, o cuidadoso e aprofundado estudo que
agora vem a lume. Fruto da experiência e das pesquisas realiza-
das por dois talentosos magistrados que operam diuturnamente
no mesmo domínio jurídico sobre o qual escrevem, “Direito à
Saúde: Análise à luz da judicialização”, é obra que traz preciosa
contribuição para o aprofundamento desse tema tão atual, tão
polêmico e tão importante para o direto público e para a vida
dos brasileiros.

Teori Albino Zavascki


Ministro do Supremo Tribunal Federal

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Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

PREFÁCIO
Há cerca de 30 anos aprendendo a separar o joio do trigo
no que se refere ao conhecimento científico para implementação
pratica na Medicina e determinado a produzir mais trigo (de boa
qualidade) do que joio, acabamos por nos deparar com o pro-
cesso fundamental de reduzir as incertezas para que as decisões
médicas levem mais benefícios do que malefícios para os pacien-
tes e para a sociedade.

Nesta busca como um todo, acabamos por encontrar, por


sorte ou por determinação, o que se passou a chamar inicial-
mente de 'Epidemiologia Clínica' e a seguir 'Medicina Baseada
em Evidências'. Do inglês, 'evidência' significa prova, ou seja,
medicina baseada em provas no norteamento das decisões mé-
dicas (e da saúde).

Nosso trabalho colaborativo com profissionais do Direito


nos mostrou o óbvio, que os objetivos dos mesmos requer tam-
bém boas evidências para seus processos decisórios. Para nossa
satisfação, encontramos profissionais do Direito nos mais diver-
sos papéis, dignos de enorme respeito e que muito ampliaram as
esperanças no futuro de um Brasil que deve, pode e que com
certeza será cada vez melhor.

Podemos claramente apresentar como prova de poder se


construir um país melhor este Livro de Direito e Saúde e seus
autores, professores e doutores João Pedro Gebran e Clenio Jair
Schulze. Trata-se de uma obra abrangente e de grande densida-
de, que contempla quase todos os aspectos relevantes necessá-
rios para o que chamamos trabalho de racionalização da chama-
da Judicialização da Saúde, e assim utilizar o poder do judiciário
em benefício tanto dos brasileiros quanto da sustentabilidade
do sistema de Saúde, carente de recursos financeiros e pleno de
possibilidades de desperdício. Fato que pode ser agravado se,
tanto as decisões médicas como jurídicas, não tiverem embasa-
mento em conhecimentos científicos voltados a definição de

17
diretrizes que busquem a eficácia, a efetividade, a eficiência e a
segurança no que se refere à prevenção, diagnóstico e tratamen-
tos em saúde.

Este Livro, desde sua introdução até os capítulos finais,


coloca de maneira inteligente, com clareza e erudição os neces-
sários caminhos para que os interessados se aproximem de me-
todologias e conhecimentos necessários para o entendimento de
aspectos fundamentais, que com certeza serão muito úteis para
os cidadãos, para os gestores da saúde, para os profissionais do
Direito e, consequentemente, terá grande impacto positivo na
Saúde e no Direito brasileiro.

Nos aspectos concernentes ao Direito, embora não seja


da área, meus poucos conhecimentos não me impedem de en-
tender a clareza do texto bem elaborado. Na área médica cientí-
fica, celebro com meus colegas do Centro Cochrane do Brasil a
alegria de constatar a facilidade com que os autores se apropria-
ram dos conhecimentos e dos conceitos da Medicina Baseada em
Evidências, em parte obtidos em nosso Curso de Capacitação em
Saúde Baseada em Evidências (www.hospitalsiriolibanes.org.br),
e os colocaram a serviço dos profissionais do Direito, que têm
agora mais uma nova e excelente ferramenta para aumentar a
eficiência e a sustentabilidade tanto do sistema judiciário quan-
to dos sistemas de saúde brasileiros.

Recomendo o livro,tanto para todos os interessados em


melhorar o desempenho profissional quanto para aqueles que
desejam contribuir com o desenvolvimento da integração entre
Direito e Saúde no Brasil. No nosso entender, dados os impor-
tantíssimos marcos legais já existentes, a exemplo do Artigo 196
da Constituição Brasileira, da Lei 12401 e da Portaria Nº 625 de
29 de março de 2011 do Ministério da Saúde, entre outras me-
didas, colocam o Brasil na vanguarda internacional da racionali-
zação do Direito à Saúde. A consolidação deste cenário depende
de ações como a destes autores que, irmanados em suas voca-
ções e expertises, cada vez mais irão consolidar os caminhos da
eficiência e do uso da ciência no aprimoramento da Saúde e do
Direito no país.

18
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

Muito se criticam os sistemas de saúde e jurídicos nacio-


nais, como resposta, os dois têm um caminho inevitável - a bus-
ca da eficiência (melhores resultados por unidade de custo)
através de pesquisa clínica (ou seja, pesquisa realizada com
pessoas). Isto significa que se pode e se deve integrar não ape-
nas os conhecimentos das duas áreas nas decisões, mas também
os processos de pesquisa científica de ambos, para que as deci-
sões sejam cada vez melhores e encantem a sociedade brasileira.
Afinal, boas evidências do que funciona, maior segurança e efici-
ência são fundamentais para qualquer decisão.

Respeitosamente,

Prof. Dr. Álvaro Nagib Atallah


Professor Titular de Medicina de Urgência e Medicina
Baseada em Evidencias da Universidade Federal de São Paulo. Diretor
do Centro Cochrane do Brasil (www.centrocochranedobrasil.org.br).
Diretor Eleito da Cochrane Collaboration Internacional Coorde-
nador do Curso de Direito à Saúde Baseada em Evidências do
Hospital Sírio Libanês de São Paulo.

19
20
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

INTRODUÇÃO

21
22
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

Por ocasião da Conferência Internacional sobre os Cuida-


dos Primários da Saúde, na cidade de Alma-Ata, no atual Caza-
quistão, foi aprovada a Declaração de Alma-Ata, de 1978, quan-
do a atenção básica à saúde foi alçada como objetivo a ser per-
seguido internacionalmente, mediante a comunhão de esforços
de todos os governos e todos os envolvidos na promoção da
saúde. Na oportunidade enfatizou-se que “a saúde - estado de
completo bem-estar físico, mental e social, e não simplesmente a
ausência de doença ou enfermidade - é um direito humano fun-
damental, e que a consecução do mais alto nível possível de saúde
é a mais importante meta social mundial, cuja realização requer a
ação de muitos outros setores sociais e econômicos, além do setor
saúde1”, cujo objetivo deveria ser atendido até o ano 2000, con-
soante meta global que se buscava assumir.

Malgrado os esforços internacionais não tenham obtido


êxito no prazo pretendido, ainda ecoam forte os termos da de-
claração, destacadamente os fundamentos ali firmados quanto
aos cuidados primários da saúde, destacando-se os seguintes
pontos:

a) adoção de métodos e tecnologias práticas, cientifica-


mente bem fundamentadas e socialmente aceitáveis, co-
locadas ao alcance universal de indivíduos e famílias da
comunidade, mediante sua plena participação e a um cus-
to que a comunidade e o país possam manter em cada fase
de seu desenvolvimento;

b) deve ser considerado o estágio sociocultural da socie-


dade, e a partir dele criar políticas evolutivas;

c) buscar o atendimento dos principais problemas de sa-


úde, visando a prevenção, controle, cura e reabilitação;

d) a promoção da distribuição de alimentos e da nutrição


apropriada, previsão adequada de água de boa qualidade

1
- Declaração de Alma-Ata, produzida na Conferência Internacional sobre cuidados
primários da saúde. Disponível em:
http://cmdss2011.org/site/wp-content/uploads/2011/07/Declara%C3%A7%C3%A3o-
Alma-Ata.pdf.

23
e saneamento básico, cuidados de saúde materno-infantil,
inclusive planejamento familiar;

e) requer a participação comunitária e individual no pla-


nejamento, organização, operação e controle dos cuidados
primários de saúde, fazendo o mais pleno uso possível de
recursos disponíveis, locais, nacionais e outros, e para es-
se fim desenvolvem, através da educação apropriada, a
capacidade de participação das comunidades;

f) devem ser apoiados por sistemas de referência inte-


grados, funcionais e mutuamente amparados, levando à
progressiva melhoria dos cuidados gerais de saúde para
todos e dando prioridade aos que têm mais necessidade;

g) baseiam-se, nos níveis locais e no treinamento de mé-


dicos, enfermeiros, parteiras, auxiliares e agentes comuni-
tários, para responder às necessidades expressas de saú-
de da comunidade.

O conhecimento destes fundamentos representa a pedra-


de-toque para uma adequada compreensão do direito à saúde,
vez que referida declaração é fonte de inspiração para as reivin-
dicações da chamada “reforma sanitarista” e para o modelo de
Sistema Único de Saúde criado pela Constituição Federal de
1988.

É nesta linha de compreensão que se desenvolvem os es-


tudos apresentados neste trabalho. O direito constitucional à
saúde não pode ser lido de modo descontextualizado com os
demais direitos constitucionais, tampouco divorciado da reali-
dade prática onde se insere. Também devem ser valoradas (e
valorizadas) as opções políticas firmadas e sua compatibilidade,
ou não, com a Carta Política.

Os autores, embora tenham produzido partes individuali-


zadas da obra, possuem a idêntica compreensão quanto ao atual
estágio da chamada judicialização da saúde e a imperiosa neces-
sidade de aprofundamento desta discussão.

24
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

Também comungam da preocupação quanto ao papel de-


sempenhado pelo Poder Judiciário em relação às políticas públi-
cas de saúde, reconhecendo que o Fórum Nacional da Saúde,
instituído pelo Conselho Nacional de Justiça, vem desenvolven-
do importante função para a qualificação do debate e o aprimo-
ramento da prestação jurisdicional.

Para além das questões jurídicas, o direito à saúde possui


diversas interfaces com a economia, a política e a ciência médi-
ca.

A escassez de recursos não pode ser ignorada pelos ope-


radores do direito, seja ela relativa ou absoluta, sendo desneces-
sário recorrer-se ao discurso da conhecida “reserva do possível”.
Se a tônica da judicialização hoje é por medicamentos de alto
custo (implicando apenas em recursos financeiros), a nova fron-
teira a ser ultrapassada será inexoravelmente a busca por pro-
cedimentos, internações hospitalares, UTIs, filas de transplantes,
dentre tantos outros exemplos de bens da vida escassos.

Tampouco a legitimidade para realizar escolhas e sofrer


as consequências políticas e jurídicas destas podem ser olvida-
das. E esta legitimidade não se resume ao papel desempenhado
pelos Poderes Judiciário, Legislativo e Executivo. Deve-se consi-
derar, também, a legitimidade para escolhas técnicas e emer-
genciais. Quem deve optar por qual paciente deve ser atendido
prioritariamente na hipótese de um acidente com muitas víti-
mas? Ou para quem será transplantado o rim? A jurisprudência
tem entendido que o Poder Judiciário tem legitimidade para
solucionar conflito de interesse deste jaez.

Diferentes aspectos científicos devem ser apreendidos, di-


reta ou indiretamente, pelos atores do sistema de Justiça. A in-
corporação de medicamentos nas listas oficiais; a autorização
para produção, importação e venda de remédios; a dispensação
individual ou coletiva de medicamentos para determinada mo-
léstia; não são questões meramente jurídicas. É absolutamente
imprescindível que o conhecimento da ciência médica e ou far-
macêutica seja objeto de debate. E, para tanto, os protocolos

25
clínicos e diretrizes terapêuticas (sejam eles oficiais ou produzi-
dos pelas sociedades de especialistas) e a medicina baseada em
evidências devem desempenhar um papel preponderante na
solução do litígio. Esta última, mais que um conceito, é uma téc-
nica internacionalmente reconhecida que confere níveis de evi-
dências a tratamentos, medicamentos, procedimentos, terapêu-
ticas, exames, dentre outros.

Finalmente, buscam os autores apresentar diversos as-


pectos relativos ao direito à saúde, superando a mera retórica
jurídica, trazendo abordagem diferenciada para qualificar o
debate. Não se trata de soluções prontas e acabadas ou modelos
definitivos, mas apenas um contributo para este apaixonante e
complexo tema.

Clenio Jair Schulze


João Pedro Gebran Neto

26
1
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

Direito à
saúde e
o Poder
Judiciário
Clenio Jair Schulze

27
28
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

1.1. Considerações iniciais

O debate sobre a relação entre o direito e a saúde e o pa-


pel institucional do Poder Judiciário se acentuou nos últimos
anos.

Este texto tem por finalidade avaliar os fundamentos que


justificaram a aludida aproximação e, principalmente, apontar
sugestões para reduzir a judicialização da saúde no Brasil.

A necessidade de concretização dos direitos fundamentais


sociais como promessas da (pós) modernidade, a crise do esta-
do-legislador e a crise do Estado-administrador, o excesso de
burocratismo são alguns dos fatores que ensejaram a ascensão
institucional do Poder Judiciário brasileiro nos últimos vinte
anos.

A despeito dos avanços encontrados com o Constituciona-


lismo do Século XXI, que confere grande ênfase aos direitos fun-
damentais, a insatisfação da população agigantou-se de forma
geométrica no Brasil.

A principal causa da insatisfação social decorre da incapa-


cidade do Estado de concretizar plenamente o direito à saúde. O
Brasil é um país de extremos também no que se refere ao pre-
sente tema. De um lado, o SUS demonstra a capacidade de pa-
trocinar e manter os melhores tratamentos do mundo a porta-
dores de HIV ou de promover transplantes de alta complexida-
de. De outro lado, é incapaz de prestar atenção básica de saúde a
grande parte da população, principalmente quando distante das
grandes capitais.

A crítica realizada neste texto não se volta – por óbvio –


aos exemplos de sucesso do sistema de saúde. Destina-se às
deficiências e, principalmente, às interpretações inadequadas
sobre a extensão do direito à saúde.

Neste aspecto, falar em direito à saúde no Brasil, no está-


gio atual, lembra muito da frase que intitula o livro de Castro, ao

29
lembrar que em muitos países acredita-se no mito do governo
grátis2. Ou seja, que o Estado tem o dever de prestar tudo sem
nenhum custo. É exatamente este o pensamento equivocado que
impera no Brasil de forma generalizada e incentivado, muitas
vezes, pelo próprio Judiciário, por intermédio de decisões que
desequilibram o sistema público de saúde e o sistema suplemen-
tar de saúde.

À luz destas considerações, o presente texto analisa a teo-


ria dos direitos fundamentais sociais, a extensão do direito fun-
damental à saúde e a possibilidade de restrição. Aborda a crise
do Estado brasileiro e que leva ao protagonismo do Poder Judi-
ciário. Enfatiza, também, a necessidade de imposição de limites
ao Judiciário, a fim de equilibrar o debate entre o ativismo judi-
cial e a autocontenção judicial. Neste sentido, apresenta critérios
para a teoria da decisão em processos judiciais sobre saúde pú-
blica e saúde suplementar. Ao final, aborda a teoria dos diálogos
institucionais, proposta com a finalidade de reduzir as tensões
entre o Judiciário e os Poderes (funções) Legislativo e Executivo.

1.2. Direitos fundamentais sociais

Os direitos sociais nasceram em terras brasileiras com a


Constituição de 1934, passando a exigir uma prestação positiva
do Estado, com o objetivo de alcançar a isonomia substancial
entre os cidadãos.

Atualmente, a Constituição vigente consagra no artigo 6º


os direitos sociais a “educação, a saúde, a alimentação, o traba-
lho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a pro-
teção à maternidade e à infância, a assistência aos desampara-
dos”.

2
CASTRO, Paulo Rabello de. O mito do governo grátis: o mal das políticas econômicas
ilusórias e as lições de 13 países para o Brasil mudar. Rio de Janeiro: Edições de Janeiro,
2014.

30
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

Os processos judiciais ainda são escassos em relação à a-


limentação, o lazer e a segurança, mas os demais direitos sociais
representam grande parte da judicialização brasileira, com des-
taque, evidentemente, para o direito à saúde.

E isso decorre, também, porque no plano jurídico, os di-


reitos sociais possuem aplicabilidade imediata (art. 5º §1º da
Constituição) e configuram cláusula pétrea (art. 60 da Constitui-
ção), razão pela qual não podem ser suprimidos.

Além disso, já está consagrado que o Estado possui a obri-


gação de cumprir vários mandamentos que dão base à teoria
dos direitos sociais, tais como o princípio da dignidade da pes-
soa humana, o mínimo existencial em saúde, a vedação de retro-
cesso social e o dever de progresso em saúde.

1.2.1. Dignidade da pessoa humana e mínimo


existencial em saúde

A dignidade da pessoa humana tem como núcleo essencial


a proteção aos sujeitos de direitos e encontra assento constitu-
cional nos arts. 1º, 5º, § 3º, art. 109, § 5º. Trata-se de sobreprin-
cípio ou metaprincípio3 que envolve a norteia todo o sistema
jurídico.

Na visão de Luís Roberto Barroso, o princípio da dignida-


de da pessoa humana é composto de três elementos: valor in-
trínseco, autonomia e valor social4. Segundo o aludido jurista, o
valor intrínseco distingue a pessoa humana dos outros seres
vivos e das coisas, demonstrando que as coisas têm preço e as

3
Miranda, Jorge. Manual de direito constitucional. Tomo IV. Coimbra: Coimbra Editora,
4ª ed., 2008, p 200.
4
A Dignidade da Pessoa Humana no Direito Constitucional Contemporâneo: Natureza
Jurídica, Conteúdos Mínimos e Critérios de Aplicação. Versão provisória para debate
público. Mimeografado, dezembro de 2010. Disponível em:
http://www.luisrobertobarroso.com.br/wp-
content/uploads/2010/12/Dignidade_textobase_11dez2010.pdf.
Acessado em 09 jan. 2015

31
pessoas têm dignidade, inteligência, sensibilidade e comunica-
ção e materializa o direito à vida, à igualdade, à integridade físi-
ca e à integridade moral. A autonomia da vontade, na perspecti-
va de Barroso, consiste na capacidade de autodeterminação, ou
seja, na possibilidade de o indivíduo escolher livremente os ru-
mos da sua vida, sem a intervenção estatal. Por fim, o valor co-
munitário refere se à heteronomia, à vinculação das pessoas em
relação ao grupo, projetando-se, também, a solidariedade.

A dignidade da pessoa humana precisa ser interpretada


em três perspectivas: (a) individual, quando e referente é cada
pessoa; (b) universal, todas as pessoas sem discriminações e; (c)
no âmbito livre, considerado cada homem como ser autônomo5.

A dignidade projeta-se de forma multifacetada, engloban-


do conjuntamente a perspectiva solitária – individual – e a di-
mensão social – solidária e representa, também, a superação da
intolerância, da discriminação, da exclusão social, da violência,
da impossibilidade de aceitar a pessoa diferente.

É um princípio relativo como qualquer outro, mas con-


templa um valor fundamental para o sistema jurídico, potencia-
lizando os direitos fundamentais e o Estado Constitucional.

Jorge Miranda enumera algumas projeções do princípio


da dignidade humana, destacando que:

a) a dignidade da pessoa humana reporta-se a todas e cada uma das


pessoas e é a dignidade da pessoa individual e concreta; b) a dignidade
da pessoa humana refere-se à pessoa desde a concepção, e não só
desde o nascimento; c) a dignidade é da pessoa enquanto homem e
enquanto mulher; d) cada pessoa vive em relação comunitária, o que
implica o reconhecimento por cada pessoa de igual dignidade das de-
mais pessoas; e) cada pessoa vive em relação comunitária, mas a dig-
nidade que possui é dela mesma, e não da situação em si; f) a dignida-
de determina respeito pela liberdade da pessoa, mas não pressupõe
capacidade (psicológica) de autodeterminação; g) a dignidade da pes-
soa permanece independentemente dos seus comportamentos sociais;
h) a dignidade da pessoa exige condições adequadas de vida material;

5
ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa
de 1976, p. 97.

32
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

i) o primado da pessoa é o ser, não o do ter; a liberdade prevalece so-


bre a propriedade; j) só a dignidade justifica a procura da qualidade de
vida; l) a dignidade de cada pessoa é um prius em relação à vontade
6
popular .

A maior crítica estabelecida ao princípio da dignidade


humana refere-se à sua plasticidade e à sua ambiguidade, que
permitem a sua invocação retórica em qualquer situação jurídi-
ca7.
Assim, o grande desafio da função jurisdicional é estabe-
lecer os limites, a extensão e o alcance da dignidade da pessoa
humana, vale dizer, de saber quais os fatos jurídicos que autori-
zam a invocação do princípio para a proteção do direito funda-
mental à saúde.

Nesta perspectiva, a dignidade da pessoa humana não po-


de ser invocada isoladamente para a resolução de todos os casos
sobre saúde, pois não há, em abstrato, a sua prevalência em todo
e qualquer confronto fático e jurídico.

Servirá como importante parâmetro argumentativo se o


princípio estiver acompanhado de outro princípio ou valor cons-
titucional para alicerçar a fundamentação jurídica.

O atual panorama constitucional, que consagrou a estabi-


lidade democrática, jurídica e política produzida após 1988,
também exige o cumprimento de condições mínimas de vida em
sociedade.

O cidadão possui direito ao mínimo existencial, vale dizer,


ao conjunto de bens indispensáveis para satisfação dos seus
direitos fundamentais primários. Trata-se de princípio constitu-

6
MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional: Coimbra: Editora Coimbra, 2000,
tomo IV, p. 199.
7
Tal perspectiva levou Ruth Macklin a reconhecer a inutilidade do conceito, in Dignity is
a useless concept, British Medical Journal 327:1419, 2003, apud A Dignidade da Pessoa
Humana no Direito Constitucional Contemporâneo: Natureza Jurídica, Conteúdos Míni-
mos e Critérios de Aplicação. Versão provisória para debate público. Mimeografado,
dezembro de 2010. Disponível em: http://www.luisrobertobarroso.com.br/wp-
content/uploads/2010/12/Dignidade_textobase_11dez2010.pdf. Acessado em 09 jan.
2015.

33
cional implícito que configura o núcleo essencial dos direitos
fundamentais.

O Pacto Internacional de Direito Econômicos Sociais e


Culturais fixou uma definição de mínimo existencial, estabele-
cendo, no art. 11 que os “Estados-membros do presente Pacto
reconhecem o direito de toda pessoa a um nível de vida adequa-
do para si próprio e sua família, inclusive à alimentação, vesti-
menta e moradia adequadas, assim com ao uma melhoria contí-
nua de suas condições de vida.”

O conjunto de prestações que envolvem o mínimo exis-


tencial pressupõe, portanto, ao menos: renda mínima, saúde,
moradia e educação fundamental. É possível incluir, também,
um elemento instrumental, de acesso à justiça, indispensável
para a exigibilidade e efetivação dos bens materiais.

A estatura constitucional do mínimo existencial já foi re-


conhecida pelo Supremo Tribunal Federal, conforme destacado
na Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 45.

Neste contexto, a Constituição exige que a jurisdição cons-


titucional seja prestada com a observância da dignidade da pes-
soa humana e do mínimo existencial em saúde.

1.2.2. Dever de progresso e proibição de


retrocesso

O Estado Constitucional Democrático está assentado em


duas vertentes8: no dever de progresso e na proibição de retro-
cesso.

8
Geralmente os doutrinadores não estabelecem a diferença entre os dois princípios.
Luísa Cristina Pinto e Netto menciona, em trabalho monográfico, que o princípio de
vedação de retrocesso está fundado na “ideia de um progresso constante” e que não
admite “marcha atrás na consagração e efetivação dos direitos fundamentais” (NETTO,
Luísa Cristina Pinto. O princípio de proibição de retrocesso social. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2010, p. 111). Contudo, parece ser mais adequada a separação, pois o
progresso está assentado no avanço, na melhoria, ao passo que a vedação de retrocesso
está cumprida com a simples manutenção do status quo.

34
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

O dever de progresso impõe ao Estado o avanço na sua


atuação legislativa, executiva e judicial, pois a pretensão estatal
não se limita ao já conquistado, contemplando a melhoria quali-
tativa e quantitativa das prestações materiais e imateriais a im-
plementar em prol da sociedade.

O dever de progresso projeta-se ao futuro e está conecta-


do com o princípio do desenvolvimento estampado de forma
implícita no artigo 1º da Constituição da República, porquanto
configura manifestação decorrente do Estado Democrático de
Direito, e também está contemplado expressamente no artigo 3º
da Constituição ao prever o objetivo fundamental de garantia do
desenvolvimento nacional.

Assim, a proibição de retrocesso em matéria de saúde


constitui princípio constitucional e vários são os seus funda-
mentos, a destacar: a) princípio do Estado Democrático e Social
de Direito; b) princípio da dignidade da pessoa humana; c) prin-
cípio (e dever) da máxima eficácia e efetividade das normas
definidoras de direitos fundamentais (art. 5º § 1º da CF); d)
normas específicas da CF previstas no art. 5º atinentes à segu-
rança jurídica; e) princípio da proteção da confiança; f) a nega-
ção da proibição de retrocesso também implicaria na frustração
da efetividade constitucional, pois admitiria, equivocadamente,
que o legislador infraconstitucional e o poder público em geral
pudessem livremente adotar decisões em flagrante desrespeito
ao texto da Constituição; g) o sistema de proteção internacional,
que impõe a progressiva concretização da proteção social por
parte dos Estados soberanos; h) enunciados do art. 3º e do art.
170 da Constituição9 e, principalmente, a enunciação dos artigos
196 e seguintes, quando a Constituição trata diretamente do
direito à saúde.

Na perspectiva de Luísa Cristina Pinto e Netto, a vedação


de retrocesso possui várias fontes, especialmente o princípio da
supremacia da Constituição, o postulado da máxima eficácia das

9
Neste sentido: SARLET. Ingo Wolfgang. Segurança social, dignidade da pessoa humana
e proibição de retrocesso: revisitando o problema da proteção dos direitos fundamen-
tais sociais. In CANOTILHO, J.J. et. al. (coord.), Direitos Fundamentais Sociais. São Paulo:
Editora Saraiva, 2010 (p. 75-109).

35
normas de direitos fundamentais, os princípios estruturantes
(juridicidade, democracia e socialidade) e a internacionalização
dos direitos fundamentais10. A mesma autora menciona, ainda,
que a aceitação do princípio de proibição de retrocesso encontra
guarida na vinculação do legislador aos direitos sociais, desta-
cando a necessidade de ponderação para a hipótese de afasta-
mento da sua aplicação11.

Enquanto o dever de progresso mira o porvir, a proibição


de retrocesso espelha-se no passado, vedando a redução da atu-
ação estatal em saúde benéfica e já consolidada socialmente.

O dever de progresso e a proibição de retrocesso estão


materializados em várias disposições constitucionais, especial-
mente naquelas consagradoras de prestações sociais, destacan-
do-se, por exemplo, a seguridade social - na sua tríplice perspec-
tiva: previdência social, saúde e assistência social – (arts. 193 a
203).

Sarlet também destaca que “o dever de progressividade e


a proibição de retrocesso (de uma evolução regressiva) consti-
tuem, portanto, dimensões interligadas e que reclamam uma
produtiva e dinâmica compreensão e aplicação.”12

Em resumo, o dever de progresso e a proibição de retro-


cesso demonstram que não se pode regredir em saúde pública e
suplementar, é preciso sempre mais.

10
NETTO, Luísa Cristina Pinto e. O princípio de proibição de retrocesso social. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 129.
11
NETTO, Luísa Cristina Pinto e. O princípio de proibição de retrocesso social. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 167.
12
SARLET. Ingo Wolfgang. Segurança social, dignidade da pessoa humana e proibição de
retrocesso: revisitando o problema da proteção dos direitos fundamentais sociais. In
CANOTILHO, J.J. et. al. (coord.), Direitos Fundamentais Sociais. São Paulo: Editora Sarai-
va, 2010, p. 84.

36
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

1.3. A extensão do direito fundamental à saúde.


A possibilidade de restrição

O marco teórico dos direitos sociais já está apresentado.


Cabe, agora, estabelecer uma compreensão adequada ao direito
à saúde.

Faz algum tempo que o Poder Judiciário tem examinado


pedidos para condenar o Estado (União, Estados e Municípios) a
fornecer medicamentos, tratamentos e tecnologias sob a alega-
ção de que a Constituição da República estabeleceu que a saúde
é direito fundamental a ser perseguido e implementado, con-
forme previsão dos artigos 6º e 196.

O ponto principal neste debate reside em saber em o di-


reito à saúde possui limitação.

Um pensamento inicial conduz à ideia de que se trata de


um direito absoluto. Isso se dá em razão da noção geral segundo
a qual sem saúde não há dignidade humana. As decisões judici-
ais, em geral, deixam de enfrentar tal questão, fundamentando,
genérica e equivocadamente, que o direito à saúde está previsto
na Constituição e que por isso cabe ao Estado prestar toda e
qualquer política a fim de concretizá-lo, condenando o ente pú-
blico a prestar tratamentos e fornecer produtos, medicamentos
e novas tecnologias.

Neste sentido é a posição do próprio Supremo Tribunal


Federal, ao utilizar costumeiramente apenas argumentos jurídi-
cos para condenar entes públicos ao fornecimento de medica-
mentos13.

Esta não é, entretanto, a melhor forma de enfrentar a


questão.

13
“O Poder Público não pode se mostrar indiferente ao problema da saúde da popula-
ção, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento
inconstitucional”. (RE 429903/RJ), “O preceito do artigo 196 da Constituição Federal
assegura aos necessitados o fornecimento, pelo Estado, dos medicamentos indispensá-
veis ao restabelecimento da saúde.” (ARE 744170 AgR/RS).

37
Não se pretende, no presente trabalho, abordar a compe-
tência institucional e a legitimidade do Poder Judiciário no en-
frentamento da judicialização da saúde, tendo em vista o reco-
nhecimento desta possibilidade pelos Tribunais pátrios, especi-
almente o STF.

É incontroverso que existe o dever estatal de prestar de


forma articulada os serviços de saúde preventivos e curativos,
individuais e coletivos, no seu aspecto mais amplo possível. Tra-
ta-se da dimensão objetiva do direito fundamental à saúde, que
produz uma eficácia irradiante e condiciona a atuação do legis-
lador, do administrativo e do julgador, no exercício e controle
daquelas políticas públicas de saúde.

Isso significa que o Estado está cercado de um tríplice


plexo de deveres: (a) dever de respeito: que proíbe o Estado de
violar o direito fundamental à saúde; (b) dever de proteção: no
qual o Estado não pode permitir a violação do direito fundamen-
tal à saúde e (c) dever de promoção: em que o Estado deve pro-
porcionar condições básicas para o pleno exercício do direito
fundamental à saúde14.

Ao mesmo tempo, também se protege a dimensão subjeti-


va do direito fundamental à saúde. Assim, na hipótese de des-
cumprimento – imediato ou potencial – do princípio da integra-
lidade, permite-se ao cidadão a possibilidade de solicitar ao
Estado-Juiz o respeito e a reparação da violação àquele direito
fundamental.

Contudo, é essencial investigar a amplitude do direito à


saúde à luz da própria extensão da atuação jurisdicional. Ou
melhor, é saber se o tratamento de direito absoluto configura a
posição mais adequada.

Com efeito, “o Judiciário brasileiro, em geral, liderado pelo


Supremo Tribunal Federal, tem sido extremamente assertivo,
frequentemente condenando o Estado a prover benefícios de

14
MARMELSTEIN, George. Direitos fundamentais. São Paulo: Atlas, 2009.

38
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

saúde a indivíduos além daquilo que restou contemplado origi-


nalmente pela política pública de saúde.”15

Um aspecto limitador é o texto da própria Constituição,


que restringe o direito à vida ao reconhecer a pena de morte na
hipótese de guerra declarada (artigo 5º, XLVII, “a”). Tal previsão
se coaduna com a lição já assentada na melhor doutrina, que não
admite a existência de direitos absolutos16. Além disso, o pró-
prio Supremo Tribunal Federal já preferiu várias decisões rejei-
tando a existência de direitos absolutos17.

Outro ponto a destacar é a inexorável escassez financeira.


Não se pode imaginar que a Constituição confere a todo brasilei-
ro o direito a ter a melhor prestação de saúde existente no mun-
do. Isso não está escrito no artigo 196 da Carta Magna e em ne-
nhum outro dispositivo constitucional. É verdade que “não há
disposição expressa e clara de que o dever do Estado está limi-
tado aos ‘recursos disponíveis’, dando a falsa impressão, ao in-
térprete literal, de que estes direitos são absolutos.”18

Assim, o panorama jurídico delineado no sistema jurídico


brasileiro, que contemplou a saúde como direito fundamental
social, não pode prescindir da análise do aspecto fático atinente
às limitações financeiras e de recursos humanos e tecnológicos.

15
FERRAZ, Octávio Luiz Motta. Entre a usurpação e a abdicação? O direito à saúde no
judiciário no Brasil e da África do Sul, pág. 124. In: Constituição e política na democraci-
a: aproximação entre direito e ciência política. Daniel Wei Liang Wang. Organizador.
São Paulo: Marcial Pons, 2013.
16
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. São
Paulo: Malheiros Editores, 2008, p. 276 e seguintes. NOVAIS, Jorge Reis. Direitos funda-
mentais: trunfos contra a maioria. Coimbra: Coimbra Editora, 2006, p. 49. ANDRADE,
José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. 4
ed. Coimbra: Almedina, 2009, p. 265.
17
HC 93250/MS, Segunda Turma, Relatora Min. ELLEN GRACIE, j. 10/06/2008, DJe-117
26-06-2008; RE 455283 AgR/RR, Segunda Turma, Relator Min. EROS GRAU, j.
28/03/2006, DJ 05-05-2006, p. 39 e ADI 2566 MC/DF, Tribunal Pleno, Relator Min. SYD-
NEY SANCHES, j. 22/05/2002, DJ 27-02-2004, p. 20.
18
FERRAZ, Octávio Luiz Motta. Entre a usurpação e a abdicação? O direito à saúde no
judiciário no Brasil e da África do Sul, pág. 125. In: Constituição e política na democraci-
a: aproximação entre direito e ciência política. Daniel Wei Liang Wang. Organizador.
São Paulo: Marcial Pons, 2013.

39
É inegável que a concretização dos direitos – de todas as
dimensões – exige uma atuação positiva do Estado, na elabora-
ção, na proteção, na implementação e na efetivação. Significa
que a prestação dos direitos sociais tem um custo (custo dos
direitos).

Se as necessidades humanas são ilimitadas, o mesmo não


acontece com os direitos e, principalmente, com os recursos
disponíveis. Preciosas são as palavras de Holmes e Sunstein:

Os direitos costumam ser descritos como invioláveis, peremptórios e


determinados. Todavia, isto é mero floreio retórico. Nada que custe
dinheiro pode ser absoluto. Nenhum direito cuja eficácia pressupõe o
gasto seletivo dos recursos dos contribuintes pode, em última instân-
cia, ser protegido unilateralmente pelo Judiciário sem observância das
consequências orçamentárias que afetam a competência dos outros
Poderes.

É mais realístico e mais realístico e mais produtivo definir os direitos


como poderes individuais derivados da qualidade membro ou afiliado
a uma comunidade política e como investimentos seletivos de recursos
coletivos escassos, feitos para alcançar objetivos comuns e resolver o
que é sentido como um problema comum urgente.

Mas os direitos não podem ser tornados efetivos de um modo imutá-


vel por razões comezinhas também: a efetividade está sujeita a restri-
ções orçamentárias que variam de ano para ano. [...]. Levar o curso dos
direitos em conta é então se portar com um administrador prudente
que se indaga sobre como alocar inteligentemente recursos ilimitados,
levando em conta o amplo espectro de bens e utilidades públicas. Os
direitos assegurados em lei, têm custos de oportunidade; quando um
direito é tornado efetivo, outros bens valiosos, inclusive direitos, são
postos à margem, pois os recursos consumidos para dar eficácia àque-
le direito são escassos. A questão é sempre: poderiam os recursos pú-
19
blicos ser alocados com mais justiça de um outro modo?

19
HOLMES, Stephen & SUNSTEIN, Cass R. The Coast of Rights: why liberty depends on
taxes. New York: W.W. Norton & Co., 1999, p. 97. Tradução livre. Texto original: “Rights
are familiarly described as inviolable, preemptory, and conclusive. But these are plainly
rhetorical flourishes. Nothing that costs moneu can be absolute. No right whose en-
forcement presupposes a selective expenditure of taxpayer contributions can, at the end
of the day, be protected unilaterally by the judiciary without regard to budgeraty conse-
quences for which other branches of government bear the ultimate resposability. Since
protection against private violence is not cheap and necessarily draws on scarce re-

40
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

No Brasil, a questão da limitação financeira geralmente é


esquecida quando há judicialização da saúde. Em geral, o Poder
Judiciário desconsidera este aspecto, que fica superado com o
argumento jurídico decorrente da invocação dos postulados da
teoria dos direitos fundamentais. Sobre o tema, observa Amaral:

Diante de quadro como esse, a tendência natural é fugir do problema,


negá-lo. Esse processo é bastante fácil nos meios judiciais. Basta ob-
servar apenas o caso concreto posto nos autos. Tomada individual-
mente, não há situação para a qual não haja recursos. Não há trata-
mento que suplante o orçamento da saúde ou, mais ainda, aos orça-
mentos da União, de cada um dos Estados, do Distrito Federal ou da
grande maioria dos municípios. Assim, enfocando apenas o caso indi-
vidual, vislumbrando apenas o custo de cinco mil reais por mês para
um coquetel de remédios, ou de cento e setenta mil reais para um tra-
tamento no exterior, não se vê a escassez de recurso, mormente se
adotado o discurso de que o Estado tem recursos ‘nem sempre bem
empregados’.

Fica claro, portanto, que a escassez é inexorável, mesmo


no que tange à saúde.20

sources, the right to such protection, presuming it exists, cannot possibly be


uncompromisable or complete. Rights are relative, not absolut claims. Attention to cost
simply another pathway, parallel to more heavily traveled routes, to a better under-
standing of the qualified nature of all rights, including constitucional rights. It should be
a useful supplement to more familiar approachs, not least of all because the
convencional cost-blind theory of rights has reinforced a widespread misunderstanding
of their social function or purpose. Attention to the costs of rights reveals the extent to
which rights enforcement, as actually carried our in the United States (and elsewhere), is
shot through with trade-offs, including monetary trade-offs. This does not mean that
decisions should be made by accountants, only that public officials and democratic
citizens must take budgetary costs into account. Public finance is an ethical science
because it forces us to provide a public accouting for the sacrifices that we, as a commu-
nity, decide to make, to explain what we are willing to relinquish in pursuit of our more
important aims. The theory of rights, if it hopes to capture the way a rights regime
structures and governs actual behavior, should take this reality into account. Courts that
decide on the enforceability of rights claims in specific cases will also reason more
intellingently and transparently if they candidly acknowledge the way costs affect the
scope, intensity, and consistency of rights enforcement. And legal theory would be more
realistic if it examined openly the competition for scarce resources that necessarily goes
on among diverse basic rights and also between basic rights and other social values.”
20
AMARAL, Gustavo. Direito, escassez e escolha. Critérios jurídicos para lidar com a
escassez de recursos e as decisões trágicas. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris,
2010, p. 80-81.

41
A tese da ausência de limites é superável quando se anali-
sa a saúde a partir da perspectiva coletiva, ou seja, no âmbito
global, tendo em mira todos os habitantes do país. Na percepção
macro, nada é ilimitado. Neste aspecto, importa anotar que as
políticas públicas de saúde não são criadas e executadas com
foco em destinatários específicos. É preciso proteger a saúde de
todos, tal como determinado pelos artigos 6º e 196 da Constitui-
ção.

É verdade que o Brasil possui uma economia com refe-


rência mundial e uma carga tributária que representa quase um
terço do total da produção nacional, contudo, o orçamento anu-
almente destinado para a saúde não é suficiente para a cobertu-
ra completa de todas as ocorrências (o mesmo acontece com a
educação, com o lazer e todos os outros direitos sociais).

Aliás, não há lugar no mundo que tenha um modelo de sis-


tema de saúde completo, perfeito e impecável, exatamente por-
que existe a limitação financeira e de recursos humanos e tecno-
lógicos.

Portanto, é totalmente incorreta a análise do tema com


base na ideia de conflito entre dois interesses, de um lado o di-
reito à vida e à saúde e, de outro lado, o suposto interesse finan-
ceiro do Estado. Tal resposta é bem apresentada por Ferraz:

esta formulação do problema é claramente inadequada, simplista de-


mais e perigosa. Dado que o fornecimento de bens e serviços de saú-
de, assim como de todos os demais direitos constitucionais, depende
de recursos limitados, não há aqui um conflito real entre a vida e os in-
teresses financeiros do Estado. Ao invés disso, existe um difícil pro-
blema de alocação de recursos limitados entre inúmeras necessidades
individuais: entre diversas vidas igualmente valiosas. O ‘interesse fi-
nanceiro secundário’ do Estado é, de fato, o interesse de toda a popu-
lação, incluindo os requerentes, que dependem de recursos limitados
do Estado para usufruir de serviços e ações relacionadas à saúde e a
vida. Ao ignorar esta dimensão distributiva e policêntrica de suas deci-
sões, o Judiciário está na verdade simplesmente desviando recursos de
programas de saúde escolhidos pelos órgãos políticos e técnicos do Es-
tado para a satisfação das necessidades de alguns indivíduos que con-
seguem chegar ao Judiciário (necessariamente uma minoria dado que
21
o acesso às Cortes é também um recurso limitado).

21
FERRAZ, Octávio Luiz Motta. Entre a usurpação e a abdicação? O direito à saúde no
judiciário no Brasil e da África do Sul, pág. 138/139. In: Constituição e política na demo-

42
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

É verdade também que a limitação financeira não pode e


não deve servir de escudo aos agentes públicos – especialmente
gestores e legisladores – para negar a concretização dos direitos
fundamentais.

Com base nestas considerações que levam à ausência de


direitos absolutos e diante da inexorável limitação financeira,
pode-se afirmar que o direito à saúde é um direito de satisfação
progressiva, ou seja:

cuja realização encontra-se estreitamente ligada ao PIB (Produto In-


terno Bruto) e, portanto, à riqueza do país. [...] Isso não significa dizer
que possam ser considerados como meras normas de eficácia diferida,
programática, limitada. Certamente não. São direitos que produzem,
pelos simples reconhecimento constitucional, uma eficácia mínima.
[...] Ora, referidos direitos criam, desde logo, também, posições jurídi-
22
co-subjetivas positivas de vantagem (embora limitadas).

Assim, a despeito da necessidade de maximização da con-


cretização do direito fundamental à saúde é correta a posição
que não o interpreta como direito absoluto.

Em processo judicial, portanto, não cabe ao órgão jurisdi-


cional a definição e a criação de políticas públicas de saúde, po-
dendo determinar o cumprimento das medidas já fixadas pela
administração em geral, aceitas pela sociedade e, essencialmen-
te, contempladas no corpo da Constituição.

1.4. A crise do Estado brasileiro

A Constituição consagra o princípio da separação dos po-


deres (ou funções), ao fixar que o Legislativo, o Executivo e o
Judiciário são independentes e harmônicos entre si (art. 2º).

cracia: aproximação entre direito e ciência política. Daniel Wei Liang Wang. Organiza-
dor. São Paulo: Marcial Pons, 2013.
22
CLÉVE, Clémerson Merlin. A eficácia dos direitos fundamentais sociais. Revista de
Direito Constitucional e Internacional, n. 54, 2006.

43
É inegável que a relação entre os poderes no século XVIII
é distinta da hodierna dinâmica estatal. A noção de balancea-
mento entre os poderes, decorrente do sistema de freios e con-
trapesos, alterou-se profundamente no Constitucionalismo vi-
gente (com várias vertentes, tais como: Constitucionalismo do
Século XXI, Constitucionalismo Contemporâneo, Neoconstitu-
cionalismo, Pós-positivismo, entre outras posições).

É inegável, portanto, que a crise do Estado brasileiro de-


corre da atuação dos poderes estatais.

O papel do Legislativo, de editar normas gerais e abstra-


tas, é cumulado com a função de fiscalização do Executivo.

A crise do Legislativo decorre dos vários óbices ao exercí-


cio da sua atuação. Em primeiro lugar, em razão de acentuada
inércia e omissão na edição de leis que sejam desejadas pela
sociedade e que seriam necessárias para a regulamentação da
Constituição. Nos últimos anos, o legislador tem deixado de as-
sumir o seu papel para evitar comprometimentos políticos e,
principalmente, para não receber o controle da sociedade e do
seu eleitor. Além disso, a divisão em múltiplos grupos de inte-
resse dificulta a atuação unitária do Poder, razão pela qual
grande parte da atuação do Legislativo é dedicada à edição de
leis simbólicas, pois elas não atingem e não prejudicam a nin-
guém23. Pontos importantes para a sociedade, como reformas
constitucionais (política, previdência, tributária) são temas que
desafiam o Legislativo há duas décadas.

Em segundo lugar, o Legislativo ainda é distante a legiti-


mação democrática. O fisiologismo e o patrimonialismo ainda

23
São vários os exemplos de leis simbólicas: Lei 13.101/2015, que dispõe sobre o “Dia
Nacional do Milho”; Lei 13.050/2014, que institui o dia 25 de outubro como “Dia Nacio-
nal do Macarrão”; Lei 12.630/2012, que institui o “Dia Nacional do Raggae”; Lei
12.642/2012, que institui o dia 3 de novembro como o “Dia Nacional do Quilo”; Lei
12.644/2012, que institui o “Dia Nacional da Umbanda”; Lei 12.390/2011, que institui o
dia 27 de junho como o “Dia Nacional do Quadrileiro Junino”; Lei 12.206/2010, que
institui o “Dia Nacional da Baiana de Acarajé”; Lei 12.103/2009, que institui o “Dia Na-
cional do Bumba Meu Boi”; Lei 12.080/2009, que institui o “Dia da Legalidade no calen-
dário oficial brasileiro”.

44
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

são marcas antigas e que estão presentes no universo do legisla-


tivo brasileiro.

A crise do Poder Executivo também não destoa.

Em primeiro lugar, a baixa governança impede a condu-


ção da administração pública brasileira. Em segundo lugar, há
inércia e omissão na construção e execução de políticas públicas.
Em terceiro lugar, a meritocracia ainda é considerada dogma no
serviço público. O alto número de cargos comissionados, sem
controle da capacidade técnica, influência na baixa qualidade do
ato administrativo. Em quarto lugar, a eficiência ainda não se
consagrou como princípio maior, a despeito da previsão no arti-
go 37 da Constituição.

Por fim, outro ponto refere-se ao lamentável custo da cor-


rupção, que já foi internalizado (infelizmente!) na economia, na
vida pública e nos atos estatais.

1.5. Protagonismo do Poder Judiciário

Toda esta deficiente atuação do Legislativo e do Executivo


configura causa para a ascensão institucional do Poder Judiciá-
rio.

O protagonismo do Judiciário em matéria de direito à sa-


úde é também uma das facetas da crise do Estado Brasileiro. Ou
seja, se o setor público não funciona adequadamente, o caminho
natural é a judicialização.

O excesso de processos judiciais é um mau sinal, pois de-


monstra (1) que o serviço público de saúde – ou suplementar –
não é prestado adequadamente e por isso o direito somente
pode ser conquistado na via judicial e/ou (2) porque há abuso
do cidadão (do Ministério Publico ou da Defensoria Publica) na
busca por um direito que não existe.

45
A judicialização da saúde e do direito à saúde é apenas
uma representação do fenômeno da ascensão institucional do
Poder Judiciário brasileiro.

Neste aspecto, é importante apresentar porque o Judiciá-


rio tem se destacado.

É que durante muito tempo os direitos fundamentais so-


ciais deixaram de ser efetivados ao argumento de que configu-
ram meras normas programáticas e por isso o Estado não esta-
ria vinculado à sua observância.

Entendia-se, assim, que a Constituição enunciava um pro-


grama de ação, uma política pública, e que o destinatário da
norma constitucional – geralmente os Poderes Legislativo e
Executivo – teria apenas a faculdade (e não o dever) de efetivar
os direitos fundamentais sociais.

O Judiciário, igualmente, chancelava tal posição, enten-


dendo que não poderia ingressar no mérito da decisão adminis-
trativa, porquanto o administrador e o legislador estavam pro-
tegidos pela cláusula da discricionariedade e pela liberdade de
conformação. O Judiciário atuava, assim, em deferência e em
respeito aos demais Poderes da República Federativa do Brasil.

Esta foi o cenário adotado até o período anterior à última


década.

A submissão da autoridade judiciária às decisões proferi-


das – ou omitidas – pelos demais agentes públicos chegou ao
limite a partir da adoção de uma postura mais proativa e mate-
rializadora dos direitos fundamentais.

O Estado-Juiz deixou de compreender o texto da Constitu-


ição como um documento estático, passando a interpretá-lo a
partir da gênese da teoria dos direitos fundamentais sociais e
com base na leitura que preconiza a força normativa da Consti-
tuição. Os valores constitucionais plasmados na dignidade da
pessoa humana, na fundamentalidade, na universalidade, na

46
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

inalienabilidade, na historicidade e na aplicabilidade imediata


dos direitos ensejaram a mudança de perspectiva.

Iniciou-se uma participação mais ampla e intensa do Po-


der Judiciário na concretização dos fins constitucionais, com
maior interferência no espaço de atuação do Legislativo e do
Executivo.

A transição da inefetividade para a tentativa de efetivida-


de dos direitos fundamentais também decorreu do amadureci-
mento da sociedade brasileira, que deixou a passividade para
assumir ativamente a responsabilidade de discutir seus direitos
e se proteger de ilegalidades historicamente praticadas nas rela-
ções com o Estado – na perspectiva da saúde – e nas relações
entre os próprios particulares – especialmente operadoras de
planos de saúde.

Fez-se, assim, uma nova leitura do princípio da universa-


lidade de Jurisdição estampado no artigo 5º, inciso XXXV, da
Constituição, que se tornou fundamento para a judicialização
ilimitada das questões sociais e políticas travadas no Estado
Brasileiro.

