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Pedro
Pedro
PEDRO GASALDALIGA
CREIO
NA JUSTIÇA
E NA ESPERANÇA
PROFISSÃO DE FÉ
Creio na Justiça e
na Esperança
Título do original em castelhano:
Yo creo en la Justicia y en la Esperanza
Capa:
Eugênio Hirsch
Diagramação:
Léa Caulliraux
Revisão:
Nilo Fernandes
1978
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
D. Pedro Casaldáliga
Creio na Justiça e na
Esperança
Tradutores:
Laura Ramo
Antonio Carlos Moura
Hugo Lopes
civilização
brasileira
Sumario
Dedicatória 7
Introdução 13
I — A Vida que tem Dado Sentido ao meu Credo 17
Dedicatoria
E sobretudo
aos companheiros,
mais que irmãos,
Carta a Pedro Casaldáliga
(Você bem sabe que Aquele que dá nome à sua fé e à sua
Esperança — Jesus Cristo — escandalizou escribas, letrados,
fariseus e sacerdotes, decepcionou os que esperavam dele uma
liderança política e irritou autoridades religiosas e civis. Se êle
voltasse hoje, aconteceria o mesmo, inclusive em nossa Igreja.
Não estará Ele voltando em certos fiéis que são perseguidos?
Não nos avisou Ele claramente que assim sucederia?)
peões sertanejos, vítimas todos (terras e homens) de um capitalismo
tão voraz como injusto.
Introdução
para o Povo do Mato Grosso, de São Paulo, do Nordeste, desta
América.
Como bispo e pelas incidências peculiares desta Prelazia de
São Félix, colocado um pouco ou no candelabro ou no cada-
falso, pareceu-me que podia, que devia mesmo dar “a razão da
minha Esperança” publicamente.
criancinhas daquela escola que o bispo visitou. A professora as
preparou muito bem para recitar ao sr. bispo todo o Credo,
artigo por artigo e em fila. O sr. Bispo, menos pedagógico ou
menos realista [— que é um mal freqüente nos bispos de todo
o mundo] perguntou, de sopetão, a Luizinho: — Vamos ver,
você aí, diga: “Creio em Deus...”. — Quem crê em Deus é o
Joãozinho, esse primeiro, sr. Bispo... — atalhou Pedrinho, socorrendo
em tempo a Hierarquia).
A Vida que tem Dado
Sentido ao meu Credo
Nasci às margens do rio “tecelão” Llobregat em 1928 e em
uma leiteria. (“Maldito seja o latifúndio, salvos os olhos de
suas vacas”). De uma família católica e direitista, o que naqueles
tempos eram uma coisa só. Com a pujante raiz da terra,
pelo lado de meu pai, na solarenga fazenda de Candáliga.
Pelo lado de minha mãe, com a vista e a palavra e o dinamismo
de uma longa dinastia de “marchantes”.
sertores” ou a passagem de qualquer padre ou frade com
nome trocado e indumentária suspeita...
vais ser padre, Pedro?” — “Porque não, mulher; deixa-me.”
“Deixa-o”, acrescentavam, discretos, os mais velhos. E no entanto
ela, já no Céu, com o tio sacerdote mártir e os amigos
“desertores” mortos tragicamente num campo de concentração
que me tinham prometido para depois da guerra um presente
excepcional — uma máquina Pate-Baby, quem sabe — conseguiram-
me, penso, o toque da vocação.
lhava muito. Fazia qualquer trabalho caseiro que fosse preciso,
durante a doença de minha mãe. Calava muito. Algumas
noites, depois de “ajeitar” as vacas, ia (por evasão?) ao cinema.
Seguia os acontecimentos políticos no El Correo de Cata-
lán e comentava-os longamente sobretudo com um amigo íntimo
do qual me lembro como um emblema da amizade e que
vi morto, jovem ainda, alto e formoso, com uma barba crescida
como as dos santos.
pelo mundo, com quem partilhei as crises da juventude, da
obediência, do estudo mais ou menos lúcido; com quem discuti
a Igreja e a Congregação; com quem tramei fazer revolução
“de dentro”. Guardo a mesma lembrança de tantos formadores,
às vezes desacertados, porém quase sempre magníficamente
generosos, alguns dois quais me marcaram providencialmente.
feito Apostólico na China, aragonés da melhor cepa, com barba
e palavras místicas, que fiz a “opção” pelas “Missões”, teimosamente
mantida até minha chegada neste Mato Grosso.
dando pelo refeitório e com o qual esbarrei mais de uma vez,
adormecido, contra as paredes. As intensas noites de encerramentos
de cursilhos, em branco. O sono violento que me dobrava,
na aula, diante dos olhos infantilmente compreensivos
dos meus alunos. Minhas amizades e confusões de “padre dos
malandros”. A revista Euforia que um grupo de audaciosos
fundamos e dirigimos e que morreu, rebelde, no oitavo número,
sem mácula e sem dinheiro. Aquela vida de comunidade, heterogênea,
tão sincera talvez quanto artificial, impossível. Aquela
primeira solidão de jovem sacerdote. Aquela vontade cega de
reformar o Instituto, a Igreja, o Mundo.
cional, uma autobiografia coletiva do tempo de formação que
eu tinha vivido...
trambelhado seminário que podia existir por aquelas calendas
na Espanha pós-tridentina — foram para mim um segundo
noviciado bem mais consciente e não menos austero e apaixonado.
Voltei à oração intensa, à fidelidade às pequenas coisas,
aos cilicios e disciplinas, às vigílias noturnas e aos jejuns. Tive
contudo de me arriscar também a uma revisão, comprometida
com a prática, sobre os moldes da vida religiosa e apostólica,
porque eu era um formador. Um formador iconoclasta. Para
começar, queimei todas as flores de plástico do seminário, retirei
vários santos acumulados no altarzinho da capela e, outra
vez a contragosto dos superiores — paciente, virgiliano, Padre
Mir! —, revolucionei horários e costumes, rezas, leituras, orientações
e perspectivas.
da maior boa vontade —, por causa dos cursilhos e pela cadeia
que se faz inevitavelmente dos amigos com os amigos dos amigos,
eu acabei sendo um grande amigo dos “verdes”, quase um
“Capelão” extra-oficial e até “tenente honorário” para um grupo
de malandros convertidos, em Bata. Como fui amigo de
muitos outros militares, pelas mesmas razões. Saudosas e contraditórias
amizades, agora que sou um ogro ou um alérgico
às “fardas”, como depois tentarei explicar.
nho leigo era um novo chamado vindo da América. Aliás duvidei
entre a Bolívia e o Brasil, porque uma Missão de Índios no
planalto boliviano pedia a presença de missionários voluntários
e a Bolívia acabava sendo sempre a borralheira desprezada. Foi
o próprio Padre Schweiger quem ajudou a decidir-me pelo Brasil.
A Santa Sé, por meio da Nunciatura no Rio vinha pedindo,
havia quatro anos, que a Congregação Claretiana — que tinha
missionado os sertões centrais de Goiás — se encarregasse da
região norte do Mato Grosso que estava desatendida.
selecionados — Morte e Vida Severina, para citar um que me
marcou — as sessões alucinantes de Umbanda, os comentários
da imprensa diária com os subterfúgios da repressão e as diferentes
“igrejas” do país expostas ao claro, as próprias celebrações
— dessacralizadas (!), diferentes, conscientizadoras — o
Breviário preterido às vezes “sem pecado”... tudo contribuía
para fazer revisar e repensar a formação recebida/ a piedade
herdada, as austeras distâncias do sexo, o apostolado em riste,
a fácil e convicta dicotomía com que, no Velho Mundo, vivíamos
a missão da Igreja em face da política e da sociedade em
geral...
Impunha-se uma revisão total de critérios e de programas.
Por onde começar? Que é que o povo pedia? O que podíamos
fazer? O que significava ser Igreja ali?
vana de ‘retirantes’ que agora são nossos missionados, o
povo com o qual vivemos, pelo qual, Senhor, a gente desejaria
morrer”... (Diário, setembro, 12).
