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BRENNAN MANNING

Convite à
Loucura
Traduzido por
Sueli Saraiva

Preparado por Amigo Anônimo

www.semeadores.net

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Semeadores da Palavra e-books evangélicos

~2~
CONVITE À LOUCURA
Categoria: Espiritualidade

Copyright © 2005, por Brennan Manning


Publicado originalmente por Harper San Francisco,
uma divisã o da Harper Collins Publishers, Nova York, EUA

Título original: The importance of being foolish


Editora responsável: Silvia Justino
Editor-assistente: Omar de Souza
Preparação de texto: José Carlos Siqueira
Revisão de provas: Aldo Menezes
Supervisão de produção: Lilian Melo
Colaboração: Miriam de Assis
Capa: Douglas Lucas
Imagem: Stockphotos

Os textos das referências bíblicas foram extraídos da Nova Versão Internacional (Sociedade Bíblica Internacional),
salvo indicação específica.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Manning, Brennan

Convite à loucura / Brennan Manning; traduzido por


Sueli Saraiva —
Sã o Paulo: Mundo Cristã o, 2007.

Título original: The importance of being foolish


ISBN 85-7325-464-5
ISBN 978-85-7325-464-8

1. Conduta de vida 2. Espiritualidade 3. Jesus Cristo –


Ensinamentos
4. Santa Cruz 5. Vida cristã I. Título.

07-1439 CDD–248.4

Índice para catá logo sistemá tico:


1. Vida cristã : Espiritualidade: Cristianismo 248.4

Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610, de 19/02/1998.


É expressamente proibida a reproduçã o total ou parcial deste livro, por quaisquer meios
(eletrô nicos, mecâ nicos, fotográ ficos, gravaçã o e outros), sem prévia autorizaçã o, por escrito,
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Editora associada a:
• Associação de Editores Cristã os
• Câ mara Brasileira do Livro
• Evangelical Christian Publishers Association

~3~
Conteúdo

Agradecimentos.........................................................................................................................5
Introdução.................................................................................................................................5

PARTE UM – O MODO COMO VIVEMOS ..............................................................................................7


Capítulo um – Verdade ............................................................................................................7
Capítulo dois – Transparência ..............................................................................................19
Capítulo três – Distraçõ es .....................................................................................................27

PARTE DOIS – A MENTE DE CRISTO ................................................................................................36


Capítulo quatro – A descoberta do pai .................................................................................36
Capítulo cinco – Um coraçã o misericordioso ......................................................................41
Capítulo seis – A obra do Reino.............................................................................................48

PARTE TRÊ S – O PODER DA CRUZ ...................................................................................................60


Capítulo sete – A sabedoria da ressurreiçã o .......................................................................60

EPÍLOGO – A REVOLUÇÃ O.................................................................................................................68

~4~
AGRADECIMENTOS

É difícil se separar dos filhos. Em 1976, a Dimension Books publicou Gentle


Revolutionaries: Breaking Through to Christian Maturity [Revolucioná rios moderados: Abrindo
caminho para a maturidade cristã ]. Cheio de paixã o e convicçã o, eu queria mostrar como a igreja
estava deixando escapar os pontos centrais sobre as boas-novas de Jesus para nó s.
Recentemente, quando me deparei com esse filho abandonado (já que o livro estava esgotado),
descobri que ainda era importante que a igreja ouvisse essa mensagem.
Ao mesmo tempo, acredito que aprendi a expor as coisas com um pouco mais de graça e
humildade do que fiz em meu tempo de juventude. Assim, com ajuda de Carla Barnhill e de meus
amigos da Harper San Francisco, em especial Cindy DiTiberio, revisei, atualizei e fiz ajustes no
antigo trabalho, de forma que agora ele está pronto, assim espero, para uma nova geraçã o de
leitores. Portanto, para aqueles que têm olhos para ver e ouvidos para ouvir, por favor,
prossigam a leitura.

INTRODUÇÃO

É extraordiná rio o que um simples convite da Casa Branca pode fazer para entorpecer as
faculdades críticas", advertia o falecido Reinhold Niebuhr. Uma advertência grave! O privilégio
de pregar para o presidente é tã o prestigioso que a maioria dos clérigos usa a oportunidade para
retribuir a gentileza. Em uma atmosfera de admiraçã o mú tua, a religiã o se dissolve num Sonrisal
verbal, e a pregaçã o profética se torna praticamente impossível.
O pedido de outros cristã os para escrever um livro sobre a mente de Jesus traz
armadilhas semelhantes, embora muito menos sofisticadas. Ao querer agradar a todos, fico
muito tentado a escrever algo insípido, uma exposiçã o crivada de clichês, metá foras torturantes
e histó rias sem sentido. Entã o todos ficarã o felizes e gloriosamente satisfeitos.
No entanto, este livro foi escrito a partir da crença de que Jesus Cristo viveu, morreu e
ressuscitou para formar o povo santo de Deus, uma comunidade de cristã os que viveriam sob o
domínio do Espírito; homens e mulheres que seriam tochas humanas acesas com o fogo do amor
por Cristo, profetas e amantes inflamados com o Espírito ardente do Deus vivo. Oferecer uma
obra inó cua seria uma prostituiçã o do evangelho, um insulto a Deus e um grave desserviço ao
leitor.
Durante dois anos, tive o privilégio de viver com uma comunidade cristã conhecida como
Irmã ozinhos de Jesus e ver o tema deste livro se desenvolver nas tarefas mais simples do mundo
comum. A vida de um irmã ozinho tem como modelo a vida oculta de Jesus de Nazaré, os muitos
anos que ele passou na obscuridade dedicada ao trabalho manual e à oraçã o antes de embarcar
no ministério pú blico de pregar, ensinar e curar.
Passei os primeiros seis meses na pequena aldeia de Saint-Rémy, na França, a uns 150
quilô metros a sudeste de Paris. No inverno, recolhia esterco nas fazendas vizinhas e lavava
pratos num restaurante local. As noites eram envoltas em silêncio, na adoraçã o em açã o de
graças e na meditaçã o das Escrituras. Os dias passavam num ritmo contínuo de envolvimento
com o mundo e afastamento dele. Foi uma iniciaçã o gradual rumo a uma vida contemplativa sem
clausura e entre os pobres.
Nosso grupo de sete (dois franceses, um alemã o, um espanhol, um eslavo, um coreano e
eu) mudou-se para Farlete, outra pequena aldeia no deserto de Zaragoza, na Espanha. Nos 12
meses em que vivemos ali, passamos a amar o calor, a simplicidade e a profunda amizade de um

