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Direitos humanos e diálogo com o século XXI na

Carta Magna da Umbanda


Human rights and dialogue with the 21st century in the Magna Carta of Umbanda
Derechos humanos y diálogo con el siglo XXI en la Carta Magna de la Umbanda
Artur Cesar Isaia*

Introdução
Resumo
A Carta Magna da Umbanda1 é um do-
Este texto aborda um documento atual, cumento que veio a público no ano de 2013,
representativo do posicionamento de firmado por elementos significativos da re-
alguns líderes da Umbanda. A questão
ligião no Brasil, e, desde então, está sendo
central do documento são os direitos
debatido dentro e fora do âmbito religioso.
humanos, procurando articular a Um-
Procura tornar claro o posicionamento da
banda com pautas atuais e com as orga-
nizações micro e macrossociais no país e Umbanda frente a questões complexas e
no mundo. Nesse sentido, posiciona-se, atuais, capazes de dividir não apenas os in-
entre outras, frente a questões que en- tegrantes do campo religioso, mas também a
volvem a cidadania, o gênero, a ecolo- opinião pública.
gia e a política reprodutiva. Questões que vão da preservação do
meio ambiente aos preconceitos raciais e de
Palavras-chave: Direitos humanos. Reli- gênero, passando pela política contracepti-
giões mediúnicas. Umbanda. va, pela eutanásia e pelos direitos dos ani-
mais, são tratadas neste documento. Além
disso, problemas eminentemente voltados
para a vivência de uma democracia plura-

*
Doutor em História Social pela Universidade de São
Paulo. Professor titular da Universidade Federal de
Santa Catarina e professor colaborador do Programa
de Pós-Graduação em História na mesma institui-
ção. E-mail: arturci@uol.com.br

Recebido em 23.07.2018 - Aprovado em 15.09.2018


http://dx.doi.org/10.5335/hdtv.19n.1.8405

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lista são enfocados na Carta Magna, como fundante e estruturante do seu universo
os limites da ação do estado sobre os indiví- doutrinário, bem como autoridades institu-
duos e a participação na política nacional em cionalizadas que por elas falam, não possui
todos os níveis. nem uma coisa nem outra. Na Umbanda, os
Devido à importância dos temas, cujo templos estão mais sujeitos à autoridade do
posicionamento os representantes da Um- dirigente, que é investido de uma chefia que
banda tentam explicitar neste documento, envolve questões rituais, comportamentais
penso que o seu estudo e a sua divulgação e, logicamente, doutrinárias. Assim, para
mereçam uma atenção especial por parte quem se aventura a estudar a Umbanda e as
de todos os que investigam as religiões no demais religiões afro-brasileiras, as generali-
Brasil e seu relacionamento com as lutas po- zações não são bem-vindas (PRANDI, 2005),
líticas e a afirmação dos direitos humanos. e é necessário conhecer o cotidiano dos di-
O documento é indiciário de uma postu- ferentes terreiros, em que se vai encontrar
ra não apenas intrarreligiosa, mas também o real “fazer-se” da religião. Apesar dessa
claramente voltada para a macropolítica da atomização da autoridade na Umbanda, his-
atualidade. O documento se insere em uma toricamente encontram-se alguns dirigen-
conjuntura na qual constantemente as reli- tes e intelectuais ligados à religião, levan-
giões são interpeladas pelas perplexidades do adiante um esforço tanto representativo
de homens e mulheres, que vivenciam um quanto unificador de forças. Nesse sentido,
momento caracterizado pela “aceleração do apontam os três primeiros congressos da
tempo” (KOSELLECK, 2006), em que certe- Umbanda ocorridos em 1941, 1961 e 1973,
zas milenares transformam-se em polêmicas na cidade do Rio de Janeiro. Esses congres-
e dúvidas existenciais. sos foram momentos nos quais se firmou o
projeto de alguns dirigentes, tentando falar
Dirigentes umbandistas e a luta pela pela Umbanda e representá-la nos âmbi-
tos religioso e civil. Embora historicamente
representatividade a Umbanda não tenha desenvolvido uma
A Carta Magna da Umbanda foi uma camada sacerdotal rigidamente monopoli-
iniciativa de um grupo de dirigentes um- zadora da gestão do sagrado, processo des-
bandistas, sob a liderança de Ortiz Belo de crito por Bourdieu (2001) como inerente ao
Souza, sacerdote umbandista de São Paulo, aprofundamento da divisão do trabalho reli-
cidade em que nasceu em 1969 e desenvolve gioso, é inegável o aparecimento de líderes e
sua atuação religiosa no templo Portais da intelectuais umbandistas, imbuídos “de um
Umbanda. Os religiosos que firmaram este projeto normatizador, querendo impor-se às
documento desenvolveram, como todos os práticas multifacetadas que caracterizaram e
sacerdotes umbandistas, um investimento caracterizam a religião” (ISAIA, 2012, p. 1).
pessoal em alçar-se como líderes da religião, Ortiz Belo de Souza é um desses dirigentes.
porque a Umbanda, ao contrário de outras Na falta de um consenso sobre quem exerce
religiões em que existem um livro sagrado a autoridade e quais as atribuições dos líde-