Tínhamos de enfrentar também, pelo mesmo imperativo de
suplencia, o problema sanitário. E transformamos a pequena
casinha da beira do rio em ambulatório. As irmãs, enfermeiras,
tinham um grande campo aberío à sua caridade. Em Santa
Teresinha, que pertencera até então à Prelazia de Conceição do
Araguaia, o Padre Francisco Jentel prosseguia seu trabalho de
atendimento aos “posseiros” e aos índios Tapirapé. São Félix,
Santa Teresinha, Tapirapé, eram as três únicas comunidades
missionárias da nascente Prelazia, erigida em 1970.
peões, carne de carregação, trabalhadores braçais, comprados
fraudulentamente no Norte e no Centro do País e descarregados
para os trabalhos de “derrubada” e plantação de pastos,
nessas infinitas fazendas de centenas de milhares de hectares,
verdadeiros campos de concentração. O informe se intitulava
Escravidão e Feudalismo no Norte de Mato Grosso. Enviei-o
às altas autoridades do País, à presidência da Conferência Nacional
dos Bispos e à Nunciatura. E o sr. Núncio, depois de
me elogiar diplomaticamente pela coragem e realismo pastorais,
pedia-me diplomaticamente que não publicasse o documento
no estrangeiro porque isso podia favorecer a campanha de
difamação que lá se orquestrava contra o Brasil...
sistematicamente os irmãos menores: essa já não seria mais a
Ceia do Senhor! Deixávamos de ser amigos dos “grandes” e
os enfrentávamos. Nenhum explorador ou colaborador usado
pela exploração poderia ser padrinho de batismo, por exemplo.
Deixamos de aceitar “caronas” nos seus carros, esquivávamo-
nos positivamente de suas companhias, de seus sorrisos; deixamos
inclusive de cumprimentá-los nos casos mais descarados.
(Em contrapartida íamos ganhando a confiança e o amor dos
pobres e oprimidos). Foi hora de opção, dilacerada opção que
violentava o próprio temperamento, a vontade natural de estar
bem com todos, a formação de mansidão evangélica recebida,
a velha norma pastoral de “não apagar a lâmpada que ainda
bruxoleia”... Ruptura que continua deixando em tensa cruz
a vida da gente.
Pelo meio-dia, ao voltar para casa, encontro um posseiro
de Tapiraguaia quase chorando: faz nove anos que
mora em seu pobre sítio e segunda-feira o gerente Camargo
— sempre demolidor — ameaçou de chamar a polícia
se ele tentasse fazer roça. Ele não tem outra saída.
Mora com sua mãe viúva e três sobrinhozinhos órfãos.
7 de janeiro de 197,1
Dia 31
a cantar. Todo um acúmulo de sentimentos — ira, compaixão,
esperança, pobreza — me subiu à garganta e a
voz se me quebrou em pranto. Ficava no ar da tarde,
ameaçante de nuvens e relámpagos, urna poderosa verdade:
Eu sou a Ressurreição e a Vida... Joguei terra
sobre o cadáver. Eu queria solidarizar-me com Antonio,
com iodos os peões, com todos os injustiçados do mundo.
Contra o supersticioso costume desta região de sepultar
com o rosto virado para o rio, Antonio foi enterrado
de cara para as fazendas. Como uma acusação. De
cara para o morro e para o céu também...”
Fevereiro, dia 3
“A notícia que o P. Francisco trazia desta vez era
de epopéia. O P. Henrique foi posto a premio, ao preço
de 500 cruzeiros, ‘taxa de cinco léguas de estrada’. Quem
comprava a vida do Padre era o gerente Plínio da fazenda
Frenova, contrariado em seus planos de invasão porque
o P. Henrique tinha dado conselhos aos posseiros...”
flito, como outras “picadas” foram e continuam sendo noutros
lugares destas terras.
tendo nas costas muitos anos de História, instrutivos e
cautelosos.
‘picada’ delimitadora para cortar de urna vez toda esjpe-
rança dos posseiros do lugar... Decidimos antecipar a
Campanha Missionária em Serra Nova”.
No dia 20 de julho:
na hora de se manifestar em relação aos problemas sociais
agudos. Há muita ‘política’ chamada prudência,
talvez sincera, talvez ingênua, talvez covarde e demasiadamente
comprometida...”
três noviciados, três anos bons como três Missas”... comentava
eu no Diário a 30 de julho.
Num sábado, dia 7 de agosto de 1971, Manuel Luzon, o
companheiro de primeira hora, sempre bom, fiel como uma
árvore de madeira de lei, foi ordenado Sacerdote de Cristo para
Seu Povo deste Mato Grosso, realizando assim um sonho cultivado
durante longos anos de humildade e serviço.
A vida continuava.
Brasil, chamou-se “Hino da Comunidade Rural”: “Hino da
Lavrador”.
Dia 17
A tensão em Serra Nova se estava agudizando com as ameaças
da Companhia Bordon de matar-me e ao Moura (o rapaz,
companheiro da campanha missionária), assim como de queimar
o povoado. Lulú — o amigo posseiro, prisioneiro duas
vezes, torturado pelo latifúndio e pela Repressão — e eu fomos
tocaiados na floresta pelo empreiteiro da fazenda, Benedito
Boca-Quente. A “boca quente” era a de seu revólver. E
durante o mês de outubro insistiram em pôr minha vida a preço
para impedir minha consagração episcopal. Conforme consta
no documento assinado pelo pretenso assassino diante da
Polícia Federal, davam por minha cabeça “mil cruzeiros, um
revólver 38 e uma passagem de viagem para onde quisesse”.
Dia 26
...Faz dias que renovo meu oferecimento total.
•Cada dia mais pobre e despojado. Às vezes sinto que só
me resta debilidade — física e moral — os nervos destroçados
e uma ‘fatal5 esperança...”
Setembro, dia 18
Dia 24
mais perto, entre o povo, a grande difamação: éramos subversivos,
comunistas, estrangeiros...
Dia 30
vez mais — mais publicamente, mais definitivamente — fiz minha
opção pelos pobres e oprimidos.
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da CNBB justificam também, com nova razão, esta minha
declaração pública.
graças a Deus, tivesse a suficiente “coragem” homicida. Mais
tarde, soubemos que tinha sido morto em Goiás e eu rezei muitas
vezes por esse companheiro de caminho, desesperado.
No dia 10 de novembro, o povo de Serra Nova cortou a
cerca de arame da fazenda Bordon que o estrangulava. No
dia 12, vieram ao povoado os capitães Moacir e João Evangelista,
tristemente muito conhecidos por nós. Começava o cerco
de investigações, acusações, intervenções policiais e militares,
saques e prisões... Contra a equipe pastoral da Prelazia e contra
o povo indefeso da região.
Aceitamos a trégua. Rezaremos, abriremos mais ainda
os olhos e o coração e esperaremos que passe o Carnaval.
Depois virá Quaresma, Paixão, a Páscoa.
peões, professores).
9. Comércio monopolizador.
15. Predomínio de crenças (crendices) e superstições
(Religiosidade versus Fé).
16. Padrões de conduta predominante no povo: vingança,
violência, valentia, embriaguez, indolência, prostituição.
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P. Francisco, sempre legalista, sentiu-se violentado. Eu deixei
que optasse. Finalmente concordou e voltou a Santa Teresinha
para retomar as obras do ambulatório...
Dia 21
go, falei por telefone com o governador em Cuiabá,
sr. José Fragelli; este se manifestou agressivo: ‘Não abrirei
mão. Considero os posseiros de Santa Teresinha criminosos
comuns e asseguro que se o P. Jeníel aparecer
por Cuiabá darei ordem de prisão contra ele que é o
autor intelectual do crime’. Eu lhe respondi que o autor
sou eu mesmo e não o P. Francisco; que eu assumi e
assumo toda a responsabilidade do acontecido em Santa
Teresinha, por parte da Missão e dos posseiros...”
Me chamarão subversivo
E eu lhes direi: O sou.
Tenho fé de guerrilheiro
e amor de revolução.
Se escandalizo, primeiro
queimei o próprio coração
ao fogo desta Paixão
crua do Seu mesmo madeiro.
Incito à subversão
e o Governo em Carniceiro.
Servidor se fez meu Rei.)
Creio na Internacional
das frontes levantadas
da voz de igual para igual
e as mãos entrelaçadas...
de tomar uma decisão rápida sobre a sorte dos posseiros da
mata.
Dia 8
Dia 14
Dia 17
lad d’esperit, la força de 1’Esperança, el sentit de la co-
munió i de la corresponsabilitat eclesial’... (Quando
falo dos meus, de casa, o Diário se me faz catalão).
muitos tipos de sofrimento, na condição de exiladas e trabalhando
generosamente na causa dos oprimidos...