Tudo isso se dá em razão da legitimidade institucional do


Poder Judiciário, presente nos artigos 2º, 92 a 126 e especial-
mente no artigo 102 (que legitima o controle de constitucionali-
dade), da Constituição. No plano infraconstitucional, o Código de
Processo Civil também contempla o princípio da indeclinabili-
dade, que não dispensa o magistrado da análise e de decisão
sobre as questões a ele submetidas.

A verdade é que o Judiciário é destinatário de todas as


normas constitucionais, que norteiam e servem de parâmetro à
sua atuação. Deve o juiz, portanto, cumprir as normas de direi-
tos fundamentais, com necessidade de observância dos objeti-
vos do Estado Brasileiro – artigo 3º da Constituição.

Tudo isso é suficiente para permitir a atuação do Judiciá-


rio, em prol da observância ao texto da Constituição (que se

47
revela dirigente, programático e que orienta para o progresso da
sociedade brasileira).

O Brasil é exemplo de modernidade tardia, em que os di-


reitos demoraram a chegar e, essencialmente, a concretizar as
políticas fixadas na Constituição. Por isso a viragem institucional
do Judiciário no trato das questões relacionadas ao direito à
saúde.

Importante decisão que passou a balizar a atuação do Po-


der Judiciário foi a proferida pelo Ministro Celso de Melo na
ADPF 45, em que se estabeleceram alguns fundamentos e parâ-
metros para a atuação do Estado-Juiz no controle das omissões
relacionadas a direitos fundamentais sociais e políticas públicas.
Nesta decisão, assentou-se que os direitos sociais não podem
tornar-se promessas inconsequentes, cabendo ao Judiciário o
controle das omissões para a implementação da pretensão esta-
tal fixada na Constituição24. Mas quais são os limites?

1.6. Quais são os limites do Poder Judiciário?

A despeito da sua legitimidade institucional e constitucio-


nal, é forçoso reconhecer que o Judiciário tem avançado na aná-
lise do conteúdo e da extensão do direito à saúde.

24
ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. A QUESTÃO DA
LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DO CONTROLE E DA INTERVENÇÃO DO PODER JUDICI-
ÁRIO EM TEMA DE IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS, QUANDO CONFIGURADA
HIPÓTESE DE ABUSIVIDADE GOVERNAMENTAL. DIMENSÃO POLÍTICA DA JURISDIÇÃO
CONSTITUCIONAL ATRIBUÍDA AO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. INOPONIBILIDADE DO
ARBÍTRIO ESTATAL À EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS, ECONÔMICOS E CULTURAIS.
CARÁTER RELATIVO DA LIBERDADE DE CONFORMAÇÃO DO LEGISLADOR. CONSIDERA-
ÇÕES EM TORNO DA CLÁUSULA DA "RESERVA DO POSSÍVEL". NECESSIDADE DE PRESER-
VAÇÃO, EM FAVOR DOS INDIVÍDUOS, DA INTEGRIDADE E DA INTANGIBILIDADE DO
NÚCLEO CONSUBSTANCIADOR DO "MÍNIMO EXISTENCIAL". VIABILIDADE INSTRUMEN-
TAL DA ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO NO PROCESSO DE CONCRETIZAÇÃO DAS
LIBERDADES POSITIVAS (DIREITOS CONSTITUCIONAIS DE SEGUNDA GERAÇÃO). BRASIL.
Supremo Tribunal Federal. Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº
45, Relator Min. CELSO DE MELLO, julgado em 29/04/2004, DJ 04-05-2004.

48
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

Um aspecto que fomenta a judicialização é o gigantismo


do sistema de Justiça brasileiro. Existem no Brasil 16 mil juízes,
12 mil membros dos Ministérios Públicos (federal e estadual) e
quase um milhão de advogados. Há ainda milhares de outros
profissionais que lucram que o crescimento dos processos judi-
ciais. É inegável que este alto número contribui para o volume
de demandas em tramitação no Poder Judiciário (de aproxima-
damente 100 milhões de processos no total, com mais de meio
milhão de processos apenas na área da saúde – pública e suple-
mentar, segundo dados de 2014).

É a prova, portanto, de que o bacharelismo triunfou no


Brasil.

Assim, é preciso deixar claro quais são os limites e, prin-


cipalmente, quais são os parâmetros para a atuação do Poder
Judiciário em relação ao direito à saúde.

De início, deve-se esclarecer que a judicialização da saúde


inicia geralmente a partir de duas hipóteses.

A primeira situação ocorre quando se postula judicial-


mente o exercício de direito já reconhecido, mas negado na via
administrativa. É o caso de medicamento, tratamento ou uma
tecnologia já incorporados no SUS ou nos planos de saúde mas
que não foi entregue ao cidadão. Aqui, quando há a negativa
administrativa, a tendência, geralmente correta, é que o juiz
julgue procedente o pedido. Isto ocorre porque houve uma falha
no sistema ou um problema de gestão (muitas vezes há falta de
planejamento, de licitação tempestiva, etc.). A condenação judi-
cial pode ocorrer, nesses casos, inclusive por intermédio de uma
ação coletiva, a fim de que várias pessoas sejam beneficiadas e
para evitar a multiplicação de novos processos individuais. Aqui
a decisão judicial também não vai causar nenhum problema de
maior magnitude para o demandado (entes públicos – União,
Estados ou Municípios – ou operadora de plano de saúde), pois o
tratamento postulado já existe. Não há, assim, inovação ou cria-
ção de política pública de saúde por força de decisão judicial.
Aqui, tem-se um problema de gestão – e não jurídico – razão

49
pela qual é muito alto o índice de sucesso nas demandas desta
natureza. E assim deve ser. Este é o nítido exemplo de questão
que deveria ser resolvida no plano extrajudicial, sem a interven-
ção do Poder Judiciário.

A segunda hipótese é diferente e acontece quando a dis-


cussão processual gira em torno de direitos não reconhecidos na
via administrativa (v.g. tratamentos ou tecnologias ainda não
incorporados, sem registro na Anvisa, sem comercialização no
mercado nacional ou quando a tecnologia já está incorporada,
mas o sujeito não possui indicação médica). Nesses casos, o grau
de exigência para a procedência do pedido deve ser multiplicado
e o processo deve ser analisado com rigorismo, pois não há pre-
visão legal à sua concessão ou fornecimento pelo administrador.
Condenações indevidas podem causar prejuízo financeiro muito
grande e dificuldades na execução do planejamento orçamentá-
rio do ente público ou da operadora de plano de saúde.

É necessário deixar claro, portanto, que a crítica apresen-


tada neste texto volta-se para esta segunda hipótese de judiciali-
zação, pois aqui o papel do Judiciário deve ser de equilíbrio.

1.6.1. Entre o ativismo judicial


e a autocontenção judicial

O princípio da universalidade de Jurisdição estampado no


artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição, tornou-se fundamento
para a judicialização ilimitada das questões sociais e políticas
travadas no Estado Brasileiro. Significa dizer que inexiste atu-
almente limitador para o ajuizamento de ações judiciais.

Isso levou o próprio Judiciário a assumir para si a atribui-


ção de regular e disciplinar tais questões, passando de coadju-
vante do Estado a ator principal. É interessante observar a evo-
lução do Poder Judiciário a partir do desenvolvimento do pró-
prio Estado.

50
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

Com efeito, a leitura do princípio da separação dos pode-


res no Estado Liberal (séculos XVIII a XIX) era assim caracteri-
zada:

i) atividade legislativa: estava voltada ao estabelecimento de normas


gerais e abstratas de conduta; ii) atividade administrativa: era primária
e espontânea; o direito deveria ser aplicado por iniciativa própria, ten-
do em vista os interesses da própria administração (administrar é apli-
car a lei de ofício); iii) atividade jurisdicional: estava volta à atuação da
25
vontade concreta da lei.

Para Cléve, a doutrina liberal enfatiza a submissão do po-


der ao Direito e necessidade do Estado mínimo, o que torna fácil
de compreender a técnica de separação dos poderes, cujo fun-
cionamento era facilitado.26 Tudo isso se alterou a partir do pós-
guerra, com o nascimento do Estado Social, momento em que o
Estado-árbitro cede espaço para o Estado de prestações, exigin-
do do Executivo um papel de liderança política, daí o seu relati-
vo predomínio.27

Atualmente, o Estado tornou-se gigante e incapaz de satis-


fazer todas as demandas dos indivíduos, principalmente no âm-
bito da saúde. Tal contexto fomentou as dificuldades e as crises
de atuação do Estado.

E isso tem como estuário o Poder Judiciário. A crise do Es-


tado aumentou a necessidade de maior controle da atuação esta-
tal, com o aumento da exigência atribuída ao Judiciário, a fim de
corrigir os desvios e omissões dos demais poderes. “A missão
atual dos juristas é a de adaptar a ideia de Montesquieu a reali-
dade constitucional de nosso tempo.”28

25
CAMBI, Eduardo. Revisando o princípio da separação dos poderes para tutelar os
direitos fundamentais sociais. In: Direitos fundamentais revisitados. KLOCK, Andrea
Bulgakov. CAMBI, Eduardo. ALVES, Fernando de Brito (orgs.) Curitiba: Juruá, 2008, p. 90.
26
CLÉVE, Clémerson Merlin. Atividade legislativa do poder executivo. 3 ed. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 35-36.
27
CLÉVE, Clémerson Merlin. Atividade legislativa do poder executivo. 3 ed. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 36-42.
28
CLÉVE, Clémerson Merlin. Atividade legislativa do poder executivo. 3 ed. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 43.

51
O novo paradigma do direito brasileiro, alterado profun-
damente nos últimos anos, e caracterizado pela ênfase aos direi-
tos sociais – com destaque para o direito à saúde, provocou sig-
nificativo deslocamento de poder do âmbito do Executivo e do
Legislativo para o Poder Judiciário.29

Todo este quadro leva à institucionalização do direito na


vida social, com a redefinição das relações entre os poderes e a
atribuição de maior exigência ao Judiciário, ampliando o contro-
le dos poderes políticos.30

Um dos paradigmas do novo constitucionalismo é a judi-


cialização de temas políticos e das relações sociais. Em conse-
quência, o Judiciário se transforma em estuário das insatisfações
decorrentes da atuação legislativa, do Executivo e das relações
entre os particulares, em razão do fortalecimento da teoria dos
direitos fundamentais.31

Conforme aponta Vianna, esse novo fenômeno – já exis-


tente em outros países com democracia mais avançada, tal como
Alemanha, Itália, Espanha, França, Inglaterra e EUA – demonstra
a aproximação entre os sistemas civil law e common law ocor-
rida no direito brasileiro.32

Diante disso, a definição dos limites de atuação do Poder


Judiciário – e também o enfrentamento do discricionarismo
judicial – exige a abordagem de dois posicionamentos que, em
tese, se contrapõem: o procedimentalismo e o substancialismo.

29
SARMENTO, Daniel. O neoconstitucionalismo no Brasil: riscos e possibilidades. In:
Direitos fundamentais e estado constitucional: estudos em homenagem a J.J. Gomes
Canotilho. LEITE, Georg Salomão. SARLET, Ingo Wolfgang (orgs.) São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2009, p. 10.
30
ABREU, Pedro Manoel. Processo e democracia. O processo jurisdicional como um
lócus da democracia participativa e da cidadania inclusiva no estado democrático de
direito. Vol. 3. Coleção Ensaios de Processo Civil. São Paulo: Conceito Editorial, 2011, p.
260.
31
VIANNA, Luiz Werneck [et al.]. A judicialização da política e das relações sociais no
Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999, p. 11.
32
VIANNA, Luiz Werneck [et al.]. A judicialização da política e das relações sociais no
Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999, p. 11.

52
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

Aos adeptos do procedimentalismo, deve prevalecer a


vontade majoritária para a definição das questões importantes
da sociedade. Somente por intermédio da democracia participa-
tiva e do exercício da cidadania ativa é que pode acontecer a
efetivação dos direitos e o adequado controle das relações entre
os poderes. O Judiciário, neste quadro, tem atuação mais limita-
da, pois não possui legitimidade para decidir todas as questões,
per saltum, sem a participação dos indivíduos. Segundo as ob-
servações de Vianna:

Desse eixo viria a compreensão de que a invasão da política pelo direi-


to, mesmo que reclamada em nome de igualdade, levaria à perda da
liberdade, ‘ao gozo passivo de direito’, ‘à privatização da cidadania’, ao
paternalismo estatal, na caracterização de Habermas, e, na de Gara-
pon, ‘à clericalização da burocracia’, ‘a uma justiça de salvação’, com a
redução dos cidadãos ao estatuto de indivíduos-clientes de um Estado
33
providencial.

No outro lado, o modelo substancialista, adotado por


Dworkin e Cappelletti, entre outros, permite a maior invasão da
política e das relações sociais pelo Poder Judiciário. Assim, auto-
riza-se a criação jurisprudencial do direito à saúde sem prejuízo
da liberdade e da igualdade, pois o juiz é dotado de condições
para adjudicar os direitos já assumidos no âmbito social.34 “Aco-
lhendo a tese substancialista, defender-se-á a possibilidade de
implementação das promessas da modernidade e constitucio-
nais, tendo como palco de embate o cenário do Poder Judiciá-
rio.”35
33
VIANNA, Luiz Werneck [et al.]. A judicialização da política e das relações sociais no
Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999, p. 23-24.
34
VIANNA, Luiz Werneck [et al.]. A judicialização da política e das relações sociais no
Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999, p. 24. [“Especialmente nesse eixo, valoriza-se o juiz
com personagem de uma intelligentzia especializada em declarar como direito princípios
já admitidos socialmente – vale dizer, não arbitrários – e como intérprete do justo na
prática social, esse caminho, porém, de ‘confiar ao ‘terceiro poder’, de modo muito mais
acentuado do que em outras épocas, a responsabilidade pela evolução do direito’, longe
de significar uma indicação ingênua de seus autores, é visto como ‘arriscado e aventurei-
ro’, na medida em que, embora pleno de promessas, pode importar ameaças a uma
cidadania ativa.”]
35
ROSA, Alexandre Morais da. O que é garantismo jurídico? Florianópolis: Habitus,
2003, p. 16. Também em favor do substancialismo: BONAVIDES, Paulo. A Constituição
aberta. Belo Horizonte: Del Rey, 1993, p 9-10.

53
Em verdade, não há possibilidade de adoção rígida do
modelo procedimental em países de modernidade tardia, espe-
cialmente em razão do déficit democrático.

Com efeito, a Constituição da República Federativa do


Brasil estabelece, no artigo 14, que a soberania popular será
exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto e,
ainda, por intermédio do plebiscito, do referendo e da iniciativa
popular.36

Tais mecanismos tradicionais de exercício da cidadania


ativa configuram poderosos instrumentos de participação popu-
lar, contudo, ainda não lograram a necessária consagração na
práxis política brasileira.37

O modelo de democracia semidireta não tem correspon-


dido integralmente a todos os anseios e interesses da sociedade.
A representação popular na decisão política é caracterizada pela
crise decorrente da complexidade da sociedade pós-moderna.

Para Campilongo a dificuldade de representação da de-


mocracia brasileira decorre dos seguintes fundamentos: (a)
ausência da centralidade da colisão entre capital/trabalho; (b)
excessiva fragmentação dos interesses sociais; (c) fenômeno das
agregações transitórias; (d) perda de função do Governo-
Parlamento como locus das decisões políticas; (e) diminuição da
política econômica à política conjuntural e de manobra monetá-
ria.38

Além disso, a ausência de um modelo adequado de demo-


cracia é consequência da modernidade tardia e arcaica39 origi-

36
O plebiscito, o referendo e a iniciativa popular foram regulamentados pela Lei
9.709/98.
37
ANJOS FILHO, Robério Nunes dos. Sociedade e espaço público na Constituição, in
SAMPAIO, José Adércio Leite (coordenador). 15 anos de Constituição. Belo Horizonte:
Del Rey, 2004, p. 385.
38
CAMPILONGO. Celso. Representação política. Série Princípios. São Paulo: Ática, 1988,
p. 50-55.
39
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica
da construção do Direito. 8 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 24.

54
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

nária de um déficit social que impede o cidadão de debater e


exigir sua própria participação na res publica.

Tudo isso leva à fantochização da democracia, que resulta


na condução dos indivíduos a um processo de apatia política que
leva à descrença do uso dos próprios mecanismos de escolha de
representantes, fragilizando o processo eleitoral.40

Nessa perspectiva, é importante defender-se a indispen-


sabilidade da oitiva da população sobre questões de relevo na-
cional, lançando a necessidade de revisitação da democracia
semidireta como proposta para superação da crise participati-
va.41

Nesta ordem de ideais, fala-se, hodiernamente, em direi-


tos fundamentais de quarta dimensão – ou geração –, entre os

40
MORAIS, José Luis Bolzan de. As crises do estado e da constituição e a transformação
espacial dos direitos humanos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 55.
41
A Constituição da República estabelece inúmeros mecanismos de participação e
controle popular que, entretanto, não são suficientes implementados para o exercício
pleno da democracia. Robério Nunes dos Anjos Filho apresenta o seguinte quadro: “1.
Os mecanismos tradicionais de cidadania ativa: 1.1. De participação legislativa: 1.1.1.
Plebiscito (14, I); 1.1.2. Referendo (14, II); 1.1.3. Iniciativa legislativa popular (14, III); 61,
§ 2º); 1.2 De participação judicial: 1.2.1. Ação popular (5º, LXXIII); 1.2.2. Ação civil públi-
ca. 2. Outros mecanismos de cidadania ativa: 2.1. De participação administrativa. 2.1.1.
Participação em Conselhos – Penitenciário, de Meio Ambiental, de Educação, de Saúde,
de Assistência Social, Tutelar, da República (89, VII); 2.1.2. Participação dos órgãos
públicos colegiados nos quais sejam objeto de discussão e deliberação os interesses
profissionais ou previdenciários dos trabalhadores e empregadores (10); 2.1.3. Participa-
ção do usuário da Administração Pública direta e indireta (37, § 3º); 2.1.4. Participação
dos produtores e trabalhadores rurais no planejamento e execução da política agrícola
(187); 2.1.5. Participação dos trabalhadores, empregadores e aposentados nos órgãos
colegiados da seguridade social (194, parágrafo único, VII); 2.1.6. Participação da comu-
nidade nas ações e serviços de saúde (198, III); 2.1.7. Participação da população, por
meio de organizações representativas, na formulação das políticas públicas e no controle
das ações de assistência social (204, II); 2.1.8. Participação da comunidade na promoção
dos direitos culturais (216, § 1º); 2.1.9. Representação e órgãos públicos – Tribunal de
Contas da União (74, § 2º), Ministério Público, Poder Legislativo (58, § 2º, IV); 2.1.10.
Deflagração de processo de impeachment; 2.1.11. Participação em audiências públicas;
2.2. Institutos polivalentes de participação: 2.2.1. Direito à obtenção de informações (5º,
XXXIII) e certidões (5º, XXXIV, b); 2.2.2. Direito à publicidade (5º, LX e 37, caput); 2.2.3.
Direito de petição (5º, XXXIV, a).” ANJOS FILHO, Robério Nunes dos. Sociedade e espaço
público na Constituição, in SAMPAIO, José Adércio Leite (coordenador). 15 anos de
Constituição. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 384-385.

55
quais se enquadram os direitos de democracia, de informação e
de pluralismo.42 Segundo Bonavides:

A democracia positivada enquanto direito de quarta geração há de ser,


de necessidade, uma democracia direta. Materialmente possível gra-
ças aos avanços da tecnologia de comunicação, e legitimamente sus-
tentável graças à informação correta e às aberturas pluralistas do sis-
tema. Desse modo, há de ser também uma democracia isenta já das
contaminações da mídia manipuladora, já do hermetismo de exclusão,
de índole autocrática e unitarista, familiar aos monopólios do poder.
Tudo isso, obviamente, se a informações e o pluralismo vingarem por
igual como direitos paralelos e coadjutores da democracia; esta, po-
rém, enquanto direito do gênero humano, projetado e concretizado no
43
último grau de sua evolução conceitual.

A noção de democracia direta pode ser concretizada no


plano fático por intermédio dos meios de informática e eletrôni-
cos, tais como internet, e-mail, redes sociais, twitter, a permitir
que os indivíduos debatam questões de relevo para a sociedade
brasileira e influenciem as decisões governamentais.44

Sobre o tema, Pérez Luño indica que:

La era de la informática y de La telemática há contribuido a que se lle-


gue a la convicción de que el hábitat cívico del presente es el de la ‘al-
dea global’ o, más exactamente, ‘el hogar global’; en la medida en que
hoy, con el acceso a Internet, cada ciudadano puede establecer, sin sa-
lir de su domicilio, una conversación en tiempo real, sin limites en el
45
espacio o en el número de participantes.

42
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 20 ed. São Paulo: Malheiros, 2007,
p. 571.
43
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 20 ed. São Paulo: Malheiros, 2007,
p. 571.
44
Folha de São Paulo, ano 91, terça-feira, 05/07/2011, Seção A-11. Exemplo dessa nova
possibilidade vem da Islândia, que permitiu a participação da população na redação na
nova Constituição, por intermédio da Internet. O país é composto por aproximadamente
300.000 habitantes e praticamente todos possuem acesso à Internet. As reuniões da
Assembléia Constituinte foram transmitidas on line, a permitir que os indivíduos apre-
sentassem opinião em tempo real.
45
PÉREZ LUÑO, Antonio-Enrique. Ciberciudadaní@ o ciudadaní@.com? Barcelona:
Editorial Gedisa, 2004, p. 11.

56
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

Reconhece-se, portanto, que os direitos de quarta dimen-


são “[...] compendiam o futuro da cidadania e o porvir da liber-
dade de todos os povos. Tão-somente com eles será legítima e
possível a globalização política.”46

O déficit democrático também precisa de correção na via


judicial. O exemplo da histórica omissão em relação ao direito à
saúde demonstra a necessidade da intervenção do Poder Judici-
ário para corrigir, com equilíbrio, as omissões do Executivo e do
Legislativo.

Por isso que não se pode, no Brasil, adotar-se uma visão


isolacionista das linhas procedimentais e substanciais. Vale di-
zer, a leitura adequada da Constituição precisa ser empreendida
a partir da participação popular, sem a exclusão da atuação do
Poder Judiciário sobre as questões relevantes. É preciso fomen-
tar a junção da teoria procedimentalista e da teoria substancia-
lista a fim de adequar-se à situação concreta vivida no território
brasileiro. Neste sentido é importante a lição de Vianna:

Controvérsias à parte, esses dois eixos analíticos teriam em comum o


reconhecimento do Poder Judiciário como instituição estratégica nas
democracias contemporâneas, não limitada às funções meramente de-
clarativas do direito, impondo-se, entre os demais Poderes, como uma
agência indutora de um efetivo checks and balances e da garantia da
47
autonomia individual cidadã.

A leitura procedimental e substancialista da Constituição


também parece ser a linha adotada por Streck:

Torna-se evidente – e não deve pairar qualquer dúvida a esse respeito


– que não é difícil sustentar que a defesa de um substancialismo mate-
rial-constitucional não dispensa – e não pretende dispensar – o papel
48
fundamental que deve ser exercido pelo procedimento.

46
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 20 ed. São Paulo: Malheiros, 2007,
p. 572.
47
VIANNA, Luiz Werneck [et al.]. A judicialização da política e das relações sociais no
Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999, p. 24.
48
STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discur-
sivas. 4 ed. são Paulo: Saraiva, 2011, p. 432.

57
Neste modelo híbrido e equilibrado – que reúne as duas
posições, procedimentais e substanciais – não há privatização da
cidadania e o Judiciário não fica impedido de controlar as outras
atividades estatais, com autorização para atuar de forma equili-
brada e dentro dos parâmetros constitucionalmente aceitos.

Em consequência, a Constituição não é compreendida co-


mo um edifício concreto, pronto e acabado, mas um modelo
fluído que permite a união de um conjunto de materiais de cons-
trução extraídos do meio social e com as mais variadas combi-
nações.49

A superação da crise de Estado pós-social exige a criação


de novas fórmulas de atuação governamental frente às determi-
nações constitucionais.

Nesse sentido, para Bolzan de Morais:

“[...] o que é mais interessante é a construção de modelos democráti-


cos alternativos, que embora não se afastem totalmente das fórmulas
semidiretas (ou mistas), podem fazer frente não apenas a esta perda
de sentido da democracia moderna (representativa), mas de alguma
forma permitem dar conta deste processo, já detalhado acima, de des-
construção do modelo de Estado da modernidade, calcado na sua con-
figuração tríplice clássica (território, povo e poder) e de reconstrução
de outros lugares de tomada de decisão, sobretudo quando estamos
diante de uma cidadania que se rearticula em espaços públicos reduzi-
dos ou, até mesmo, constitui-se em estruturas coletivas de caráter pú-
blico, embora não necessariamente vinculados ao Estado.

As fórmulas da chamada democracia participativa talvez


se constituam como alternativas possíveis de rearticulação de
espaços públicos que constituam uma fonte de autoridade cuja
legitimidade ultrapasse até mesmo os esquemas procedimentais
característicos da democracia representativa, escapando, inclu-
sive, às insuficiências – outras – que esta enfrenta, em particular

49
JULIUS-CAMPUZANO, Alfonso de. Constitucionalismo em tempos de globalização.
Tradução de Jose Luis Bolzan de Morais e Valéria Ribas do Nascimento. Porto Alegre:
Livraria do Advogado Editora, 2009, p. 46.

58
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

dominadas por sistemas de informação cujo controle público é


diminuído.50

Häberle também contribui para a noção de Constituição


como documento decorrente do pluralismo cultural, que con-
templa requisitos prévios, tais como liberdade humana, direito
de informação e de opinião, liberdade de investigação científica,
de democracia e de opinião pública, entre outros.51

A democracia não se apresenta exclusivamente no âmbito


extrajudicial, a permitir a participação na gestão da res publica,
ensejando, também, na jurisdição constitucional, a ampliação da
hermenêutica constitucional a ponto de permitir a indivíduos,
cidadãos, grupos e entidades a participação do debate processu-
al constitucional.

Ou seja, o déficit de democracia deve ser superado no pla-


no processual (na jurisdição constitucional) e extraprocessual
(no âmbito da administração pública).52

Torna-se importante, também, o patriotismo constitucio-


nal53, extraído da necessidade de resgatar a identidade coletiva
e as raízes históricas e culturais do povo.

Fomenta-se, ainda, o culturalismo constitucional:

50
BOLZAN DE MORAIS, José Luis. As crises do estado e da constituição e a transforma-
ção espacial dos direitos humanos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 56-57.
51
HÄBERLE, Peter. Pluralismo y Constitución. Estudios de teoría constitucional de la
sociedaded aberta. Tradução de Emilio Mikunda-Franco. Madri: Editorial Tecnos, 2008,
p. 107.
52
HÄBERLE, Peter. Pluralismo y Constitución. Estudios de teoría constitucional de la
sociedaded aberta. Tradução de Emilio Mikunda-Franco. Madri: Editorial Tecnos, 2008,
p. 115.
53
“Patriotismo Constitucional é um conceito originalmente cunhado pelo jurista e cien-
tista político alemão Dolf Sternberger à época do trigésimo aniversário da Lei Funda-
mental de Bonn. Com esse conceito, Sternberger procurou sintetizar o que representava
a construção de uma nova identidade coletiva alemã que tomava por referência o con-
teúdo normativo universalista da Lei Fundamental de 1949, algo extremamente novo na
história da Alemanha.” OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de. Direito, política e filoso-
fia: Contribuições para uma teoria discursiva da constituição democrática no marco do
patriotismo constitucional. Rio de Janeiro: Editora Lumen Júris, 2007, p. 1-2.

59
Nestes termos, o patriotismo constitucional se apresenta como uma
forma de universalismo consolidado nos valores democráticos que re-
sume a Constituição: um universalismo comprometido com o pluralis-
mo, com as pretensões legítimas das demais formas de vida, e que tra-
ta de ampliar os espaços de tolerância. O patriotismo constitucional
encerra, assim, um elemento cosmopolita que não foge dos perfis es-
pecíficos de cada identidade. Trata-se dos valores do constitucionalis-
mo que se fundam na cultura política de cada povo e enraízam-se com
perfis próprios e definidos. Sua inserção em um concreto contexto his-
tórico precisa que fique ancorado nas próprias formas culturais de vi-
54
da.

A Constituição e a democracia não podem ser transfor-


madas em instrumentos simbólicos. O resgate da força republi-
cana e democrática depende do fortalecimento da sociedade,
permitindo a participação dos indivíduos no processo político.

Não se pretende, importa frisar, superar o substancialis-


mo pelo procedimentalismo55, mas construir um modelo que
permita a convivência harmônica de um sistema que prioriza a
participação popular, sem subtrair do Judiciário o debate sobre
questões de relevo social. Vale dizer, é consequência do princí-
pio da inafastabilidade do controle jurisdicional (artigo 5º, inci-
so XXXV, da Constituição) o exame, pela Corte Suprema, de ma-
térias importantes para o desenvolvimento nacional e, concomi-
tantemente, deve-se prestigiar o debate público de questões de
interesse geral.

Essa é a visão que se extrai de Zagrebelsky, pois, na leitu-


ra substancialista, preconiza-se a manutenção e o fortalecimen-
to dos direitos fundamentais da cidadania e do pluralismo axio-
lógico e, de outro lado, do ponto de vista procedimental, há ex-

54
JULIUS-CAMPUZANO, Alfonso de. Constitucionalismo em tempos de globalização.
Tradução de Jose Luis Bolzan de Morais e Valéria Ribas do Nascimento. Porto Alegre:
Livraria do Advogado Editora, 2009, p. 99.
55
Sobre o debate procedimentalismo x substancialismo vide VIANNA, Luiz Werneck [et
al.]. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan,
1999; STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêu-
tica da construção do Direito. 8 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 31-52;
ABREU, Pedro Manoel. Processo e democracia. O processo jurisdicional como um lócus
da democracia participativa e da cidadania inclusiva no estado democrático de direito.
Vol. 3. Coleção Ensaios de Processo Civil. São Paulo: Conceito Editorial, 2011, p. 183-190.

60
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

pectativas de submissão do jogo político à formal legal e de


cumprimento das regras políticas por todos os sujeitos envolvi-
dos.56

A crescente necessidade de fortalecimento do constitu-


cionalismo pluralista se agiganta na visão de Häberle:

[...] porque así es como se libera la fuerza creadora del ser humano en
las ciencias y las artes, en economía y política, al equilibrarlas mate-
rialmente, evitándose así tanto la guerra civil como la lucha de clases y,
sobre todo, porque a través de dicho pluralismo se perfila un determi-
nado tipo de libertad ciudadana que se establece de forma también
57
plural.

Enfim, é preciso permitir a participação dos cidadãos no


debate sobre a coisa pública e ao mesmo tempo não tolher a
atuação do Judiciário. Ambos devem conviver harmonicamente,
em prol do Estado Constitucional Democrático.
A relação entre o constitucionalismo procedimental e o
constitucionalismo substancial também perpassa pelo debate
sobre a autocontenção judicial e o ativismo judicial.

Inúmeras são as críticas contra o ativismo judicial (prin-


cipalmente no âmbito do direito à saúde). Alega-se o risco de
uma Judiciocracia, da criação de um super Poder Judiciário, do
governo dos juízes. A crítica liberal alega que o governo deve ser
das leis e não dos homens e que o Judiciário não tem legitimida-
de, pois o juiz não é eleito pelo povo. A crítica também tem ori-
gem financeira, diante da invasão indevida no orçamento dos
demais Poderes, diante da imposição decorrente do cumprimen-
to das decisões, que determinam, por exemplo, o fornecimento
de tratamento médico não incorporado. Há, ainda, a crítica ad-
ministrativa, porquanto a atuação judiciária substitutiva desor-
ganiza a atuação dos órgãos da administração e da ordem de

56
ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil. Ley, derechos, justicia. Tradução de Marina
Gascón. 9 ed. Madri: Trotta, 2009, p. 13-14.
57
HÄBERLE, Peter. Pluralismo y Constitución. Estudios de teoría constitucional de la
sociedaded aberta. Tradução de Emilio Mikunda-Franco. Madri: Editorial Tecnos, 2008,
p. 116.

61
trabalhos das operadoras de plano de saúde. Somado a isso,
apresenta-se a crítica técnica, segundo a qual o juiz não tem
conhecimento para atuar no campo da saúde pública e suple-
mentar. Por isso, o juiz deveria se limitar à obediência do prin-
cípio da deferência e se curvar, em respeito aos demais Poderes
e à livre iniciativa das operadoras de saúde.58

Nesta perspectiva, o juiz precisaria se limitar a exteriori-


zar os dizeres da lei. Este seria o fim da jurisdição, na perspecti-
va liberal. O juiz seria apenas a boca da lei.

Do outro lado figuram os argumentos contrários à auto-


contenção judicial, assentando a legitimidade institucional do
Poder Judiciário, nos termos dos artigos 2º, 92 a 126 da Consti-
tuição. O judicialismo também encontra guarida no princípio da
universalidade de jurisdição (artigo 5º XXXV, da Constituição).

Cabe ao Judiciário, nesta vertente, cumprir as normas de


direitos fundamentais conforme diretriz estabelecida no artigo
5º, parágrafo 2º, da Constituição.

Isso seria suficiente para permitir a atuação do Judiciário.


Não se poderia, ademais, imaginar uma limitação do Poder Judi-
ciário no exercício da sua missão constitucional (nascida há
mais de dois séculos, em 1803, em Marbury vs. Madison). A Corte
também possui o dever fundamental de preservar os direitos
fundamentais (individuais, coletivos e difusos), impondo limites
e controle à atuação do Legislativo e do Executivo. Outro ponto
importante é que o Judiciário, em relação aos outros Poderes,
possui maior neutralidade e especialização sobre os temas cons-
titucionais, pois não depende de controle popular do voto e pos-

58
O debate sobre ativismo judicial e autocontenção (self-restraint) ou minimalismo
judicial (judicial minimalism) é exercido há mais de duzentos anos nos EUA. A Harvard
Law Review publicou em 1893 uma conferência de James Bradley Thayer, que apontou
vários argumentos contrários ao ativismo judicial, destacando a ausência de autorização
constitucional, a necessidade de respeito - deferência – aos demais Poderes e impor-
tância de não haver a criação de um paternalismo judicial. DIMOULIS, Dimitri. LUNARDI,
Soraya. Curso de processo constitucional: controle de constitucionalidade e remédios
constitucionais. São Paulo: Atlas, 2011, p. 314-328.

62
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

sui alta capacidade técnica e funcional59. Os juízes são, assim, os


principais fiscais da Constituição.

É inegável que o Legislador e o Executivo possuem a mis-


são de garantir a supremacia constitucional. Aquele porque suas
atribuições e limites estão expressamente regulamentados pela
Constituição e porque é sua a tarefa de efetivar os programas
constitucionais, fixando os meios jurídicos para a concretização.
Este porque exerce evidente fiscalização da produção das nor-
mas jurídicas.60

É ao Judiciário, contudo, que se conferiu, recentemente,


maior ênfase de atuação. Isso é decorrência das omissões do
Legislativo e do Executivo. Mas não apenas. É que o judicial
review permite a mais completa revisão e correção dos atos
estatais e particulares, ressaltando o poder que a Constituição
reserva ao Judiciário. Ou seja:

O papel mais importante entre todos os possíveis guardiões da Consti-


tuição (Poderes Executivo, Legislativo ou Judiciário) é o desempenhado
pelo Judiciário com base em uma razão específica: cabe aos julgadores
decidir definitivamente sobre controvérsias em relação à interpretação
e aplicação do direito. Essa é a sua função, devendo decidir sobre con-
trovérsias relacionadas à manutenção da hierarquia normativa e resol-
61
vendo dúvidas sobre a constitucionalidade de normas.

Daí porque se confere ao Judiciário, em especial ao Su-


premo Tribunal Federal, a atribuição de exercer a função de
curadoria do texto constitucional.62
59
Os juízes possuem maior independência em relação ao legislador e aos membros do
Executivo, pois não estão comprometidos com seus eleitores. O compromisso dos
magistrados deve ser o de assegurar o cumprimento da Constituição.
60
DIMOULIS, Dimitri. LUNARDI, Soraya. Curso de processo constitucional: controle de
constitucionalidade e remédios constitucionais. São Paulo: Atlas, 2011, p. 21-22.
61
DIMOULIS, Dimitri. LUNARDI, Soraya. Curso de processo constitucional: controle de
constitucionalidade e remédios constitucionais. São Paulo: Atlas, 2011, p. 23.
62
DIMOULIS, Dimitri. LUNARDI, Soraya. Curso de processo constitucional: controle de
constitucionalidade e remédios constitucionais. São Paulo: Atlas, 2011, p. 23. Isso não
significa que apenas o Judiciário exerce a função de proteger a Constituição, pois “[...] o
princípio da supremacia constitucional impõe que todas as autoridades estatais velem
pela correta aplicação da Constituição, respeitando e fazendo respeitar a supremacia.

63
A história constitucional pátria já revelou dois modelos
distintos de atuação do Tribunal Constitucional. A autoconten-
ção predominou durante muito tempo, com pouca interferência
na atuação dos outros Poderes, como se verificava, por exemplo,
quando inexistia a produção de decisões judiciais condenatórias
da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e das
operadoras de plano de saúde ao fornecimento de tratamentos e
tecnologias não incorporados.

Atualmente, a realidade é diferente, diante do maior con-


trole exercido pelos membros do Judiciário. Basta avaliar a
grande quantidade de processos judiciais tratando do direito à
saúde.

E isso se deve em razão do próprio caráter dirigente do


texto constitucional, que exige um ativismo da jurisdição com o
fim de cumprir os objetivos do Estado brasileiro. Nas palavras
de Streck:

Este é o ponto: em um país como o Brasil, em que o intervencionismo


estatal até hoje somente serviu para a acumulação das elites, a Consti-
tuição altera esse quadro, apontando as baterias do Estado para o res-
gate das promessas incumpridas da modernidade. Portanto, é possível
dizer que não será a iniciativa privada que fará a redistribuição de ren-
da e a promoção da redução das desigualdades, mas, sim, o Estado, no
seu modelo alcunhado de Democrático de Direito, plus normativo em
relação aos modelos que o antecederam. Deixemos de lado, pois, tanta
desconfiança para com o Estado. O Estado, hoje, pode – e deve – ser
amigo dos direitos fundamentais. E esta é uma questão paradigmáti-
63
ca.

Importa registrar que a liberdade conferida ao Judiciário


não pode ser confundida com abusos, discricionariedades ou
decisionismos.64 Os juízes devem dar cumprimento à Constitui-
ção, sem abusos ou golpes.

Como aceitar que um órgão criado pela Constituição para exercer competências por ela
previstas não deva aplicar e fazer respeitar seus mandamentos?”
63
STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discur-
sivas. 4 ed. são Paulo: Saraiva, 2011, p. 198-199.
64
STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discur-
sivas. 4 ed. são Paulo: Saraiva, 2011, p. 87-88.

64
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

Assim, em países com modernidade tardia é indispensável


a existência um Judiciário autônomo e independente para suprir
a inércia e a omissão do Executivo e do Legislativo, a fim de con-
ferir efetividade à Constituição e proteger os direitos fundamen-
tais, especialmente aqueles relacionados a políticas públicas, eis
que historicamente esquecidos pelos atores do Estado brasilei-
ro.65

Isso deve acontecer, entretanto, de forma equilibrada,


sem abusos do próprio Judiciário. Ou seja, os juízes não devem
ser chamados a resolver todos os problemas do país. O papel do
Judiciário não pode ser banalizado – parece que isso já ocorreu
no Brasil, diante dos 100 milhões de processos em tramitação –
sob pena de causar instabilidade institucional e desequilíbrio
nas relações estatais.

1.6.2. Critérios para a teoria da decisão


em processos judiciais sobre saúde
pública e saúde suplementar

É importante abordar os critérios que os juízes do Brasil


precisam observar para proferir uma decisão judicial sobre di-
reito à saúde (principalmente nos casos de alto impacto para o
gestor, em que o objeto do conflito, por exemplo, reside em in-
ternação compulsória, concessão de tratamentos, medicamentos
ou tecnologias ainda não incorporados, entre outros), a fim de
evitar excessos inconstitucionais.

A Lei 12.401/11 alterou a Lei 8.080/90 estabelecendo, no


sistema jurídico pátrio, regras sobre a assistência terapêutica e a
incorporação de tecnologia em saúde no âmbito do Sistema Úni-
co de Saúde - SUS.

65
STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discur-
sivas. 4 ed. são Paulo: Saraiva, 2011, p. 191.

65
Este artigo não pretende abordar todos os aspectos do a-
ludido diploma normativo, mas destacar alguns que se mostram
demasiadamente importantes para a melhor compreensão do
direito à saúde e que também servem como critérios para a teo-
ria da decisão judicial.

Uma primeira questão é de natureza institucional, materi-


alizada na constituição da Comissão Nacional de Incorporação
de Tecnologias no SUS – Conitec, cujo papel é assessorar o Mi-
nistério da Saúde na incorporação, exclusão ou alteração pelo
SUS de novos medicamentos, produtos e procedimentos, além
de auxiliar a constituição ou a alteração de protocolo clínico ou
de diretriz terapêutica.

O papel da Conitec é desenvolver estudos técnicos para


auxiliar o Ministério da Saúde na incorporação de novas tecno-
logias. A decisão pela incorporação ou não incorporação da nova
tecnologia é proferida de forma democrática, tendo em vista que
a Conitec é entidade plural, cuja composição deverá contemplar
um representante indicado pelo Conselho Nacional de Saúde e
de um representante, especialista na área, indicado pelo Conse-
lho Federal de Medicina.

As decisões da Conitec são divulgadas em seu sítio eletrô-


nico, permitindo-se o acompanhamento pela sociedade na evo-
lução do trabalho no âmbito do SUS. Além das demandas avalia-
das, a Conitec também promove consultas públicas e recebe
sugestões ou propostas de incorporação de novas tecnologias.

Todos os relatórios e decisões da entidade são publicados,


a fim de conferir a necessária legitimidade da atividade desen-
volvida pela instituição.

Assim, é equivocada a alegação de que não há evolução no


sistema de saúde brasileiro, pois a Conitec já orientou a incorpo-
ração de dezenas de tecnologias em saúde e isso precisa ser
reconhecido pelos atores do sistema de Justiça.

A segunda importante inovação trazida com a Lei


12.401/11 foi a necessidade de observância de alguns requisitos

66
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

à incorporação de novas tecnologias no âmbito do SUS. Deve-se,


assim, observar a existência de evidências científicas sobre a
eficácia, a acurácia, a efetividade e a segurança do medicamento,
produto ou procedimento objeto do processo de incorporação.
Além disso, também é indispensável a avaliação econômica
comparativa dos benefícios e dos custos em relação às tecnolo-
gias já incorporadas, inclusive no que se refere aos atendimen-
tos domiciliar, ambulatorial ou hospitalar, quando cabível.

Tais requisitos, portanto, também devem ser observados


quando houver a judicialização de uma nova tecnologia.

Assim, a autoridade judiciária responsável por processo


em que se postula a concessão de medicamento, tratamento ou
tecnologia deve observar as decisões proferidas pela Conitec, eis
que baseadas em critérios técnicos.

Se a decisão da Conitec foi favorável à incorporação da


tecnologia no SUS, parece evidente que o magistrado não pode
contrariá-la, salvo comprovação científica contrária, contempo-
rânea ou superveniente (ônus que compete ao autor do proces-
so). De outro lado, se a posição da aludida entidade é para não
autorizar a incorporação da tecnologia no âmbito do SUS, o juiz
somente poderá deferir o pedido veiculado na via judicial se
houver prova técnica – e apenas técnica – refutando a conclusão
da Conitec (neste caso, a prova técnica também precisa ser a-
presentada pela parte autora).

Na hipótese de ausência de decisão técnica na via admi-


nistrativa, a autoridade judiciária pode se valer de consulta à
Conitec, que responde, inclusive por e-mail, todos os questio-
namentos acerca de produtos e tecnologias postulados na via
judicial66.

É importante mencionar que a decisão judicial destituída


de fundamentação fática é nula, por descumprir o comando do
artigo 93, IX, da Constituição. Vale dizer, não basta mencionar

66
conitec@saude.gov.br

67
apenas que o direito à saúde está garantido na Constituição a
partir do artigo 5º e do artigo 196. É necessário, também, na
análise do caso judicializado, a investigação do diagnóstico, do
quadro clínico e principalmente, a comprovação da melhor prá-
tica de evidência científica, além da eficácia, da acurácia, da efe-
tividade e da segurança do medicamento, produto ou procedi-
mento postulado, sem dispensar, também, a avaliação econômi-
ca comparativa dos benefícios e dos custos em relação às tecno-
logias já incorporadas (observância da relação custo-benefício).

Ou seja, considerando que o Judiciário tem criado políti-


cas públicas de saúde (não obstante a aparente ausência de legi-
timidade constitucional), proferindo decisões judiciais de con-
cessão de medicamentos e tratamentos não previstos no âmbito
do SUS – ou regulamentados por operadoras de planos de saúde,
é inegável a decisão judicial deverá cumprir as exigências da Lei
12.401/11, já que sua atividade é exercida – ainda que inade-
quadamente – em substituição ao órgão técnico (v.g. Conitec).

Em breve consulta à jurisprudência do Supremo Tribunal


Federal e ao Superior Tribunal de Justiça, não se verificou, a
análise das decisões proferidas pela Conitec, muito menos os
requisitos fixados na Lei 12.401/11. Há necessidade, portanto,
de adequação dos juízes e Tribunais ao tema, sob pena de prola-
tação de decisão não baseada em critérios científicos (medicina
baseada em evidências) e que poderá colocar em risco a segu-
rança do pretenso beneficiário e ao próprio sistema de saúde –
público e suplementar.

Ainda em relação ao processo judicial, quando demanda-


dos, os entes públicos trazem em suas defesas a alegação da
possível violação ao princípio da separação dos poderes e da
reserva do possível como elementos impeditivos ao deferimento
da pretensão veiculada judicialmente. De outro lado, o autor da
ação também afirma que o tratamento e o uso do medicamento
ou tecnologia é necessário para preservação do direito à vida, da
dignidade da pessoa humana e do mínimo existencial.

Cabe ao magistrado, nestes casos, verificar se há abusivi-


dade negativa decorrente da inércia na implementação do direi-

68
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

to à saúde, já que existe o dever estatal de estabelecer um stan-


dard mínimo a fim de satisfazer as normas constitucionais.

Em verdade, a despeito da sua previsão, o texto constitu-


cional não estabelece um rol de prioridades no cumprimento
dos direitos fundamentais sociais, razão pela qual a definição – e
a implementação – de políticas públicas conduz a uma escolha
trágica, já que a opção por uma levará, em princípio, ao prejuízo
de outra política também contemplada constitucionalmente,
ante a inexorável limitação de recursos humanos e orçamentá-
rios.

Nestes casos, são critérios para a decisão judicial: (a) ob-


servar a decisão da Conitec – ou de outra entidade que fornece
apoio técnico ao juiz, tal como Núcleo de Apoio Técnico, Câmara
Técnica, entre outros; (b) analisar a existência da melhor prática
de evidência científica sobre a eficácia, a acurácia, a efetividade
e a segurança do medicamento, produto ou procedimento postu-
lado judicialmente (c) a avaliação econômica comparativa dos
benefícios e dos custos em relação às tecnologias já incorpora-
das (e já fornecidas), inclusive no que se refere aos atendimen-
tos domiciliar, ambulatorial ou hospitalar, quando cabível (o
critério, aqui, é da relação custo-benefício) e; (d) observar se o
pedido judicial está em conformidade com as Recomendações
31 e 36 do Conselho Nacional de Justiça.

Tais exigências são mínimas e devem ficar robustamente


demonstradas para a obtenção de decisão favorável em proces-
so judicial sobre direito à saúde.

Eventualmente, o juiz pode exigir prova pericial para a


comprovação dos pressupostos acima apresentados, ressalvada
a hipótese de prova documental suficiente à demonstração da
pretensão. Contudo, geralmente os médicos peritos nomeados
pelo magistrado não fazem a análise exauriente da questão, pois
deixam de abordar os critérios técnicos e de avaliar o custo-
benefício do tratamento postulado, como exigido pela Lei
12.401/11. Além disso, trata-se de uma mera opinião de especi-

69
alista, que se encontra no mesmo nível de graduação da opinião
apresentada na prescrição médica67.

O que não pode existir – e isso é muito comum – é conde-


nação judicial com base em mero atestado ou mera requisição
médica. Tal decisão macula a cláusula de inafastabilidade do
controle jurisdicional (artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição),
que outorga à autoridade judiciária o dever-poder de proferir
uma decisão com eficácia vinculativa plena (coisa julgada), exi-
gindo, por isso, a cognição exauriente plena sobre o tema, que
não prescinde da análise dos critérios de decisão antes aponta-
dos.

Na hipótese de procedência do pedido, é comum a fixação


de parâmetros do cumprimento da decisão judicial, pois, em
princípio, caberia ao próprio agente do órgão fornecedor ou, em
especial, ao médico vinculado ao SUS ao à operadora de saúde
promover, regular e periodicamente, uma consulta para análise
do real estado de saúde do paciente, a fim de constatar, no
transcurso de certo espaço de tempo, se ainda persistem os sin-
tomas que ensejam o uso e aplicação do tratamento cuja entrega
foi determinada judicialmente.

Ou seja, os profissionais médicos do SUS e dos planos de


saúde também serão responsáveis pela execução da sentença
judicial, devendo, com base nos postulados fixados na melhor
prática de medicina de evidência e com razoabilidade, avaliar
regularmente o quadro clínico do sujeito.

67
Sobre os níveis de graduação das evidências científicas tem-se a seguinte ordem: 8º
opinião de especialista; 7º relato de caso; 6º série de casos; 5º estudo caso-controle; 4º
estudo coorte; 3º ensaio coorte; 2º mega trail e; 1º revisão sistemática com ou sem
meta-análise. Observa-se, assim, que a opinião de um especialista – geralmente utilizada
em processo judicial – contempla o menor nível de evidência científica. Por esta razão,
deve-se evitar a produção de prova pericial, pois o médico perito está no mesmo pata-
mar (à luz da evidência científica) do médico assistente prescritor.