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res na Umbanda, as disputas intestinas são posicionamento para a religião e possibilitar
muito comuns. Em relação à própria Carta um diálogo efetivo com a sociedade civil e
Magna, grupos diferentes, representados com as esferas de poder. Assim, Pai Ortiz,
por lideranças diferentes, tentaram ter a úl- como é conhecido entre os umbandistas,
tima palavra sobre o documento, provocan- fundou o Movimento Político Umbandista
do discussões no interior do campo umban- (MPU). Este movimento surgiu em 2012 vi-
dista. Marme Rosa, líder umbandista, que sando a possibilitar a discussão e a organi-
nasceu em Santa Maria, RS, e, atualmente, zação política entre os umbandistas. O mo-
exerce funções religiosas em Balneário Cam- vimento apareceu integrando a estratégia
boriú, SC, relata a divisão de forças ocorrida de organizar politicamente os umbandistas
por ocasião do lançamento do texto da Carta e levar ao parlamento candidatos afinados
Magna da Umbanda em São Paulo, em 2013 com “Sacerdotes de Umbanda e Candom-
(ROSA, 2016). Na ocasião, outra liderança blé” (MOVIMENTO..., 2014). Falando pelo
umbandista do estado de São Paulo, apoia- movimento, Ortiz Belo de Souza apresen-
da por algumas federações do ABC Paulista, tou Ronei Costa Martins como candidato
tentou reverter a autoridade de Ortiz Belo afinado com a Umbanda nas eleições para
de Souza na condução e na representação do deputado estadual de São Paulo em 2014
documento. O mesmo Marme Rosa ratifica (MOVIMENTO..., 2014). Não conseguindo
o projeto unificador, capaz de chegar a uma eleger-se deputado estadual, Ronei Costa
interlocução baseada em uma autoridade Martins é atualmente vereador em Limeira,
representativa e em uma explicitação políti- SP, tendo já ocupado o cargo de Presiden-
co-doutrinária, inerente ao documento pro- te da Câmara Municipal desta cidade, entre
posto por Ortiz Belo de Souza: 2013 e 2014, integrando a bancada do Par-
tido dos Trabalhadores (CÂMARA..., 2013).
[...] temos muita gente que vai apoiar para
registrar ou no Ministério da Cultura [o Não era nova a tentativa dos umban-
texto da Carta Magna da Umbanda]. Va- distas de organizarem-se em torno de lide-
mos registrar. Isso aqui é umbanda [...]. E ranças políticas que representassem seus in-
já aprovada e reconhecida por toda a Um-
banda do país inteiro (ROSA, 2016, não
teresses nos parlamentos estaduais. Brown
paginado). (1985) apresentou a participação política dos
umbandistas, nos anos 1950 e 1960, como
um “grupo de interesse político”, unido em
A Carta Magna: lideranças umbandistas torno de lideranças. Birman (1985) defendeu
o papel de mediação política das Federações
frente às perplexidades de um mundo de Umbanda. Já Concone e Negrão (1985)
em transformação estudaram alguns processos de clientelismo
político na Umbanda no estado de São Paulo
A Carta Magna da Umbanda integra
durante a década de 1970. No Rio Grande
um projeto mais amplo defendido por Ortiz
do Sul, Isaia (2009), Horta (2016) e Moraes
Belo de Souza, no sentido de explicitar um
(2017) analisaram a trajetória política de