~5~
remoto povoado espanhol com uma populaçã o de seiscentos habitantes. No verã o,
trabalhá vamos de 10 a 12 horas por dia na colheita de trigo ou em trabalhos de construçã o,
revezando turnos como cozinheiro na fraternidade e economizando dinheiro suficiente para
comprar bebidas para a festa que marcava O fim da colheita.
Nossa harmonia com os aldeõ es era profunda porque nã o somente compartilhá vamos a
pobreza, a labuta, o pã o amargo e a ansiedade sobre a colheita, mas também a alegria do
nascimento de um bebê, pelas nú pcias dos recém-casados e uma multidã o de experiências
menores tecidas na base da vida rural.
Durante o ano, muitas vezes ficá vamos temporariamente sozinhos, retirados em uma
montanha alta e rochosa que, além de muito distante da vida urbana, também é um dos mais
remotos eremitérios da Europa. Em muitas e longas horas de oraçã o nas cavernas, eu percebia
de uma nova maneira que o conhecimento redentor de Jesus Cristo substitui todo o resto,
permitindo-nos experimentar uma liberdade que nã o é restringida pelos limites de um mundo
que se encontra aprisionado.
Ao mesmo tempo, reconheci que muitas das importantes questõ es teoló gicas na igreja de
hoje nã o sã o importantes, nem teoló gicas, e que, num tempo caracterizado (em algumas partes)
pela confusã o, encenaçõ es baratas e infidelidade, o que Jesus exige nã o é mais retó rica, mas
renovaçã o pessoal, fidelidade ao evangelho e comportamento produtivo. Conforme disse o
cardeal Paul-Emile Léger em seu adeus a Montreal: "O tempo de falar acabou". 1
Essa é a premissa fundamental em torno da qual os 230 discípulos que compõ em os
Irmã ozinhos de Jesus organizam sua vida. Os irmã ozinhos aprendem a separar o essencial do
secundá rio e a perceber que esse modo particular de vida é simplesmente uma conseqü ência
exterior de um imenso, apaixonado e determinado amor à pessoa de Jesus.
Viver entre as mais pobres e desamparadas das pessoas como um trabalhador braçal,
sem trajes clericais, passar dias e semanas no deserto em espontâ neo louvor a Deus, comunicar-
se através de valores de amizade que nã o podem ser comunicados pela pregaçã o, tudo isso
satisfaz nã o um desejo de novidade, mas uma compulsã o de amor. Alguns poderiam chamar a
isso loucura. Eu chamo de verdadeira sabedoria do Deus de amor.

1
O cardeal Lé ger foi arcebispo de Montreal, Canadá , até 1967, quando renunciou a sua posiçã o como príncipe da Igreja Cató lica e
partiu para a Africa a fim de trabalhar com leprosos e crianças deficientes. Ele morreu em 1991. (N. da T.)

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PARTE UM

O MODO COMO VIVEMOS

CAPÍTULO UM
VERDADE

A narrativa evangélica sobre a purificaçã o do templo é uma cena desconcertante (Jo


2:13-22). Ela nos apresenta o retrato de um Salvador enfurecido. O Cordeiro submisso de Deus
que disse "Tomem sobre vocês o meu jugo e aprendam de mim, pois sou manso e humilde de
coraçã o" (Mt 11:29) improvisou um chicote e circulou furiosamente pelo templo, destruindo
bancas e mostruá rios, espancando os mercadores e dizendo: "Saiam daqui! Aqui nã o é o Wal-
Mart. Vocês nã o transformarã o um espaço sagrado num passeio de consumo! Mentirosos! Visitar
o templo é um sinal de reverência a meu Pai. Fora daqui!".
Ainda mais desconcertante é o amor intenso de Jesus pela verdade. Onde o dinheiro, o
poder e o prazer mandam, o corpo da verdade sangra de mil feridas. Muitos de nó s temos
mentido a nó s mesmos por tanto tempo que nossas reconfortantes ilusõ es e justificativas
assumiram uma aura de verdade; nó s as apertamos em nosso peito como uma criança aperta um
ursinho favorito.
Nã o está convencido? Considere entã o um homem que cita o apó stolo Paulo sobre um
pouco de vinho ser bom para o estô mago ao falar de seu terceiro martíni no almoço. Ou a defesa
veemente de um "cristã o liberal" sobre a nudez em O último tango em Paris, a violência em Pulp
fiction — Tempo de violência ou a cena de sexo oral em Garotos de programa porque eles "se
integram perfeitamente ao enredo e sã o realizaçõ es estéticas".
Ou entã o o honesto diácono da igreja que aceita trapacear e sonegar em seus negó cios
porque "é o ú nico modo de ser competitivo". Ou todas as igrejas nas quais o delírio sobre a falta
de culpa é uma realidade, a maestria na exegese bíblica é uma santidade, o tamanho da
congregaçã o é a prova de sua autenticidade e por aí afora. Nã o existe limite para as defesas que
inventamos contra a transgressã o da verdade em nossa vida.
A questã o dolorosa que enfrentamos na igreja de hoje é se o amor de Deus pode ser
comprado tã o barato. O primeiro passo na busca da verdade nã o é a resoluçã o moral de evitar o
há bito da mentirinha — por mais desagradá vel que uma deformaçã o de cará ter possa ser. Nã o
se trata de uma decisã o sobre deixar de enganar os outros, e sim da decisã o de parar de nos
enganar.
A menos que tenhamos a mesma paixã o inexorá vel pela verdade que Jesus demonstrou
no templo, estamos destruindo nossa fé, traindo o Senhor e nos enganando. O auto-engano é
inimigo da integridade, pois ficamos impedidos de nos ver como realmente somos. Ele encobre
nossa falta de crescimento no Espírito da verdade, impedindo-nos de compreender nossa real
personalidade.
Muitos anos atrá s, testemunhei o poder do auto-engano reeditado de forma dramá tica no
centro de reabilitaçã o de alcoó licos de uma pequena cidade americana. O trecho é extraído de

~7~
meu livro O evangelho maltrapilho. O cená rio: uma sala de recreaçã o ampla e de dois andares na
orla de uma colina com vista para um lago artificial. Estavam lá reunidos 25 dependentes
químicos. Nosso líder era um experiente conselheiro, há bil terapeuta e membro veterano da
equipe. Seu nome: Sean Murphy-O' Connor, 2 mas ele normalmente anunciava sua chegada
dizendo:
— É ele mesmo. Vamos trabalhar.
Sean mandou que um paciente chamado Max assumisse a "cadeira de interrogató rio" no
centro do grupo disposto em "U". Max, um homem franzino e de baixa estatura, era um cristã o
nominal, casado e com cinco filhos, proprietá rio e presidente de sua empresa, rico, afá vel e
dotado de uma pose notá vel.
Desde quando você tem bebido como um porco, Max? — Murphy-O'Connor havia
começado o interrogató rio.
Isso é injusto — Max recolheu-se.
Veremos. Quero saber da sua histó ria com a bebida. Quanta cachaça por dia?
Max reacendeu seu cachimbo.
Tomo duas Marias com os rapazes antes do almoço e dois Martins depois que o escritó rio
fecha, à s cinco. Depois...
O que sã o Marias e Martins? — interrompeu Murphy-O'Connor.
Bloody Marys: vodca, suco de tomate, uma pitada de limã o e de Worcestershire, um
toque de extrato de pimenta vermelha; e martinis: gim, extra-seco, gelado com uma azeitona e
uma espremida de limã o.
Obrigado, Maria Martins. Prossiga.
Minha esposa gosta de um drinque antes do jantar. Viciei-a em Martini há muitos anos.
Claro que ela os chama de "aperitivos" — sorriu Max. — Vocês naturalmente entendem o
eufemismo, nã o é verdade, senhores?
Ninguém respondeu.
Como eu ia dizendo, tomamos dois martínis antes do jantar e mais dois antes de dormir.
Um total de oito drinques por dia, Max? — quis saber Murphy- O'Connor.
Exatamente. Nem uma gota a mais nem a menos.
Você é mentiroso.
Sem se abalar, Max explicou:
Vou fingir que nã o ouvi isso. Estou na ocupaçã o há vinte e tantos anos e construí minha
reputaçã o em cima da honestidade, nã o da falsidade. As pessoas sabem que minha palavra é de
confiança.
Já chegou a esconder uma garrafa em casa? — perguntou Benjamim, um índio navajo do
Novo México.
Nã o seja ridículo. Tenho um bar na minha sala de estar maior que um traseiro de
elefante. Nada pessoal, sr. Murphy-O'Connor.
Max sentia que havia recuperado o controle. Estava sorrindo.
Você guarda bebida na garagem, Max?
Naturalmente. Tenho de repor o estoque. Um homem na minha posiçã o recebe muita
gente em casa — o executivo arrogante havia reassumido.
Quantas garrafas na garagem?
Nã o sei dizer a quantidade com precisã o. Assim, de improviso, eu diria dois engradados
de Smirnoff, um engradado de gim Beefeater, algumas garrafas de bourbon e de uísque e um
punhado de licores.