70
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

1.6.3. Diálogos institucionais

Conforme já observado, há, hodiernamente, uma ascensão


da atuação do Poder Judiciário brasileiro. A existência de apro-
ximadamente 100 milhões de processos em tramitação demons-
tra o real cenário de beligerância social e judicial.

Isto demonstra que a sociedade brasileira está desajusta-


da, porquanto judicializa a vida, a política e todas as relações
sociais, sem nenhum limite.

Assim, as novas atribuições conferidas ao Judiciário em


decorrência da abertura do sistema jurídico, do novo constitu-
cionalismo e do poder inerente ao judicial review, exigem uma
virada de postura por parte dos membros integrantes dos Pode-
res do Estado.

Vale dizer, os agentes políticos precisam exercer suas fun-


ções, sempre que possível, mantendo diálogos constitucionais –
institucionais. Se todos os agentes públicos devem obediência ao
texto da Constituição, é indispensável que as relações estatais se
estabeleçam a partir da interpretação das normas constitucio-
nais empreendida coletiva e harmonicamente entre os Poderes.

A teoria dos diálogos institucionais representa uma ter-


ceira via, com a tentativa de corrigir os excessos decorrentes do
ativismo judicial e as omissões da autocontenção judicial. Isto
ocorre porque quando há uma atuação forte, o Judiciário é acu-
sado de usurpação de atribuições de outros Poderes e também
da livre iniciativa (liberdade de atuação e planejamento das
operadoras de plano de saúde). De outro lado, quando há atua-
ção fraca, o Judiciário é acusado de abdicação do seu papel insti-
tucional68.

68
FERRAZ, Octávio Luiz Motta. Entre a usurpação e a abdicação? O direito à saúde no
Judiciário do Brasil e da África do Sul. In Constituição e política na democracia: aproxi-
mações entre direito e ciência política. Daniel Wei Liang, organizador. São Paulo: Marci-
al Pons, 2013.

71
A questão é inerente, portanto, à tensão gerada entre de-
mocracia e constitucionalismo.

Afinal, quem possui a última palavra sobre o conteúdo do


direito à saúde? O Executivo, quando cria e executa a política? O
Legislativo, quando edita leis? Ou o Judiciário, quando julga pro-
cessos judiciais? Por outras palavras: quem tem o direito de
decidir por último (com acerto ou com erro)?

A teoria dos diálogos serve para auxiliar na apresentação


de uma resposta a estas questões69. Ou pelo menos para mini-
mizar os impactos de uma decisão unilateral e isolada.

A interpretação constitucional comparada a um diálogo é


obra de Barack Obama e Robert Fisher, que pode ser traduzida
da seguinte forma:

Embora seja muito útil saber como não se deve ler a Constituição, no
final das contas, os juízes, legisladores, e aqueles que ocupam cargos
do Poder Executivo, encarregados de interpretar a Constituição, preci-
sam ser capazes de lê-la. Ler a Constituição não requer uma teoria de
interpretação que englobe a Constituição inteira. Dessa forma, poderí-
amos cair na hiper-integração. Ao mesmo tempo em que nos esforça-
mos para evitar os monstros marinhos da Scila da hiper-integração,
temos que fugir dos monstros do Caridbes da des-integração. Embora
seja impossível oferecer uma teoria da interpretação constitucional to-
talmente consistente, podemos ao menos ensaiar algumas abordagens
aceitáveis para tal empreendimento. O objetivo que nos colocamos pa-
rece demasiadamente hesitante e tentativo, e isso se deve ao fato de
as questões dirigidas para a interpretação constitucional serem ao
mesmo tempo extremamente básicas e difíceis. Na maior parte das ve-
zes não temos respostas, e aquelas que conseguimos dar quase nunca
são precisas. Não é possível alcançar a definição da última palavra da
essência da Constituição; quando isso se torna possível, a Constituição
acaba de perder sua relevância perante uma sociedade em constante
mudança. Com menos ambição e talvez com o pé mais fincado na rea-
lidade, pretendemos contribuir com um diálogo útil para a leitura da
70
Constituição, uma ‘conversa constitucional’.

69
Sobre a teoria dos diálogos institucionais: Mendes, Conrado Hubner. Direitos funda-
mentais, separação de poderes e deliberação. São Paulo: Saraiva, 2011.
70
TRIBE, Laurence. DORF, Michel. Hermenêutica Constitucional. Tradução de Amarílis
de Souza Birchal. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p 35-36.

72
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

Tal noção decorre do Constitucionalismo cooperativo, que


exige a contínua e permanente aproximação entre os agentes
públicos e dos tribunais com a sociedade, bem como porque há
custos políticos e econômicos que são inerentes às questões
levadas ao processo judicial, tal como acontece na decisão que
determina o fornecimento compulsório de medicamentos, tra-
tamentos, etc.

Assim, o diálogo existe para permitir a independência e a


harmonia entre os Poderes da União, nos termos preconizados
pelo artigo 2º da Constituição.

Desta forma, a abertura da interpretação constitucional e


da pluralização do rol de agentes autorizados a participar dos
conflitos de interesse não se limita apenas aos cidadãos, tal co-
mo propõe a teoria de Häberle71, permitindo-se também a inte-
gração dos demais órgãos, entes e Poderes do Estado, com o fim
de conferir maior eficácia às normas estampadas no texto da
Constituição.

O modelo inaugurado com a Constituição de 1988 não


permite deduzir expressamente que cabe ao Poder Judiciário o
papel de dizer a última palavra sobre sistema jurídico. Tal con-
clusão é permitida a partir da leitura que conduz à necessidade
de uma maior participação do cidadão no debate da coisa públi-
ca. Além disso, é preciso, também, resgatar o papel original do
Parlamento. Ou seja, é da sociedade, do Judiciário ou do Parla-
mento o poder de decidir algo em última instância (de errar ou
de acertar por último)?

A teoria dos diálogos constitucionais surge como medida


alternativa à supremacia judicial.

71
HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional. A sociedade aberta dos intérpretes da
Constituição: Contribuição para a interpretação pluralista e procedimental da Constitu-
ição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor,
2002. Título original: Die offene Gesellschaft der Verfassungsinterpreten. Ein Beitrag zur
pluralistischen und ‘prozessualen’ Verfassungsinterpretation.

73
Neste contexto, fomenta-se uma contínua e permanente
conversa entre os atores sociais e institucionais.

Várias são as vantagens da teoria dos diálogos institucio-


nais, destacando-se: 1) fortalecimento das instituições; 2) com-
prometimento dos atores a participar nos debates; 3) decisão
debatida dialogicamente tem efeitos mais duradouros; 4) pres-
tigia a maioria – amplia o numero de pessoas beneficiadas pelas
decisão; 5) evita imposição unilateral (autoritarismo judicial).

Assim, na teoria dos diálogos constitucionais o Judiciário


mapeia as alternativas constitucionais disponíveis e apresenta
aos agentes públicos e à sociedade e melhor alternativa possível.

Tal proposta não pode ser excludente da supremacia judi-


cial (que tem base no art. 5º, XXXV e no art. 102, I, da Constitui-
ção). Defende-se a adoção híbrida do substancialismo e do pro-
cedimentalismo. Sempre haverá conflitos a exigir a imediata
intervenção e correção judicial. Mas o excesso de intervenção do
Judiciário causa uma ruptura no sistema (já existem 100 mi-
lhões de processos), daí a possibilidade de outra alternativa: o
diálogo entre todos os atores!

O diálogo institucional assemelha-se ao romance em ca-


deia mencionado por Dworkin, em que vários romancistas es-
crevem um texto em série e cada um interpreta os capítulos
anteriores para elaborar um novo capítulo assim sucessivamen-
te. Cada romancista “[...] deve escrever seu capítulo de modo a
criar da melhor maneira possível o romance em elaboração, e a
complexidade dessa tarefa reproduz a complexidade de decidir
um caso difícil de direito como integridade.”72

O diálogo institucional é um modelo já adotado, por e-


xemplo, no Conselho Nacional de Justiça, com o Comitê Executi-
vo Nacional do Fórum da Saúde, que é composto por atores do
sistema de justiça e atores do sistema de saúde.

72
DWORKIN, Ronald. O império do direito. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. 2 ed.
São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 276. Título original: Law´s empire.

74
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

O debate dialógico permite a construção coletiva da me-


lhoria do sistema e auxilia no fomento e ampliação da participa-
ção popular.

1.6. Considerações finais

O direito à saúde não é absoluto (nenhum direito é abso-


luto). Contudo, isso não serve de escudo ao gestor (e ao legisla-
dor) para não cumprir a promessa constitucional que consagra a
necessidade de construção da isonomia substancial e que permi-
ta fomentar o progresso social.

A concretização do direito fundamental não configura a-


penas uma faculdade do Estado, mas um dever de cumprimento
das normas da (pós) modernidade.

Assim, diante da omissão e da inércia do gestor público de


saúde, cabe ao Judiciário o controle do ato administrativo – ou
da sua ausência – e do negócio jurídico – na via da saúde suple-
mentar. Não se confere, contudo, poderes absolutos aos juízes,
sob pena de confirmar-se a máxima de Eros Grau, para quem os
magistrados brasileiros são causadores de medo e de insegu-
rança, em razão da alta quantidade de decisões proferidas sem
critérios e que, portanto, são causadoras de insegurança jurídi-
ca73.

A judicialização da saúde, neste contexto, deve ser anali-


sada a partir de critérios mínimos (jurídicos e das ciências da
saúde), que possam conferir primazia ao direito fundamental,
não de forma absoluta, mas de modo a conferir Justiça, com e-
quilíbrio, sustentabilidade e preservação da isonomia substan-
cial.

73
GRAU, Eros Roberto. Por que tenho medo dos juízes. A interpretação/aplicação do
direito e os princípios. São Paulo: Malheiros Editores, 2013.

75
76
2
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

Novas
perspectivas
sobre a
judicialização
da saúde
Clenio Jair Schulze

77
78
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

2.1. Considerações iniciais

O cenário de judicialização ilimitada do direito à saúde,


além de salvaguardar o cidadão dos abusos e omissões, também
tem causado instabilidade institucional em decorrência da alta
quantidade de condenações proferidas em face da União, dos
Estados e dos Municípios.

É inegável que muitas das demandas judicializadas são le-


gítimas e decorrem da violação do direito fundamental. Mas há,
de outro lado, e em determinadas circunstâncias, abuso do direi-
to de ação, em que a pretensão do autor do processo não está
contemplada pela extensão do direito à saúde ou quando há a
utilização o Judiciário como instrumento para a prática de ilici-
tudes (existem várias denúncias relacionadas, v.g., ao mercado
de próteses, órteses, materiais especiais e de medicamentos
ainda não registros no mercado nacional).

Torna-se importante, assim, encontrar mecanismos que


equalizem estas conturbadas relações, a fim de proteger o direi-
to – o cidadão – e maximizar a atuação dos agentes públicos em
prol da consolidação do Estado Constitucional Democrático. É
isto que se pretende abordar neste texto.

2.2. O papel do CNJ na judicialização


da saúde

A atuação do Conselho Nacional de Justiça – CNJ na área


da saúde se iniciou em 2009, como decorrência da audiência
pública (nº 4) designada pelo o Supremo Tribunal Federal para
tratar da judicialização da saúde. Na ocasião foram ouvidos a-
proximadamente 50 especialistas que apresentaram informa-
ções a fim de subsidiar a posição da Corte na análise do tema74.

74
O resultado da audiência púbica auxiliou no conteúdo da decisão proferida na Suspen-
são de Tutela Antecipada 175, AgR/CE, Rel. Min. Gilmar Mendes.

79
O CNJ criou um Grupo de Trabalho para estudo e proposta
de medidas concretas e normativas para as demandas judiciais
envolvendo a assistência à saúde75.

Em resultado à criação do aludido Grupo de Trabalho foi


aprovada a Recomendação n. 31, de 30 de março de 2010, pelo
Plenário do CNJ, e que passou a estabelecer diretrizes aos juízes
em relação às demandas que envolvem o direito à saúde76.

Esta Recomendação foi elaborada com a observância dos


seguintes fatores: (1) elevado número de processos judiciais
sobre o tema da saúde; (2) alto impacto orçamentário para
cumprimento das decisões; (3) relevância da matéria diante da
finalidade de assegurar vida digna aos cidadãos; (4) carência de
informações clínicas prestadas aos juízes do Brasil sobre os
problemas de saúde; (5) necessidade de prévia análise e registro
da Anvisa para a comercialização de medicamentos no Brasil,
nos termos do art. 12 da Lei 6.360/76 c/c a Lei 9.782/99; (6)
reivindicações dos gestores para que sejam ouvidos antes da
prolatação de decisões judiciais; (7) importância de assegurar a
sustentabilidade e gerenciamento do SUS.

As providências foram assim estabelecidas na Recomen-


dação 31, destinadas aos Tribunais de Justiça e aos Tribunais
Regionais Federais, todos com competência para deliberar sobre
processos de saúde pública e saúde suplementar77.

75
CNJ. Portaria 650, de 20 de novembro de 2009. Cria grupo de trabalho para estudo e
proposta de medidas concretas e normativas para as demandas judiciais envolvendo a
assistência à saúde. Disponível em:
http://www.cnj.jus.br/atos-administrativos/11896:portaria-n-650-de-20-de-novembro-
de-2009. Acessado em 28 de outubro de 2014.
76
CNJ. Recomendação 31, de 31 de março de 2010. Recomenda aos Tribunais a adoção
de medidas visando a melhor subsidiar os magistrados e demais operadores do direito,
para assegurar maior eficiência na solução das demandas judiciais envolvendo a assis-
tência à saúde. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/atos-administrativos/atos-da-
presidencia/322-recomendacoes-do-conselho/12113-recomendacao-no-31-de-30-de-
marco-de-2010. Acessado em 28 de outubro de 2014.
77
CNJ. Recomendação 31, de 31 de março de 2010. Recomenda aos Tribunais a adoção
de medidas visando a melhor subsidiar os magistrados e demais operadores do direito,
para assegurar maior eficiência na solução das demandas judiciais envolvendo a assis-
tência à saúde. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/atos-administrativos/atos-da-

80
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

Posteriormente, o CNJ publicou a Resolução n. 107, de 6


de abril de 2010, que instituiu o Fórum Nacional do Judiciário
para monitoramento e resolução das demandas de assistência à
Saúde – Fórum da Saúde, a quem foram destinadas as seguintes
atribuições:

I - o monitoramento das ações judiciais que envolvam


prestações de assistência à saúde, como o fornecimento
de medicamentos, produtos ou insumos em geral, trata-
mentos e disponibilização de leitos hospitalares;

II - o monitoramento das ações judiciais relativas ao Sis-


tema Único de Saúde;

III - a proposição de medidas concretas e normativas vol-


tadas à otimização de rotinas processuais, à organização e
estruturação de unidades judiciárias especializadas;

IV - a proposição de medidas concretas e normativas vol-


tadas à prevenção de conflitos judiciais e à definição de
estratégias nas questões de direito sanitário;

V - o estudo e a proposição de outras medidas considera-


das pertinentes ao cumprimento do objetivo do Fórum
Nacional.78

A Resolução 107 também determinou a criação dos Comi-


tês Executivos para coordenar e executar as ações de natureza
específica, consideradas relevantes (art. 3º).

Atualmente, o Fórum da Saúde é composto por um Comitê


Executivo Nacional, que tem sede no próprio CNJ, integrado por
um juiz auxiliar da Presidência, juízes com atuação na área, es-

presidencia/322-recomendacoes-do-conselho/12113-recomendacao-no-31-de-30-de-
marco-de-2010. Acessado em 02 de abril de 2015.
78
CNJ. Resolução 107, de 6 de abril de 2010. Institui o Fórum Nacional do Judiciário para
monitoramento e resolução das demandas de assistência à saúde. Disponível em:
http://www.cnj.jus.br/atos-administrativos/atos-da-presidencia/323-resolucoes/12225-
resolucao-no-107-de-06-de-abril-de-2010. Acessado em 28 de outubro de 2014.

81
pecialistas, por integrante do Ministério da Saúde, pela Agência
Nacional de Saúde Suplementar – ANS, pela Agência Nacional de
Vigilância Sanitária – ANVISA, pelo CONASEMS – Conselho Na-
cional de Secretarias Municipais de Saúde e pelo CONASS – Con-
selho Nacional de Secretários de Saúde.

Além do Comitê Executivo Nacional, o Fórum da Saúde


também é constituído por Comitês Estaduais e pelo Comitê Dis-
trital (DF).

Recomendou-se que a composição dos Comitês Estaduais


contemple o sistema de justiça e o sistema de saúde.

O sistema de justiça é representado por (i) juízes federais


e (ii) juízes de direito, (iii) membros do Ministério Público (fe-
deral e estadual), (iv) membros das Procuradorias (Estaduais e
Municipais), (v) Defensoria Pública (federal e estadual) e (vi)
OAB.

O sistema de saúde deve ser composto por: (i) gestores,


das secretarias municipais e estaduais de saúde; (ii) médicos;
(iii) farmacêuticos; (iv) gestores da medicina suplementar. O
importante é que haja o diálogo entre estes atores, com a finali-
dade de esclarecer o funcionamento da saúde e do SUS. Muitas
vezes os juízes não sabem a sistemática de compra de medica-
mentos, de funcionamento de hospitais, de contratação de ser-
vidores, e este contato com os gestores auxilia para a concreti-
zação da decisão judicial e efetivação do direito fundamental à
saúde.

Estas composições ecléticas dos Comitês auxiliam, portan-


to, a materializar a teoria dos diálogos institucionais – constitu-
cionais – que preconiza a contínua e permanente aproximação e
conversa entre os diversos atores envolvidos e preocupados
com a resolução dos conflitos de interesses.

O diálogo existe, ainda, para permitir a independência e a


harmonia entre os Poderes da União, nos termos preconizados
pelo artigo 2º da Constituição.

82
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

2.2.1. Iniciativas do Fórum da Saúde do CNJ

A atuação do Fórum da Saúde do CNJ tem por finalidade a


redução da judicialização, sem limitar o exercício da cidadania.
Busca-se prevenir a discussão judicial e, quando inevitável, que
os agentes envolvidos consigam resolver a lide da forma menos
agressiva e menos onerosa possível a todos os envolvidos.

Para dar concretude à esta finalidade, foram recomenda-


das a adoção de algumas iniciativas, abaixo mencionadas.

2.2.2. Núcleos ou Câmaras de Apoio Técnico

O CNJ fomentou a criação de órgãos compostos por pro-


fissionais da área médica, farmacêutica, assistência social e por
membros das Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde que
tem por finalidade auxiliar os magistrados na deliberação sobre
processos envolvendo temas de saúde.

Nestes casos, após a distribuição da ação judicial, o juiz


pode encaminhar cópia da petição inicial e dos documentos ao
Núcleo de Apoio Técnico – NAT ou Câmara Técnica que se mani-
festa sobre a matéria. Tal órgão examina, por exemplo, se: (1) o
medicamento postulado está registrado na ANVISA; (2) é eficaz
e eficiente ao tratamento da doença; (3) existe outro medica-
mento com menor preço, com o mesmo princípio ativo, ou já
fornecido administrativamente pelo SUS; (4) eficiência, eficácia
e custo-efetividade do tratamento.

O NAT ou Câmara Técnica apresenta, assim, informações


que auxiliam o juiz na análise do pedido de liminar ou do pedido
principal.

Além disso, a atividade do órgão auxilia (i) no cumpri-


mento de decisões judiciais, diante das dificuldades e obstáculos
muitas vezes criados pelos demandados; (ii) na facilitação da
defesa dos entes públicos; (iii) na simplificação do atendimento
de demandas na defensoria pública; (iv) na facilitação da cele-

83
bração de acordos; (v) contribuindo para produção de provas,
com participação em audiências e emissão de pareceres.

Alguns comitês estaduais possuem uma estrutura mais


descentralizada, permitindo-se a criação de comitês locais (nas
Comarcas), com o fim de identificar a realidade de cada região.

2.2.3. Enunciados

Outra iniciativa de destaque é a elaboração de enuncia-


dos, que contemplem resumos de práticas de sucesso e suges-
tões para os diversos atores do sistema judicial e do sistema de
saúde79.

79
O Comitê Executivo do Paraná editou os seguintes enunciados:
Enunciado nº 01 (Ata 06, de 12.09.2011) - "As ações que versem sobre pedidos para que
o Poder Público promova a dispensação de medicamentos ou tratamentos, baseadas no
direito constitucional à saúde, devem ser instruídas com prescrição de médico em
exercício no Sistema Único de Saúde, ressalvadas as hipóteses excepcionais, devidamen-
te justificadas, sob risco de indeferimento de liminar ou antecipação da tutela"
Enunciado nº 02 (Ata 06, de 12.09.2011) - "Os pedidos ajuizados para que o Poder
Público forneça ou custeie medicamentos ou tratamentos de saúde devem ser objeto de
prévio requerimento à administração, a quem incumbe responder fundamentadamente
e em prazo razoável. Ausente o pedido administrativo, cabe ao Poder Judiciário ouvir o
gestor público antes de apreciar pedidos de liminar, se o caso concreto o permitir" (Ata
06).
Enunciado nº 03 (Ata 07, de 11.10.2011) - “A determinação judicial de fornecimento de
medicamentos deve observar a existência de registro na ANVISA" (Ref. Legislativa: artigo
19-T, inciso II, da Lei nº 8.080/90, com redação dada pela Lei nº 12.401/11).
Enunciado nº 04 (Ata 07, de 11.10.2011) - “Ao impor a obrigação de prestação de saúde,
o Poder Judiciário deve levar em consideração as competências das instâncias gestoras
do SUS”.
Enunciado nº 05 (Ata 16, de 03.09.2012) - “As ações judiciais que versem sobre pedidos
para que o Poder Público promova a dispensação de tratamentos e medicamentos
oncológicos, baseadas no direito constitucional à saúde, devem ser instruídas com prova
do cadastro do paciente/autor em rede pública de atenção oncológica (CA-
CON/UNACON) e com cópia integral do prontuário do paciente”.
Enunciado nº 06 (Ata 32, de 13.06.2014) - "Para a internação compulsória ou involuntá-
ria, em relação à transtornos mentais, inclusive quanto ao uso de álcool e drogas, é
mister que a petição inicial venha instruída com laudo de solicitação de internação
hospitalar firmado por médico, preferencialmente psiquiatra". CNJ. Iniciativas do Comi-
tês Estaduais. Disponível em http://www.cnj.jus.br/programas-de-a-a-z/saude-e-meio-

84
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

2.2.4. Cartilhas

Alguns Comitês Estaduais do Fórum da Saúde também


passaram a editar cartilhas, aglutinadoras de pensamentos so-
bre o tema da saúde. Dois são os exemplos.

O Comitê do Rio Grande do Norte elaborou uma cartilha


sobre oncologia no SUS, reunindo informações sobre (i) a estru-
tura da política de dispensação de medicamentos oncológicos no
SUS; (ii) eventos ou agravos que estão cobertos pela Política
Nacional de Atenção Oncológica – PNAO; (iii) como está estrutu-
rada e organizada a rede de atenção oncológica; (iv) processo de
credenciamento dos hospitais e clínicas conveniadas; (v) proce-
dimentos para formalização dos protocolos e diretrizes terapêu-
ticas no SUS; (vi) formas e procedimentos de pagamento pelos
serviços prestados aos beneficiários do SUS na área oncológica;
(vii) a oncologia e nova Lei 12.732/2012; (viii) dispensação
centralizada de medicamento na área da oncologia; (ix) termos
técnicos utilizados na oncologia80.

O Comitê do RS também editou cartilha, em que se apre-


senta, v.g., termo de acordo celebrado entre todos os atores en-
volvidos com a saúde da aludida unidade da federação para um
planejamento e gestão sistêmicos81.

2.2.5. Mutirões de conciliação

Outras políticas públicas que os Comitês Estaduais desen-


volvem é a promoção de mutirões de conciliação na área da saú-
de.

ambiente/forum-da-saude/iniciativas-dos-comites-estaduais. Acessado em 28 de outu-


bro de 2014.
80
TJRN. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte: 2014. Disponível em:
www.tjrn.jus.br/flip/cartilha-sus. Acessado em 28 de outubro de 2014.
81
MPRS. Ministério Público – Rio Grande do Sul: 2014. Disponível em:
http://www.mp.rs.gov.br/areas/medicamentos/arquivos/cartilhapdf/cartilhamaio.pdf.
Acessado em 28 de outubro de 2014.

85
É exemplo de sucesso, no qual se escolhem processos es-
pecíficos, ou com pedidos idênticos, e são levados para tentativa
de celebração de acordo entre as partes envolvidas.

Sobre o tema, Câmaras de Conciliação podem ser criadas


para atuar na resolução de problemas de saúde pública e tam-
bém de saúde suplementar, inclusive na perspectiva pré-
processual (prévia ao ajuizamento da ação judicial).

Na hipótese de insucesso da conciliação, o juiz já está ha-


bilitado a proferir decisão liminar ou definitiva na própria audi-
ência.

2.2.6. Especialização de varas de saúde pública

O plenário do Conselho Nacional de Justiça aprovou, por


unanimidade, recomendação aos Tribunais dos Estados e aos
Tribunais Regionais Federais para especialização de varas para
processar e julgar processos cujo objeto seja tema de saúde pú-
blica82.

Na mesma decisão, o CNJ também recomendou aos Tribu-


nais a priorização de julgamentos dos processos relativos a de-
mandas de saúde suplementar83.

As medidas recomendadas decorrem de uma preocupação


do cidadão brasileiro sobre as políticas públicas de saúde e auxi-
liam no trâmite dos processos judiciais.

82
CNJ. Pedido de Providências 0002150-61.2012.2.00.0000. Decisão proferida em 06 de
agosto de 2013. Disponível em:
http://www.cnj.jus.br/acompanhamentoprocessualportal/faces/jsf/consultarandament
oprocessual/ConsultarProcesso.jsp. Acessado em 28 de outubro de 2014.
83
CNJ. Recomendação n.43, de 20 de agosto de 2013/Conselho Nacional de Justiça-
Brasília: CNJ 2013. Recomenda aos Tribunais de Justiça e aos Tribunais Regionais Fede-
rais que promovam a especialização de Varas para processar e julgar ações que tenham
por objeto o direito à saúde pública e para priorizar o julgamento dos processos relati-
vos à saúde suplementar. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/atos-
administrativos/atos-da-presidencia/322-recomendacoes-do-conselho/26014-
recomendacao-n-43-de-20-de-agosto-de-2013. Acessado em 28 de outubro de 2014.

86
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

Assim, considerando o alto número de lides sobre saúde


em tramitação no judiciário brasileiro, e diante do direito fun-
damental à saúde e do dever do Estado de concretizar esse direi-
to com políticas públicas adequadas, o CNJ recomendou os Tri-
bunais a especializar varas de saúde pública e a priorizar os
julgamentos dos processos envolvendo saúde suplementar.

É verdade que não se pode fixar de imediato o impacto de


redução temporal da tramitação de processos sobre saúde, mas
é inegável que há inúmeras vantagens das providências reco-
mendadas, tais como a facilitação do cumprimento da Constitui-
ção, que fixa o direito à saúde como um direito fundamental
social. Permite também conferir dignidade aos cidadãos que
possuam algum problema de saúde e que não obtiveram sucesso
quando procuraram o SUS ou o plano de saúde. Permite também
a especialização do serviço, a fim de facilitar o trabalho da uni-
dade judicial.

O CNJ também recomendou sugerir à Enfam – Escola Na-


cional de Formação e Aperfeiçoamento e ao Centro de Formação
e Aperfeiçoamento de Servidores do Poder Judiciário - CEAJUD
do próprio CNJ, a proposta de inclusão do direito sanitário como
disciplina obrigatória em concursos públicos de ingresso na
magistratura e nos cursos de formação, vitaliciamento e aperfei-
çoamento, nos moldes da Recomendação CNJ nº 31/2010.

2.2.7. Jornada de direito da saúde do CNJ

Em maio de 2014 o CNJ promoveu sua I Jornada de Direi-


to da Saúde com a finalidade de reunir autoridades das áreas da
saúde e do direito para debater os principais temas relacionados
à judicialização da saúde e, principalmente, produzir e aprovar
enunciados interpretativos voltados à uniformização de enten-
dimentos e auxiliar as decisões dos agentes de saúde e dos inte-
grantes do sistema de saúde.

87
Um aspecto importante do evento foi a abertura democrá-
tica, que permitiu a participação de juízes, membros dos Minis-
térios Públicos, da Advocacia, das Defensorias Públicas, das Pro-
curadorias, médicos, gestores públicos e agentes de operadoras
de planos de saúde e também representantes da sociedade civil.

A Jornada foi organizada com base em três eixos temáti-


cos: saúde pública, saúde suplementar e biodireito. E o resultado
foi a aprovação de quarenta e cinco enunciados84.

2.2.7.1. Enunciados de saúde pública

Vários são os temas de saúde pública enfrentados quoti-


dianamente pelo Poder Judiciário. Uma preocupação apresenta-
da na Jornada foi relacionada aos (1) procedimentos e à (2) se-
gurança das tecnologias postuladas na via judicial.

Com base nestas duas premissas, os participantes da Jor-


nada aprovaram as seguintes diretrizes: a) o Judiciário deve
evitar, sempre que possível, a internação psiquiátrica (Enuncia-
do 1); b) necessidade de renovação periódica do relatório médi-
co nas decisões de caráter continuativo, como acontece no for-
necimento de medicamentos (Enunciado 2); c) antes da judicia-
lização, recomenda-se a verificação de disponibilidade do aten-
dimento na via administrativa (Enunciado 3); d) esgotamento
dos protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas do SUS ou de-
monstração da sua inviabilidade diante do quadro clínico do
paciente (Enunciado 4); e) adoção do rito ordinário quando o
pleito envolver medicamento não registrado na ANVISA, off
label, experimental ou internação compulsória a exigir dilação
probatória incompatível com o rito dos juizados especiais (e-
nunciado 5); f) deve-se evitar o fornecimento de medicamentos
não registrado na ANVISA ou experimentais (enunciado 6); g)
nos tratamentos para câncer, os pacientes devem ser acompa-
nhados por CACON/UNACON (enunciado 7); h) necessidade de

84
CNJ. Fórum da Saúde/Conselho Nacional de Justiça – Brasília: CNJ 2014. Disponível em:
http://www.cnj.jus.br/evento/eventos-novos/i-jornada-do-forum-nacional-da-saude.
Acessado em 28 de outubro de 2014.

88
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

observância das regras administrativas de repartição de compe-


tência entre os gestores (enunciado 8); i) cumprimento das
normas da CONEPE e da ANVISA nos tratamentos experimentais
(enunciado 9); j) não cabe ao SUS o cumprimento de serviços de
assistência social (enunciado 10); k) inclusão do autor do pro-
cesso judicial em programa de acompanhamento do SUS (enun-
ciado 11); l) deve ser comprovada a inefetividade de traamento
fornecido pelo SUS (enunciado 12); m) oitiva do gestor previa-
mente à decisão judicial de fornecimento de medicamento, tra-
tamento ou produto (enunciado 13); n) indeferimento de pedido
judicial quando não comprovada a inefetividade ou improprie-
dade do tratamento fornecido pelo SUS (enunciado 14); o) indi-
cação técnica nas prescrições médicas e não indicação de marca
(enunciado 15); p) é do autor do processo judicial o ônus de
provar a ausência de evidência científica, inefetividade ou im-
propriedade dos tratamentos do SUS (enunciado 16); q) os Mu-
nicípios podem indicar representantes para compor o Núcleos
de Assessoramento ou Apoio Técnico – NATs (enunciado 17); r)
os NATs devem se manifestar previamente à decisão liminar ou
antecipatória de tutela; (enunciado 18); s) recomenda-se ao
autor da ação judicial apresentar questionário técnico respondi-
do por seu médico (enunciado 19).

2.2.7.2. Enunciados de saúde suplementar

Os enunciados de saúde suplementar apresentam orien-


tações de natureza procedimental e também de natureza técni-
ca, atinente à interpretação da legislação vigente.

Com efeito, estabeleceu-se que: a) as operadoras de saúde


estão obrigadas a fazer inseminação artificial ou fertilização in
vitro apenas se houver previsão contratual (enunciado 20); b) os
contratos devem observar o rol de procedimentos de cobertura
obrigatória previsto em Resolução da ANS (enunciado 21); c) o
regime jurídico dos planos coletivos é distinto do regime jurídi-
co dos planos individuais/familiares, inclusive em relação a
índices, ajustes e reajustes (enunciado 22); d) deve-se consultar
a ANS nos litígios judiciais sobre extensão e cobertura de proce-

89
dimentos (enunciado 23); e) cabe à operadora custear as despe-
sas de terceiro profissional indicado para dissipar dúvida entre
o profissional indicado pelo segurado e pela própria operadora
(enunciado 24); f) não pode ser negada assistência com base em
doença ou lesão preexistente desconhecida (enunciado 25); g) é
lícito exclusão de cobertura de produto não nacionalizado ou
experimental (enunciado 26); h) devem ser observados os atos
normativos do CFM, do CFO e o rol de procedimentos da ANS
(enunciado 27); nas decisões judiciais para fornecimento de
OPME deve-se mencionar a descrição técnica e observar a regu-
lamentação vigente (enunciado 28); (i) o juiz deve exigir do
médico assistente a comprovação da eficácia, efetividade, segu-
rança e evidência científica do tratamento, medicamento ou
OPME indicado (enunciado 29); j) cabe audiência de justificação
com o médico ou odontólogo para dirimir dúvidas técnicas acer-
ca da prescrição (enunciado 30); k) os juízes devem utilizar o
NAT ou serviço equivalente (enunciado 31); l) a petição inicial
deve conter a descrição completa do tratamento, medicamento,
produto e do quadro clínico do autor da ação judicial (enunciado
32); m) os integrantes do sistema de Justiça devem utilizar os
pareceres da CONITEC e da ANS (enunciado 33); n) não podem
ser negados os serviços e tratamentos previstos na Lei 9656/98
e no rol de procedimento e eventos em saúde, incluindo-se a-
queles decorrentes de complicações de procedimentos médicos
e cirúrgicos decorrentes de procedimentos não cobertos (enun-
ciados 34 e 36); o) cabe ao consumidor comprovar o seu vínculo
com a respectiva pessoa jurídica, sob pena de seu contrato ser
considerado individual (enunciado 35).

Tais enunciados foram construídos coletivamente por a-


gentes do sistema de Justiça e também por representantes da
sociedade civil e de operadoras de planos de saúde, incluindo
entidades de autogestão.

90
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

2.2.7.3. Enunciados de biodireto

O biodireito também apresenta inúmeras questões con-


trovertidas que são levadas aos tribunais.

Os enunciados aprovados englobaram os seguintes temas:


a) as manifestações antecipadas de vontade devem ser feitas
preferencialmente por escrito, admitindo-se outras formas ine-
quívocas (enunciado 37); b) pesquisas com seres humanos de-
vem ser promovidas com base na sua necessidade, sua utilidade,
sua proporcionalidade e com observância aos direitos funda-
mentais (enunciado 38); c) o estado de filiação não decorre ape-
nas do vínculo genético, incluindo a reprodução assistida com
material genético de terceiro, derivando da manifestação ine-
quívoca de vontade da parte (enunciado 39); d) pessoas do
mesmo sexo podem ser consideradas pais no registro de nasci-
mento de indivíduo gerado por reprodução assistida (enunciado
40); e) é inconstitucional a limitação de idade máxima para que
mulheres possam submeter-se ao tratamento e à gestação por
reprodução assistida (enunciado 41); f) se houver comprovação
do desejo pessoal fica dispensada a cirurgia de transgenitaliza-
ção para a retificação de nome no registro civil (enunciado 42);
g) admite-se a retificação do sexo jurídico sem a realização da
cirurgia de transgenitalização (enunciado 43); g) o absoluta-
mente incapaz em risco de morte pode ser obrigado a submeter-
se a tratamento médico contra a vontade do seu representante
(enunciado 44); h) na gestação de substituição em reprodução
humana assistida, deve-se observar a determinação do vínculo
de filiação dos autores do projeto parental que promoveram o
procedimento (enunciado 45).

Todos os enunciados acima mencionados demonstram


que é preciso ampliar e fortalecer o diálogo entre os agentes
públicos responsáveis pela concretização do direito fundamen-
tal à saúde. A atuação isolada do sistema de justiça (operadores
do Direito) e do sistema de saúde (gestores) não contribui para
a evolução e o progresso desejado pela sociedade.

91
A criação da melhor decisão judicial sobre um tratamento
de saúde passa pela análise de fatores técnicos geralmente ex-
ternos à teoria jurídica, razão pela qual a noção médica e farma-
cológica precisa ser observada na análise de processo judicial
sobre o tema da saúde.

Neste sentido, demonstra-se que a administração do Po-


der Judiciário, especialmente o Conselho Nacional de Justiça,
tem enfrentado o tema da judicialização da saúde, a fim de per-
mitir o cumprimento equilibrado dos direitos fundamentais
estampados na constituição da República Federativa do Brasil.

2.3. Novas perspectivas de atuação do


Legislativo, do Executivo e do Judiciário

A superação da crise do Estado e a compatibilização do


direito à saúde com a limitação financeira e de recursos huma-
nos e tecnológicos devem ser empreendidas a partir de alguns
parâmetros.

De início, é preciso enfatizar a necessidade de adoção am-


pla e irrestrita do conceito de sustentabilidade.

A noção de sustentabilidade enseja a escolha de uma polí-


tica menos impactante orçamentária e politicamente nas rela-
ções fáticas e jurídicas do cidadão e do ambiente nacional.

Conforme orienta Freitas, a sustentabilidade é multidi-


mensional e deve contemplar cinco vertentes, a saber: (a) jurídi-
co-política – que engloba um grupo de deveres, tal como educa-
ção, saúde, processo, informação, moradia, ambiente limpo, en-
tre outros, e que exige a adaptação do regime administrativo,
especialmente na contratação de agentes e de obras públicas e
na prática de atos administrativos; (b) social – vincula todos os
seres, como a proteção do trabalhador, evitando a mão de obra
escrava; (c) econômica – preconiza escolha de políticas econô-
micas sustentáveis, combate ao desperdício, controle rigoroso
de licitações e de obras públicas; (d) ambiental – dignidade do

92
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

ambiente, responsabilidade ambiental, redução da poluição,


preservação das espécies; (e) ética – aplicada na perspectiva
intersubjetiva, de materializar o compromisso das atuais gera-
ções sem prejudicar as futuras gerações. Fomentar o bem-estar
íntimo e social85.

É inegável que a administração possui discricionariedade


para a escolha na alocação de recursos, mas tal liberdade não é
absoluta e se reduziu ao longo do tempo, diante da necessidade
de observância e cumprimento do direito fundamental à saúde e
dos princípios estampados no texto da Constituição. Pelo mes-
mo fundamento, o Legislativo não possui irrestrita liberdade de
conformação, ante a necessidade de obediência às diretrizes
constitucionais.

A sustentabilidade exige um rigoroso controle no gasto


público. Há casos graves de malversação de dinheiro, tal qual o
pagamento de mais de meio milhão de reais para a apresentação
de uma cantora de axé music na inauguração de um hospital no
Estado do Ceará86.

A atuação sustentável exige do Executivo o esclarecimen-


to e a publicação dos procedimentos de compra, inclusive com a
demonstração de abusos e excessos praticados pelos laborató-
rios. O Estado não pode ficar refém dos fabricantes de fármacos.

Deve-se, também, fomentar a realização de audiências


públicas para permitir a participação do cidadão na escolha das
opções existentes, legitimando o modelo democrático instaura-
do pelo Constituição vigente. Se há limitação financeira, a aloca-
ção de recursos não pode ficar circunscrita à administração,
cabendo ao cidadão, ainda que de forma reduzida, opinar em
pelo menos parte do orçamento da saúde. Aprimora-se, assim, a
teoria das escolhas públicas.

Neste contexto, também à luz da atuação sustentável do


Estado administrador e do Estado legislador, é preciso avançar

85
FREITAS, Juarez. Sustentabilidade: direito ao futuro. Belo Horizonte: Fórum, 2011.
86
Jornal Estado de São Paulo. São Paulo. 24/01/2013.

93
na efetiva repartição de competências e na redefinição do mode-
lo federativo brasileiro.

Com efeito, é indispensável uma efetiva e concreta des-


centralização das atuações do sistema de saúde pública com
ênfase nas unidades federativas mais próximas do cidadão. Os
Municípios são depositários de inúmeras obrigações previstas
na Lei 8.080/90, mas não possuem a necessária contrapartida
orçamentária.

A centralização dos recursos na União é prejudicial ao


progresso das políticas públicas de saúde. A transferência de
recursos do ente federativo central sempre passa pela infeliz e
lamentável drenagem irregular que produz violações à atuação
proba e ética exigida dos agentes públicos. É, em outras pala-
vras, exemplo de facilitação da prática de crimes contra a admi-
nistração pública em detrimento da sociedade e, principalmente,
dos cidadãos que aguardam a atuação estatal eficiente na con-
dução da política de saúde. O problema existe e precisa ser com-
batido em prol dos princípios da moralidade e da eficiência que
norteiam a atuação estatal.

Neste sentido, é importante uma articulação entre os três


entes da federação para ajustar a solidariedade na responsabili-
dade da prestação de serviços de saúde. Medicamento e trata-
mento de alta complexidade, por exemplo, não podem ficar na
conta dos Municípios. É preciso, portanto, que haja interlocução
federativa, a fim e evitar sobrecarga de algum ente, com a as-
sunção indevida de responsabilidade.

Mostra-se necessário também que a administração se


permita aplicar as regras de mediação e conciliação no trato de
questões da saúde. Há uma resistência muito grande dos entes
públicos e respectivos órgãos jurídicos na adoção de meios al-
ternativos de resolução de litígios.

A execução das políticas públicas de saúde não pode exi-


gir a chancela do Judiciário em todas as opções e escolhas, dian-
te do já gigantesco número de processos em tramitação, de a-
proximadamente cem milhões.

94
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

Assim, o debate sobre o uso adequado dos escassos recur-


sos também exige uma postura adequada do sistema de Justiça
(Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública e Advo-
cacia) no enfrentamento da questão.

Assim, é possível exemplificar algumas medidas a contri-


buir para as políticas de saúde:

(a) prestígio das ações coletivas: não é razoável a amplia-


ção do número de processo judiciais individuais para a resolu-
ção de problemas coletivos. É preciso fomentar o manejo de
ações coletivas com o fim de permitir que os tratamentos, medi-
camentos ou políticas postuladas ao Judiciário sejam direciona-
dos ao maior número de pessoas. Prestigia-se a molecularização
em detrimento da atomização dos processos judiciais e protege-
se o princípio constitucional da isonomia, evitando conferir-se
tratamento privilegiado apenas aqueles que judicializam indivi-
dualmente a suas demandas;

(b) rigorismo na análise dos pedidos deduzidos judicial-


mente: há exemplos de fornecimentos de pílulas estimulante
sexual, chocolate ou alimento sem glúten para celíaco, sempre a
partir de prescrições médicas duvidosas tecnicamente. A ques-
tão que se apresenta é: o juiz está vinculado ao que consta na
prescrição médica? A resposta adequada à Constituição é nega-
tiva, pois uma vez instaurada a jurisdição a autoridade judiciária
possui a ampla liberdade para avaliar a razoabilidade e a legiti-
midade do pedido, nos termos do que se deduz da leitura do
princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional (art.5 º,
inciso XXXV, da Constituição). Neste ponto, é preciso assentar
que o juiz não é refém de médico e o médico não possui poderes
absolutos para prescrever, já que deve observar as práticas cien-
tificamente comprovadas e a legislação de regência87. Deve-se
acabar com a ditadura do médico e com a ditadura do julga-
dor88;

87
Código de Ética Médica. Resolução CFM nº 1931/2009, capítulo II.
88
GADELHA, Maria Inez Gadelha. O papel dos médicos na judicialização da saúde.
Revista CEJ, Brasília, Ano XVIII, n. 62, p. 65-70, jan./abr. 2014.

95
(c) ampliação do diálogo entre o sistema de justiça e o sis-
tema de saúde: é preciso aumentar e fortalecer a articulação
entre os agentes públicos responsáveis pela concretização do
direito fundamental à saúde. A atuação isolada do sistema de
justiça (operadores do Direito) e do sistema de saúde (gestores)
não contribui para a evolução e o progresso desejado pela soci-
edade. A criação da melhor decisão judicial sobre um tratamen-
to de saúde passa pela análise de fatores técnicos geralmente
externos à teoria jurídica, razão pela qual a noção médica e far-
macológica precisa ser incorporada ao exercício da função juris-
dicional. Este é o modelo adequado à construção do Estado de-
sejado, que observe os objetivos da República Federativa do
Brasil e que contemple uma sociedade livre, justa, solidária;

(d) é preciso que os atores do sistema de saúde conheçam


as políticas de saúde: o Ministério da Saúde divulga no seu por-
tal da saúde todos os programas existentes no âmbito do gover-
no federal. A Conitec – Comissão Nacional de Incorporação de
Tecnologia no SUS informa o procedimento de incorporação de
novas tecnologias ao sistema de saúde pública. Há, e isso é im-
portante destacar, a divulgação da Relação Nacional de Medica-
mentos Essenciais (Rename), na qual constam todos os fárma-
cos disponíveis no SUS. Tudo isso precisa ser do conhecimento
do magistrado para planejar e construir a decisão mais adequa-
da jurídica e tecnicamente;

(e) fomento à mediação e à conciliação. É preciso avançar


nas políticas de resolução alternativa de conflitos. Neste ponto, é
importante que os entes públicos – gestores de saúde e procu-
radores – sejam mais acessíveis às políticas de conciliação e de
mediação. Torna-se preciso deixar ao passado a ideia de que a
fazenda pública não pode fazer acordo.

2.4. Legitimação democrática da decisão


judicial

Outra questão importante é aquela referente à atuação do


Poder Judiciário. Muitas das críticas apresentadas contra a atua-

96
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

ção forte dos juízes em matéria de saúde é a impossibilidade de


controle democrático das suas decisões.

Neste sentido, o modelo positivista impôs uma limitação


do círculo de intérpretes da Constituição, circunscrito apenas
aos atores do processo judicial.

Häberle, com base na proposta filosófica de Karl Popper,


alterou tal perspectiva ao construir a sociedade aberta dos in-
térpretes da Constituição, ampliando o espectro da hermenêuti-
ca constitucional a ponto de permitir aos indivíduos, cidadãos,
grupos e entidades a participação no debate sobre as leis e sobre
a Constituição.

A democratização da hermenêutica constitucional repre-


senta, assim, a transição “de uma sociedade fechada dos intér-
pretes da Constituição para uma interpretação constitucional
pela e para uma sociedade aberta”.89 Nesse contexto, é possível
mencionar que a hermenêutica tradicional caracteriza a socie-
dade fechada e a hermenêutica do novo constitucionalismo a-
molda-se à sociedade pluralista e aberta.

Häberle parte da ideia de que “[...] a interpretação consti-


tucional não é um ‘evento exclusivamente estatal’, seja do ponto
de vista teórico, seja do ponto de vista prático. A esse processo
tem acesso potencialmente todas as forças da comunidade polí-
tica.”90 O grande mérito dessa tese é estabelecer que os intérpre-
tes jurídicos da Constituição não são os únicos indivíduos que

89
HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional. A sociedade aberta dos intérpretes da
Constituição: Contribuição para a interpretação pluralista e procedimental da Constitu-
ição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor,
2002, p. 12. Título original: Die offene Gesellschaft der Verfassungsinterpreten. Ein
Beitrag zur pluralistischen und ‘prozessualen’ Verfassungsinterpretation.
90
HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional. A sociedade aberta dos intérpretes da
Constituição: Contribuição para a interpretação pluralista e procedimental da Constitu-
ição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor,
2002, p. 23. Título original: Die offene Gesellschaft der Verfassungsinterpreten. Ein
Beitrag zur pluralistischen und ‘prozessualen’ Verfassungsinterpretation.

97
vivem a norma, razão pela qual não detêm o monopólio da sua
interpretação.91

Nesta visão, “[...] todos estão inseridos no processo de in-


terpretação constitucional, até mesmo aqueles que não são dire-
tamente por ela afetados”.92

Para Vieira de Andrade, os direitos de participação confi-


guram mistos de direitos de defesa e de direitos a prestações,
mas que são autônomos “[...] em virtude da sua função de garan-
tia da participação individual na vida política, mais concreta-
mente, na formação da vontade política da comunidade”.93

A noção republicana de interpretação constitucional ad-


mite, portanto, que a sociedade debata com o Poder Judiciário
questões de relevo – tais como opções de políticas públicas em
saúde, orçamento, prioridades, etc – que precisam ser estudas
coletivamente, facilitando o controle democrático e autorizando
que os indivíduos sejam mais proativos e protagonistas do Esta-
do Constitucional.94

91
HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional. A sociedade aberta dos intérpretes da
Constituição: Contribuição para a interpretação pluralista e procedimental da Constitu-
ição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor,
2002, p. 15. Título original: Die offene Gesellschaft der Verfassungsinterpreten. Ein
Beitrag zur pluralistischen und ‘prozessualen’ Verfassungsinterpretation.
92
HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional. A sociedade aberta dos intérpretes da
Constituição: Contribuição para a interpretação pluralista e procedimental da Constitu-
ição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor,
2002, p. 32. Título original: Die offene Gesellschaft der Verfassungsinterpreten. Ein
Beitrag zur pluralistischen und ‘prozessualen’ Verfassungsinterpretation.
93
VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos. Os direitos fundamentais na Constituição Portu-
guesa de 1976. 4 ed. Coimbra: Almedina, 2009, p. 168.
94
A expressão Estado Constitucional exterioriza o predomínio da Constituição no siste-
ma jurídico em contraposição à expressão Estado de Direito, que prestigia a lei. Sobre o
tema, é interessante a observação de Gustavo Zagrebelsky: “Quien examine el derecho
de nuestro tiempo seguro que no consigue descubrir en él los caracteres que constituían
los postulados del Estado de derecho legislativo. La importancia de la transformación
deve inducir a pensar en um auténtico cambio genético, más que en una desviación
momentánea en espera y con la esperanza de una restauración. La respuesta a los
grandes y graves problemas de los que tal cambio es consecuencia, y al mismo tiempo
causa, está contenida en la fórmula del ‘Estado constitucional’. La novedad que la misma
contiene es capital y afecta a la posición de la ley. La ley, por primera vez en la época
moderna, viene sometida a una relación de adecuación, y por tanto de subordinación, a

98
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

E uma das técnicas de pluralização do debate constitucio-


nal é adoção de audiências públicas.