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Moab Caldas como articulador dos interes- Uma religião que preza a igualdade, res-
ses umbandistas e primeiro representante peitando a Declaração Universal dos Di-
reitos Humanos através da Carta da ONU
da Umbanda no parlamento estadual, no fi- – Organização das Nações Unidas deve ter
nal dos anos 1950 e na década de 1960. este documento máximo, a missão de dig-
Como era de se esperar em um do- nificar seus milhares de seguidores, dei-
xando o legado para a posteridade (SOU-
cumento proposto por uma religião afro-
ZA, 2017, não paginado).
-brasileira, a Carta Magna dedica interesse
especial no que concerne aos preconceitos, A proposta era oficializar o documento
ocupando destaque a questão do chamado no Congresso Nacional de Umbanda, que se
“preconceito racial”: realizou na Câmara Municipal de São Paulo,
A Umbanda não aceita o preconceito étni- em agosto de 2013. Durante esse congresso
co e racial. O preconceito racial é antes de houve, no entanto, a divisão de forças entre
tudo, uma demonstração de atraso espiri- o MPU e as lideranças do ABC Paulista, re-
tual e desconhecimento das Leis Divinas.
Aquele que diminui ou persegue o irmão latada anteriormente por Rosa (2016). Esta
pela cor da pele ou por qualquer outra divisão parece ter sido a causa para que o
característica étnica, viola a regra de ouro MPU apresentasse a Carta Magna da Um-
presente nas mais diversas tradições es-
banda como uma iniciativa do grupo lide-
pirituais e religiosas (CARTA..., 2012, não
paginado). rado por Ortiz Belo da Souza, sem a parti-
cipação das referidas lideranças, conforme
Nem poderia ser diferente, quando
aparece na redação atual do documento
a Umbanda, desde a segunda metade do
(SOUZA, 2017).
século XX, vem reconfigurando sua iden-
O interessante na proposta da Carta
tidade na direção do passado africano, ul-
Magna é que o documento não é apresenta-
trapassando uma representação refratária
do como uma codificação da Umbanda. Ao
dessa herança, típica dos primeiros tempos
contrário de iniciativas anteriores, nas quais
da religião (ISAIA, 2010). A Carta Magna da
a pretensão normativa aparecia explicita-
Umbanda articula-se com o fortalecimento
mente, o documento apresenta-se como um
étnico, identitário e religioso de valorização
projeto inconcluso. O texto de apresentação,
do passado afrodescendente, típico das pri-
da autoria de Ortiz Belo de Souza, propõe
meiras décadas do século XXI (SILVA, 2011).
que a Carta Magna seja revisada, comple-
Procurando explicitar o posiciona-
tada, repensada, segundo as demandas da
mento da Umbanda sobre temas próximos
sociedade e as transformações da religião.
à representatividade política da religião, aos
Diferentemente de outros documentos,
direitos humanos, à política ambiental, entre
principalmente os produzidos em meados
outros, a ideia de uma Carta Magna emer-
do século passado, interessados em norma-
ge das discussões do MPU. A vinculação do
movimento à Declaração Universal dos Di- tizar liturgica e doutrinariamente a religião
reitos Humanos da Organização das Nações (ISAIA, 2012), a Carta Magna apresentou-se
Unidas (ONU) é destacada por Ortiz Belo de apenas como “base orientadora para respos-
Souza na apresentação do documento: tas aos estudantes de teologia, sociologia,