2
No original, "Croesus O'Connor". (N. do R.)

~8~
O interrogató rio prosseguiu por mais vinte minutos. Max eximia-se e esquivava-se,
minimizava, racionalizava e justificava seu há bito de beber. Finalmente, apanhado por um
implacá vel interrogató rio cruzado, ele admitiu que guardava uma garrafa de vodca no criado-
mudo, uma garrafa de gim na mala para fins de viagem, outra no banheiro para fins medicinais e
três mais no escritó rio para ter o que oferecer aos clientes. Ele trejeitava ocasionalmente, mas
nunca perdia sua postura confiante.
— Senhores — sorriu Max, — acho que todos nó s já nos demos o direito de dourar a
pílula uma vez ou outra nessa vida — foi como ele colocou, dando a entender que apenas
homens de envergadura podiam dar-se ao luxo de rir de si mesmos.
Você é mentiroso — ecoou outra voz.
Nã o é preciso ficar vingativo, Charlie — retrucou Max. — Lembre-se da passagem do
evangelho de Joã o sobre o cisco no olho do seu irmã o e a viga no seu. E aquela outra em Mateus
sobre o roto falando do rasgado.
(Senti-me compelido a informar Max que a comparaçã o entre o cisco e a tá bua nã o se
encontrava no evangelho de Joã o, mas no de Mateus, e que a histó ria do roto e do rasgado era
um provérbio secular que nã o constava nos evangelhos. Senti, porém, que um espírito de
presunçã o e um ar de superioridade espiritual haviam me envolvido de repente, como um
nevoeiro. Decidi abrir mã o da correçã o fraternal. Afinal, eu nã o estava em Hazelden fazendo uma
pesquisa para um livro. Eu era apenas um bêbado incorrigível como Max.)
— Tragam-me um telefone — disse Murphy-O'Connor.
Um telefone foi trazido num carrinho para a sala. Murphy-O'Connor consultou um bloco
de notas e discou um nú mero interurbano para a cidade de Max. O receptor era amplificado
eletronicamente, de modo que a pessoa do outro lado da linha podia ser ouvida claramente por
todos no salã o do lago.
Hank Shea?
Ele mesmo. Quem está falando?
Meu nome é Sean Murphy-O'Connor. Sou conselheiro de um centro de reabilitaçã o de
drogas e álcool no Meio-Oeste. Você se recorda de um cliente chamado Max? (Pausa) Ó timo. Com
a permissã o da família dele, estou pesquisando a histó ria de Max com a bebida. Como você
trabalha como barman nesse lugar todas as tardes, fiquei pensando se você saberia me dizer
aproximadamente quantos drinques o Max consome por dia?
Conheço o Max muito bem, mas você tem certeza de que tem permissã o para me
interrogar?
Tenho uma declaraçã o assinada. Pode falar.
— Max é um cara fantá stico. Gosto demais dele. Ele despeja trinta contos no balcã o
toda tarde. O Max tomas os seus seis martinis bá sicos, compra mais uns drinques e sempre me
deixa uma gorjeta de cinco dó lares. Grande sujeito.
Max pô s-se de pé num salto. Erguendo a mã o direita desafiadoramente, ele despejou um
caudal de palavrõ es digno de um estivador. Ele atacou os ancestrais de Murphy-O'Connor,
colocou em dú vida a legitimidade de Charlie e a integridade de toda a unidade de tratamento.
Ele agarrou-se ao sofá e cuspiu no tapete.
Entã o, num feito notá vel, recuperou imediatamente a compostura. Max sentou-se e
observou, sem nenhuma afetaçã o, que até mesmo Jesus havia perdido a paciência no templo ao
ver os saduceus comercializarem pombas e bolos. Depois de uma prédica improvisada sobre a
ira justificada, ele reabasteceu o cachimbo, imaginando que o interrogató rio havia terminado.
Você já tratou mal algum dos seus filhos? — Fred perguntou.
Fico feliz que você tenha levantado esse assunto, Fred. Tenho uma profunda ligaçã o com
meus quatro garotos. No ú ltimo dia de Açã o de Graças levei-os para uma expediçã o de pescaria
nas Rochosas. Quatro dias de vida dura no mato. Foi memorá vel. Dois de meus filhos formaram-
se em Harvard, você sabe, e Max Jr. está no terceiro ano da...

~9~
Nã o foi o que eu perguntei. Pelo menos uma vez na vida todo pai trata mal um de seus
filhos. Tenho 62 anos e posso assegurar que é assim. Agora dê-nos um exemplo específico.
Seguiu-se uma longa pausa. Finalmente:
Bem, fui um tanto duro com minha filha de nove anos na ú ltima véspera de Natal.
O que aconteceu?
Nã o lembro. Apenas fico com uma sensaçã o de pesar quando penso nisso.
Onde aconteceu? Quais eram as circunstâ ncias?
— Espere aí um minuto — a voz de Max ergueu-se com fú ria. — Já disse que nã o
lembro. Só nã o consigo me livrar dessa sensaçã o ruim.
Sem alarde, Murphy-O'Connor discou mais uma vez para a cidade de Max e falou com a
esposa dele.
— Sean Murphy-O'Connor falando, minha senhora. Estamos no meio de uma terapia
de grupo e seu marido acaba de contar que tratou mal sua filha na véspera do Natal passado. A
senhora poderia fornecer os detalhes, por favor?
Uma voz suave encheu a sala.
— Sim, posso contar-lhe a coisa toda. Parece que foi ontem. Nossa filha Debbie
queria um par de sapatos de presente de Natal. Na tarde de 24 de dezembro meu marido levou-a
de carro até a cidade, deu-lhe sessenta dó lares e disse que ela comprasse o melhor par de
sapatos que houvesse na loja. Foi exatamente o que ela fez. Quando entrou novamente na
caminhonete que meu marido estava dirigindo, ela beijou-o no rosto e disse que ele era o melhor
pai do mundo. Max estava orgulhoso como um pavã o e decidiu celebrar no caminho de volta
para casa. Ele parou no Cork'n'Bottle, um bar que fica a alguns quilô metros da nossa casa, e disse
a Debbie que voltava já. Era um dia limpo e extremamente frio, cerca de vinte graus abaixo de
zero, por isso Max deixou o motor funcionando e fechou as portas do lado de fora de modo que
ninguém pudesse entrar. Isso era um pouco depois das três da tarde, e...
Silêncio.
— Sim?
O som de uma respiraçã o pesada encheu a sala de recreaçã o. A voz esmoreceu. Ela estava
chorando.
— Meu marido encontrou no bar alguns velhos colegas do exército. Envolvido na
euforia da reuniã o, perdeu a noçã o de tempo, de propó sito e de tudo o mais. Ele saiu do
Cork'n'Bottle à meia-noite. Bêbado. O motor havia parado de funcionar e as janelas do carro
estavam bloqueadas com o gelo. A pequena Debbie tinha graves ulceraçõ es de frio nas orelhas e
nos dedos da mã o. Quando a levamos ao hospital, os médicos tiveram de operar. Amputaram o
polegar e o indicador da mã o direita. Ela vai ficar surda pelo resto da vida.
Max parecia estar tendo um ataque do coraçã o. Ele lutava para manter-se de pé, fazendo
movimentos desajeitados e descoordenados. Os ó culos voaram para a direita e o cachimbo, para
a esquerda. Ele caiu de quatro, soluçando histericamente.
Murphy-O'Connor levantou-se e disse suavemente:
— Vamos circulando.
Vinte e quatro alcoó licos e viciados subiram a escadaria de oito degraus. Viramos à
esquerda, reunimo-nos ao longo da amurada do mezanino e olhamos para baixo. Ninguém
consegue esquecer o que viu naquele dia, 24 de abril, exatamente ao meio-dia. Max ainda estava
de quatro. Seus soluços haviam crescido a berros. Murphy-O'Connor aproximou-se dele,
pressionou seu pé contra o tó rax de Max e empurrou. Max rolou de costas no chã o.
— Seu canalha miserá vel — urrou Murphy-O'Connor. — Tem uma porta à sua
direita e uma janela à sua esquerda. Tome o que for mais rá pido. Saia daqui antes que eu vomite.
Nã o dirijo um centro de reabilitaçã o para mentirosos.
Se isso soa como uma resposta cruel, devemos lembrar da filosofia desse centro de
reabilitaçã o baseado no amor disciplinar. Ela está alicerçada na convicçã o, nascida de longa