A audiência pública é reunião em que se permite à coleti-


vidade a participação no debate sobre questão de interesse ge-
ral. Pode ser processual ou pré-processual.

un estrato más alto de derecho establecido por la Constitución. De por sí, esta innova-
ción podría presentarse, y de hecho se ha presentado, como una simple continuación de
los principios del Estado de derecho que lleva hasta sus últimas consecuencias el pro-
grama de la completa sujeción al derecho de todas las funciones ordinarias del Estado,
incluida la legislativa (a excepción, por tanto, solo de la función contituyente). Con ello,
podría decirse, se realiza de la forma más completa possible el principio del gobierno de
las leyes, en lugar del gobierno de los hombres, principio frecuentemente considerado
como una de las bases ideológicas que fundamentan el Estado de derecho. Sin embargo,
si de las afirmaciones genéricas se pasa a comparar los caracteres concretos actual, se
advierte que, más que de uma continuación, se trata de uma profunda transformación
que incluso afecta necesariamente a la concepción del derecho.” (El derecho dúctil. Ley,
derechos, justicia. 9 ed. Tradução Marina Gascón. Madri: Editorial Trota, 2009, p. 33-
34). Pérez Luño afirma que o Estado Constitucional é o modelo de Estado das atuais
sociedades pluralistas, complexas e pluricêntricas (PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique. Nue-
vos retos del Estado Constitucional: Valores, derechos, garantias. In: Cadernos de la
Cátedra de Democracia y Derechos Humanos. Madri: Universidad de Alcalá, 2010, p.
66). O termo Estado Constitucional também é preferido por Canotilho (Canotilho, José
Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 4 ed. Livraria Almedina:
Coimbra, 2004). Por fim, importante registrar a colaboração de Cademartori e Duarte:
“Já a diferenciação entre Estado de Direito (assim designado o Estado Liberal Clássico) e
Estado Constitucional, segundo Pérez Luño, reside em um tríplice deslocamento do
papel que desempenham, em termos institucionais, as normas constitucionais e infra-
constitucionais, cuja posição atual no Estado Constitucional passa a ser a seguinte:
1. deslocamento do princípio da primazia da lei para o princípio da primazia da
Constituição;
2. deslocamento da reserva da lei à reserva da constitucional;
3. deslocamento do controle jurisdicional da legalidade ao controle jurisdicional
da constitucionalidade.
Em linhas gerais, no Estado Constitucional, os poderes políticos encontram-se de-
limitados e configurados a partir de um direito baseado primacialmente nos princí-
pios constitucionais, formais e materiais, tais como os direitos fundamentais; a
função social das instituições públicas; a divisão de poderes e a independência dos
tribunais.
Esses fatores, por sua vez, apresentam como resultado uma forma de Estado na
qual existe uma legitimação democrática e um controle pluralista do poder político
e dos poderes sociais.” (CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. DUARTE, Francis-
co Carlos. Hermenêutica e argumentação neoconstitucional. São Paulo: Atlas,
2009, p. 31).

99
Na esfera judicial, permite-se promover audiências públi-
cas no âmbito do controle difuso/concreto/incidental95 ou no
controle concentrado/abstrato/principal96 de constitucionali-
dade.

Importante audiência pública foi designada pelo então


Presidente do STF Ministro Gilmar Ferreira Mendes para tratar
do direito à saúde e da judicialização da saúde. Durante quase
uma semana, foram ouvidos cinquenta especialistas, entre ad-
vogados, defensores públicos, promotores e procuradores de
justiça, magistrados, professores, médicos, técnicos de saúde,
gestores e usuários do sistema único de saúde. O debate serviu
para subsidiar as decisões nos processos de competência da
Presidência versando sobre o direito à saúde, tais como a con-
cessão gratuita de medicamentos, a internação em hospitais e a
realização de cirurgias sem custo para o cidadão, balizando,
ainda, outros julgamentos do Judiciário nacional (Agravos Re-
gimentais nas Suspensões de Liminares nºs 47 e 64, nas Suspen-
sões de Tutela Antecipada nºs 36, 175, 185, 211 e 278, e nas
Suspensões de Segurança nºs 2361, 2944, 3345 e 3355, todos
processos de relatoria da Presidência).

Contudo, o Judiciário ainda tem muito para avançar na ju-


dicialização da saúde, especialmente para evitar abusos pratica-
das por cidadãos, pela indústria farmacêutica, pelos médicos,
pelos planos de saúde e também pelos próprios entes públicos
(União, Estados, Distrito Federal e Municípios). A atuação dos
juízes, é verdade, deve ser equilibrada e razoável.

Há inegável legitimação democrática da decisão judicial


proferida com base nas informações colhidas em audiência pú-
blica.

95
Exercido por qualquer juiz, de ofício ou mediante provocação, em qualquer grau de
jurisdição, em que a questão constitucional não é a principal, mas interfere, incidental-
mente, no julgamento da lide.
96
Exercido pelo Supremo Tribunal Federal, nos termos do artigo 102, inciso I, alínea ‘a’,
da Constituição, mediante provocação de um ou mais legitimados, cujo rol consta do
artigo 103 da Constituição.

100
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

A despeito do monopólio judicial de resolver os conflitos


de interesses, nos termos do princípio da inafastabilidade do
controle judicial (artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição), a par-
ticipação e a oitiva da população transformam o processo judici-
al em arena própria para o fortalecimento do regime político,
em homenagem ao Estado Constitucional Democrático.

A possibilidade de designação de audiência pública deno-


ta a democratização do processo constitucional e transforma a
“sociedade fechada” em “sociedade aberta”, autorizando a parti-
cipação da sociedade nos julgamentos de causas de relevo sobre
saúde pública e suplementar, configurando, portanto, importan-
te mecanismo para pluralizar a teoria da decisão judicial.

Deve-se destacar, ainda, que a participação popular não


pode ser apenas formal e protocolar, já que o órgão judicial pos-
sui o dever fundamental de abordar temas invocados na audiên-
cia pública, a fim de pluralizar o processo judicial, sob pena de
nulidade. Assim, o cidadão interessado, as operadoras de plano
de saúde, os gestores de saúde pública podem/devem intervir
no processo judicial para auxiliar o juiz a proferir a melhor deci-
são. E a intervenção deve ser considerada na decisão judicial, ou
seja, todos os pontos apresentados pelos diversos atores preci-
sam ser observados pelo magistrado.

Isto é importante em razão da multidicisplinariedade ine-


rente aos processos judiciais sobre direito à saúde. O exame da
possibilidade de concessão de um tratamento, de um medica-
mento, de uma internação, envolvem questões que não são ape-
nas jurídicas, mas inerentes a outras áreas (médica, farmacoló-
gica, psicológica, filosófica, entre outras). Assim, especialistas de
outras áreas são disseminadores de informações técnicas que
subsidiam a decisão judicial.

A consolidação da sociedade aberta dos intérpretes da


Constituição no sistema jurídico pátrio é reconhecida pelo pró-
prio Häberle, ao afirmar que o tema:

Experimenta actualmente, sobre todo em Alemania, y de manera es-


pecial en Brasil, hasta en questiones particulares del derecho procesal

101
constitucional (amicus curiae briefs), un reconocimento alentador. La
sociedade aberta es una ‘constituida’, reconocible, por ejemplo, en la
eficácia frente a terceros de los derechos fundamentales. Es expresión
del status culturalis del individuo; el status naturalis es una (irrenun-
ciable) ficción. No hay ninguna ‘liberdad natural’, solo hay liberdad cul-
97
tural.

Ou, ainda, em outra passagem:

En Brasil, la Suprema Corte há apelado recientemente de modo expre-


so, en sentencias particulares, a la ‘sociedade abierta de los intérpretes
constitucionales’ para justificar el instituto del amicus curiae briefs. El
derecho procesal constitucional se transforma asi en garantia del plu-
ralismo y la participación, por gravoso que ello pueda ser a la vista de
98
la sobrecarga de la mayoria de los tribunales.

Häberle demonstra que o seu objetivo é fortalecer o Esta-


do Constitucional transferindo parte do centro decisório para os
cidadãos diante da hipertrofia do Poder Judiciário.99
Significa, portanto, que a abertura da interpretação cons-
titucional constitui predicado indissociável da jurisdição na
perspectiva do Estado Constitucional Democrático.

Ou seja, a construção de um modelo aberto de decisão ju-


dicial confere legitimação democrática às decisões proferidas
pelo Poder Judiciário e amplia a transparência necessária ao
exercício da jurisdição constitucional em temas como o direito à
saúde.

2.5. Casuística judicial

Pode um cidadão adquirir tratamento ou medicamento


em uma farmácia arcando com seus custos e depois cobrar do

97
HÄBERLE, Peter. La Jurisdicción Constitucional em la Sociedade Abierta. Tradução
Joaquin Brage Camazano. In: Direito Público. Brasília: Síntese, jan-fev 2009, 193.
98
HÄBERLE, Peter. La Jurisdicción Constitucional em la Sociedade Abierta. Tradução
Joaquin Brage Camazano. In: Direito Público. Brasília: Síntese, jan-fev 2009, p. 197.
99
HÄBERLE, Peter. La Jurisdicción Constitucional em la Sociedade Abierta. Tradução
Joaquin Brage Camazano. In: Direito Público. Brasília: Síntese, jan-fev 2009, p. 190.

102
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

Estado o valor pago? É possível condenar ente público a indeni-


zar cidadão em razão de despesa realizada em procedimento
cirúrgico? É possível decisão judicial que determina a internação
em UTI?

Estas são algumas das perguntas que bem representam a


situação do juiz diante de um processo sobre direito à saúde.

A escolha trágica outrora limitada aos agentes do sistema


de saúde transferiu-se para o julgador. Ou seja, é o juiz que vai
determinar a internação em UTI, o fornecimento do medicamen-
to, a realização de tratamento, o reembolso do valor pago pelo
cidadão.

Em última análise, há um desvirtuamento do papel do Po-


der Judiciário. Com efeito, tais matérias não poderiam ser leva-
das indiscriminadamente a julgamento pelo magistrado, pois o
seu papel principal é o controle da administração pública, o con-
trole da gestão adequada e dos atos/contratos praticados no
âmbito das operadoras de plano de saúde. Assim, se existir al-
gum vício, omissão, ilegalidade ou inconstitucionalidade do ato
administrativo, cabe ao juiz revisar ou anular tal ato, mas não se
substituir na figura do administrador público. O mesmo pensa-
mento também se aplica no âmbito da saúde suplementar (me-
diante controle adequado da conduta frente ao regramento jurí-
dico vigente).

Contudo, isso não é feito. O Judiciário tem controlado tu-


do, sem qualquer limite. Isso precisa, portanto, ser repensado,
sob pena de banalização do ato judicial e, principalmente, de
esgotamento total do próprio Poder Judiciário, que não possui
condições – em razão da escassez de tempo, de pessoas (juízes e
servidores) – de absorver, ilimitadamente, todas as demandas
da vida brasileira.

A decisão do Supremo Tribunal Federal sobre retinose


pigmentar (Recurso Extraordinário 368564) simbolizou muito
bem o cenário atual sobre a judicialização da saúde. O STF con-
cedeu a várias pessoas o direito de obter tratamento em Cuba,

103
com todas as despesas custeadas pelo Estado. Contudo, não exis-
tia no processo comprovação cientifica da eficácia e da efetivi-
dade do tratamento. Pelo contrário, foi apresentando laudo indi-
cando a ausência de cura. Não obstante, a Corte condenou o
Estado. O voto condutor, do Ministro Marco Aurélio, afirmou
que existe sim tratamento exitoso em Cuba conforme informa-
ção que obteve nos veículos de comunicação100. Tal decisão de-
monstra a forma inadequada como são analisados os processos
judiciais sobre saúde. É impossível imaginar que uma decisão
judicial seja proferida com base em informação jornalística e
não à luz do sistema jurídico101.

Os juízes, portanto, não podem ser justiceiros para satis-


fazer uma conduta politicamente correta. Esta postura não tem
previsão constitucional.

Assim, a resposta aos questionamentos acima é negativa.


Em primeiro lugar, porque o Estado não é segurador universal
de todo e qualquer evento danoso ao cidadão. O direito à saúde
previsto na Constituição Federal (artigos 196 a 199) não possui
alcance ilimitado, eis que sua incidência pode ser restringida em
determinadas situações fáticas, principalmente porque a carta
constitucional vigente não confere direitos absolutos aos desti-
natários do seu texto.

Em segundo lugar, o cidadão deve previamente procurar


profissional do SUS para avaliar a necessidade do tratamento.
A despeito do direito previsto no art. 196 da Constituição, tor-
na-se indispensável que fique demonstrada, pelo menos, a im-
possibilidade de realização do procedimento no âmbito do SUS,
a legitimar, assim, a procura imediata por profissional particu-
lar. A atuação per saltum, com efeito, viola o princípio da iso-
nomia, pois o autor do processo judicial estaria, neste caso, a
obter preferência não justificada em relação a outros cidadãos,
na medida em que apenas aguardaria a indeniza-
ção/reembolso do Estado. Na I Jornada de Direito à Saúde do

100
http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=177147
101
Por isso que Eros Roberto Grau atualizou seu livro com o novo título: Por que tenho
medo dos Juízes (São Paulo: Malheiros, 2013).

104
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

Conselho Nacional de Justiça – CNJ aprovou-se o enunciado n.º


13, com a seguinte redação: “Nas ações de saúde, que pleiteiam
do poder público o fornecimento de medicamentos, produtos ou
tratamentos, recomenda-se, sempre que possível, a prévia oitiva
do gestor do Sistema Único de Saúde (SUS), com vistas a, inclu-
sive, identificar solicitação prévia do requerente à Administra-
ção, competência do ente federado e alternativas terapêuticas.”

Em terceiro lugar, o cenário da judicialização da saúde foi


alterado com a edição da Lei 12.401/2011, que criou a CONITEC
e passou a estabelecer requisitos para a incorporação de novas
tecnologias ao SUS, entre as quais, destacam-se: a) "as evidên-
cias científicas sobre a eficácia, a acurácia, a efetividade e a se-
gurança do medicamento, produto ou procedimento objeto do
processo"; b) "a avaliação econômica comparativa dos benefí-
cios e dos custos em relação às tecnologias já incorporadas,
inclusive no que se refere aos atendimentos domiciliar, ambula-
torial ou hospitalar, quando cabível". Tais requisitos estão ex-
pressamente previstos no art. 19-Q, §2º, da Lei 8080/90, altera-
da pela Lei 12.401/11. No caso, é preciso comprovar que a ci-
rurgia adotada: (a) é o melhor procedimento baseado em evi-
dência científica; (b) é eficaz e eficiente para o tratamento; (c)
configura a melhor opção clínica do ponto de vista do custo-
benefício relativamente a outros tratamentos. E tais questões
geralmente não são comprovadas nos processos judiciais.

Em quarto lugar, não há como controlar o valor cobrado


pelo profissional da área médica contratado pela parte autora
do processo judicial. Com efeito, geralmente inexiste a indicação
do custo médio do procedimento cuja indenização é pretendida.
No mínimo, deveria haver a indicação de três orçamentos para
permitir o controle de eficiência do gasto público (já que reali-
zou o procedimento com o fim de cobrar posteriormente do SUS
ou do plano de saúde). Vale dizer, é difícil existir elementos a
permitir o controle de legalidade/eficiência/custo benefício da
indicação apontado pelo médico assistente da parte autora.

Na hipótese de internação compulsória (em UTI ou não), a


postura mais adequada do magistrado é avaliar o quadro fático,

105
com base nas informações do gestor do hospital. Ou seja, com
base na teoria dos diálogos institucionais, cabe ao juiz consultar
o agente hospitalar responsável para saber se há vaga para in-
ternação e, inexistindo, descobrir qual a situação do estabeleci-
mento, evitando internações compulsórias sem que se conheça a
real situação do hospital e que possa violar o direito de outrem.

Há também vários processos judiciais de pedidos de inde-


nização ajuizados em face dos entes públicos ou das operadoras
de plano de saúde em razão de demora no tratamento ou na
prestação de serviço de saúde.

Os fundamentos da teoria clássica da responsabilidade


civil estabelecem que a culpa é pressuposto do dever de indeni-
zar. Isso se verifica, porque, em regra, "aquele que, por ação ou
omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e
causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete
ato ilícito" (Código Civil, art. 186). Além disso, "também comete
ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede mani-
festamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou soci-
al, pela boa-fé ou pelos bons costumes" (Código Civil, art. 187).
A obrigação de indenizar, por seu turno, decorre da prática do
ato ilícito: "Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar
dano a outrem, fica obrigado a repará-lo" (Código Civil, art. 927,
caput). Tais regras, aliadas ao Código de Defesa do Consumidor,
seriam aplicáveis na relação entre consumidor e plano de saúde.

Por outro lado, a Constituição Federal estabeleceu que "as


pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado pres-
tadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus
agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o
direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou
culpa." (artigo 37, § 6º). Trata-se da responsabilidade objetiva,
em que a culpa é dispensável.

Não obstante, nos casos em que os danos experimentados


pelos particulares decorrem de uma omissão do Estado em ra-
zão da inexistência do serviço de saúde ou da deficiência na sua
prestação, a responsabilidade será de ordem subjetiva, cabendo

106
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

à vítima a prova da existência do fato, do dano, do nexo de cau-


salidade entre um e outro e a culpa da Administração.

Estas são as premissas que devem nortear o julgamento


de processos desta espécie. Mesmo assim, é muito difícil a prova
do nexo de causalidade entre a omissão imputada ao Estado e
os danos que remanesceram após o procedimento, porquanto
cada indivíduo apresenta resposta distinta para os tratamentos.
Além disso, existem inúmeras variantes, tais como condições
intraoperatórias e pós-operatórias, complicações cirúrgicas,
condições do próprio organismo, o transcurso do procedimento,
eficácia e eficiência da medida, certeza de recuperação, etc.

Ou seja, deve-se ver analisado com cuidado o modelo de


indenização global, pois o Estado e os planos não são garantidos
universais de todas as intempéries ocorridas no plano da vida.

2.6. Considerações finais

De tudo o que já foi comentado, é possível apontar os se-


guintes problemas e possíveis soluções ao grande número de
processos judiciais sobre saúde no Brasil:

1º Cultura do litígio: o Brasil é campeão mundial de ju-


dicialização se observada a proporção entre processos e habi-
tantes. A média é de praticamente um processo para cada cida-
dão brasileiro102. Tudo é levado às portas dos Tribunais, sem
qualquer limite ou contenção. O burocratismo vigente no Execu-
tivo e no Legislativo também já reina no Judiciário. E o excesso
de condenações desregula a gestão do SUS e dos planos de saú-
de.

102
Segundo o Relatório Justiça em Números do CNJ são 95,3 milhões de processos em
tramitação (ano base 2013) para aproximadamente 200 milhões de habitantes. Conside-
rando que em cada processo existem duas partes, um autor e um réu, pode-se concluir
que quase todos os brasileiros litigam em um processo judicial.

107
2º Facilidade do acesso à Justiça: é possível ajuizar uma
ação judicial sem advogado nos Juizados Especiais. É claro que
se trata da minoria de processos, pois o Brasil é também é cam-
peão mundial no número de advogados – aproximadamente um
milhão. Quase todos os tribunais do Brasil – são 91 – estão na
era do processo digital. Significa que a ação pode ser proposta
em qualquer lugar do mundo por intermédio do peticionamento
eletrônico. Portanto, reduziram-se significativamente as dificul-
dades de acesso à Justiça no Brasil.

3º Ampla estrutura funcional e burocrática do siste-


ma de Justiça: o Brasil possui 16500 juízes, 300 mil servidores
do Poder Judiciário, 12 mil membros dos Ministérios Públicos,
150 mil servidores dos Ministérios Públicos, 2000 membros das
Defensorias Públicas, quase um milhão de advogados. Esses
números demonstram que o bacharelismo triunfou no Brasil.
Ora, se o arsenal é gigante, é inegável que ele vai ser usado. Há,
portanto, um grande obstáculo à redução da judicialização.

4º Facilidade: é muito mais fácil pedir ao juiz do que en-


frentar a fila do SUS. É comum a existência de processos judici-
ais em que o cidadão postula ao magistrado a inclusão em lista
de transplantes ou a busca de tratamentos sem que tenha parti-
cipado de procedimentos prévios e necessários na via adminis-
trativa. E o pior. Há juízes que autorizam isso sem qualquer con-
trole. É o abuso do direito de ação carregado de uma dúvida
ética quanto ao procedimento e o uso do Estado para violação
do princípio da isonomia, diante da manifesta violação ao direito
de terceiros.

5º A ausência de qualidade de serviços médicos: a


despeito da previsão no Código de Ética Médica da necessidade
de observância e respeito à legislação de regência e à adoção das
melhores práticas de medicina baseada em evidência, é muito
comum ver médicos no Brasil prescrevendo medicamentos e
tratamentos sem qualquer base científica. É a crise do ensino
médico e a crise dos profissionais da área médica. A prática da
medicina de experiência ou da medicina da eminência precisa
ser exterminada, pois fomenta processos judiciais indevidos.
Além disso, é muito difícil de controlar a relação dos médicos
com a indústria farmacêutica. E a judicialização pode acelerar a
entrada de novos medicamentos em um mercado que movimen-
ta bilhões de dólares ao ano.

108
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

6º Gratuidade: o Estado não cobra para o ajuizamento


de uma ação judicial. Pela lei brasileira (Lei 1060/50), apenas os
necessitados não poderiam pagar as despesas processuais. Con-
tudo, não há controle adequado em relação a isso. Assim, é mui-
to comum pessoas com patrimônio considerável e com alta ren-
da terem deferido o benefício da assistência judiciária gratuita.
Significa que não será responsável pelo pagamento das despesas
processuais (custas, honorários de advogado, etc). A ausência de
controle adequado pelo Judiciário fomenta a propositura de
ações judiciais. Assim, o autor da ação não tem nada a perder. É
mais uma representação equivocada do mito do governo grátis
(de que este serviço não possui custo nenhum).

7º Necessidade de ser politicamente correto: a máxi-


ma é aplicada aos juízes do Brasil. Parece que há receio de negar
um pedido sobre direito à saúde. Existe uma espécie de auto-
pressão que os magistrados fazem sobre si para encontrar uma
razão para julgar procedente o pedido em processos sobre direi-
to à saúde. A decisão é carregada de emoção e destituída de ra-
zão e de tecnicismo (especialmente de critérios adequados so-
bre a eficácia, a acuraria e o custo-benefício do tratamento).

8º Ausência de análise adequada dos fatos: em grande


parte das decisões judiciais no Brasil, inclusive dos tribunais
superiores, tal como se verificou no Recurso Extraordinário
368564 (STF), não analisa o caso clínico do autor da ação. Tais
decisões invocam apenas o direito fundamental à saúde, trans-
crevendo, por exemplo, os artigos da Constituição que tratam do
tema (6º e 196), deixando de avaliar as questões fáticas. Esse
procedimento, contudo, é nulo, já que a própria Constituição
exige a fundamentação (fática e jurídica) das decisões judiciais
(artigo 93, inciso IX). Assim, o juiz precisa analisar e valorar as
prescrições e exames médicos, eventual laudo pericial e, princi-
palmente, verificar se o tratamento buscado contempla as me-
lhores evidências científicas, na perspectiva da acurácia, da efi-
cácia, da efetividade e do custo benefício do tratamento (con-
forme determina a Lei 12.401/2011).

109
9º Primazia absoluta do direito à saúde: os tribunais
analisam de forma isolada um processo sobre direito à saúde
sem confrontá-lo com o orçamento, com o total de cidadãos que
também precisam do tratamento e ainda não obtiveram cober-
tura, e com o modelo estrutural de sistema de saúde público ou
suplementar. Há decisões do STF e do STJ a afirmar que o Estado
possui um interesse meramente secundário quando argumenta
a ausência de recursos financeiros103. O preço deste entendi-
mento será muito caro à sociedade no médio prazo e no longo
prazo, já que nada, ao que parece, pode impedir o cidadão de
obter um tratamento de saúde (ainda que inexista certeza cien-
tífica sobre a acurácia, a eficácia, a eficiência e o seu custo-
benefício), pois a condição financeira do Estado e do plano de
saúde é meramente secundária. A judicialização excessiva, se
persistir por muito tempo, vai levar ao agravamento do sistema
de saúde e ao colapso do equilíbrio atuarial dos planos de saúde.

10º Ausência de governança pública: a gestão da saúde


no Brasil ainda é pouco profissionalizada. Com efeito, é muito
baixo o controle de resultados da atuação estatal. A governança
pública adequada permite maior controle da gestão, com notó-
rios ganhos na execução de políticas de saúde em prol da popu-
lação. Governar significa dirigir, monitorar e avaliar. A questão
envolve, também, a implantação de noções de planejamento
estratégico, com auxílio na implantação de rotinas, metas e no
respectivo controle do desempenho da atuação estatal. O Decre-

103
EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO.
DIREITO À SAÚDE. FORNECIMENTO PELO PODER PÚBLICO DO TRATAMENTO ADEQUA-
DO. SOLIDARIEDADE DOS ENTES FEDERATIVOS. OFENSA AO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO
DOS PODERES. NÃO OCORRÊNCIA. COLISÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS. PREVALÊN-
CIA DO DIREITO À VIDA. PRECEDENTES. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é
firme no sentido de que, apesar do caráter meramente programático atribuído ao art.
196 da Constituição Federal, o Estado não pode se eximir do dever de propiciar os meios
necessários ao gozo do direito à saúde dos cidadãos. O Supremo Tribunal Federal assen-
tou o entendimento de que o Poder Judiciário pode, sem que fique configurada violação
ao princípio da separação dos Poderes, determinar a implementação de políticas públi-
cas nas questões relativas ao direito constitucional à saúde. O Supremo Tribunal Federal
entende que, na colisão entre o direito à vida e à saúde e interesses secundários do
Estado, o juízo de ponderação impõe que a solução do conflito seja no sentido da pre-
servação do direito à vida. Ausência de argumentos capazes de infirmar a decisão agra-
vada. Agravo regimental a que se nega provimento. [grifado] (STF, ARE 801676 AgR/PE,
Relator Min. ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, j. 19/08/2014 , DJe 02-09-2014)

110
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

to-Lei 200/67 já estabelecia no artigo 10 e parágrafo 4º que a


execução das atividades da Administração Federal deverá ser
amplamente descentralizada e que compete à estrutura central
de direção o estabelecimento das normas, critérios, programas e
princípios, que os serviços responsáveis pela execução são obri-
gados a respeitar na solução dos casos individuais e no desem-
penho de suas atribuições. Tal previsão precisa ser efetivamente
concretizada e ampliada a fim de pulverizar a noção de boa go-
vernança pública.

11º Fomento à meritocracia: é preciso fomentar a ocu-


pação adequada dos cargos públicos. A ausência de meritocracia
impede a melhoria da qualidade da prestação de serviços em
saúde, especialmente do SUS e, principalmente, nos Municípios
(são quase 5600 no Brasil). Isso reduz a eficácia do Estado-
administração e fomenta a judicialização. A meritocracia presti-
gia o profissional que reúne melhores condições de aptidão,
capacidade, excelência e qualificação para o cargo público. A
falta de meritocracia reduz a eficácia do Estado e abre a porta
para o processo judicial.

12º Desrespeito ao consequencialismo: O Judiciário


costuma desconsiderar as consequências da decisão como crité-
rio de decisão judicial. Com efeito, determinar, sem qualquer
controle ou limite, ao Estado ou ao plano de saúde adquirir mi-
lhares de medicamentos ou a violar ordens cronológicas e e-
mergenciais de internações tem várias implicações como (a)
subverter regras de licitação; (b) impedir controle adequado
sobre o orçamento; (c) desestruturar a organização administra-
tiva dos entes públicos e dos planos de saúde.

13º Ausência de cultura da responsabilidade: o brasi-


leiro pensa que o Estado (SUS) deve prestar tudo sem qualquer
limite, sem qualquer controle e (principalmente) sem nenhum
custo, como se isso existisse em algum lugar do mundo. Pensa
que tal axioma também se aplica aos planos de saúde, sem ob-
servar que os contratos estão assentados em regras claras de
equilíbrio atuarial e de pacto contratual. É mais uma manifesta-
ção do mito do governo grátis (sempre presente em plagas bra-

111
sileiras). Assim, mesmo que o cidadão tenha condições é o Esta-
do que deve custear seu tratamento, como se não houvesse limi-
tação financeira ou porque os direitos nascem em árvores104. O
jeitinho brasileiro é o escudo que protege o cidadão de assumir
suas responsabilidades. O responsável sempre é o outro (para-
doxo do eu), ou seja, o Estado ou o plano de saúde105.

14º Subsidiariedade no SUS: é necessário refletir sobre


a aplicação do princípio da subsidiariedade em processos judici-
ais que tratam do sistema de saúde pública. A questão é: em
processos judiciais os parâmetros e requisitos podem ser mais
rigorosos do que na via administrativa? Parece que sim. Em
determinadas circunstâncias, pode o juiz ser mais exigente do
que o administrador, pois a urgência, na maioria dos casos, está
no hospital e não no processo judicial. O administrador atua na
estrita legalidade. O juiz tem mais amplitude. Analisa o universo
constitucional, todas as normas constitucionais e, à luz do prin-
cípio da unidade, compatibiliza as diversas normas com o fim de
estabilizar o sistema. Assim, pode o juiz, v.g., analisar o princípio
da universalidade (artigo 196 da CF/88) com o princípio da
solidariedade (artigo 3º e artigo 226), e com o princípio da sub-
sidiariedade estampado implicitamente no art. 226, para conclu-
ir que o direito à saúde, no plano judicial, pode ser limitado?
Esta é uma questão que precisa ser enfrentada pela comunidade
nacional nos próximos anos, especialmente diante de um cená-
rio de dificuldades econômicas.

15º Necessidade de equilíbrio na relação livre inicia-


tiva e direito do consumidor. Ambos os princípios estão pro-
tegidos pela Constituição brasileira, contudo, tem-se conferido,
de forma equivocada, primazia absoluta aos direitos do consu-
midor. É inegável que existem abusos praticados pelas operado-
ras de plano de saúde. Este é um problema histórico no Brasil.
Entretanto, não significa que em todas as demandas judiciais o
consumidor possui razão e a operadora atuou de má-fé. Esta
presunção é equivocada e precisa ser alterada. De outro lado, o

104
CUSTO DOS DIREITOS. OS DIREITOS EM ÁREVORES.
105
O escritor Moçambicano Mia Couto também descreve este fenômeno: COUTO, Mia. E
se Obama fosse afraicano? São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 30-33.

112
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

custo da judicialização é internalizado nos preços praticados


pelas operadoras de planos de saúde, razão pela qual é o próprio
consumidor que sofrerá a consequência do excesso de processos
judiciais.

16º Necessidade de reajuste na cadeia de intermedi-


ários: o preço de uma prótese, por exemplo, chega a ser dez ou
vinte vezes o valor do seu custo, pois o preço do produto é majo-
rado em razão de vários atravessadores e do custo Brasil (segu-
ro, frete, desembaraço, custo operacional, equipamentos, ins-
trumentação, tributos sobre a venda, comissão do vendedor,
margem do distribuidor, comissão do médico – geralmente em
valor que supera o próprio produto –, preço de venda do hospi-
tal, margem do hospital, tributos, entre outros). Ou seja, a cadeia
encarece o produto e quem paga, em última análise, é o ente
público – o povo, o contribuinte – ou o consumidor, que vai de-
volver nas mensalidades o valor internalizado pela operadora
do plano de saúde. Exige-se, assim, a regulação nos preços de
OPME.

17º Equilíbrio contratual nos planos de saúde. Este


equilíbrio deve ser jurídico e econômico. Jurídico para observar
os princípios de natureza contratual, que consagram o sinalag-
ma, a boa-fé, entre outros. Econômico para que se aplique de
forma adequada a proporcionalidade. Se o valor da mensalidade
é R$500,00 o plano deve entregar o serviço correspondente. Não
pode, neste caso, o consumidor exigir o serviço equivalente a
R$5.000,00 por mês ou o plano prestar o serviço que corres-
ponda a R$200,00. Os abusos precisam ser coibidos, controlados
e a boa-fé precisa ser resgatada.

18º Cultura da medicamentação: Um fármaco não é a


salvação para tudo. Muitas vezes há outras providências que
podem solucionar o problema de saúde. O cidadão brasileiro foi
ensinado a se automedicar. Isso é um equívoco. É preciso dou-
trina para mudança no estilo de vida, como fomento do ócio
criativo e práticas de bem estar, de bem viver.

113
19º Cumprimento do dever fundamental de exercer a
boa administração pública: afirma-se, na atual quadra, que o
cidadão possui direito fundamental à boa administração, vale
dizer, "o direito à administração pública eficiente e eficaz, pro-
porcional cumpridora de seus deveres, com transparência, mo-
tivação, imparcialidade e respeito à moralidade, à participação e
à plena responsabilidade por suas condutas comissivas e omis-
sivas" ou "o direito à administração preventiva, precavida e
eficaz (não apenas eficiente), vale dizer, comprometida com
resultados em sintonia com os objetivos fundamental do Estado
Democrático e, nessa medida, redutora dos conflitos intertem-
porais, que só fazem aumentar os chamados custos de transa-
ção106.

20º Ampliação e concretização do papel da Comissão


Nacional de Incorporação de Tecnologias – Conitec no SUS.
Cabe a tal entidade assessorar o Ministério da Saúde na incorpo-
ração, exclusão ou alteração pelo SUS de novos medicamentos,
produtos e procedimentos, além de auxiliar a constituição ou a
alteração de protocolo clínico ou de diretriz terapêutica. A fun-
ção da Conitec é desenvolver estudo técnico para auxiliar o Mi-
nistério da Saúde na incorporação de novas tecnologias. A deci-
são pela incorporação ou não incorporação da nova tecnologia é
proferida de forma democrática, tendo em vista que a Conitec é
entidade plural, cuja composição deverá contemplar um repre-
sentante indicado pelo Conselho Nacional de Saúde e de um
representante, especialista na área, indicado pelo Conselho Fe-
deral de Medicina. Todos os relatórios e decisões da entidade
são publicados, a fim de conferir a necessária legitimidade da
atividade desenvolvida pela instituição107.

21º Adoção de critério de decisão judicial: a autorida-


de judiciária responsável por conduzir processo em que se pos-
tula a concessão de medicamento, tratamento ou tecnologia,
106
FREITAS, Juarez. Carreiras de Estado e o direito fundamental à boa administração
pública. In Interesse Público, n. 53, p. 13/14.
107
Conitec. Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS. Brasília: 2014.
Disponível em: http://portalsaude.saude.gov.br/index.php/o-ministerio/principal/leia-
mais-o-ministerio/259-sctie-raiz/dgits-raiz/conitec/l2-conitec/8777-propostas. Acessado
em 30/10/2014.

114
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

deve acompanhar as decisões proferidas pela Conitec – Comis-


são de Incorporação de Tecnologias do SUS, eis que baseadas em
critérios técnicos. Se a decisão da Conitec foi favorável à incor-
poração da tecnologia no SUS, parece evidente que o magistrado
não pode contrariá-la, salvo comprovação científica contrária,
contemporânea ou superveniente. De outro lado, se a posição da
aludida entidade é para não autorizar a incorporação da tecno-
logia no âmbito do SUS, o juiz somente poderá deferir o pedido
veiculado na via judicial se houver prova técnica – e apenas téc-
nica – refutando a conclusão da Conitec. Na hipótese de ausência
de decisão técnica na via administrativa, a autoridade judiciária
pode se valer de consulta à Conitec, inclusive por e-mail, apre-
sentando todos os questionamentos acerca de produtos e tecno-
logias postulados na via judicial. Isso qualifica a fundamentação
fática de decisão judicial.

22º Melhoria na defesa dos entes públicos: exige-se


dos membros da advocacia que representam os entes públicos
em Juízo, que atuem de forma dialógica, pois na missão de de-
fender o interesse da administração, também devem auxiliar o
juízo, prestando informações técnicas adequadas na área da
saúde, já que a matéria jurídica é de conhecimento do magistra-
do. Exige a superação, portanto, do papel comum exercido pelos
advogados públicos, de alegar apenas questões jurídicas nos
processos sobre direito à saúde. É indispensável avançar para
que o processo passe a ser alimentado por informações técnicas
e do sistema de saúde.

23º Aplicação adequada da proporcionalidade: o Es-


tado deve cumprir o dever fundamental de praticar todos os
atos necessários a conferir presteza, eficiência e eficácia à tutela
a direito fundamental à saúde, sob pena de insuficiência de pro-
teção ou violação à proibição de déficit (Untermassverbot).
Isso é uma decorrência do princípio da proporcionalidade -
plasmado implicitamente no art. 5º, inciso LIV, da Constituição
Federal - que se destina à proteção de um direito fundamental.
Ao mesmo tempo, o Estado também não pode pecar pelo exces-
so, ou seja, deve atuar na medida suficiente para cumprir as
determinações constitucionais, sem abuso.

115
24º Definição das prioridades: deve-se estabelecer um
rol de prioridades no cumprimento do direito fundamental à
saúde. É papel do Estado, neste aspecto, optar por escolhas. E
que a escolha seja a mais adequada ao cidadão, à luz da política
de saúde contemplada constitucionalmente. Cabe ao Estado,
portanto, conferir maior eficiência aos gastos públicos de saúde,
tendo em vista a inexorável limitação orçamentária108. Os resul-
tados da atuação estatal também precisam ser maximizados.

25º Redes: cabe ao Estado ampliar a criação de redes –


envolvendo União, Estados e Municípios – que possam dialogar
com os juízes do Brasil a fim de facilitar o julgamento de proces-
sos sobre direito à saúde. A criação de núcleos de apoio técnico
formados por médicos e agentes de saúde pode auxiliar os ma-
gistrados com a apresentação de pareceres médicos e de outras
informações sobre a questão deduzida em Juízo. Neste caso, o
órgão auxiliar pode analisar e informar ao juiz sobre (a) a exis-
tência de evidências científicas sobre a eficácia, a acurácia, a
efetividade e a segurança do medicamento, produto ou proce-
dimento (b) fazer a avaliação econômica comparativa dos bene-
fícios e dos custos em relação às tecnologias já incorporadas,
inclusive no que se refere aos atendimentos domiciliar, ambula-
torial ou hospitalar, quando cabível (observar a relação custo-
benefício) e; (c) observar se o pedido judicial está em conformi-
dade com as Recomendações 31 e 36 do Conselho Nacional de
Justiça.

A ausência da adoção das medidas acima apresentadas


implicará no aumento da judicialização.

Como consequências desta judicialização ilimitada da sa-


úde o cidadão brasileiro obterá a vitória de Pirro. De um lado, as
decisões judiciais produzem verdadeira reforma sanitária (pú-
blica e suplementar). De outro lado, no sistema de saúde suple-
mentar, há a internalização dos custos da judicialização no preço
do produto (aumentando sensivelmente o valor das mensalida-

108
AMARAL, Gustavo. Direito, escassez e escolha. Critérios jurídicos para lidar com a
escassez de recursos e as decisões trágicas. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Júris,
2010.

116
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

des). Em ambas as situações o preço sai caro. Aqui fica clara a


ausência do (mito) governo grátis.

Além disso, não há possibilidade de definição e execução


orçamentária completa, pois os entes públicos e as operadoras
de planos de saúde precisam separar altos valores para satisfa-
zer o cumprimento de decisões judiciais.

Há, também, o desestímulo ao planejamento da política


pública de saúde. Se há grande quantidade de condenações judi-
ciais, significa que ou (1) a gestão de saúde é equivocada, ou (2)
há abuso por parte do Judiciário – e de todos os atores do siste-
ma de Justiça, como advogados, membros do Ministério Público
e da Defensoria Pública que propõem as ações judiciais, ou (3)
ambas as opções estão corretas. Ou seja, o cenário brasileiro
precisa de um tratamento de choque para equalizar estas ques-
tões.

Tem-se também a privatização da cidadania. O excesso de


processos judiciais também educa de forma inadequada o cida-
dão, os entes públicos e as operadoras de plano de saúde. O ci-
dadão demonstra que é incapaz de conquistar seus direitos na
via administrativa. E os demais porque esperam que não haja
judicialização, razão pela qual não se organizam para resolver o
problema na via administrativa.

Por fim, tudo isso causa aumento do custo do Estado-Juiz.


O excesso de judicialização da saúde exige a reestruturação do
Poder Judiciário, com a ampliação do número de juízes, servido-
res e de órgãos (Varas, Comarcas e Subseções Judiciárias). O CNJ
já editou recomendação aos Tribunais, inclusive, para especiali-
zar varas de saúde pública e para priorizar o julgamento de pro-
cessos de saúde suplementar.

Ou seja, não há outra opção senão a redução da judiciali-


zação da saúde. E toda a sociedade é responsável por isso. Caso
contrário, não haverá sustentabilidade do sistema – público e
suplementar – e o mito do Estado grátis jamais será superado
em terras brasileiras.

117
Existe, portanto, um esgotamento do modelo vigente. A
era dos direitos levou a um excesso de expectativas diante da
limitação de recursos. As promessas da Constituição de 1988
não foram e não serão cumpridas imediatamente. Somente o
equilíbrio e a noção de sustentabilidade é que poderão auxiliar
para o funcionamento adequado do Estado brasileiro. Espera-se
que isso aconteça em breve!

118
3
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

Direito
Constitucional
à Saúde e
suas molduras
jurídicas e fáticas
João Pedro Gebran Neto

119
120
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

3.1. Considerações iniciais

Quando promulgada, mais de um quarto de século, a


Constituição Federal brasileira era tida por alguns como uma
carta política ilusória, absolutamente descontextualizada da
realidade de então. Que talvez ficasse bem para a realidade da
Suécia ou outro país com elevado IDH (índice de desenvolvi-
mento humano).

Os críticos ignoravam que ela não era uma fotografia do


Brasil, não mostrava como era o Brasil, tampouco promovia uma
imediata transformação do Estado. Ela era um projeto de país a
ser construído, representava – e representa – a aspiração de
construir uma sociedade livre, justa e solidária, que pretende
reduzir as desigualdades sociais e regionais (art. 3º da Carta).

E este projeto vem sendo edificado nestes últimos 25 a-


nos, por intermédio de programas de Estado, pelo desenvolvi-
mento da legislação que regula os diversos preceitos constitu-
cionais e, também, pelas intervenções do Poder Judiciário na
busca de conferir direitos constitucionalmente previstos.

Exemplo maior desta promessa em construção é o Siste-


ma Único de Saúde, um ambicioso projeto de superação do mo-
delo anterior, fincado no art. 6º, da Constituição Federal, que
garante a saúde como um direito fundamental, e nos preceitos
do art. 196 e seguintes, do referido diploma, que reprisam a
saúde como direito de todos e dever do Estado, impondo ao
Poder Público o estabelecimento de ações e serviços de saúde,
na forma da lei (art. 197, CF).

Colmatando a Carta Política, veio à luz a Lei nº 8080/90,


que organizou o Sistema Único de Saúde e estabeleceu direitos e
deveres para a promoção, proteção e recuperação da saúde.

De lá para cá, muito se evoluiu para assegurar este direito


fundamental, embora ainda se esteja distante daquilo que possa
ser razoável. A intervenção do Poder Judiciário ao longo dos
anos – e com maior ênfase na última década – nas políticas pú-

121
blicas de saúde ganhou tamanha proporção que o Supremo Tri-
bunal Federal decidiu abrir ampla discussão sobre o tema, con-
vocando a realização da Audiência Pública nº 4, ocorrida entre
os meses de abril e maio de 2009.

Dela decorreram diversas consequências, tais como a Re-


comendação nº 31, do Conselho Nacional de Justiça – CNJ, e a
Resolução CNJ nº 107, que instituiu o Fórum Nacional para o
monitoramento e solução de demandas na área da assistência à
saúde, com a criação de comitês estaduais de saúde.

No Estado do Paraná tive a oportunidade de coordenar


por aproximadamente três anos este Comitê, onde um grupo
bastante heterogêneo de pessoas, com o mais elevado espírito
público, passou a discutir abertamente os diversos temas envol-
vendo a judicialização, num aprendizado mútuo. Médicos das
mais variadas especialidades, administradores públicos, repre-
sentantes de planos de saúde, membros do Ministério Público,
juízes, advogados, procuradores do Estado e da União, farma-
cêuticos entre tantos outros profissionais ser uniram no debate
das graves vicissitudes que assolam o sistema de saúde.

A experiência e conhecimento colhidos nestes anos per-


mitiram o aprofundamento de reflexões sobre o tema do direito
fundamental à saúde e a judicialização.

Qualquer pesquisa sobre as lides que tramitam no Poder


Judiciário chegará à conclusão que a chamada “judicialização da
saúde” tem por objeto, na grande maioria das lides, a dispensa-
ção de medicamentos (aprovados, ou não, pela ANVISA; cons-
tantes, ou não, na Relação Nacional de Medicamentos – RENA-
ME). Ainda se concluirá que as decisões judiciais têm sido prin-
cipalmente fundadas no texto da Constituição Federal, ignoran-
do-se tanto os dados da realidade, quanto o regramento infra-
constitucional que dá organização ao Sistema Único de Saúde,
inclusive a Lei nº 8080/90.

122
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

No presente estudo, busca-se traçar os âmbitos jurídicos


e fáticos que devem modular a interpretação das normas consti-
tucionais e o papel que

o Poder Judiciário desempenha e pode desempenhar na


outorga mais efetiva do direito à saúde para os brasileiros.

Assim como o projeto de país que a Constituição inspira, o


caminho para a construção de um efetivo direito fundamental à
saúde é longo, e apenas foram trilhados os passos iniciais. Muito
há para ser desbravado. O SUS representa uma grande evolução
em relação ao sistema anterior, mas ainda está muito distante
de assegurar aos indivíduos o almejado direito à saúde.

Convivemos com demasiadas mazelas, precária infra-


estrutura, subfinanciamento, gestões deficientes e bom atendi-
mento em alguns setores, mas com absoluta falta de atendimen-
to em outros.

O papel que o Poder Judiciário desempenha neste contex-


to deve ser objeto de profunda reflexão. É isto que se busca con-
tribuir com este estudo.

De logo, é importante que se diga, a multiplicidade de a-


ções versando sobre o direito à saúde apresenta diversos aspec-
tos positivos e negativos, alguns dos quais elencados no presen-
te estudo.

Mas é possível avançar ainda mais, tanto na perspectiva


daquilo que é judicializado, quanto daquilo que pode e deve ser
judicialmente deferido.

Por isso, busca-se neste estudo demonstrar que a pro-


messa constitucional precisa ser construída de modo consciente
e responsável, com o fortalecimento do SUS e o reconhecimento
de que os preceitos constitucionais que fundam o direito consti-
tucional à saúde possuem diversos limites, dentro e fora da
norma fundamental.

123
3.2. Moldura constitucional do direito à saúde

A Constituição Federal de 1988 foi pioneira em estruturar


e dar contornos à saúde pública e privada no Brasil.

Fazendo uma digressão para as duas constituições anteri-


ores, tanto a Carta Política de 1967, quanto a Emenda Constitu-
cional n° 01/1969, apenas disciplinavam a competência da Uni-
ão em estabelecer e executar um plano nacional de saúde.

A vigente Carta, por sua vez, elevou a saúde ao plano dos


direitos sociais fundamentais (art. 6°), trazendo no seu texto
diversas regras de competência legislativa, de planejamento e
execução. A Constituição prevê competência comum da União,
dos Estados e Municípios para cuidar da saúde (art. 23, II), com-
petência da União para legislar sobre o direito sanitário (art. 24,
XII), competência dos municípios em prestar, com a cooperação
técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendi-
mento à saúde da população (art. 30, VII); previsão de limites
mínimos de aplicação de recursos orçamentários na saúde (art.
34, VI, e); dentre outras disposições.

E, para além das regras de competência e custeio, a Cons-


tituição instituiu, como parte do capítulo destinado à Seguridade
Social, uma seção consagrada à saúde (artigo 196 e seguintes).

Dentre todos, destacam-se os artigos 196 e 198, que defi-


nem os contornos do Sistema Único de Saúde, prevendo que “A
saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante
políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de
doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário
às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação” e
o “atendimento integral” (art. 198, II).

Ao mesmo tempo em que institui um sistema público de


saúde e elevou as ações de saúde como matéria de relevância
pública (art. 197), a Carta Política tornou livre à iniciativa
privada a assistência à saúde (art. 199), em sintonia com o dis-
posto no art. 170 e seu parágrafo único, do mesmo diploma, que
tratam dos princípios que regem as atividades econômicas.

124
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

Para bem compreender os preceitos constitucionais acer-


ca do direito fundamental à saúde é preciso que se entenda, em
primeiro lugar, qual o significado dos termos empregados nos
preceitos referidos, mais especificamente dois deles de natureza
e conteúdo bastante específicos.

A tratar da saúde, o constituinte assegurou-a não apenas


como direito de todos e dever do Estado, mas principalmente
garantiu o acesso universal (art. 196, caput) e atendimento inte-
gral (art. 198, II), por meio de um sistema hierarquizado, orga-
nizado e único de saúde.

A criação constitucional deste sistema único tem razão de


ser.

Até então, para além da competência da União em legislar


sobre a matéria de saúde, as constituições anteriores eram silen-
tes sobre a forma como a União, Estados, Municípios e Distrito
Federal deveriam se organizar no âmbito da saúde.

Isto levava a instituição de duplicidade de instâncias no


fornecimento do atendimento à saúde, implicando que qualquer
um deles poderia dar atendimento sanitário em qualquer aspec-
to. E, mais grave, na maior parte das vezes, nenhum deles pro-
movia nenhuma política de saúde.