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filosofia e aos seguidores da religião” (DO- Dessa forma, o documento reconhece
CUMENTO..., 2012). Nesse sentido, um di- o casamento religioso como um sacramento,
ferencial do documento, comparativamente contudo, prevê a possibilidade de matrimô-
a outros anteriormente publicados por diri- nio e, consequentemente, de formação de
gentes e intelectuais da Umbanda, é a pre- uma nova família aos divorciados. O casa-
tensão extranacional da prática umbandista. mento é encarado no documento como base
Embora se reconheça que a Umbanda é uma
da organização familiar, sendo irrelevante
religião brasileira, o documento deixa clara
a heterossexualidade, a homossexualidade,
a sua inserção em um mundo de fronteiras
a bissexualidade, a transexualidade e a in-
cada vez menos rígidas:
tersexualidade dos consortes: “Reservamos
Realçando que a Umbanda está em vários a todos, direitos iguais de matrimônio, res-
países, levando a paz e a elevação de uma
religião que defende os direitos pela igual-
peitando a orientação sexual de cada um”
dade, respeitando a pluralidade de cada (CARTA..., 2012, não paginado). Igualmen-
nação. As bases da Carta Magna de Um- te, a Carta Magna prescreve, frente à questão
banda são o registro dos princípios segui- da adoção, iguais direitos entre “pais e mães
dos por religiosos de Umbanda pelo mun-
do (CARTA..., 2012, não paginado). heterossexuais, homossexuais, bissexuais,
transexuais e intersexuais” (CARTA..., 2012,
não paginado). A relação existente entre as
Inclusão, família e direito à vida na chamadas minorias sociais aparece no de-
Carta Magna da Umbanda poimento do Babalorixá Magno Constantino
a respeito da Carta Magna da Umbanda. O
Outro diferencial da Carta Magna, em referido sacerdote traça balizas identitárias
comparação a outros documentos exarados de para a Umbanda como uma religião essen-
representantes umbandistas, diz respeito ao
cialmente próxima a essas minorias, o que
seu caráter inclusivo no tocante ao reconheci-
demandaria um posicionamento claro da re-
mento das uniões homoafetivas, às diversida-
ligião frente às questões da minoria:
des de gênero e, consequentemente, à plurali-
dade de modelos familiares. Nesse sentido, o As religiões de matriz africana e nós um-
documento explicita que, na Umbanda: bandistas somos os que mais sofremos,
somos a todo tempo marginalizados por
[...] todo ser humano é visto como irmão religiões cristãs (mais especificamente
espiritual, sendo aceita qualquer orien- evangélicos), haja vista que nosso culto
tação sexual e identidade de gênero. As-
compõe fiéis das ditas minorias: Negros,
sim, a religião entende e acolhe Espíritos,
e não o gênero ou a sexualidade. Discri- Indígenas, Africanos, Lésbicas, Gays, Bis-
minação e preconceito não são ensinados sexuais, Travestis, Transexuais, Transgê-
pelos nossos Guias Espirituais, posto que neros, mães solteiras, classe social de renda
a Umbanda acolhe a todos. Desta forma, é baixa, entre outros grupos. Abraçamos as
fundamental respeitarmos a condição de minorias sim, pois não somos proselitistas,
cada indivíduo: heterossexualidade, ho- todos somos Divinos e sagrados (SOUZA,
mossexualidade, bissexualidade, transe- 2017, p. 47).
xualidade e intersexualidade são questões
de foro íntimo e pessoal (CARTA..., 2012, O posicionamento de Magno Cons-
não paginado).
tantino é sumamente indiciário das trans-