~ 10 ~
experiência, de que nenhuma recuperaçã o efetiva pode ser iniciada até que a pessoa admita que
é impotente a respeito do álcool e que a sua vida se tornou ingoverná vel.
A alternativa ao evitar a verdade de sua situaçã o é sempre alguma forma de
autodestruiçã o. Para Max havia três opçõ es: loucura, morte prematura ou abstinência. Contudo,
nenhuma opçã o era possível até que o inimigo fosse identificado mediante uma interaçã o
dolorosa, impiedosa, com seus semelhantes. O auto-engano precisava ser desmascarado em todo
o seu absurdo.
A continuaçã o da histó ria é interessante. Max suplicou e obteve permissã o para ficar.
Entã o começou a passar pela mais notá vel transformaçã o de personalidade que o grupo já havia
testemunhado. O homem se tornou honesto e mais sincero, mais aberto, mais afetuoso e mais
sensível do que era antes. O amor disciplinar o tornou real e a verdade o libertou.
O desfecho de sua histó ria é ainda mais interessante. Uma noite antes de Max terminar o
tratamento, outro homem, Fred, passou pelo seu quarto. A porta estava entreaberta. Max estava
sentando à sua escrivaninha lendo o romance Watership Down [Rio abaixo]. Fred bateu e o
cumprimentou. Durante alguns minutos, Max permaneceu fixo no livro. Quando ele levantou os
olhos, suas bochechas estavam riscadas de lá grimas.
— Fred — disse, a voz embargada, — acabo de orar pela primeira vez em minha vida.
Em autobiografia, Agostinho mostrou a estreita relaçã o entre a busca pela verdade e a
conversã o do coraçã o. Max nã o pô de encontrar a verdade do Deus vivo até enfrentar a realidade
de seu alcoolismo. Com base na perspectiva bíblica, Max era um mentiroso. Na filosofia, o oposto
da verdade é um erro; na Bíblia, o contrario da verdade é uma mentira. A mentira de Max
consistia em dar a aparência de existência ao que de fato nã o existia: um inofensivo ato de beber
socialmente. A verdade, para ele, era equivalente a livrar-se das aparências para reconhecer a
realidade de seu alcoolismo.
No evangelho de Joã o, o mentiroso obstinadamente recusa-se a ver a luz e a verdade, e
mergulha nas trevas. O Diabo é o pai das mentiras: "Ele foi homicida desde o princípio e nã o se
apegou à verdade, pois nã o há verdade nele. Quando mente, fala a sua pró pria língua, pois é
mentiroso e pai da mentira" (Jo 8:44).
O Diabo é o grande ilusionista. Ele enverniza a verdade: "Se afirmarmos que estamos sem
pecado, enganamos a nó s mesmos, e a verdade nã o está em nó s" (1 Jo 1:8). Incita-nos a dar
importâ ncia ao que nã o tem importâ ncia, veste com falso resplendor o que é menos importante
e nos desvia do que é insuperavelmente verdadeiro. O Diabo nos faz viver num mundo de ilusã o,
devaneios e sombras.
O conflito entre o pai das mentiras e a verdade, que é Jesus Cristo, permeia todo o
evangelho de Joã o. O Senhor nã o somente derrotou o mentiroso, mas nos deu parte de sua
vitó ria através do Espírito Santo: a exaltaçã o de Jesus Cristo na cruz liberta o Espírito. O triunfo
pascal nã o somente expiou nossos pecados e nos justificou diante de Deus, mas trouxe o
derramamento do Espírito Santo que nos foi dado (Rm 5:5). O Espírito nos capacita a derrotar a
mentira, o auto-engano e a desonestidade; nos torna agradá veis para a verdade de Deus e nos
leva a experimentar as realidades eternas.
O falecido Jean Daniélou escreveu: "A verdade consiste numa mente que dá à s coisas a
importâ ncia que elas têm na realidade". O que é verdadeiramente real para o crente é Deus.
Quando Max foi levado a confrontar a verdade de seu alcoolismo e aceitá -la, atravessou uma
porta em direçã o ao reconhecimento da realidade soberana de Deus e declarou: "Acabo de orar
pela primeira vez em minha vida".
As conseqü ências disso para o cristã o sincero que busca ter a mente de Cristo Jesus (Fp
2:5) e a plenitude da vida no Espírito Santo sã o amplas. Para a maioria de nó s, o mais real é o
mundo da existência material, sendo o mundo de Deus o mais irreal. Trata-se de um fato tã o
colossal, uma subversã o tã o radical, que o mentiroso (no sentido bíblico) é geralmente
considerado normal em nossa sociedade. Pois a dimensã o religiosa da vida é um tipo de
acessó rio opcional, pura questã o de gosto. E a fé é uma aceitaçã o indiferente a uma empoeirada
casa de penhores de declaraçõ es dogmá ticas.