Assim, frente às reivindicações da sociedade civil e do


chamado “movimento sanitarista”, concebeu-se um sistema
único de saúde, hierarquizado com rede regionalizada, cujas
competências são fixadas pelo art. 200 da Constituição Federal.

E esta rede deveria garantir acesso universal e atendi-


mento integral, fixado como diretriz do SUS.

Lidas de modo descontextualizado, as expressões acesso


universal e atendimento integral podem levar a uma compreen-
são diversa daquela que originalmente concebida. E, ainda que
não se esteja vinculado à mens legislatoris, a uma exegese divor-
ciada da realidade e contrária à mens legis.

125
Ao tratar de acesso universal e igualitário buscou o cons-
tituinte atender a um grave reclamo social existente no antigo
regime, vez que o sistema anteriormente estabelecia que a pre-
vidência social era prestada exclusivamente em favor daqueles
indivíduos que estivessem inseridos no sistema previdenciário.
Equivale dizer, fossem os chamados “portadores das carteiri-
nhas”.

Em oposição a este atendimento restritivo, buscou-se ga-


rantir o acesso universal e igualitário como forma de assegurar
a todos os indivíduos o tratamento preventivo e a assistência
curativa das enfermidades.

Por isso que o princípio da universalidade, como direito


fundamental à saúde, tem por significado a garantia estatal às
condições necessárias para o exercício e acesso à atenção e à
assistência à saúde em todos os seus níveis. Equivale dizer, bas-
ta a sua condição como ser humano para que seja garantido o
pleno atendimento a saúde preventiva e curativa, ficando veda-
das discriminações decorrentes da condição econômica, social,
profissional ou mesmo regional.

E isto já é bastante ambicioso. Esta abordagem veda que


pessoas de outros estados ou outros municípios não sejam tra-
tadas em localidades diversas de seus domicílios. Também eli-
mina a restrição até então existente de assegurar o acesso a
tratamentos exclusivamente para aqueles que contribuíam para
a previdência social.

De um momento para outro, e isto merece ser festejado, a


nova ordem constitucional incluiu no sistema de saúde todos os
brasileiros, eliminando qualquer obrigatoriedade de registro
anterior ou contribuição109.

109
- E a redação constitucional deixa transparecer que sequer estrangeiros podem ser
excluídos deste atendimento, embora a questão possa exigir maiores reflexões quanto à
possibilidade de criar limitações, como ser o estrangeiro residente ou não, estar legal ou
ilegalmente no país, possibilidade de exigir-se seguro-saúde para estrangeiros, entre
outros limites.

126
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

A Lei nº 8080/90, no seu art. 7º, I, confere a “universalida-


de de acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistên-
cia”.

E o problema parece ser mais profundo na segunda ques-


tão.

Outro elemento assegurado pela Carta Política é o chama-


do princípio da integralidade ou atendimento integral. O
artigo 198, II, estabelece que “as ações e serviços públicos inte-
gram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um
sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:
(...) II – atendimento integral, com prioridade para as atividades
preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais;”.

Ora, da simples leitura do texto é possível verificar que o


atendimento integral previsto na Constituição não tem por es-
copo a garantia de todo e qualquer tipo de atendimento para os
indivíduos, mas uma diretriz, um vetor, um caminho que deve
ordenar as políticas públicas.

Felipe Dutra Asensi assevera que o princípio da integrali-


dade “se traduz na ideia de que o indivíduo deve ser visto como
uma totalidade bio-sociopsíquica, além de ter direito aos serviços
de saúde de baixa, média e alta complexidade de forma humani-
zada. Ao mesmo tempo, tal princípio preconiza que os problemas
de saúde vão além da mera presença ou ausência de doença, pois
envolvem condicionantes sociais de múltiplas naturezas. Buscou-
se, ainda, promover medidas que afastassem a exclusividade da
noção de especialidade médica no cuidado em saúde, de modo a
constituir uma atenção em saúde mais integral, que considerasse
o usuário como um sujeito partícipe do seu processo de prevenção,
proteção e recuperação”110.

110
- ASENSI, Felipe Dutra. Direito à saúde. Práticas sociais reivindicatórias e sua efetiva-
ção. Curitiba: Juruá, 2013, p. 140.

127
Assim, a integralidade prevista na Carta Política acha-se
associada à noção de prevenção, proteção e recuperação, de-
vendo o direito à saúde ser considerado em todos os aspectos, e
não apenas em um deles.

Isto não se confunde com a noção de direito a todo o tipo


de tratamento ou dever estatal prestacional amplo e irrestrito
no tocante à saúde. Aliás, não há país no mundo que garanta
direito nesta proporção. O que se deve garantir é a realização de
políticas públicas preventivas, protetivas e de recuperação, num
programa que seja o mais abrangente possível.

A integralidade, portanto, consistente em oferecer uma


“carteira generosa de bens e serviços para a população, a partir
de escolhas fundadas em consensos baseados em critérios científi-
cos e racionais de escolha, validados socialmente, e em princípios
éticos, através de regras claras e transparentes”, na expressão de
Ciro Carvalho Miranda111.

A noção de integralidade, portanto, está firmada como di-


retriz, em oposição à ideia de compartimentação, divisão ou
secção. O Sistema Único de Saúde está obrigado a criar políticas
públicas preventivas e curativas. Deve dar o atendimento neces-
sário aos seus usuários, segundo as políticas públicas previstas.

Aliás, o artigo 7º, da Lei nº 8080/90, elenca a integralida-


de como um dos princípios norteadores do SUS, “entendida como
conjunto articulado e contínuo de ações e serviços preventivos e
curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em to-
dos os níveis de complexidade do sistema”.

Em suma, diversamente daquilo que possa decorrer de


uma interpretação literal e sem a prévia concepção dos motivos
que levaram ao constituinte fixar tais princípios, a integralidade
não pressupõe o acolhimento de todas as expectativas individu-
ais, mas a obrigação do poder público instituir políticas públicas
progressivas para dar maior cobertura, melhor atendimento e
incorporação de procedimentos, tecnologias e medicamentos.

111
- MIRANDA, Ciro Carvalho. SUS. Medicamentos, protocolos clínicos e o Poder Judiciá-
rio: ilegitimidade e ineficiência. Brasília: editora Kiron, 2013, p. 29/30.

128
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

O arcabouço constitucional também legitima a convivên-


cia de um sistema público de saúde e um sistema privado de
saúde. Um sistema público calcado em princípios sociais de soli-
dariedade, igualdade, universalidade e integralidade. Um siste-
ma privado baseado em princípios que regem a iniciativa priva-
da, destacadamente a liberdade de ação e objetivos financeiros.

Essa dualidade implica numa fratura lógica da Carta Polí-


tica. Eleva a saúde a um patamar extremamente diferenciado
dentro da estrutura jurídico-constitucional, assegurando-a como
direito fundamental social de todos os indivíduos, prevendo
acesso universal, integralidade, atendimento igualitário e dever
do Estado, ao mesmo tempo em que permite o funcionamento
de um sistema privado de saúde, com atendimento voltado para
a parcela da população em condições de arcar com os seus cus-
tos.

Esta convivência entre sistema público e privado apresen-


ta aspectos salutares e aspectos de iniquidade.

Uma parcela minoritária da população tem condições de


arcar com os custos da saúde integralmente privada, tendo aces-
so a serviços de excelência, aos melhores tratamentos, à mais
moderna tecnologia, a médicos extraordinariamente qualifica-
dos e até de renome internacional. Estes indivíduos estabelecem
uma relação privada com os prestadores dos serviços médicos,
sendo regidos por regras de direito civil e uma relação de mer-
cado.

Outra parcela da sociedade - um pouco maior que a pri-


meira -, por intermédio de planos de saúde e seguros-saúde, tem
acesso a alguns destes serviços privados, segundo a modalidade
dos contratos firmados com as empresas que prestam os planos
ou seguros de saúde. Este segundo grupo está regido pela con-
tratualidade, que firma um regime mais delimitado que o pri-
meiro grupo, dadas as cláusulas contratuais e os benefícios co-
bertos pelos planos ou seguros de saúde.

129
Deste segundo grupo é possível extrair um terceiro gru-
po112 composto pelos indivíduos que possuem planos ou segu-
ros na área da saúde, mas que eventualmente não estão cober-
tos pelos benefícios ou serviços que pretendem ou necessitam.
São pessoas que, de modo individual ou coletivo, aderiram a
planos que ofertam serviços básicos na área de saúde, mas não
dão acesso a tratamentos/medicamentos mais sofisticados, mo-
dernos e onerosos.

Por fim, é possível estabelecer a existência de um quarto


grupo, representado pela maior parte da população, que tem
acesso exclusivamente aos serviços públicos de saúde.

Esta última parcela, com o acréscimo do terceiro grupo


em casos específicos (quando busca benefícios não previstos
nos planos de saúde), é aquela que quer os serviços públicos de
saúde, representados pelo SUS das filas, dos postos de saúde, da
falta de especialistas, da carência de leitos e UTIs, dos médicos
importados, etc. Os serviços prestados contrastam com os da
saúde privada, acessíveis apenas ao primeiro e segundo grupo
da população.

Esta realidade dual, amparada na legislação pátria, tem


causado extremo desconforto e talvez seja a causa primeira da
judicialização da saúde, porque se busca conceder aos indiví-
duos que tem acesso apenas ao SUS um padrão de qualidade e
atendimento mais próximo do possível daquele dispensado aos
indivíduos que tem acesso ao sistema privado.

E, para além da desigualdade do sistema público e do sis-


tema privado, há verdadeira confusão entre as estruturas públi-
cas e privadas de atendimento, bem como de atuação profissio-
nal.

112
- Em verdade se trata de uma subdivisão do segundo grupo que, em face de circuns-
tâncias da vida, acabam formando um novo grupo eventual e volátil, que se comporta
como o grupo de pessoas absolutamente desassistidas.

130
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

O quadro até aqui traçado permite constatar que, antes da


Constituição Federal de 1988, o estágio de desenvolvimento e
organização do nosso sistema de saúde muito se aproximava da
tutela da saúde na Inglaterra nos idos de 1937.

No livro A Cidadela, A. J. Cronin descreve a trajetória e os


dramas vivenciados por um médico jovem e idealista, desde sua
prática profissional pelo interior daquele país até retornar a
Londres onde encontra seus antigos colegas, quando atinge o
chamado “sucesso profissional” mediante a adoção de práticas
no mínimo duvidosas, que até então criticava.

O caminho trilhado pelo sistema de saúde inglês, desde o


pós-guerra até se tornar um dos exemplos mundiais eficiência
em saúde pública, mostra que o sistema de saúde único de saúde
no Brasil tem muito a evoluir. Mas igualmente revela que os
passos iniciais vêm sendo dados desde 1988, e que o atingimen-
to de um estágio muito superior é possível.

A experiência tem demonstrado que pertence ao terceiro


agrupamento acima citado a maioria dos autores de ações na
área da saúde, porque esclarecidos, com atendimento parcial da
saúde privada, mas sem condições de arcar com tratamentos
e/ou medicamentos não cobertos por seus contratos particula-
res.

A estes demandantes acrescem-se o Ministério Público e


a Defensoria Pública no patrocínio de causas em favor de pesso-
as pertencentes ao quarto grupo, fomentando a chamada judi-
cialização da saúde. Todos buscam o acesso aos serviços médi-
cos, aos exames clínicos e laboratoriais, aos médicos especialis-
tas, aos estabelecimentos hospitalares, direito a leitos e aos fár-
macos, sob a perspectiva dos princípios constitucionais da saúde
pública, tornando a prestação estatal ainda mais frágil, desigual
e caótica.

Isto porque esta judicialização, no mais das vezes, tem ig-


norado as molduras fáticas.

131
3.3. Moldura fática do financiamento à saúde

Como afirmado acima, a dualidade entre público e privado


é uma das causas da judicialização, porque muitos buscam o
acesso e/ou padrão de atendimento que nem sempre é acessível
a todos.

E estas demandas na área de saúde impactam sobrema-


neira as políticas públicas de saúde, a organização do sistema e,
de um modo ainda mais firme, as finanças do Estado113.

Cada pretensão implica em ônus financeiro e sobrecarga


da infra-estrutura existente. E aqui se abra um parêntesis para
deixar demarcado um ponto que me parece pouco valorado na
judicialização da saúde: embora a grande maioria das demandas
diga respeito a medicamentos, a mesma lógica jurídica se aplica
a outros tipos de pretensões como cirurgias, implantação de
órteses e próteses, procedimentos, internações, home care, tra-
tamentos no exterior, entre tantas outras providências que po-
dem ser buscadas.

Esta dimensão é de fundamental importância porque, co-


mo é sabido, os recursos são finitos e, ainda que não fossem, não
há o quantitativo de estabelecimentos hospitalares, clínicas e
médicos suficientes para atender ao sistema público do mesmo
modo que o sistema privado. Equivale dizer, não há dinheiro, e
ainda que houvesse, isto não seria o bastante.

Os gastos públicos em saúde no Brasil são inferiores as


médias mundiais, sejam eles considerados per capita, sejam
tomados em percentual sobre o PIB114. A União responde com

113
- A questão ganhou tamanha proporção que vários estados e a própria União criaram
rubricas próprias em seus orçamentos para atendimentos de determinações judiciais na
área de saúde.
114
- Sobre o tema, confiram-se os seguintes artigos: Gasto per capita do Brasil com
saúde é menor que a média mundial
(http://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,gasto-per-capita-do-brasil-com-saude-
e-menor-que-media-mundial-imp-,1032260) e Tendências do financiamento da Saúde
(http://gvsaude.fgv.br/sites/gvsaude.fgv.br/files/20.pdf).

132
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

aproximadamente 50% dos gastos públicos, sendo a outra me-


tade dividida entre Estados e Municípios.

Para além dos gastos públicos, também há despesas pri-


vadas na área de saúde, compostas tanto por pagamentos de
planos de saúde e seguros, quanto por pagamentos diretos. Dos
aproximados 7,9% do PIB gastos em saúde, a maior parte deles
decorre de investimentos privados.

Ainda que gastos públicos e privados sejam somados,


chega a ser um truísmo afirmar que a saúde no Brasil é subfi-
nanciada. Especialmente do ponto de vista público, porquanto
nosso modelo constitucional priorizou a saúde pública (art. 197,
CF), ao mesmo tempo em que permitiu à iniciativa privada a
exploração da saúde suplementar.

O subfinanciamento é reconhecido pelos próprios admi-


nistradores públicos115, sendo indispensável o aumento pro-
gressivo dos investimentos públicos nos programas de saúde, de
modo que sejam atingidos níveis desejáveis. Raros Estados exe-
cutam o percentual constitucional de orçamento público a ser
investido na saúde. Esta sobrecarga tem sido imposta aos Muni-
cípios, mas a participação dos Estados e da União não atinge os
montantes necessários.

Isto bem demonstra que há evidente problema de custeio


na saúde pública, o que permite desde logo reconhecer que a
judicialização agrava este problema de alocação de recursos.
Embora influencie na questão da alocação de recursos, cumpre
indagar se a judicialização acaba melhorando ou piorando a
outorga do direito à saúde?

115
- Os Ministros de Estado Aluisio Mercadante e Ideli Salvatti, em reportagem do jornal
Estado de São Paulo, em 26 de setembro de 2011, reconhecem o subfinanciamento.
Igualmente o Secretário da Saúde do Estado de São Paulo, em matéria do mesmo jornal,
publicado em 27 de março de 2014, também afirma que a saúde no Brasil é subfinancia-
da.

133
As três imagens, a seguir apresentadas, permitem visuali-
zar o problema num amplo espectro.

Na imagem 1, é possível verificar os crescentes gastos do


Estado do Paraná na dispensação de medicamentos por força de
ordem judicial ao longo dos anos116-117:

Total de pacientes
Unidades Valor em R$ atendidos (ativos e
Ano
Distribuídas inativos)

2002 73.731 239.815,36 35


2003 73.606 705.641,65 27
2004 137.615 3.385.598,95 175
2005 251.107 6.949.488,24 420
2006 322.557 12.427.245,35 498
2007 477.863 15.869.402,89 947
2008 459.117 19.336.580,60 679
2009 632.406 35.004.454,92 871
2010 571.267 35.718.740,24 984
2011 649.344 45.073.802,93 1.337
2012 945.632 60.168.910,82 1.840
2013 1.587.105 85.009.327,63 3.054
2014 2.363.822 90.395.273,10 3.646

O número de pacientes atendidos é crescente, embora o


seja de modo desproporcional em relação aos custos (imagem
2):

116
- Dados da Secretaria de Estado da Saúde do Estado do Paraná.
117
- O número de unidades distribuídas refere-se a unidades de medicamentos, como
drágeas, comprimidos, fraldas, ou qualquer outro medicamento determinado judicial-
mente.

134
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

Novos Novos pacientes Total de Novos


Ano pacientes (2-Inativo, Pacientes
(1-Ativos) Pendente e Óbito) (1+2)
1999 0 1 1
2000 1 14 15
2001 1 32 33
2002 1 34 35
2003 0 27 27
2004 7 168 175
2005 18 402 420
2006 23 475 498
2007 181 766 947
2008 109 570 679
2009 141 730 871
2010 328 656 984
2011 670 667 1.337
2012 977 863 1.840
2013 1.944 1.110 3.054
2014 2.963 683 3.646
TOTAL 7.364 7.198 14.562

É fácil constatar que, em treze anos, os gastos por força de


ordem judicial cresceram quase quarenta vinte vezes.

No seguinte gráfico a visualização, acerca de pacientes


novos (ativo; Inativo, pendente, óbito; total) recebendo medi-
camentos por demanda judicial por ano (1999 a 2014), torna-se
mais clara (imagem 3).

135
4000

3500

3000

2500

2000

1500
Ativo

1000 Inativo, Pendente e


Óbito
500 Total de Novos
Pacientes
0
1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014

Na figura seguinte (imagem 4), apresenta-se a dimensão


destas despesas frente às demais despesas orçamentárias exe-
cutadas pelo Estado do Paraná para a aquisição e fornecimento
de medicamentos:

Distribuição de Medicamentos pela


Central de Medicamentos do Paraná em 2014
PROGRAMAS VALOR
Componente Especializado R$ 311.094.701,85
Componente Estratégico R$ 184.010.129,15
Componente Básico R$ 17.748.638,96
Oncologia (compra Min. Saúde) R$ 27.562.249,10
Programa Especiais da SESA/PR R$ 55.450.894,10
Demanda Judicial R$ 90.417.042,64
TOTAL R$ 686.283.656,47

Verifica-se que, no ano de 2012, as ordens judiciais ocu-


param aproximadamente 12% dos gastos na dispensação de
medicamentos no Estado do Paraná. E, diga-se, para o atendi-

136
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

mento de menos de 3000 pessoas, segundo os dados da Secreta-


ria Estadual de Saúde do Paraná118.

Por fim, a terceira imagem de contextualização do pro-


blema diz respeito aos gastos de outros estados da federação
decorrentes de ordens judiciais:

Exemplos de gastos da União e de Estados


decorrentes de ordens judiciais
União em 2010 R$ 132 milhões
São Paulo em 2010 R$ 700 milhões
Rio Grande do Sul em 2011 R$ 192 milhões
Ceará em 2013 R$ 140 milhões
Minas Gerais em 2010 R$ 61 milhões
(4762 pessoas atendidas)
Paraná em 2014 R$ 90 milhões
(2784 pessoas atendidas)
Espírito Santo em 2010 R$ 9 milhões

A disparidade de gastos entre os Estados decorre do grau


de desenvolvimento das políticas locais, a aplicação em maior ou
menor grau do limite constitucional de 12%, a falta de medica-
mentos da lista RENAME nos postos de saúde, a população de
cada Estado ou mesmo a cultura local de litigiosidade.

Assim, ultrapassado o plano individual da discussão sobre


o direito à saúde, é possível constatar que atualmente as ordens
judiciais de todo o Brasil acabam drenando anualmente bilhões
de reais que deveriam ser investidos no atendimento coletivo.

Evidentemente que a este desvirtuamento orçamentário,


somado ao baixo financiamento da saúde e, por vezes, à má ges-
tão desses recursos, impedem que o Sistema Único de Saúde
tenha um funcionamento mais eficiente.

118
- Embora o percentual possa não parecer expressivo, do ponto de vista quantitativo, a
comparação com outros dados da tabela permite visualizar sua dimensão. Basta ver que
o valor é maior que o gasto com todas os programas de saúde da própria SESA.

137
Mas, de qualquer sorte, a chamada judicialização da saú-
de, quando atua na perspectiva do direito individual, acaba por
colaborar com a má distribuição destes escassos recursos.

Se os dados orçamentários já não falassem por si, importa


considerar outros limites da realidade.

Do ponto de vista estrutural, a carência pode ser aferida a


partir de um exemplo do Estado do Paraná, mais especificamen-
te na Região Metropolitana de Curitiba, onde cerca de 29 mil
pessoas aguardam numa fila por consultas com dermatologista,
ou mais de 79 mil consultas oftalmológicas, isto sem falar provi-
dências de natureza mais complexa, como exames ou procedi-
mentos119.

Ainda que houvesse previsão orçamentária para atendi-


mento de todos, não haveria médicos, hospitais, leitos, laborató-
rios, clínicas para realizar exames e dar imediato atendimento
em curto espaço de tempo. Se atendidas mil pessoas por mês,
seriam necessários mais de dois anos para atender a todos.

Não se pode resolver problemas desta ordem sem que ha-


ja uma adequada dimensão do quadro fático e soluções possí-
veis e perenes, a serem adotadas em uma política de longo pra-
zo.

Por questão de justiça, impõe-se consignar o Paraná é um


dos Estados que está melhor organizado em matéria de saúde,
sendo o exemplo acima mera redução dos problemas existentes
em outros estados da Federação.

Pois bem, estas molduras - fática e jurídica – são balizas


para o método de interpretação estrutural-concretizante das
normas constitucionais, conforme adequadamente leciona Frie-
drich Muller120. Equivale dizer, para estabelecer o conteúdo do
direito à saúde, dentro da perspectiva de que a saúde é direito

119
- dados extraídos de matéria jornalística, consoante quadro e referência adiante
expostos.
120
- MÜLLER, F. Métodos de trabalho do Direito Constitucional. 2. ed. Tradução: Peter
Naumann. São Paulo: Max Limonad, 2000. p. 36.

138
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

de todos e dever do Estado, há que ser tomada a realidade do


Estado brasileiro e seu atual estágio de desenvolvimento.

A interpretação das normas constitucionais e a legislação


que lhe dá consistência e integração devem ser realizadas em
sintonia com a realidade, não bastando a letra da Constituição
assegurar algo que a realidade não permite. De outra banda,
sempre que houver avanços na realidade, há que se empregar
também avanços na interpretação e concretização das normas
constitucionais, criando uma hermenêutica progressiva, bus-
cando ampliar os direitos e garantias constitucionais dos indiví-
duos.

Este contexto é de fundamental importância para a com-


preensão do Sistema Único de Saúde, interpretação e aplicação
de suas normas, de modo a compreender que o ideal e o desejá-
vel na área do direito à saúde não coincide com aquilo que é
possível.

Parafraseando Pondé: “Sabemos que a marca essencial de


toda forma de paraíso imaginado é a de um lugar no qual desejos
e necessidades são iguais e harmônicos. Portanto, um lugar no
qual o círculo forma um quadrado”121.

O desejável era que todos tivessem acesso a ótimos médi-


cos, aos melhores estabelecimentos hospitalares, aos fármacos
mais efetivos e exames em equipamentos modernos. O ideal,
para a saúde e para todos os demais direitos, é que as pessoas
estivessem inseridas no primeiro grupo, daqueles que tem capa-
cidade econômica para adquirir todos os bens da vida que lhe
sejam necessários ou até mesmo voluptuários. Ou, ainda do pon-
to de vista ideal, que o Estado fosse de tal forma eficiente e com
capacidade econômica suficiente para arcar com todas as despe-
sas de saúde, bem como com o custeio de todos os direitos e
garantias fundamentais.

121
- PONDÉ, Luis Felipe. A era do ressentimento: uma agenda para o contemporâneo.
São Paulo: LeYa, 2014.

139
Sem se aprofundar na sempre polêmica questão da cha-
mada reserva do possível, não se pode deixar de considerar que
a limitação da realidade aos direitos prestacionais está bem
desenvolvida pela jurisprudência da Corte Constitucional da
Alemanha122, a partir do precedente que firmou a sua existência.

O possível, dentro da saúde, é aquilo que o Estado pode


garantir de modo isonômico para todos os indivíduos, por meio
de política pública de saúde que permita, em primeira linha, um
atendimento básico para todos, tanto na promoção, quanto na
prevenção e tratamento da saúde. Depois, com previsão de um
atendimento especializado para aqueles que deles necessitem.
Por fim, uma atuação muito específica para tratamentos caros e
raros. Tudo isto conforme as possibilidades orçamentárias e as
políticas públicas instituídas.

3.4. Princípio republicano:


escolhas, escassez e racionamento

Postos os quadros constitucional e fático, imprescindível


que outros conceitos sejam estabelecidos para melhor compre-
ensão das ideias.

O primeiro deles diz respeito ao princípio republicano,


sob o qual está organizado o Estado brasileiro. J. J. Canotilho
destaca dentre os elementos densificadores da forma republica-
na a “existência de uma estrutura político-organizatória garanti-
dora das liberdades cívicas e políticas. Neste sentido a forma re-
publicana aponta para a ideia de um arranjo de competências e
funções dos órgãos políticos em termos de balanceamento, de
freios e contrapesos (checks and balances) ”123.

122
- No julgamento do BVerfGE 33, 303 (numerus clausus), o Tribunal Constitucional da
Alemanha defendeu a constitucionalidade de normas de direito estadual que limitavam
o ingresso à Faculdade de Medicina nas Universidades de Hamburgo e da Baviera,
postulando os autores o direito de ingresso ilimitado de postulantes.
123
- CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra:
Livraria Almedina. 1998. p. 222.

140
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

Estas competências e funções dos órgãos políticos repre-


sentam os Poderes constitucionalmente previstos para realizar
as atividades estatais, tradicionalmente divididos, e no Brasil
não é diferente, entre Executivo, Legislativo e Judiciário.

Os Poderes do Estado, desde a tradicional concepção de


rígida separação até a atual de colaboração entre os poderes124,
possuem competências específicas segundo as atribuições cons-
titucionalmente previstas a partir do Título IV, da Carta Magna,
mediante controles recíprocos.

Embora a interação entre os poderes deva ser harmonio-


sa, isto não autoriza que qualquer um deles venha a exercer o
papel constitucional que veio a ser destinado a outro. Aliás, cada
um dos poderes detém parcela das funções do Estado, não lhes
sendo dado intervir no exercício das atribuições dos outros fora
dos limites constitucionalmente autorizados.

Aqui residem outros pontos fundamentais para compre-


ensão do papel que deve ser exercido pelo Poder Judiciário
quanto às políticas públicas e, de um modo especial, quanto à
judicialização da saúde: legitimidade e limites de atuação.

A Constituição Federal positivou diversos direitos e ga-


rantias fundamentais, todos eles dotados de força normativa e
com o atributo da máxima efetividade. Equivale dizer, é possível
extrair do texto constitucional normas que garantam aos indiví-
duos direitos concretos, independentemente da interposição do
legislador, em superação a antiga noção de a carta política como
repositório de boas intenções destinadas ao legislador. E estas
normas, a partir dos textos que lhes dão origem, devem produzir
o máximo de efetividade que seja possível extrair a partir de sua
redação, na forma do princípio da máxima efetividade das nor-
mas constitucionais.

124
- SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros,
2010, 33ª ed., p. 109.

141
Isto, entretanto, não equivale a conferir ao intérprete, ao
indivíduo ou ao aplicador da norma um cheque em branco para
livremente preencher seu conteúdo. Essa máxima efetividade
encontra limites no próprio texto, bem como na interpretação
harmônica dos demais dispositivos constitucionais, ou mesmos
nos dados da realidade.

Assim, a precisão do conteúdo, limites e modo de exercí-


cio dos direitos constitucionais, como regra geral, fica a cargo do
legislador ordinário. A aplicação desta norma, e da sua regula-
mentação, recai sobre a administração pública. E, por fim, o con-
trole quanto à constitucionalidade da legislação e dos atos ad-
ministrativos de execução destas normas deve ser exercido pelo
Poder Judiciário.

Este brevíssimo esquema permite verificar que o papel


reservado ao Poder Judiciário quanto ao desenvolvimento e
aplicação dos direitos constitucionais contempla algumas limi-
tações.

E, para além das limitações constitucionais e funcionais,


também deve entrar no sopesamento dos limites de atuação de
cada um dos poderes, e de um modo especial do Poder Judiciá-
rio, o tema da legitimidade democrática.

Embora não seja o escopo deste estudo tratar da separa-


ção de poderes e os limites de atuação de cada qual e sua legiti-
midade democrática, não se pode perder de vista que o Poder
Judiciário é o menos legitimado para realizar escolhas políticas,
seja porque não se submete ao crivo do escrutínio popular, seja
porque não é o detentor das condições ideais para examinar o
impacto político e econômico e suas decisões125.

125
- “A formulação de políticas públicas (a agenda governamental) e administração dos
recursos públicos são as tarefas principais do legislativo e do executivo. A eleição dos
seus membros confere, com o mandato político, a opção do povo sobre as políticas a
programar sobre a utilização ser dada aos recursos públicos. Pelo menos essa é a con-
cepção que está na essência da separação dos poderes, adotada nas constituições mo-
dernas”, nas palavras de Fernando Quadros da Silva (Controle Judicial das Agências

142
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

Não se quer, com isso, defender a ideia de vedação da atu-


ação do Poder Judiciário quanto às políticas públicas, mas que as
políticas já existentes devem merecer deferência por parte do
julgador, bem como a preferência da atuação negativa, invali-
dando aquelas que estejam em desconformidade com a Consti-
tuição Federal ou com as leis.

Sobre o tema, tenho por apropriadas as palavras de Luis


Roberto Barroso126:

“Por essa razão, o STF deve ser deferente para com as deliberações do
Congresso. Com exceção do que seja essencial para preservar a demo-
cracia e os direitos fundamentais, em relação a tudo mais os protago-
nistas da vida política devem ser os que têm votos. Juízes e tribunais
não podem presumir demais de si próprios – como ninguém deve, ali-
ás, nessa vida – impondo suas escolhas, suas preferências, sua vonta-
de. Só atuam, legitimamente, quando sejam capazes de fundamentar
racionalmente suas decisões, com base na Constituição.

Nessa linha, cabe reavivar que o juiz: (i) só deve agir em nome da Cons-
tituição e das leis, e não por vontade política própria; (ii) deve ser defe-
rente para com as decisões razoáveis tomadas pelo legislador, respei-
tando a presunção de validade das leis; (iii) não deve perder de vista
que, embora não eleito, o poder que exerce é representativo (i.e, e-
mana do povo e em seu nome deve ser exercido), razão pela qual sua
atuação deve estar em sintonia com o sentimento social, na medida do
possível. Aqui, porém, há uma sutileza: juízes não podem ser populis-
tas e, em certos casos, terão de atuar de modo contramajoritário. A
conservação e a promoção dos direitos fundamentais, mesmo contra a
vontade das maiorias políticas, é uma condição de funcionamento do
constitucionalismo democrático. Logo, a intervenção do Judiciário,
nesses casos, sanando uma omissão legislativa ou invalidando uma lei
inconstitucional, dá-se a favor e não contra a democracia.

Ele nem sempre dispõe das informações, do tempo e mesmo do co-


nhecimento para avaliar o impacto de determinadas decisões, proferi-
das em processos individuais, sobre a realidade de um segmento eco-
nômico ou sobre a prestação de um serviço público. Tampouco é pas-

Reguladoras – Aspectos doutrinários e jurisprudenciais. Porto Alegre: Verbo Jurídico,


2014, p. 264).
126
- BARROSO, Luis Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática.
In Thesis, Rio de Janeiro, vol.5, nº 1, 2012, p. 23-32.

143
sível de responsabilização política por escolhas desastradas. Exemplo
emblemático nessa matéria tem sido o setor de saúde. Ao lado de in-
tervenções necessárias e meritórias, tem havido uma profusão de de-
cisões extravagantes ou emocionais em matéria de medicamentos e
terapias, que põem em risco a própria continuidade das políticas públi-
cas de saúde, desorganizando a atividade administrativa e comprome-
tendo a alocação dos escassos recursos públicos. Em suma: o Judiciário
quase sempre pode, mas nem sempre deve interferir. Ter uma avalia-
ção criteriosa da própria capacidade institucional e optar por não exer-
cer o poder, em autolimitação espontânea, antes eleva do que dimi-
nui.”

E, na conclusão de seu texto, aponta o agora Ministro do


Supremo Tribunal Federal:

“Em suma: o Judiciário é o guardião da Constituição e deve fazê-la va-


ler, em nome dos direitos fundamentais e dos valores e procedimentos
democráticos, inclusive em face dos outros Poderes. Eventual atuação
contramajoritária, nessas hipóteses, se dará a favor, e não contra a
democracia. Nas demais situações, o Judiciário e, notadamente, o Su-
premo Tribunal Federal deverão acatar escolhas legítimas feitas pelo
legislador, ser deferentes para com o exercício razoável de discriciona-
riedade técnica pelo administrador, bem como disseminar uma cultura
de respeito aos precedentes, o que contribui para a integridade, segu-
rança jurídica, isonomia e eficiência do sistema. Por fim, suas decisões
deverão respeitar sempre as fronteiras procedimentais e substantivas
do Direito: racionalidade, motivação, correção e justiça. ”

E administrar, pois, é fazer escolhas. E nem sempre são


escolhas fáceis. No âmbito da saúde, quase sempre são difíceis. O
administrador probo não prefere uma ou outra política pública a
seu bel-prazer, deve fazê-lo calcado dentre de critérios de ne-
cessidade, eficiência, alcance, disponibilidade orçamentária,
exclusão de outras possibilidades, dentre tantas outras variá-
veis.

E, para fazer escolhas, há que se distinguir entre priorida-


de, alocação de recursos e racionamento.

144
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

Prioridade consiste em dar atenção especial a alguma


coisa, organizar em ordem de importância, estabelecer prefe-
rência para de atendimento, acolhimento, mas com a possibili-
dade de atendimento de todos. Isto se dá, por exemplo, na en-
trada em aeronave. Todos os passageiros vão entrar, mas o mo-
do de entrada pode ser ordenado. No atendimento de um hospi-
tal ou posto de saúde, onde a escolha de quem será atendimento
em primeiro lugar pressupõe não apenas a ordem de chegada,
mas a situação de emergência de cada paciente. Normalmente
envolve opções para melhorar ou otimizar o funcionamento,
melhorar a eficiência, ou acolhimento de emergência, mas não
implica em escassez ou falta de atendimento, apenas impõe cri-
térios para sua realização, sendo todos atendidos.

Alocação de recursos consiste num modo de prover e


distribuir recursos com determinado propósito. Tem conotação
de neutralidade administrativa, não pressupõe escassez, pode
exigir critério de escolha, selecionando os grupos atingidos. É o
que ocorre com a própria legislação orçamentária, onde há a
previsão de alocação de recursos em determinadas áreas, em
detrimento de outras. Ou na pavimentação de ruas numa deter-
minada cidade ou na construção de escolas ou postos de saúde
para atender uma comunidade. Também implica na escolha dos
medicamentos que serão incluídos nas listas oficiais e distribuí-
dos, quais patologias farão parte de programas de vacinação ou
prevenção, entre outras escolhas de políticas públicas. Há ape-
nas escassez relativa no que diz respeito à prestação material
dos direitos prestacionais.

Racionamento, por sua vez, tem normalmente uma cono-


tação negativa, significando dividir, suprir pessoa com raciona-
mento, destinar quantidades específicas. A ideia de racionamen-
to muitas vezes está ligada à guerra, mas não apenas nestas si-
tuações, como se dá, por exemplo, com o racionamento de ener-
gia elétrica ou de gasolina. Pressupõe escassez, pode estar ligada
a questões negativas, como negar um serviço ou um recurso,
provavelmente exigindo critérios. A escassez pode estar ligada a
inexistência de recursos econômicos, mas pode estar relaciona-

145
da à falta de outros bens da vida, como a ausência de água, gaso-
lina, ou mesmo de UTI´s.

Quando há escassez absoluta, a natureza do problema é


de racionamento. De outro lado, quando a escassez é relativa, a
questão é de alocação de recursos. A chave da questão ética,
quando se trata de racionamento (escassez absoluta), é qual
indivíduo receberá o bem da vida. Quanto se trata de alocação
de recursos, quais os grupos de indivíduos que dividirão os re-
cursos. Na alocação de recursos há possibilidade de construir
uma relação ganha-ganha, porque todos (ou uma gama elevada
de pessoas ou grupos) poderão receber o bem da vida, ainda que
em menor medida que a desejável. Já no racionamento, alguns
serão privados do bem da vida.

Na questão da saúde a distinção é grande importância


porque, tratando-se de escassez absoluta, quem deve decidir a
questão, em regra, são os médicos. Já, na alocação de recursos,
as decisões são políticas ou legais.

Assim, a distinção conceitual entre racionamento e aloca-


ção de recursos significa que o racionamento impõe a regulação
do acesso aos benefícios de saúde mediante condições de abso-
luta escassez, ao passo que a alocação de recursos regula o aces-
so à saúde sob condições de escassez relativa.

O que é racionamento em saúde? É quando determina-


dos medicamentos ou procedimentos são necessários, mas os
recursos existentes não permitem o atendimento de todos. A
questão não está centrada apenas nos recursos econômicos, mas
também em recursos tecnológicos, humanos, infra-estrutura,
entre outros.

Para ilustrar, cito alguns exemplos do presente e do pas-


sado.

Hoje, quando a África vivencia o surto de febre hemorrá-


gica conhecida por Ebola, com grave risco de expansão mundial,
um dos mais eficazes medicamentos disponíveis para o trata-
mento, que tem sido realizado por meio de um coquetel medi-

146
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

camentos, consiste numa droga cuja produção mensal é limitada


a 100 pacientes. Como escolher quais pacientes receberão o
medicamento?

No passado, foram intensos os debates havidos nos Esta-


dos Unidos127 por ocasião do surgimento da insulina, da penici-
lina, da hemodiálise e das terapias antirretrovirais128 (ARVs).

Após a descoberta quase acidental de Ian Fleming, em


1929, a penicilina somente começou a ser produzida na década
40 pela Universidade de Oxford, a partir das pesquisas de Sir
Howard Florey e Ernst Chain, que retomaram os estudos de
Fleming e conseguiram produzi-la com fins terapêuticos em
escala industrial, inaugurando a era dos antibióticos. A escassa
produção inicial impedia que a nova descoberta fosse utilizada
por todos. Além disso, acreditava-se que ela seria a solução para
todas as moléstias. Para agravar o quadro, o mundo enfrentava
sua segunda grande guerra, o que estava a exigir maiores e me-
lhores cuidados médicos para os soldados envolvidos no confli-
to. Pois bem, os Estados Unidos, diante deste contexto, optaram
por distribuir a penicilina que lhe era disponível para os solda-
dos americanos, muitos dos quais doentes em função de terem
contraído gonorréia.

Isto gerou grande descontentamento e severo debate na


imprensa americana, porque não se compreendia que, num caso
de evidente escassez absoluta, a opção política tenha sido minis-
trar medicamentos a soldados que mantinham – segundo a opi-
nião pública – uma vida promíscua, em detrimento de cidadãos
com conduta ilibada.

127
- Sobre o tema, recomenda-se a leitura dos seguintes textos:
- McGough LJ, Reynolds SJ, Quinn TC, Zenilman JM. Which patients first? Setting priori-
ties for antiretroviral therapy where resources are limited. Am J Pub Health 2005; 95:
1173–80. (http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC1449336/);
- Reinhardt, U. ‘Rationing’ Health Care: What Does It Mean? New York Times. July 3
2009. (http://economix.blogs.nytimes.com/2009/07/03/rationing-health-care-what-
does-it-mean/);
- Singer P. Why we must ration healthcare. New York Times. July 15, 2009.
(http://www.nytimes.com/2009/07/19/magazine/19healthcare-t.html)
128
- A questão do fornecimento dos ARV´s é tratada no filme “Clube de Compras Dallas”.

147
Outro caso que ilustra muito bem a questão do raciona-
mento deu-se em Seattle, onde primeiramente desenvolveu-se
um sistema eficiente de hemodiálise. Embora a descoberta do
tratamento de problemas renais (com a filtragem por meio arti-
ficiais) tivesse sido inventada em 1913, por John Abel, nos Esta-
dos Unidos, ao realizar o tratamento em seus cães (método foi
aprimorado em 1917 pelo alemão Georg Haas), somente em
1943 o holandês Wilem Kolff inventou a primeira máquina de
diálise. Ocorre que o mecanismo inicial padecia de um grave
problema, era necessária utilização de uma nova veia e numa
nova artéria a cada procedimento. Após poucas sessões, o paci-
ente já não dispunha de locais adequados para a realização da
hemodiálise. Apenas em 1960, Scribner e Quinton, da Universi-
dade de Washington, em Seattle, inventaram o chamado “siste-
ma Shunt”, o qual permitia um acesso arteriovenoso externo
permanente. Foram instituídos diversos centros de hemodiálise
nos Estados Unidos, mas a quantidade de pacientes que necessi-
tavam do procedimento era muito superior ao número de ma-
quinas em cada centro médico para sua realização. Em 1962,
apenas um em cada cinqüenta pacientes recebiam o tratamento.

Considerando que cada paciente se submete ao procedi-


mento várias vezes durante a semana, a questão era definir
quem deveria receber o tratamento?

A solução encontrada foi a constituição de um comitê lo-


cal “The Admissions and Policies Committee of the Seattle Artifici-
al Kidney Center at Swedish Hospital”, de composição heterogê-
nea, a quem competia selecionar os pacientes que iriam receber
o tratamento. Referido comitê estabeleceu alguns critérios para
seleção dos pacientes, mas não tardou para que o mesmo ficasse
conhecido como “Comitê da Morte”, eis que realizava a escolha
daqueles que seriam tratados, em detrimento de outros que não
receberiam o tratamento e, em breve, morreriam em decorrên-
cia de falência renal129.

129
- Uma versão desta história acha-se descrita no artigo da revista Life, escrito por
Alexander S. “They decide who lives, who dies: medical miracle puts a moral burden on a
small committee”. Life. 1962;53(19):102-125.

148
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

Se uma decisão desta natureza já é criticável quando ado-


tada por um comitê de composição heterogênea, voltado à solu-
ção de questão típica de escassez absoluta, que dirá deixar ta-
manha responsabilidade ao alvedrio de um juiz, sem que haja
padrões legislativos para que estabeleça qualquer distinção.

Ora, é evidente que não podem estas escolhas recair sobre


o Poder Judiciário, seja porque não está legitimado a dar estas
respostas, seja porque tais questões escapam a critérios da lega-
lidade, seja porque se tratam de decisões técnicas (as vezes polí-
ticas) para as quais não está o juiz devidamente preparado para
solvê-las.

Viável, apenas, apontar eventuais ilegalidades nos crité-


rios escolhidos, à luz dos princípios constitucionais, ou mesmo
buscar fomentar soluções políticas de modo a produzir políticas
organizativas. Jamais substituir-se ao administrador ou a legis-
lador ou mesmo aos profissionais que devem fazer estas elei-
ções.

Se a lei ou o regramento infralegal estabelecesse que os


elegíveis para determinado tratamento especial fossem apenas
homens casados com filhos (semelhante ao que foi feito em Se-
attle), seria lícito ao Poder Judiciário discutir o critério, de modo
a incluir mulheres que estivessem em situação análoga, fossem o
arrimo de família e o raro recurso devesse lhe beneficiar por-
que, assim como um homem com filhos, ela era igualmente ar-
rimo da família. Enfim, a discriminação legal poderia ser objeto
de contestação judicial. Mas, salvo melhor juízo, em caso de es-
cassez absoluta, não poderia o Poder Judiciário indicar individu-
almente qual homem casado deveria ser beneficiado pelo trata-
mento, ou quem deveria ocupar o primeiro lugar na lista de a-
tendimento. Isto não é um problema jurídico, mas questão que
deveria ficar ao cargo de escolhas políticas ou médicas.

Assim, em um caso de escassez absoluta, a solução não


passa pela determinação judicial, mas pela construção de um
sistema que dê conta em solver o problema.

149
Foi o que ocorreu relativamente ao transplante de órgãos,
nos Estados Unidos130:

Dados da realidade:

1. O número de transplantes no USA no ano de 2011 foi de


aproximadamente 28.500, mais da metade deles de rins. Is-
to porque cada indivíduo morto, tendo dois rins, permite o
transplante para dois pacientes. Além disso, é possível o
transplante de doador vivo, posto que este sobrevive com
apenas um dos rins. Os demais órgãos, por vezes unitários,
somente podem ser obtidos de mortos.

2. O número de pessoas em lista de espera dos diferentes


órgãos é crescente, especialmente rins. A lista para trans-
plante de pulmão e coração é estável. Estima-se que no ano
de 2011 eram mais de 110.000 pacientes aguardando por
doações.

3. A espera por transplante é variável. No caso de rim, a


média é de um ano. No caso fígado, apesar de variar a faixa
etária, isto pode demandar mais de um ano.

4. Embora morram cerca de 2,7 milhões de americanos por


ano, não há órgãos suficientes para transplantes. Isto por-
que são diversas as causas de mortes, bem como a idade dos
possíveis doadores, o que reduz o número de possibilidades.
A isto se some o fato de que muitas famílias negam o pedido
de doação de órgãos.

5. Ainda que fossem otimizados todos os fatores, ainda as-


sim haveria um déficit entre as necessidades e os doadores.

130
- Informações extraídas do curso da Universidade da Pensylvania: Rationing and
Allocating Scarce Medical Resources, ministrado por Ezekiel J. Emanuel, MD, PhD.

150
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

Política pública instituída:


1. Considerando que há aumento crescente entre o número
de doadores e o número de pessoas que necessitam da doa-
ção de rins, reconhece-se esta situação como escassez abso-
luta, o que demanda a criação de políticas para distribui-
ção.

2. Para buscar organizar este problema, institui-se uma or-


ganização não governamental, sem fins lucrativos, chama-
da UNOS que passou a controlar informações sobre pacien-
tes e doadores, de modo a estabelecer critérios para aloca-
ção dos órgãos transplantados consoante as necessidades e
possibilidades. Compatibilidade, urgência médica, proximi-
dade entre doador e receptor e idade são critérios impor-
tantes.

3. Diferentes órgãos podem ter diferentes critérios. No to-


cante ao fígado, criaram-se dois status: 1a - que diz respei-
to a urgência médica para pessoas que, em poucas horas ou
dias podem morrer; 1b - crianças com doenças crônicas.
Ocorre que estes grupos representam cerca de 1% dos re-
ceptores. O critério utilizado para selecionar os pacientes
foi a gravidade da doença. O segundo critério é uma mistu-
ra de pontos, que criam uma escala numérica (entre 6 e 40)
de gravidade da doença, e necessidade de transplante nos
próximos 3 meses. Utilizam para fixar os valores numéricos
dados da bilirubina, protombina e creatinina. O segundo
princípio também reside na escolha dos mais doentes (sic-
kest first). O terceiro critério é a proximidade do doador
com o receptor, porque nestes casos o órgão sofre menos
danos se ficar menor tempo guardado no gelo. De acordo
com os escores, os mais necessitados são escolhidos na área
local, depois na região e por último em âmbito nacional.

Este exemplo permite demonstrar que a questão sanitária


é bastante ampla, não se limitando a casos de fornecimento de
medicamentos ou mesmo de procedimentos, mas também ques-
tões que envolvem políticas públicas e escolhas difíceis.

151
A realidade brasileira não é diferente, tampouco distante,
do exemplo acima colacionado. Em recente reportagem na im-
prensa nacional131, restou demonstrado a quantidade de pacien-
tes necessitando de consultas com médicos especialistas, bem
como a demora para atendimento, como demonstra o quadro
abaixo:

131
- publicado no jornal Gazeta do Povo, na edição do dia 10.10.2014, bem como na
versão digital, no endereço eletrônico:
http://www.gazetadopovo.com.br/vidaecidadania/conteudo.phtml?tl=1&id=1505220&t
it=Busca-por-medico-especialista-pode-levar-35-anos.

152
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

Ora, é evidente que nenhuma decisão judicial que preten-


da solucionar a espera por uma consulta, sob a perspectiva dos
direitos individual e fundamental à saúde fará justiça, sequer
para o caso concreto, quanto mais para a totalidade de pacientes
que aguarda um atendimento.

A perspectiva unissubjetiva escamoteia a realidade e faz


surgir flagrante injustiça em relação aos demais. Critérios de
solução coletiva e política do problema passam a ser substituí-
dos por precários dados individuais e falsos postulados, tais
como, receberá o bem da vida aquele que ajuizar primeiro a
ação, serão ignoradas as necessidades dos demais postulantes
da mesma pretensão, a concessão do benefício para um retarda-
rá a dos demais, escolhas de urgências clínicas serão substituí-
das por liminares judiciais. E, no mais das vezes, será desconsi-
derado o impacto que esta decisão acarretará no contexto geral,
de modo alguma política (ainda que coletiva) será implantada
em detrimento de outra que não é objeto da demanda.

Aliás, o Poder Judiciário tem passado ao largo de qualquer


consideração sobre como são escolhidas as políticas na área da
saúde, ignorando completamente a existência de ampla partici-
pação social, por intermédio das conferências municipais, confe-
rências estaduais de saúde e conferência nacional de saúde. As
políticas públicas de saúde sólida base social, mas sua própria
existência é ignorada pela maioria dos operadores do direito,
apesar de legalmente instituída desde 1990, pela Lei º 8142, de
28 de dezembro.

