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“Eunucos por Causa do Reino dos Céus”

por

Alderi Souza de Matos

O celibato clerical relaciona-se com dois fenômenos que se


manifestaram no cristianismo a partir do período antigo: o
ascetismo e o monasticismo. À medida que a Igreja foi se
tornando majoritária no mundo greco-romano, com o
conseqüente declínio dos seus padrões espirituais e éticos,
surgiu no íntimo de muitos cristãos o anseio por uma vida mais
disciplinada e consagrada a Cristo. Eventualmente, surgiu o
entendimento de que havia duas categorias de cristãos: aqueles
que se contentavam com uma vida espiritual inferior e aqueles
que aspiravam à perfeição (Mt 19.21). Estes últimos deveriam
viver de modo distinto dos demais, renunciando a algumas
coisas tidas como empecilhos para o fiel exercício da sua
vocação religiosa. 

A ascese ou autodisciplina cristã inspirou-se tanto nas


Escrituras quanto na cultura e filosofia gregas. A vida
celibatária de João Batista, Jesus e Paulo, bem como certas
afirmações destes últimos preservadas no Novo Testamento,
exerceram forte influência sobre muitas mentes. Jesus afirmou
que alguns indivíduos recebem o dom de se tornar “eunucos” –
renunciar ao casamento – por causa do reino dos céus (Mt
19.11-12) e Paulo recomendou que as pessoas dessem
preferência ao estado em que ele mesmo vivia (1 Co 7.8). Além
disso, o dualismo platônico tão arraigado na mentalidade grega,
com a sua distinção entre espírito e matéria (e a tendência de
valorizar aquele em detrimento desta), também contribuiu para
certas ênfases dadas à vida religiosa. 

Os ascetas e os monges foram vistos como os continuadores da


antiga e gloriosa tradição do martírio. Eles eram os “mártires
vivos” que, com a renúncia aos prazeres da carne, podiam de
maneira mais livre e desimpedida dedicar-se ao serviço de
Deus. Essa renúncia era considerada especialmente
significativa na área da sexualidade e desde cedo na história da
Igreja houve a tendência de se valorizar extraordinariamente a
virgindade e a castidade como condições que supostamente
contribuíam de modo singular para a vida de santidade. Um
bom exemplo dessa preocupação pode ser visto nos escritos de
Tertuliano, que viveu em torno do ano 200. É digno de nota
que, ao fazerem isso, tais cristãos afastavam-se de uma ampla
corrente de ensinos bíblicos, inclusive neotestamentários, que
apontam em direção oposta – a valorização do casamento e da
vida em família, inclusive para os líderes da Igreja (ver Mt 8.14;
1 Co 9.5; 1 Tm 3.1-3; Tt 1.6). 

A institucionalização do celibato 

Apesar desses ensinos, a partir do segundo ou do terceiro


século surgiu o entendimento de que o celibato era uma
condição preferível para os líderes da Igreja. No quarto século,
quase todos os bispos da Grécia, Egito e Europa Ocidental eram
solteiros ou, se casados, costumavam deixar as suas esposas
após a consagração episcopal. Todavia, os sacerdotes e
diáconos se casavam, não havendo nos primeiros séculos
nenhuma lei que proibisse o casamento do clero.
Eventualmente, os dois grandes setores da Igreja – oriental e
ocidental – desenvolveram normas diferentes quanto ao
celibato. 

Na igreja grega ou oriental, surgiram leis nos séculos sexto e


sétimo proibindo expressamente o casamento dos bispos e
determinando que, se já haviam se casado previamente, a
esposa deveria ser enviada para um convento distante. Mas as
ordens inferiores do clero podiam casar-se, como acontece hoje.
Ironicamente, a igreja ocidental, em teoria menos influenciada
pelo dualismo platônico do que a sua congênere grega, acabou
adotando normas mais rígidas quanto ao celibato, impondo-o a
todos os religiosos, inclusive ao clero inferior. Parece que isso
resultou mais de considerações práticas do que propriamente
teológicas. 