~ 11 ~
O que é importa neste mundo sã o as pessoas influentes, as pessoas que agem e jogam
com o que há de melhor nelas, pessoas que assumem a responsabilidade de seus atos e dirigem o
pró prio destino. O poderoso é o que faz as coisas, nã o os que estã o alquebrados e carentes.
Tais motivos, você poderia dizer, sã o os dos ateus: somos diferentes. Acreditamos na
religiã o, na fé. Talvez. No entanto, existe uma classe de mentirosos que estã o abertos ao Espírito
de Jesus, mas de modo superficial. Eles recebem tudo, mas nada permanece enraizado.
Defendem a renovaçã o eclesiá stica e a mudança pela mudança. Reparam o cisco no olho das
lideranças, mas nã o a viga no pró prio olho. Eles sã o a favor da vida no que diz respeito ao feto
por nascer, mas contra a vida em relaçã o ao muçulmano, ao pecador e ao culpado.
Sã o como borboletas que sorvem de mil cálices de flores diferentes. Pessoas confiantes
no momento: hoje andando sobre as nuvens, amanhã morrendo de depressã o. Elas se guiam
pelo que é novo e nadam a favor da correnteza. Seu imperativo moral mais elevado é manter
uma boa dianteira. Nunca lhes sugira que o custo do discipulado é alto, que nã o existe
Pentecostes barato. Cristã os cata-ventos, nos quais nã o se pode confiar, formam uma legiã o.
Mas nosso interesse nestas pá ginas é o cristã o sincero, cuja fé é só lida e arraigada. Jesus
Cristo é (ou está a ponto de se tomar) a pessoa mais importante de sua vida. Sua oraçã o nã o é
pretensã o nem fachada. É uma pessoa inteligente no sentido bíblico, que conhece a realidade
como ela é. Nas Escrituras, a inteligência nã o consiste em desempenho mais brilhante da mente,
mas em reconhecer a realidade onipresente de Deus. "Diz o tolo em seu coraçã o: 'Deus nã o
existe'" (Sl 14:1).
Da perspectiva bíblica, um grande teó logo pode ser considerado um estú pido, enquanto
uma lavadeira analfabeta que louva a Deus pelo pô r do sol é vista como infinitamente mais
inteligente. O cristã o referido nestas pá ginas, qualquer que seja sua situaçã o ou condiçã o de
vida, será considerado inteligente e interessado na busca da verdade.

O FIM DO DESLUMBRAMENTO
Em uma noite fria, iluminada pelo brilho das estrelas, eu estava ansioso na escuridã o à
espera do nascer do sol. As areias do deserto brilhavam como açú car prateado. O vento me
sussurrava o nome dele repetidas vezes: "Aba, Aba". A vigília terminava e minha vida nunca mais
seria a mesma. Numa caverna solitá ria no deserto de Zaragoza, conheci Deus como meu Pai. Eu
era novamente uma criança perdida em deslumbramento, amor e louvor.
Tornar-se uma criancinha novamente (conforme Jesus ordenou que deveria acontecer) é
recuperar um sentimento de surpresa, deslumbramento e vasto deleite com toda a realidade.
Olhe para o rosto de uma criança na manhã de Natal quando ela entra na sala transformada pela
passagem do Papai Noel à meia-noite. Ou quando ela descobre a moeda debaixo do travesseiro,
vê o primeiro arco-íris ou cheira a primeira rosa. Poucos de nó s prendem a respiraçã o em
momentos como esses, como um dia fizemos. A passagem pelo corredor do tempo nos fez
maiores e todo o resto menor, menos impressionante.
Conhecemos nossa força de vontade e nossa disposiçã o. Adquirimos certo domínio sobre
a natureza, sobre as doenças. Pelo milagre da tecnologia moderna, somos capazes de
experimentar visõ es, sons e acontecimentos outrora disponíveis somente para Colombo, Vasco
da Gama e outros aventureiros. Havia um tempo, em passado nã o muito distante, quando um
temporal fazia homens crescidos estremecer e sentir-se pequenos.
Mas Deus está sendo empurrado para fora do seu mundo pela ciência. Quanto mais o
homem sabe sobre meteorologia, menos inclinado fica a orar num temporal. Aviõ es voam agora
em cima, embaixo e ao redor de todo tipo de tempestade. Os satélites reduzem as tormentas,
uma vez aterrorizantes, a eventos fotográ ficos. Que infâ mia (se um temporal pudesse ser
infamado) ser reduzido de teofania a um incô modo!
Até mesmo o espaço sideral tem gradualmente deixado de nos impressionar. Falamos
sobre sondas em Marte com a mesma empolgaçã o como se estivéssemos enviando má quinas
fotográ ficas para o East Village, em Nova York. Estamos saturados, incapazes de nos maravilhar
e de sentir medo. Essa diminuiçã o da capacidade de se impressionar pode ser um sinal de

~ 12 ~
maturidade, uma conseqü ência necessá ria e saudá vel do progresso. Mas me sinto propenso a
pensar que isso revela perda de equilíbrio.
Uma pessoa verdadeiramente equilibrada mantém a capacidade de se deslumbrar e a
vontade de expressar essa admiraçã o na pró pria confissã o de sua condiçã o de criatura, o
reconhecimento espontâ neo de que ela é um ser humano, e nã o um deus; um ser com limitaçõ es
que, longe de ter abarcado o infinito, é feliz e desesperadamente subjugado por ele.
Nossa insípida reaçã o à realidade é ainda menos entusiasmada quando nos deparamos
com Jesus Cristo e analisamos o modo de vida cristã o. Embora sejamos confrontados com uma
moral tã o sublime e exigente que parece totalmente impossível, nã o ficamos impressionados
pelo estilo de vida que Cristo nos apresentou. Ele nos orienta que o padrã o do modo de vida
cristã o é o ágape. "Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a sua vida pelos seus amigos"
(Jo 15:13).
Na fala paulina, o amor de Jesus é kenosis, total auto-esvaziamento. E Cristo diz
categoricamente: "Amem-se uns aos outros. Como eu os amei" (Jo 13:34). Ainda que ele
proponha uma intensidade de bondade e de santidade diante da qual podemos apenas
murmurar "Quem entã o pode ser salvo?", persiste, de nossa parte, uma impressionante ausência
de assombro. Somos semelhantes ao atleta desafiado a correr cem metros em cinco segundos.
Depois de vá rias tentativas fracassadas, ele põ e a culpa nas condiçõ es da pista e se queixa do
tênis apertado. O fato de que o projeto é humanamente impossível parece nunca o afetar.
Precisamos de certo tempo para assimilar tudo o que é exigido de nó s. Analisemos
rapidamente algumas das demandas radicais registradas nos evangelhos sinó ticos:

Se alguém o ferir na face direita, ofereça-lhe também a outra. E se alguém


quiser processá -lo e tirar-lhe a tú nica, deixe que leve também a capa. [... ] Dê a
quem lhe pede, e nã o volte as costas à quele que deseja pedir-lhe algo emprestado.
Mateus 5:39-40,42

Em tais passagens, Jesus descreve a resposta que o cristã o deve dar quando provocado
por alguém nã o crente. Mas seus ensinamentos nã o sã o meramente passivos: "Amem os seus
inimigos [mesmo um Saddam Hussein] e orem por aqueles que os perseguem" (Mt5:44).
Jesus apresenta o divino Pai como nosso modelo. Assim como Deus derrama paz e
bondade do mesmo modo sobre o justo e injusto, assim também nó s devemos fazer. Qualquer
um pode amar seus amigos, aqueles com quem tem afinidade e reciprocidade. A verdadeira
piedade exige muito, muito mais. O Sermã o do Monte continua:

Se o seu olho direito o fizer pecar, arranque-o e lance-o fora. [...] Se a sua mã o
direita o fizer pecar, corte-a e lance-a fora.
Mateus 5:29-30

Quando vier o chamado de Cristo, nossa resposta deve ser sincera: "Senhor, deixa-me ir
primeiro sepultar meu pai", pediu o discípulo. "Mas Jesus lhe disse: 'Siga-me, e deixe que os
mortos sepultem os seus pró prios mortos'" (Mt 8:21-22).
Na renú ncia — renú ncia absoluta —, a família está incluída: "Se alguém vem a mim e
ama o seu pai. sua mãe, sua mulher, seus filhos, seus irmã os e irmã s, e até sua pró pria vida mais
do que a mim, nã o pode ser meu discípulo" (Lc 14:26). Jesus disse:

Bem-aventurados serã o vocês quando, por minha causa, os insultarem, os


perseguirem e levantarem todo tipo de calú nia contra vocês. Alegrem-se e
regozijem-se, porque grande é a sua recompensa nos céus.
Mateus 5:11-12

~ 13 ~
Nã o pensem que vim trazer paz à terra; nã o vim trazer paz, mas espada.
Mateus 10:34

Se o mundo os odeia, tenham em mente que antes me odiou.