Junho, dia 3
Enquanto Dom Tomás conseguia sair para celebrai
missa na aldeia Tapirapé (para as Irmãzinhas de Fou-
cault), Francisco, Canuto e eu celebramos no ‘morro’ (o
morro de Santa Teresinha onde os Dominicanos da Pre-
lazia de Conceição do Araguaia construíram por volta dos
anos 30, a igreja ‘paroquial’ sólida e sóbria, dedicada à
santa missionária de Lisieux). Com muito povo. Com
uma clara e tensa alegria. O texto da Liturgia da Palavra
foi o capítulo 10 de Mateus: ‘Olhem que eu envio
vocês... Não tenham medo deles... Pois todo aquele
que se declare por mim diante dos homens’...”
Dia 9
Dia 22
ót
Passei por Rondonópolis e Cuiabá e visitamos, com Dom
Osório — bispo de Rondonópolis, muito presí ativo — o
General (aposentado) novo secretário de Segurança Pública
do Estado do Mato Grosso e o dr. Saavedra do
iNCRA. De claro, nada. De qualquer maneira, não haverá
desapropriação de fazendas. Impõe-se a filosofia neo-
capitalista do regime. Os pobres serão atendidos com migalhas
de esmola benevolente...
12
Julho ainda.
raguaia (fazenda limítrofe com os Tapirapé) esteve ali
ontem e visitou a roça e, no posto, falou de não
sei que demarcações que estariam sendo encaminhadas
em Brasília...
esperam a noite para fugir pela Ilha, até a Belém-Bra-
sílía: 40 léguas, 240 km a pé... O pai e sogro de dois
deles — um velho com hérnia e 72 anos — está no
ambulatorio, esperando a repetida, falsa promessa do
funcionário Décio... ou nossa benfeitora, ‘paternalista’
solução...
A causa da justiça é incansavelmente teimosa, astutamente
lúcida, conseqüente em tudo até o fim. Como o
amor. Por amor prático aos irmãos concretos (que são
os únicos que existem).
Andei por essas ruas de São Félix e numa tarde de
domingo. Que faremos com esse Povo tão misturado
(prostitutas, peões, bêbados, pobres de toda espécie, exploradores,
crianças inermes, doentes, desempregados)?”
guerri'heiros, subversivos. E que toda esta área está sendo
‘enquadrada’ no férreo esquema da ‘Segurança Nacional’.
13
e depois de suportar infinitas humilhações do gerente
Plínio, do ‘empreiteiro’ Zé Benz, do prefeito Liton, da
polícia, do dono dr. Meirelles... Hoje, cedinho, o Zé
Benz levou dois policiais para a Frenova.
fraterna, simples. Ponto de partida para a reflexão foi o texto
evangélico da parábola do Banquete de Bodas... O Reino dos
Céus estava já na terra e todos éramos convidados para
construí-lo.
humilhou, quebrou as pobres armas do povo, deteve e
interrogou — na própria sede da fazenda — Eugênio e
vários posseiros e estimulou o clima de terror.
da Pobreza, da Fé, da ação ‘ecumênica’ — um ecumenismo
sócio-político — pela Justiça. E se decidiu ter, no
fim de cada semestre, um encontro geral da equipe.
— analfabetismo e semi-analfabetismo;
— marginalização social;
Meios:
3. Denúncia profética.
Compromissos:
a) Conscientes dos conflitos e implicações
que esta opção fundamental
comporta, comprometemo-nos a respeitar
as etapas do crescimento libertador
do Povo e o pluralismo de
carismas e serviços,
b) Respeitando as opções pessoais dos
diferentes membros da equipe, comprometemo-
nos também, como grupo
eclesial, a uma vivência explícita
da Fé — no testemunho de vida e
oração, particularmente na celebração
eucarística — e a uma revisão
periódica para confrontar a opção básica
e a ação concreta’.
saíram hoje com o P. Francisco. Este leva o ‘protocolo’
que assinamos com Meirelles, em nome dos posseiros de
Porto Alegre, num difícil entendimento. Meirelles, alardeando
o seu catolicismo, se escandalizou de que eu lhe
dissesse que o capitalismo é pecado e me ameaçou de
contar tudo à presidência da cnbb. E então, precisamente
neste vaivém diplomático e nauseabundo com a Freno-
va, eu me convenci um pouco mais de que o capitalismo
efetivamente é pecado.
Nem por isso deixarei de sentir nem vou esquecer por
isso; mas estou como alguém que cortou as amarras. Esta
é a minha terra na Terra. Este é o meu Povo. Por ela,
com ele, caminharei até à Pátria.
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co, político, espiritual) são idolatria, estado de pecado'
e morte. É preciso ‘marginalizar-se’ para ser livre e
libertar.
no —, nada impede que se mudem, propagandísticamente,
as pequenas estruturas assistenciais. É tão fácil enganar
o povo, momentaneamente, depois de lhe estrangular
a consciência, estrangulando a Liberdade!...”
espírito — interpôs-se entre os dois e o ‘cacicão’ sentiu-se
cortado, confuso e lá se foi resmungando.
ças, couros de boi salgados e dois esplêndidos porcos agitados.
Todos em comunhão. Passamos com Eugênio e
Lulú pela casa do velho Raimundo Piauí, perdido com
seus filhos e genros nas brenhas da serra do Roncador.
zinho. O dr. Américo, do Hospital do Índio chorava. Ele
viu sair do Ceará muitos parentes seus à procura de trabalho
ou de terra também e nunca mais voltaram, diz...
Dia 20. “Luciara. Chegamos ontem, com Judit. E
celebramos a Ceia do Senhor num ambiente de simplicidade
e pobreza.
temente pobres, suficientemente comprometidos? São Félix
— cidade — continua sendo um pesadelo pastoral...
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E perseguidos, caluniados, controlados, presos, continuaremos
nosso trabalho de conscientização e evangeliza-
ção — um só e mesmo trabalho em plenitude para a Igreja
de Cristo — que se preocupa com o homem todo e não
somente com os espíritos (contrariamente à opinião do pretenso
teólogo Coronel Euro),
bispo, os padres e as irmãs estivemos presos em prisão domiciliar.
Os militares armados nos escoltaram todos estes
dias, inclusive quando saúnos para celebrar missa.
Na noite de 8 para 9, um grupo de oficiais à paisana,
dirigidos pelo Capitão Monteiro da Aeronáutica, invadiram
armados nossa casa. E arrastaram presos os padres Eugênio,
Canuto, Leopoldo e Pedro Mari.
Estamos sendo processados oficialmente. É hora de
Paixão. Muitos amigos, conhecidos e desconhecidos,
acompanham-nos.
Uma forte comunhão com nossos presos, com suas
famílias, com nossos perseguidos, com o povo assombrado,
mantêm-nos em estado de vigília, ardente sentinela.
Deus abençoa quando fere. O fogo da perseguição é um
batismo inapreciável.”
— Vejam voces mesmos se devemos obedecer a Deus ou
aos homens.
diz assim:
la boca e 1’esperit.
[môria,
[ria.. .
de Pere-LLibertat!”
[mória,
de Pedro-Liberdade!”
uma vez mais, sobre o confortante episodio da prisão e
liberdade de Pedro, segundo os Atos dos Apóstolos.”
A Polícia Federal fotografou, gravou e anotou a cerimônia.
“Eles” espalharam panfletos com um exólico emblema da
foice e da cruz, supostamente assinados pelo “Partido Comunista”
e a “Igreja progressista”. Espalharam boatos e ameaçai
também. O povo, entretanto, superando tudo, participou numeroso
e comovido e aquela concelebração intereclesial foi para
ele como que uma confirmação na esperança.
16
provar na minha visita ao P. Francisco, no domingo,
dia 5.
Estamos de novo em tempo de ‘Aciso’; Aeronáutica,
Exército e Pol'cia Militar ocupam os caminhos e lugares
da Prelazia — com elementos do ‘submisso’ ‘Projeta
Rondón’, universitário. Arrancam dentes a granel e querem
arrancar também admirações.
Senhor Jesus!
és Tu.
Jesus.
Minha Guerra
e minha Paz.
Tu.
Tu!
Senhor Jesus!”
17
do municipio. Como nos cômicos dias dos grandes Cristos
e imagens da Virgem Dolorosa pagos pelos ricaços
adúlteros e exploradores do povo, conforme dizíamos nos
cursilhos e nos sermões de missão...
Chegam notícias do Chile, mais ou menos contraditórias,
fundamentalmente trágicas. Os novos donos do Chile
estão perseguindo e matando a bel-prazer. Ontem, li
em Documents d’Església, o testemunho (martírio) do
P. Joan Alsina, de Girona, assassinado em Santiago. Por
ser fiel à sua missão de padre-operário. É a Igreja da
América Latina fiel à sua hora.”
América Latina e chegou também aqui.) O governo de
Geisel está chegando e se acalentam não sei que — ingênuas?