No Ocidente, o celibato tornou-se uma obrigação canônica para


o clero por meio dos esforços combinados de papas e concílios
regionais. A mais antiga estipulação sobre o assunto, o cânone
33 do Concílio de Elvira, na Espanha (por volta do ano 305),
declara o seguinte: 
Decretamos que todos os bispos, sacerdotes e diáconos, e todos
os clérigos envolvidos com o ministério, sejam totalmente
proibidos de viverem com esposas e gerarem filhos. Quem assim
o fizer será deposto da dignidade clerical. 

Pouco tempo depois, o bispo Ósio de Córdova tentou sem


sucesso fazer com que esse decreto fosse aprovado pelo Concílio
de Nicéia (325). Isso acabou sendo feito nos séculos quarto e
quinto por vários bispos de Roma – Dâmaso, Sirício, Inocêncio e
Leão – que, mediante decretais, impuseram ao clero o celibato
compulsório. Na África, França e Itália, alguns concílios
regionais emitiram decretos no sentido de assegurar essa
prática. 

A experiência medieval e a reforma protestante 

Em todas as épocas da história da Igreja, a observância do


celibato, e especialmente da castidade por ele pressuposta, foi
desrespeitada com maior ou menor intensidade. Após a queda
do império de Carlos Magno, nos séculos nono e décimo, em
certos casos os próprios papas tiveram esposas e filhos. Entre o
clero inferior, o casamento, ou pelo menos o concubinato,
tornou-se bastante comum, o que não significava que esses
clérigos viviam vidas imorais. Muitos deles eram homens
honrados que tinham as suas famílias e ao mesmo tempo
serviam à Igreja. O problema estava no fato de que a situação
irregular do clérigo diante da lei eclesiástica maculava a sua
consciência, criava uma situação de hipocrisia e despertava nos
fiéis um sentimento de que não havia integridade na vida da
Igreja. 

Ao mesmo tempo, com a fundação do célebre mosteiro de


Cluny, na França central, em 909, surgiu um movimento
voltado para a reforma moral e administrativa da Igreja que teve
entre seus principais objetivos a luta contra a simonia, isto é, a
compra e venda de cargos eclesiásticos, e o “nicolaísmo”, ou
seja, o casamento clerical. Esse movimento chegou ao seu ápice
no pontificado de Hildebrando ou Gregório VII (1073-1085), que
se esforçou tenazmente para restaurar o ideal monástico do
celibato, visto como algo muito útil para os interesses da Igreja. 
Os reformadores protestantes, com sua ênfase na precedência
das Escrituras em relação à tradição eclesiástica, rejeitaram o
celibato clerical por considerá-lo carente de fundamentação
bíblica. Os principais reformadores, homens como Lutero,
Zuínglio e Calvino, eventualmente se casaram, sem que isso em
nada tenha prejudicado o seu trabalho pastoral e teológico. 

Refletindo sobre essa nova realidade criada pela Reforma, o


historiador Steven Ozment observou que nenhuma mudança
institucional produzida pela Reforma foi mais visível, mais
sensível aos clamores de reforma do final da Idade Média e mais
responsável por novas atitudes sociais do que o casamento dos
clérigos protestantes. Também não houve outro aspecto do
programa protestante em que a teologia e a prática se
harmonizaram com maior êxito. 

O casamento, inclusive dos ministros de Deus, foi visto não


somente como uma afirmação da dádiva divina da sexualidade,
mas acima de tudo como o contexto para a criação de uma nova
consciência da comunidade humana, com todas as suas dores e
alegrias. Como parte da Contra-Reforma e da reforma católica,
o Concílio de Trento (1545-1563) reafirmou o celibato clerical,
mas declarou que ele era imposto ao clero pela lei da Igreja, e
não pela lei de Deus. 