Os problemas acima postos não implicam numa negativa


geral de toda e qualquer postulação na área da saúde pública,
tampouco advoga a defesa irrestrita das políticas postas, de
modo que o indivíduo e o Poder Judiciário restem de mãos ata-
das frente a eventuais omissões do legislador ou do administra-
dor. Há espaços para intervenção judicial, tanto para examinar
as políticas existentes e suas omissões. Quanto a esta última,
entretanto, o mínimo desejável é que haja maior investigação
sobre a existência de alternativas, se a pretensão está amparada
em sólida evidência científica, se a solução pretendida seria viá-

153
vel se estendida para todos que estivessem em situações seme-
lhantes, entre outros fatores.

Apenas apresentam-se estes quadros para pontuar que


soluções simplistas para intrincados problemas muita vez acaba
por onerar ainda mais o Sistema Único de Saúde. Além disso,
algumas soluções individuais ostentam aparência de justas,
quando, na verdade, implicam em graves injustiças coletivas. A
política de autocontenção do Poder Judiciário pode ser uma boa
solução para problemas políticos, consoante a advertência de
Luis Roberto Barroso.

3.5. Aspectos positivos e negativos


da judicialização

A experiência colhida nas discussões sobre a judicializa-


ção da saúde e os dados da realidade acima apresentados permi-
tem indagar:

A judicialização da saúde tem feito bem à saúde?

A questão não implica numa resposta simples, tampouco


única.

É possível elencar aspectos negativos e positivos da judi-


cialização, bem como chegar a uma conclusão.

Dentre os diversos aspectos negativos, podem ser elenca-


dos:

- Desorganização do SUS. As decisões judiciais que a-


tendem interesses individuais acabam por criar políticas
públicas em favor de poucos, interferindo por vezes na
ordem na fila de atendimento, em internações, cirurgias,
ou mesmo obrigando ao fornecimento daquilo que o Es-
tado não tinha se comprometido.

154
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

- Influência negativa sobre as finanças públicas. As di-


versas decisões judiciais, como demonstrado, têm impli-
cado no desvio de recursos públicos que deveriam ser
drenados para as políticas coletivas, em favor de poucos
indivíduos;

- Indevidas escolhas judiciais de políticas públicas. O


Poder Judiciário acaba por realizar escolhas para as quais
não está legitimado, deixando de atuar como legislador
negativo, passando a agir como legislador positivo ou
mesmo como administrador.

- Fragilização da isonomia. Aporte de escassos recursos


para alguns beneficiários em detrimento das políticas ins-
tituídas, como revelando os dados relativos ao Estado do
Paraná, no quadro apresentado.

Ao lado dos aspectos negativos, é necessário que se reco-


nheça a existência de diversos aspectos positivos decorrentes da
judicialização.

- Fomento de políticas públicas. Alguns programas de


políticas públicas, como a criação do Programa nacional
de medicamentos para HIV/AIDS, somente vieram a ser
implementados porque grupos organizados da sociedade
passaram a provocar o Estado, por meio da judicialização,
para o atendimento de necessidades;

- Revisão das políticas: Diversas ações administrativas e


legais somente foram implementadas por força da pauta
política que a judicialização gerou. Exemplo disto é a pu-
blicação da Lei nº 12.401/11 (alterando a Lei nº 8080/90,
introduzindo, dentre outros, os arts. 19-Q e 19-R) a qual
importou:

155
a) na revisão da lista RENAME (em março de 2012) pas-
sando de 550 para 810 itens (Portaria 533 do MS) e Por-
taria nº 53/2012 (incorpora medicamento);

b) na atualização dos Protocolos Clínicos e Diretrizes Te-


rapêuticas (tendo sido promovidas 14 inclu-
sões/alterações em 2011 e 2012);

c) criação da CONITEC:

- Fixação de prazo para tratamento de câncer. A judi-


cialização e a enfermidade sofrida pela Chefe do Poder
Executivo Federal, foram fatores que acarretaram a edi-
ção da Lei nº 12.732/2012, que fixou prazo de 60 dias pa-
ra início do tratamento de câncer maligno.

- A saúde como pauta política. Dentre os diversos as-


suntos que norteiam a pauta política, é possível dizer que
a judicialização das políticas públicas acabou por trans-
formar o direito à saúde, a qualidade do atendimento, as
políticas existentes, os medicamentos incorporados, o fi-
nanciamento da saúde, as tabelas de procedimentos e va-
lores pagos, custos de órteses e próteses, a doença mental,
entre tantos outros temas, passou a fazer parte da pauta
política e judiciária nacional.

Do balanço entre estes aspectos positivos e negativos da


judicialização é possível concluir que, até o presente estágio, ela
contribuiu para que novas políticas públicas fossem desenvolvi-
das, fomentando o aprimoramento legislativo, a incorporação de
novos medicamentos na lista RENAME, a revisão dos protocolos
clínicos e criação da CONITEC.

Entretanto, o modelo já se acha esgotado e o prossegui-


mento pela mesma senda levará as políticas de saúde e o pró-
prio SUS ao colapso, porque muitos recursos são desviados de
sua natural aplicação, para serem empregados em benefícios de
uns poucos.

156
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

Não pode o Poder Judiciário continuar a ser ordenador de


despesas e políticas públicas, seja porque lhe falta legitimidade,
seja porque promove iníqua distribuição de recursos em detri-
mento das políticas postas.

Dadas as conhecidas e graves mazelas do SUS, destaca-


damente o precário atendimento em postos de saúde e hospi-
tais, a falta de medicamentos previstos nas listas públicas, espe-
cialmente a RENAME, para atendimentos dos pacientes inseri-
dos no SUS, entendo que a autêntica judicialização da saúde
deveria ser na busca do efetivo atendimento das promessas
constitucionais e das políticas públicas existentes.

Em muito contribuiriam o Poder Judiciário, o Ministério


Público e as múltiplas associações de pacientes se judicializas-
sem o cumprimento daquilo que se acha pactuado entre os entes
públicos. Se pretendessem a fixação de prazo para atendimen-
tos, se buscassem a incorporação de medicamentos, se auxilias-
sem na construção de sistemas com vista à extinção das filas de
atendimentos especializados e exames, ou mesmo para questões
mais complexas como cirurgias e transplantes.

A atual judicialização tem pouco a colaborar, doravante,


com a evolução do Sistema Único de Saúde. Ao revés, parece
fragilizá-lo, colocando-o a serviço daquele número ínfimo de
usuários que, por circunstâncias, conseguem demandar por
prestação específica.

O Poder Judiciário tem enveredado por realizar escolhas


que não lhe competem, vez que não está legitimado para tanto.
Cenários de escassez relativa e absoluta abrem espaço para a-
queles que têm legitimidade e competência para realizar as es-
colhas.

Ao Poder Judiciário compete, quando demandado, verifi-


car se estas escolhas estão em conformidade com o arcabouço
jurídico, corrigindo eventuais equívocos. Também tem por com-
petência exigir que as políticas públicas formalmente instituídas
sejam cumpridas de modo adequado de tempo e forma.

157
É evidente que a realidade do SUS não se transformará de
um dia para outro. Como já assinalado, não será num passe de
mágica que as longas filas de espera, a precária infra-estrutura, a
insuficiência orçamentária, a falta de execução do orçamento e a
má-gestão serão solucionadas.

Entretanto, a chamada judicialização da saúde somente


trará efeitos positivos se auxiliar na ordenação do sistema e na
imposição de obrigações de cumprimento daquilo que está
prometido no âmbito constitucional e nas políticas públicas
previstas na legislação infraconstitucional. Enfim, na tutela cole-
tiva das políticas públicas já existentes e na busca de avanços. A
distribuição desordenada de benefícios, além de atingir a um
número muito pequeno de beneficiários, vulnera as políticas
existentes em favor da coletividade.

3.6. Considerações finais

A judicialização da saúde tem representado um constante


desafio aos operadores do direito, porquanto incida na intersec-
ção de várias ciências, muitas das quais com grande dificuldade
de recíproca compreensão. Lamentavelmente este não é o maior
problema.

Até o presente momento não se avançou para um ade-


quado conhecimento, muito menos consenso, das questões jurí-
dicas, sendo, por vezes, a constituição lida por tiras e a legisla-
ção infraconstitucional ignorada.

Para uma adequada compreensão, como não poderia dei-


xar de ser, a interpretação deve partir da moldura constitucional
conferida ao sistema de saúde, bem como a harmonia com as
demais normas constitucionais.

As leis que regulamentam a Constituição também devem


ser objeto de apreciação pelos operadores do direito, interpre-
tando-as em sintonia com a Carta. As opções legislativas devem
ser valorizadas, deixando de ser aplicadas somente quando o-

158
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

fenderem a Carta Política. Este é um dos aspectos esquecidos,


porquanto sejam poucas as decisões judiciais que se aprofun-
dam nas normas infraconstitucionais que regulam a saúde pú-
blica e a saúde suplementar.

Os dados da realidade - tanto para a exegese constitucio-


nal, quanto para a hermenêutica infraconstitucional - devem ser
conhecidos e valorados. Não pode o intérprete ignorar a base
fática sobre a qual incidirá o direito, tampouco os resultados
decorrentes de sua aplicação.

Por isso, a tarefa do aplicador das normas estará sujeita às


molduras normativas e fáticas, que emoldura a sua compreen-
são e limitam a interpretação.

O princípio republicano, por sua vez, está a impor ao Po-


der Judiciário a autocontenção, não devendo ultrapassar as tare-
fas que a tripartição dos Poderes lhe atribui, até por lhe falecer
legitimidade para realizar determinadas escolhas. E, além deste
aspecto político, há que se reconhecer a que a escassez de recur-
sos pode modificar a competência da decisão. A escassez relati-
va está a indicar a competência política para decidir. A escassez
absoluta, entretanto, exige uma intervenção técnica, não sujeita
ao escrutínio decisão quanto ao seu mérito.

Os operadores do direito não podem ficar alheios a esta


realidade, tampouco se iludir quanto ao resultado daquilo que
produzem. O acolhimento de várias pretensões individuais nem
sempre acarretará num grande benefício coletivo, podendo e-
ventualmente ocorrer exatamente o oposto.

Por fim, imprescindível reconhecer que a chamada judici-


alização da saúde tem vários aspectos positivos e negativos,
alguns deles apontados acima.

Ambos, ainda que de modo errático, tem contribuído para


a busca da promessa constitucional do direito à saúde, o desen-
volvimento e aprimoramento das políticas públicas, além da
conscientização que os direitos sociais, ao invés de dados, são
conquistados.

159
160
4
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

Buscando
uma lógica
organizativa na
judicialização
da Saúde
João Pedro Gebran Neto

161
162
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

4.1. Considerações iniciais

O direito à saúde pública tem assento constitucional, cujas


normas acham-se colmatadas por diversos diplomas infraconsti-
tucionais. Dentre eles destaca-se a Lei nº 8080/90 que dá os
contornos do Sistema Único de Saúde bem como especifica o
modo de prestação da assistência à saúde, competência, direitos
e deveres deste direito fundamental prestacional.

Este Sistema Único de Saúde representa a contemplação


constitucional e legal das reivindicações do chamado movimento
sanitarista defendido por médicos e profissionais da saúde por
ocasião da Assembléia Nacional Constituinte, que deu origem à
Carta Magna de 1988.

Malgrados os avanços deste ambicioso programa de saú-


de, o sistema padece de muitas mazelas decorrentes, dentre
tantos fatores, do subfinanciamento público, falha de gestão,
precária infraestrutura, fiscalização deficiente, dentre tantos
problemas.

Diante deste contexto, a judicialização da saúde se tornou


um fenômeno que se multiplicou, a partir de liminares e anteci-
pação de tutelas concedidas pelo Poder Judiciário, obrigando o
Estado a prestar aquilo que está nas políticas públicas, bem co-
mo atender reivindicações que não se acham acobertadas por
estas.

O volume de ações, a complexidade do problema, o impac-


to nas políticas públicas e nos orçamentos, a falha na prestação
dos serviços, entre tantos outros fatores deram ensejo ao Su-
premo Tribunal Federal instaurar a 4ª Audiência Pública para
estudar, por uma semana, especificamente o direito sanitário.

Dentre as diversas conseqüências destaco duas de fun-


damental importância: a) fixação de diretrizes sobre o direito à
saúde, a partir do julgamento da Suspensão de Tutela Antecipa-

163
da nº 175, pelo Supremo Tribunal Federal132; b) a criação pelo
Conselho Nacional de Justiça (CNJ) do Fórum Nacional da Saúde
e dos respectivos Comitês Executivos estaduais da Saúde.

Estas consequências fizeram com que diversos Comitês


Estaduais de Saúde e depois o Fórum Nacional de Saúde do CNJ
viessem a editar enunciados e recomendações buscando orien-
tar a judicialização da saúde na perspectiva de organizar proce-
dimentos e aprofundar o debate.

É principalmente sobre isto que se buscará tratar neste


estudo.

4.2. Contextualizando o problema

Antes de adentrar no exame específico das orientações


firmadas pelo Poder Judiciário, importante desvelar que a ques-
tão sanitária envolve um emaranhado de interesses por vezes
mútuos, outras vezes contrapostos, nem sempre bem esclareci-
dos.

Assim, alguns pontos devem ser previamente aclarados


sobre o direito à saúde para qualquer interessado ingressar
concretamente no tema.

Os direitos de um modo geral, e direito à saúde de um


modo específico, têm custos e muitas vezes bastante elevados.
Para prestar um satisfatório atendimento, seja no setor público

132
A decisão do Supremo Tribunal Federal foi ementa nos seguintes termos: “Suspensão
de Segurança. Agravo Regimental. Saúde pública. Direitos fundamentais sociais. Art. 196
da Constituição. Audiência Pública. Sistema Único de Saúde - SUS. Políticas públicas.
Judicialização do direito à saúde. Separação de poderes. Parâmetros para solução judici-
al dos casos concretos que envolvem direito à saúde. Responsabilidade solidária dos
entes da Federação em matéria de saúde. Fornecimento de medicamento: Zavesca
(miglustat). Fármaco registrado na ANVISA. Não comprovação de grave lesão à ordem, à
economia, à saúde e à segurança públicas. Possibilidade de ocorrência de dano inverso.
Agravo regimental a que se nega provimento” (STA 175 AgR, Relator: Min. GILMAR
MENDES (Presidente), Tribunal Pleno, julgado em 17/03/2010, DJe-076 DIVULG 29-04-
2010 PUBLIC 30-04-2010 EMENT VOL-02399-01 PP-00070).

164
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

seja no setor privado, deve haver profissionais qualificados,


postos de saúde e hospitais, equipamentos, fármacos, órteses,
próteses e medicamentos especiais (OPME), incentivo à pesqui-
sa, enfim, um complexo de atividades que permitam haver uma
oferta adequada tanto do ponto de vista quantitativo quanto
qualitativo. Isto gera um custo elevado que necessita ser bem
gerido, de modo a otimizá-los.

A maior parte dos investimentos em tecnologia de apare-


lhos, OPME e medicamentos é realizada por um setor da indús-
tria que disputa acirradamente um dos mercados mais ricos do
mundo e, como qualquer empresa, deve gozar de boa situação
financeira e buscar auferir lucros.

Ocorre que as relações entre indústria, médico, paciente e


poder público nem sempre são muito transparentes e harmoni-
osas. A busca pelo lucro, o investimento maciço em marketing,
as técnicas de inserção de novos produtos no mercado, o desen-
volvimento tecnológico, as patentes e seus prazos de validades,
entre outros fatores, tem gerado efeitos bastante nefastos que
causam tanto prejuízos individuais quanto coletivos.

E quer me parecer que o Poder Público não tem reunido


as forças suficientes para controlar e normatizar estes defeitos
do mercado.

Uma parte destes problemas está bem retratada pela jor-


nalista norte-americana Márcia Angell, do New England Journal
of Medicine, ao escrever a instigante obra A verdade sobre os
laboratórios farmacêuticos133. Ali são expostos alguns destes
vícios do mercado, como o financiamento de cursos, viagens e
vantagens indevidas que parcela da indústria farmacêutica pra-
ticou – e pratica – nos diferentes centros mundiais.

Este tipo de problema é tão real (aqui e no exterior) que


os Estados Unidos da América, a partir de 2007, passou a legis-
lar sobre tema, dentre outras leis, destacam-se a Stark Law e o

133
- ANGELL, Márcia. A verdade sobre os laboratórios farmacêuticos. Como somos
enganados e o que podemos fazer a respeito. Editora Record.

165
Physician Payment Sunshine Act. A primeira norma proíbe qual-
quer doação de laboratórios para médicos e hospitais de ensino,
enquanto a segunda obriga a manutenção de cadastro de trans-
parência acerca de financiamentos de estudos e cursos, de modo
a tornar visível e acessível qualquer conflito de interesses. To-
dos os benefícios superiores a 10 dólares, bem como soma anual
superior a 100 dólares, devem ser anualmente declarados para
o Centers for Medicare and Medicaid Services (CMS). Isto bem
revela que o problema é global.

E o Brasil está longe de estar infenso a estes defeitos do


mercado. Ao revés, trata-se de grave mazela que também grassa
em solo brasileiro, não sendo invulgar o financiamento de cur-
sos, viagens e até mesmo o pagamento de vantagens diretas a
hospitais e médicos, especialmente quando se está a tratar de
produtos de alta tecnologia e custos elevados134.

Uma ponta do problema pode ser aferível a partir de duas


regulações sobre o tema: a) o Conselho Federal de Medicina, por
intermédio da Resolução CFM nº 1956/2010, ao mesmo tempo
em que reconhece a liberdade do médico assistente em orientar
e tratar do paciente, veda que órteses, próteses e materiais es-
peciais seja prescritos segundo o fornecedor ou marca comercial
(art. 3º), assegurando-lhe a liberdade, quando julgar que o pro-
duto fornecido é inadequado ou insuficiente, recusá-lo, indican-
do pelo menos três outras marcas de diferente fabricantes; b) a
Lei nº 9787/99, em seu artigo 3º, obriga que a prescrição médi-
ca, no âmbito do Sistema Único de Saúde, seja feita segundo a
Denominação Comum Internacional.

Duas reportagens recentes foram veiculadas pela impren-


sa nacional apontando problemas relacionados à transparência,
interesses e custos da saúde.

A revista mensal Superinteressante,135 em sua chamada


de capa, questiona: Precisamos tomar tanto remédio? E a seguir

134
- A mídia tem frequentemente denunciado problemas desta natureza, como recente
reportagem apresentada pelo programa “Fantástico”, da Rede Globo, no dia 04.01.2015.
135
- Precisamos tomar tanto remédio? In Superinteressante. São Paulo: Ed. Abril, setem-
bro de 2009.

166
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

lança outras questões: As Verdades inconvenientes sobre a indús-


tria dos remédios. Por trás de uma pílula há uma das indústrias
mais lucrativas do mundo. Desconfiado? Fale com o seu médico. A
SUPER falaria.

Também a revista semanal ÉPOCA136 questiona Por que a


medicina pode levar você à falência, na matéria de capa da edição
de 12 de maio de 2014. No corpo da reportagem é demonstrada
grande variação de preços entre produtos usados e cobrados
pelos hospitais dos pacientes e planos de saúde, em relação ao
menor custo dos mesmos produtos em farmácias varejistas.

Estas reveladoras reportagens, embora não tratem do


mesmo objeto, têm por foco algumas relações promíscuas que,
por vezes, ocorrem no mercado. É evidente que não se trata de
regra geral aplicável a todos os médicos, laboratórios e hospi-
tais, mas as notícias são sintomas de um problema real e mais
frequente do que se imagina.

O premiado filme Clube de compra Dallas, de 2013, tam-


bém expõe o grave problema dos pacientes portadores de mo-
léstias sem um tratamento efetivo e a descoberta de novos me-
dicamentos, sua regulação pelo FDA, os controles por meio de
teste duplo-cego, problemas burocráticos, acertos e erros médi-
cos e a questão da importação e/ou contrabando de medicamen-
tos.

O conhecimento desse complexo cenário é imprescindível


para que os operadores do direito atuem de modo imparcial,
equilibrado e cientes que nem tudo que é ofertado ou prescrito é
necessariamente o ótimo para o paciente, tampouco o mais efi-
caz, com maior eficiência ou a melhor acurácia.

Aliás, sobre este ponto, a medicina baseada em evidên-


cias137 (MBE) tem muito a esclarecer e auxiliar na solução de
conflitos, como adiante se verá.

136
- Por que a medicina pode levar você à falência. In Época. São Paulo: 12 de maio de
2014, ed. Globo.
137
- Segundo o Centro Cochrane do Brasil, respeitada instituição sem finalidade lucrativa
que se dedica a estudar com profundidade os fármacos e sua comprovação de eficácia,
Medicina Baseada em Evidências, ou Saúde Baseada em Evidências, “é uma abordagem

167
Alguns dados podem auxiliar na confirmação das asser-
tivas acerca do mau funcionamento do mercado.

Em primeiro lugar, basta visitar uma farmácia para com-


prar um medicamento com venda exclusivamente mediante
prescrição médica, emitida por médico privado. Se o médico
prescreveu o medicamento segundo seu nome comercial (embo-
ra fosse recomendável, mas não legalmente exigível, que o fizes-
se segundo a Denominação Comum Brasileira138) a farmácia não
vende medicamento que não seja o da marca prescrita, sequer
similar ou genérico. Assim, aquela vedação da indicação da mar-
ca ou fabricante existente para médicos do SUS ou para próteses
ou órteses, não existe para os medicamentos em geral.

Isto permite a existência de grave distorção entre preços


de produtos, prejudicando consumidores e facilitando más prá-
ticas. Em pesquisa sobre determinado produto, cujo nome ou
DCB não importa revelar, com prescrição médica segundo o
nome comercial, o preço era de aproximadamente R$ 90,00 a
caixa com 30 comprimidos. Se tivesse sido prescrito o medica-
mento de referência, o preço seria de R$ 120,00 a mesma quan-
tidade de comprimidos, já com os descontos. O medicamento
genérico, porém, custava aproximadamente um quarto do valor
do medicamento de referência (cerca de R$ 30,00).

Ainda que possa haver explicação quanto à diferença de


preços entre os medicamentos, que possuíam exatamente o

que utiliza as ferramentas da Epidemiologia Clínica; da Estatística; da Metodologia


Científica; e da Informática para trabalhar a pesquisa; o conhecimento; e a atuação em
Saúde, com o objetivo de oferecer a melhor informação disponível para a tomada de
decisão nesse campo.
A prática da Medicina Baseada em Evidências busca promover a integração
da experiência clínica às melhores evidências disponíveis, considerando a segurança nas
intervenções e a ética na totalidade das ações. Saúde Baseada em Evidências é a arte de
avaliar e reduzir a incerteza na tomada de decisão em Saúde. ”
138
- Existe obrigatoriedade legal para prescrição dos medicamentos segundo Denomina-
ção Comum Brasileira ou Denominação Comum Internacional exclusivamente para o
atendimento no âmbito do SUS. A mesma regra não vigora para a saúde suplementar,
nos termos do art. 3º, da Lei nº 9787/99.

168
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

mesmo princípio ativo, quer me parecer que a distância de pre-


ço está a indicar alguma incorreção no mercado.

No mínimo uma incorreção quanto ao modo de prescrição


do medicamento pelo médico particular, quando o médico do
SUS é obrigado a adotar a Denominação Comum Brasileira ou,
na sua falta, a Denominação Comum Internacional (art. 3°, da Lei
n° 9787/99). Ou no modo da composição de custos dos medi-
camentos por parte da indústria, porque supervalorizados com-
ponentes como Pesquisa e Desenvolvimento (R&D), ou as des-
pesas com Marketing e Administração (M&A). Ou, ainda, os me-
dicamentos não são exatamente equivalentes, o que ensejaria
alguma falha de fiscalização por parte do Estado, possivelmente
da Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA, ao permi-
tir que sejam vendidos no mercado brasileiros produtos que não
tem a eficácia prometida, por parte de algum dos laborató-
rios139.

Se alguma destas hipóteses for verdadeira, quer me pare-


cer que a chamada relevância da saúde pública, prevista no arti-
go 197, da Constituição Federal, não está prevalecendo. Os mé-
dicos e as farmácias não poderiam engessar as possibilidades de
compra dos consumidores; a forma de composição dos custos
deveria ser objeto de maior controle; e a qualidade e eficácia dos
produtos deveria ser objeto de certificação oficial.

139
- O Enunciado nº 15, da I Jornada da Saúde, do Fórum Nacional da Saúde do CNJ,
reafirmou esta obrigação, assentando: “As prescrições médicas devem consignar o
tratamento necessário ou o medicamento indicado, contendo a sua Denominação Co-
mum Brasileira (DCB) ou, na sua falta, a Denominação Comum Internacional (DCI), o seu
princípio ativo, seguido, quando pertinente, do nome de referência da substância, poso-
logia, modo de administração e período de tempo de tratamento e, em caso de prescri-
ção diversa daquela expressamente informada por seu fabricante, a justificativa técni-
ca”.

169
4.3. Um efetivo sistema público de saúde

Ao lado frágil regulação do mercado reinante no Brasil,


outros defeitos ainda devem ser corrigidos para a construção de
um efetivo sistema público de saúde.

Há que se estabelecer um novo padrão para a medicina no


Brasil. Se a Carta Magna permite a coexistência de sistemas pú-
blicos e privados, é desejável que haja apenas uma convivência
harmônica, não uma imbricação entre ambos como ocorre nos
dias atuais.

Por isso, é desejável que se caminhe para a ruptura com o


vigente sistema de credenciamento de hospitais privados para
prestar serviços públicos, mediante custeio pelo SUS. Há que se
buscar um autêntico sistema público de saúde, com hospitais,
clínicas, laboratórios e médicos próprios do Estado. É necessário
que se crie a estruturação de carreiras próprias para profissio-
nais da saúde, em estabelecimentos oficiais, inclusive com veda-
ção destes profissionais com vínculos públicos exercerem a me-
dicina privada. Se há áreas sensíveis que o Estado deve atuar
diretamente, uma delas é a saúde. Já é assim em outras ativida-
des típicas e essenciais do Estado como a segurança pública, a
educação e a administração pública em geral. A saúde também
deve estar organizada em carreiras, tais como a segurança pú-
blica, ou o sistema educacional, o Poder Judiciário, entre tantos
exemplos.

Sabe-se que se trata de um ideal um pouco distante da re-


alidade atual, mas caminhar nesse sentido não é apenas desejá-
vel, é necessário. Médico público tem que ter uma carreira pró-
pria, um estabelecimento público para trabalhar, equipamentos
adequados, uma equipe para auxiliá-lo, manter horário de aten-
dimento, dedicação exclusiva e vedação de exercício da medici-
na privada. O atual modelo faz com que o serviço público fun-
cione de modo precário, com carga horária reduzida de trabalho
para os médicos, com uma autêntica confusão entre o público e
o privado.

170
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

Quer me parecer que o modelo do sistema de educação e


de segurança, com as muitas falhas e críticas que lhe sejam opo-
níveis, ainda é melhor que o atual modelo do SUS. A caótica lógi-
ca que vigora hoje no SUS levaria ao colapso tanto a segurança
quanto a educação.

Antes da importação dos médicos cubanos, a proposta de


criação de carreiras próprias para as áreas médicas era uma das
sugestões apresentadas do Conselho Federal de Medicina (CFM).

Iniciativas semelhantes têm sido muitas vezes repetidas


pelo CFM, como ocorreu em recente Manifesto140 apresentado
aos candidatos à Presidência da República, onde defendem, en-
tre outros:

5. A criação de uma carreira de Estado - sob responsabilidade da União


- para os médicos que atuarão na rede pública (SUS) nos locais de difí-
cil acesso e provimento com o objetivo de estimular a migração e a fi-
xação. Tal proposta deve se ater a aspectos como:

- instalação de infraestruturas física e de equipamentos adequadas nos


municípios como forma de garantir a oferta de assistência em saúde
dentro de padrões de qualidade, que possibilitem a materialização dos
princípios do SUS;

- formação de uma rede eficaz e eficiente de referência e contra refe-


rência, fundamental para a realização de diagnósticos e a prescrição de
tratamentos;

- definição de um programa de educação continuada (presencial e à


distância), permitindo aos profissionais ingressados na carreira a atua-
lização de conhecimentos, o que oferecerá ao usuário do SUS acesso a
profissionais qualificados;

- elaboração de um plano de progressão e promoção funcional para os


ingressos, nos moldes dos empregados atualmente pelo Ministério Pú-
blico e pelo Poder Judiciário, o que seria fator de estímulo e de adesão
em médio e longo prazos;

140
-
http://portal.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=25073:manif
esto-pela-saudemedicos-encaminham-propostas-aos-presidenciaveis&catid=3.

171
- oferta de remuneração compatível com a formação, a responsabili-
dade e o compromisso exigidos dos profissionais.

6. A implantação de Plano de Cargos, Carreiras e Vencimentos para


todos os médicos que atuam na rede pública, com a fixação de valor
mínimo de remuneração para o médico em atividade no SUS, tendo
como parâmetro inicial o piso nacional da categoria (estabelecido pela
Federação Nacional dos Médicos – Fenam), além de propostas que pri-
vilegiem aspectos como educação continuada e todos os direitos tra-
balhistas (férias, 13º fevereiro, licença maternidade, aposentadoria
etc.);

Nos países que têm programas de serviço público seme-


lhante ao preconizado pelo Brasil, ainda que seja possível o e-
xercício da medicina privada, há um serviço público próprio e
destacado do privado.

4.4. O que a judicialização da saúde tem a ver


com isto?

Em primeiro lugar, a fratura entre o sistema público e o


sistema privado141 tem levado muitos pacientes a procurar o
Poder Judiciário para obter medicamentos de alta, media e até
mesmo de baixa complexidade. Nas demandas são pedidos des-
de medicamentos de última geração para o tratamento de cân-
cer e outras doenças, até mesmo fraldas geriátricas e medica-
mentos disponíveis nas farmácias do SUS. Estes últimos são
postulados por vezes por comodidade para engrossar a lista de
pleitos numa única ação judicial, por vezes porque o Poder Pú-
blico não supriu a localidade com medicamentos constantes na
Relação Nacional de Medicamentos – RENAME.

141
- Sobre o tema, reporto-me a outro artigo de minha autoria, chamado Direito à Saúde
(parte I) que versa sobre outros aspectos deste tema.

172
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

Mas isto é apenas uma pequena dimensão daquilo que es-


tá sendo judicializado e daquilo que pode vir a ser. A grande
maioria das demandas é por medicamentos, mas há ações judi-
ciais versando sobre procedimentos médicos, internações hospi-
talares, leitos em UTI´s, órteses, próteses, consultas por especia-
listas, tratamentos no exterior, entre outros pedidos.

A questão ganhou tamanha dimensão – e diversidade de


orientação jurisprudencial - que o Supremo Tribunal Federal
realizou, em abril e maio de 2009, Audiência Pública nº 04
para debater o tema com a sociedade, antes de adotar alguma
solução.

Como resultado concreto destas audiências, o então Pre-


sidente do STF, Ministro Gilmar Mendes, proferiu decisão para-
digmática na Suspensão de Tutela Antecipada n° 175142.

Esta decisão tornou-se o leading case a orientar a juris-


prudência nacional sobre o tema do direito à saúde.

Da referida audiência pública também decorreu a Reco-


mendação nº 31, de 30 de março de 2010, lançando mais luzes
sobre o tema, ao orientar o modo de instrução dos processos,
incentivar uma melhor interação entre a administração pública
e o Poder Judiciário, inclusive por meio eletrônico, e fomentar o
estudo do direito sanitário, inclusive como matéria de concurso
público.

Seguiram-se enunciados de diversos Comitês Estaduais de


Saúde e, por fim, enunciados da I Jornada de Direito da Saúde,
promovido pelo Fórum Nacional da Saúde, instituído pelo Con-
selho Nacional de Justiça.

Destas orientações é possível extrair algumas premissas


para orientar os diferentes processos judiciais sobre a prestação
material ao direito fundamental à saúde.

142
- Decisão confirmada pelo Pleno, do STF, por unanimidade de votos, em 17.03.2010,
publicada no DJE 30/04/2010 - ATA Nº 12/2010. DJE nº 76, divulgado em 29/04/2010.

173
4.4.1. Primeira premissa

Há direito subjetivo público à saúde no caso de haver polí-


tica pública que preveja o fornecimento destes medicamentos
e/ou tratamentos ao cidadão, sendo exigível, portanto, perante o
Poder Público o seu fornecimento.

Assim, tratando-se de medicamento básico, previsto na


lista RENAME, mas não fornecido pelo ente estatal, há direito
subjetivo do indivíduo à prestação material, podendo deduzir a
pretensão frente ao Município ou ao Estado-membro143, a de-
pender da natureza do medicamento pretendido. O mesmo se
diga em relação a tratamentos, exames e procedimentos. Ha-
vendo previsão político-administrativa, haverá direito subjetivo.

Mas não basta o reconhecimento de direito subjetivo às


providências já previstas em políticas públicas, deve igualmente
ser reconhecido que seu deferimento deve ocorrer por intermé-
dio do próprio SUS, e não fora do sistema. Inviável que o indiví-
duo opte pelo atendimento privado, mas busque socorro do SUS
para complemento do seu atendimento, em autêntica subtração
das regras administrativas.

O Enunciado nº 11, da I Jornada da Saúde, cuidou do te-


ma:

“Enunciado nº 11 - Nos casos em que o pedido de ação judicial seja


de medicamento, produto ou procedimento já previsto nas listas ofici-
ais do SUS ou em Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDT),
recomenda-se que seja determinada pelo Poder Judiciário a inclusão
do demandante em serviço ou programa já existentes no Sistema Úni-
co de Saúde (SUS), para fins de acompanhamento e controle clínico. ”

143
- Embora tenha sido reconhecida a legitimidade passiva da União nestas hipóteses,
dentro da política pública de saúde (Lei nº 8080/90) ela não está obrigada a prestar
materialmente a entrega de medicamentos, mas apenas o custeio, mediante repasse
aos fundos estaduais e municipais de saúde.

174
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

A questão, no que concerne a parte de fornecimento de


medicamentos, parece bem simples, porquanto a providência a
ser exigida do Estado deveria ser facilmente alcançável por in-
termédio de determinação judicial de compra do remédio (o
qual já está incluído nas listas oficiais).

Ela se torna bastante complicada, entretanto, quanto se


trata de prestação diversa dos medicamentos, como a consulta
com médico especialista, uma internação em hospital ou UTI, ou
mesmo a realização de um exame mais complexo ou uma cirur-
gia.

As dificuldades acima apontadas, porém, não retiram o


caráter de direito subjetivo do indivíduo de ver sua necessidade
atendida, tampouco a justiciabilidade da sua pretensão. Haven-
do previsão da política pública, ela se torna exigível, porque o
próprio Estado já realizou a eleição daquilo que está obrigado a
cumprir. Pode ser que o cumprimento não seja imediato, por
força de dificuldades externas aos direitos, como a carência da
infra-estrutura, ou mesmo a ausência de um doador para de-
terminado órgão a ser transplantado. Mas isto não retira o direi-
to subjetivo do indivíduo. Por vezes será necessário aguardar
em filas para transplante ou cirurgias, cuja preferência de aten-
dimento não passa pelo Poder Judiciário. É o caso, por exemplo,
da compatibilidade do órgão doado, cuja condição que escapa ao
controle administrativo ou judicial, ou, ainda, atendimentos
emergenciais nos pronto-socorros a justificar o atendimento
preferencial do paciente em estado mais grave em detrimento
de outras pessoas melhores colocadas nas filas.

Mas a complexidade dos casos não pode servir de escusa à


administração para deixar de atender aos direitos subjetivos.
Deve haver forma clara e transparente que estabeleça critérios
da administração, bem como um plano político para fazer frente
às dificuldades.

Se o problema é de ausência de especialistas, não basta


negar o atendimento, ou criar filas intermináveis. Também deve
coexistir um planejamento estratégico que busque, num prazo

175
razoável, criar condições ideais de atendimento. Se o problema é
a falta de hospital, deve a administração mover-se no sentido de
construir novas unidades e/ou firmar convênios com outras
unidades existentes.

Em suma, havendo direito subjetivo, ainda que a legisla-


ção não transforme imediatamente a realidade, é necessário que
os administradores se movam de modo a buscar alcançar aquilo
que está prometido. A inércia caracteriza evidente falha na pres-
tação estatal e, quiçá, a responsabilização deste.

Se nem sempre deve o Poder Judiciário determinar o a-


tendimento imediato do paciente, por certo caberá sempre pro-
vocar a administrar a indicar os meios e modos pelos quais vem
realizando o atendimento, bem como apontar os caminhos para
atender a pretensão reivindicada que já está dentro da política
pública.

É verdade que o problema é bastante complexo, mas a


completa inércia estatal frente aquilo que é legal e administrati-
vamente reconhecido devido não pode ser acolhida.

4.4.2. Segunda premissa

Desnecessária a comprovação da hipossuficiência para fa-


zer jus à prestação material, esteja ela fixada em política pública
ou não, por força do princípio da universalidade.

Esta premissa deve ser bem compreendida como direito


àquilo que está assegurado no âmbito do Sistema Único de Saú-
de. Uma leitura descontextualizada do princípio da universali-
dade pode levar à equivocada compreensão de que todos têm
direito a todas as providências. O acesso universal é cláusula
pétrea garantida na Constituição Federal no âmbito do direito
fundamental à saúde. Entretanto, a questão do acesso deve ser
compreendida como acesso ao tratamento previsto em políticas
públicas, para as quais não pode haver qualquer limitação no
que diz respeito às condições pessoais daquele que procura o

176
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

SUS. Isto, todavia, não implica assegurar qualquer tipo de pres-


tação, ou mesmo o acesso ao SUS por portas de entradas144 di-
versas daquelas legalmente previstas.

A universalidade não está a excluir a isonomia de atendi-


mento, inclusive no que diz respeito ao acesso. Também não
está a universalidade a garantir que seja prestado, para quem
tem condições de arcar com as despesas, os serviços médicos ou
prestações materiais fora do rol previsto já assegurado legal e
administrativamente145.

No que respeita à assistência farmacêutica, o Decreto nº


7508/11, procura estabelecer os contornos do seu acesso na
forma do artigo 28:

Art. 28. O acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica


pressupõe, cumulativamente:

I - estar o usuário assistido por ações e serviços de saúde do SUS;

II - ter o medicamento sido prescrito por profissional de saúde, no e-


xercício regular de suas funções no SUS;

III - estar a prescrição em conformidade com a RENAME e os Protoco-


los Clínicos e Diretrizes Terapêuticas ou com a relação específica com-
plementar estadual, distrital ou municipal de medicamentos; e

IV - ter a dispensação ocorrido em unidades indicadas pela direção do


SUS.

144
- Portas de entrada são os modos iniciais de atendimento perante o Sistema Único de
Saúde, consoante definição do Decreto 7508, de 28 de junho de 2011, sendo elas: a de
atenção primária; a de atenção de urgência e emergência; a de atenção psicossocial; e as
especiais de acesso aberto.
145
- Este é um preocupante dado da judicialização da saúde. Em grande medida, são
ações buscando providências ou tratamentos fora das políticas públicas, a partir indica-
ções médicas privadas, por indivíduos que reúnem condições de arcar com os custos.
Não é incomum pessoas com farto patrimônio buscarem proteção estatal excepcional,
sob o argumento do acesso universal, mas pretenderem que o atendimento se dê por
seu médico particular, em hospital privado, em total afronta aos princípios que norteiam
o Sistema Único de Saúde, destacadamente da igualdade de atendimento.

177
§1º Os entes federativos poderão ampliar o acesso do usuário à assis-
tência farmacêutica, desde que questões de saúde pública o justifi-
quem.

§2º O Ministério da Saúde poderá estabelecer regras diferenciadas de


acesso a medicamentos de caráter especializado.

Este certamente é um tema que merece uma abordagem


específica, estando intrinsecamente relacionado com aquilo que
é possível exigir-se, individualmente, do Estado. Mas a regulação
acima transcrita sinaliza o que parece ser evidente. Não se tem
direito a toda e qualquer pretensão, mas aquilo que está previs-
to na política pública, sendo que os pacientes terão direito à
assistência sempre que estiverem inseridos adequadamente no
âmbito do SUS, por uma de suas portas de entradas.

É evidente que esta assertiva comporta temperos, porque


há hipóteses não reguladas pelo SUS, bem como pacientes em
condições muito particulares, ou ainda inovações tecnológicas
ou tratamentos ainda não protocolizados, embora amparados
em evidências científicas.

Mas estas situações excepcionais, além de impedirem a


edição de regras para o atendimento geral, também devem ser
objeto de exame diferenciado. No mais das vezes, será por in-
termédio de pedidos administrativos que os casos especiais
deverão ser tratados, estando o conteúdo da solução adminis-
trativa sujeita ao controle judicial. Noutras vezes, a questão de-
verá ser discutida no plano político, como é o caso da incorpora-
ção de medicamentos, tratamentos, exames, entre outras medi-
das.

4.4.3. Terceira premissa

Há 'vedação legal de dispensação de medicamento não


aprovado pela ANVISA', contida na Lei n.º 8.080/1990, alterada
pela Lei n.º 12.401/2011, que, em seu artigo 19-T, II, estabelece:

178
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

Art. 19-T. São vedados, em todas as esferas de gestão do SUS:

(...)

II - a dispensação, o pagamento, o ressarcimento ou o reembolso de


medicamento e produto, nacional ou importado, sem registro na Anvi-
sa.

Esta orientação é reafirmada pelo Enunciado nº 6, do Fó-


rum da Saúde:

“Enunciado nº 6 - A determinação judicial de fornecimento de fárma-


cos deve evitar os medicamentos ainda não registrados na ANVISA, ou
em fase experimental, ressalvadas as exceções expressamente previs-
tas em lei. ”

O Enunciado nº 9 também guarda sintonia com esta mes-


ma regra, impondo obrigação de submissão de pesquisas e tra-
tamentos experimentais às normas da CONEP e Anvisa, in verbis:

“Enunciado nº 9 - As ações que versem sobre medicamentos e trata-


mentos experimentais devem observar as normas emitidas pela Co-
missão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) e Agência Nacional de
Vigilância Sanitária (ANVISA), não se podendo impor aos entes federa-
dos provimento e custeio de medicamento e tratamentos experimen-
tais. ”

O Estado brasileiro obrigou-se, pela Constituição Federal,


a garantir a integralidade do atendimento à saúde, mediante
atividades preventivas e curativas. Dentre as competências pre-
ventivas está a fiscalização sanitária e o controle dos produtos
que podem ser comercializados em território nacional, nos ter-
mos do art. 200 da Carta Magna. O exercício desta fiscalização é
realizado pelo Ministério da Saúde e pela Agência de Vigilância
Sanitária (ANVISA).

179
Grande debate tem se estabelecido sobre a aprovação, ou
não, de fármacos pela ANVISA, ao mesmo tempo em que estes
medicamentos são aprovados por órgãos alienígenas como a
NICE, na Inglaterra, ou a FDA, nos Estados Unidos.

Sobre a tutela pelas agências reguladoras e o controle ju-


dicial de sua atividade, assentou com lucidez Fernando Quadros
da Silva:

“Não obstante as fortes críticas, seria desejável, no caso do controle


judicial dos atos das agências reguladoras, exigir-se o prévio esgota-
mento da via administrativa. A especialização do órgão, a atuação se-
torial e a estabilidade dos dirigentes representam fatores que permi-
tem uma decisão imparcial e tecnicamente fundamentada. Ademais,
atribuir-se apenas ao Judiciário a implementação dos direitos é con-
cepção mais identificada com uma visão autoritária de justiça e de di-
146
reito processual ”.

Assim, o tema abre algumas questões ao debate.

A primeira questão é sobre a sindicabilidade individual de


um medicamento não aprovado pela ANVISA. Tenho que a res-
posta negativa se impõe. A competência constitucional do Esta-
do de exercer a vigilância sanitária não pode ser derrogada por
decisão judicial que, superando os estudos, pareceres e critérios
estatais, venha a substituir-se à administração. Se há a possibili-
dade de judicializar a aprovação, ou não, de fármacos pela AN-
VISA, penso que isto não se dará na via individual, mas em ação
própria que questione eventuais critérios de reprovação, ou
demora do Estado em avaliar determinado produto, entre ou-
tras tutelas que se possa fazer sobre o procedimento, não sobre
o direito a determinado produto.

Outra questão importante, que desafia ainda mais os ope-


radores do direito, diz respeito à inexistência de pedido para
aprovação de determinado produto. Equivale dizer, quando há
total desinteresse de determinada indústria em requerer junto

146
- SILVA, Fernando Quadros. Controle judicial das agências reguladoras. Aspectos
doutrinários e jurisprudenciais. Porto Alegre: verbo jurídico, 2014, p. 297

180
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

ao órgão competente o registro na ANVISA, vez que não preten-


de exportar e vender este produto no Brasil. Seria possível um
paciente interessado na importação de certo medicamento ser
parte legítima para requerer o registro na ANVISA de produto
que o laboratório farmacêutico não pretende vender no Brasil?
Quer me parecer que a resposta negativa se impõe. Quando mui-
to, estaria o paciente legitimado exclusivamente a pedir autori-
zação para importação do produto, mas não o seu registro.

A meio caminho entre uma questão e outra está a prescri-


ção off-label. Ou seja, quando um determinado medicamento é
prescrito para uma finalidade diversa da qual está registrado na
ANVISA. O tema leva a outros questionamentos, como a possibi-
lidade, ou não, da agência sanitária incluir compulsoriamente no
requerimento de registro de determinado medicamento a sua
utilização para finalidade diversa e adicional àquela que está
sendo requerido o registro.

É conhecida a controvérsia sobre dois produtos (bevaci-


zumab e ranibizumab) cujos laboratórios requereram registro
parcial, embora pudessem fazê-lo para enfermidades adicionais,
vez que ambos têm equivalente evidência científica para uso
tanto para tratamento oftalmológico147 quanto oncológico148.
Com o registro parcial, um dos medicamentos é vendido para
tratamento oncológico (administrável em grande quantidade,
com custo por mililitro relativamente barato), ao passo que o
outro é vendido para aplicação intra vítreo ocular (equivale

147
- Sobre as evidencias científicas, relevantes informações podem ser obtidas junto ao
Centro Cochrane do Brasil e Cochrane Library, como se colhe de estudo acessível pela
internet:
- http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1002/14651858.CD011230.pub2/pdf/abstract;
- http://serv-bib.fcfar.unesp.br/seer/index.php/Cien_Farm/article/view/2635/1480
148 - Sobre o tema, o Núcleo de Apoio Técnico da Saúde de Minas Gerais elaborou nota
técnica que apresentou a seguinte conclusão: “Conclusão: Há evidência, na literatura, de
que o tratamento paliativo com antiangiogênicos promove discreta melhora em 30% dos
pacientes ou paralisação do processo degenerativo da DMRI em outros 30%. Tanto o
ranibizumabe quanto o bevacizumabe podem ser usados no tratamento com eficácia
semelhante. O Ministério da Saúde deve incorporar o tratamento com bevacizumabe nos
próximos meses”.

181
dizer, em doses menores e mais caras)149-150. Quero crer que, em
casos como o do exemplo, a relevância pública da saúde, com
previsão constitucional (art. 197), poderia solver a questão em
favor da população brasileira, em detrimento dos direitos co-
merciais da indústria.

Se a relevância da saúde como interesse público está as-


segurada constitucionalmente, quer me parecer que a ANVISA e
a CONITEC151, a partir da Medicina Baseada em Evidências ou
Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas poderiam indicar a
utilização de um medicamento para finalidade adicional àquela
para a qual foi solicitado o registro. Quer me parecer que isto é
um minus em relação à quebra de patentes, o que está a justifi-
car de lege lata a utilização off-label do medicamento, ante a
omissão do detentor da patente.

Outro questionamento acerca do tratamento off label re-


side no uso experimental, o qual não pode ser arcado pelo Esta-
do, como adiante se verá.

149
- Noutro parecer técnico do NATS de Minas Gerais resta confirmada a grande diferen-
ça de custo entre um tratamento e outro: “Conclusão: Há evidência, na literatura, de que
o tratamento paliativo com antiangiogênicos promove discreta melhora em 30% dos
pacientes ou paralisação do processo degenerativo da DMRI em outros 30%. Tanto o
ranibizumabe(Lucentis®) quanto o bevacizumabe(Avastin®) podem ser usados no trata-
mento com eficácia semelhante. Custo do tratamento inicial de 3 meses consecutivos:
- Lucentis® - ranibizumabe : R$ 9.058,05
- Avastin® - bevacizumabe: R$ 246,63.”
150
- Sobre a controvérsia, acesse http://www.allaboutvision.com/conditions/lucentis-vs-
avastin.htm. Em sua conclusão, reconhece a publicação eletrônica que: “In May 2007,
British researchers published a cost analysis comparing the two treatments in the British
Journal of Ophthalmology. Researchers concluded that Lucentis, which is about 50 times
more expensive than Avastin, would need to be 2.5 times more effective to justify the
additional cost. Researchers indicated that Lucentis, compared with Avastin, does not
appear to be as cost-effective”.
151
- CONITEC é a sigla pela qual é conhecida a Comissão Nacional de Incorporação de
Tecnologias no SUS, prevista na Lei nº 8080/90, a partir da modificação legislativa pro-
movida pela Lei nº 12.401/2011, em substituição à CITEC. A Conitec, assistida pelo
Departamento de Gestão e Incorporação de Tecnologias em Saúde - DGITS, tem por
objetivo assessorar o Ministério da Saúde - MS nas atribuições relativas à incorporação,
exclusão ou alteração de tecnologias em saúde pelo SUS, bem como na constituição ou
alteração de Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas - PCDT.

