Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
ALM
DE P
(>
tvC
YT
h
;
i
V
(E aySAS,
AN
1
fé
Sa
Amos Tutuola
O bebedor de vinho
| de palmeira
e seu vinhateiro mortona
Cidade dos Mortos
Círculo do Livro
CÍRCULO DO LIVRO SA. )
Caixa postal 7413
São Paulo, Brasil
Edição integral
Título do original: “The palm wine drinkard and his palm
wine tapster in the Dead's Town”
Copyright 1952 Amos Tutuola
Tradução de Eliane Fontenelle
Capa de Claudia Scatamacchia
Licença editorial para o Círculo do Livro,
por cortesia da Editora Nova Fronteira S.A.
24681097531
| Desde menino, com dez anos de idade, eu já
ira bebedor de vinho de palmeira. Não fazia
jutra coisa senão beber vinho de palmeira. Na-
uela época não conhecíamos outro dinheiro a
ão ser o cauri, de maneira que tudo era muito
6
taído e o enterramos. Em seguida, voltamos
ara a cidade.
* No dia seguinte, logo de manhã cedo, já não
tinha vinho de palmeira para beber, e durante
"todo aquêle dia não me senti feliz como de
costume. Fiquei sentado em minha sala, pensa-
“tivo. No terceiro dia, sem ter nenhum vinho de
meira para beber, todos os meus amigos dei-
am de ir a minha casa, abandonando-me ali,
ozinho.
8
Is eu também era um deus e tinha os meus
us. Em seguida, disse para o velho (deus)
je estava procurando pelo meu vinhateiro que
à morrido em minha cidade algum tempo
ás. Ele porém não me respondeu, perguntan-
me primeiro o meu nome. Disse que me
hamava “Pai dos deuses”, que podia fazer tudo
ste mundo. Ele então indagou: “Isto é ver-
de?” Respondi que sim. Depois disto, man-
pu-me procurar o ferreiro dele, que ou estava
irando em uma outra cidade ou num lugar
conhecido, e trazer o objeto certo que ele
via encomendado. Acrescentou que, se fosse
az de trazer a coisa certa, ele então acredi-
ja que eu era o “Pai dos deuses que podia
er qualquer coisa neste mundo”, e me revela-
Fonde estava o meu vinhateiro.
Logo depois de ouvir a sua promessa, fui
ora. Mas, após ter viajado cerca de uma
3, usei um dos meus jujus e no mesmo ins-
te me transformei num enorme pássaro, e
i para o telhado da casa do velho. Porém,
juanto eu estava pousado no telhado, muitas
Boas se aproximaram para me olhar. Assim
o velho percebeu a quantidade de gente que
cava a sua casa e olhava para o telhado, ele
esposa foram ver o que estava acontecendo.
ando me viu (pássaro), ele comentou com a
Dsa que, se não tivesse me mandado até o
9
ferreiro para trazer o sino que ele encomenda-
ra, ele me pediria para dizer o nome daquele
pássaro. No momento em que falou isto, fiquei
sabendo o que ele queria e voei até a casa do
ferreiro. Chegando lá, disse que o velho (deus)
tinha me pedido para levar o sino que havia
mandado fazer. Ele então me entregou o sino, e
eu o levei para o velho. Quando me viram com o
sino, ele e a esposa ficaram surpresose atônitos.
Ele mandou a esposa me dar comida, e assim
que acabei de comer ele tornou a falar, dizendo
que ainda havia um outro trabalho para eu fa-
zer antes de me revelar onde estava meu vinha-
teiro. As quatro e meia da manhã seguinte, ele
(deus) me acordou e me entregou uma rede
grande e forte, da mesma cor da terra daquela
cidade. Ele me mandou ir até a casa da Morte
e pegá-la com aquela rede. Depois de andar uma
milha, deparei com um entroncamento deestra-
das e aí fiquei indeciso, pois não sabia qual
caminho tomar. Mas ao me lembrar de que era
dia de mercado, e que logo todos os fregienta-
dores estariam voltando para casa, deitei-me no
meio do entroncamento, colocando minha ca-
beça em direção a uma das estradas, minha mão
esquerda voltada para outra; a mão direita para
outra, e os dois pés apontados para as estradas
restantes, e fingi que havia adormecido ali.
Quando as pessoas que estavam voltando da
10
ra me viram deitado, gritaram: “Quem será
mãe deste bom rapaz que adormeceu no meio
lo enitroncamento com a cabeça na direção da
strada da Morte?”
* Em seguida, tomei a Estrada da Morte, e gas-
fei cerca de oito horas para chegar lá. E para
minha surpresa durante toda a viagem não en-
pontrei ninguém no caminhoe isto mefez sentir
medo. Quando cheguei à casa dela (Morte), ela
ão estava lá, estava em sua horta de inhame
ficava perto dali. Na varanda encontrei um
eno tambor que toquei para a Morte em
inal de cumprimento. Entretanto ao ouvir o
im do tambor ela (Morte) falou: “Este homem
ando tambor está vivo ou morto?” Respon-
11
soltassem, e na mesma hora fui libertado. Quan-
do vi que estava solto, eu também ordenei que
as ramas do inhame a soltassem e que as estacas
parassem de bater nela. E imediatamente ela
foi solta. Depois de libertada, veio para a sua
casa e me encontrou na varanda. Cumprimen-
tamo-nos e ela me convidou para entrar em sua
casa, deixando-me em um dos quartos. Pouco
depois, trouxe comida e comemos juntos, para
depois iniciar a seguinte conversa: Ela (Morte)
me perguntou de onde eu vinha. Respondi que
vinha de umacerta cidade não muito longe dali.
Depois me perguntou por que eu estava ali.
Expliquei que tinha ouvido falar muito dela,
tanto em minha cidade como pelo mundo todo,
e havia pensado comigo mesmo que algum dia
viria visitá-la e conhecê-la pessoalmente. Ela
disse que o seu trabalho era apenas matar as
pessoas do mundo. Logo depois, ela se levantou
e mandou que a seguisse, no que obedeci.
Mostrou-me a sua casa, a sua horta de inha-
me, os ossos de esqueletos humanos que ela
havia matado durante mais de um século, e
também me mostrou muitas outras coisas. Pude
observar que ela usava os ossos de esqueletos
humanos como carvão, e os crânios como tige-
las, pratos, copos, etc.
Ninguém morava perto dela ou com ela. Mo-
rava sozinha. Até mesmo os animais das matas
12
5 a ficavam bem afastados de sua
noite, quando eu quis dormir, ela me
regou uma grande coberta preta e um quar-
separado, para eu poder dormir sozinho. Ão
trar no quarto, encontrei uma cama feita de
humanos. Era uma cama tão terrível de
ar e de se dormir nela, que resolvi dormir
aixo dela, porque eu já conhecia os truques
Morte. Mas a cama era tão assustadora que
| debaixo dela eu fui capaz de dormir, com
o dos ossos humanos. Fiquei acordado a
E inteira. Para minha surpresa, por volta
duas horas da madrugada vi uma pessoa
indo cautelosamente em meu quarto, com
jesado pedaço de pau na mão. Ela se apro-
ju da cama na qual me havia mandado dor-
| golpeou com toda a força o centro da
“várias vezes. Em seguida, saiu procuran-
fazer barulho, e pensando que havia me
13
de milha, parei e cavei um buraco no meio da
estrada, do tamanho dela (Morte), colocando a
rede por cima dele. Em seguida voltei para
casa, e pude notar que ela não havia acordado
enquanto eu estava preparando essa armadilha.
Como de costume, às seis horas da manhã,
fui até o seu quarto e a acordei. Disse-lhe que
queria voltar para a minha cidade naquele mes-
mo dia, e que gostaria que ela me acompanhasse
até uma certa parte do caminho. Ela se levan-
tou da cama e começou a me conduzir, conforme
eu havia pedido. Ao chegarmos ao local onde
havia cavado o buraco, eu disse para sentar-
mos. Sentei-me na beira da estrada, mas quando
ela, sem perceber, se sentou em cima da rede,
caiu dentro do buraco. Sem nenhuma dificul-
dade, eu a entolei na rede e a coloquei na mi-
nha cabeça, continuando a andar em direção à
casa do velho que havia me dito para trazê-la
(Morte).
Enquanto eu a carregava pela estrada, ela
tentava com todo o empenho escapar ou me
matar; entretanto não lhe dei nenhuma opor-
tunidade de fazê-lo. Depois de ter viajado cerca
de oito horas, cheguei à cidade e fui direta-
mente para a casa do velho. Chegando lá, eu o
encontrei em seu quarto, chamei-o e contei que
tinha trazido a Morte, conforme ele havia pe-
dido. Quando ele me ouviu dizer que eu trou-
14
a Morte e a viu em cima de minha cabeça,
ju tão assustado que exclamou alarmado que
isava ser impossível alguém trazer a Morte
gua casa. Em seguida mandou-me levá-la
idiatamente de volta. E foi apressado para
iu quarto, fechando todas as portas e jane-
| Mas antes que ele pudesse fechar tudo, eu
Wei a Morte em frente à sua porta, e ao fa-
O a rede se partiu e ela conseguiu escapar.
)velho e a esposa então fugiram pela jane-
tomo também todos os habitantes daquela
E correram para salvar a própria vida,
nando ali todos os pertences. (O velho
que a Morte me mataria se eu fosse até
asa, porque ninguém poderia ir até lá e
jar com vida. Mas, àquela altura, eu já sa-
D golpe do velho.)
sim, desde o dia em que tirei a Morte
| casa, ela não teve mais nenhum lugar
ara morar ou ficar. E continuamos a ouvir
jome espalhado pelo mundo inteiro.
desta maneira que eu trouxe a Morte à
ia do velho que me prometera que, se
juxesse, ele me diria onde estava o meu
lor de vinho de palmeira, que eu esta-
turando antes de chegar àquela cidade.
m, O velho não pôde cumprir a sua pro-
porque ele e a esposa haviam fugido
da cidade.
|
16
* Eu não sabia que a filha dele havia sido leva-
ja por uma estranhacriatura do mercado.
| Estava pronto para recusar a ir procurar a
ja filha, quando me lembrei do meu nome e
fiquei envergonhado de não atender o pedido
fele. Então concordei em procurá-la. Nesta ci-
dade havia um grande mercado de onde a sua
ilha havia sido levada, e o dia da feira estava
ixado para cada quinto dia do mês. Todas as
jessoas daquela cidade e de todas as aldeias vi-
inhas, como também os espíritos e as estranhas
17
sar. Então certo dia ela foi ao mercado para
vender a sua mercadoria como de costume. Nes-
se dia viu a estranha criatura, porém não sabia
quem ela era, nem de onde viera, pois nunca a
havia visto antes.
18
lhecido. Enquanto ela o estava seguindo pela
strada, ele repetia para ela voltar para a sua
idade, mas a jovem não lhe dava ouvidos.
Quando o completo cavalheiro se cansou de
dizer para ela não o seguir e voltar para a sua
Sidade, ele deixou que ela o acompanhasse.
19
pagou e continuou andando. Quando chegaram
ao local onde tinha alugado o pé direito, ele o
arrancou, entregou-o ao dono e pagou O alu-
guel. Agora que ele havia devolvido os dois pés
aos respectivos donos, começou a rastejar pelo
chão. Aquela altura, a jovem já desejava voltar
vel
para a sua cidade e para seu paí, mas a terrí
e estranha criatura ou o completo cavalheiro
não permitiu que voltasse nem para a sua cida-
nte:
de nem para o seu pai. Ele disse o segui
« Antes de entrarmos nesta enormefloresta que
pertence apenasa terríveis e estranhas criaturas,
eu a avisei para não me seguir, mas você não
me ouviu; e logo que eu me transformei num
a
cavalheiro incompleto, você quer voltar. Agor
não poderá mais fazê-lo. E você ainda não viu
nada. Siga-me, apenas”.
Andaram mais um pouco e chegaram ao local
O
onde ele havia alugado a barriga, as costelas,
tórax, etc., e aí ele os arrancou, entregou ão
proprietário e pagou o aluguel.
Ágota restavam a esse cavalheiro, ou terrível
com
criatura, apenas a cabeça e os dois braços
,
o pescoço. Ele já não podia rastejar como antes
mas apenas pular como um sapo.
A jovem estava quase desmaiando diante
dessa assustadora criatura. Quando viu que cada
que
parte do completo cavalheiro era alugada e
come-
ele as estava devolvendo aos seus donos,
20
çou a se empenhar de todas as maneiras para
“voltar à cidade de seu pai, mas a terrível criatu-
não permitiu isto de forma alguma.
Ao chegar ao local onde havia alugado os
ois braços, ele os arrancou, entregou ao pro-
|prietário e pagou o que devia. Continuaram
22
“chão como se fossem mil tambores de gasolina
“rolando numa estrada de pedra. Depois de pre-
* sa, levaram-na de volta, colocando-a novamente
|sentada em cima do enorme sapo. Se o Crânio
* quea estava vigiando adormecesse,e se a jovem
“tentasse fugir, o cauri amarrado no seu pescoço
|Soatria um alarma tão alto, que o Crânio viria
“correndo do quintal até onde ela estava e per-
guntaria o que ela estava querendo com aquele
curioso e terrível som.
"A jovem não conseguia mais falar, porque
desde o momento em que amarraram o cauri
em seu pescoço ela tinha ficado muda.
2
do tinham informações de que seguira um com-
pleto cavalheiro do mercado. Como eu era O
“Pai dos deuses que podia fazer qualquer coisa
neste mundo”, à noite sacrifiquei uma cabra
em honra ao meu juju.
Logo de manhã cedo, mandei buscar quaren-
ta barris de vinho de palmeira, e depois de beber
tudo comecei a investigar sobre o paradeiro da
jovem. Sendo dia de feira, iniciei as investiga-
ções pelo mercado. Como eu era um homem
que possuía jujus, conhecia todos os tipos de
pessoas que frequentavam aquele mercado. Exa-
tamente às nove horas da manhã, chegou o com-
pleto cavalheiro a quem a jovem havia seguido,
e no momento em que o vi percebi que era uma
estranha e terrível criatura.
24
onde ele estivesse. E se por acaso eles atirassem,
a bomba não explodiria até que o cavalheiro
* saísse do local. Isto tudo por causa de sua bele-
* za. Desde o instante em que eu vi o cavalheiro,
não fiz nada além de segui-lo pelo mercado. De-
pois de observá-lo por muitas horas, corri para
* um canto e chorei durante alguns minutos, pen-
* sando comigo mesmo por que seria que eu não
“tinha nascido com a beleza desse cavalheiro.
Porém, ao me lembrar de que ele era apenas
“um “crânio”, agradeci a Deus por ter me criado
“sem beleza. Então voltei ao mercado, ainda
atraído por sua beleza. Quando o mercado aca-
INVESTIGAÇÕES NA CASA DA
FAMÍLIA DO CRÂNIO
| Já havíamospercorrido cerca de doze milhas,
juando o cavalheiro saiu da estrada principal e
ntrou numa floresta infindável. Eu, que o es-
va seguindo, mas não queria que ele perce-
se, usei um dos meus jujus e me transformei
um lagarto. Depois de termos viajado umas
nte e cinco milhas, ele começou a arrancar
25
do-as a
todas as partes do seu corpo, devolven
seus donos e pagando os aluguéis.
a mi-
Continuei a segui-lo por mais cinquent
entrou,
lhas até que chegamos a sua casa. Ele
havi a me trans-
e eu entrei atrás dele, já que
a que ele
formado em lagarto. A primeira cois
nte
fez ao entrar no buraco (casa) foi ir diretame a
e vê-l
ao local onde estava a jovem, e aí pud
sapo , com um cauri
sentada em cima de um
atrá s dela , um
amarrado ao pescoço. Em pé,
iro) ter-
Crânio a vigiava. Depois de ele (cavalhe
lá, foi
se certificado de que a jovem continuava
va tra-
para o quintal onde a sua família esta
balhando.
O MARAVILHOSO TRABALHO DO
ÍLIA
INVESTIGADOR NA CASA DA FAM
DO CRÂNIO
que
Depois de ter visto a jovem, e O Crânio
eu havia
a havia levado para aquela cova e que
a o quin-
seguido do mercado até ali ter ido par
num hom em, e
tal, transformei-me novamente
pod ia me
falei com a jovem; entretanto ela não
va numa
responder. Apenas me mostrou que esta
O Crânio
situação crítica. Naquele momento,
va dor min do.
quea vigiava com o apito esta
eu ajud ei a jo-
Para minha surpresa, quando
26
' vemaa selevantar do lugar onde estava sentada,
o cauri amarrado fez um barulho estranho. Ao
* ouvir o barulho, o Crânio acordou e soprou o
apito chamando os outros. Em seguida todos
| eles saíram apressados de onde estavam e nos
* cercaram. Ao me verem ali, um deles correu pa-
ita um buraco não muito longe, que era cheio de
28
falar, comer ou soltar o cauri preso no pescoço,
tujo barulho não deixava ninguém descansar ou
30
insformei novamente num homem e fui ao
onde ele havia atirado as folhas, apanhei-
retornei imediatamente para a casa.
| Ássim que cheguei, cozinhei as duas folhas
paradamente e dei para a jovem comer. Para
a surpresa, na mesma hora em que ela
a primeira folha começou a falar. Em
iguida, eu lhe dei a folha grande, e no momen-
|em que ela comeu o cauri que se encontrava
jarrado em seu pescoço se soltou sozinho,
arecendo no mesmo instante. Quando o
a mãe viram o trabalho maravilhoso que
havia feito, trouxeram-me cingiienta barris
vinho de palmeira, deram-me a jovem como
à € dois aposentos na casa, para eu ficar
ando com eles. E foi assim que eu salvei a
im do completo cavalheiro do mercado que
E tarde tinha ficado reduzido a um “crânio”.
aquele mesmo dia, ela se tornou minha
31
ci-
que eu estava querendo saber, eu saíria da
natu ral-
dade levando sua filha para longe, e
mente ele não queria se afastar dela.
Vivi três anos naquela cidade, e durante todo
o,
esse tempo eu mesmo preparei o meu vinh
quan-
mas é claro que não conseguia preparar a
tidade de que eu necessitava. Minha mulher
também me ajudava a carregar O vinho da fa-
ram
zenda para a cidade. Quando se completa
cia naqu ela
três anos e meio de minha permanên
cidade, observei que o polegar da mão esqu erda
e
de minha mulher estava inchado como se foss
uma bola, mas ela não sent ia nen hum a dor.