Joã o 15:18

Mais e mais, os preceitos se sucedem. Declaraçõ es extravagantes, exageradas. O Cristo de


Deus nã o veio trazer a paz, mas a espada. Ele nos teria vestido nã o com tú nicas, mas com a
armadura de Deus. Ele contradiz nossas conclusõ es que afirmam que prosa é poesia, fala é
cançã o, miopia é visã o clara e as coisas tangíveis, visíveis e perecíveis podem ser a realizaçã o
apropriada para um ser que inalou o impulso criativo de Deus.
A ú nica reaçã o sadia ao padrã o evangélico de santidade é o temor e a perplexidade que
beiram a afliçã o. Deveríamos nos sentir envergonhados pela Palavra, porque ela nos diz muito
do que nã o queremos ouvir. Mas por que a maioria de nó s nã o fica envergonhada? Por que a
Palavra nã o nos exalta, amedronta e choca? Nã o é porque a desconhecemos — nó s a ouvimos
semana apó s semana. Por que ela nã o nos força a reavaliar a vida? Estamos de volta à s nossas
ilusõ es. Michel Quoist diz:

Estamos satisfeitos com nossa vidinha decente. Estamos contentes com nossos
bons há bitos: nó s os tomamos por virtudes. Estamos contentes com nossos
pequenos esforços: nó s os tomamos por progresso. Estamos orgulhosos de nossas
atividades: elas nos fazem pensar que estamos nos doando. Estamos
impressionados por nossa influência: imaginamos que ela transformará vidas.
Estamos orgulhosos do que damos, entretanto ocultamos o que retemos.
Podemos até mesmo estar confundindo um conjunto de egoísmos coincidentes
com verdadeira amizade.

Voltem e anunciem a Joã o o que vocês viram e ouviram: os cegos vêem, os


aleijados andam, os leprosos sã o purificados, os surdos ouvem, os mortos sã o
ressuscitados e as boas novas sã o pregadas aos pobres.
Lucas 7:22

Todas as estruturas da igreja devem revelar a marca do amor de Cristo dedicado aos
pobres. Ao ignorar essa á rdua sentença, a pró pria igreja se torna empobrecida, assim como bem
pouco confiá vel e bem pouco convincente para pregar o evangelho com clareza e visã o, e
também infantilmente presa à s quinquilharias da reputaçã o, à s conversas vazias da diplomacia,
aos favores degradantes dos ricos, à idolatria das estruturas e à posiçã o de proeminência.
Uma segunda teoria afirma que Jesus propõ e princípios, em vez de regras. Ele nã o fala
sobre aplicaçõ es prá ticas. Ele simplesmente propõ e uma meta, um quadro ideal em direçã o ao
qual devemos nos esforçar. Isso reduz Cristo ao nível de um româ ntico visioná rio: o ensino dele
é bonito na teoria, mas nada prá tico na realidade. Com certeza, se o evangelho de Jesus fosse
vivido, nã o haveria mais guerras internacionais, nem distú rbios nacionais ou disputas
domésticas. No entanto, Cristo foi apenas um admirá vel reformador com muitas idéias
grandiosas.
Em seguida, temos a soluçã o da cidadania de segunda classe. Essa visã o defende que a
doutrina ética de Jesus foi proposta somente para uma classe particular. Há duas classes de
cidadania no Reino de Deus: o perfeito e o comum. O ú ltimo nã o é chamado para a perfeiçã o. No
entanto, o Sermã o do Monte enfaticamente proclama a vocaçã o universal de todos os cristã os à
santidade. Nã o existe distinçã o entre o santo e o comum.

~ 14 ~
Em verdade, essas razõ es para rejeitar o caminho de Jesus sã o mais palatá veis do que
aquela usada por muitos cristã os: a ética evangélica é perturbadora demais, problemá tica
demais para sobreviver. Vamos empurrá -la para debaixo do tapete e esquecê-la. Se você falar
dela como é, as pessoas se afastarã o.
Somos relutantes em estruturar nossa doutrina moral em torno do evangelho. Por
exemplo, em três lugares diferentes, o Novo Testamento nos diz muito claramente que nossos
pecados sã o perdoados na mesma proporçã o em que perdoamos aos outros. Essa verdade é
descrita vividamente na pará bola do servo impiedoso. Ele deve mais de 10 milhõ es de dó lares ao
seu mestre, enquanto outro servo, colega seu, deve-lhe a soma comparativamente insignificante
de 25 dó lares. Há uma desproporçã o enorme entre as dívidas. No entanto, apesar de seu mestre
graciosamente perdoar-lhe a dívida, o primeiro servo nã o perdoa a de seu devedor. A moral é
clara: se nã o perdoarmos nossos inimigos, nó s mesmos nã o seremos perdoados (cf. Lc 6:37).
Por muito tempo, a teologia da confissã o dos pecados nã o foi apresentada nessa
perspectiva. No entanto, temos nos preocupado com o nú mero de vezes e os tipos precisos de
pecado que têm o perdã o garantido. Consideramos os limites ultrapassados e a divisã o
equitativa da culpa. Quando perdoamos de fato, muito freqü entemente o fazemos também com
um espírito de superioridade, usando o perdã o como algo a se manter suspenso sobre a cabeça
daqueles a quem permitimos por condescendência sair de uma situaçã o difícil.
O Novo Testamento só é relevante se captarmos o significado fundamental das
exigências radicais do evangelho, apesar de, ao mesmo tempo, compreender que nunca
poderemos cumpri-las completamente. Nenhum de nó s pode dizer "cumpri todos os
mandamentos". Até certo ponto, nó s sempre falhamos.
Pense mais uma vez no perdã o. Em nosso coraçã o, nenhum de nó s perdoa
completamente nosso inimigo do modo que deveríamos. Apó s a ressurreiçã o, no encontro entre
Jesus e os apó stolos nas praias do mar de Tiberíades, quando se poderia esperar, como diz
Raymond Brown, "o impacto da gló ria insuportá vel", Jesus serve peixes e pães. Nã o há nenhuma
mençã o, aparentemente nem mesmo nenhuma lembrança, da traiçã o deles. Jamais uma
repreensã o ou mesmo uma referência indireta à covardia dos discípulos no tempo de teste.
Nenhuma saudaçã o sarcá stica como: "Bem, meus amigos dos momentos bons apenas...".
Nenhuma disposiçã o para vingança, despeito ou repreensã o humilhante. Apenas palavras de
calor e ternura.
O mesmo aconteceu no cená culo, onde Jesus disse: "Paz seja com vocês". Isso é mais que
perdã o. O silêncio de Jesus é primoroso. Para aprender o significado da amizade sincera, da
delicadeza no diá logo, da sensibilidade em relaçã o aos sentimentos dos outros e do amor que
"nã o guarda rancor" (ICo 13:5) é preciso ouvir o perdã o no coraçã o de Jesus quando ele diz a
Maria Madalena e à outra Maria na manhã da Pá scoa: "Vã o dizer a meus irmã os..." (Mt 28:10).
As demandas do evangelho nos levam à vívida consciência de nossa fraqueza e
imperfeiçã o. Elas nos aturdem, reduzem a auto-supervalorizaçã o e nos fazem perceber quã o
limitados somos. Essa percepçã o — quando permitimos que se infiltre no coraçã o — nos afasta
da presunçã o, da complacência e de uma auto-suficiência que nos envenenam espiritualmente.
A Palavra de Deus nos desperta para as nossas carências. Enquanto nã o submetermos
nossa vida ao julgamento do evangelho e aos padrõ es de bondade e de virtude estabelecidas por
Jesus, nã o poderá haver uma consciência profunda de que somos pecadores carentes de
misericó rdia. Quantos de nó s de fato experimentaram a verdade de estar salvos — de que nó s
nã o nos salvamos, e na verdade somos pobres e fracos pecadores com falhas hereditá rias e
virtudes limitadas; nã o somos filhos de Deus por nosso mérito, mas pela misericó rdia do
Criador.
Se as demandas radicais da vida cristã nunca forem propostas e, em vez disso, nos
conformarmos com o cumprimento morno de um conjunto frouxo de preceitos, quã o facilmente
nos tornaremos farisaicos e hipó critas. Tentamos nos salvar por nossas obras. Nunca
experimentamos o mistério da redençã o ou dependência amorosa de Deus.
Segundo nossos padrõ es invulnerá veis de justiça e honra, estamos desempenhando
muito bem no jogo cristã o. Com que freqü ência um cristã o piedoso ora: "Perdoa-me, Senhor,