— Esperanças, particularmente nos setores oficiais
da Igreja do Brasil.”
18
Uma boa distinção: entre a constituição comunitária
da Igreja e a sua tentação ‘societária’. A Igreja não é
‘poder’ — diz González Ruiz — é ‘força’ no Espírito. A
Igreja não é uma sociedade perfeita: é um perfeito mistério
de Amor, agora na imperfeita vivência dos homens,
aqui na peregrinação terrestre e, no entanto, já na perfeita
glória de sua Cabeça, Cristo. Sendo instituição também,
a Igreja é mais esperança do que instituição.
A meu modo de ver, um sujo jogo diplomático tanto
da Nunciatura como da Embaixada Francesa. Não discuto
a intenção. Suponhamos que seja diplomática simplesmente.
Não é a diplomacia o lugar mais adequado para a
Igreja de Jesus.
vamente ‘liberal’, segundo dizem. Francisco deve estar
muito impaciente, coitado.
...O P. Francisco foi absolvido pelo Superior Tribunal
Militar. Depois de um ano de prisão, a Justiça ‘revolucionária’
decide reconhecer que ele não é exatamente
um subversivo e anula a pena de 10 anos e deixa o processo
à justiça ‘comum’. Há várias espécies de Justiça:
Justiça comum, justiça militar, justiça justa... e Justiça
de Deus. A esta última recorremos, compungidos e
esperançados.
amigos. Ele, na França, está bem perto de nós. Na amizade
e na oração, estaremos sempre com ele.
proximidades de Luciara e São Félix... — o povo sertanejo
ou posseiro não tem terra nem perspectiva de um futuro
humano.
— ‘Vocês todos são irmãos’ (Mt. 23, 8); ‘amem-se uns aos
outros como Eu os amei’, disse Jesus (Jo. 15,12).
É o Espírito de Jesus Libertador que quer sua Igreja comprometida
na total Libertação do Homem. É Ele quem exige
desta pequena Igreja de São Félix um teimoso e arriscado compromisso
com o homem marginalizado — posseiro, índio ou
peão — que constitui o Povo e faz a História Humana destes
sertões.”
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Dia 21. “Amanhã seria — ainda é talvez nas comunidades
tradicionais — a festa do Coração de Maria. A
Virgem de Nazaré. A Virgem de Belém. A Virgem do
Calvário. A Virgem de Pentecostés. A Virgem glorificada
com Cristo na Igreja viva. Sua Fé, sua fidelidade total,
sua abertura ao Espírito, sua entrega ao Filho e aos
filhos.”
guém tinha contado. Dizia ele: ‘A tradição genesíaca de
seu povo foi um encontro com um homem de fé. Eu sabia
tudo isso’ — advertia —; ‘Deus, a criação do homem,
a vida futura. Quando os padres falaram, acreditei’.
A viagem deles era patrocinada pelo grupo de Náo-
Violência. E, à margem de minha decisão ou conhecimento,
esse gesto era uma nova tentativa daquela política de
reconciliação que ‘Justiça e Paz’ e alguns hierarcas estão
tentando realizar comigo, depois da diplomática saída do
P. Francisco...
Parece que se está precipitando a ‘hora’ desta região
e não será para o bem dos pequenos.
‘Pedro amigo:
Um pouco de nós,
um pouco de você,
Foram umas semanas de febre, de convalescença, de
rica pobreza humana. Não sei por que tive a sensação
de que, com essa parada de doente, começava uma nova
etapa de vida. Afinal de contas, sempre estamos começando
e tudo é novo na Graça. Li mais. Rezei mais profundamente.
Tornei-me mais... agradecido.
Dezembro. “Do dia 10 ao dia 17, tivemos, em Santa
Teresinha, o segundo encontro anual de toda a equipe
pastoral da Prelazia. Um encontro de uma semana
para dar tempo ao estudo, além de fazer a habitual revisão
do trabalho e a programação para o novo semestre.
Dia 29. “Não há jeito de escrever com um pouco de
continuidade este Diário asmático.
mos, existência. A barba, branca quando cresce, me denuncia.
Canso-me facilmente. Depois dos quarenta, dizia
o P. Viñas — suave, sensato, querido vigatá —, aparecem
os achaques.
20
A repressão “oficial” — existe, em todo o país, uma repressão
“oficiosa” que, justificando-se, o Governo chama de “poder
paralelo” — mudou de jogo e de táticas. Já não interessa provocar
escândalos, dialoga (sobretudo com a Igreja que interessa
ter como aliada no confronto de forças internas contraditórias),
dá a mão, amordaça cortezmente e... segue seu caminho.
É norma diplomática na cúpula do Governo, por arte
sobretudo, crêem alguns, da eminência parda que é o general
Golbery do Couto.
Na historia paternalista da “Revolução”, há urna escarmentada
experiencia de “projetos impactos”, de “pro” tal e “pro”
qual, com a Transamazónica, agora desprestigiada e outras grandiosidades
rebaixadas a menos. Tudo isso faz a gente andar
com cautela.
Continuo como bispo neste “fundo de mundo” do Norte
de Mato Grosso. Face aos programas e às intenções do Poder,
a equipe pastoral da Prelazia — bispo, padres, religiosos, leigos
—, procurando ser fiel àquela opção básica a que não podemos
renunciar, continua espalhada em pequenas comunidades
mistas, pelos diferentes “patrimonios”, num trabalho de
educação informal e de assistência sanitária fora dos quadros
oficiais; de conscientização global e diária; de Evangelização
concreta ou difusa; de pastoral dos sacramentos, de celebrações
eucarísticas ao nível da vida; de formação lenta, paciente, de
pequenas comunidades, sem deixar de lado a massa informe,
porém majoritária...
21
tinha nenhum reparo a fazer ao trabalho profissional da
Irmã..
agosto de 1973), e em outras áreas do País, inclusive
dentro de algumas igrejas.
A presença de Dom Aloísio já era um gesto peculiar de
solidariedade, porque estava sendo forjada, aqueles meses, urna
nova tentativa de expulsar-me do Brasil.
O “Comunicado” advertia ainda:
“Mesmo se um dia fosse expulso, Dom Pedro Casal-
dáliga, dentro ou fora do País, continuaria sendo o único
bispo legítimo desta Prelazia de São Félix. Nenhum poder
deste mundo pode tirar de Dom Pedro o caráter de nosso
bispo que o Espírito Santo lhe deu naquela consagração
de 23 de outubro de 1971 que todos nós acompanhamos
emocionados.”
FUNAi para serem levados de um lugar para outro”. E, às insinuações
da Dra. Giselda sobre quem teria dito aos índios que
aquela área era sua, outro Tapirapé replicou: “Nós também
temos cabeça e sabemos pensar e sabemos o que precisamos”.
dáde todos nós temos sofrido na própria carne e até na
carne dos filhos; a força arbitrária desses políticos, militares
e policiais a serviço desse dinheiro e dessa cobiça,
q não a serviço do povo e da Pátria...
— e vocês, trabalhadores desta região sem lei, estão
ficando sem lei e sem trabalho.
22
dos Clareíianos da Avenida Paranaíba. Ouvi rádio até enjoar.
A bbc, particularmente, que já nos é familiar. E pude fazer
um balanço das músicas (e das tolices) que tantas emissoras
de rádio e de tv proporcionam ao Povo...
Olhos Novos
presidente de nosso inquérito policial e agora é Chefe da Polícia
Federal no Estado de Goiás, me dizia mais tarde que
Penalva “tinha tratado mal a todos nós: aos posseiros, ao bispo,
à Polícia...! ”
para socorrer o padre: “de mãos limpas, de corpo limpo”, que
“nem canivete eles tinham consigo”.
— Pelos pecados da própria Igreja, tantas vezes instrumento
do antigo e do novo colonialismo...
23
de C. de Meester. E a presença exemplar e estimulante
de Teresa me acompanha de novo.
Diz Teresa:
nosco no Encontro de Santa Teresinha, morria, vítima de
uma bala e da Justiça. Em Ribeirão Bonito. Quando ele
e eu reclamávamos da Polícia pelos maus tratos a que
ela estava submetendo duas pobres mulheres do lugar.
Encontro Indigenista
O Encontro ventilou os temas da Terra, Escola,
Choque Cultural, População Envolvente, Turismo (sobretudo,
o Hotel Elutuante), Atendimento aos Karajá, Relacionamento
entre os Tapirapé e os Karajá vizinhos, Batismo
e Vida Cristã...
sábios e prudentes e as manifestastes aos pequeninos...