Certo dia, ela me seguiu até a fazenda onde eu
estava preparando vinho de palmeira. E para
u
minha surpresa, quando o polegar inchado toco
numa farpa da palmeira, estourou, € de repente
m
vimos um meninosair de dentro do dedo. Assi
falar cono sco
que ele acabou de sair, começou à
como se já tivesse dez anos de idade.
Rapidamente cresceu até a altura de três pés
oo
e algumas polegadas, e sua voz era forte com
barulho de alguém batendo num a bigo rna com
um martelo de aço.
A primeira coisa que ele fez foi perguntar à
e
sua mãe: “Você sabe o meu nome?” Ela diss
u para mim faze ndo
que não. Então ele se viro
a mesma pergunta, e a minha resposta também
foi negativa. Aí ele disse que o seu nome era
32
urrjir”, cujo significado era o seguinte: um
O que muito em breve iria se transformar
em alguma outra coisa. Ao saber disso, fiquei
profundamente assustado. Enquanto falava co-
josco, bebia o vinho de palmeira que eu havia
parado. E em cinco minutos já tinha bebido
ês ou quatro barris. Eu estava imaginando
à forma de deixar aquela criança na fazenda
fugir para a cidade. Todos tinham visto ape-
as o polegar da mão esquerda da minha mulher
hado, já que ela não havia, como as outras
ulheres, concebido a criança na parte certa de
à corpo. Mas enquanto eu estava pensando
bre isso, a criança pegou o último barril de
e bebeu pelo lado esquerdo da cabeça.
pis começou a caminhar em direção à cida-
| sem que ninguém anteslhe tivesse mostrado
al a estrada a seguir. Ficamos parados olhan-
enquanto ele seguia o seu caminho. Passado
jum tempo, tomamos o mesmo rumo, porém
D O vimos mais até chegarmos à cidade. Para
sa surpresa a criança entrou na casa em que
rávamos. Lá cumprimentou todos os que
ontrou, como se já os conhecesse, e foi logo
indo comida, no que foi atendido. A seguir
tou na cozinha e comeu tudo que encontrou.
forém, quando o homem que estava na co-
a viu que a criança havia comido todo o
ir que ele havia preparado, mandou que
33
não obede-
ela saísse de lá imediatamente; ela
homem.
ceu, e em vez disso começou à bater no
aquele
Essa criança extraordinária surrou tanto
que
homem, que ele mal podia enxergar, até
etanto,
saiu fugindo da cozinha. A criança, entr
continuava no mesmo lugar.
a
Quando as pessoas da casa viram o que havi
lutar
acontecido àquele homem, começaram à
ava no
com a criança. Enquanto ela lutava, atir
ran-
chão tudo que encontrava pela frente, queb
os anim ais
do em pedacinhos. Arremessou longe
a do-
domésticos, matando-os. Ninguém consegui e
miná-la. Pouco depois chegamos da fazenda,
de luta r e veio ao
ao nos ver a criança parou
nos
nosso encontro. Entramos na casa e ela
os seus
apresentou a todos dizendo que éramos
que
pais. Como ela havia comido toda a comida
o jant ar, com eça mos
tinha sido preparada para
fogo,
a cozinhar outra. Mas na hora detirá-la do
mes mo €s-
ela a apanhou e começou a comer, s
emo
tando muito quente. E, antes que pudéss
de
detê-la, já tinha devorado tudo. Tentamos
a, mas não foi pos-
todas as maneiras impedi-l
sível.
Era umacriança extraordinária, porque, mes-
ela os
mo se cem homens lutassem com ela,
sentava
surraria até que fugissem. Quando se
la.
numa cadeira, ninguém conseguia empurrá-
Era forte como aço, e se ficasse para da num
34
lugar, ninguém seria capaz de movê-la. Agora
Se tornara a soberana de nossa casa. Algumas
ezes ela nos mandava ficar sem comer o dia
do; outras vezes, de madrugada, nos levava
a longe da casa; e outras, nos mandava ficar
tados diante dela por mais de duas horas.
Como a criança era mais forte do que qual-
quer outra pessoa do local, ela começou a quei-
mar as casas dos chefes daquela cidade. Quando
s habitantes viram o que ela havia causado,
maram-me para discutir de que modo pode-
amos expulsá-la de lá, e eu afirmei que sabia
omo bani-la da cidade. Então, certa noite, à
ma hora da madrugada, quando ela estava dor-
pindo em seu quarto, espalhei gasolina na casa
! no telhado. Sendo tudo coberto de palha e
imbém por estarmos numa estação seca, con-
gui facilmente incendiar a casa. Fechei todas
yjanelas e portas que não haviam sido fecha-
3 quando ela foi dormir. Antes que ela pu-
sse acordar, o fogo já havia se espalhado, e
fumaça a impediu de fazer qualquer coisa a
u favor. E assim foi queimada junto com a
35
A CAMINHO DE UM LUGAR
DESCONHECIDO
36
para esperar e levá-lo conosco, mas, como não
obedecemos, ele ordenou que os nossos olhos
ficassem cegos, e no mesmo instante em que
ele falou deixamos de enxergar. Mesmo assim,
continuamos a andar. Vendo que não íamos
voltar, ele ordenou que parássemos de respirar,
e na mesma hora nos sentimos sufocados. Ão
notarmos que não podíamos respirar, voltamos
e o levamos conosco. Já na estrada, ele mandou
minha mulher carregá-lo na cabeça, e quando
estava sobre a sua cabeça começou a assobiar
como se fossem quarenta pessoas. Ao chegar-
* mos a uma aldeia, paramos para comprar comi-
* da de uma vendedora que encontramos por Já.
Mas no momento em que íamos comer, o meio-
* bebê não deixou, pegou a comida e engoliu
| tudo, como um homem engole uma pílula. A
| vendedora, vendo o que ele havia feito, fugiu
* assustada, deixando ali toda a sua comida. O
* nosso meio-bebê, percebendo que ela tinha dei-
| xado a comida, rastejou até lá e devorou tudo.
| E assim o meio-bebê não nos permitiu nem
mesmo provar a comida. Ao nos verem com o
meio-bebê, os habitantes daquela aldeia nos ex-
pulsaram de lá. Prosseguimos a nossa viagem, e
37
as
que tentamos comer à força, porém ele deu
acon te-
mesmas ordens que havia dado antes,
-
cendo tudo novamente. E por isso fomos força
nho.
dos, mais uma vez, a deixá-lo comer sozi
Quando as pessoas daquela cidade o viram
es-
conosco, nos expulsaram de lá dizendo que
távamos carregando um espírito, e que eles não
Então,
queriam nenhum espírito em suas terras.
cada vez que chegávamos a alguma aldeia ou
nos
cidade para comer ou dormir, os habitantes
se
expulsavam na mesma hora, pois a notícia
Agor a não po-
espalhara por todos os lugares.
pelas
díamos mais viajar pelas estradas, apenas
o
matas, pois todo mundo tinha sido informad
de uma mu-
sobre a existência de um homem e
es-
lher que, carregando um meio-bebê ou um
r para aban doná -lo e
pírito, procuravam um luga
então fugir.
,
Aquela altura estávamos morrendo de fome
s, tent ávam os
e, enquanto viajávamos pelas mata
m lugar
de todas as maneiras deixá-lo em algu
fazer isto.
e escapar, mas ele não nos permitia
as de
Depois de malograrmos em nossas tentativ
pelo
abandoná-lo em algum lugar, pensamos que
noite ; entr etan to,
menos ele deveria dormir à
desd e
ele nunca dormia. E o pior de tudo é que,
não dei-
que tínhamos começado a viagem, ele
o tiras se de
xara uma só vez que minha mulher
38
“cima da cabeça. Desejávamos desesperadamente
“dormir, mas ele não nos permitia fazer nada
“além de carregá-lo. Durante o tempo em que
ficou na cabeça de minha mulher, sua barriga
| cresceu tanto que parecia uma grande bola,isto
39
TRÊS BOAS CRIATURAS RESOLVEM
O NOSSO PROBLEMA: O TAMBOR,
A CANÇÃO E A DANÇÃ
40
* bebê entraram. Depois desse dia nunca mais
* vimoso nosso meio-bebê. Não queríamos entrar
naquele lugar, mas ao mesmo tempo não con-
* seguíamos parar de dançar.
| Ninguém neste mundo podia tocar tambor
como o Tambor tocava; ninguém podia dançar
“como a Dança dançava; e ninguém podia cantar
“como a Canção cantava. Às duas horas da ma-
'drugada, nos separamos dessas três maravilho-
gas criaturas. Então, depois de termos deixado
O nosso meio-bebê com estas criaturas, inicia-
mos uma nova viagem. Viajamos dois dias até
Mhegarmos a uma nova cidade, e lá descansamos
41
co para transportar os passageiros pelo rio. O
preço da passagem para adultos era de três
cents, e as crianças pagavam apenas meia pas-
sagem. À noite, eu me transformei novamen-
te num homem, e ao conferirmos o dinheiro
que havíamos ganho naquele dia, havia sete Ii-
bras, cinco xelins e três pence. Em seguida fo-
mos para a cidade, e compramos tudo de que
precisávamos.
Saímos de lá às quatro horas da manhã, antes
que os seus habitantes acordassem e descobris-
sem o nosso segredo. Chegando ao rio, fiz o
mesmo que fizera na véspera, e minha mulher
continuou com o trabalho de antes. Naquele dia
voltamos para casa às sete horas da noite. Fica-
mos um mês naquela cidade, continuando a fa-
zer sempre o mesmotrabalho, e ao conferirmos
o dinheiro que tínhamos arrecadado durante
aquele tempo havia cingienta e seis libras, onze
xelins e nove pence.
Então recomeçamos nossa viagem satisfeitos.
Mas, depois de percorrermos oitenta milhas,
começamos a encontrar salteadores de estrada,
e eles estavam nos causando muito transtorno.
Quando me apercebi do perigo que corria de
perder o nosso dinheiro e também nossas vidas,
entrei na mata. Mas viajar por ali era muito
perigoso, por causa das jibóias, que eram -in-
contáveis como areia.
42
y Disse então a minha mulher para pular nas
minhas costas com a nossa bagagem, e dei or-
dem ao meu juju, que me havia sido dado pela
Mulher Espírito da Água na Floresta dos Fan-
| tasmas (a história completa da Mulher Espírito
* da Água aparece no livro O caçador valente na
àFloresta dos Fantasmas), e ele me transformou
num enorme pássaro igual a um avião, e voei
“para longe com minha mulher. Depois de sair
da área perigosa, voei durante umas cinco horas
antes de descer, e aí continuamos o resto da
fiagem a pé. Naquele mesmo dia, às oito horas
la noite, chegamos à cidade na qual o pai
a minha mulher dissera que estava o meu vi-
43
mos dali, mas não encontramos nenhuma estra-
da ou caminho quelevasse à Cidade dos Mortos,
porque ninguém nunca ia para lá...
|
com tinta branca. Não tinha nem cabeça, nem
pés, nem mãos, comoos seres humanos, e tinha
um olho na parte superior do corpo. Media um
quarto de milha de altura e seis pés de diâme-
tro, parecendo uma coluna branca. No momen-
to em quea vi vindo em nossa direção, pensei
no que poderia fazer para detê-la. Foi aí que
me lembrei de um feitiço que meu pai havia
44
me ensinado antes de morrer. O feitiço era o
seguinte: se durante a noite eu encontrasse um
espírito ou uma outra criatura nociva e eu usas-
se esse feitiço, eu imediatamente me transfor-
maria num grande fogo e fumaça, e assim as
criaturas nocivas não conseguiriam me alcançar.
Então usei o feitiço, e ele queimou a criatura
branca. Mas antes que ela se queimasse comple-
* tamente, vimos umas noventa criaturas iguais
a ela, todas vindo em direção a nós (fogo). Ao
* chegarem perto do fogo (nós), nos cercaram,
“curvadas ou -abaixadas. Em seguida começaram
“a gritar: “Frio! Frio! Frio!” E continuaram
“em volta do fogo, não querendo mais ir embo-
“ra, apesar de não poderem fazer nada contra
nós (fogo). Estavam apenas se aquecendo e sen-
indo-se extremamente satisfeitas, e enquanto
permanecêssemos elas não se afastariam. Eu
a imaginado que, ao nos transformarmos
em fogo, estaríamos a salvo, mas não foi isto
O que aconteceu. Então achei que se começás-
nos a nos deslocar talvez elas fossem embora.
45
Não pensem, entretanto, que por nos termos
transformado em fogo não sentíamos fome. Na
verdade, apesar da transformação, estávamos
famintos, mas se voltássemos a ser pessoas no-
vamente essas criaturas teriam oportunidade de
nos matar, ou de nos fazer algum mal.
Continuamos a nos movimentar, mas, à me-
dida que nos deslocávamos, essas criaturas bran-
cas se moviam, sempre acompanhando o fogo.
Porém, quando saímos da mata fechada e entra-
mos num grande campo, elas voltaram para a
sua mata. Não sabíamos que essas compridas e
brancas criaturas estavam proibidas de ultra-
passar os limites de suas terras. E por isso,
apesar de estarem gostando do calor da foguei-
ra, elas não puderam entrar no campo, assim
como também as criaturas do campo não deviam
entrar na mata. E foi dessa maneira que nos
livramos das compridas e brancas criaturas.
Livres, retomamos a nossa viagem pelo cam-
po. Nele não encontramos nem árvores, nem
palmeiras, apenas um capim comprido e selva-
gem com aparência de milho. As folhas eram
peludas e as suas bordas afiadas como gilete.
Viajamos até cinco horas da tarde, e aí come-
çamos a procurar um lugar apropriado para
dormir até a manhã seguinte.
Enquanto procurávamos um lugar assim, vi-
mos uma casa de cupim, que parecia um grande
46
* guarda-chuva cor de creme, medindo três pés
* de altura. Então colocamos a nossa bagagem
'* debaixo dela e descansamos alguns minutos.
* Logo depois, pensamos em acender uma foguei-
| ta para cozinhar o nosso jantar, pois estávamos
* com muita fome. Como não encontramos ne-
* mhum galho seco por perto, fomos um pouco
mais adiante para apanhar pedaços de pau. No
caminho encontramos uma estátua ajoelhada.
* Tinha a forma de mulher e também era cor de
creme. Depois de recolhermos os galhos para
| acender a fogueira, voltamos para a Casa de
Re
47
salvarmos. Porém, enquanto fazíamos isto, as
criaturas do campo nos cercaram e nos prende-
as
ram como se fossem policiais. Nós então
do
acompanhamos, e a Casa de Cupim (o dono
mercado) debaixo da qual dormimos também
não
nos acompanhou. Vinha pulando, porque
à ca-
tinha pés, e sua cabeça era pequena, igual
beça de um bebê de um ano. Quando chegamos
ao local onde a estátua feminina estava ajoelha-
da, ela se levantou e também nos seguiu.
amos
Depois de andarmos vinte minutos, cheg
Já.
ao palácio, mas no momento O rei não estava
O palácio era uma velha casa arruinada e
tinha
que estava na maior desordem. Comoo rei
rara m cerca
saído, as criaturas do campo espe
nós
de meia hora até que elevoltasse. Quando
que ele
(minha mulher e eu) o vimos, achamos
esta va quas e que
próprio parecia um lixo, pois
folhas
completamente coberto de folhas secas e
rgar
verdes, de maneira que não podíamos enxe
rosto, etc. Ele
nem os seus pés, nem o seu
do
entrou, indo diretamente se sentar em cima
most rand o-no s a
lixo. Em seguida o seu povo,
amos inva-
ele, apresentou queixa de que haví
de
dido a sua cidade. Quando eles acabaram
dois
falar, o rei perguntou quem eram aqueles
ram que não tinh am
idiotas. Os súditos responde
am visto ante s
a menor idéia, pois nunca tinh
mulh er
esse tipo de criatura. Como nem minha
48
nem eu havíamos dito uma só palavra,eles pen-
saram que não podíamos falar. O rei então
| entregou a um deles uma vara pontuda para
* nos bater, achando que talvez assim falássemos;
e o criado fez o que o seu rei ordenara. Ele nos
* bateu impiedosamente e, ao sentirmos dor, co-
* meçamos a falar. Mas, ao ouvirem a nossa voz,
* eles riram tanto de nós, que pareciam bombas
* explodindo, e naquela noite ficamos conhecen-
* do o Riso. Quando todos já haviam parado de
à rir, o Riso continuou rindo por mais duas ho-
ras. Enquanto o Riso ria de nós, minha mulher
“e eu nos esquecemos de nossa dor e rimos com
“ele, porque ele emitia sons estranhos que jamais
tínhamos ouvido em nossas vidas. Não sabíamos
exatamente quando começamosa rir, mas está-
“vamos apenas rindo da risada do Riso. E nin-
guém que o ouvisse rir deveria rir junto com
Ele, porque se continuasse a rir com o próprio
Riso esta pessoa logo morreria ou desmaiaria de
tanto dar risada. Mas tir era a sua profissão, e
ele vivia disto. Em seguida começaram a implo-
ao Riso que parasse, porém ele não podia.
49
e-
ra”, obedecendo assim à ordem do rei. Entr
tanto eles não chegaram perto do “deus” por-
que ninguém podia fazê-lo e continuar vivo.
Depois de nos terem empurrado até lá e ido
co-
embora, eu, que era o “Pai dos deuses” e
nhecia todos os segredos dos “deuses”, falei
e
com esse deus de uma maneira toda especial,
nos guio u
então, em vez de nos fazer mal, ele
para fora daquele campo. O rei respirav a de
a um
cinco em cinco minutos, e enquanto falav
na-
vapor quente saía com toda a força de seu
riz, e a sua boca parecia uma gran de calde ira.
do
Foi assim que nos livramos das criaturas
campo.
A ILHA DO FANTASMA
a
Recomeçamos a nossa viagem em uma outr
s
mata, cheia de ilhas e pântanos. As criatura
eis, e assi m que
dessas ilhas eram muito amáv
ae
chegamos lá elas nos receberam com gentilez
O nom e
nos deram uma linda casa para morar.
to
dessa ilha era Ilha do Fantasma. Era mui
os
alta e inteiramente cercada por água. Todos
vam
seus habitantes eram muito gentis e ama
as
uns aos outros. O trabalho deles era apen
plantar o seu alimento, e além disso nada mais
do
faziam do que tocar música e dançar. Do mun
50
das criaturas estranhas eram as mais bonitas e
também os mais admiráveis dançarinos e músi-
cos. Tocavam e dançavam dia e noite. O clima
de lá era apropriado para nós, e resolvemos não
ir embora tão cedo. Começamos então a dançar
“ea fazer tudo o queessascriaturas faziam. Pela
| maneira como se vestiam, vocês pensariam que
' elas eram seres humanos, e que seus filhos esta-
vam sempre representando alguma peça de tea-
“tro. Tornei-me um fazendeiro e plantei muitos
| tipos de cereais. Certo dia, quando os cereais
| já estavam suficientemente maduros, vi um ter-
a
chegado ao lugar onde eu me encontrava, pron-
to para lutar comigo.