182
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

4.4.4. Quarta premissa

É necessário o prévio requerimento administrativo, con-


soante enunciado pelo Comitê Executivo da Saúde do Paraná,
lançado nos seguintes termos:

“Enunciado nº 2 -Os pedidos ajuizados para que o Poder Judiciário for-


neça ou custeie medicamentos ou tratamentos de saúde devem ser
objeto de prévio requerimento à administração, a quem incumbe res-
ponder fundamentadamente e em prazo razoável. Ausente o pedido
administrativo, cabe ao Poder Judiciário previamente ouvir o gestor
público antes de apreciar os pedidos de liminar. ”

Referida premissa tem por escopo reafirmar a impor-


tância do prévio requerimento administrativo para o forneci-
mento de medicamento, sendo possível o ajuizamento de ação
judicial apenas após a decisão administrativa (ou omissão desta
em dar uma resposta fundamentada em tempo razoável). Deve
a administração manifestar-se sobre a possibilidade, ou não, de
fornecimento do tratamento pretendido, considerando se o
mesmo está, ou não, na lista do RENAME (Relação Nacional de
Medicamentos), ou se há Protocolo Clínico e Diretriz Terapêuti-
ca para a moléstia, analisando a pertinência técnica da preten-
são, louvando-se de argumentos como a Medicina Baseada em
Evidências, eficácia, segurança, efetividade ou mesmo custo-
efetividade do fármaco pretendido.

Posteriormente, em maio de 2014, a I Jornada da Saúde


do CNJ editou enunciado semelhante:

Enunciado nº 13 – Nas ações de saúde, que pleiteiam do


poder público o fornecimento de medicamentos, produtos
ou tratamentos, recomenda-se, sempre que possível, a
prévia oitiva do gestor do Sistema Único de Saúde (SUS),
com vistas a, inclusive, identificar solicitação prévia do re-
querente à Administração, competência do ente federado
e alternativas terapêuticas.

183
A presente orientação tem escopo organizativo do Siste-
ma Único de Saúde. A judicialização da saúde, por natureza, tem
efeitos desorganizativos152.

No que tange a pretensões compreendidas nas políticas


públicas de saúde, a ausência de pedido administrativo importa
na inexistência de interesse de agir, porquanto não haverá de-
monstração de pretensão resistida, porque a administração não
foi provocada quanto ao pedido.

Se a postulação tem por objeto algum interesse não pre-


visto em política pública, ainda maior a razão de prévia solicita-
ção. É indispensável a postulação administrativa instruída não
apenas com a prescrição médica (preferencialmente por médico
do SUS), mas com todos os exames e histórico clínico do pacien-
te, informações sobre a existência, ou não, de protocolos clínicos
quanto à patologia do paciente e o tratamento proposto, ou fun-
dado na medicina baseada em evidências. De outro lado, a ad-
ministração poderá/deverá responder com a maior urgência
possível, se for o caso deferindo a pretensão ou indeferindo-a
fundamentadamente.

O procedimento administrativo é indispensável e organi-


zativo do sistema, porque o Estado poderá incorporar novos
medicamentos, estabelecer novas rotinas, evitar a propositura
de ações e, se estas vierem a ser propostas, apresentar em juízo
seus fundamentos. Isto sem falar no modo de aquisição de medi-
camentos, que usualmente deve ser por meio de procedimento
licitatório, quando este vem sendo dispensado por ordem judi-
cial.

Por fim, preconiza o enunciado que, ausente pedido ad-


ministrativo, haja a oitiva do gestor antes de ser proferida deci-

152
- Como já destacado, a judicialização da saúde possui diversos aspectos positivos e
negativos, dentre os últimos a desorganização da política pública, porque há destinação
de recursos para finalidades diversas das previstas nas políticas públicas, por vezes há
decisões que acarretam em substituição de escolhas do administrador, violação das
portas de entradas do SUS e até mesmo em usurpação de lugar nas listas de esperas
para procedimentos, consultas, internação, entre tantas providências médico-
administrativas.

184
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

são liminar ou tutela antecipada. No seio do Estado do Paraná,


atendendo a orientação do Fórum Nacional de Saúde, foi institu-
ído um meio eletrônico de contato entre o Poder Judiciário e a
Secretaria Estadual de Saúde de modo a abreviar os procedi-
mentos e formalismos, bem como obter uma pronta resposta da
administração.

4.4.5. Quinta premissa

Também se adota como premissa o Enunciado nº 1, do


Comitê Executivo da Saúde do PR, que busca instrumentalizar o
direito material à saúde, mediante a adequada instrução do pe-
dido judicial:

Enunciado nº 1 - 'As ações que versem sobre pedidos para que o Poder
Público promova a dispensação de medicamentos ou tratamentos, ba-
seadas no direito constitucional à saúde, devem ser instruídas com
prescrição de médico em exercício no Sistema Único de Saúde, ressal-
vadas as hipóteses excepcionais, devidamente justificadas, sob risco de
indeferimento de liminar ou antecipação da tutela'.

Apesar de o enunciado ser auto-explicativo, importante


considerar seu caráter organizativo e reafirmador da importân-
cia do SUS e das portas de entradas. Se é certo que o SUS padece
de dificuldades e subfinanciamento, igualmente é certo que a
judicialização deve auxiliar na edificação de um sistema melhor.
Por isso a importância da valorização de suas instâncias.

Apenas na impossibilidade de ingresso prévio por uma


das portas de entrada do SUS é que poderá ser admitido o ajui-
zamento de ação instruída com prescrição de médico particular.
E, neste caso, a carga argumentativa e demonstração do direito
invocado haverá que ser ainda maior.

O Enunciado nº 11, da I Jornada da Saúde, acima transcri-


to, está em sintonia com este entendimento.

185
4.4.6. Sexta premissa

Os tratamentos para as diferentes patologias devem ser


realizados, no âmbito do SUS, segundo as diretrizes fixadas pela
política pública, ressalvada a hipótese de demonstração de sua
inadequação ou ineficácia para o paciente, sendo vedado o tra-
tamento ou medicamento experimental.

As políticas de saúde devem ser privilegiadas, seja em de-


corrência da segurança que oferece, vez que aprovadas pela
ANVISA e pelo Ministério da Saúde, mas também porque elas
fazem parte daquilo que o Estado se comprometeu a entregar.

Por isso que, nos termos do Enunciado nº 14, da I Jornada,


“Não comprovada a inefetividade ou impropriedade dos medica-
mentos e tratamentos fornecidos pela rede pública de saúde, deve
ser indeferido o pedido não constante das políticas públicas do
Sistema Único de Saúde”.

Também o Enunciado nº 16, da I Jornada, reforça a noção


de prevalência da política pública, devendo ser comprovada a
impertinência da previsão legal para o caso do paciente: “Nas
demandas que visam acesso a ações e serviços da saúde diferenci-
ada daquelas oferecidas pelo Sistema Único de Saúde, o autor
deve apresentar prova da evidência científica, inexistência, inefe-
tividade ou impropriedade dos procedimentos ou medicamentos
constantes dos protocolos do SUS”.

Caso seja medicamento ou tratamento experimental, in-


devido o fornecimento, vez que não está o Estado autorizado a
patrocinar experiências particulares, especialmente quando
coloque em risco a saúde.

Caso não seja experimental, cumpre: a) verificar a perti-


nência e necessidade do fármaco por parte do requerente; b)
identificar se a prescrição está lastreada na Medicina Baseada
em Evidências, caso não esteja fundada nos protocolos clínicos;
c) indicar eventuais tratamentos a que o paciente já foi submeti-
do para o tratamento da moléstia, se os mesmos estavam con-
templados em política pública, bem como se foram prescritos
por médicos públicos ou particulares.

186
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

Como já referido, a busca pela tutela judicial por fármaco


ou tratamento deve preferencialmente ser realizada por meio de
tutela coletiva, onde se discuta a política pública, a inclusão de
medicamentos nas tabelas, exame de custo-efetividade, segu-
rança e eficácia, entre outras questões técnicas. Entretanto, se
realizada por meio individual, como admitido pela atual juris-
prudência, indispensável que haja amparo em profunda prova
científica quanto necessidade do remédio ou tratamento e sua
eficácia.

Por vezes esta prova está centrada em evidências científi-


cas das propriedades do fármaco para o tratamento pretendido.
Por vezes isto não basta, também é necessário demonstrar que o
paciente reúne condições específicas e peculiares, como seria o
caso da ineficiência dos tratamentos anteriores.

As provas científicas estão a exigir não apenas a aprova-


ção do fármaco pela ANVISA ou por órgãos internacionais, mas
também comprovação por meio da medicina baseada em evi-
dências e das revisões sistemáticas feitas por autorizadas insti-
tuições, como é o caso do The Cochrane Collaboration153 ou Cen-
tro Cochrane do Brasil154, instituições independentes de elevado
prestígio no campo do estudo das evidencias científicas na área
da saúde.

4.4.7. Sétima premissa

Necessária a realização de laudo médico (ou perícia, sen-


do aquele preferível) indicando a necessidade do tratamento
excepcional, seus efeitos, estudos da Medicina Baseada em Evi-
dências - MBE e vantagens para o paciente, além de comparar
com eventuais fármacos fornecidos pelo SUS.

153
- http://www.cochrane.org/
154
- http://www.centrocochranedobrasil.org.br/cms/

187
Uma das providências recomendáveis após a propositura
de ações judiciais é a oitiva de médicos para elaboração de laudo
acerca da pretensão. Não é necessária a realização de perícia
médica no paciente, mas a avaliação do seu histórico clínico, dos
exames já realizados, da prescrição médica apresentada e a exis-
tência de estudos científicos a autorizar o medicamento não
contemplado na política pública. Também há que se considerar
os fundamentos para não utilização de medicamentos previstos
nas políticas públicas ou mesmos nos protocolos existentes,
inclusive os protocolos das sociedades médicas de especialistas.
A prescrição médica usada para instruir eventual pedido judicial
deve ser suficientemente fundamentada pelo prescritor, de mo-
do a possibilitar o controle judicial e administrativo das razões
lançadas.

A preocupação com a adoção de critérios científicos quan-


to à adequação do tratamento/medicamento proposto restou
assentada na I Jornada da Saúde:

“Enunciado nº 18 - Sempre que possível, as decisões liminares sobre


saúde devem ser precedidas de notas de evidencia científica emitidas
por Núcleos de Apoio Técnico em Saúde - NATS. ”

Estes núcleos de apoio técnico têm fundamento na Reco-


mendação nº 31, de 30 de março de 2010, do Conselho Nacional
de Justiça, que propugna pela celebração de convênios com vis-
tas a apoio técnico para auxiliar os magistrados na formação de
um juízo de valor quanto à apreciação de questões clínicas.

Os Comitês Executivos da Saúde das diferentes unidades


da federação vêm envidando esforços para instituir estes nú-
cleos de apoio em cada Estado. São diversas as dificuldades en-
contradas para criar estes órgãos de apoio técnico. Entretanto,
alguns estados vêm dando passos firmes na construção de um
modelo, como são exemplos Minas Gerais155 e São Paulo.

155
- O NATS de Minas Gerais já emitiu mais de uma centena de notas técnicas, muitas
delas com possibilidade de utilização em outros processos, vez que versão sobre condi-

188
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

4.4.8. Oitava premissa

Por fim, deve ser do conhecimento público a existência de


conflito de interesses entre o prescritor e o fármaco prescrito.

O conflito de interesses não é um impedimento quanto à


prescrição, apenas é uma informação que não pode ser negada.
O médico que prescreve determinado medicamento deve infor-
mar se participou na criação ou desenvolvimento do fármaco, se
teve eventuais cursos, estudos ou pesquisas financiados pelo
laboratório farmacêutico. Ou mesmo declarar se participou de
viagens, congressos, palestras ou outros eventos financiados
pela indústria.

O conflito de interesses tem sido objeto de constante pre-


ocupação do Conselho Federal de Medicina, que vem regulando
a matéria. O Código de Ética Médica (17 de setembro de 2009), a
Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, a Resolução
da Diretoria Colegiada - RDC 96/2008 da Agência Nacional de
Vigilância Sanitária e a Resolução 1.595/ 2000 do Conselho Fe-
deral de Medicina fazem menção a diferentes modos de conflitos
de interesse.

Como salientado acima, a questão do conflito de interes-


ses e algumas práticas da indústria farmacêutica não são preo-
cupações privativas do Brasil, havendo forte regulação em ou-
tros países para coibir condutas antiéticas. E isto está intima-
mente relacionado com a ética em geral e a ética corporativa em
especial.

A ética é um problema nacional endêmico, que envolve


praticamente todos os setores da sociedade, e, de um modo mui-
to particular, o poder público. Não é que estes problemas não
ocorram em outras sociedades. Mas no Brasil parece ser um
pouco mais grave, porque há uma combinação de condutas re-

ções gerais, como a utilização de um medicamento de modo off label, uso de insulina,
uso de stent, entre outras pesquisas.

189
prováveis, impunidade, corporativismo e a uma relativa aceita-
ção ou tolerância social.

Esta mistura faz com que condutas imorais, e até mesmo


ilícitas, sejam praticadas e tornadas públicas, sem que os seus
atores tenham qualquer constrangimento. Tudo é uma “banali-
dade”, para lembrar escritora Hannah Arendt156.

A sociedade brasileira tem que mudar esta lógica. E não


basta querer que os outros o façam. Deve-se iniciar na casa de
cada cidadão, no trabalho, nas relações pessoais, profissionais e
sociais.

A própria indústria farmacêutica está preocupada com as


relações que mantém com consumidores, revendedores e pres-
critores, como se colhe do Código de Ética de um Laboratório
Farmacêutico, com os seguintes questionamentos:

Quando tiver dúvidas, pergunte-se:

a) Minha conduta nos permitirá manter a confiança de to-


dos nossos acionistas?

b) Será que minha família e meus amigos considerariam


minha conduta ética?

c) Refleti quanto ao impacto sobre aqueles que serão afe-


tados pela minha conduta?

d) Me sentiria confortável se alguém me tratasse dessa


mesma forma?

e) Me sentiria confortável se minha conduta aparecesse na


mídia?

f) Minha conduta é legal e em conformidade com as políti-


cas da empresa?

156
- ARENDT, Hanna. Eichmann em Jerusalém – Um relato sobre a banalidade do mal.
São Paulo: Cia das Letras, trad. José Rubens Siqueira.

190
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

A questão do conflito de interesses está intimamente liga-


da com a ética. Esta mesma empresa, além de tábua de salvação
contra dúvidas, editou as seguintes regras:

Anti-suborno e corrupção

Não toleramos qualquer forma de suborno ou corrupção.


Não subornamos qualquer funcionário público ou privado e
não aceitamos subornos.

Concorrência leal

Estamos empenhados numa concorrência leal e não viola-


remos qualquer lei ou regulamentação em matéria de con-
corrência.

Práticas de marketing

Comercializamos e vendemos nossos produtos em con-


formidade com todas as regras e regulamentações aplicá-
veis, e em linha com elevados padrões éticos.

Este compromisso também se aplica a todas as nossas


outras atividades relacionadas com a comercialização dos
nossos produtos, como a coleta e comunicação de informa-
ções, médicas ou não médicas.

A sociedade brasileira de um modo geral precisa muito


deste tipo de comportamento. E acredito que ele seja a chave do
sucesso para a nova etapa que se seguirá na judicialização da
saúde.

191
Todas estas premissas, adotadas a partir, mas não exclu-
sivamente, da decisão proferida na Suspensão de Tutela Anteci-
pada nº 175, têm por escopo organizar o Sistema Único de Saú-
de, de modo a atender aos princípios constitucionais antes refe-
ridos.

Mas, ouso dizer, que estas premissas e a orientação juris-


prudencial que delas se seguiu não têm respondido satisfatori-
amente a diversas questões, porquanto as exceções previstas na
decisão referida têm prevalecido sobre as teses centrais.

Uma rápida pesquisa na jurisprudência nacional permite


verificar que são raras as decisões que não deferem medicamen-
tos quando o paciente demonstre minimamente a necessidade,
bastando para tanto haver uma prescrição de médico particular,
seja ela indicando o princípio ativo, o nome fantasia ou qualquer
outra indicação do fármaco.

De regra, não se exige maiores provas quanto a exames


médicos, demonstração de que a pretensão está fundada na
medicina baseada em evidências, prévio requerimento adminis-
trativo ou mesmo prescrição por médico do SUS. Sequer a de-
monstração do efetivo benefício do fármaco ou sua comparação
com similares ou com aqueles previstos na política pública.

Grande parte das decisões judiciais limita-se a analisar a


urgência do paciente, comprovação da moléstia e a necessidade
indicada pela prescrição de um médico especialista, num racio-
cínio reducionista de que “ninguém postula judicialmente um
medicamento se dele não estiver precisando”.

Como já destacado, o problema é muito mais complexo


que esta linha de compreensão, o que bem denota que o Poder
Judiciário talvez não devesse ser o destinatário de muitas destas
demandas, porque os problemas nem sempre são jurídicos157, e
outras vezes sequer a medicina chegou a uma conclusão defini-
tiva sobre o tema.

157
- Embora as questões sejam de alta indagação, fico imaginando como poderia o Poder
Judiciário substituir-se aos administradores e médicos de um pequeno hospital público
de uma cidade do interior, frente a um grave acidente de trânsito envolvendo muitos
veículos ou ônibus. Quem deve ser atendido prioritariamente? Quem deve usar os
respiradores existentes? Quem deverá ocupar a UTI (se houver)? Como trabalhar com as
urgências e a falta de infra-estrutura para um atendimento inesperado? As respostas
certamente não são jurídicas, mas de escassez de recursos, que impõe uma lógica que
refoge à tarefa do Poder Judiciário.

192
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

Mas este quadro tende a mudar. A crescente qualificação


dos profissionais do direito sobre o tema, as iniciativas do Con-
selho Nacional de Justiça, os trabalhos desenvolvidos pelo Fó-
rum Nacional do Judiciário para a Saúde e as atividades dos di-
versos Comitês Estaduais de Saúde tendem a alterar o conteúdo
da judicialização da saúde.

É possível dizer que as milhares de ações individuais so-


bre o direito à saúde até hoje ajuizadas desempenharam um
papel importante no desenvolvimento das políticas públicas, ao
mesmo tempo em que trouxeram alguns problemas adicionais.
Porém, espera-se que, doravante, novos rumos sejam seguidos
na construção de um Sistema Único de Saúde mais justo, solidá-
rio e eficaz.

4.5. O futuro da judicialização

Como assinalado, importa considerar que a judicialização


da saúde trouxe conseqüências positivas e negativas no campo
do direito fundamental à saúde, mas no futuro deverá enveredar
por outros caminhos.

O futuro da judicialização deverá importar numa nova


pauta política e judicial que conterá discussões sobre:

- Relação custo-benefício dos novos medicamentos,

- Inclusão de novos medicamentos na RENAME pela CONI-


TEC;

- Eficácia dos “novos medicamentos”;

- Aprovação de novos fármacos pela ANVISA;

- Políticas públicas na área de saúde, com definição sobre o


conceito e limites da universalidade e integralidade;

193
- Menor interferência judicial na concessão de medicamen-
tos fora da política pública, maior controle sobre a quali-
dade da política existente.

Os dados da realidade implicarão em revisão da juris-


prudência do STF, porque os temas acima elencados deverão
entrar em pauta, ao mesmo tempo em que a relação custo-
benefício dos medicamentos deverá ser objeto de séria e desa-
paixonada discussão.

Indispensável que se discuta sobre a venda de medica-


mentos no mercado brasileiro, aprovação pela ANVISA e incor-
poração dos mesmos nas listas RENAME.

O Brasil já tem uma boa experiência no programa da


HIV/AIDS, onde iniciativas populares e ações judiciais fizeram
com o que o Estado promovesse a incorporação de medicamen-
tos e inclusão dos mesmos na RENAME. Acredita-se que seme-
lhante ação social possa ser reproduzida em relação a outros
fármacos e outros tratamentos, como os oncológicos, ou mesmo
em relação às órteses ou próteses.

A inclusão em políticas públicas, destacadamente daque-


les que a CONITEC recomenda a incorporação do ponto de vista
técnico, mas afasta por força de aspectos econômicos, podem ser
um bom ponto de partida, por meio de proposição à indústria de
redução de custos.

Aplicação, no Brasil, dos preços dos fármacos praticados


no mercado internacional é uma boa medida. Estudos compara-
tivos indicam, por exemplo, que o preço dos medicamentos nos
Estados Unidos é muito superior aquele praticado na Suécia ou
Canadá. Aliás, é comum cidadãos norte-americanos cruzarem as
fronteiras com o Canadá para comprar remédios, embora haja
legislação criminalizando tal prática158.

158
- Os filmes Clube de Compra Dallas (de 2013), Invasões Bárbaras (de 2002) e SOS
Saúde – SICKO (de 2007) retratam alguns dos aspectos aqui apresentados sobre o direito
à saúde nos Estados Unidos.

194
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

O Poder Judiciário deverá enfrentar com profundidade os


temas da universalidade da saúde e integralidade, de modo a
definir limites daquilo que possa ser buscado individualmente,
sob pena de tornar desenfreada a busca judicial por medicamen-
tos, sejam eles efetivos ou não, mais eficazes que outros ou não,
ou mesmo haver segurança médica no seu uso ou não.

A nova, e mais adequada, judicialização deverá se nortear


pelo controle das políticas públicas de saúde, e não pela imposi-
ção judicial das mesmas políticas.

O Poder Judiciário não deve continuar analisando as di-


versas ações exclusivamente com base na hermenêutica consti-
tucional, ignorando que há normas infraconstitucionais que
regulam o SUS, tampouco ignorando a existência de limites.

Embora os direitos fundamentais sociais possam gerar di-


reitos individuais subjetivos, ainda que sujeitos a restrições
internas e externas159, havendo legislação infraconstitucional
que confira consistência a este direito, deve o Poder Judiciário
adotar postura de deferência à política pública e examinar o
ordenamento jurídico como um todo, inclusive analisando a
questão sob a perspectiva unitária do ordenamento jurídico.

Estudar com profundidade as disposições da Lei nº


8080/90, que institui o SUS, bem como a Lei nº 8142/90, que
regula o modo como as políticas sanitárias são realizadas, por
intermédio das conferências municipais, estaduais e nacional de
saúde, são medidas indispensáveis para uma boa compreensão
do tema.

Alguns passos estão sendo dados para aprofundar o de-


bate, mas outros ainda são necessários, especialmente com a
propositura de adequadas ações judiciais, preferencialmente de
tutelas coletivas.

159
- Sobre o tema: LEIVAS, P. G. C. . Teoria dos Direitos Fundamentais Sociais. 1. ed.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.

195
4.6. Considerações finais

Se a judicialização da saúde pode representar algum papel


social de relevo, este reside na organização das políticas públi-
cas.

Num país repleto de desigualdades, sejam elas econômi-


cas ou regionais, buscar um atendimento padronizado, efetivo e
adequado de saúde pública é um sonho a ser perseguido. O pro-
jeto nacional é auspicioso e sem paralelo mundial. Se é certo que
alguns países possuem um sistema público de saúde, nenhum
deles tem a pretensão de atender cerca de 200 milhões de habi-
tantes.

Ocorre que, malgrado a pretensão, promete-se muito e


entrega-se pouco. Convivem a excelência na prestação de servi-
ços de saúde privada com a carência absoluta em determinados
setores da saúde pública.

O subfinanciamento é um conhecido problema, mas não a


causa de todos os males. A judicialização, por sua vez, é conse-
qüência deles.

Atento para a complexidade do problema, o Conselho Na-


cional de Justiça instituiu o Fórum Nacional da Saúde, que vem
buscando auxiliar na solução dos conflitos de interesses levados
ao Poder Judiciário.

Para alcançar seu mister, o Fórum da Saúde realizou a I


Jornada da Saúde, onde foram aprovados 45 enunciados organi-
zativos das ações sobre o tema.

No tocante à saúde pública, entendo ser possível firmar as


seguintes premissas, algumas delas confirmadas por enuncia-
dos:

a) há direito subjetivo às políticas públicas de saúde, ha-


vendo violação à direito individual líquido e certo a sua o-
missão ou falha na prestação;

196
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

b) não é necessário demonstrar hipossuficiência para fazer


jus à saúde pública, vez que é direito de todos, independen-
temente da condição econômica;

c) há vedação legal para a dispensação, pagamento e res-


sarcimento de valores relativos a medicamentos e produtos
não aprovados pela ANVISA;

d) o requerimentos administrativo prévio é indispensável


para o ajuizamento de ações buscando direito à saúde;

e) as prescrições médicas aptas a instruir pretensões con-


tra o SUS devem ser feitas, preferencialmente, por médicos
oficiais. Sua falta estará a exigir maior carga probatória de
demonstração do direito;

f) os tratamentos médicos pretendidos devem ser realiza-


dos no âmbito do SUS;

g) os pedidos, administrativos ou judiciais, devem ser am-


parados por laudo médico indicando a necessidade do tra-
tamento/medicamento não previsto na política pública e
estudos fundados em Medicina Baseada em Evidências –
MBE;

h) o médico prescritor de tratamento/medicamento ou


OPME deve declarar eventual existência de conflito de inte-
resses.

Tais premissas compõem rol meramente enumerativo de


condições para o exercício do direito à saúde, as quais têm por
pressuposto a organização e fortalecimento do Sistema Único de
Saúde.

197
198
5
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

Como usar
a Saúde baseada
em evidências
João Pedro Gebran Neto

199
200
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

5.1. Considerações iniciais

A judicialização da saúde colocou na pauta dos operado-


res do direito temas e questões ligados à medicina (lato sensu) e
à administração pública.

Como destacado nos capítulos anteriores, nem tudo que a


ciência alcançou em termos de tratamentos é necessariamente
devido aos cidadãos, seja porque não aprovados pela ANVISA,
seja porque não incorporados nas listas de medicamentos do
SUS ou em protocolos clínicos. Entretanto, não se pode ignorar
que a velocidade da administração pública nem sempre é condi-
zente com os avanços tecnológicos e com as diferentes necessi-
dades humanas, além da existência de infra-estrutura bastante
precária para fazer frente às necessidades coletivas.

Estes alguns dos motivos que dão origem à chamada judi-


cialização da saúde. E, ao mesmo tempo em que as deficiências
administrativas fomentam a judicialização, esta também causa
impacto no jurídico, político e médico, servindo de elemento
propulsor para novas políticas públicas e de modificação legisla-
tiva.

Esta realidade fez com que duas importantes ferramentas


da técnica médica passassem a ser legalmente reconhecidas
como instrumento da administração pública pela Lei nº
12.401/2011: os Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas
(PCDT) e a Medicina Baseada em Evidências (MBE).

Tais ferramentas, com status legal, servem como meio pa-


ra buscar o equilíbrio entre aquilo que está colocado à disposi-
ção pelo mercado e aquilo deve ser incorporado pelo SUS, em-
bora este ainda não o tenha feito.

E, neste aspecto, sem olvidar outras questões como a jurí-


dica e a econômica, tantos os PCDT quanto a MBE parecem ofe-
recer uma gama razoável de soluções para os problemas técni-
cos.

201
Isto porque nem tudo que é colocado no mercado pela in-
dústria apresenta real vantagem sobre aquilo que já está incor-
porado. De outro lado, há muitos produtos que são disponibili-
zados no mercado que deveriam constar das políticas públicas.

Este é o objeto do presente estudo: apresentar os Proto-


colos Clínicos e a Medicina Baseada em Evidências como critério
distintivo entre aquilo que pode ser devido aos indivíduos, ainda
que não previstos no Sistema Único de Saúde.

5.2. Protocolos Clínicos e Diretrizes


Terapêuticas – PCDT’s

Muito antes da incorporação legal dos Protocolos Clínicos


e Diretrizes Terapêuticas e da Medicina Baseada em Evidências
pela Lei nº 12.401/2011, a sociedade médica brasileira reco-
nheceu as dificuldades na difusão de conhecimentos atualizados
sobre diagnósticos e terapêutica das doenças.

O mercado vem sendo constantemente inundado por in-


formações e produtos, sem que seja possível uma adequada
apreensão de suas utilidades, necessidades, efetividade, eficácia
e segurança. Consoante esclarece Márcia Angell160, em grande
medida os médicos são informados sobre novos tratamentos
pelos representantes comerciais dos laboratórios, dados os inte-
resses envolvidos e as dificuldades para constante atualização
dos profissionais da saúde quanto às mais recentes pesquisas e
estudos científicos. Por vezes a indústria gasta mais com marke-
ting de seus produtos que com o desenvolvimento dos mesmos.

Este quadro deve ser observado não apenas a partir dos


grandes centros, mas principalmente daqueles locais de mais
difícil acesso aos cursos, conferências, congressos nacionais e

160
- ANGELL, Márcia. A verdade sobre os laboratórios farmacêuticos: como somos enga-
nados e o que podemos fazer a respeito. Tradução de Waldéa Barcellos. Rio de Janeiro:
Record, 2008.

202
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

internacionais, especializações, pós-graduações, entre outros


modos de aprimoramento profissional161.

Diante desta realidade médica, a partir de 1999, a Associ-


ação Médica Brasileira e o Conselho Federal de Medicina delibe-
raram por desenvolver em conjunto algumas Diretrizes Médicas
baseadas em evidências científicas para auxiliar a classe médi-
cas e pacientes na otimização de cuidados e na tomada de deci-
sões com vista aos cuidados com os enfermos. Em 2001 veio a
lume a primeira publicação, que vem sendo continuamente a-
tualizada e ampliada, com a participação das sociedades de es-
pecialidades, como se colhe da introdução da última edição162:

“ O Projeto Diretrizes, iniciativa conjunta da Associação Médica Brasi-


leira e Conselho Federal de Medicina, tem por objetivo conciliar infor-
mações da área médica a fim de padronizar condutas que auxiliem o
raciocínio e a tomada de decisão do médico.

As informações contidas neste projeto devem ser submetidas à ava-


liação e à crítica do médico, responsável pela conduta a ser seguida,
frente à realidade e ao estado clínico de cada paciente.

O processo que se iniciou com 40 diretrizes está sendo periodica-


mente atualizado e Ampliado com a incorporação de novas diretrizes
(atualmente 440). Cada uma das Sociedades de Especialidade afiliadas
à AMB é responsável pelo conteúdo informativo e pela elaboração do
texto de sua diretriz. A forma utilizada na elaboração foi variada. Al-
gumas Sociedades definiram a constituição de um grupo de trabalho,
outras optaram por delegar a tarefa a um único membro, enquanto
que outras elegeram o processo consensual e multidisciplinar, envol-
vendo diversas especialidades numa mesma diretriz. ”

Em sintonia com a iniciativa médica, a administração pú-


blica passou a desenvolver semelhante ferramenta a orientar a

161
- Sobre este ponto, não se pode ignorar que muitas vezes são em eventos deste tipo,
patrocinados pela própria indústria, que o marketing do produto é feito com maior
ênfase, consoante refere Márcia Angell (op. cit.).
162
- http://www.projetodiretrizes.org.br/diretrizes11/abertura_internet.pdf

203
prestação dos serviços de saúde no País, por intermédio de Pro-
tocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas.

Consoante noticia Ciro Carvalho de Miranda163, o Conse-


lho Nacional de Secretários de Saúde – CONASS decidiu adotar a
edição de protocolos para auxiliar o gerenciamento da política
pública, descrevendo a “situação clínica a ser tratada, bem como
sua definição, epidemiologia, diagnóstico, potenciais complica-
ções, morbi-mortalidade associada à doença (impacto das doen-
ças e dos óbitos que incidem em uma população), além das causas
de inclusão e exclusão do tratamento, inclusive os benefícios espe-
rados.”

A dinâmica da ciência, das moléstias e da indústria está a


exigir constante aprimoramento profissional dos profissionais
da saúde, bem como a adoção pela administração pública de
padrões de atendimento, especialmente em um país que se pro-
põe a um projeto tão auspicioso como o SUS. Estabelecer rotinas
de cuidados, prescrições adequadas e eficazes, diminuir riscos à
segurança no atendimento/tratamento e fornecer aos profissio-
nais educação continuada e fácil acesso às informações são me-
didas indispensáveis ao bom funcionamento dos serviços de
saúde.

Por isso que a adoção de PCDT ultrapassou o plano admi-


nistrativo para vir expressamente consignado em texto legal, a
partir da Lei nº 12.401/2011, que alterou a Lei do SUS.

Protocolo Clínico e Diretriz Terapêutica, na definição do


art. 19-N, da Lei nº 8080/90, “é documento que estabelece crité-
rios para o diagnóstico da doença ou do agravo à saúde; o trata-
mento preconizado, com os medicamentos e demais produtos
apropriados, quando couber; as posologias recomendadas; os
mecanismos de controle clínico; e o acompanhamento e a verifica-
ção dos resultados terapêuticos, a serem seguidos pelos gestores
do SUS. ”

163
- MIRANDA, Ciro Carvalho. SUS – Medicamentos, protocolos clínicos e o Poder Judici-
ário: ilegitimidade e ineficiência. Brasília: Editora Kiron, 2013, p. 104.

204
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

Colhe-se do conceito alguns dos elementos do PCDT.

Primeiro, trata-se de um documento, equivale dizer, é um


roteiro escrito que tem valor jurídico.

Segundo, tem por finalidade estabelecer critérios para di-


agnósticos de doença ou agravo à saúde, devendo estabelecer
um modo de atendimento, exames clínicos, farmacológicos, am-
bulatoriais, entre outros, que devem ser realizados no paciente
para que se busque uma adequada identificação da doença ou
daquilo que agrava à saúde do paciente.

Terceiro, o PCDT deve conter um roteiro de tratamento


preconizado pela política pública de saúde para atendimento da
moléstia diagnosticada. Não basta identificar o mal que o paci-
ente padece. Deve o protocolo também orientar quais os proce-
dimentos que devem adotar os profissionais da saúde para ob-
tenção da cura (se possível) ou diminuir a progressão da doen-
ça, ou, ainda, minorar os efeitos da enfermidade do doente. Este
requisito acha-se plasmado no art. 19-O, da mesma lei, nos se-
guintes termos: “Os protocolos clínicos e as diretrizes terapêuti-
cas deverão estabelecer os medicamentos ou produtos necessários
nas diferentes fases evolutivas da doença ou do agravo à saúde de
que tratam, bem como aqueles indicados em casos de perda de
eficácia e de surgimento de intolerância ou reação adversa rele-
vante, provocadas pelo medicamento, produto ou procedimento
de primeira escolha. ”

Quarto, o protocolo deve indicar as posologias recomen-


dadas. Equivale dizer, o esquema de administração do tratamen-
to, segundo os vários tipos de tratamentos indicados, segundo o
grau da doença, idade do paciente, tratamentos previamente
realizados, forma de administração dos medicamentos, periodi-
cidade, etc.

Quinto requisito, os PCDTs devem expressar os mecanis-


mos de controle clínicos, consistente na monitorização do paci-
ente quanto ao tratamento proposto e os resultados obtidos,
efeitos colaterais, eventual recidiva da doença, se for o caso,
necessidade de modificação do esquema terapêutico e exames
que o paciente deve se submeter no curso do tratamento.

205
Por fim, sexto, o acompanhamento e a verificação dos re-
sultados terapêuticos. Não basta tratar o paciente. Deve o trata-
mento ser objeto de acompanhamento para verificar se o mes-
mo é eficaz, se o paciente está se submetendo aquilo que lhe foi
indicado, bem como realizar o controle geral do protocolo em
relação aos mais variados pacientes. Além da questão individual
do paciente, os protocolos também devem velar pela coletivida-
de, motivo pelo qual o controle não se dará exclusivamente em
cada caso, mas também com o aprendizado coletivo dos muitos
tratamentos, através de um adequado banco de informações.

Ciro Carvalho Miranda164 destaca que o PCDT exerce trí-


plice função. Gerencial, na medida em que cria padrões de as-
sistência, reduzindo a diversidade de tratamentos para uma
mesma moléstia e permitindo maior planejamento da relação de
medicamentos envolvidos segundo o perfil epidemiológico. E-
ducacional, posto favorecer a capacitação dos profissionais de
saúde, a partir da informação da literatura médica, dados da
medicina baseada em evidências e facilita a disseminação do
conhecimento. Terceiro, a função legal, pela obrigatoriedade
dos operadores do sistema e dos usuários e adequarem-se as
respectivas condutas disciplinadas nos protocolos.

Assim, o PCDT é instrumento de fundamental importância


para a efetivação da política de saúde, restando incorporado na
legislação pátria, funcionando não apenas como elemento nor-
mativo do direito sanitário, mas também como garantidor do
tratamento isonômico dos pacientes, de acordo com critérios de
efetividade, eficiência, eficácia e segurança do tratamento.

Em decorrência da política pública de criação de PCDT, o


Ministério da Saúde publicou longa relação de protocolos em
vigor, divididos em três volumes gerais e mais um volume espe-
cífico para Oncologia, datados de 2010, 2013 e 2014, disponibi-
lizados na internet165.

164
- MIRANDA, Ciro Carvalho. Op. cit., p. 107/108.
165
- http://portalsaude.saude.gov.br/index.php/o-ministerio/principal/secretarias/430-
job/l1-job/16176-teste-protocolos-clinicos

206
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

Os diferentes protocolos têm uma mesma forma de apre-


sentação, divididos em seis módulos: 1. Diretrizes diagnósticas e
terapêuticas; 2. Termo de esclarecimento e responsabilidade; 3.
Fluxograma de tratamento; 4. Fluxograma de dispensação; 5.
Ficha fármaco-terapêutica; e 6. Guia de orientação ao paciente.

O Termo de Esclarecimento e Responsabilidade é um im-


portante documento, a ser preenchido, anuído e assinado pelo
paciente (ou seu responsável) e pelo médico, o que bem de-
monstra a necessidade de participação do paciente na escolha
dos tratamentos propostos. O modelo de texto é escrito em lin-
guagem acessível, devendo o médico prestar os esclarecimentos
necessários. Deve conter os possíveis efeitos adversos do trata-
mento, segundo a literatura médica e informações do fabricante
ou fabricantes (quando mais de um for prescrito) do medica-
mento.

Malgrado haja a publicação e divulgação dos protocolos


clínicos e diretrizes terapêuticas aprovados, importante desta-
car que possuem igual valor jurídico aqueles pedidos que foram
objeto de exame, mas restaram rejeitados. Isso porque prova-
velmente estes medicamentos que não foram protocolizados
serão o objeto da judicialização da saúde. Se já há uma análise
técnica sobre determinado medicamento/tratamento pelo Mi-
nistério da Saúde, os fundamentos de eventual indeferimento
são tão importantes, do ponto de vista jurídico, quanto os fun-
damentos do seu deferimento.

É evidente que não há protocolos e diretrizes terapêuticas


para todos os tipos de tratamentos. Na falta destes, prevê o art.
19-P, da Lei nº 8080/90 que a prescrição deverá recair sobre
medicamentos/tratamentos previstos na relação de medica-
mentos instituídas pelo gestor federal do SUS, ou pelas listas
suplementares dos estados ou municípios.

A competência para editar protocolos clínicos e diretrizes


terapêuticas é do Ministério da Saúde, na forma do art. 19-Q, da
Lei do SUS, como assessoramento da CONITEC – Comissão Na-
cional de Incorporação de Tecnologias no SUS, com consolidação

207
e publicação mínima a cada dois anos, nos termos do Decreto nº
7508/2011. Entretanto, é facultado aos Estados e Municípios
editarem protocolos complementares dadas as peculiaridades
locais (art. 28, III, do decreto referido).

A I Jornada de direito da saúde, promovida pelo Fórum


Nacional do Saúde do CNJ, firmou enunciado sobre a utilização
do PCDT, destacando seu papel organizativo no seio do Sistema
Único de Saúde:

ENUNCIADO Nº 4

Os Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDT)


são elementos organizadores da prestação farmacêutica, e
não limitadores. Assim, no caso concreto, quando todas as
alternativas terapêuticas previstas no respectivo PCDT já
tiverem sido esgotadas ou forem inviáveis no quadro clínico
do paciente usuário do Sistema Único de Saúde (SUS), pelo
princípio do art. 198, III, da CF, pode ser determinado judi-
cialmente o fornecimento, pelo SUS, do fármaco não proto-
colizado.

5.3. A CONITEC e os protocolos

A Lei nº 8080/90, que regula o funcionamento do Sistema


Único de Saúde, a partir da alteração que sofreu com a Lei nº
12.401/2011, passou a contemplar expressamente a medicina
baseada em evidências, ao dispor, em seu artigo 19-Q, sobre a
incorporação, exclusão e alteração, pelo SUS, de novos medica-
mentos, produtos e procedimentos, por intermédio da Comissão
Nacional de Incorporação de Tecnologias no Ministério da Saú-
de, conhecida como CONITEC.

208
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

A CONITEC166-167 tem por dever elaborar relatórios le-


vando em consideração168:

“I – as evidências científicas sobre a eficácia, a acurácia, a


efetividade e a segurança do medicamento, produto ou pro-
cedimento objeto do processo, acatadas pelo órgão compe-
tente para o registro ou autorização de uso;

II – a avaliação econômica comparativa dos benefícios e


dos custos em relação às tecnologias já incorporadas, inclu-
sive no que se refere aos atendimentos domiciliar, ambula-
torial ou hospitalar, quando cabível. ”

A composição da CONITEC é heterogênea, com a plená-


ria composta por 13 membros, sendo representantes do Minis-
tério da Saúde (a quem cabe a presidência), representantes do
Conselho Federal de Medicina - CFM, do Conselho Nacional de
Saúde - CNS, Conselho Nacional dos Secretários de Saúde - CO-
NASS, Conselho Nacional dos Secretários Municipais de Saúde -
CONASEMS, Agência Nacional de Saúde - ANS, Agência Nacional
de Vigilância Sanitária – ANVISA, nos termos do Decreto nº
7646/2011.

O representante do Conselho Federal de Medicina, nos


termos do art. 19-Q, da Lei do SUS, deverá pertencer a sociedade
de especialista na área objeto do estudo de incorporação ou
protocolo. Isto confere maior qualidade e independência ao
comitê, dada a presença de um especialista que não integra ne-
nhum ente governamental.

166
- Nos termos do parágrafo primeiro, do art. 19-Q, da Lei nº 8080/90, com redação
dada pela Lei nº 12.401/2011.
167
- A CONITEC é um órgão colegiado de caráter permanente, integrante do Ministério
da Saúde, vinculado à Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos (SCTIE),
regulado pelo Decreto nº 7.646/2011, junto ao Departamento de Gestão e Incorporação
de Tecnologias em Saúde – DGITS, Decreto nº 7.797/2012.
168
- Nos termos do parágrafo segundo, do art. 19-Q, da Lei nº 8080/90, com redação
dada pela Lei nº 12.401/2011.

209
Este órgão, como se depreende do texto legal acima trans-
crito, tem por missão verificar as evidências científicas sobre
determinados produtos ou procedimentos de modo a emitir
opinião, não vinculante, quanto à eficácia, efetividade, acurácia e
segurança dos mesmos.

Trata-se, pois, da incorporação da medicina baseada em


evidência como importante instrumento para orientar as políti-
cas públicas. Não se trata do único vetor quanto à incorporação,
mas é requisito indispensável para seu reconhecimento.

Este é um dos aspectos que a judicialização da saúde pode


ter pertinência, vez que o controle quanto à incorporação ou
exclusão pode ser objeto de exame pelo Poder Judiciário. Even-
tuais negativas técnicas podem ser objeto de contestação, even-
tuais omissões administrativas quanto ao exame de pedidos
também podem, ou mesmo podem ser objeto questionamento a
inclusão indevida.

Assim, como qualquer ato administrativo, é possível reali-


zar o controle judicial quanto à incorporação, ou não, de medi-
camentos/tratamentos sob a perspectiva da legalidade. Mas,
quanto aos aspectos discricionários, a intervenção judicial deve
ser no mínimo parcimoniosa.

Outros países que possuem o atendimento universal da


saúde como princípio também instituíram órgãos semelhantes à
CONITEC para realizar o controle das evidências médicas, tais
como a Inglaterra, Austrália e Canadá.

O mais conhecido deles é da Inglaterra, que utiliza a agên-


cia independente NICE169, desde 1999, prestando serviços per-
manentemente para o governo britânico. Na Austrália há uma
agência governamental, a PBAC170, desde 1993, que analisa a
incorporação de tecnologias, guardando semelhanças com a

169
- National Institute of Health and Care Excellence. Acessável no sítio:
http://www.nice.org.uk.
170
- Pharmaceutical Benefits Advisory Committee. Informações hospedadas no site:
http://www.pbs.gov.au/info/industry/listing/participants/pbac

210
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

CONITEC. O Canadá utiliza a agência independente CADTH171,


desde 1989, que tem por escopo fazer recomendações às pro-
víncias. Todos estes órgãos têm em comum o fato de haver com-
posição heterogênea para a formulação da política pública, pre-
ocupação com a sustentabilidade desta política de saúde, inclu-
sive com exame do custo-efetividade do medicamen-
to/tratamento e a incorporação daquilo que está fortemente
fundada na Medicina Baseada em Evidências (MBE).

Embora a criação da CONITEC seja bastante recente, des-


de 2012 já foram realizadas reuniões mensais, com a apresenta-
ção de 316 avaliações, das quais 162 internas do Ministério da
Saúde e 154 externas (propostas por empresas e sociedades).
Das demandas internas, 95 tiveram parecer para incorporação e
45 foram negadas. Das demandas externas, 61 foram devolvidas
por não atender ao escopo de atendimento à saúde e não cabia à
CONITEC avaliar. Todas recomendações da CONITEC foram aca-
tadas pelo Ministério da Saúde172.

O artigo 15, do Decreto nº 7646/2011, estabelece o pro-


cedimento administrativo para incorporação de medicamentos
à relação nacional de medicamentos ou mesmo para o estabele-
cimento de protocolos clínicos, in verbis:

Art. 15. A incorporação, a exclusão e a alteração pelo SUS de tecnolo-


gias em saúde e a constituição ou alteração de protocolos clínicos e di-
retrizes terapêuticas serão precedidas de processo administrativo.

o
§ 1 O requerimento de instauração do processo administrativo para a
incorporação e a alteração pelo SUS de tecnologias em saúde e a cons-
tituição ou alteração de protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas de-
verá ser protocolado pelo interessado na Secretaria-Executiva da CO-
NITEC, devendo ser acompanhado de:

I - formulário integralmente preenchido, de acordo com o modelo esta-


belecido pela CONITEC;

171
- Canadian Agency for Drugs and Technologies in Health. Com acesso no site:
http://www.cadth.ca/
172
- www.saúde.gov.br

211
II - número e validade do registro da tecnologia em saúde na ANVISA;

III - evidência científica que demonstre que a tecnologia pautada é, no


mínimo, tão eficaz e segura quanto aquelas disponíveis no SUS para
determinada indicação;

IV - estudo de avaliação econômica comparando a tecnologia pautada


com as tecnologias em saúde disponibilizadas no SUS;

V - amostras de produtos, se cabível para o atendimento do disposto


o
no §2 do art. 19-Q, nos termos do regimento interno; e

VI - o preço fixado pela CMED, no caso de medicamentos.

o
§ 2 O requerimento de instauração do processo administrativo para a
exclusão pelo SUS de tecnologias em saúde deverá ser acompanhado
o
dos documentos previstos nos incisos I, II, VI do §1 , além de outros de-
terminados em ato específico da CONITEC.

o
§ 3 A CONITEC poderá solicitar informações complementares ao re-
querente, com vistas a subsidiar a análise do pedido.

o
§ 4 No caso de propostas de iniciativa do próprio Ministério da Saúde,
serão consideradas as informações disponíveis e os estudos técnicos já
realizados para fins de análise pela CONITEC.

Devidamente instruído o processo, será elaborado um


relatório que levará em consideração (art. 18):

I - as evidências científicas sobre a eficácia, a acurácia, a


efetividade e a segurança do medicamento, produto ou proce-
dimento objeto do processo, acatadas pelo órgão competente
para o registro ou a autorização de uso;

II - a avaliação econômica comparativa dos benefícios e


dos custos em relação às tecnologias já incorporadas, inclusive
no que se refere aos atendimentos domiciliar, ambulatorial ou
hospitalar, quando cabível; e

III - o impacto da incorporação da tecnologia no SUS.

212
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

Este relatório será submetido à consulta pública pelo pra-


zo de 20 dias, sendo submetido depois ao exame do plenário da
CONITEC. Após a deliberação deste, seguirá ao Secretário de
Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da
Saúde para decisão, podendo ser realizada nova audiência pú-
blica antes de sua decisão.

O prazo para exame destes procedimentos administrati-


vos é de 180 dias, sendo admitida uma prorrogação por mais 90
dias. A partir da publicação da decisão de incorporar tecnologia
em saúde, ou protocolo clínico e diretriz terapêutica, as áreas
técnicas terão prazo máximo de cento e oitenta dias para efeti-
var a oferta ao SUS.

Assim, da previsão normativa constata-se que a Medicina


Baseada em Evidências (MBE) é importante instrumento para
incorporação de tratamentos/medicamentos nas políticas pú-
blicas e para formulação dos protocolos clínicos, a ser conside-
rada em conjunto com a avaliação do custo-benefício e o impac-
to da incorporação na política do Sistema Único de Saúde.

5.4. O que é medicina baseada


em evidências – MBE?

Evidência significa, tanto no âmbito judicial, quanto no


sanitário, prova ou certeza quanto a determinados dados ou
fatos. Assim como no direito processual, onde as partes devem
demonstrar aquilo que alegam, na medicina também há que ser
demonstradas cientificamente as propriedades173. “Em outras
palavras: em MBE, denominamos evidências externas às informa-
ções e aos dados coletados, na literatura médica recente, cuja

173
- DRUMMONDD, José Paulo; e SILVA, Eliezer. Medicina Baseada em Evidências – Novo
paradigma assistencial e pedagógico. São Paulo: Atheneu, 1998.

213
validade e importância são aferidas por determinados crité-
rios”174.

Segundo o Centro Cochrane do Brasil175-176, a Medicina


Baseada em Evidências, ou Saúde Baseada em Evidências pode
ser definida177 como:

“uma abordagem que utiliza as ferramentas da Epidemio-


logia Clínica; da Estatística; da Metodologia Científica; e da
Informática para trabalhar a pesquisa; o conhecimento; e a
atuação em Saúde, com o objetivo de oferecer a melhor in-
formação disponível para a tomada de decisão nesse cam-
po.