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formações apresentadas pelo discurso dos e diálogo com o movimento por parte dos
intelectuais e dirigentes da Umbanda na organizadores do documento.
atualidade. Em um momento no qual a Igualmente, a Carta Magna da Um-
sociedade brasileira apresenta relevantes banda quis tornar claro o posicionamento da
transformações na direção de identidades religião frente às questões que gravitam em
até recentemente sem visibilidade sociopo- torno dos fundamentos religiosos da vida.
lítica, este sacerdote umbandista manifesta Sendo assim, posicionou-se frente ao abor-
um projeto includente para a religião. Com to, à eutanásia e à pena de morte. Frente a
esse posicionamento, Constantino traça uma todos esses assuntos, o posicionamento da
linha diferencial frente às denominações que Carta Magna da Umbanda é contrário, por
ou não reconhecem, ou não apoiam, ou não enxergá-los como atentados contra o di-
explicitam um posicionamento frente a es- reito à vida, pois “só o criador, através da
sas questões. Sua, Onisciência, Onipresença, e Onipotên-
cia, sabe o momento do desenlace carnal de
Figura 1 ‒ O engajamento de gênero na Carta Magna qualquer indivíduo” (CARTA..., 2012, não
da Umbanda e a presença do arco-íris na
composição gráfica paginado). Em relação ao direito à vida do
nascituro, o documento considera-o inviolá-
vel desde o momento da sua concepção. O
controle da natalidade é incentivado como
uma questão de foro íntimo, incluindo a
escolha dos meios contraceptivos, vistos
“como um modo de proteger a vida” (Car-
ta..., 2012, não paginado). Ainda em relação
aos contraceptivos, o documento diretamen-
te cita o uso de preservativos. Esses não são
vistos meramente como contraceptivos, mas
como formas de evitar doenças sexualmente
Fonte: <https://www.google.com.br/search?q=carta+magna+d transmissíveis. Com isso, o documento cla-
a+umbanda&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=0ah
UKEwjEycDOsJ3cAhWLr1kKHUd0Bp8Q_AUICigB&bi ramente adota um posicionamento voltado
w=1920&bih=974#imgrc=GR9ulHIWKAsslM>. Acesso para uma leitura positiva do prazer sexual,
em: 20 abr. 2018.
não o subordinando à procriação, conforme
aparece no ocidente, desde o período clás-
O teor do posicionamento de Magno
sico, com Aristóteles (ZILLES, 2009). Na
Constantino é referendado no projeto visual
esteira da biologia aristotélica, os teólogos
do banner de chamada do vídeo de lançamen-
cristãos partiram para a condenação dos
to da Carta Magna da Umbanda na Câmara
atos considerados contrários à natureza (não
Municipal de São Paulo, em 2017 (Figura 1).
praticados com o fim de procriação) e para a
A presença do arco-íris, um conhecido iden-
aceitação daqueles considerados segundo a
tificador do gay rights movement, pode ser in-
natureza (praticados com o fim de procria-
diciário das tentativas de representatividade