Então fiquei imaginando de que modo po-
deria escapar daquele horrível animal. O que
não sabia é que ele era o dono da terra onde eu
havia feito a minha plantação, e que naquele
momento crítico estava zangado porque eu não
lhe havia oferecido nada antes de começar a
plantar. Mas assim que compreendi o que que-
ria de mim, colhi alguns cereais e entreguei
a ele. Ao ver o que eu lhe havia dado, fez um
sinal para eu montar em suas costas, e eu obe-
deci. Então ele me levou até a sua casa, que
não ficava muito longe da fazenda. Ao chegar-
mos lá, ele se abaixou e eu desci. Em seguida
entrou na casa e voltou trazendo quatro se-
mentes de trigo, quatro sementes de arroz e
quatro sementes de quiabo, que me entregou.
Aí, voltei à fazenda e plantei tudo imediatamen-
te. Para meu espanto, as sementes germinaram
na mesma hora, e em menos de cinco minutos
cresceram e antes de dez minutos estavam ma-
duras. Então eu as colhi e voltei para a cidade
(a Ilha do Fantasma).
Depois de darem os seus últimos frutos, as
sementes secaram, aí eu as apanhei e as guardei
para marcarem o caminho da nossa viagem pela
mata.
52
| NÃO TÃO PEQUENOQUE NÃO POSSA
“SER ESCOLHIDO
| Naquele tempo havia muitas criaturas mara-
vilhosas. Certo dia, o rei da Ilha do Fantasma
| escolheu pessoas, espíritos e terríveis criaturas
“da ilha para ajudá-lo a colher o milho, cuja
| plantação tinha cerca de duas milhas quadradas.
Então uma bela manhã nos reunimos e fomos
“para a plantação de milho e limpamos tudo.
Em seguida, voltamos e dissemos ao rei que
* tínhamos terminado a colheita. Ele nos agrade-
“ceu e nos deu comida e bebida.
À verdade é que nenhuma criatura é peque-
'na demais para ser escolhida para trabalhar.
“Mas ainda não sabíamos disto quando saímos
da plantação. Acontece, porém, que uma peque-
na criatura que não fora escolhida pelo rei
a ido até lá e comandado todas as sementes
a crescerem novamente, dando a impressão
de que nós não havíamos feito a colheita.
| Era assim que ela falava: “O rei da Ilha do
Fantasma pediu ajuda a todas as criaturas da
lha e me deixou de fora, e sendo assim todas as
ementes devem crescer novamente. Vamos dan-
far ao som de uma banda na Ilha do Fantasma,
se a banda não puder tocar dançaremos ao som
e música melodiosa”.
' No momento exato em que a pequenina cria-
53
tura falou, as sementes cresceram dando a im-
pressão de que a plantação não era limpa há
uns dois anos. No dia seguinte, de manhã cedo,
o rei foi verificar o nosso trabalho, mas, para
sua surpresa, encontrou tudo comoantes. Então
ele voltou para a cidade e nos chamou para
perguntar se havíamosfeito a colheita. Respon-
demos que sim. Mas o rei disse que não está-
vamos falando a verdade. Então fomos todos
até o campo, e chegando lá vimos que estava
tudo realmente como o rei dissera. Aí come-
çamosa fazer uma nova colheita. Ao terminar-
mos, voltamos e avisamos ao rei que o serviço
estava pronto. Entretanto, quandoele foi até lá
para ver, encontrou o milho crescido comoan-
tes. Retornando à cidade, disse-nos que, tam-
bém daquela vez, não havíamos feito nada. En-
tão todos nós corremos para lá e vimos tudo
crescido. Aí, nos reunimos pela terceira vez e
colhemos o milho. Ao terminarmos o trabalho,
um de nós se escondeu na mata que havia perto
da plantação, e ficou vigiando. Meia hora de-
pois, esta pessoa viu uma criatura pequenina
como um bebê de um dia ordenando que as
sementes crescessem. Então a pessoa que estava
vigiando usou de toda a sua habilidade e con-
seguiu apanhar a criatura, levando-a para o rei,
que ao vê-la nos chamou ao palácio.
O rei perguntou-lhe por que estava coman-
54
dando as sementes de sua plantação para cres-
cerem novamente depois de serem colhidas. A
pequenina criatura respondeu que estava fa-
zendo isto porque não havia sido convocada
para ajudar no trabalho. E acrescentou que,
apesar de ser a menor entre todas as criaturas,
tinha o poder de comandar sementes. O rei ex-
plicou que o motivo de não tê-la chamado tinha
sido apenas puro esquecimento de sua parte, e
não por ela ser pequena.
Em seguida, o rei pediu desculpas, e ela se
retirou, Esta era uma pequenina criatura ma-
ravilhosa.
Depois de nós (minha mulher e eu) termos
completado um período de dezoito meses na-
quela ilha, eu disse aos seus habitantes que gos-
taríamos de prosseguir viagem, porque de outro
modo nunca chegaríamos ao nosso destino.
Comoeles eram muito generosos, deram para a
"minha mulher vários presentes caros. Arruma-
mos a nossa bagagem e logo de manhã cedo
“partimos. Todo o povo da Ilha do Fantasma
* nos levou numa grande canoa, cantando a can-
“ção do Adeus, enquanto remavam rio abaixo.
*Quando chegaram à divisa de sua cidade, eles
“pararam, e depois de descermos da canoa eles
“voltaram para a sua cidade, cantando uma linda
canção e dando adeus. Se pudessem, eles nos
ompanhariam até o final da nossa viagem,
55
na
mas estavam proibidos de pisar na terra ou
mata de outras criaturas.
Tínhamos gostado de tudo que havia na Tlha
muitas
do Fantasma, entretanto ainda faltavam
Con tin uam os então
outras etapas para cumprir.
lem-
a nossa viagem por uma outra mata, mas
nen hum a
brem-se de que por lá não havia
estrada.
mos
Percorridas umas duas milhas, começa
folhas
a observar que havia muitas árvores sem
com um nas
secas, galhos secos e lixo, como era
, e por
outras matas. Estávamos com muita fome
uma
isso colocamos nossos pertences debaixo de
urar por galh os seco s
árvore e começamos a proc
nada enco n-
para acender uma fogueira, mas -
ro agra
tramos. De repente sentimos um chei
cia
dável que se espalhava por toda a mata. Pare
pão e as-
que alguém estava preparando bolos,
tão bom , que, ao
sando aves ou carnes. Deus é
fica mos sa-
aspirarmos aquele cheiro agradável,
fome.
tisfeitos só com aquilo, não sentindo mais
e depois
Aquela mata era muito “gananciosa”,
hora deba ixo da
de estarmos sentados há uma
quen te que
árvore o chão começou a ficar tão
nha mos
não pudemos mais ficar ali. Então apa
nossa bagagem e prosseguimos viagem.
para-
Um pouco adiante vimos uma lagoa e
seco u dian te
mos para beber água, mas a água
mos com
dos nossos olhos, e assim continua
56
sede. Não encontramos por lá um único ser
vivo. Ao percebermos que o chão da mata era
muito quente para podermos ficar de pé, sen-
tados ou deitados, e que não gostava que nin-
guém permanecesse ali mais tempo do que o
necessário, resolvemos ir embora. Mas, à me-
dida que caminhávamos, tornamos a ver muitas
palmeiras desfolhadas, apenas com pequenos
pássaros no lugar das folhas. As palmeiras for-
mavam alas. A primeira a que chegamos era
muito alta, e quando nos viu começou a rir.
Então a segunda palmeira perguntou a ela de
que estava rindo; ela respondeu que acabara de
| ver duas criaturas vivas. E ao chegarmos à se-
* gunda palmeira,ela riu tão alto que uma pessoa
* que estivesse a cinco milhas de distância pode-
* ria ouvir. Então todas começaram à rir de nós
* € a mata se tornou tão barulhenta que parecia
* um grande mercado. Quando levantei os olhos
para olhar a parte mais alta das árvores, notei
*que tinham cabeças, e que essas eram artificiais.
'Falavam como seres humanos, apesar de usarem
uma língua estranha. Todas fumavam grandes e
(compridos cachimbos enquanto nos olhavam, e
é claro que não podíamos saber onde tinham
arranjado aqueles cachimbos. Elas nos achavam
muito estranhos pois nunca haviam visto seres
manos antes.
| Queríamos dormir, mas com aquele barulho
57
todo era impossível. Então, à uma e meia da
madrugada, saímos da Mata Gananciosa e en-
tramos numa floresta, onde dormimos até a ma-
nhã seguinte. Nada nosaconteceu durante aque-
la noite. Não havíamos comido desde o dia em
que partimos da Ilha do Fantasma, a mais linda
ilha do mundo dascriaturas estranhas. Ao ama-
nhecer, acordamos e acendemos o fogo para
cozinhar, e comemos. Porém, antes de acabar-
mos de comer, vimos os animais daquela floresta
correndo de um lado para o outro, perseguidos
por vários pássaros. Esses pássaros estavam co-
mendo a carne dos animais. Tinham cerca de
dois pés de comprimento, e os seus bicos, que
mediam cerca de um pé, eram afiados como
uma espada.
Então as aves começaram a devorar a carne
daqueles pobres animais, e em um segundo
abriram uns cinquenta buracos no corpo deles,
matando-os. Em seguida começaram a comer
os corpos, e não levaram mais de dois minutos
para acabar com eles. E assim que acabaram
de devorá-los começaram a caçar outros. Ven-
do-nos ali sentados, os pássaros nos olharam
ferozmente e atônitos. Quando me dei conta de
que eles poderiam nos atacar como haviam feito
com os animais, reuni folhas secas e ateei fogo
nelas. Joguei na fogueira o meu juju que me
fora dado por um amigo, umacriatura de duas
58
cabeças da Mata dos Espíritos, o segundo País
dos Espíritos. O cheiro do pó afastou por alguns
minutos os pássaros. Aproveitamos então para
irmos o mais longe que pudemos. Ássim que
anoiteceu, sentamo-nos debaixo de uma árvore
e pousamos a nossa bagagem no chão. Durante
a noite, sempre procurávamos uma árvore para
nos abrigar. Estávamosali pensando nos perigos
da noite, quando vimos o Espírito de Rapina.
Era grande como um hipopótamo, mas andava
em pé como um ser humano. Cada uma de suas
pernas tinha dois pés, e o triplo do tamanho
de seu corpo. Sua cabeça era igual à de um leão,
e todo o seu corpo coberto por duras escamas
que tinham o tamanho de uma pá ou enxada,
todas curvadas para dentro, Se o Espírito de
* Rapina quisesse pegar a sua presa, bastava sim-
plesmente ficar parado olhando para ela, sem
| precisar sair caçando por aí. Ele focalizaria bem
"a sua presa, fecharia os grandes olhos e, antes
* de abri-los novamente, ela já estaria morta, e
* teria sido arrastada até o lugar ondeele estives-
“se. Quando esse Espírito de Rapina chegou
perto do local onde nos encontrávamos, ficou
| parado a uma distância de oitenta jardas enca-
ando-nos com os olhos que lançavam um rio
luminoso da cor do mercúrio.
No instante em que essa luz brilhou sobre
'nós, sentimos um forte calor, como se tivésse-
59
mos nos banhado com água quente, e esse calor
fez minha mulher desmaiar.
Naquela altura, eu estava pedindo a Deus
que não permitisse que o Espírito de Rapina
fechasse os olhos, porque se ele assim fizesse
nós morreríamos. Mas Deus é muito bom e não
deixou que ele fechasse os olhos. Contudo eu
estava sentindo tanto calor por causa daquela
luz que emanava de seus olhos, que quase des-
maiei sufocado. Naquele momento, vi um búfalo
passando, e então o Espírito de Rapina fechou
os olhos e o búfalo morreu, sendo arrastado até
ele. Em seguida ele começoua devorá-lo. Aí tive
oportunidade de escapar, mas ao me lembrar de
que minha mulher tinha desmaiado olhei em
volta e vi uma árvore cheia de galhos. Então,
subi na árvore carregando-a nos braços, e deixei
a nossa bagagem lá embaixo. Fiquei surpreso
ao ver que o Espírito de Rapina havia devorado
o búfalo inteiro em apenas quatro minutos.
Logo em seguida ele lançou o seu raio luminoso
em direção ao lugar onde tínhamosficado sen-
tados, não encontrando nada além de nossa ba-
gagem. Com raio luminoso arrastou-a até ele,
mas ao abri-la nada encontrou para comer. De-
pois ficou esperando por nós até quase o ama-
nhecer, mas, percebendo que não podia nos
pegar, foi embora.
Cuidei de minha mulher durante a noite
60
| toda e pela manhã ela já estava boa. Então des-
cemos da árvore e continuamos a nossa viagem.
| Antes dascinco horas já tínhamossaído daquela
| mata. Foi assim que conseguimos nos livrar do
| Espírito de Rapina.
Entramos em outra mata, onde encontramos
“novas criaturas. Essa mata era menor e também
* diferente da que tínhamos deixado para trás.
* Encontramos também várias casas vazias e ar-
ruinadas há muitos séculos. Vimos uma estátua
“Sentada em cima de uma pedra. Tinha dois
grandes peitos com dois grandes olhos fundos
presos neles. Era terrivelmente feia de se olhar.
Continuamos a nossa caminhada por essa cida-
arruinada, e encontramos uma outra estátua
com um cesto cheio de nozes de cola. Aí apanhei
uma das nozes, mas para minha surpresa, na
mesma hora, ouvi uma voz gritando: “Não leve
ànoz! Deixe-a aí!” Porém, não dei atenção ao
ue falavam. Depois de apanhar a noz, conti- P
61
nos açoitar. Quando estávamos fugindo desta
criatura, entramos inesperadamente numa gran-
de estrada, e ao entrarmos o homem se afastou
imediatamente. Mas não sabíamos com certeza
se ele podia ou não viajar naquela estrada.
Esperamos uns trinta minutos, porque que-
ríamos ver alguém passar por ali, já que não
sabíamos que rumo deveríamos tomar. Contu-
do, durante esse tempo todo não passou nin-
guém, nem mesmo uma mosca.
Da maneira como a estrada estava lisa per-
cebemos que as pegadas não deixavam marcas,
e aí achamos que aquele deveria ser o caminho
que levava à Cidade das Criaturas Cruéis. À
cidade onde os seres humanos e outras criaturas
eram forçadas a entrar, e depois de estarem lá
dentro nunca mais conseguiriam sair porque os
seus habitantes eram muito cruéis e impiedosos.
62
estrada e acender uma fogueira. Ali comemos
a nossa comida e dormimos, e naquela noite
nada nos aconteceu. Acordamos ao amanhecer,
preparamos a nossa comida é comemos nova-
mente. Em seguida prosseguimos viagem, e até
" as quatro horas da tarde não havíamos encon-
| trado nem visto ninguém. Aí tivemos a certeza
* de que aquela era a estrada que levava à Cidade
*das Criaturas Cruéis. Fomos mais adiante e pa-
* ramos para dormir. Acordamos bem cedo e pre-
* paramos a nossa comida. Resolvemos andar um
pouco mais antes de sairmos da estrada.
"| No momento em que quisemos entrar à es-
* querda para continuar a nossa viagem em outra
“mata, não conseguimos nem dobrar, nem parar,
'nem voltar. Estávamos sendo arrastados em
eção à cidade. Tentamos de todas as manei-
parar, mas foi tudo em vão.
* Como conseguiríamos parar era a pergunta
que nos fazíamos à medida que nos aproximáva-
os da cidade. Foi aí que me lembrei de um
s meus jujus e ordenei que ele nos fizesse
parar, porém em vez disso começamos a nos
mover mais depressa ainda. Faltando apenas um
quarto de milha para chegar à cidade, vimos
am grande portão fechado atravessando a estra-
da, Ao chegarmos lá, paramos, mas não conse-
guíamos andar nem para a frente nem paratrás.
ficamos ali parados durante umas três horas,
63
e quando o portão se abriu fomos arrastados
para dentro da cidade sem saber quem estava
nos empurrando. Aoentrar, vimos criaturas que
nunca tínhamos visto antes na vida e eu não
posso descrevê-las aqui; no entanto posso contar
algumas de suas histórias: a cidade era muito
grande e repleta de criaturas estranhas, e tanto
os adultos como as crianças eram muito cruéis
com os seres humanos. Apesar disso, elas pro-
curavam encontrar novas maneiras para tornar
as suas crueldades ainda piores. No momento
em que entramos na cidade, seis delas nos se-
guraram firmemente e os outros ficaram nos
batendo, enquanto as crianças nos jogavam pe-
dras sem parar.
Essas estranhas criaturas faziam tudo errado.
Observamos que, se um deles quisesse subir
numa árvore, ele subiria na escada, antes de
encostá-la na árvore. Havia perto da cidade uma
planície, mas eles tinham construído as suas
casas na beira de um morro íngreme, e todas
elas haviam ficado inclinadas para baixo como
se fossem cair. As crianças estavam sempre ro-
lando das casas, porém os seus país pouco se
importavam com isso, Nenhumadessas criaturas
tomava banho, mas em compensação lavavam
os animais domésticos. Elas se cobriam com um
determinado tipo de folha, mas vestiam os seus
animais domésticos com roupas caras. Cortavam
64
as unhas dos animais, entretanto as suas fica-
vam sem cortar durante mais de cem anos. Mui-
tos dormiam em cima dos telhados das casas e
explicaram que não podiam usar as casas que
* haviam construído com as próprias mãos para
* outra coisa a não ser para dormir em cima delas.
A cidade era cercada por muros altos e pe-
| sados. Se algum ser humano entrasse ali por
* engano, as estranhas criaturas o pegariam e co-
| meçariam a cortar o seu corpo em pedacinhos.