No chão, sobre as esteiras, antes do almoço, uma Eucaristia
de testemunho indígena total.
Ribeirão Bonito
E nessa procissão foram filmadas as últimas cenas da
vida do padre João Bosco, providencialmente.
Agonia de Mártir
várias vezes seu sofrimento pelos índios, pelo Povo. Pelo
Povo de nossa Prelazia, pelo Povo de sua Prelazia de
Diamantino. Lembrou-se do cimi, de Dom Tomás Bal-
duíno, seu presidente. Lamentou com saudade comovedora:
‘Sinto não ter tomado nota do que os índios (Ta-
pirapé) falaram... ’ Recebeu a Unção, de minhas mãos,
lúcido e fervoroso. Em latim, porque ele rezava em latim
o seu breviário, até o último dia. Recordei-lhe, uma e
outra vez, que o dia seguinte era a festa de Nossa Senhora
Aparecida e ele assentia e oferecia de novo sua
dor.
índios que morria, e morria por libertar da tortura dua#
pobres mulheres do Povo do interior.
O Povo Planta a Cruz e Derruba a Cadeia
E cantavam:
& Em seguida:
... Como também aconteceu a Jesus Cristo, padre
João morreu porque defendia a Verdade, a Justiça e a
Liberdade.
— “Padre João morreu porque defendeu a liberdade
de duas mulheres do Povo. É bom lembrar também que
é por essa mesma causa que o bispo e todo o povo da
missão é chamado de comunista e subversivo.”
Vários dos presentes declararam que já tinham sido presos
ali injustamente e que ali haviam sido maltratados.
O julgamento que nós façamos desses gestos e dessa
voz dependerá da distância ou da proximidade em que
vivamos do sofrimento, da angústia e da Esperança do
Povo. Dependerá na medida em que vivamos o Evangelho
do Filho de Deus, encarnado na hora e na história
de um Povo, dentro da História da Humanidade e
Morto e Ressuscitado para transformar essa História em
Mistério da Salvação.”
— Fuenteovejuna, senhor.
— E quem é Fuenteovejuna?
âmbito nacional. O Povo foi ameaçado, na ocasião e depois,
muitas vezes, em suas declarações, com a vinda de batalhões,
inteiros, até de pára-quedistas...
Minha opinião foi sempre que a única maneira de a Polícia
refazer-se um pouco diante da opinião pública era justamente
aceitar. Mas cada um tem seu ponto de vista... Não
houve jeito e me limitei a dizer-lhe, para terminar:
Todos eles, de um lado, quando envolvem pessoas
da Igreja, atingem os cristãos — bispos, padres ou leigos
— comprometidos pelo Evangelho com o Povo. De outro
lado, todos esses fatos provêm dos poderes — da política,
do dinheiro, das armas, do latifúndio — interessados em
manter esse mesmo Povo na secular dominação.
Dia 12 de novembro.
Aquele outubro, do dia 24 ao 27, tivemos um retiro espiritual
no Centro de Treinamento de Líderes, da diocese de
Goiás — tantas vezes acolhedora Betânia para nossa Igreja
de São Félix. Protegido pelas verdes montanhas silenciosas,
calçado de ruas de pedra antiga onde os carros a duras penas
caminham assustando-se, e cercado de tradições arcaicas, aquele
Centro, sob o cajado pastoral de Dom Tomás, ajudado por seus
colaboradores — criticados, mas conseqüentes — converteu-se
em um foco de irradiação pastoral inclusive para além das
fronteiras do País. Por suas comunidades eclesiais de lavradores,
conscientes e responsáveis, por um largo magistério do
Povo de Deus em folhas mimeografadas e por uma fermenta-
dora presença da Igreja de Goiás nas mais significativas horas
e ângulos da Igreja nova do Brasil.
neamente na cidade e no campo? Aquela manhãzinha et tinha
saído de São Félix para Porto Alegre, na beira do rio Tapi-
rapé, onde o Povo celebrava seus festejos de Nossa Senhora
da Libertação, a antiga e barcelonense Virgem das Mercês,
Libertadora dos Cativos.
* com as coisas.
— ‘Quanto mais profundamente entro na oração,
mais me sinto politicamente comprometido.’
— consciência revolucionária;
— atitude profética;
— vida radical.
Passamos quase dois dias, Maxi e eu, em um barraco
de peões. (Ali escutei os relatos, vividos por eles, de
brutalidades e mortes em tantas fazendas muito conhecidas,
inclusive a Codeara, naturalmente. Macabras mortes
em massa, chegando a tingir a água do lago...!)
exasperadamente. Mata-se porque não se vive. Estamos
longe da Justiça que faça possível uma alegre convivência
humana na qual a vida tenha valor central.”
25
Foi uma Assembléia notável, por várias razões. Nela foi
lançado o documento Exigências Cristãs de uma Ordem Polí-
tica, aprovado pela quase totalidade do Episcopado presente
— 230 —, com apenas três votos contrários. Este documento
complementa, na esfera dos princípios, aquele documento profético
da Comissão Representativa, Comunicação...
— A missão da Igreja.
— Os modelos.
— O bem comum.
— A participação.
— Liberdade e segurança.
— Regimes de exceção.
— O desafio do desenvolvimento.
— A comunidade internacional.
texto, ainda não-definitivo, do documento sobre política, Mas
tudo isso, digo, em tom menor. Inclusive ofertei a Dom Geraldo
um exemplar de Tierra Nuestra..., com uma dedicatória
cordial.
Seria bom anotar aqui como as forças de Segurança acompanharam
a Assembléia, ameaçando reabrir processos se publicássemos
o Documento, e apreendendo, por sofisticado equipamento
de captação, o que se dizia naquele verde cenáculo. Mas
isso já passou a ser rotina no Brasil e em outras muitas partes
de nossa América aguilhoada.
blicou, dia 6 de abril de 77, em um número extraordinário,
uma verdadeira antologia de solidariedade.
verde à perseguição contra a Igreja do Povo, contra nossa
Igreja da Amazônia.
!>}
por exemplo, o meu livro Yo Creo en la Justicia y en
la Esperanza, como não tenho possibilidade de falar em
rádio e televisão.
Sobre os textos
Dizer que sou contra tudo e contra todos é uma afirmação
que não precisa ser respondida. Sou, inclusive, a
favor da utopia. Certamente sou a favor do Evangelho,
pelo qual estou arriscando a vida; sobretudo do Evangelho
das Bem-Aventuranças e do Anúncio da Boa Nova aos
Pobres, aos Presos, aos Cegos. E sou apaixonadamente
a favor dos indios, dos posseiros e dos peões, como também
de toda esta natureza amazônica que está sendo
destruida, profanada. Sou também muito a favor da conversão
dos opressores que, convertidos, deixariam de
oprimir.
do próprio Jornal do Brasil e de O Estado de S. Paulo,
na ocasião da surpreendente reforma judiciária. São
também estas as opiniões de um grande número de intelectuais
e da opinião pública mais esclarecida do País.
traído o egoísmo do capital, o privilégio das minorías, a
exploração do homem pelo homem.
com que estava sendo feita a integração da Amazônia,
conforme ele mesmo disse à imprensa.
Sobre o celibato
Assinalar as comunidades de base como um perigo
social parece-me não apenas uma calúnia, como também
uma espécie de traição eclesial: equivale a entregar um
programa oficial da cnbb às forças da Repressão.
O CIMI
verdadeira Eucaristia, que foi mais tarde.” (,Jornal do
Brasil, 8-5-1977. Os títulos são do próprio jornal. Os
textos entre parênteses foram acrescentados agora.)
[meus olhos
Cansados de olhar...
de ver ou de olhar?
[vida;
[das leis —
de viver, de esperar
— Belém-Brasília —
chove com sol
[doze horas.
[patena túrgida.
[Doze (traidores)..,
na marcha de outras muitas,
[caminhante!
um pouco,
cada dia
[lém, Belém I! —
mais livres, mais humanos, mais irmãos, mais novos:
os fiéis, os pequenos sobretudo;
inclusive os bispos
[Testemunho!
[Graça!
e as moças e os rapazes
jogam de peito aberto,
[véus.
com a alma em Suas Mãos trespassadas de
[cravos e de Glória;
Ainda persistem,
enrugadas,
submetidos à suspeita, inclusive por algum coirmão no
Apostolado, sentimo-nos no dever fraterno e apostólico de
comunicar-nos com Vossa Santidade.