A igreja brasileira 

Em virtude do fenômeno conhecido como padroado, no período


colonial e no império a Igreja Católica brasileira foi fortemente
controlada pelo Estado, recebendo relativamente pouca
influência de Roma. Os papas tiveram muita dificuldade em
aplicar no Brasil as normas da lei canônica, inclusive no que se
refere ao celibato dos sacerdotes. Essa restrição, aliada ao
ambiente cultural permissivo dos trópicos, contribuiu para que
muitos padres seculares (isto é, não filiados a ordens religiosas)
tivessem suas companheiras e filhos, não somente nas cidades,
mas também no ambiente patriarcal dos engenhos de açúcar. A
situação era melhor entre os membros das ordens religiosas – o
clero “regular” –, principalmente os jesuítas. 

No longo pontificado do papa Pio IX (1846-1878), Roma foi


assumindo gradativamente um maior grau de controle sobre a
igreja brasileira, mas por um bom tempo uma parcela do clero
secular continuou arredia à aceitação do celibato. É muito
interessante a esse respeito o testemunho do Rev. John Boyle,
um missionário presbiteriano que trabalhou por cerca de dez
anos no Triângulo Mineiro e em Goiás. Em 1888, ele esteve em
uma cidade goiana no dia em que se casou a filha do padre
local. O missionário soube que o casamento foi oficiado pelo
vigário vizinho e que os dois velhos sacerdotes sempre
batizavam e casavam os filhos um do outro. E essa situação
não era excepcional. Em toda a região e por todo o país
multiplicavam-se os casos de padres amancebados, variando a
atitude dos bispos em relação a eles. 

Somente algumas décadas após a Proclamação da República,


com a revitalização da Igreja Católica brasileira e sua maior
submissão a Roma, o celibato clerical passou a ser amplamente
exigido e observado. Isso agravou um problema: o número
relativamente pequeno de vocações para o sacerdócio, visto que
não muitos jovens estavam dispostos a abrir mão da
possibilidade de casar-se. Essa foi uma das razões pelas quais
sempre houve no Brasil, “o maior país católico do mundo”, um
número desproporcional de sacerdotes estrangeiros. 

Conclusão 

O exame da história do cristianismo mostra as grandes


contribuições que homens e mulheres celibatários têm dado à
Igreja e à sociedade. Exemplos como Agostinho, João
Crisóstomo, Francisco de Assis e Teresa de Ávila são muitos
conhecidos. O próprio monasticismo, apesar das críticas feitas
pelos protestantes, produziu nos seus melhores momentos
algumas das coisas mais nobres e elevadas da longa história
cristã, nas áreas da espiritualidade, missões, beneficência e
preservação da cultura. 

Todavia, historicamente a imposição forçada do celibato a todos


os sacerdotes tem causado grandes problemas para a Igreja
Católica. Desde o Concílio Vaticano II, na década de 1960,
muitos padres sérios tiveram de deixar o sacerdócio ativo em
virtude de haverem se casado. Além disso, numerosos casos de
transgressões sexuais envolvendo sacerdotes têm sido
noticiados pela imprensa nas últimas décadas, tanto no Brasil
como no exterior. Isso sem contar os casos que não vêm a
público, por diferentes razões. A Igreja Romana precisa ter a
sensibilidade pastoral para entender que muitos indivíduos
dotados de uma vocação religiosa não possuem
concomitantemente o dom da vida celibatária. Já que a própria
igreja reconhece que essa norma é uma lei da instituição e não
uma lei de Deus, seria sensato tornar o celibato uma condição
opcional para os seus sacerdotes e freiras, embora seja forçoso
reconhecer que o peso da tradição e da história milita
fortemente contra essa possibilidade.

Nota sobre o autor: Alderi Souza de Matos, ministro


presbiteriano, é doutor em história da igreja pela Universidade
de Boston e historiador oficial da Igreja Presbiteriana do Brasil.

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