* Algumas vezes, com uma faca afiada elas furta-
| vam os olhos das pessoas e assim as deixavam
“até que morressem de tanta dor. As seis cria-
turas que nos haviam agarrado estavam nos
levando até o rei. E durante todo o percurso,
“as outras criaturas e as crianças não paravam
“de nos bater e nos jogar pedras. Ao chegarmos
à entrada do palácio, deparamos com um sem-
número de criaturas que nos esperavam no por-
tão para nos bater. Após entrarmos fomos en-
tregues aos criados do rei. Estes nos levaram
até o seu amo. Do lado de fora, milhares de
aturas continuavam esperando por nós, ar-
nadas de pedaços de pau, facas, foices e outras
tmas de luta, enquanto as crianças carregavam
65
conseguido chegar até ali. Expliquei que a estra-
da havia nos arrastado contra nossa vontade.
Em seguida ele nos perguntou para onde está-
vamos indo. Respondi que estávamos indo para
a cidade onde se encontrava o meu vinhateiro
que havia morrido em minha cidade há algum
tempo atrás. Como eu já disse antes, essas es-
tranhas criaturas eram muito cruéis com quem
entrasse por engano em sua cidade, Depois de
eu ter respondido a todas as perguntas, O rei
mais uma vez repetiu o nome de sua cidade:
Cidade das Criaturas Cruéis. Ele explicou: “Uma
cidade onde vivem apenas os inimigos de Deus,
apenas criaturas cruéis, gananciosas e impiedo-
sas”. Em seguida mandou que os criados ras-
passem completamente nossas cabeças. Quando
os criados e as pessoas que estavam no portão
ouviram a ordem do rei, gritaram e pularam de
alegria. Deus é muito bom e não permitiu que
os criados nos levassem para o lado de fora do
palácio, do contrário as pessoas que estavam lá
teriam nos cortado em pedacinhos.
O rei entregou aos seus serviçais pedras las-
cadas para eles usarem como navalha. Então
começaram a raspar as nossas cabeças, mas as
pedras lascadas não cortavam como navalha,
apenas nos feriam. Depois de muito tentarem
sem nada conseguirem, o rei entregou a eles
cacos de garrafa quebrada, e foi desta maneira
66
| e usando de força que eles conseguiram cortar
alguns cabelos. O sangue os impedia de ver
direito o que estavam fazendo. Antes de come-
çarem aquele serviço, haviam nos amarrado com
fortes cordas a uma das pilastras do castelo.
Em seguida nos deixaram presos ali e foram
moer pimenta, e na volta esfregaram a nossa
cabeça com ela. Puseram fogo em um trapo gros-
so e o amarraram perto, quase encostando em
nós. Aquela altura, não sabíamos se estávamos
vivos ou mortos, e não podíamos nos defender,
porque nossas mãos e corpos estavam presos a
uma coluna. Meia hora depois eles apagaram o
fogo que haviam acendido, e recomeçaram a
* raspar nossas cabeças com casca de caracol, e
* elas continuavam a sangrar muito. As pessoas
* que haviam ficado aguardando no portão já ti-
nham retornado para suas casas, cansadas de
* tanto esperar.
| Mais tarde fomos levados para um enorme
* campo onde o sol era muito forte, e não havia
| nem árvores nem sombras, parecendo um cam-
* po de futebol. Ali eles cavaram dois buracos
“lado a lado, com uma profundidade que daria
| para uma pessoa ficar enterrada até o queixo.
nossas bocas, mas de um jeito que era impossí-
vel alcançá-la. Eles sabiam que estávamos mor-
rendo de fome. Com varas começaram a bater
em nossas cabeças, e nós, com as mãos presas,
não podíamos nos defender. Por último eles
trouxeram uma águia para, com o seu bico,
arrancar os nossos olhos. Mas ela ficou apenas
nos encarando, sem nos fazer nenhum mal. En-
tão todos voltaram para as suas casas e dei-
xaram-na ali conosco. Mas eu já havia domes-
ticado uma águia em minha cidade, de modo
queesta também não nos fez nenhum mal. Per-
manecemos nos buracos das três horas da tarde
até o amanhecer, e por volta das nove horas o
sol apareceu nos castigando violentamente. As
dez horas todos voltaram, acenderam uma gran-
de fogueira à nossa volta, bateram em nós du-
rante alguns minutos, e depois foram embora.
Porém, quando o fogo estava quase apagando,
as crianças vieram com chicotes e pedras e co-
meçaram a nosflagelar. Também pisaram, cuspi-
ram, urinaram e evacuaram em nossas cabeças.
Vendo que elas queriam nos arranhar com as
unhas, a águia, com o bico, carregou-as para
longe. Entretanto, antes de as pessoas (adultos)
irem embora, haviam marcado a hora em que
voltariam para nos ver pela última vez: cinco
horas da tarde do segundo dia de permanência
neste buraco. Mas Deus é tão bom que, às três
68
horas da tarde, mandou uma forte chuva que
durou até altas horas da noite, impedindo assim
que eles fizessem a sua última visita.
Choveu tanto que, à uma hora da madrugada,
a terra dos buracos havia amolecido. Quando a
águia viu que começávamos a cavar com as
unhas tentando sair, ela se aproximou e nos
ajudou cavando com as suas garras. O buraco
era muito fundo, e ela não conseguia cavar com
a rapidez que desejaria. Porém, ao balançar o
meu corpo de um lado para o outro, consegui
| sair e corri até a minha mulher puxando-a para
* fora. Em seguida fugimos dali apressados, e fo-
* mos para o portão principal da cidade. Infeliz-
* mente ele estava trancado, e, como toda a cidade
“era cercada por altos muros, tivemos que nos
“esconder numa mata que não era limpa há muito
“tempo. De manhã, as criaturas foram até o cam-
“po e não nos encontrando lá começaram a nos
procurar. Chegando próximo ao local onde está-
“vamos escondidos, naquela confusão, andando
de um lado para outro, elas apagaram as nossas
pegadas, e por isso pensaram que havíamos saí-
do da cidade.
* Como naquela região o sol era muito forte,
pdo o lugar secou rapidamente. As duas horas
a madrugada, quando todos dormiam, entra-
os cautelosamente na cidade e tiramos da fo-
feira algumas achas acesas. Todas as casas
69
s
eram cobertas de palha e muito próximas uma
,
das outras, e por isso, quando ateamos fogo
incendiaram-se imediatament e. Ante s que os
habitantes acordassem, noventa por cento deles
tinham sido completamente queimados, junto
com as casas, sendo que nenhuma criança con-
seguiu se salvar. Então, naquela noite, os que
tinham escapado ao incêndio fugiram escon-
didos.
Ao amanhecer, fomos até a cidade, onde não
encontramos mais ninguém, e aí matamos um
carneiro, assamos e comemos até ficarmos sa-
tisfeitos. Depois embrulhamos o que sobrou
para levarmos conosco. Em seguida, apanhamos
um machado e abandonamos a cidade deserta.
Chegando ao muro, fiz nele um buraco em for-
ma de janela e passamos por ali.
Foi assim que nos salvamos das estranhas
criaturas da Cidade das Criaturas Cruéis. Já bem
longe da cidade, julgando-nos a salvo das estra-
nhas criaturas, paramos e construímos uma pe-
quena casa onde ficaríamos algum tempo. Tinha
a forma de umaescada e era toda de palha. Para
ficarmos protegidos dos animais, etc., eu a cer-
quei com estacas. Comecei então a tratar de
minha mulher. Durante o dia, andava pela ma-
ta, caçando animais, colhendo frutas, e assim
nos alimentávamos. Com três meses de trata-
mento, minha mulher já estava recuperada. Cer-
70
to dia, porém, quando perambulava pela mata
à procura de animais, encontrei uma velha foice
cujo cabo de madeira estava comido pelos in-
setos. Então eu a peguei e a amarrei com fibra
de uma palmeira. Em seguida, afiei-a no chão
duro porque não encontrei nenhuma pedra.
Cortei um galho forte e comprido e o dobrei
em forma de arco, e com pequenos galhos fiz
setas e usei-as para nos defender. Depois de
estarmos vivendo havia cinco meses e alguns
dias naquela casa, achamos que voltar para a
cidade do pai de minha mulher seria perigoso
por causa das várias provações que encontra-
ríamos pela frente, e além disso àquela altura
não conseguiríamos mais encontrar o caminho
de volta. Voltar seria difícil e seguir adiante
| seria ainda mais, mas apesar disso resolvemos
prosseguir. Para um caso de emergência, levei
comigo o arco e as flechas, a foice e nada mais,
* porque na Cidade das Criaturas Cruéis nos ha-
* viam tomado todos os nossos pertences, que na-
* turalmente tinham sido queimados junto com
“as casas. Recomeçamos nossa viagem de manhã
" cedo, e estava um dia tão escuro que parecia
“que ia cair uma tempestade. Depois de umas
“sete milhas, paramos e comemos a carne assa-
“da que havíamos levado conosco. Retomamos
“nosso caminho, e ainda não havíamos percorri-
71
um grande rio que impedia a nossa passagem.
Não podíamos atravessá-lo porque era muito
fundo e notamos que não havia nenhuma canoa
ou coisa parecida para usarmos como transporte.
Ficamosali parados por alguns minutos, até que
decidimos seguir para o lado direito, sempre
acompanhando a margem do rio, achando que
assim talvez chegássemos ao seu final. Entre-
tanto, andamos mais de quatro milhas sem atin-
gilo. Então voltamos e começamos à caminhar
para a esquerda. Andamos cerca de seis milhas
sem também conseguir chegar ao seu final. E
aí paramos para pensar de que maneira pode-
ríamos atravessá-lo. Decidimos porém continuar
andando ao longo do rio, ainda achando que
poderíamos encontrar uma saída, ou então um
lugar seguro para descansar e dormir aquela
noite. Tínhamos caminhado cerca de um terço
de milha, quando vimos uma enorme árvore de
mil e cinquenta pés de comprimento e duzentos
pés de diâmetro. As folhas, os galhos, toda a
árvore era branca como se fosse pintada diaria-
mente com tinta. Estávamos a umadistância de
quarenta jardas, quando notamos que alguém
estava nos espreitando e focalizando como se
fosse um fotógrafo. Ao percebermos isto, co-
meçamos a correr para a esquerda, mas ele tam-
bém virou nesta direção. Então viramos para a
direita, mas ele também fez o mesmo. Focaliza-
72
va-nos o tempo todo sem que conseguíssemos
saber quem era. Víamos apenas aquela árvore
que seguia todos os nossos movimentos. Fugi-
mos apavorados. Mas na mesma hora, ouvimos
Uma terrível voz como se fossem várias pessoas
falando dentro de um grande poço. Olhamos
para trás e vimos duas grandes mãos saírem da
árvore e fazer um sinal de “Pare”, mas nós não
paramos. À voz repetiu: “Pare e venha cá”, mas
nós não obedecemos. Mais uma vez, com uma
voz estranha e forte, mandou-nos parar, e des-
ta vez cumprimos a ordem e olhamos para trás.
Ao virar para trás, olhamos para as grandes
mãos com medo, e quando elas fizeram um sinal
para irmos até lá, minha mulher e eu nos traí-
mos, porqueela apontou para mim e eu apontei
para ela. Depois minha mulher me forçou a ir
| primeiro e eu a empurrei na minha frente. En-
* quanto fazíamos isto, as mãos explicaram que
* nada daquilo adiantava, pois nós dois teríamos
“que entrar na árvore. Ao percebermos que nun-
ca havíamos visto antes em nossa vida uma ár-
vore com mãos e falando, nem mesmo na nossa
agem por aquelas matas, começamos a correr
ovamente. Para nossa surpresa, entretanto,
do que estávamos fugindo, as mãos se es-
deram e nos levantaram do chão. Fomos
vados para dentro da árvore, mas quando es-
73
távamos quase tocando a árvore vimos uma
enormeporta se abrir e foi por ela que entramos.
Antes de entrarmos na árvore branca, “ven-
demosa nossa morte” para alguém à porta, pela
quantia de setenta libras, dezoito xelins e seis
pa
74
Tg=
O TRABALHO DA MÃE-DEVOTADA
NA ÁRVORE BRANCA
75
estavam sempre dançando, sapateando no pal-
co, ao som de canções melodiosas. Também
cantavam suaves canções, não parando de dan-
çar até o amanhecer. Observamos que todas as
luzes eram coloridas e que mudavam de cor a
cada cinco minutos. Em seguida ela nos levou
ao salão de jantar e depois para a cozinha, onde
havia uns trezentos e quarenta cozinheiros ati-
vos como abelhas. Os aposentos da casa eram
todos ao longo do corredor, e seguimos até O
hospital. Lá encontramos muitos doentes em
seus leitos. Fomos entregues a um enfermeiro
para tratar de nossas cabeças raspadas pelos ha-
bitantes da Cidade das Criaturas Cruéis.
Permanecemos ali durante uma semana sob
tratamento até o nosso cabelo crescer novamen-
te, depois fomos procurar a Mãe-Devotada, que
nos deu um quarto.
71
Agora já não tínhamos mais a menor vontade
de prosseguir viagem. Para falar a verdade,
gostaríamos de ficar na Árvore Branca para
sempre.
Mas, certa noite, depois de estarmos moran-
do há um ano e duas semanas com a Mãe-Devo-
tada, ela nos chamou e disse que havia chegado
a hora de partimos e seguir nosso destino.
Quando falou isso, imploramos que nos deixas-
se ficar lá para sempre. Ela respondeu que não
tinha nenhum direito de deter ninguém por
mais de um ano e alguns dias, mas acrescentou
que se estivesse em seu poder ela atenderia o
nosso pedido. Em seguida, mandou-nos arrumar
nossa bagagem e disse para ficarmos prontos
para partir na manhã seguinte. Fomos para O
nosso quarto, e lembramos que iam recomeçar
os nossos tormentos. Naquela noite não fomos
ao salão e nem conseguimos pegar no sono. Re-
solvemos pedir à Mãe-Devotada para nosescol-
tar até o nosso destino. De manhã cedo, fomos
procurá-la e dissemos que estávamos prontos
para partir e que gostaríamos que ela nos guias-
se porque tínhamos medo das criaturas da mata.
Porém ela nos respondeu que não ia poder
atender este pedido, porque não podia atraves-
sar a fronteira. Entregou-me um revólver, mu-
nição e umafoice. Para a minha esposa ofereceu
muitas roupas e presentes de valor. E deu-nos
78
— ainda bastante carne assada, bebidas e cigarros.
| Depois, acompanhou-nos, mas o que nos cau-
| sou espanto foi que a árvore se abriu como se
|| fosse uma grande porta e, inesperadamente,en-
"| contramo-nos na mata. À porta se fechou no
| mesmoinstante e a árvore tomou a aparência de
uma árvore comum, que nunca poderia se abrir
daquela maneira. No momento em que vimos
que nos encontrávamos ao pé daquela Árvore
Branca, nós dois (minha mulher e eu) dissemos:
“Estamos novamente na mata”. Era como se
simplesmente uma pessoa dormisse em seu
* quarto e, ao acordar, se encontrasse dentro de
* uma grande mata.
Pegamos de volta o nosso medo com a pes-
* Soa que o tomara emprestado, e ela pagou os
“últimos juros. Em seguida fomos procurar a
| pessoa que comprara a nossa morte e pedimos
* que a devolvesse. Ela, entretanto, disse que não
“poderia fazê-lo, porque a havia comprado de
| nós, e que já nos havia pago. E por isso deixa-
* mos a nossa morte com o seu comprador, e
' Jevamos apenas o nosso medo. A Mãe-Devota-
à da nos guiou até o rio que não havíamos con-
“seguido atravessar antes de vermos a Árvore
Branca e entrarmos nela. No chão, ela apanhou
uma pequena vara do tamanho de um palito de
7fósforo e a jogou no rio, fazendo aparecer no
“mesmo instante uma estreita ponte que atra-
|
79
vessava o rio até a outra margem. Parada no
mesmo lugar, ela nos mandou passar para a
outra margem. Ao chegarmos ao outro lado, ela
estendeu a mão e tocou na ponte, e aí vimos
que, na realidade, a ponte era apenas uma pe-
quena vara. Depois ela começou a cantar e a
nos acenar, e nós fizemos o mesmo até que de
repente ela desapareceu. Foi assim que nos se-
paramos da Mãe-Devotada da Árvore Branca,
uma amigaleal de todasas criaturas.
Recomeçamos nossa viagem levando conos-
co o nosso medo. Porém em menos de meia
hora começou a chover torrencialmente. E esta
chuva nos castigou durante horas, pois não ha-
via naquela mata nenhum abrigo contra chuva
ou qualquer outra coisa. Minha mulher não po-
dia andar tão depressa como gostaríamos, e por
isso paramos e comemos a carne assada que a
Mãe-Devotada nos tinha dado. Descansamos
umas duas horas, para então retomarmos nosso
caminho. Enquanto andávamos pela mata, en-
contramos uma jovem vindo em nossa direção.
Assim que a vimos, tomamos outro rumo, mas
ela nos seguiu. Então paramos esperando que
se aproximasse e fizesse o que quisesse porque,
como havíamos vendido a nossa morte, não po-
deríamos morrer. Porém continuávamos a sen-
tir medo, pois não tínhamos vendido o nosso
medo. Ao chegar perto de nós, notamos que a
80
jovem usava um extravagante vestido comprido,
vários colares em volta do pescoço, sapatos de
salto alto prateados. Era alta como um galho
de dez pés de comprimento, e sua pele era ver-
melho-escura. Parou e perguntou para onde es-
távamos indo. Respondemos que estávamos in-
do para a Cidade dos Mortos. Ela quis saber de
onde vínhamos. Respondemos que estávamos
vindo da Mãe-Devotada na Árvore Branca. Em
seguida ela mandou que a acompanhássemos.
Ão ouvirmos isto, sentimos medo e a minha
mulher falou: “Ela não é nem um ser humano
nem um espírito, o que será ela?” Então come-
çamos a segui-la como ela havia mandado. De-
pois de viajarmos umas seis milhas, entramos
na Mata Vermelha. A mata era vermelho-escura,
como eram também as árvores, o chão e todas
as criaturas vivas daquele lugar. Assim que en-
tramos, minha mulher e eu ficamos vermelho-
escuros como tudo o mais, e minha mulher disse
" as seguintes palavras: “Isto traz medo ao cora-
ção, mas não é perigoso”.