'Não receamos possíveis penalidades de nenhum poder
■contra nós. Nossas vidas estão sacramentalmente marcadas
para o Serviço e O Sacrifício. Preocupa-nos, apenas,
por amarga experiência das nossas próprias Igrejas e de
tantas Igrejas desta América Latina, em hora de Martírio
e de Libertação, a sorte dos pequenos, o desnorteio
e o desamparo em que ficaria o Povo de Deus, sob as
represálias dos poderosos, se nós, os pastores, fôssemos
omissos pelo silêncio ou cúmplices pela ambigüidade.
(Assinaturas)
26
Xingu e pela linha divisória entre o Mato Grosso e o Pará.
Não me agradaria que se relativizassem excessivamente as
coisas, porque assim ficaríamos sempre em simples reformismos
ou em ambíguas conivências, justificadas conforme os meridianos.
Falo do Vaticano sabendo em que meridiano está; e
falo do Capitalismo sabendo que está em todos os meridianos.
é uma verdadeira reserva das multinacionais — e a mecanização
seletiva do campo.
— a Tapiraguaia (do Grupo Medeiros-Carneiro), negan-
do-se insolentemente a reconhecer a terra dos Tapirapé (e a
funai, impotente ou cúmplice!);
Santarém, Cuiabá-Porto Velho, Brasília-Manaus, Manaus-Cara-
caraí, Perimetral Norte...
27
Estes dias os estudantes — gloriosos utópicos de sempre,
sempre os primeiros nas alvoradas — saíram às ruas (ou tornaram
ruas o seu campus), organizando várias manifestações
de massa, nas principais capitais do Brasil, exigindo: “Liberdades
democráticas”, “anistia aos presos políticos”, “fim das
torturas”, “imediata libertação dos operários e estudantes presos”...
Alguns se solidarizaram com Tomás e comigo.
Um dia também a Liberdàde amanhecerá sobre esta nova
Pátria, verde e amarela, que já se fez minha, definitivamente.
trária idolatria da Segurança Nacional. A América Latina espera
uma atitude limpa e conseqüente de seus bispos. Eles têm
que ver como respondem a essa expectativa continental. Seria
tão necessário não esquecer, nessa hora-chave, que só se evangeliza
a partir da Encarnação!
— “Recebereis a Força do alto e sereis minhas testemunhas,
começando por Jerusalém, até os últimos confins
da Terra...” (At 1,8).
Maio de 1977
O Deus e Pai de
Nosso Senhor Jesus Cristo
A primeira sensação que tive de Deus foi a de um Ser
realmente único e que valia. Ele contava na vida de meus
pais, na vida de minha família. Deus era um nome, uma
ameaça, um objetivo, um consolo, um recurso, constante, definitivo.
de que eu não me lembre. Lembro-me, porém, das novenas
das almas a que também assistíamos, meu pai me segurando
pela mão e eu em temerosos cochilos diante do enorme quadro
das “almas em chamas”.
Além disso, as mães, as avós e as tias eram mais puramente
católicas, como o eram sem discussão, as crianças e
os velhos...
lico, os círculos de estudo dos mais velhos, as publicações ou
cartazes, as excursões e “caramelles”, a vida do Centro Paroquial
— foram minha vida, obsessivamente. Religião, Igreja,
Fé, sem fronteiras, promiscuamente sentidas. Deus era isso
tudo. Que mais poderia ser?
Os constantes exercícios espirituais, sobretudo nos volumes
sérios, bem fundamentados do padre Casanovas, firmaram-me
na convicção de Deus como Princípio e Fim da Vida. (“Tü,
meu Princípio e meu Fim. — Eu, agora, um peregrino •— de
Ti a Ti.”) A Eternidade passou a ser em mim, além da meta,
o valor, a razão constante da existência: Quid hoc ad Aeterni-
íatem? Este mundo era verdadeiramente uma “aparência que
passa”...
— Em relação à Bíblia, poderia dizer, em síntese, que a
medida em que a venho conhecendo, por meditações, por leitura
— nunca por grandes estudos especializados, verdade seja
dita —, pareceu-me ser o mais certo — por cima e por baixo
de velhas e novas exegesis — e o mais saudável — falando da
Saúde de Deus em Jesus Cristo — essa leitura humilde e
crente da mesma, a grandes golpes de vista ou a sorvos:
— os nomes-chave;
enumerar algumas porque sem elas o itinerário de minha Fé
e seus motivos ficariam inexplicados.
Jó e o mistério do sofrimento humano, a dura confiança
no Senhor que é um desafio para os ímpios, o sentido da
morte e aquela “cega” esperança de ver “com estes olhos”.
José e sua fé às escuras, sua generosa fidelidade
(Mt 1).
— “Este povo me honra com os lábios” (Is 29, Mc 7,
Mt 15).
— A parábola do fariseu e o publicano (Le 18).
Romanos-. A justiça da fé (4), O batismo (6), o Cristão-
“livre” do pecado e da lei (6 e 7), a lei do Espirito que liberta
(8), “Não recebestes espírito de escravos”, a Criação libertada
(8), a Fé, dom gratuito (9), Filhos da luz, “já é hora
de vos levantardes do sono” (13).
I Timoteo: “Se nos fatigamos e lutamos é pela esperança...
do Deus Salvador de todos os homens, particularmente dos
crentes”... (4,10).
Sua última palavra deveria ser a jaculatoria da Igreja,
porque é o maior grito de nossa Fé, a voz última da Esperança:
“Vem, Senhor Jesus!”
dição. Embora sendo timorato, libertei-me extraordinariamente.
Como a poesia para Juan Ramón Jiménez, a Fé foi-se despindo
para mim. Creio no sensus fidei por experiência, posso
dizer.
vezes o Senhor teve que descer, de noite, para me dar o pão!
Os Cursilhos de Cristandade me confirmaram nesta oração de
súplica, com sua “intendencia” e suas “alavancas”. Não sei se,
às vezes, não era essa, um pouco, aquela oração dos gentios de
que falava Jesus. Sei que a intenção não era essa.
eternamente. Creio neste Amigo que meus pais, a Igreja me
apresentaram; Deus feito Homem, nascido em Belém, da casta
de Davi, decaída, filho verdadeiro de Maria, judeu e operário,
originário de um povo colonizado; Homem que ama e sofre
e morre, perseguido e condenado pelo Poder dos homens; Ressuscitado
pelo Poder de Deus, misteriosamente igual ao Pai,
“em quem habita corporalmente a plenitude da Divindade”,
cujo Espírito anima a Igreja, Caminho, Verdade e Vida, Salvador
dos Homens, o Senhor!
A Igreja, Povo de Deus
Sacramento de Salvação
A Igreja Católica, Apostólica e Romana era, na minha
cidade de criança, a única Igreja. Havia três ou quatro alemães
protestantes, donos das minas de potássio, que tinham, no
carro, assento próprio para seu pequeno “cachorro-lobo” da
boca pintada de batom e que comia doces e os melhores
bifes...
Eu acompanhei e escondi os religiosos e os “católicos” perseguidos.
Convivi com eles nas fazendolas e nos densos pinhais.
Estou me empolgando.
paninhos sujos de casa e a visão crítica que o estudo e as
leituras e alguns mestres nos proporcionaram, habituaram-me
a uma atitude rebelde. Pensava, rezava, falava, escrevia, con-
fabulava rebeldemente.
As intrigas entre “padres seculares” e “padres religiosos”
que já sentia aos doze anos quando decidi “mudar” para a
Congregação e que, depois, vivi em batalhas maiores entre
bispos e provinciais, entre superiores e párocos, entre Ação
Católica, movimentos e associações; o provincianismo fechado
de cada instituto — “superestrutura dentro da estrutura da
Igreja”, como dizia o Cardeal Tabera, presidente da Sagrada
Congregação dos Religiosos; a ambição desses institutos de ser
tudo em todo o mundo, como uma Igreja paralela; a formação
tantas vezes anquilosada e desumanizante que recebíamos, sem
apelação possível; a obediência que, além de “cega”, era, com
tanta freqüência irritantemente irracional; a pobreza religiosa
que freqüentemente era uma mentira ou, pelo menos, uma
farisaica distinção entre pobreza pessoal e riqueza coletiva do
instituto; os horários, os regulamentos que impediam o apostolado,
que sacrificavam o homem de dentro e o homem de
fora; o abismo que mediava entre nossa vida, organizações,
métodos e a vida dos homens desembocada na rua; o celibato
que era, para muitos, uma amarga violência, uma enver-
gonhadora imposição; a falta de ideal, do zelo que a gente foi
encontrando em tantos religiosos e sacerdotes acomodados,
frustrados, condenados a ser sacerdotes in aeternimv, “nossas
coisas” do instituto que eram diferentes, ao que parece, das
coisas da Igreja e que a gente não via como encaixar nas
coisas do Reino de Deus, nas necessidades prementes do Mundo
dos Homens; o Direito Canônico fossilizado; os Magistérios
inapeláveis; as Encíclicas e Cartas Pastorais que vinham
sempre a reboque; a Pastoral rotineiramente imposta, bagunçada
ou inexistente, aquela Pastoral de conjunto que muitas
vezes era apenas um conjunto de Pastoral, sem pé nem cabeça...