A prática da Medicina Baseada em Evidências busca pro-


mover a integração da experiência clínica às melhores evi-
dências disponíveis, considerando a segurança nas inter-
venções e a ética na totalidade das ações. Saúde Baseada
em Evidências é a arte de avaliar e reduzir a incerteza na
tomada de decisão em Saúde. ”

174
- DRUMMONN e SILVA, op. cit., p. 3.
175
- “O Centro Cochrane do Brasil, um dos 14 Centros da Colaboração Cochrane, é uma
organização não governamental, sem fins lucrativos e sem fontes de financiamento
internacionais, que tem por objetivo contribuir para o aprimoramento da tomada de
decisões em Saúde, com base nas melhores informações disponíveis. A missão do Centro
Cochrane do Brasil é elaborar, manter e divulgar revisões sistemáticas de ensaios clínicos
randomizados, o melhor nível de evidência para as decisões em Saúde. Inaugurado em
1996, o Centro está ligado à Pós-graduação em Medicina Interna e Terapêutica da Escola
Paulista de Medicina - Universidade Federal de São Paulo (EPM-UNIFESP) e realiza revi-
sões sistemáticas, pesquisa clínica e avaliações de tecnologias em Saúde. Além disso,
promove workshops de revisão sistemática e metodologia de pesquisa; oferece um curso
gratuito on-line de revisão sistemática; e realiza consultorias científicas”, consoante se
informação que se colhe de seu sitio eletrônico:
http://www.centrocochranedobrasil.org.br/cms/index.php?option=com_content&view=
article&id=13&Itemid=4.
176
- O Centro Cochrane do Brasil, em parceria com o Instituto Sírio-Libanês de Ensino e
Pesquisa, do Hospital Sírio-Libanês de São Paulo, oferta online o Curso de Direito e
Saúde Baseada em Evidências, com aulas semanais de duas horas, com período de
duração de nove meses. O curso está na sua terceira edição, com a participação de
aproximadamente 500 profissionais da saúde e do direito.
177
- Os médicos José Paulo Drummond e Eliezer Silva definem MBE como “critério de
maior certeza de determinados achados e opiniões, apoiado em dados e informações,
cuja análise é feita dentro de padrões previamente estipulados” (in Medicina Baseada
em Evidências ... cit., p. 5).

214
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

A MBE, portanto, não é apenas um nome ou rótulo que ca-


racteriza a descoberta científica sobre moléstias, produtos, me-
dicamentos ou tratamentos. Ela consiste numa técnica específica
para atestar com o maior grau de certeza a eficiência, efetivida-
des e segurança de produtos, tratamentos, medicamentos e e-
xames que foram objeto de diversos estudos científicos, de mo-
do que os verdadeiros progressos das pesquisas médicas sejam
transpostos para a prática. Trata-se, portanto, de uma ferramen-
ta utilizada, em primeiro lugar, no exercício da medicina.

Jorgen Nordenstrom178 aponta três importantes princí-


pios que fundamentam a medicina baseada em evidências: a)
informações objetivas e clinicamente relevantes; b) níveis de
evidências escalonados hierarquicamente; c) julgamento clínico
bem fundamentado segundo as perspectivas médica e do paci-
ente.

As evidências são obtidas a partir de revisões sistemáti-


cas-metanálises, ensaios clínicos, artigos científicos, literatura
médica especializada, entre outros elementos de informação.
Este amplo e crescente universo de informações está a exigir a
seleção e tratamento das mesmas de modo a obter o mais ade-
quado e seguro resultado possível, bem como a constante atua-
lização dos próprios resultados. Por isso a divisão das evidên-
cias em diferentes níveis, de modo hierárquico, como adiante se
verá.

A medicina baseada em evidência tem preocupação com


abrangência bastante variada. Há estudos comparativos sobre
eficácia ou vantagem sobre o uso de chupetas para crianças, uso
de descongestionantes nasais, eficácia de medicamentos ou
mesmo probióticos (bactéria lactio-ácidas) em caso de diarréia,
ou mesmo vitamina C para prevenção de resfriados, até mesmo
revisão sistemática com estudo comparativo entre o uso de es-
covas elétrica de dentes e escovação comum.

178
- NORDENSTROM, Jorgen. Medicina Baseada em Evidências seguindo os passos de
Sherlock Holmes. Tradução Rita Brossard. Porto Alegre: Artmed, 2008, p. 9.

215
A comparação de diferentes estudos é de grande valia pa-
ra a escolha da melhor evidência, dada a evolução científica, os
novos exames e novos tratamentos existentes.

A MBE está a exigir do usuário (normalmente um profis-


sional da saúde) uma postura de humildade quanto ao objeto de
investigação, na medida em que reconhece tratar-se de uma
situação atípica ou controvertida, não bastando para a solução
da questão sua pré-compreensão. Por isso, a “MBE se constitui
na definição do problema, no levantamento de questões, na for-
mulação correta das perguntas, na eficiente pesquisa na literatu-
ra, na seleção e na avaliação dos trabalhos correspondentes, a-
preciados por critérios próprios, enquanto que seu produto é a
utilização prática, em termos assistenciais, pedagógicos ou pro-
dução científica179”.

Se para os médicos funciona como meio para escolher a


melhor assistência terapêutica, para a ciência jurídica o conhe-
cimento da medicina baseada em evidência, por força da cres-
cente judicialização da saúde, representa requisito informativo
indispensável para solução de questões judicialmente postas.

Seja por pesquisa própria, ou por intermédio de colabora-


ção de expert, pode e deve o operador do direito demonstrar a
existência de evidência científica sobre aquilo que busca judici-
almente. E o Poder Judiciário deve conhecer esta ferramenta
para avaliar a proposição e a solução apresentada.

Os estudos realizados com base na MBE têm por objeto


relevar eficácia, efetividade, eficiência e segurança180. No Brasil, o
Decreto nº 7646/2011, que regula o funcionamento da CONI-
TEC, expressamente contempla estes mesmos parâmetros a
serem avaliados para a incorporação de novos medicamentos,
segundo critérios racionais.

179
- DRUMMOND e SILVA, op. cit., p. 11.
180
- Embora possa ser desnecessário, importante frisar que eficácia, efetividade, eficiên-
cia e segurança são termos empregados no seu sentido técnico-médico, o que é absolu-
tamente diverso do seu significado jurídico.

216
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

Consoante Jorgen Nordenstrom181, “eficácia é uma medida


do efeito de uma intervenção realizada em condições ótimas ou
ideais. Efetividade denota os resultados que podem ser obtidos
em condições normais, em um ambiente de cuidados de rotina.”

Eficiência, por seu turno, está ligado ao custo-efetividade.


Equivale dizer, qual o custo de determinado tratamen-
to/medicamento e o resultado que o mesmo apresenta compa-
rado com outros tratamentos. Haverá maior eficiência de de-
terminado tratamento quanto maior os resultados positivos
obtidos e menor o seu custo. Este parâmetro, embora deva ser
adotado com algum cuidado no âmbito do direito à saúde, reve-
la-se muito importante quando se busca incluir, ou não, proce-
dimentos/medicamentos nas políticas públicas. Aliás, todos os
órgãos que buscam examinar a inclusão de novas políticas pú-
blicas, como os referidos CONITEC, NICE, PBAC, CADTH, tem
dentre suas obrigações analisar a relação custo-efetividade da-
quilo que se pretende incorporar.

Por fim, a segurança é elemento de fundamental impor-


tância, porque todos os medicamentos podem ter efeitos indese-
jados que devem ser cuidadosamente avaliados antes de seu
ingresso no mercado. Os tratamentos devem ser seguros, tra-
zendo mais benefício do que malefícios, sendo que estes últimos
devem ser controlados.

Como assinalado, a medicina baseada em evidências


(MBE) ganhou maior relevância no Brasil a partir da edição da
Lei nº 12.401/2011, que criou a Comissão Nacional de Incorpo-
ração Tecnológica – CONITEC, a quem incumbe a missão de ana-
lisar as evidências científicas de fármacos e produtos.

Os estudos da MBE são divididos segundo diferentes ní-


veis de evidências, em conformidade com o tamanho do grupo
pesquisado, número de diferentes pesquisas realizadas e grau
de confiança destes estudos.

181
- NORDENSTROM, Jorgen. Medicina ... cit., p. 82.

217
Níveis de estudos

Nível 1 – Revisão sistemática e metanálise.

Revisão sistemática da literatura é o mais alto nível de e-


vidência (prova) de efetividade, realizada mediante a análise de
artigos científicos sobre determinado tema, sintetizando cienti-
ficamente as evidências apresentadas pelos mesmos. Não traba-
lha com os doentes, apenas com os trabalhos científicos de qua-
lidade.

Este método de apuração de evidências consiste no ma-


pear do conhecimento sobre uma determinada pergunta, com
vistas a obtenção da melhor resposta e daquilo que tiver a me-
lhor qualidade. Diversas instituições, como o Centro Cochrane
do Brasil, realizam estudos sistemáticos a partir das pesquisas
feitas por outros profissionais, sintetizando (revisando) os estu-
dos e propondo uma solução para a pergunta principal.

A metanálise, por sua vez, utiliza-se de metodologia quan-


titativa para sumarizar os resultados. Os resultados obtidos
são submetidos a tratamento estatístico, de modo a conferir
maior valor e certeza quanto aos resultados (metanálise).

Métodos estatísticos são utilizados para o agrupamento


dos resultados das pesquisas clínicas apresentadas pelos dife-
rentes artigos, em regra, segundo a eficácia, efetividade, eficiên-
cia, segurança, custo/benefício. O objeto de uma revisão siste-
mática pode ser, por vezes, aferir apenas um destes elementos,
por exemplo a maior segurança de um determinado medica-
mento novo frente a outros mais antigos.

Tanto a revisão sistemática quanto a metanálise são cha-


madas de fontes ditas secundárias de informações, porque se
louvam de diversas fontes primárias (os estudos de níveis infe-
riores). Contrariamente aquilo que o nome está a sugerir, as
fontes secundárias são mais relevantes (e hierarquicamente
superiores) que as fontes primárias, vez que se servem de várias
fontes primárias para obtenção de uma conclusão com elevado
grau de evidência.

218
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

Tratam-se do mais importante meio a revelar a evidência


científica, feito por especialistas, buscando organizar o universo
de informações, muitas das quais apresentadas por pessoas
e/ou instituições que tem algum interesse na formação da opi-
nião. Por isso é importante separar artigos tendenciosos com
artigos científicos isentos. Somente profissionais experientes e
imparciais podem organizar estes resultados, de modo a obter
resultado de evidência de nível 1, diminuindo as incertezas
quanto a tratamentos médicos.

As pesquisas são realizadas a partir de uma determinada


pergunta clínica, representada pela sigla PICO, composta pelas
iniciais das seguintes etapas: PROBLEMA, INTERVENÇÃO, CON-
TROLE e OUTCOME (ou Desfecho).

Como Problema, deve ser formulado um questionamento


específico sobre determinado procedimento ou moléstia. Por
exemplo, a moléstia a que está acometido o paciente. No caso
específico da judicialização da saúde, é a moléstia do paciente e
o medicamento prescrito o problema apresentado e a ser inves-
tigado.

Intervenção é a medida proposta pelo médico ou a pres-


crição já apresentada para solução desta moléstia. Por exemplo,
um tipo de tratamento ou de exame.

Controle é a comparação que deve ser realizada entre o


tratamento/medicamento proposto e os métodos mais conven-
cionais e conhecidos, ou mesmo a comparação com placebo.

Outcome ou Desfecho é a solução para as quais se buscam


as evidencias, se é relativa a cura, maior qualidade de vida, au-
mento da sobrevida, efeitos adversos, segurança do tratamento,
entre outras soluções possíveis. Equivale dizer, são os resulta-
dos obtidos segundo os tratamentos investigados, de acordo
com a medicina baseada em evidências. Se a preocupação é com
eficiência, o desfecho deverá basear-se neste valor. Se a preocu-
pação é com segurança, tem que ser avaliado quanto mais segu-

219
ro que o tratamento anterior. Ou, ainda, pode versar sobre eficá-
cia ou efetividade.

Diversas instituições realizam revisões sistemáticas, des-


tacadamente a Colaboração Cochrane, da qual o Centro Cochra-
ne do Brasil182 é integrante. As diversas unidades da Colabora-
ção Cochrane produzem a Cochrane Library183, uma publicação
eletrônica atualizada mensalmente, disponível integral e gratui-
tamente para os brasileiros. As seguintes instituições possuem
bancos de dados contendo informações relevantes sobre evi-
dências científicas LILACS184, PUBMED185 (MEDLINE), INMA-
BE186. Também realizam revisões sistemáticas algumas institui-
ções públicas que estabelecem os procedimentos e medicamen-
tos que serão incorporados nos seus respectivos países, como o
NICE e o CADTH, entre outros. Ainda, pesquisadores indepen-
dentes publicam revisões sistemáticas em revistas científicas de
nomeada, como a Lancet e BMJ.

O TRIPDATABASE187 e o SUMSEARCH188 são plataformas


de pesquisas definidas como “metabusca”, porque realizam bus-
cas eletrônicas em diversas bases de dados, dentre elas as acima
citadas. Funcionam como os conhecidos sites de pesquisas de
passagens aéreas, de hotéis ou buscas de compras em diversos
vendedores.

O CLINCAL EVIDENCE189-190 e o UPTODATE191 são servi-


ços pagos para acesso a protocolos clínicos e respostas baseadas
em evidências realizados por empresas com fins lucrativos, os
quais têm por objetivo auxiliar os médicos na tomada de deci-
sões.

182
- www.centrocochrane.com.br e http://cochrane.bvsalud.org/portal/php/index.php.
183
- www.thecochranelibrary.com.
184
- Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde desde 1982, acesso
no sitio eletrônico: www.bireme.br/php/inex.php.
185
- Produzido pela National Library of Medicine (NLM); desde 1960.
http://www.pubmed.gov (atualizada semanalmente, com informações sobre a literatura
Norte-Americana da área medicina clínica, ciências biológicas, educação e tecnologia).
186
- www.embase.com, site criado pela comunidade européia, cuja acesso pode ser feito
por intermédio da CAPES.
187
- www.york.ac.uk/inst/crd/index.htm
188
- http://sumseacrch.org
189
- www.clinicalevidence.com
190
- www.uptodate.com/home/index.html
191
- http://www.uptodate.com/pt/home

220
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

Embora muitas organizações apresentem revisões siste-


máticas com conclusões confiáveis, recomenda-se a utilização
das lançadas pelo Centro Cochrane e LILACS para fim de facilitar
os trabalhos dos operadores do direito, sob pena de trabalhar
com elevado número de informações, sem saber distingui-las.

As revisões sistemáticas do Centro Cochrane são realiza-


das com a participação de aproximadamente 05 ou 06 profissio-
nais que fazem a pesquisa. O protocolo é submetido a 3 especia-
listas internacionais que fazem a revisão sobre a matéria, po-
dendo ou não aceitar o resultado.

A The Cochrane Library possui mais de 6 mil revisões sis-


temáticas completas e quase 3 mil protocolos, as quais sofrem
contínua atualização. Os diversos resultados são importantes
não apenas para as políticas públicas, mas também informar aos
pacientes e a familiares as possibilidades de tratamento e even-
tuais riscos. A pesquisa comparativa é importante para saber o
melhor tratamento.

As revisões sistemáticas, por apresentarem os mais ele-


vados graus de evidência, devem ser a procura primeira por
parte do pesquisador.

As fontes de evidências dividem-se em primárias e secun-


dárias. As fontes secundárias representam o resumo de evidên-
cias filtradas por qualidade e relevância, ou seja, o resumo das
fontes primárias. Por isso elas são mais importantes, porque
algum operador qualificado já fez a síntese da literatura, numa
revisão sistemática.

Nível 2 – O Ensaio Clínico Randomizado Mega Trial


(com elevado número de pacientes) estão no segundo nível hie-
rárquico das evidências.

Ensaios clínicos randomizados consistem em estudos


comparativos entre dois grupos de pacientes, distribuídos alea-
toriamente, submetidos a diferentes tratamentos para a mesma

221
moléstia. Um dos grupos, geralmente, recebe o novo tratamento,
ao passo que o outro grupo recebe um tratamento convencional
ou placebo. Nem os pacientes, tampouco os médicos que reali-
zam a pesquisa sabem quais pacientes receberam o novo medi-
camento, quais receberam placebo ou o medicamento conven-
cional. Por isso o teste é conhecido como duplo-cego.

Os grupos são acompanhados por um período de tempo


especificado e o desfecho previamente esperado (cura, redução
da mortalidade, redução de efeitos colaterais, por exemplo)
comparado com dados anteriores.

A pesquisa quanto aos ensaios clínicos randomizados po-


dem ser feitas nos mesmos instrumentos de busca antes men-
cionados, mas o nível de prova que ele resulta é inferior às revi-
sões sistemáticas. Por isto, as revisões são preferíveis aos ensai-
os clínicos randomizados. Entretanto, os ensaios mega Trial
representam também elevado nível de evidência, podendo ser
destacado pelo menos dois relevantes papéis. Primeiro, servem
base para as revisões sistemáticas, vez que as revisões são feitas
a partir de estudos anteriores (e de níveis mais baixos de evi-
dência). Segundo, na ausência de revisões, são os ensaios clíni-
cos randomizados mega trial as pesquisas científicas que devem
ser usados pelos profissionais da saúde com fundamento para
opções terapêuticas.

A Cochrane Library possui mais de 821 mil ensaios clíni-


cos controlados, o que auxilia em muito a pesquisa, dada a ele-
vada quantidade de dados, conferindo maior grau de certeza aos
cientistas e médicos. Via de conseqüências, as informações são
relevantes para os operadores do direito.

Nível 3 - O Ensaio clínico randomizado com baixo nú-


mero de pacientes está no terceiro nível de evidência, com pelo
menos um ensaio clínico randomizado. Em nada destoa do nível
anterior de evidência, mas o número reduzido de pacientes deve
ser considerado para fins do grau de evidência do resultado
apresentado.

222
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

Nível 4 – Estudos observacionais de Coorte é um estu-


do observacional de pacientes que possuem características se-
melhantes, os quais são divididos em grupos segundo sua maior
ou menor exposição a determinados fenômenos, com acompa-
nhamento do prolongado período. O nome coorte remonta às
legiões romanas, sendo por vezes usados como sinônimo de
estudo longitudinal ou de incidência192.

Há comparação de dois grupos de pacientes com trata-


mento diferente. Exemplo prótese de quadril nacional X impor-
tada. Comparam-se a evolução de dois grupos. Seria necessário
analisar da vida e das condutas da população tratada porque
isso pode interferir no resultado do tratamento, o que não é
feito. Por isso possui menor confiança.

Nível 5 - O Estudo de caso controle é um tipo de estudo


observacional onde os pacientes que possuem um determinado
desfecho são comparados com pacientes sem este desfecho, com
o propósito de determinar fatores que possam ter causado a
diferença entre os grupos.

Nível 6 - O Estudo de série de casos ou consecutivos são


relatos de diversos casos envolvendo vários pacientes, com o
intuito de informar um aspecto novo ou não amplamente conhe-
cido de uma doença ou terapia. São analisados vários tratamen-
tos realizados e os resultados obtidos.

Nível 7 – Por fim, a Opinião de especialistas, que é o


mais baixo grau de evidência, porque se funda exclusivamente
na avaliação de um especialista. O baixo grau de evidência de-
corre da humanidade do especialista, seja porque este pode

192
- NORDENSTROM, Jorgen. Op. cit., p. 51.

223
errar nas suas avaliações, seja porque ele pode sofrer influên-
cias externas ou até mesmo ter interesse no encaminhamento de
determinada opinião.

Os diferentes níveis de evidência não significam que aque-


les níveis mais baixos não tenham valor científico, mas apenas
que as provas existentes ainda não permitem conferir certeza na
assertiva firmada pelo nível inferior.

Novas descobertas de doenças ou de medicamentos quase


sempre terão seus primeiros estudos fundados na opinião de
especialistas, para depois serem conquistadas evidências supe-
riores. Doenças raras também dificultam a obtenção de evidên-
cias em mais elevados níveis porque há grande dificuldade de
realizar estudos comparativos, dada a raridade da moléstia e a
dificuldade de comparação de casos.

Assim, em casos raros ou novos, factível a utilização de


baixos níveis de evidência para a submissão do paciente ao tra-
tamento.

Ocorre que, do ponto de vista jurídico, a questão não pos-


sui o mesmo contorno. O baixo grau de evidência pode ser um
obstáculo para a judicialização de uma pretensão, vez que não
haverá a incorporação do tratamento/medicamento na política
pública, tampouco haverá certeza suficiente quanto à efetivida-
de, eficácia, eficiência e segurança a justificar a determinação
judicial de concessão do tratamento/medicamento não previsto
no programa oficial de terapêutica.

5.5. Como buscar as evidências

Existem estratégias para buscar evidências, a partir do


chamado PICO (Problema, Intervenção, Comparação e Desfe-
cho), nos bancos de dados sistematizados.

224
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

Existem muitos bancos de dados, mas é necessário saber


como consultar e quais as pesquisas adequadas, relativamente a
revisões sistemáticas, que são os mais elevados níveis de evi-
dências. Os principais deles para consulta são COCRHANE, LI-
LACS, PUBMED193 e INMASE.

O primeiro lugar de busca, porque possui um dos maiores


bancos de dados, deve ser o Centro Cochrane. Os demais bancos
referidos neste trabalho, entretanto, também apresentam traba-
lhos relevantes, que por vezes também devem ser pesquisados
para conferir maior certeza quanto ao resultado.

É indispensável que seja feita uma pergunta adequada pa-


ra obtenção de um bom resultado sobre as evidências buscadas,
especialmente no tocante à finalidade do medicamen-
to/tratamento pretendido.

Assim, se a pergunta é de diagnóstico, a melhor resposta


será de estudos sobre a acurácia. Se a pergunta versar sobre
tratamento, as respostas deverão ser encontradas nos ensaios
clínicos randomizados e revisões sistemáticas. No caso de prog-
nóstico, as respostas estarão nos Estudos coortes. E, se for profi-
laxias, nos ensaios clínicos randomizados deverão constar as
melhores indicações sobre existir ou não evidencias.

A estruturação da pergunta é fundamental para se obter


um resultado qualificado, motivo pelo qual é necessário adotar-
se a forma PICO, acima referida.

Como exemplo de pesquisa com fundamento na Medicina


Baseada em Evidências, adota-se o caso paradigma da jurispru-
dência nacional (Suspensão de Tutela Antecipada nº 175), para

193
- A pesquisa neste sítio eletrônico deve ser feita no seguinte endereço, onde já estão
selecionadas as revisões sistemáticas: http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/clinical.

225
verificar se a solução final com base em dados técnicos coincide
com a solução jurídica apresentada para a questão194.

Problema: Por exemplo, qual o melhor tratamento para o


tratamento da doença Neimann-Pick Tipo C195 para paci-
entes com idade inferior a 12 anos?

Intervenção: Qual o grau de evidência do medicamento


Zavesca (miglustat) para o tratamento?

Comparação: Comparar a utilização do referido trata-


mento com os tratamentos já propostos ou com placebo.
No caso específico do problema apresentado, não haven-
do tratamento previsto até então pelo Ministério da Saú-
de, não se exige que haja uma comparação mais efetiva.
Entretanto, por vezes será importante realizar a compa-
ração entre dois medicamentos, quando um deles estiver
indicado na política pública e a pretensão do pacien-
te/demandante objetivar tratamento diverso.

Outcome (Desfecho): Melhora ou retardamento da evolu-


ção da doença.

Utilizando a ferramenta da busca online da Cochrane Li-


brary196 (ou na publicação para brasileiros do Centro Cochra-
ne197), devem ser inseridos os diferentes vocábulos, tais como

194
- Importante consignar que não se pretende com o presente trabalho verificar se
houve acerto ou erro naquela decisão, especialmente do ponto de vista jurídico, mas
apenas analisar se há evidência médico-científico suficiente a justificar o pedido formu-
lado pelo paciente.
195
- A doença de Niemann-Pick tipo C é uma doença neurodegenerativa muito rara,
invariavelmente progressiva e eventualmente fatal, caracterizada por tráfego intracelu-
lar lipídico comprometido. As manifestações neurológicas são consideradas secundárias
à acumulação alterada de glicoesfingolípidos nas células gliais e neuronais.
196
- O acesso deve ser feito pelo site http://cochrane.bvsalud.org/portal/php/index.php
onde está acessível o inteiro teor dos estudos. No sítio original da cochrane library não
há acesso ao inteiro teor das publicações.
197
- http://cochrane.bireme.br/cochrane/main.php?lang=pt&lib=COC

226
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

zavesca (and miglustat) e neimann (and NP-C) para obtenção


dos resultados de pesquisa. A utilização da língua inglesa é ne-
cessária, porque nela é realizada a ampla maioria dos estudos,
embora já existam várias revisões sistemáticas trazidas para o
português. Por isso, para maior precisão quanto às informações,
serão transcritos os resultados no original.

O primeiro passo é acessar a página do Centro Cochrane


do Brasil, conforme imagem infra:

Nesta página há um local para acesso específico no Coc-


hrane Library, o qual é gratuito para os brasileiros, como infor-
mado anteriormente. Clicando neste acesso, haverá o redirecio-
namento para a seguinte página:

227
Acessando o “The Cochrane Library”, haverá acesso aos
campos de pesquisa, onde devem ser incluídos os termos que se
pretende buscar, no caso concreto, a doença específica e o medi-
camento (miglustat e Niemann-pick, respectivamente).

Importante considerar, ainda, que devem ser utilizados


vários termos para a pesquisa, porque esta será realizada no
interior do documento, como se verifica na seguinte imagem.

Também é possível verificar que foram encontrados 5 es-


tudos, sendo que o terceiro deles é um ensaio clínico randomi-
zado. Ausente uma informação de maior nível de evidência, co-
mo uma revisão sistemática, então deve ser escolhido o ensaio
clínico randomizado porque é o estudo com maior grau de evi-
dência disponível.

228
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

Em consulta no sítio eletrônico do Centro Cochrane é pos-


sível verificar que não existem revisões sistemáticas sobre o
problema, mas existem dois ensaios controlados e artigos sobre
o tema. Escolhendo o primeiro ensaio, surge a seguinte tela com
as informações:

229
As informações contidas nesta tela apresentam a seguinte
referência198:

Title Miglustat for treatment of Niemann-Pick C


disease: a randomised controlled study.

Authors Patterson MC, Vecchio D, Prady H, Abel L,


Wraith JE

Source The Lancet. Neurology

Date of publication 2007 Sep

230
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

Volume 6

Issue 9

Pages 765-72

Abstract BACKGROUND: Niemann-Pick type C disease


(NPC) is an inherited neurodegenerative
disorder characterised by an intracellular
lipid-trafficking defect with secondary accu-
mulation of glycosphingolipids. Miglustat, a
small iminosugar, reversibly inhibits
glucosylceramide synthase, which catalyses
the first committed step of glycosphingolipid
synthesis. Miglustat is able to cross the blood-
brain barrier, and is thus a potential therapy
for neurological diseases. We aimed to estab-
lish the effect of miglustat on several markers
of NPC severity.

METHODS: Patients aged 12 years or older


who had NPC (n=29) were randomly assigned
to receive either miglustat 200 mg three
times a day (n=20) or standard care (n=9) for
12 months. 12 children younger than 12 years
of age were included in an additional cohort;
all received miglustat at a dose adjusted for
body surface area. All participants were then
treated with miglustat for an additional year
in an extension study. The primary endpoint
was horizontal saccadic eye movement
(HSEM) velocity, based on its correlation with
disease progression. This study is registered
as an International Standard Randomised
Controlled Trial, number ISRCTN26761144.

FINDINGS: At 12 months, HSEM velocity had


improved in patients treated with miglustat
versus those receiving standard care; results
were significant when patients taking benzo-
diazepines were excluded (p=0.028). Children
showed an improvement in HSEM velocity of
similar size at 12 months. Improvement in
swallowing capacity, stable auditory acuity,
and a slower deterioration in ambulatory

231
index were also seen in treated patients older
than 12 years. The safety and tolerability of
miglustat 200 mg three times a day in study
participants was consistent with previous
trials in type I Gaucher disease, where half
this dose was used.

INTERPRETATION: Miglustat improves or


stabilises several clinically relevant markers
of NPC. This is the first agent studied in NPC
for which there is both animal and clinical
data supporting a disease modifying benefit.

Medical Subject Headings 1-Deoxynojirimycin[*analogs & deriva-


(MeSH) tives][therapeutic use]; Adolescent; Age
Factors; Analysis of Variance; Cohort Studies;
Deglutition[drug effects]; Double-Blind Meth-
od; Drug Administration Schedule; Enzyme
Inhibitors[*therapeutic use]; Niemann-Pick
Disease, Type C[*drug thera-
py][physiopathology]; Retrospective Studies;
Saccades[drug effects]; Severity of Illness
Index
Mesh check words: Adult; Child; Child, Pre-
school; Female; Humans; Male

Correspondence address Department of Neurology and Pediatrics,


Columbia University, NY, USA. patter-
son.marc@mayo.edu

Accession number PUBMED 17689147


DOI 10.1016/S1474-4422(07)70194-1

Publication type Clinical Trial; Journal Article; Randomized


Controlled Trial; Research Support, Non-U.S.
Gov't

ID CN-00697401

CLIB_SPECIFIC___________ MIGLUSTAT FOR TREATMENT OF NIEMANN


PICK C DISEASE A RANDOMISED CONTROLLED
STUDY

232
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

Numa tradução livre:

“A segurança e tolerabilidade do miglustat 200 mg, três


vezes por dia, em participantes do estudo era consistente
com estudos anteriores em tipo I da doença de Gaucher,
onde metade esta dose foi usada.

INTERPRETAÇÃO: Miglustat melhora ou estabiliza vários


marcadores clinicamente relevantes do NPC. Este é o
primeiro agente estudado em NPC para a qual existe tanto
de origem animal e dados clínicos apoiam um benefício de
modificação da doença.”

O artigo apresentado em primeiro lugar na mesma página


da pesquisa não discrepa da conclusão:

Miglustat for patients with niemann-pick disease type C


(Structured abstract)

Pichon Riviere A, Augustovski F, Garcia Marti S, Alcaraz A,


Glujovsky D, Lopez A, Rey-Ares L, Bardach A, Ciapponi A,
Urtasun M, Soto N, . Miglustat for patients with niemann-pick dis-
ease type C.: Institute for Clinical Effectiveness and Health Policy
(IECS) 2013. Institute for Clinical Effectiveness and Health Policy
(IECS)-

Record status

This is a bibliographic record of a published health tech-


nology assessment from a member of INAHTA. No evaluation of
the quality of this assessment has been made for the HTA data-
base.

Authors' conclusions

There is evidence of moderate methodological quality


based on a randomized study, one systematic review and case se-
ries with few patients showing that miglustat stabilizes or discrete-
ly improves neurological progression measured as speed of sac-

233
cadic movements and swallowing in Niemann-Pick disease type C
patients with neurologic manifestations. This was observed both
in children and in children above 12 years old. Given the chronic
and progressive neurodegenerative nature of the disease and its
low frequency, it is difficult to find evidence of high quality or with
important targets. In this type of diseases, stabilization or a de-
crease in disease progression are likely to be the expected objec-
tives for the long-term specific treatment of the disease.

URL for additional data: http://www.iecs.org.ar/iecs-visor-


publicacion.php?cod_publicacion=1562&familia=5&origen_public
acion=buscador

Language: Spanish

Original language title

Miglustat (Zavesca) en niños con enfermedad de niemann-


pick tipo C

Address for correspondence

Institute for Clinical Effectiveness and Health Policy,


Viamonte 2146 - 3 Piso, C1056ABH Ciudad de Buenos Aires, Ar-
gentina Tel: +54 11 49 66 00 82 Fax:+54 11 49 53 40 58

CRD database number

HTA-32014000250

Index terms

Subject index terms

Subject indexing assigned by NLM: Medical Subject Head-


ings (MeSH): 1-Deoxynojirimycin; Niemann-Pick Disease, Type C

CRD database number: HTA32014000250

234
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

A fim de confirmar o resultado obtido, possível a realiza-


ção de pesquisa em outra ferramenta. Uma boa opção é a pes-
quisa junto a PUBMED (http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed):

Conforme indicado pela seta, uma das ferramentas dis-


poníveis é a “Clinical Queries”, consistente numa pesquisa sobre
perguntas ou dúvidas clínicas. Acessando a próxima página,
obtêm a nova ferramenta de busca, devendo ser inseridos os
termos miglustat e niemann-pick, resultando as seguintes res-
postas:

235
Colhe-se da página acima que há 67 estudos clínicos sobre
os temas indicados, bem como 3 revisões sistemáticas, como
destacado em vermelho acima.

Ocorre que nenhuma das revisões sistemáticas apresen-


tadas tem por objeto o caso em estudo, porque, embora também
se referiam a estudos da mesma patologia, com o mesmo medi-
camento, as revisões sistemáticas em questão tem por objeto
apreciar diferentes questões, como se observa do próprio enun-
ciado das revisões.

Porém, há um ensaio clínico que parece auxiliar na pre-


sente pesquisa, porque refere-se a uma revisão quanto ao uso do
miglustat para a doença de Niemann-Pick tipo C.

Acessando ao estudo referido, chega-se ao resultado pre-


tendido:

236
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

Colhe-se a seguinte resposta, que confirma as informa-


ções anteriores199:

Miglustat: a review of its use in Niemann-Pick disease type C.

Lyseng-Williamson KA1.

Author information

Abstract:

Miglustat (Zavesca®, Brazaves®), a small iminosugar molecule that re-


versibly inhibits glycosphingolipid synthesis, is the only disease-specific
drug approved for the treatment of progressive neurological manifes-
tations of Niemann-Pick disease type C (NP-C) in adult and paediatric
patients. NP-C is a rare, autosomal-recessive lipid storage disorder
characterized by impaired intracellular lipid trafficking and progressive
neurological symptoms leading to premature death. In a randomized
clinical trial, long-term extension studies and a retrospective observa-
tional cohort study, treatment with oral miglustat stabilized key neuro-
logical manifestations of NP-C (including horizontal saccadic eye
movement peak velocity, ambulation, manipulation, language and

199
- http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/24338084

237
swallowing) in paediatric and adult patients with the disease. The ther-
apeutic effects of miglustat in stabilizing or slowing disease progres-
sion have been confirmed in other reports in the clinical experience
setting. The primary tolerability issues associated with miglustat are
mild to moderate gastrointestinal effects (e.g. diarrhoea, flatulence
and abdominal pain/discomfort) and weight loss, which usually occur
during initial therapy and are generally manageable. In the absence of
a cure, miglustat is a valuable agent to reduce the progression of clini-
cally relevant neurological symptoms in paediatric and adult patients
with NP-C, which is considered a significant achievement in the treat-
ment of this disease.

Em uma tradução livre, a informação obtida significa:

“Em um ensaio clínico randomizado, estudos de extensão de


longo prazo e de um estudo de coorte retrospectivo
observacional, o tratamento com miglustat bucal estabiliza
as manifestações neurológicas chave da NP-C (incluindo a
velocidade horizontal de pico os movimentos oculares
sacádicos, deambulação, manipulação, linguagem e
deglutição) em pediatria e pacientes adultos com a doença.
Os efeitos terapêuticos do miglustat em estabilizar ou
retardar a progressão da doença foram confirmados em
outros relatos da definição e experiência clínica. As
questões de tolerabilidade primárias associadas com
miglustat são ligeiros a moderados efeitos gastrointestinais
(por exemplo, diarréia, flatulência e dor/desconforto
abdominal) e perda de peso, que normalmente ocorrem
durante o tratamento inicial e são geralmente
administráveis. Na ausência de uma cura, miglustato é um
valioso agente para reduzir a progressão de sintomas
neurológicos clinicamente relevantes em pacientes
pediátricos e adultos com NP-C, que é considerada um feito
significativo no tratamento desta doença.”

238
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

Em resumo, todos os estudos acima transcritos concluí-


ram pela existência de evidencia científica quanto à utilização de
miglustat (zavesca) para o tratamento da doença de Neimann-
Pick tipo C (NP-C), inclusive para paciente com idade inferior a
12 anos. Referido medicamento, segundo os estudos, não permi-
te a cura da moléstia, mas implica em significante redução do
progresso da mesma.

Assim, a partir dos dados obtidos pela Medicina Baseada


em Evidências (MBE), é possível concluir que, do ponto de vista
médico-científico, a decisão proferida na STA 175 foi adequada,
porque o tratamento/medicamento pretendido possui suficien-
te grau de eficácia e segurança a justificar sua dispensação ao
paciente.

O exemplo acima permite verificar que a análise sobre o


uso de determinado medicamento, com base na Medicina Base-
ada em Evidências, abre uma nova perspectiva sobre o árido
tema da judicialização da saúde, permitindo que os profissionais
do direito inaugurem uma discussão técnica sobre as opções
médicas comprovadamente existentes para certas moléstias e,
principalmente, avaliar a eficácia e segurança do tratamen-
to/medicamento proposto.

5.6. O papel dos Núcleos de Apoio


Técnico – NAT’s

Daquilo que restou até aqui exposto, parece restar eviden-


te que a discussão sobre novas tecnologias de medicamentos
e/ou tratamentos é muito mais complexa que uma simples e
isolada prescrição médica está a indicar.

Esta realidade não pode deixar de ser conhecida pelos o-


peradores do Direito, especialmente pelo Poder Judiciário, para
decidir se o Estado (por vezes a saúde suplementar) deve ou não
fornecer aquilo que está sendo prescrito.

239
E, neste aspecto, não se está discutindo acerca sobre ser
devido ou não o fornecimento judicial fora das listas públicas.
Também não se está discutindo acerca dos custos dos medica-
mentos se a mesma decisão judicial fosse aplicada para todos os
outros pacientes que estivessem em situação análoga. Estas
questões, de ordem jurídica, administrativa e financeira passam
ao largo do presente estudo, embora relevantes, especialmente
para a elaboração da política pública200.

O que se propõe é que seja dado um passo adiante na dis-


cussão acerca da judicialização da saúde, para que aspectos téc-
nicos também sejam analisados, não podendo o Poder Judiciário
furtar-se ao seu exame sob o frágil argumento de que cabe ao
médico prescritor escolher aquilo que é melhor para o paciente.
Se este argumento não se sustenta no âmbito da saúde privada,
porquanto também o paciente deve participar das escolhas, com
ainda menor razão se sustenta frente ao direito fundamental à
saúde.

E, como acima exposto, para além daquelas situações que


já foram objeto de protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas
(e aquelas propostas de protocolos que foram administrativa-
mente rejeitadas, por falta de evidência), há ferramentas de
pesquisa à disposição de profissionais da área médica e do direi-
to para verificar se há, ou não, evidência científica de elevado
nível (de preferência uma revisão sistemática) a justificar o tra-
tamento/medicamento proposto.

200
- O exame do custo efetividade de das políticas públicas em geral, e da saúde de
modo especial, é importante elemento na elaboração destas políticas. Lesliee L. Subak
leciona que “A análise do custo-efetividade facilita a tomada de decisões difíceis quanto
a alocação de recursos disponíveis. Ao dar valores quantitativos a custos e efetividade, a
análise de custos-efetividade pode ajudar a identificar a menos dispendiosa de duas
estratégias com efetividades semelhantes, a identificar a mais efetiva das estratégias
com custos semelhantes ou comparar o custo por unidade de efetividade. Assim sendo,
as análises econômicas proporcionam informações que ajudam aos responsáveis pela
política pública de saúde a avaliar as alternativas e a decidir qual opção serve melhor a
suas necessidades” (FRIELAND, Daniel J. Medicina Baseada em Evidências – Uma estrutu-
ra para a prática clínica. Trad. Maria de Fátima Azevedo, Rio de Janeiro: Guanabara
Koogan, original publicado em 1998, p. 121).

240
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

Certo que a utilização destas ferramentas nem sempre é


fácil para quem não milita no campo da pesquisa científica, seja
por força do manejo do meio de pesquisa, seja em decorrência
da terminologia por vezes usada. Além disso, a variedade de
casos permite imaginar que situação singular venha a ser deba-
tida, sendo imprescindível o auxílio de profissional com maior
expertise sobre o tema.

Ciente de toda esta complexidade, o Conselho Nacional de


Justiça recomendou a todos os Tribunais do Brasil que instituís-
sem nos seus respectivos estados Núcleos de Apoio Técnico –
NATs, nos termos da sua Recomendação nº 31, que fixou prazo
até dezembro de 2010 para que os Tribunais de Justiça e Regio-
nais Federais celebrassem convênios com o de “disponibilizar
apoio técnico composto por médicos e farmacêuticos para auxiliar
os magistrados na formação de um juízo de valor quanto à apre-
ciação das questões clínicas apresentadas pelas partes das ações
relativas à saúde, observadas as peculiaridades regionais”.

Posteriormente, na I Jornada do Fórum Nacional de Sa-


úde, promovida pelo CNJ, foram aprovados dois enunciados201
que estabelecem a consulta ao NAT como ferramenta auxiliar e
prévia à decisão judicial:

Enunciado nº 18 - Sempre que possível, as decisões liminares sobre sa-


úde devem ser precedidas de notas de evidência científica emitidas
por Núcleos de Apoio Técnico em Saúde (NATS).

Enunciado nº 31 - Recomenda-se ao Juiz a obtenção de informações do


Núcleo de Apoio Técnico ou Câmara Técnica e, na sua ausência, de ou-
tros serviços de atendimento especializado, tais como instituições uni-
versitárias, associações profissionais etc.

201
- A existência de dois enunciados com finalidades semelhantes justificasse em face da
divisão de trabalhos realizada na I Jornada, sendo que o primeiro enunciado foi editado
sob o tema: saúde pública, ao passo que o segundo foi aprovado sob o tema: saúde
suplementar.

241
Tais enunciados reforçam a preocupação do Poder Judici-
ário quanto à qualidade da informação, a busca por mecanismos
que verifiquem não apenas a eficiência e efetividade do trata-
mento/medicamento, mas também a segurança. Diversos Comi-
tês Estaduais de Saúde também publicaram enunciados orien-
tando a utilização dos NATs para emissão de pareceres técnicos
prévios às decisões judiciais202.

Tratando-se de política pública de saúde, o tema está a e-


xigir a verificação das opções já instituídas como tratamento, as
quais somente podem ser afastadas a partir de comprovada
demonstração de indispensabilidade da alternativa buscada.

A certeza científica será possível colher da medicina base-


ada em evidências, em especial com os dados obtidos nos mais
elevados níveis científicos, como as revisões sistemáticas. Co-
nhecedor das técnicas da MBE, o operador do direito poderá
realizar buscas nos mecanismos de pesquisa, se a urgência do
caso o exigir. Mas, preferencialmente, deverá se socorrer de
parecer técnico de profissional do Núcleo de Apoio Técnico, ou,
na ausência de um NAT, nomear profissional especializado para
emitir parecer, o qual deverá prestar as informações pertinentes
com base na MBE.

202
- Exemplo disto são os enunciados do Comitê Executivo da Saúde de Tocantins, Minas
Gerais, de Santa Catarina, respectivamente:
“PROPOSTA (3) - Convém que magistrados, membros do Ministério Público e defensores
públicos, antes da apreciação de liminares, procurem posicionamento técnico, preferi-
velmente por órgão constituído circunstanciadamente para essa finalidade, notadamen-
te o Núcleo de Apoio Técnico (NAT), antes de adotarem medidas atinentes à área da
Saúde Pública, com o fito de impedir a utilização do Poder Judiciário para aquisição de
benesses impróprias”.
“3 – Recomenda-se que as tutelas de urgência sobre saúde sejam precedidas de notas de
evidência científica emitidas por núcleos de assessoramento técnico em saúde”
“Enunciado 8 – É necessária a apresentação de prova técnica fundamentada pela parte
autora para instruir a inicial e, se houver, o pedido de tutela antecipada em ação ajuiza-
da para obtenção de tratamento(s) – medicamentos, procedimentos, insumos e/ou
consultas médicas – não padronizado(s)/fornecido(s) pelo Sistema Único de Saúde-SUS,
recomendando-se o uso de questionário formulado por este Comitê Executivo e outros
disponibilizados no Portal da Saúde, no sítio da Corregedoria Geral de Justiça do Tribunal
de Justiça de Santa Catarina, acessíveis através do endereço
http://cgj.tjsc.jus.br/saude/index.htm. (Aprovado por unanimidade)”.

242
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

O NAT de Minas Gerais já produziu quase três centenas de


notas técnicas sobre diferentes temas da saúde, os quais se a-
cham à disposição para consulta203. Tais documentos funcionam
como fonte auxiliar de consulta para os diversos Núcleos de
Apoio Técnico existente em outros estados, mas evidentemente
não substituem as informações a serem obtidas junto aos orga-
nismos médicos especializados.

Muitos comitês executivos de saúde dos estados vêm ela-


borando alguns modelos de questionários204 a serem encami-
nhados aos profissionais do NATs de modo a orientar e facilitar
os trabalhos dos pareceristas. Tais questionários também ser-
vem como guia aos profissionais do direito quanto à instrução
de seus pedidos.

Informações sobre o paciente, seu histórico clínico, medi-


camentos que utilizou ou utiliza, exames que já se submeteu e
que indicam a moléstia, CID da doença, tratamen-
to/medicamento pretendido, pedido administrativo formulado à
Secretária de Saúde ou unidade de saúde, eventual resposta da
administração e dados relativos à Medicina Baseada em Evidên-
cias, além da prescrição médica e sua justificativa são elementos
essenciais a instruir os pedidos e possibilitar a emissão de um
parecer pelo NAT.

5.7. Considerações finais

A evolução da ciência médica e o surgimento de novas


tecnologias estão a exigir um constante acompanhamento por
parte de profissionais da saúde e da administração pública. A

203
- http://www.cnj.jus.br/programas-de-a-a-z/saude-e-meio-ambiente/forum-da-
saude/iniciativas-dos-comites-estaduais/iniciativas-do-comite-executivo-de-santa-
catarina/455-rodape/acoes-e-programas/programas-de-a-a-z/forum-da-saude
204
- Modelo de questionário do Comitê de Saúde do Estado do Paraná pode ser consul-
tado no site
http://www.amapar.com.br/images/N%C3%BAcleo_de_Atendimento_T%C3%A9cnico.p
df

243
dificuldade para realizar este acompanhamento freqüente fez
surgir, primeiramente no seio da própria comunidade médica e
depois na administração pública, a necessidade da edição de
protocolos e diretrizes a serem seguidas pelos profissionais da
saúde.

A adoção de protocolos clínicos e diretrizes terapêuticos


passou de uma política administrativa para um imperativo legal,
visando tornar a prestação dos serviços públicos de saúde mais
eficaz e segura, além uma prestação mais equânime. Além disso,
os protocolos funcionam como eficiente ferramenta para divul-
gação das melhores técnicas, de modo a orientar os profissionais
de saúde e os pacientes sobre os procedimentos adequados,
riscos, efeitos colaterais, posologia, entre outros dados que auxi-
liem na tomada de decisões. Também é importante meio para
consolidação das políticas públicas, porque os protocolos permi-
tem realizar previsões quanto a aquisição de medicamentos,
segundo a população a ser atingida.

A criação da CONITEC representa grande avanço na cria-


ção, revisão e revogação de PCDT, com a efetiva participação de
diversos segmentos sociais, seja pela presença de especialistas,
seja pelas audiências públicas prevista no procedimento admi-
nistrativo. Também desempenha esta comissão importante pa-
pel na revisão e atualização da Relação Nacional de Medicamen-
tos (RENAME).

Para a criação de protocolos, deve a CONITEC fundar seus


estudos na medicina baseada em evidências científicas, valendo-
se dos diferentes níveis de estudos para conferir maior certeza
das diretrizes propostas a partir dos mais elevados níveis de
evidencias.

A medicina baseada em evidência (MBE) é fundamental


ferramenta para a prática médica e para as escolha das políticas
públicas de saúde.

No que tange à prática médica, muitas universidades, es-


pecialmente estrangeiras, incluíram-na nos seus currículos
permanentes, de modo que os profissionais da saúde possam

244
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

fazer escolhas adequadas quanto à eficácia, efetividade e segu-


rança dos procedimentos escolhidos para seus pacientes, com
base em estudos científicos.

Quanto às políticas públicas, sua relevância restou reco-


nhecida pela Lei nº 12.401/2011 que a reconheceu como fun-
damento para que a CONITEC viesse a opinar pela incorporação,
ou não, de determinados medicamentos, tratamentos e OPME.

Em face da crescente judicialização da saúde, a MBE tam-


bém passou a ser importante instrumento para a solução das
questões trazidas ao conhecimento judicial, porque não basta
uma prescrição médica para conferir o direito ao medicamento.
Sem embargo de questões técnicas do direito, como o custo para
dispensação do medicamento para todos que estejam em situa-
ções semelhantes, existência de registro na ANVISA, existência
ou não de alternativa terapêutica, entre outras, há que restar
demonstrado como um dos requisitos indispensáveis ao direito
subjetivo a determinado tratamento que o mesmo esteja funda-
do em sólida evidência científica quanto a sua eficácia, eficiência
e segurança.

E este é o novo passo, no sentido de aprofundar a discus-


são sobre a judicialização da saúde. Os protocolos clínicos do
Ministério da Saúde e das Sociedades de Especialistas e, na sua
ausência, os estudos da MBE devem necessariamente integrar a
pauta de discussão do Poder Judiciário.

Ainda que alguns operadores do Direito tenham dificul-


dades para trabalhar com as ferramentas que se acham a dispo-
sição - seja pelas dificuldades para acessar os sites, ou para com-
preensão da língua estrangeira, ou ainda para compreensão com
precisão dos termos da técnica médica, o conhecimento da exis-
tência destes instrumentos permite que o problema seja ade-
quadamente delimitado, bem como seja formuladas as adequa-
das perguntas acerca do Problema, da Intervenção, da Compa-
ração e do Outcome (Desfecho).

245
Se bem colocada a moldura fática pelos operadores do di-
reito, será fácil encaminhar aos Núcleos de Apoio Técnico - NAT
a contextualização do problema e a resposta não tardará, por-
que não é necessário que se realizem perícias, mas apenas um
adequado parecer sobre o caso concreto. E, por sua vez, o pro-
fissional do NAT que vier subscrever o parecer, terá seu trabalha
facilitado pelos abalizados estudos que estas ferramentas possi-
bilitam o acesso.

246
Direito à Saúde - Análise à luz da judicialização

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