81
mos à Cidade Vermelha e vimos que lá tanto
as pessoas como os animais domésticos eram
vermelhos. Entramos na maior casa da região
e, como estávamos com fome, pedimos à jovem
comida e bebida. Pouco depois ela nos trouxe
o que havíamos pedido, mas, para surpresa
nossa, tanto a comida quanto a água eram ver-
melhas como tinta vermelha. Contudo tinham
o gosto de comida e água comuns, e então co-
memos a comida e bebemos a água. À jovem
nos deixou ali e foi embora. As pessoas verme-
lhas se aproximavam e ficavam nos olhando
com espanto. Alguns minutos depois, a jovem
voltou e nos mandou segui-la. Levou-nos para
uma volta pela cidade mostrando-nos tudo. Em
seguida, conduziu-nos até o rei; que também
era vermelho como sangue. Ele nos cumpri-
mentou amavelmente, dizendo para sentarmos
à sua frente. Perguntou-nos de onde estávamos
vindo. Respondemos que estávamos vindo da
Árvore Branca, da qual a Mãe-Devotada tomava
conta. Ao ouvir isto, ele disse que a Mãe-De-
votada era sua irmã. Contamos como ela nos
havia ajudado. Depois ele quis saber o nome
da nossa cidade. Nósentão lhe informamos. Ele
perguntou se estávamos vivos ou mortos antes
de chegarmos ali. Dissemos que ainda estáva-
mos vivos e que não éramos mortos.
Em seguida ele mandou a jovem vermelha,
82
que nos havia levado até ele, nos instalar em
um dos quartos do palácio. Esse quarto ficava
muito afastado dos outros e não havia ninguém
ali por perto. Ao entrarmos no aposento, come-
çamos a pensar em qual seria a intenção do rei
vermelho do povo vermelho da Cidade Verme-
| lha. Esta era a pergunta que nos fazíamos, e
| não conseguimos dormir, pensando nisso.
De manhã cedo, fomos ao encontro do rei
vermelho e nos sentamos diante dele aguardan-
* do que iria dizer. Às oito horas, a jovem ver-
* melha chegoue se sentou atrás de nós. Então o
* rei vermelho começou a contar a história da
| “Cidade Vermelha, do povo vermelho e da Mata
| Vermelha: “Todos nós nesta Cidade Vermelha
| fomos, no passado,seres humanos. Isto, na épo-
| ca em que as pessoas tinham os olhos nos joe-
* lhos, e viviam curvadas e caminhavam paratrás
| e não para a frente, como nos dias de hoje.
* Então, certo dia, quando eu ainda era um ser
* humano, preparei uma armadilha numa deter-
| minada mata que ficava muito afastada de qual-
| querrio, e onde não havia nem mesmo um lago
por perto. Em seguida coloquei uma rede de
pesca dentro de um rio que ficava afastado de
“qualquer mata, e onde não havia nem um pe-
“daço de terra por perto. Ao amanhecer fui pri-
neiramente ao rio onde jogara a rede de pesca,
mas para o meu espanto encontrei preso na
rede um pássaro vermelho em vez de um peixe.
E este pássaro ainda estava vivo. Puxei a rede
trazendo junto o pássaro vermelho e o deixei
na margem do rio. Depois fui até a mata onde
havia preparado a armadilha para os animais,
e nela encontrei um enorme peixe vermelho,
ainda vivo, Levei a rede e a armadilha com o
pássaro vermelho e o peixe vermelho para a
minha cidade. Meus pais, vendo um peixe preso
na armadilha em vez de um animal da mata, e
na rede um pássaro em vez de um peixe, e que
ambos ainda estavam vivos, mandaram que eu
os levasse imediatamente de volta para o lugar
de onde os trouxera. Então, peguei tudo e co-
mecei a voltar.
Na metade do caminho parei à sombra de
uma árvore, acendi uma fogueira e joguei as
duas criaturas no fogo. Minha intenção era quei-
má-las completamente e voltar dali mesmo para
a minha cidade. Porém, para minha surpresa,
quando joguei as criaturas vermelhas na foguei-
ra, elas começaram a falar como seres humanos,
dizendo que eu não deveria fazer aquilo porque
nenhuma criatura vermelha deveria chegar per-
to do fogo. Ao ouvir isso, fiquei apavorado,
mas mesmo assim não lhes dei atenção. E en-
quanto eu as carregava dentro da rede e da ar-
madilha, elas continuavam afirmando que eu
não deveria jogá-las no fogo. Como não para-
84
vam de gritar, fiquei tão zangado que as joguei
à força. E, mesmo dentro da fogueira, continua-
vam dizendo que eu deveria tirá-las dali ime-
diatamente. Respondi que não ia fazer o que
elas queriam. Já parcialmente queimadas, con-
tinuavam a repetir as mesmas palavras. Atirei
mais galhos secos ao fogo, mas quando o fogo
se atiçou fui subitamente envolvido pela fuma-
ça, mal conseguindo respirar. Antes que pudes-
se me afastar dali, havia me tornado vermelho.
Vendo o que me havia acontecido, corri para
minha cidade e entrei em minha casa, mas a
fumaça que vinha me seguindo entrou atrás de
mim. Quando meus pais viram que eu estava
todo vermelho, quiseram me lavar, achando que
talvez assim o vermelho desaparecesse. Na hora
em que a fumaça entrou atrás de mim, todas
as pessoas presentes também se tornaram ver-
* melhas. Então fomos até o rei, que estava sen-
* tado em seu trono, para mostrar o que nos havia
acontecido. A fumaça, entretanto, não permitiu
que o rei falasse coisa alguma, espalhando-se
* por toda a cidade. E assim todas as pessoas, os
animais domésticos, a cidade, o rio e a mata
se tornaram vermelhos.
Vimos que de nada adiantava nos lavarmos
com água, que o vermelho não saía. E aí, no
“sétimo dia depois de termos nos tornado ver-
Elhos, nós e também nossos animais domés-
85
ticos morremos. Foi então que saímos daquela
cidade e nos estabelecemos aqui. Sendo porém
que nós, os nossos animais domésticos, os rios,
a cidade, a mata, continuávamos vermelhos co-
mo antes de morrer. E tudo que encontrávamos
no caminho ficava vermelho, e é por isso que,
desde aquela época, somos chamados de povo
vermelho e a nossa cidade de Cidade Vermelha.
Depois de estarmos morando aqui há alguns
dias, o peixe vermelho e o pássaro vermelho
vieram morar dentro de um grande buraco bem
perto desta região. Desde que essas criaturas
vieram para cá, uma vez por ano, quando elas
saem do buraco, temos que sacrificar um de nós
para salvar o resto do povo. E é por este mo-
tivo que ficamos muito satisfeitos de que vocês
tenham vindo para a Cidade Vermelha, justa-
mente agora que faltam apenas três dias para
estas duas criaturas saírem e exigirem o sacri-
fício anual. Ficaríamos muito gratos se um de
vocês oferecesse voluntariamente a sua vida
para essas duas criaturas.”
Depois de o rei nos contar esta história, e
terminar dizendo que um de nós deveria se
apresentar como voluntário para o sacrifício,
querendo ou não,eu perguntei a minha mulher
o queiríamos fazer agora. Porque eu não queria
deixá-la, e nem ela desejava me abandonar ali
sozinho, e nenhuma das pessoas vermelhas esta-
86
va a fim de sacrificar a vida. O rei desejava saber
a nossa resposta o mais rápido possível.
Minha mulher disse as seguintes palavras:
“Isto será apenas a breve perda de uma mulher,
uma curta separação entre o homem e o seu
amor”. Eu não entendi o significado de suas
palavras, pois ela estava falando por meio de
parábolas ou como um profeta. Pouco depois,
fui até o rei vermelho e concordei em sacrificar
a minha vida a estas duas criaturas vermelhas.
Ao me ouvirem dizer isto, o rei vermelho e as
pessoas vermelhas ficaram extremamente feli-
zes. O motivo de eu ter me oferecido como
voluntário foi porque me lembrei de que tinha
vendido a minha morte, e, sendo assim, seria
impossível a estas duas criaturas me matarem.
O que eu não sabia é que o povo vermelho pre-
tendia celebrar um ritual nativo para mim ou
| para qualquer outra pessoa que oferecesse a vida
* em benefício do seu povo. E este ritual seria
na véspera do dia em que as duas criaturas sai-
* riam do buraco.
Então as pessoas vermelhas rasparam a mi-
* nha cabeça e pintaram metade dela com tinta
| vermelha, e a outra metade de branco. Agrupa-
| ram-se à minha volta com os seus tocadores de
* tambor e os seus cantores. Mandaram-me dan-
“car, seguindo sempre o som dos tambores. Mi-
|nha mulher, que também os estava acompanhan-
87
do, nem parecia que em breve iria perder o
marido. Às cinco horas da manhã do dia em
que as duas criaturas deveriam sair do buraco,
eu peguei o meu revólver, a munição e a foice
que a Mãe-Devotada me havia dado. Carreguei
o revólver com a mais poderosa carga, guardan-
do-o no bolso; afiei a foice e a segurei firme-
mente com a mão direita. As sete horas da
manhã, o rei vermelho e todas as pessoas ver-
melhas me levaram para o local onde ficava o
buraco, e, deixando-meali à mercê das criaturas
vermelhas, voltaram para a cidade, que ficava
a menos de meia milha de distância.
Haviam feito aquilo porque sabiam que, se
aquelas duas criaturas encontrassem ali mais de
uma pessoa, esta também seria morta. Minha
mulher, entretanto, não retornou à cidade, es-
condendo-se por perto. Mas eu não estava sa-
bendo disso. Meia hora depois de estar parado
diante do buraco, comecei a ouvir um barulho
como se houvesse umas mil pessoas ali dentro;
e todo o lugar estava tremendo. Tirei o revól-
ver do bolso, e segurando-o firmemente olhei
para dentro. As duas criaturas vermelhas esta-
vam saindo de lá, mas não andavam lado a lado,
e sim uma atrás da outra. Quando a da frente
se aproximou, vindo em minha direção, pude
ver que era o peixe vermelho. Ao vê-lo, fiquei
tão apavorado que quase desmaiei. Mas aí me
88
lembrei de que tinha vendido a minha morte,
e que por isso não poderia morrer. Contudo,
continuava a sentir muito medo, pois não havia
vendido o meu medo. A cabeça do peixe pare-
cia com a cabeça de uma tartaruga, mas era
grande como a de um elefante. Tinha mais de
trinta chifres e enormes olhos em toda a sua
volta. Todos esses chifres eram abertos como
um grande guarda-chuva. O peixe não conseguia
andar, apenas se arrastava pelo chão como uma
cobra. Seu corpo era idêntico ao de um mor-
cego e todo coberto por longos cabelos verme-
lhos. Ele conseguia voar apenas uma curta dis-
tância, e, se gritasse, uma pessoa poderia ouvi-lo
mesmo estando muito longe. Os olhos em volta
de sua cabeça abriam e fechavam ao mesmo
tempo, como se alguém estivesse ligando e des-
ligando um botão.
Vendo-me ali parado, ele começou a vir em
minha direção, rindo como se fosse um ser hu-
' mano. E eu concluí que ele era realmente um
ser humano. Preparei-me e, quando faltavam
* apenas uns vinte pés para ele chegar onde eu
| estava, dei um tiro no meio de sua cabeça, e
antes de a fumaça se espalhar carreguei nova-
| mente o revólver, atirei, e ele morreu no mesmo
instante. Quando minha mulher, que estava es-
Condida, viu o peixe sair do buraco, correu para
cidade. Logo que eu o vi, soube que deveria
89
matá-lo, mas eu não possuía mais nenhum dos
meus jujus porque, de tanto serem usados, eles
haviam perdido o poder.
Em seguida, carreguei outra vez o revólver
para esperar a segunda criatura (pássaro ver-
melho). Passados cinco minutos, ele saiu do
buraco, e eu me preparei para matá-lo. À cabeça
do pássaro vermelho devia pesar uma tonelada
ou talvez até mais. Tinha seis dentes muito
grossos, de cerca de meio pé de comprimento,
que apareciam por fora do bico. Sua cabeça era
quase que inteiramente coberta de todos os
tipos de insetos, de modo que eu não posso
descrevê-lo por completo. No instante em que
me viu, abriu a boca e veio em minha direção
pronto para me engolir, mas eu já estava arma-
do para recebê-lo. E quando elê estava quase
chegando onde eu me encontrava, parou e en-
goliu o peixe vermelho que eu já tinha matado.
Depois voltou-se para mim, e aí acertei-lhe o
primeiro tiro. Novamente carreguei o revólver,
atirando para matar.
Ao ver que havia liquidado as duas criaturas
vermelhas, lembrei-me do que minha mulher
me havia dito ao encontrarmos a jovem verme-
lha. Ela falara o seguinte: “Isto traz medo ao
coração, mas não é perigoso”.
Fui então até o rei vermelho da Cidade Ver-
melha e lhe contei que tinha matado as duas
90
| criaturas vermelhas. Assim que acabei de falar,
ele se levantou da cadeira e me acompanhou
até o local onde se encontravam os corpos. Cer-
tificando-se de que estavam realmente mortas,
o rei falou: “Eis aqui uma outra criatura peri-
gosa e nociva que no futuro poderá arruinar a
minha cidade”. (Ele estava me chamando de
criatura perigosa e nociva.) Depois de dizer isto,
deixou-me ali sozinho, voltando para a cidade.
Lá reuniu todos os habitantes e contou-lhes o
que tinha visto. Como as pessoas vermelhas
podiam se transformar no que desejassem, an-
tes que eu chegasse à cidade, já haviam se trans-
formado numa enorme fogueira que queimou
todas as suas casas e todos os seus pertences.
Durante o incêndio, não consegui entrar na ci-
dade, por causa da espessa fumaça. Mas assim
que o fogo e a fumaça sumiram, fiquei imagi-
nando que tanto eles como minha mulher ba-
viam morrido queimados. Estava ali parado,
olhando para a cidade vazia, quando vi apare-
cerem duas árvores vermelhas. Uma era mais
baixa e também mais fina do que a outra, e
estava à frente da maior. A árvore maior, que
estava ao fundo, tinha muitas folhas e galhos.
' Vendo-as, tentei aproximar-me, mas elas se
“afastaram para o lado oeste antes que eu pu-
| desse alcançá-las. As folhas dessas árvores can-
| tavam como se fossem seres humanos. Conti-
2
nuaram a se afastar e, cinco minutos depois, não
consegui mais enxergá-las. O tempo todo eu
ignorava que aquelas duas árvores eram as pes-
soas vermelhas que assim se tinham transfor-
mado. Comecei a procurar incansavelmente por
minha mulher, que tinha desaparecido com o
povo vermelho. Certo dia, obtive a informação
de que ela estava junto com as pessoas verme-
lhas que se haviam transformado em duas árvo-
res vermelhas, antes de saírem da Cidade Ver-
melha. Então medirigi para o lugar onde ouvira
dizer que eles se tinham instalado. A nova
cidade ficava a oitenta milhas da Cidade Verme-
lha que eles haviam deixado em completa ruína.
Viajei dois dias até chegar ao local que me ha-
viam indicado. Porém fugiram ao saber que eu
estava indo para lá. O que ignorava é que eles
haviam partido porque pensavam que eu os
mataria da mesma maneira que havia matado
o peixe e o pássaro. E agora eles procuravam
local mais seguro para morar. Entretanto, eu
os encontrei antes que chegassem a tal lugar.
Pensava vê-los em forma de criaturas, mas ago-
ra eles eram duas árvores vermelhas.
Encontrei-os no meio do caminho. Minha
mulher, que me havia visto, estava me cha-
mando. Mas, como eu não podia enxergá-la,
continuei a seguir as duas árvores durante uma
semana. Finalmente eles encontraram um lugar
92
adequado e pararam. Mas euainda estava muito
distante deles. E, quando cheguei, encontrei o
lugar repleto de casas, pessoas, animais domés-
ticos, etc., exatamente como a cidade anterior
que eles haviam incendiado antes de partir. Fui
diretamente ao rei vermelho (o mesmo rei), e
disse que eu queria minha mulher, e no mesmo
momento ele mandou chamá-la. Ao me ver, ela
repetiu as palavras que dissera antes: “Isto será
apenas a breve perda de uma mulher, uma
curta separação entre o homem e seu amor”.
Só então entendi o que ela havia querido dizer
com aquelas palavras. Agora, instalados nesta
nova cidade, eles não eram mais vermelhos, por-
que eu matara as duas criaturas vermelhas que
os haviam tornado daquela cor.
Minha mulher havia feito a seguinte observa-
ção a respeito da jovem que encontráramos:
“Ela não é um ser humano nem um espírito, o
que será ela?” Ela era a árvore vermelha menor
que estava à frente da árvore vermelha maior,
e a árvore vermelha maior era o rei vermelho
| do povo vermelho da Cidade Vermelha e da
Mata Vermelha.
Minha mulher e eu nos tornamos amigos
dessas pessoas e ficamos morando com elas na-
* quela nova cidade. Depois de alguns dias, a
| jovem que nos levara para a cidade anterior
* (Cidade Vermelha) deu-nos uma grande casa,
93
nuaram se afastar e, cinco minutos depois, não
consegui mais enxergá-las. O tempo todo eu
ignorava que aquelas duas árvores eram as pes-
soas vermelhas que assim se tinham transfor-
mado. Comecei a procurar incansavelmente por
minha mulher, que tinha desaparecido com o
povo vermelho. Certo dia, obtive a informação
de que ela estava junto com as pessoas verme-
lhas que se haviam transformado em duas árvo-
res vermelhas, antes de saírem da Cidade Ver-
melha. Então me dirigi para o lugar onde ouvira
dizer que eles se tinham instalado. A nova
cidade ficava a oitenta milhas da Cidade Verme-
lha queeles haviam deixado em completa ruína.
Viajei dois dias até chegar ao local que me ha-
viam indicado. Porém fugiram ao saber que eu
estava indo para lá. O que ignorava é que eles
haviam partido porque pensavam que eu os
mataria da mesma maneira que havia matado
o peixe e o pássaro. E agora eles procuravam
local mais seguro para morar. Entretanto, eu
os encontrei antes que chegassem a tal lugar.
Pensava vê-los em forma de criaturas, mas ago-
ra eles eram duas árvores vermelhas.
Encontrei-os no meio do caminho. Minha
mulher, que me havia visto, estava me cha-
mando. Mas, como eu não podia enxergá-la,
continuei a seguir as duas árvores durante uma
semana. Finalmente eles encontraram um lugar
92
adequado e pararam. Maseu ainda estava muito
distante deles. E, quando cheguei, encontrei o
lugar repleto de casas, pessoas, animais domés-
ticos, etc., exatamente como a cidade anterior
que eles haviam incendiado antes de partir. Fui
diretamente ao rei vermelho (o mesmo rei), e
disse que eu queria minha mulher, e no mesmo
momento ele mandou chamá-la. Ao me ver, ela
repetiu as palavras que dissera antes: “Isto será
apenas a breve perda de uma mulher, uma
curta separação entre o homem e seu amor”.