Tudo o que a gente engoliu e cuspiu, durante anos,
com a culpa secular dos outros e com a própria culpa de cada
dia, tudo isso que aborrecia a gente, na Congregação, nesta ou
naquela Diocese, na Igreja; isso que a gente intuía ou palpava
como não podendo ser vontade de Deus, Evangelho de Cristo,
o Reino, tudo isso haveria de acabar, era impossível que não
acabasse! Era preciso mudar muito, urgentemente revolver,
mudar “tudo”...
que- tanto amei depois, a quem continuo vendo como o patriarca
profeta da Igreja nova, outra vez livre. Como me custou
aceitar Paulo VI porque “não substituía” o Papa João, porque
logo começou a “me decepcionar” com seus equilibrismos; a
quem depois venho compreendendo e criticando e de quem
venho me compadecendo; por quem rezo, com quem comungo
e de quem, às vezes, discordo fraternalmente, na liberdade
da Fé.
Como se um antigo relevo esquecido viesse a primeiro
plano, crescendo, a Igreja se tornou de repente o Povo de
Deus. Todo um Povo de eleitos, toda uma comunidade messiânica
e sacerdotal.
Quando agora os amigos do Brasil ficam sabendo meus
antecedentes cursilhistas, ficam pasmados ou então gozam de
mim. Não é possível que eu, — bispo livre e renovador, cristão
politizado de esquerda — tenha sido cursilhista e padre de
cursilhistas e até introdutor dos cursilhos na África!... Quando
os cursilhos aqui no Brasil, na América, são considerados reacionários
ou angelistas...
Creio na Vida Religiosa como urna característica essencial
da Igreja “evangélica”. Sofri muito por causa da vida religiosa
e vi muitos sofrerem por causa dela. Devo entretanto à vida
religiosa minha atual vida de Igreja. Creio também na vida
religiosa contemplativa, sempre acreditei nela e me senti inclusive
chamado a ela, em várias ocasiões-chave de minha vida.
E saúdo com alegria as novas experiências de vida religiosa -—
também de vida religiosa contemplativa — que estão surgindo
ao longo de toda essa Igreja de Deus, progressista e conservadora,
antiquada g profética, impossível e fiel.
Particularmente em ‘terras de missão’ ou em centros
ou ambientes particularmente caracterizados como ‘mis-
sionados’.
apelos da Igreja e do Mundo e para estimular e encaminhar
intercâmbios e ajudas.
Nosso carisma missionário nos obriga a uma atitude
revolucionária no sentido de uma evangelização clara,
comprometida e comprometedora, renovadora de consciências
e de estruturas, encarnada na angústia e nas
aspirações dos homens e dos povos concretos.
Reino, nem os homens e as mulheres de hoje ou de
amanhã deixarão de responder a esse chamado, como as
mulheres e os homens de ontem.
é hoje o horizonte limpo de minha Fé; é minha Esperança.
Fui conhecendo “outras” Igrejas. A causa do Ecumenismo
passou a ser uma dolorosa causa minha. Fez muitos anos que
me dilacera ver a oração-testamento de Jesus — “que todos
sejam um” — tão sistematicamente desatendida, tão bestifica-
mente subentendida pelos cristãos. A divisão dos cristãos me
parece a mais absurda divisão humana já registrada na História.
Este é um mistério de Fé pelo avesso. Uma espécie de' loucura
de Fé, coletiva. Não deveria ser, não poderia ser.
por motivo dos conflitos da Prelazia; o retiro que fez comigo,
em Cratéas, o seminarista luterano Roberto; o diálogo com
esses cristãos “não-católicos” tão verdadeiros, com quem é bem
mais fácil comungar e expressar a comunhão do que com
tantos outros cristãos “católicos”, inclusive sacerdotes e até
bispos... Afinal, o que será que nos une mais em Cristo e
na missão da Igreja: os dogmas cristãos “enquiridionalmente”
partilhados (!) ou a Fé cristão convivida?
minha consciência, minha experiência de bispo modificaram
profundamente a eclesiologia que eu professava e vivia. As leituras
de: Teologia e Pastoralt recentes; a difundida tentativa
das Comunidades de Base; a superação da dicotomía entre o
céu e a terra, entre uma Igreja que andava nas nuvens e uma
Humanidade que tropeçava na lama; a adquirida visão crítica
e descentralizadora de uma Igreja-monolito-Vaticano; a
própria encarnação no Povo de Deus em que a gente acredita,
por quem a gente sofre, e ao qual a gente se dá, aqui, precisamente
neste nordeste do Mato Grosso, entre o Araguaia e
o Xingu, foram reclamando da gente uma postura nova, um
novo compromisso face ao ministério real e diário da Igreja
particular.
que é também Povo de Deus: os sertanejos, os posseiros,
os peões; este pedaço brasileiro da Amazônia.
anacrónicamente deslocadas, porque penso descobrir nelas interferencias
da diplomacia em desfavor do Evangelho.
ma” e “abaixo”, aceitando na prática a igualdade fundamental
de todos os batizados, favorecendo de fato o exercício do pluralismo
dentro da unidade da Fé e agradecendo a Deus e aos
Homens o livre jogo enriquecedor do diálogo eclesial e mundano.
de temperamento, de formação. Pela livre lei da amizade, simplesmente:
Abraão, como já disse, o patriarca dos chamados,
o emigrante da Fé; Isaías, o lírico dos tempos messiânicos, o
profeta evangelista; e, com ele, outros profetas e líderes, entregues
a Jahvé e ao Povo; João Batista, o precursor insubor-
nável, despojado de si e fiel até à morte; José, companheiro
de Maria, pai de “criação” de Jesus, herói do silêncio e da
fidelidade diários; os apóstolos de Jesus, Pedro, sobretudo, João
e Paulo; Estêvão, o protomártir; Lourenço, a jovial testemunha
de Huescoa; Inácio de Antióquia, bispo e mártir; Agostinho,
todo coração e palavra de fogo; e outros padres e pastores da
Igreja. Francisco de Assis, poeta, místico, mendigo e demolidor
das estruturas do poder e do dinheiro; o missionário Francisco
Xavier; o fundador de minha congregação, Antonio Maria
Ciar et, apóstolo realista e abrasado; Teresa d’Avila e Teresa
de Lisieux, amigas e mestras; Maximiliano Kolbe, o louco de
Nossa Senhora, vítima de um campo de concentração; o irmão
Carlos de Foucauld, incessante buscador de Deus no deserto
da oração, entre os homens do deserto; e tantos outros, canonizados
ou por canonizar...
tido para escrever programas de rádio, artigos, poemas e livros
marianos, perdendo noites e descansos. Como as cometi nas
grandes campanhas das peregrinações de Fátima ou do Ano
Mariano ou por ocasião da definição dogmática da Assunção
ou em várias das circunstâncias significativas — congressos,
comemorações, peregrinações, consagrações — desta “Era de
Maria” que em boa parte e em boa hora me foi dado viver.
cada vez mais, no meu pensamento e no meu coração, a cantora
do Magníficat, profetiza dos Pobres libertados; a mulher
do Povo, mãe marginalizada em Belém, no Egito, em Nazaré
e entre os grandes de Jerusalém; “Aquela que creu” e por isso
é bem-aventurada; aquela que “ruminava” no silêncio da Fé,
sem visões, sem muitas respostas prévias, as coisas, os fatos
e as palavras de Jesus, seu Filho; a Mãe do perseguido por
todos os poderes; a dolorosa Mãe do Crucificado; a testemunha
mais consciente da Páscoa; a mais autêntica cristã de Pentecostés;
um grande sinal escatológico em meio do Povo da
Esperança...
[Reino,
sem subterfúgios,
busquemos de fato,
A Causa do Homem Novo
Bebi, em casa, a austeridade. “Nosaltres som pobres, filis”
(“Nós, filhos, somos pobres”), diziam-nos meu pai e minha
mãe freqüentemente. Bebi em casa também um certo desprezo
pelos ricos, pelo dinheiro mal ganho, pela exibição.