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ção) (ZILLES, 2009). Nesse sentido, assevera refratário ao passado africano e totalmen-
o documento: te voltado para o atendimento aos códigos
simbólicos e objetivos vigentes na primeira
A Umbanda apoia o uso de preservativos
e métodos contraceptivos, como meios de metade do século XX (ISAIA, 2009). Aliado
proteção contra DST (doenças sexualmen- a esses posicionamentos, o documento con-
te transmissíveis) e prevenção de gravidez sidera a laicidade do estado o princípio fun-
indesejada. Cada qual deve saber e esco-
lher o momento de gerar um novo ser, que
damental para o atendimento das demandas
necessitará de amor, compreensão, educa- de uma sociedade plural. A flexibilização
ção, orientação e discernimento ao longo comportamental defendida na Carta Magna
de sua vida. Nesse sentido, o uso de méto- da Umbanda compõe-se com as característi-
dos contraceptivos é um meio de proteger
a vida (CARTA..., 2012, não paginado). cas includentes e voltadas para o passado e
a identidade africanos da Umbanda na atua-
A Carta Magna da Umbanda parece lidade. Saber contentar os Orixás compõe-se
ir ao encontro das características apontadas na Umbanda com a matriz judaico-cristã.
por Natividade e Oliveira (2007) no campo
religioso afro-brasileiro, no sentido de uma Figura 2 ‒ Presente a Xangô, festa de 29 de setem-
bro de 2016, Templo Espírita Maria João de
maior flexibilização da moral sexual. As ex- Deus, G
plícitas menções do documento em relação à
aceitação de novos modelos familiares, bem
como dos comportamentos homossexual,
transexual, bissexual e intersexual, acenam
nessa direção. Especificamente sobre o tema
da presença homossexual nas religiões afro-
-brasileiras, existe uma literatura já bem
considerável, desde o trabalho pioneiro de uarulhos, SP
Ruth Landes (1967). Neste sentido, Moni-
Fonte: acervo do autor.
que Augras, estudando as regras, preceitos
e interdições no campo afro-brasileiro, de-
fende que, mais do que um sistema fechado Direitos humanos e ecologia na
de enunciações, há que se atender às mo-
Carta Magna da Umbanda
dulações cotidianas da vontade dos Orixás:
“Vale dizer, o que importa não é a cega obe- Outra questão importante, relacionada
diência aos preceitos, o fundamental é aten- aos direitos humanos e às regras de convi-
der à vontade dos deuses” (AUGRAS, 2011, vência social, aparece na Carta Magna, ao
p. 175). Essa flexibilização comportamental referir-se à característica ecológica da Um-
existente na Carta Magna da Umbanda se- banda. Nesse sentido, o documento, no seu
ria impensável em um documento como os preâmbulo, mostra a Umbanda como uma
Anais do Primeiro Congresso Brasileiro do religião “cristã, natural e ecológica” (CAR-
Espiritismo de Umbanda, completamente TA..., 2012, não paginado). Não apenas en-
cara a defesa do meio ambiente como prio-

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ridade, tendo em vista que a terra é a casa Ainda sobre a ligação entre a defesa
comum de todos, como também explicita a do meio ambiente e as características intrín-
ligação estreita que deve existir entre o culto secas à Umbanda, com a prescrição de “tra-
aos Orixás, aos ancestrais e à natureza: balhos” em matas, cachoeiras, mares, rios,
Explicando que a Umbanda como reli- entre outros recursos naturais, o documento
gião Cristã, Natural e Ecológica, têm em prescreve a necessidade do uso de materiais
seus seguidores os defensores da Nature-
za; entendemos que os Sagrados Orixás biodegradáveis.
se manifestam magneticamente com mais
intensidade nos sítios vibratórios da natu- A religião de UMBANDA defende a Na-
reza, aonde os religiosos de Umbanda vão tureza, preza pelas matas, mares, rios, ca-
constantemente, promovendo concentra- choeiras e nascentes. Preza também pela
ções para refazimento energético, harmo- fauna e flora, contribuindo, assim, com os
nizações e captação de energias sublimes, Tratados Internacionais de preservação
reequilibrando-os com as forças da Mãe da Natureza, indicando a necessidade de
Natureza (CARTA..., 2012, não paginado). meios de desenvolvimento que não a agri-
dem (CARTA..., 2012, não paginado).
Fica clara na leitura do documento a
sua relação com a perspectiva holista e glo- Dessa forma, o documento não apenas
balista capitaneada pela ONU (IANNI, 2001; aprofunda sua defesa da ecologia, como tam-
HENDERSON, 2003), no sentido de pensar bém adentra em uma questão extremamente
uma comunidade mundial, regida, entre atual, relacionando política de direitos hu-
outros critérios, pelas exigências de uma manos e direito ao ambiente. Essa ligação
harmonia entre homem e meio ambiente; é outro ponto comum entre a Carta Magna
projeto estreitamente ligado ao de uma re- da Umbanda e documentos exarados pela
formulação religiosa, com o fim dos particu- ONU, como, por exemplo, a Declaração de
larismos de crença. Estocolmo de 1972 (DECLARATION, 1972).
Neste documento, explicita-se a defesa da
Figura 3 ‒ A construção de uma identidade religiosa vida em um planeta sadio como um direi-
comprometida tanto com a tradição afro-
descendente quanto com a defesa do meio to humano fundamental, passível de ações
ambiente, assumida na Carta Magna concretas por parte dos estados membros,
articulando-se com a Agenda 21, assinada
no Rio de Janeiro, em 1992 (CONFERÊN-
CIA..., 1995).
Portanto, a Carta Magna da Umbanda
insere-se mais ainda em uma agenda atual,
ao posicionar-se frente a questões de sus-
tentabilidade e de relações com os direitos
humanos. Aliás, direitos humanos e direito
ao desfrute de um meio ambiente equilibra-
do apresentam interligação, já que ambos
têm um objetivo comum, que é a qualida-
Fonte: Movimento Político Umbandista (2014, não paginado).