Só então entendi o queela havia querido dizer
com aquelas palavras. Agora, instalados nesta
nova cidade, eles não eram mais vermelhos, por-
que eu matara as duas criaturas vermelhas que
os haviam tornado daquela cor.
Minha mulher havia feito a seguinte observa-
ção a respeito da jovem que encontráramos:
“Ela não é um ser humano nem um espírito, o
que será ela?” Ela era a árvore vermelha menor
que estava à frente da árvore vermelha maior,
e a árvore vermelha maior era o rei vermelho
do povo vermelho da Cidade Vermelha e da
| Mata Vermelha.
Minha mulher e eu nos tornamos amigos
dessas pessoas e ficamos morando com elas na-
quela nova cidade. Depois de alguns dias, a
* jovem que nos levara para a cidade anterior
(Cidade Vermelha) deu-nos uma grande casa,
93
onde passamos a morar confortavelmente. “Ela
não era um ser humano e também não era um
espírito, o que seria ela?” Ela era também a
Dança (a jovem que nos levara para a Cidade
Vermelha), e vocês certamente se lembram de
quando mencionei as três criaturas: Tambor,
Canção e Dança. Então, quando esta jovem
(Dança) viu que eu os ajudara enormemente e
que o seu povo estava vivendo num lugar con-
fortável e que não eram mais vermelhos, man-
dou chamar os outros dois companheiros (Tam-
bor e Canção), para uma ocasião especial, De
que maneira poderíamos nos divertir com essas
três criaturas? É que ninguém neste mundo to-
cava tambor como o Tambor tocava; ninguém
cantava como a Canção cantava; e ninguém dan-
cava como a Dança dançava. E quem poderia
competir com eles? Ninguém! Quando chegou o
dia marcado para essa ocasião especial, os dois
companheiros chegaram e, no momento em que
o Tambor começou a tocar, todas as pessoas
que estavam mortas há centenas de anos ressus-
citaram e vieram ouvir o Tambor. Quando a
Canção começou a cantar, todos os animais da
mata, cobras, etc., aproximaram-se para ouvir
de perto a Canção. E assim que a Dança (a jo-
vem) começou a dançar, todas as criaturas da
mata, espíritos, criaturas da montanha, e tam-
bém criaturas do rio, vieram à cidade para vê-la
94
dançar. E quando as três criaturas começaram
a se movimentar juntas, o povo da novacidade,
as pessoas que se haviam levantado de seus tú-
mulos, os animais, as cobras, os espíritos, e
outras criaturas desconhecidas, dançaram jun-
to com elas. Foi nesse dia que vi cobras dan-
cando mais do que seres humanos ou qualquer
outra criatura. Depois que todos os habitantes
daquela cidade e as criaturas da mata começa-
ram a dançar, não conseguiram parar por dois
dias. O Tambor continuou a tocar até chegar
ao céu. Antes que ele percebesse, já tinha saído
do mundo, e desde este dia ele nunca mais vol.
“tou à Terra. À Canção cantou até que, inespe-
radamente, entrou dentro de um grande rio e
| ninguém conseguiu vê-la novamente. A Dança
| dançou até se tornar uma montanha, e depois
| daquele dia não apareceu para mais ninguém.
| Então, todos os mortos que haviam ressuscita-
* do voltaram para os seus túmulos, e nunca mais
"se levantaram de lá. Todas as outras criaturas
| retornaram para a mata, etc., e daquele dia em
| diante jamais puderam voltar para a cidade e
| dançar com quem quer que fosse.
| Eassim, quandoessastrêscriaturas (Tambor,
“Canção, Dança) desapareceram, o povo da nova
cidade voltou para as suas casas. Depois daque-
le dia, ninguém mais viu essas três criaturas
pessoalmente, apenas ouvitam os seus nomes
95
espalhados pelo mundo, e hoje ninguém conse-
gue fazer o queelas faziam naquela época. Após
viver um ano naquele local, tornei-me um ho-
mem rico. Contratei muitos empregados para
limparem a mata para mim. E quando estes
homens já haviam preparado cerca de três mi-
lhas quadradas, plantei as sementes que me ha-
viam sido oferecidas na Ilha do Fantasma por
| um certo animal (como ele era chamado) que
era o proprietário das terras onde eu havia feito
a minha plantação. Isto foi antes de ele me
ter dado as sementes que germinaram no mes-
mo dia em que eu as plantei. Como as sementes
brotaram e deram frutos naquele mesmo dia,
tornei-me mais rico do que qualquer outra pes-
soa daquela cidade.
O DEVEDOR INVISÍVEL
96
correspondia a seis xelins em moeda inglesa.
| Então indaguei a minha mulher se eu deveria
| cunão emprestar o dinheiro. Ela falou que esse
"homem seria um maravilhoso e esforçado tra-
| balhador, mas que no futuro seria um mara-
|| vilhosoladrão, É claro que não entendi o signi-
| ficado daquelas palavras, e simplesmente en-
treguei os seis xelins que ele me pedira. Quando
ele já estava de saída, eu lhe perguntei o seu
nome, e ele me disse que se chamava Dá-e-Tira.
Depois eu quis saber onde ele morava, e ele
falou que morava nointerior da mata, ondenin-
guém conseguiria achá-lo. Então indaguei como
os outros trabalhadores poderiam encontrá-lo,
e ele explicou que quando bem cedo pela manhã
os outros fossem para o trabalho deveriam gri-
* tar o seu nome ao chegar ao entroncamento das
| estradas a caminho da fazenda. Em seguida foi
* embora. No outro dia, pela manhã, os trabalha-
* dores que estavam indo para a fazenda, ao che-
- garem ao entroncamento da estrada, gritaram
o seu nome (com voz bem alta), como tinha
recomendado, e ele. respondeu cantando uma
canção. Depois quis saber que tipo de trabalho
“eles iam fazer naquele dia. Responderam que
iam arar a terra. O Dá-e-Tira mandou que eles
fossem arar a própria terra, que ele faria o mes-
mo à noite, porque as crianças pequenas não
deviam vê-lo e os adultos estavam proibidos de
97
olhar para ele. E assim os outros trabalhadores
foram e cumpriram a tarefa deles. No dia se-
guinte, de manhã cedo, os empregados foram
para a fazenda, como faziam habitualmente, e
ao chegarem viram que toda ela e também as
matas à sua volta haviam sido aradas pelo De-
vedor Invisível. Ele também tinha arado todas
as fazendas vizinhas. Recomendei aos meus em-
pregados que dissessem ao Devedor Invisível
que o trabalho daquele dia seria cortar toda a
madeira, desde a fazenda até a minha casa. Ão
chegarem ao entroncamento, chamaram-noe de-
ram o meu recado. Ele disse que fossem cortar
a sua madeira, porque a dele seria cortada à
noite, quando então a levaria para a minha
casa. Os trabalhadores o chamavam na encruzi-
lhada, mas ele nunca aparecia pessoalmente.
Para meu espanto, na manhã seguinte, quando
acordamos, não conseguimos sair de nossas ca-
sas, porque esse homem (o Devedor Invisível)
tinha trazido uma enorme quantidade de toras
de madeira, palmeiras e outras árvores para a
cidade, e o lugar estava todo coberto de ma-
deira, de modo que ninguém podia se movimen-
tar. Não sabíamos a que horas ele trouxera
aquilo tudo. Os habitantes da cidade começaram
a cortar a madeira com machados, mas levaram
mais de uma semana até conseguirem terminar.
Como eu estava querendo vê-lo (Devedor Invi-
98
sível ou Dá-e-Tira), e como ele estava traba-
lhando, mandei que os outros empregados avi-
sassem que o trabalho do dia seria cortar o ca-
belo das crianças da cidade; Ele disse a seus
colegas que fossem cortar o cabelo de suas crian-
ças, que à noite ele cuidaria das outras. Mandei
os meus homens ficarem vigiando para ver como
ele fazia aquele serviço. Mas ainda não eram
oito horas da noite e todos já estavam dormin-
do, não havendo nem mesmo um animal do-
méstico acordado. Aí o Devedor Invisível veio e
raspou a cabeça de todos os habitantes da cida-
de: adultos, mulheres, animais domésticos. Ti-
nha carregado todos para fora de suas casas, ras-
pando as suas cabeças e pintando-as com tinta
branca. Em seguida voltou para a mata. Ninguém
acordou enquanto ele praticava essa maldade.
Quando despertaram, viram que estavam do
lado de fora de suas casas, e ao tocarem em suas
cabeças notaram que elas haviam sido raspadas
e pintadas com tinta branca. No momento em
que viram o que lhes acontecera e também a
seus animais domésticos, ficaram assustados
* achando que mais uma vez tinham caído nas
* mãos de outra terrível criatura. Consegui, en-
tretanto, acalmá-los e expliquei o que havia
acontecido. Eles então queriam que eu saísse
de suas terras, mas aí pensei em fazer alguma
| coisa para agradá-los, e não ser expulso de lá.
99
Então,certo dia, quando os trabalhadores esta-
vam indo para a fazenda, mandei que avisassem
ao Devedor Invisível que o trabalho daquele
dia seria matar animais da mata e trazê-los para
a minha casa. Quando eles transmitiram o meu
recado o Dá-e-Tira respondeu da maneira de
costume. Ao amanhecer, a cidade estava cheia
de animais mortos, e com isto os seus habitantes
ficaram tão contentes que não mais desejavam
que eu partisse.
Comecei a estranhar que esse homem traba-
lhasse sem nunca pedir comida ou qualquer
outra coisa. E quando o meu milho ficou madu-
ro, eu disse aos outros empregados que avisas-
sem ao Devedor que se ele quisesse poderia ir
até a fazenda e apanhar inhame, milho, etc.
Assim que chegaram à encruzilhada, deram o
meu recado.
O que eu não sabia era que o Devedor Invi-
sível, ou o Dá-e-Tira, era o chefe, e também a
mais poderosa entre todas as criaturas da mata.
Todas obedeciam às suas ordens, e trabalhavam
para ele durante a noite. Então, depois de ter-
minado o trabalho, ele foi com os seus servi-
dores até a minha fazenda, onde juntos pega-
ram todo o inhame, milho, etc., e também todo
o inhame e milho das fazendas vizinhas.
Eu nem desconfiava de que ele tinha ajudan-
tes, e que por isso, naquela noite, em vez de
100
ele pegar sozinho alguns inhames e milhos, os
outros haviam levado toda a colheita.
Então recordei-me do que minha mulher dis-
sera anteriormente: “Este homem será um ma-
ravilhoso e esforçado trabalhador, mas no fu-
turo será um maravilhoso ladrão”. Na manhã
seguinte, quando as pessoas chegaram às suas
fazendas, encontraram a maior devastação, pois
as criaturas da mata haviam arrancado tudo,
deixando as plantações vazias como um campo
de futebol.
Vendo o que o Dá-e-Tira havia feito, os fa-
zendeiros vizinhos ficaram muito zangados co-
migo, porque naquele ano não poderia haver
uma nova plantação, e nem eles nem as suas
crianças teriam o que comer. Toda a minha
colheita também havia sido roubada, mas eu
não podia lhes contar isto. E então eles se uni-
ram e formaram um exército para me atacar
e me expulsar da cidade, para assim se vinga-
rem da grande perda que, por minha culpa, o
Dá-e-Tira lhes havia causado. Perguntei a minha
mulher qual seria o nosso fim naquela cidade.
Ela me respondeu que os nativos morreriam,
mas que os dois não-nativos estariam a salvo.
* Minha mulher e eu estávamos nos escondendo
dentro da cidade, porque estavam nos perse-
* guindo por todo lado, e é evidente que não iam
| querer dar tiros perto de suas casas por causa
101
de suas crianças e de suas mulheres. E por isso
achamos que ali estaríamos mais seguros. Quan-
do eu estava pensando de que maneira podería-
mos nos salvar, minha mulher me lembrou de
pedir auxílio ao Devedor Invisível, porque tal-
vez ele nos ajudasse. Ao ouvir o seu conselho,
mandei um dos meus empregados ir avisar ao
Dá-e-Tira que os habitantes da nova cidade esta-
vam armando um exército que iria me atacar
dali a dois dias, e que por isso eu estava pedindo
que viesse em meu auxílio na madrugada da-
quele dia.
O DEVEDOR INVISÍVEL NA
LINHA DE FRENTE DE BATALHA
102
arrumamos os nossos pertences, meu revólver,
minha foice e partimos.
Assim foi a nossa vida na Cidade Vermelha
que nos levara até a Cidade Vermelha, e como
vimos o seu fim em sua nova cidade.
Recomeçamos nossa viagem para a Cidade
dos Mortos, onde estava o meu vinhateiro que
havia morrido muito tempo atrás. Estávamos
seguindo, como antes, de mata em mata ; entre-
tanto, a de agora não era nem tão fechada nem
tão perigosa como as outras. Minha mulher
disse que não devíamos parar por dois dias e
duas noites, antes de chegarmos ao local onde
havíamos encontrado a jovem vermelha que nos
levara até a Cidade Vermelha. Viajamos dois
dias e duas noites seguidas, e só então paramos
| para descansar outros dois dias. Em seguida
| retomamosnosso caminho para uma cidade des-
ww =="
conhecida. Depois de andarmos noventa milhas
encontramos um homem sentado com uma sa-
| cola à suafrente. Perguntamos-lhe se sabia onde
era a Cidade dos Mortos, e ele respondeu que
Sim, pois estava indo justamente para lá. Ao
Ouvirmos isto, dissemos que íamos segui-lo, e
“então ele pediu que o ajudássemos a carregar
Sua sacola. Naturalmente não sabíamos o que
havia dentro dela, mas via-se que estava cheia.
Ele avisou que não poderíamos tirar a sacola da
Cabeça até chegarmosà tal cidade. Também não
103
nos permitiu avaliar o seu peso para ver se era
pesada demais para carregarmos. Explicou que
não havia nenhuma necessidade de verificar o
carregamento, e acrescentou que do momento
em que a colocássemos sobre a nossa cabeça,
fosse ou não pesada demais, teríamos de qual-
quer maneira de levá-la até a cidade. Ficamos
ali parados olhando para ele. Então decidi que
se a colocasse na minha cabeça, e não suportas-
se o seu peso, na mesma hora eu a poria no
chão; e se o homem me forçasse a continuar, eu,
que estava levando comigo o meu revólver e a
foice, o mataria na mesma hora.
Então disse-lhe para colocar a sacola na mi-
nha cabeça, mas ele falou que suas mãos não
deveriam tocá-la. Ao ouvir isto, perguntei que
tipo de carregamento era aquele. Ele respondeu
que duas pessoas não deveriam saber qual o seu
conteúdo. Confiante no meu revólver e na mi-
nha foice, pedi a minha mulher para colocar a
sacola na minha cabeça, e ela me ajudou. Tive
a impressão de estar carregando o corpo de um
homem morto, mas apesar de muito pesada
consegui transportá-la com facilidade. O ho-
mem foi andando na nossa frente enquanto nós
o seguíamos.
Depois de viajarmos umas trinta e seis mi-
lhas, finalmente chegamos a uma cidade. Entre-
tanto não sabíamos que ele mentira ao afirmar
104
que estávamos indo para a Cidade dos Mortos,
como também não sabíamos que dentro daquela
sacola carregávamos o corpo do príncipe da ci-
dade onde acabávamos de entrar. Aquele ho-
mem o matara por engano e agora estava pro-
curando alguém para tomar o seu lugar como
assassino do príncipe.
105
nos darem banho e nos vestirem com as me-
lhores roupas, colocando-nos sobre um cavalo.
Em seguida deveriam nos levar para passear
pela cidade durante sete dias, para que apro-
veitássemos a nossa última semana de vida. De-
pois disto o rei nos mataria assim como havía-
mos matado o seu filho.
Porém nem os criados nem o verdadeiro
assassino do príncipe desconfiavam da verda-
deira intenção do rei. De manhã, bem cedo,
eles nos deram banho e nos vestiram com rou-
pas caras, vestindo também o cavalo que depois
nós montamos. E durante seis dias ficaram nos
conduzindo pela cidade, tocando tambores, dan-
cando e cantando canções de lamento. No dia
em que deveríamos morrer, os criados nos leva-
ram para dar a última volta, e ao chegarmos
ao centro da cidade vimos o verdadeiro assas-
sino do príncipe. Então ele nos empurrou de
cima do dorso do cavalo e montou, dizendo
para os criados que fora ele que matara o filho
do rei. Explicou que imaginara que o rei o ma-
taria para se vingar, e por essa razão dissera
ao rei que nós é que éramos os culpados. Esse
homem estava pensando que o rei ficara satis-
feito com a morte de seu filho e que por isso
mandara os seus serviçais nos vestirem e nos
levarem para um passeio a cavalo. Em seguida,
o assassino exigiu que os criados o levassem à
106
presença do rei para que ele pudesse repetir
essas mesmas palavras.
Então, diante do rei, confessou que havia
sido ele quem matara o príncipe. Ao ouvir a sua
confissão, o rei mandou os seus empregados
vestirem-no como haviam feito conosco, Em se-
guida o homem montou no cavalo, e começou
a passear pela cidade como nós fizéramos, pu-
lando e rindo de alegria. As cinco horas da tar-
de, ele foi levado à mata reservada para tal oca-
sião, e ali o mataram e o seu corpo foi entregue
aos deuses daquela mata.
Depois de permanecermos quinze dias naque-
la localidade, dissemos ao rei que gostaríamos
de continuar a nossa viagem para a Cidade dos
Mortos. Ele nos deu presentes e nos indicou o
caminho mais curto para chegarmos lá. Uma
sacola cheia havia provocado sete dias de dança,
mas, como a minha mulher dissera antes, en-
contraríamos um Sábio-Rei naquela cidade. Este
Si
foi o final da história de uma sacola que eu
carreguei da mata para a “cidade errada”. aii
107
dade, novamente ela ficava muito longe, como
se estivesse fugindo de nós. O que não sabía-
mos é que os vivos não podiam entrar lá duran-
te o dia. Mas, quando minha mulher descobriu
este segredo, falou que deveríamos parar e des-
cansar até a noite. Ao anoitecer, ela disse para
levantarmos e prosseguirmos a viagem. Porém,
assim que recomeçamos a andar, descobrimos
que não levaríamos mais do que uma hora para
chegar lá. Evidentemente não entramos na ci-
dade antes de amanhecer, pois era para nós um
lugar desconhecido.