~ 15 ~
porque pequei. Faz um ano desde minha ú ltima confissã o. Fui à igreja todos os domingos e nã o
fiz nada proibido. Nã o posso me lembrar de nada mais"? Esse tipo de confissã o é uma terrível
deturpaçã o da doutrina cristã .
Se fechamos os olhos para as demandas radicais do Novo Testamento em nossa doutrina
e ignoramos as implicaçõ es embaraçosas do preceito do amor universal, tornamos o
cristianismo muito fácil e retiramos seu significado. Passamos a ser tã o culpados quanto os
fariseus, ignorando as questõ es importantes das difíceis leis da caridade, da misericó rdia e da fé,
enquanto cumprimos as leis positivas da igreja, que significam apenas os limites do
compromisso cristã o.
As demandas radicais de Jesus nos fazem lembrar diariamente nossas faltas e perceber
que a salvaçã o é dom gracioso de Deus. Neste ponto, chegamos ao nú cleo da revelaçã o. Se o
evangelho nos diz qualquer coisa, se a igreja proclama somente uma coisa ano apó s ano, é que a
salvaçã o é um dom gracioso de Deus. O evangelho é a alegre notícia da redençã o graciosa.

Vocês, porém, sã o geraçã o eleita, sacerdó cio real, naçã o santa, povo exclusivo
de Deus, para anunciar as grandezas daquele que os chamou das trevas para a sua
maravilhosa luz. Antes vocês nem sequer eram povo, mas agora sã o povo de
Deus; nã o haviam recebido misericó rdia, mas agora a receberam.
1 Pedro 2:9-10

Nã o fomos transportados para o reino do Filho amado de Deus por nosso


mérito, mas por sua misericó rdia:
Pois vocês sã o salvos pela graça, por meio da fé — e isto nã o vem de vocês, é
dom de Deus — nã o por obras, para que ninguém se glorie. Porque somos criaçã o
de Deus realizada em Cristo Jesus para fazermos boas obras, as quais Deus
preparou antes para nó s as praticarmos.
Efésios 2:8-10

O evangelho nos agradeceria de uma vez por todas se entendêssemos que o slogan do
Exército da Salvaçã o, "Jesus salva", está muito mais pró ximo da mente e do coraçã o de Cristo do
que da legalidade e da moralidade.

A BÊNÇÃO
O mesmo tema está contido na primeira bem-aventurança: "Bem-aventurados os pobres
em espírito, pois deles é o Reino dos céus" (Mt 5:3). Em seu sentido primitivo, a primeira bem-
aventurança jamais pretendeu moralizar ou ameaçar ("afaste-se do dinheiro, da materialidade e
de todas as necessidades pessoais ou outras").
Tampouco a primeira bem-aventurança aspirava ser uma simples promessa de
compensaçã o como qualquer pastor itinerante poderia propor ("viva como um pobre e
alcançará s o céu"). Ao contrá rio, a bem-aventurança era uma alegre notícia, a grande boa nova
de que a era messiâ nica se instaurara na histó ria, a proclamaçã o de que o dia da salvaçã o há
muito esperado finalmente chegara.
A questã o crucial para determinar o sentido original dessa bem-aventurança é entender
quem sã o os pobres que Jesus declarou bem-aventurados? Devemos entender "pobres" num
sentido social, como os que sã o literalmente destituídos, empobrecidos, indigentes? Ou Jesus usa
"pobres" num sentido religioso, para se referir àqueles que dependem inteiramente de Deus
para tudo o que possuem e que percebem o pró prio demérito e, desse modo, aceitam a salvaçã o
como o dom de Deus em Cristo Jesus?
Para compreender seu real significado, a passagem nã o pode ser tomada isoladamente.
Antes, deve estar situado dentro do contexto de todo o evangelho, Jesus anuncia que os pobres

~ 16 ~
têm um lugar privilegiado no reino. Vamos comparar o pobre da primeira bem-aventurança com
as duas outras classes privilegiadas no evangelho.
O evangelho de Mateus nos fala que as crianças têm um direito especial no amor de Deus;

Naquele momento os discípulos chegaram a Jesus e perguntaram: "Quem é o


maior no Reino dos céus?" Chamando uma criança, colocou-a no meio dele, disse:
"Eu lhes asseguro que, a nã o ser que vocês se convertam e se tornem como
crianças, jamais entrarã o no Reino dos céus. Portanto, quem se faz humilde como
esta criança, este é o maior no Reino dos céus.
Mateus 18:1-4