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de de vida de todos os habitantes da terra cas não pode ser visto como definitivo. A
(HAMMARSTRÖN; CENCI, 2012). multiplicidade empírica e a atomização do
exercício da autoridade reveladas pela Um-
banda no Brasil traem completamente a pos-
Concluindo
sibilidade de pensar-se o documento como
A Carta Magna da Umbanda, vista realidade canônica. Contudo, o tratamento
como uma fonte histórica, traz algumas in- e a centralidade dados à questão dos direi-
formações explícitas ou indiciárias extre- tos humanos na Carta Magna evidenciam o
mamente importantes para o historiador. projeto propositivo do grupo que o redigiu,
Analisando o seu caráter “monumental”, é procurando construir discursivamente uma
possível chegar a peculiaridades não exis- Umbanda atualizada e sintonizada com a
tentes em outros documentos exarados de pluralidade e a complexidade do mundo
líderes umbandistas no passado, a começar contemporâneo.
pelo público-alvo a que se destina e aos as-
suntos elencados como prioritários no posi- Abstract
cionamento daqueles que têm o projeto de
falar em nome da Umbanda brasileira. Ao This text addresses a current document,
contrário de outros documentos, a fonte em which represents the positioning of
questão destina-se a um público maior que some Umbanda leaders. The central is-
os seguidores da religião umbandista, vol- sue addressed in this is the one related
to human rights, seeking to link Umban-
tando-se também para os não religiosos e di-
da with current and articulated guideli-
rigindo-se prioritariamente aos estudantes
nes with micro and macro social organi-
e intelectuais ligados às ciências humanas.
zation in the country and in the world.
Estes aparecem no documento, inclusive, In this sense, it is positioned, among
precedendo os adeptos da Umbanda, como others, in the face of issues involving
público-alvo a ser atingido. Igualmente, o citizenship, gender, ecology and repro-
documento tenta clarear o posicionamen- ductive policy.
to umbandista frente a questões extrema-
mente atuais que, não raro, são motivo de Keywords: Human rights. Medium relat-
discussões doutrinárias nas denominações ed religions. Umbanda.
religiosas da atualidade. O explícito posi-
cionamento frente a questões como iden- Resumen
tidades de gênero, contracepção, aborto e
novos modelos familiares é indiciário de Este texto aborda un documento actual,
uma tentativa dos líderes umbandistas de representativo del posicionamiento
dar uma resposta a questões extremamente de algunos líderes de la Umbanda. La
atuais. Por certo, devido às características da cuestión central tratada en el mismo es
Umbanda, o posicionamento do documento la relativa a los derechos humanos, bus-
frente a questões tão candentes e polêmi- cando articular la Umbanda con pautas

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