EU E O MEU VINHATEIRO
NA CIDADE DOS MORTOS
108
vínhamos da minhacidade natal, e ele quis saber
onde era. Expliquei que ficava muito longe dali.
Ele perguntou se as pessoas da minha cidade
eram vivas ou mortas. Eu disse que os habitan-
tes da minha cidade nunca haviam morrido. Ao
escutar isto, mandaram-nos voltar para a nossa
cidade, onde havia apenas pessoas vivas, e acres-
centou que era proibido aos vivos virem à Ci-
dade dos Mortos.
Comecei a implorar para queele nos deixasse
ver o vinhateiro. Ele acabou concordando e nos
mostrou uma casa que não ficava muito longe
de onde estávamos, e disse para irmos até lá
e indagar pelo nosso vinhateiro. Entretanto,
quando nos viramos de costas para ele (homem
morto) e começamos a ir em direção à casa que
ele nos indicara, todos os presentes ficaram zan-
gados vendo-nos andar de frente, porque naque-
la cidade ninguém devia andar de frente, mas
nós não sabíamos disso.
Na hora em que o homem morto que nos
havia feito todas aquelas perguntas nos viu an-
dando daquela maneira, correu até nós e disse
que já nos havia mandado voltar para a nossa
* cidade porque nenhuma pessoa viva podia vi-
sitar pessoas mortas, na Cidade dos Mortos.
Em seguida mandou-nos andar de costas e obe-
' decemos. Estávamos caminhando de costas,
como era o costume dali, quando de repente
109
tropecei em alguma coisa ao tentar não cair
num buraco fundo que encontrei no caminho.
Aí, sem pensar,virei o rosto na direção da casa
que ele me mostrara. Ao me ver fazer isso, ele
se aproximou novamente falando que não iria
mais permitir que fôssemos até aquela casa,
porque ali ninguém andava de frente. Então,
mais uma vez, supliquei alegando que tínhamos
vindo de muito longe para ver o meu prepa-
rador de vinho de palmeira. Comotinha trope-
çado numa pedra pontuda e me arranhado, meu
corpo começou a sangrar. Parei para cuidar da
ferida, pois estava sangrando demais. Quando
o homem viu que tínhamos parado, ele quis sa-
ber o porquê. Aí eu apontei para a parte do meu
corpo que estava ferida, e ao ver o sangue ele
ficou tão zangado que nos arrastou à força para
fora da cidade, Enquanto ele nos arrastava, eu
continuava suplicando, porém ele disse que não
ia ouvir mais nenhuma desculpa. Nós não sabía-
mos que os mortos não gostavam de ver sangue,
mas nesse dia tomamos conhecimento deste
fato. Ele nos levou para fora da cidade e man-
dou-nos ficar lá, no que obedecemos. Em se-
guida foi até a casa do vinhateiro e avisou que
havia duas pessoas vivas esperando por ele.
Poucos minutos depois, o meu preparador de
vinho de palmeira surgiu. Pensando que havía-
mos morrido antes de chegarmoslá, ele nos fez
110
O sinal dos mortos, mas não podíamos respon-
der, porque não tínhamos morrido. Ao ver que
não respondíamos ao sinal, ficou sabendo que
não poderíamos morar com ele naquela cidade.
E antes de iniciarmos qualquer conversa, cons-
truíu ali mesmo uma pequena casa para nós.
Guardamos os nossos pertences dentro dela, e
para minha surpresa o meu vinhateiro também
caminhava de costas e não era assim que ele
andava antes de morrer. Depois de ter construí-
do a casa, retornouà cidadee nos trouxe comida
e dez barris de vinho de palmeira. Como está-
vamos com muita fome, comemos exagerada-
mente, e ao provar o vinho não consegui parar
de beber até acabar com os dez barris. Depois
iniciamos a seguinte conversa: eu contei que
depois de ele ter morrido eu também quis mor-
rer para poder segui-lo até a Cidade dos Mortos
porque ninguém conseguia preparar o vinho de
palmeira como ele, Porém eu não podia morrer.
Então, certo dia, chamei dois amigos meus e
fomos à fazenda, e começamos a preparar vinho,
mas o vinho não ficou com o mesmo gosto do
que o que ele costumava preparar. Vendo que
em minha casa não havia mais vinho para beber,
os meus amigos começaram a se afastar um a
q
um, até que todos me abandonaram. Sempre
| que encontrava um deles na rua eu o chamava.
111
“di
Ele dizia que iria me visitar, mas isto nunca
acontecia.
Antesa casa do meu pai vivia sempre repleta
de pessoas, mas agora ninguém maisia lá. Então
certo dia, quando eu estava pensando no que
poderia fazer, resolvi procurá-lo e dizer-lhe que
voltasse comigo para a minha cidade natal e re-
começasse a preparar o vinho de palmeira como
sempre havia feito. Iniciei a minha viagem de
manhã cedo, e em toda cidade ou aldeia onde
eu chegava perguntava se o haviam visto ou se
sabiam onde ele poderia estar. Algumas dessas
pessoas respondiam que, a não ser que eu as
ajudasse em alguma coisa, elas não me conta-
riam nada. Aí mostrei a minha mulher ao vinha-
teiro, e contei que quando eu chegara a uma
determinada cidade, onde o pai dela era o chefe,
ele me havia recebido como hóspede. Minha
mulher tinha sido levada para umafloresta dis-
tante por um cavalheiro que mais tarde ficara
reduzido a um simples “crânio”. Comoeu tinha
conseguido trazê-la de volta para o pai, e depois
de ele ver o maravilhoso trabalho que eu reali-
zara, ele me entregou a sua filha para ser minha
mulher. Após morar com eles mais de um ano
e meio, recomecei, juntamente com a minha
mulher, a minha busca. Contei-lhe ainda que,
OO
112
nenhuma estrada para esta cidade. Viajávamos
de mata em mata, noite e dia, e muitas vezes
até por cima das árvores, pois não podíamos
tocar o chão. E agora já haviam se passado dez
anos desde que eu saíra de minha cidade. Dis-
se-lhe que estava extremamente feliz em tê-lo
encontrado, e que ficaria muito agradecido se
ele me acompanhasse de volta para a minha
cidade.
Depois de lhe ter contado tudo o que havia
me acontecido, ele permaneceu calado, indo até
a cidade para pouco depois voltar trazendo vinte
barris de vinho de palmeira, que comecei a
beber imediatamente. Em seguida ele começou
a relatar a sua própria história: contou que,
depois de ter morrido na minha cidade, foi para
um determinado lugar, onde deviam ficar por
algum tempotodas as pessoas que morriam, pois
quem acabava de morrer não podia ir direta-
mente para ali (Cidade dos Mortos). Disse que
permaneceu nesse lugar dois anos, preparando-
se, e quando já estava qualificado como um
completo morto foi para a Cidade dos Mortos,
onde agora estava morando. Falou que não sabia
o que lhe tinha acontecido antes de morrer em
minha cidade. Eu então expliquei que numa
noite de domingo ele caíra de uma palmeira
quando preparava vinho, e que havia sido en-
terrado ao pé desta mesma palmeira.
113
Ele então comentou que caíra porque pro-
vavelmente bebera demais naquele dia.
Contou que na mesma noite que havia caído
e morrido na fazenda foi até a minha casa e
ficou nos olhando, porém nós não podíamos
enxergá-lo. Falou conosco, mas nós não respon-
demos, e sendo assim ele foi embora. Explicou
que tanto os mortos brancos quanto os mortos
pretos moravam na Cidade dos Mortos, não
havendo alí nenhuma pessoa viva. Isto porque
tudo que eles faziam era errado para os vivos,
e tudo o que os vivos faziam era incorreto para
os mortos.
Perguntou-me se eu não percebera que tanto
as pessoas mortas quanto os animais domésticos
- daquela cidade andavam de costas. Respondi
que sim. Por fim ele disse que não poderia mais
voltar para a minha cidade porque um homem
morto não deveria morar com os vivos, pois
tinham características diferentes. Acrescentou
que me daria qualquer coisa que eu quisesse na
Cidade dos Mortos. Ouvindo-o falar lembrei-
me de tudo que nos acontecera na mata,e senti
muita pena de mim e de minha mulher, e aí
não consegui beber o vinho de palmeira que ele
me dera naquele momento. Eu já notara que os
mortos não podiam morar com os vivos, pois
observara que o comportamento deles não com-
114
binava nem um pouco com o nosso. Às cinco
horas da tarde, o vinhateiro foi até sua casa,
trouxe-nos mais comida e, depois de passar três
horas conosco, voltou para lá. No dia seguinte,
de manhã cedo, ele chegou carregando cingien-
ta barris de vinho de palmeira e eu bebi tudo na
mesma hora. Como eu sabia queele não poderia
nos acompanhar de volta à minhacidadee já que
minha mulher estava me pressionando para par-
tirmos o mais depressa possível, assim que ele
chegou avisei que íamos embora na manhã se-
guinte. Então o vinhateiro me entregou um ovo.
Recomendou que eu o guardasse com todo o
cuidado, como se fosse ouro, e que ao chegar
à minha cidade o conservasse numa caixa. Disse
que a utilidade do ovo era me dar qualquer
coisa que eu desejasse neste mundo. Explicou
que quando eu quisesse usá-lo deveria colocá-lo
numa grande tigela com água, e dizer o nome
daquilo que eu desejasse. Levando o nosso pre-
sente, partimos depois de termos passado ali
três dias. O vinhateiro mostrou-nos uma estra-
da mais curta, e esta era realmente uma estrada,
e não uma mata, como as anteriores.
Iniciamos então a nossa viagem de volta à
minha cidade natal, de onde eu havia partido
muitos anosatrás. Na estrada que ele tinha nos
indicado encontramos mais de mil mortos que
estavam indo para a Cidade dos Mortos. Quan-
115
do eles nos viam indo em sua direção, entravam
na mata e só voltavam para a estrada depois de
já termos passado. Sempre que nos viam, faziam
um barulho desagradável para demonstrar que
nos detestavam e que estavam muito zangados
em perceber que éramos seres vivos. Eles (os
mortos) não falavam uns com os outros, não
usavam palavras, apenas murmuravam. Pare-
ciam estar se lamentando o tempo todo. Seus
olhos eram selvagens e castanhos, e a roupa
branca sem nenhuma mancha.
116
calmamente. Mas, em vez disso, começaram a
nos bater com as varas, e sendo assim fugimos
para a mata. Não estávamos preocupados com
os riscos que poderiam existir à noite naquela
mata, porque para nós não poderia haver nada
mais temível do que aqueles bebês. Não para-
mos de correr, mas mesmo quando já estávamos
bem afastados da estrada eles ainda continua-
vam a nos perseguir. De repente, encontramos
um homem enorme carregando nos ombros uma
imensa sacola, e na hora em que nosviu ele nos
prendeu (minha mulher e eu) dentro da sacola,
assim como um pescador apanha peixes com sua
rede. E quando isto aconteceu os bebês mortos
voltaram para a estrada. Dentro da sacola havia
muitas outras criaturas, mas que por enquanto
não vou descrever. Ele nos levava cada vez mais
para o interior da mata. Tentamos de todas as
maneiras sair da sacola, mas era impossível, pois
ela havia sido amarrada com fortes e grossas
cordas. Tinha cerca de centoe cingiienta pés de
diâmetro e espaço para umas quarenta e cinco
pessoas. Ele carregava a sacola nos ombros, e
não sabíamos para onde nos levava. Também
ignorávamos se ele era um ser humano ou um
espírito, e até se pretendia nos matar. Ainda
não sabíamos de nada.
117
COM MEDO DE TOCAR NAS
TERRÍVEIS CRIATURAS
QUE HAVIA DENTRO DA SACOLA
118
gando ao seu destino, a enorme criatura virou a
sacola para baixo e inesperadamente caímos no
chão. Foi então que vimos que as outras nove
criaturas que estavam dentro da sacola eram
horríveis. Olhamos em seguida para a imensa |
criatura que nos carregara pela mata durante ,
toda aquela noite, De tão grande e alta parecia |
um gigante. Sua cabeça era igual a um grande
pote de dez pés de diâmetro, e tinha dois gran-
des olhos na testa que se reviravam sempre que |
olhava para alguém. Ela conseguia enxergar um
alfinete a uma distância de três milhas. Seus i
dois pés eram compridos e grossos como a co-
luna de uma casa, não havendo no mundo sa-
pato que lhe servisse. É a seguinte a descrição
das nove terríveis criaturas que estavam na sa-
cola: eram baixas, com cerca de três pés de
| altura, a pele áspera como uma lixa, e a palma
| +da mão cheia de espinhos pequenos e curtos.
'Um vapor muito quente saía com toda a força |
de suas narinas e bocas, sempre que respiravam. |
O corpo era frio como gelo. Não compreendía-
mos a sua língua, porque quando falavam pa-
recia um sino de igreja. As mãos tinham umas
cinco polegadas de espessura e eram muito cur-
tas, e os pés pareciam toras maciças. Não tinham
forma de seres humanos ou de qualquer outra
|
criatura da mata que tivéssemos encontrado
antes. Suas cabeças eram cobertas por uma À
| 119
espécie de cabelo semelhante a uma esponja.
Tinham um andar tão vivo que quando os seus
pés pisavam no chão duro ou macio faziam um
barulho como se alguém estivesse batendo ou
andando sobre um piso oco. Quando caímos da
sacola, e vimos essasterríveis criaturas, nós (mi-
nha mulher e eu) fechamos os olhos imediata-
mente por causa de sua aparência horrível e
apavorante. Pouco depois, a enorme criatura
nos levou para um outro lugar. Lá encontramos
um morro alto, onde ela abriu um buraco para
entrarmos. Em seguida entrou atrás de nós e
fechou o buraco. Ainda não sabíamos que ela
não pretendia nos matar, e que apenas nos cap-
turara para sermos seus escravos. Lá dentro
encontramos muitas outras criaturas apavoran-
tes, que não posso descrever aqui. De manhã
cedo levou-nos para o lado de fora, e nos mos-
trou a fazenda onde deveríamos trabalhar, assim
como faziam as outras terríveis criaturas. Certo
dia, quando eu estava trabalhando com essas
nove criaturas, uma delas me insultou na sua
língua, que eu não compreendia. Então come-
çamosa lutar, mas assim que as outras criaturas
perceberam que eu queria matá-la começaram,
uma de cada vez, a lutar comigo. Matei a pri-
meira que me enfrentou, e aí veio a segunda,
que eu também matei, e fui matando uma por
uma, até que veio a última, que era considerada
120
a campeã delas todas. Durante a luta, ela esfre-
gou com o seu corpo de lixa e também com os
pequenos espinhos da palma de suas mãos o
meu corpo, fazendo com que começasse a san-
grar. Usei de toda a minha força para derrubá-
la, mas eu não conseguia porque não podia
agarrá-la com as minhas mãos. Ela então me
derrubou e eu desmaiei. Mas é claro que eu não
poderia morrer porque eu vendera a minha mor-
te. Eu não sabia que minha mulher se escondera
atrás de uma grande árvore e que estava assis-
tindo à briga.
Quando a campeã das nove terríveis criatu-
ras viu que eu desmaiara, foi até certa planta e
apanhou oito folhas. Enquanto isto minha mu-
lher observava tudo o que acontecia. Em se-
guida essa criatura foi até os seus companheiros,
espremeuas folhas até sair um líquido que co-
locou nos olhos de cada um deles, despertando-
os no mesmo instante. Logo depois foram pro-
curar o seu patrão (a enorme criatura que havia
nos trazido para aquele lugar) para comunicar
O que acontecera na fazenda. Entretanto, assim
que se afastaram, minha mulher foi até a tal
* Planta, e tirando uma folha fez o mesmo que
a campeã havia feito. Quando ela pingou o
* líquido nos meus olhos, eu acordei imediata-
mente. Comoela havia conseguido apanhar toda
a nossa bagagem antes de sair do buraco, foi-nos
121
possível fugir de lá. E, antes que as nove terrí-
de
veis criaturas chegassem ao local onde o seu
patrão morava, nós já estávamos longe. Foi
assim que escapamos da imensa criatura que
nos prendera em sua sacola.
saca
Para que essa criatura não nos pegasse outra
vez, viajamos dia e noite sem parar. Dois dias
e meio depois, alcançamosa estrada dos mortos,
onde os bebês mortos haviam nos perseguido,
e ao chegarmos lá tivemos que nos afastar por
causa dos apavorantes bebês que lá continua-
vam.
122
távamos de fazer. Até que certa noite encon-
tramos uma “criatura faminta” que estava
sempre gritando “fome”, e assim que nos viu
veio em nossa direção. Quando ela estava a
cerca de cinco pés de distância de nós, paramos
e olhamos para ela. Não sentíamos medoporque
eu já estava com um juju preparado em minha
mão e também porque me lembrei de que antes
de entrarmos na Árvore Branca da Mãe-Devo-
tada havíamos vendido a nossa morte, e sendo
assim não havia perigo algum em nos aproxi-
marmos dela. Enquanto vinha em nossa direção,
ela perguntava repetidamente se não tínhamos
alguma coisa para ela comer. Tínhamos apenas
bananas, que ainda não estavam maduras. En-
tregamos-lhe as bananas e ela engoliu tudo de
uma só vez, para logo depois pedir outra coisa
para comer, não parando um minuto sequer de
gritar “fome-fome-fome”. Não conseguindo su-
portar os seus gritos, abrimos a nossa bagagem,
pensando que talvez lá encontrássemos algo
para comer. Porém apenas achamos um feijão,
e antes que o entregássemos ela o tomou de nós,
engolindo-o sem hesitação, e recomeçou a gritar
“fome-fome-fome”. O que não sabíamos é que
nem toda a comida deste mundo satisfaria esta
criatura faminta, já que ela poderia comer toda
a comida do mundo, e continuar faminta como
se há mais de um ano não provasse nada. Ao
123
procurarmos em nossa bagagem algo mais para
dar a ela, o ovo que o meu vinhateiro me dera
na Cidade dos Mortos caiu no chão. A criatura
faminta viu e quis apanhá-lo para comer, porém
minha mulher, que era muito esperta, conseguiu
pegá-lo antes dela.
Ao perceber que a outra tinha sido mais rá-
pida, ela começou a lutar com minha mulher,
dizendo que iria devorá-la. Durante toda a luta,
ela não parou um só minuto de gritar “fome”.