Desde criança o luxo me pareceu sempre uma ofensa e a
exploração me revoltou sempre. Vi dentro da própria família
como os interesses dividem. E vi, cedo, como a política é
oportunista e desleal.
que fosse para se justificar, seria justificado com aquela exclamação
então habitual: “É a guerra!”
como as de Barbastro, por exemplo ■— com urna aureolada
marca de verdadeiro martírio.
Eu já estava, naquela época, vivendo as favelas de SabadelL,
Barcelona e Madri; a migração externa e interna: o problema
operário e uma asfixiante ¡falta de liberdade, inclusive para
um tímido artigo que a gente pretendesse publicar numa revista
provinciana. E estando já na direção de Iris, a polícia iria
preocupar-se inclusive com uma simples crcnica. A Liberdade
ara um clima insubstituível. A Ordem não podia ser comprada
a qualquer preço. As represas, as estradas, o turismo e os pólos
de desenvolvimento não justificavam uma situação nacional de
minoria.
Também gostaria de ver muito mais criticamente depurada a
História dos Povos colonizadores e a História das Missões
Cristãs. Quando li Enterrem Meu Coração na Curva do Rio,
me envergonhei uma vez mais —- com o perdão dos leitores
— de ser “ocidental”, “espanhol” e “cristão”: pelo que o livro
evocava de tantos lugares e fatos da penetração civilizadora...;
pelo que a gente vive tão próximamente; com consciência histórica
e sem possibilidades de reação.
E o comentário subseqüente:
Quando criança, odiei até os estilingues contra pardais.
Nunca disparei um tiro e nem penso dispará-lo nunca. A guerra,
porque a vivi já quando criança, não podia me entusiasmar
muito. Jogos Proibidos é um dos filmes que mais ficaram
gravados. Às vezes, sim, me entusiasmaram, na distância glo-
rificadora do passado, os “grandes” feitos bélicos da História,
e senti minhas simpatias pelas fardas e tive e tenho ainda —
longe — bons amigos militares. Longe, disse. Aqui, perto, os
militares são meus “inimigos”, na medida em que são inimigos
do Povo. Porque estão a serviço do Capitalismo e da Ditadura;
porque vivem servilmente entregues aos assistencialismos
mistificadores, aos “projetos-impacto”, à repressão e até à tortura.
Não falo decorado, mas do vivido.
ser um romântico ou um demagogo. Devo estar pensando e
falando feito besta. Peço a Deus que eu não chegue nunca
a ser sensato!
mana, não é precisamente o Regime tal, nem, menos ainda,
o Partido qual. SNão é a Rússia, claro, nem Cuba, nem a
China nem a Argélia nem o Chile de Allende. É algo deles,
entretanto.
Ele se limitou a responder-me — com todos os que a
isto se limitam — que essa socialização era urna utopia.
Volência maior que está aí, institucionalizada, oficialmente justificada,
diplomaticamente tolerada e dialogada e que provoca,
por reação, tantas outras violências bem menores. É a “espiral
da Violência” de que fala o querido Dom Helder.
isso mesmo, realista e veraz. Não digo ‘eficiente’ em
termos de eficácia técnica ou lucrativa (ou imediatista).
Sei que é uma luta no tempo e para a escatologia. Continuo
pensando que a ‘Violência’ e a ‘Não-Violência’ são
expressões infelizes. A Justiça e o Amor definem mais
plenamente a verdadeira atitude cristã de uma vida comprometida
na renovação do Mundo”.
E no entanto escrevi também, nesses dias de conflitos (de
injustiça, de perseguição e de repressão), que o próprio nome
da Paz tinha sabor de inércia, de cumplicidade interessada, de
angelismo. Infelizmente, com demasiada freqüência, a Paz é
sinônimo da Ordem estabelecida, quando somente a Justiça, é
o nome antigo e novo da Paz. “Paz, paz, paz, e não há paz”,
diz o Senhor, porque não há Justiça. Poderá ser alguém
bem-aventurado por buscar a Paz se não a buscar com uma
abrasada sede de Justiça? Já sei que Cristo fala daquela Justiça
que é a glória do Deus vivo, mas que também é a glória
do Homem vivo! Como fala do primeiro mandamento que é
também o segundo. Sei que “ninguém pode falar de Justiça
se não for um Justo ele próprio. Poderá falar de Paz aquele
que efetivamente não se consome para construí-la na Justiça?
Agora creio na Liberdade! E creio nela como um bem
supremo para quem foi feito à imagem de Deus. Creio na liberdade
do homem que o próprio Deus respeita misteriosamente.
mente rousseauniano: Reconheço que a Humanidade já caminhou
muito. Deus e o Homem sejam benditos por isso. Com
José Maria Pemán — frente àqueles ilustres personagens espanhóis
de sei lá quantos anos atrás que, numa pesquisa, escolhiam,
como século ideal, o XIII ou o XVI ou o XVIII — eu
escolho este nosso século XX. “Com seus pecados, nosso”,
como dizia Barcelona de Joan Maragall.
No Credo que tem dado sentido à sua vida, Javier Domínguez
— cuja Fé na Justiça partilho plenamente — escreve:
“À noite, com a cidade apagada e uma imensa lua
desperta, Manuel e eu, a sós, escutamos pelo transistor
o final do Primeiro Festival Universitário de Música Popular
Brasileira: ‘Que bacana!’, ‘Senhora de Luar’, ‘Vem,
companheiro Che!’ — homenagem e apelo ao mártir do
Continente.
“— Che Guevara —
Escuto no transistor como te canta
a juventude rebelde,
enquanto o Araguaia palpita a meus pés como urna
[arteria viva
da asma do cansaço;
Somos amigos
haverem “decidido prescindir da generosidade para praticar a
caridade”. E o humorista brasileiro Millor Fernandes diz que
entrevista política se chama “o ato de 'falar daquilo que se
deveria estar fazendo”. As três advertências são saudáveis.
E falando da Causa do Homem Novo, mais uma vez, faço o
propósito de tê-las presentes na vida.
Amém. Aleluia!
Y
Esperança Total
Tenho falado da Esperança ao longo de todas estas páginas,
porque a Esperança tem sido meu credo ao longo de
toda a minha vida mais consciente.
“O antídoto da angustia é a opção — diz a Agenda
Vozes. Mas a opção nunca se acaba de fazer: vai-se fazendo
hora a hora, minuto por minuto. É a fidelidade,
o que nossos antepassados chamavam ‘perfeição’, o ‘sim,
Pai’ de Jesus” (23 de março de 70).
Temo morrer? Sei que não fugi da morte talvez porque
não podia mesmo fugir. Disse que a venho pedindo. Como
martírio, isto sim: talvez para poder toureá-la mais gloriosamente,
porque é menos processo “fatal” uma morte “matada”
do que uma morte “morrida”, porque é uma morte que a
gente acolhe ou “provoca” como um valoroso supremo ato
vital. (Talvez porque seja carisma da gente. Tem-se carismas
para viver; não se poderá ter carismas para morrer?)
De pé me matarão.
E os rios e o mar
se farão caminho
de todos os meus desejos
— Certifico
De súbito, com a morte,
minha vida se fará verdade.
todo esforço que o Homem realiza, cada passo que o Homem
dá, a intra-histórica esperança da luta marxista, a morte sobretudo
dos que morrem pela Causa do Homem, aos golpes,
talvez às cegas, de quantos tentam construir o futuro melhor...
tudo se transformava em tensão escatológica, em “profissão”
— lúcida ou louca — de “Esperança total”. E “a Esperança
não decepciona” (Rom. 5,5).
e o Mistério de Cristo que é a Redenção do Homem, criado
por Amor, nascido em não sei que pecado, mas renascido na
Graça de Cristo.)
totalmente homens”, dizia Inácio Mártir; “livres, livres, enfim!”,
suspirava, agonizante, Luther King.)
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Janeiro, RJ
intrínsecamente crê na Divindade, e que
seja ao mesmo tempo comunista. A crença
religiosa e o marxismo-leninismo são absolutamente
incompatíveis, em virtude de
princípios filosóficos fundamentais. Falar
de “padre comunista” é uma incongruência,
uma antítese, a não ser que se suponha nào
se tratar de um padre, mas de um comunista
militante que escolheu a Igreja desde
a juventude e passou a vida dizendo missas
e comendo hóstias em troca de um bom
disfarce para suas verdadeiras idéias. Convenhamos
que é fantasioso demais. Não se
escamoteia assim uma tão grande vocação
e uma crença tão inabalável.
Creio na Justiça e na Esperança
D. Pedro Casaldáliga
D. Pedro Casaldáliga