Vendo que ela poderia nos causar algum mal,
ordenei a um dos meus jujus que transformasse
minha mulher e nossa bagagem numa boneca de
madeira, e assim que isto aconteceu eu a guardei
no bolso. Quandoa criatura não viu mais minha
mulher, pediu para examinar a boneca de ma-
deira. Eu então a apanhei no bolso e a mostrei.
Na dúvida, ela perguntou se aquela não era a
minha mulher e a bagagem. Eu respondi que
não, que apenas parecia com ela. Aí ela me
devolveu a boneca, que eu tornei a guardar no
bolso, prosseguindo o meu caminho. Ela con-
tinuava a me seguir, e o tempo todo gritando
“fome”. Mas é claro que não lhe dei atenção.
Depois de termos percorrido cerca de uma mi-
lha, ela pediu mais uma vez para ver a boneca
e eu a mostrei. Examinou-a durante mais de dez
minutos e voltou a perguntar se aquela não era
a minha mulher. Eu respondi que não, que ape-
124
nas parecia com ela. Então a criatura faminta
me devolveu a boneca e eu continuei o meu
caminho, com ela ainda me acompanhando e
gritando “fome”. Duas milhas depois, ela tor-
nou a fazer o mesmo pedido, e após ficar olhan-
do para a boneca durante mais de uma hora
afirmou que aquela era minha mulher, e sem
que eu esperasse a engoliu. Ao engolir a boneca
de madeira,ela estava engolindo minha mulher,
o revólver, a foice, o ovo e os nossos pertences,
e assim eu fiquei sem nada a não ser o meu
juju.
Em seguida começou a se afastar de mim,
ainda gritando “fome”. Agora a minha mulher
estava perdida, e como eu iria tirá-la do estô-
mago da criatura faminta? Para salvar um ovo,
ela fora parar na barriga da criatura faminta.
Eu fiquei ali parado olhando enquanto ela se
afastava. Ela já estava tão longe que eu mal
podia enxergá-la, então me lembrei de que a
minha mulher me seguira pelas matas até a Ci-
dade dos Mortos e que nunca recuara diante
de nenhum obstáculo. Pensei comigo mesmo
que ela jamais me abandonaria daquela maneira,
como também eu não iria permitir que a levas-
sem embora. Então alcancei a criatura faminta
e mandei que vomitasse a boneca de madeira
que engolira, mas ela recusou-se terminantemen-
te a me obedecer.
125
MULHER E MARIDO NA
BARRIGA DA CRIATURA FAMINTA
126
confusas”. Mas ao chegarmos à cidade confusa
minha mulher estava gravemente doente, e en-
tão fui procurar um homem com a aparência
de um ser humano, que nos recebeu em sua casa
como estranhos, e ali comecei a tratar dela. Na-
quela cidade, havia um tribunal onde muitos
casos eram julgados. E, para minha surpresa,
certo dia me mandaram ser juiz de um caso
trazido à corte por um homem que emprestara
uma libra a um amigo.
A história é a seguinte: havia dois amigos e
um deles vivia de pedir dinheiro emprestado,
e não tinha nenhum outro tipo de trabalho além
deste, e era assim que ele se sustentava. Certa
vez, pediu ao seu amigo uma libra emprestada.
Depois de um ano o amigo que emprestara o
dinheiro quis recebê-lo de volta, mas o outro
respondeu que não ia pagar porque desde que
nascera nunca havia pago nenhuma dívida. Ao
ouvir isto, o credor permaneceu calado e voltou
para casa calmamente. Certo dia, ele ouviu falar
de um cobrador que era suficientemente cora-
joso para cobrar quem quer que fosse. Então
ele foi procurá-lo e contou que alguém estava
lhe devendo uma libra há mais de um ano, re-
cusando-se a pagar. Em seguida os dois foram
até a casa do devedor. Depois de o credor mos-
trar a casa ao cobrador, ele foi embora deixando
e
127
Quando o cobrador quis receber o dinheiro,
o devedor retrucou dizendo que desde o dia em
que nascera nunca pagara nenhumadívida. En-
tão o cobrador disse que também “ele” nunca
falhara em nenhuma cobrança desde que come-
çara a trabalhar. Acrescentou que cobrar dívi-
das era a sua profissão e que era daí que ele
tirava o seu sustento. Ao ouvir isto o devedor
disse que a sua profissão era ficar devendo e
que ele vivia de suas dívidas. No final os dois
começaram a brigar e, enquanto brigavam fu-
riosamente, um homem que passava porali na-
quela hora viu o que estava acontecendo e se
aproximou. Ficou parado olhando, pois estava
muito interessado na luta, sem porém os apar-
tar. Depois de já estarem brigando mais de uma
hora, o devedor tirou do bolso um grande cani-
vete e se golpeou na barriga, caindo morto no
chão. Vendo que o devedor morrera, o cobrador
pensou consigo mesmo que desde que começara
o seu trabalho nunca falhara na cobrança de
nenhuma dívida, e ele (cobrador) resolveu que,
já que não tinha conseguido receber neste mun-
do, iria receber no céu. Então ele também puxou
um canivete do bolso e se golpeou, morrendo
ali mesmo. O homem que estava ali perto,
olhando muito interessado para eles, decidiu
que desejava ver o final da luta, e dando um
128
salto para cima caiu no mesmo local, morrendo
para poder presenciar, no céu, o final da disputa.
E assim, depois de este fato ter sido relatado
no tribunal, pediram-me para apontar quem era
o culpado, se o cobrador, o devedor, o credor
ou o homem que tinha ficado olhando a briga.
Meu primeiro impulso foi dizer que o cul-
pado era o homem queficara observando a luta,
porque ele deveria ter perguntado qual o motivo
da briga e separado os dois. Lembrei-me, po-
rém, que naquela hora o devedor e o cobrador
estavam exercendo as suas profissões, e assim
sendo eu não podia condenar o homem que
ficara apenas olhando. Também não poderia
acusar o cobrador, pois ele estava fazendo o
seu trabalho, nem o próprio devedor, porque
ele estava lutando pelo seu sustento. Contudo,
as pessoas presentes à corte insistiram em que
eu apontasse o culpado. Depois de pensar so-
pi
bre o caso durante duas horas, resolvi transferir
o julgamento para dali a um ano, e a sessão
daquele dia foi encerrada.
Então voltei para casa e recomecei a tratar
de minha mulher. Quatro meses depois de o
caso ter sido adiado, fui novamente chamado ao
tribunal para julgar um outro caso, que é o
seguinte.
É a história de um homem que tinha três
mulheres que o amavam tanto que o seguiam
129
para onde quer que ele fosse. O marido também
amava as três igualmente. Certo dia, esse ho-
mem (marido) estava indo para uma cidade dis-
tante, e suas três esposas o acompanhavam como
sempre. Mas, quando estavam viajando de mata
em mata, esse homem tropeçou inesperadamen-
te e caiu, morrendo no mesmo instante. A es-
posa mais velha, que o amava muito, disse que
ela deveria morrer com ele, e então ela também
morreu. Ficaram a segunda e a terceira mulher.
Aí a segunda mulher falou que conhecia um
Ea
130
Ão ouvir isto, o marido escolheu a sua primeira
mulher, que havia morrido com ele. Mas ela
(primeira mulher) recusou-se terminantemente
a ir com o feiticeiro. Então o marido ofereceu
a segunda mulher (que havia ido buscar o fei-
ticeiro que acordara o marido e a primeira mu-
lher), mas ela também se negou. Aíele escolheu
a terceira mulher, que havia ficado guardando
os corpos, porém esta também não aceitou.
Quando o marido viu que nenhuma de suas
mulheres queria acompanhar feiticeiro, disse
para o homem levar todas as três. Foi aí que
elas começaram a brigar uma com a outra. Por
azar, naquela hora um policial estava passando
porali, e as prendeu, levando-as ao tribunal. E
agora queriam que eu decidisse qual das es-
posas deveria ser entregue ao feiticeiro. Eu, en-
tretanto, não sabia qual escolher, porque todas
haviam demonstrado o seu amor pelo marido: a
primeira morrendo com ele, a segunda indo
buscar o feiticeiro, e a terceira protegendo os
cadáveres contra os animais selvagens, até quea
segunda trouxesse o feiticeiro. Por esse motivo
eu também adiei esse segundo julgamento por
um ano. Antes porém que o prazo dos dois
casos expirasse, minha mulher ficou bem de
saúde e nós partimos daquela cidade (cidade
confusa). Ao chegar a casa, encontrei mais de
quatro cartas que o povo da “cidade confusa”
131
havia mandado pedindo para eu voltar e resol-
ver os dois casos, porque eles continuavam pen-
dentes, aguardando uma solução de minha parte.
Sendo assim, eu ficaria muito agradecido se
alguém que lesse este livro julgasse um ou am-
bos os casos e mandasse a sua decisão para mim
o mais rápido possível, porque os habitantes da
“cidade confusa” querem que eu vá urgente-
mente para lá com uma solução.
Depois de partirmos da “cidade confusa”,
viajamos mais de quinze dias e vimos uma mon-
tanha que escalamos, lá encontrando mais de
um milhão de criaturas da montanha, como po-
deriam ser chamadas.
132
dançar, e convidaram minha mulher a se juntar
a elas,
133
que eu a encontrasse imediatamente. Já que eu
não podia de forma alguma enfrentá-las numa
briga, comecei a correr para salvar minha vida.
Ainda não havia corrido trezentas jardas quan-
do elas me cercaram, mas, antes que pudessem
me fazer algum mal, transformei-me numa pe-
drinha e fui rolando pelo caminho até a minha
cidade.
Contudo, essas criaturas da montanha con-
tinuavam a me perseguir fazendo o possível
para me pegar (sem nada conseguir, pois eu
agora era uma pedrinha), até que cheguei ao
rio que cruzava a estrada para minha cidade.
Eu estava tão exausto, quase me partindo em
dois, de tanto bater em pedras muito duras en-
quanto ia rolando pelo caminho. E por isso, na
hora em que eu estava quase chegando ao rio,
elas por pouco não me pegaram. Mas aí sem
nenhuma dificuldade eu me atirei para o outro
lado do rio e, antes de tocar no chão, eu havia
me transformado num homem, e também minha
mulher, revólver, ovo, foice e bagagem volta-
ram à sua forma original. Neste dado momento
demos adeus para as criaturas da montanha que
estavam paradas do outro lado olhando para
nós, porque lhes era proibido atravessar osrios.
A distância do rio até a minha casa era apenas
de poucos minutos. Entramos na terra do meu
pai, e nenhum mal ou criatura nociva veio atrás
134
de nós. Chegamos às sete horas da manhã, e
entramos na minha casa, e assim que o povo
viu que eu havia retornado correu para nos
cumprimentar. Foi assim que nós dois chegamos
à minha cidade sãos e salvos.
Encontrei os meus pais muito bem, como
também todos os meus velhos amigos que cos-
tumavam vir à minha casa beber vinho de pal-
meira antes de eu partir.
Mandei buscar duzentos barris de vinho de
palmeira e bebi com os meus amigos como eu
costumava fazer no passado. Logo que entrei
em casa, fui diretamente ao meu quarto e, abrin-
do uma caixa, escondi o ovo que o vinhateiro
me dera na Cidade dos Mortos. E é assim que,
de todas as dificuldades, sofrimentos e tantos
anos de viagem, havia restado apenas um ovo.
Três dias depois do nosso regresso, minha
mulher e eu fomos ver o pai dela em sua cidade
e encontramos todos com boa saúde. Ficamos lá
apenas três dias.
Esta foi a história do bebedor de vinho de
palmeira e o seu vinhateiro morto,
Antes de eu chegar à minha cidade, tinha
havido uma grande seca que causara a morte de
as
135
Ea E
todos os animais domésticos, lagartos, etc. Às
plantas, as árvores e os rios haviam secado por
falta de chuva, não sobrando nada para as pes-
soas comerem.
AS CAUSAS DA SECA
136
gananciosos, a Terra disse que ela ia ficar com
o rato, e o Céu disse que ele é que ia levá-lo.
UM OVO ALIMENTOU O
* MUNDO INTEIRO
137
EPE
to, enchi uma tigela com água e coloquei o ovo
dentro. Ordenei ao ovo para fornecer comida e
bebida para minha mulher, meus pais e tam-
bém para mim. Em menos de um segundo a
sala ficou cheia de todos os tipos de comida e
bebida, e então nós comemos e bebemos até
ficarmossatisfeitos. Em seguida mandei chamar
os meus velhos amigos e lhes dei os alimentos
que sobraram. Todos nós começamos a dançar,
e quando pediram mais bebida, eu dei a mesma
ordem ao ovo e ele produziu muitos barris de
vinho para bebermos. Meus amigos me pergun-
taram como eu fazia para conseguir essas coisas.
Eles disseram que fazia uns seis anos que não
provavam nem uma gota de água nem de vinho
de palmeira, e eu contei que trouxera o vinho
de palmeira, etc., da Cidade dos Mortos.
Já era bem tarde da noite quando eles vol-
taram para suas casas. Para minha surpresa, no
dia seguinte, logo de manhã cedo, eles chegaram
e me acordaram. Havia mais uns sessenta por
cento de pessoas do que na véspera, e ao ver
quantos eram fui ao meu quarto, onde eu es-
condera o ovo, e abri a caixa. Depois o coloquei
na tigela com água e dei-lhe a mesma ordem. E
ele forneceu comida e bebida para os meus ami-
gos. Agora a história do ovo maravilhoso esta-
va sendo espalhada de cidade em cidade e de
aldeia em aldeia. Certa manhã, quando me le-
138
vantei da cama, mal consegui abrir a porta da
casa, porquelá estavam pessoas vindas de várias
cidades e aldeias esperando para comer. Eram
tantas que seria impossível contá-las, e antes
das nove horas a cidade já estava completamen-
te tomada por estranhos. As dez horas, quando
toda aquela gente estava sentada esperando cal-
mamente, eu dei ordem ao ovo e imediatamente
ele produziu comida e bebida, para cada uma
dessas pessoas, de modo que todos que não
comiam há mais de um ano comeram e beberam
até ficarem satisfeitos, levando o que sobrou
para suas cidades e casas. Depois de eles irem
embora, ordenei ao ovo que produzisse muito
dinheiro e ele como sempre atendeu ao meu
pedido. Escondi o dinheiro em algum lugar do
meu quarto. Como todos sabiam que toda vez
que viessem a minha casa comeriam e beberiam
o que quisessem, havia gente que, com velhos
e crianças, chegava mesmo antes das duas ho-
ras da madrugada, vinda de várias cidades e
aldeias. Reis e criados também vieram. Como
eu não conseguia dormir por causa do barulho,
levantei-me da cama e quis abrir a porta, mas
eles entraram violentamente casa adentro dani-
ficando a porta. Tentei de todas as maneiras
empurrá-los para trás, mas falhei. Então disse
a eles que, a não ser que esperassem do lado de
fora, ninguém seria servido. Ao ouvir isso, eles
139
A VIDA DESPREOCUPADA
140
apanhei e colei. Toda aquela gente continuava
ali, porém não mais brincando e sim penalizada
com o que tinha acontecido. Ao sentirem fome,
pediram comida, como habitualmente faziam.
Dei a ordem ao ovo, mas ele não conseguiu
produzir mais nada. Repeti na presença de todos
a mesma ordem três vezes, mas sem nenhum
resultado. Depois de ficarem quatro dias sem
comer e beber começaram a voltar para suas
cidades lançando insultos à medida que se re-
tiravam.
141
DiRARCA
que ele havia feito, ordenei que os levasse de
volta, e ele obedeceu prontamente. Alguns dias
depois fui procurar o rei e disse a ele que man-
dasse tocar os sinos avisando a todas as pes-
soas de todas as cidades e aldeias que vies-
sem a minha casa para beber e comer como
antes, pois o meu vinhateiro, que me dera aque-
le ovo maravilhoso, tinha me enviado da Cidade
dos Mortos um ovo aínda mais poderoso que
o primeiro.
Ão tomarem conhecimento da notícia, vie-
ram me procurar e, assim que me certifiquei
de que não faltava ninguém, coloquei o ovo no
meio do povo, e disse a um dos meus amigos
que ordenasse ao ovo que produzisse qualquer
coisa. Em seguida entrei em minha casa, fe-
chando todas as janelas e portas. Quando ele
deu a ordem, o ovo produziu milhões de chi-
cotes que na mesma hora começaram a açoitá-
los. Os que haviam trazido crianças e velhos não
se lembraram de levá-los na fuga. Os criados
dos reis, como também os próprios reis, foram
severamente castigados. Muitos correram para
a mata e muitos morreram ali, principalmente
os velhos e as crianças. Vários amigos meus
também morreram,e aos outros foi difícil achar
o caminho de volta para casa.
Uma hora depois, já não havia mais ninguém
diante de minha casa. Quando os chicotes vi-
142
ram que todo mundo havia ido embora, eles
(chicotes) se agruparam num lugar e se trans-
formaram novamente num ovo que, para es-
panto meu, desapareceu diante dos meus olhos.
À seca porém continuava atingindo a região, e
então, vendo que muitas pessoas idosas mor-
riam todos os dias, chamei os velhos que ainda
estavam vivos e disse a eles como poderiam ter-
minar aquele flagelo. Acabamos com a seca da
seguinte maneira: sacrificamos duas galinhas,
seis nozes de cola, uma garrafa de óleo de pal-
meira e seis colas amargas. Matamos as galinhas
e as colocamos num alguidar quebrado, em se-
guida colocamos as colas e derramamos o óleo
na tigela. À oferenda era para ser levada para
o Céu no céu.
143
ERRATR
sacrifício significava que a Terra reconhecia ser
mais jovem do que o Céu. O escravo que leva-
ra a oferenda não havia chegado nem à metade
do caminho de volta para a Terra quando foi
atingido por uma pesada chuva que começou a
cair. Ao chegar à cidade ele queria se abrigar da
chuva, entretanto ninguém permitiu que ele en-
trasse em sua casa. Todos pensavam que ele
(escravo) também os carregaria para o Céu,
assim como havia feito com o sacrifício, e por
isso estavam com medo.
E depois de três meses de chuva contínua,
nunca mais houve fome.
O AUTOR E SUA OBRA
F 145
RURe
(1958), “Feather woman of the jungle” (1962)
e “Ajaiyi and his inherited poverty” (1967).
Atualmente, Tutuola vive em Ibadan, oeste
da Nigéria, com sua mulher Victoria, com quem
se casou em 1947, e seus oito filhos. Amos Tu-
tuola é membro da Igreja Africana e do Mbari
Club, clube de editores e escritores de Ibadan,
e publica normalmente contos e novelas em
periódicos ocidentais.