Nã o há dú vida de que é necessá rio aprender a ser como uma criança para entrar no
reino. Mas para se captar todo o vigor da expressã o "como crianças", nó s precisamos perceber
que a atitude judaica para com as crianças no tempo de Cristo era drasticamente diferente
daquela que existe hoje. Temos a tendência a idealizar a infâ ncia, vê-la como a idade feliz da
inocência, despreocupaçã o e fé simples. Na comunidade judaica dos tempos do Novo
Testamento, a criança era considerada sem nenhuma importâ ncia, nã o merecendo nenhuma
atençã o ou favor A criança era considerada com desprezo.
Para o discípulo de Jesus, ser como uma criança significa aceitar a si mesmo como pouco
apreciado, sem importâ ncia. Esta compreensã o de nó s mesmos muda nã o somente o modo como
vemos nosso valor, mas também o modo como vemos a graça salvadora de Deus. Se a criança
judia recebesse dez centavos de mesada do pai no fim da semana, ela nã o os consideraria
pagamento por varrer a casa, lavar a louça e assar o pã o. Era um presente completamente
imerecido, um gesto de absoluta generosidade de seu pai.
Jesus deu a esses pequenos desprezados o privilégio de seu reino e os apresentou como
modelos para os discípulos. Eles deviam aceitar o dom do reino da mesma maneira que uma
criança aceita a mesada. Se as crianças eram privilegiadas, nã o era porque tinham merecido tal
privilégio, mas simplesmente porque Deus se agradava delas. A misericó rdia do Senhor fluiu
para elas total e completamente em razã o da graça imerecida e da preferência divina.
Outro texto importante destaca o privilégio das crianças. O hino de louvor diz: "Eu te
louvo, Pai, Senhor dos céus e da terra, porque escondeste estas coisas dos sá bios e cultos e as
revelaste aos pequeninos. Sim, Pai, pois assim foi do teu agrado" (Lc 10:21).
A bênçã o de Deus recai sobre as crianças porque sã o criaturas desprezadas, nã o por
causa de suas boas qualidades. Elas podem estar cientes de sua pouca importâ ncia, mas este nã o
é o motivo pelo qual as revelaçõ es lhes sã o dadas. Jesus expressamente atribui a bênçã o que elas
recebem à boa vontade do Pai, à eudokia divina. Os dons nã o sã o dados pela mais leve qualidade
ou virtude pessoal. Eles sã o pura generosidade.
A bem-aventurança dos pequeninos, portanto, oferece uma clara compreensã o do
significado da bem-aventurança dos pobres. Na mentalidade da época do Novo Testamento,
pobreza e infâ ncia eram consideradas com igual desprezo. No entanto, Jesus diz que Deus
prefere os desfavorecidos- Deus se agrada em dar um lugar privilegiado no reino à queles que o
mundo considera os mais desgraçados.
Uma luz adicional é lançada sobre a primeira bem-aventurança, de modo surpreendente,
pelo privilégio dos pecadores. Jesus está sentado à mesa na casa de Levi. Os escribas e fariseus
interrogam porque Jesus come com os cobradores de impostos e pecadores. "Jesus lhes disse:
'Nã o sã o os que têm saú de que precisam de médico, mas sim os doentes. Eu nã o vim para
chamar justos, mas pecadores'" (Mc 2:17).
Os pecadores a quem Jesus dirigia a sua missã o messiâ nica eram verdadeiros pecadores.
Eles nã o tinham feito coisa alguma para merecer a salvaçã o. Ainda assim, eles se abriram para o
dom que lhes foi oferecido. Os presunçosos, em contrapartida, depositam sua confiança naquilo
que fazem por merecer a partir dos pró prios esforços, fechando o coraçã o para a mensagem de
salvaçã o.

~ 17 ~
Mas a salvaçã o que Jesus prometeu nã o pode ser conquistada. Nã o pode haver barganha
com Deus, como numa atmosfera trivial de mesa de pô quer: "Eu fiz isto, entã o você me deve
aquilo". Jesus destró i totalmente a noçã o jurídica de que nossas obras exigem um pagamento em
troca. Esse ensinamento está claramente estabelecido na pará bola dos trabalhadores na vinha.
Quando eles ficam sabendo que os homens que trabalharam apenas uma hora receberã o o
mesmo salá rio daqueles que labutaram o dia todo, os trabalhadores reclamam ao proprietá rio:

"Estes homens contratados por ú ltimo trabalharam apenas uma hora, e o


senhor os igualou a nó s, que suportamos o peso do trabalho e o calor do dia". Mas
ele respondeu a um deles: "Amigo, nã o estou sendo injusto com você. Você nã o
concordou em trabalhar por um dená rio? Receba o que é seu e vá. Eu quero dar
ao que foi contratado por ú ltimo o mesmo que lhe dei. Nã o tenho o direito de
fazer o que quero com o meu dinheiro? Ou você está com inveja porque sou
generoso?".
Mateus 20:12-15

Nossas obras insignificantes nã o nos dã o o direito de negociar com Deus. Tudo depende
da boa vontade do Senhor. A salvaçã o oferecida por Jesus é puramente gratuita, dirigida
especialmente para os que nã o têm nenhum direito a ela, aqueles que sã o tã o conscientes de seu
demérito que devem confiar na misericó rdia de Deus. Os presunçosos acreditam que
conquistam a salvaçã o pelo cumprimento da lei. Recusando-se a deixar tal loucura, eles rejeitam
o amor misericordioso do Deus redentor.
E na miséria do pecador que Jesus vê a possibilidade de salvaçã o. "Deles é o reino de
Deus". Se na Rú ssia antiga o pecador era enviado para a Sibéria, na igreja ele é chamado para o
reino. É um puro dom para quem nã o têm direito a ele. Esse é o pró prio coraçã o do evangelho e
tema fundamental das bem-aventuranças: a falta de valor dos beneficiá rios do reino. Dizer que
somos cifras nã o significa rebaixar nossa dignidade, mas destacar a gratuidade absoluta da
promessa de Deus.
Desse modo, a condiçã o privilegiada das crianças e dos pecadores derrama considerá vel
luz sobre o significado primitivo da primeira bem-aventurança. Abençoados sã o os pobres.
Abençoados sã o vocês, conscientes de sua falta de mérito e prontamente abertos à misericó rdia
divina.
A primeira bem-aventurança, portanto, nã o é uma promessa ou uma ameaça. Jesus
alegremente proclama o amanhecer de uma nova era, a era messiâ nica que veio afinal. "Vocês,
pobres; vocês, nadas; vocês, de pouca importâ ncia pelos padrõ es do mundo — vocês sã o
abençoados. E a boa vontade de meu Pai de lhes conceder um lugar privilegiado no reino, nã o
porque trabalharam tã o arduamente, ou porque dizem, fazem ou tornam todas as coisas certas,
mas porque meu Pai quer vocês".
A pobreza de espírito nos é apresentada como a predisposiçã o indispensá vel para o
discípulo de Jesus. No momento em que ficamos diante de Deus, gaguejando como o profeta
Jeremias, com os pés no chã o, conscientes de nossa pequenez e fraqueza, reconhecendo que
Jesus salva, entã o a alta santidade recomendada por Jesus — "Sejam perfeitos como perfeito é o
Pai celestial de vocês" (Mt 5:48) — começa a florescer dentro de nó s. A principal postura do
cristã o é uma disposiçã o infantil para com Deus, e nossa principal atitude, a de açã o de graças.
Esse tipo de posiçã o contrasta de forma nítida com o pensamento de muitos cristã os que
desenvolveram um falso sentimento de segurança por cumprirem as leis da igreja. Conforme
afirmou John McKenzie:

A moralidade destró i a religiã o deles. Eles sofrem de um problema legalista.


Acreditam que o cumprimento das prescriçõ es externas da lei garante
automaticamente o cumprimento do propó sito da lei. Mas, caso a minha adesã o
à s leis (da qual posso verdadeiramente precisar) nã o me ajudar a atingir o

~ 18 ~
objetivo final de minha vida, que é conhecer Cristo Jesus e viver o evangelho,
entã o uma mera conformidade externa faz muito pouco, se é que faz alguma
coisa.

Minha experiência do Pai, durante meu tempo com os Irmã ozinhos de Jesus, nã o resultou
em nenhum progresso sú bito ou dramá tico em termos de virtude ou perfeiçã o moral em minha
vida. Apó s aquela experiência, posso nã o ter ficado nem um pouco melhor do que antes, mas, de
algum modo, a vida tinha mudado. Tudo simplesmente foi transformado porque aceitei o fato de
que sou aceito. Paul Tillich chama a isso graça.
Que diferença significativa quando trazemos essa compreensã o à adoraçã o! Somos os
adoradores do amor redentor e da misericó rdia do Deus que nos aceita. Somos imersos em
gratidã o e dependência. Nosso pró prio ser é uma celebraçã o, uma açã o de graças permanente e
perpétua a Deus. Os salmos nos lembram que, toda vez que o povo de Deus se reunir, uma
atitude de alegre açã o de graças deve ser a oferta de gratidã o da assembléia (Sl 95:2; 100:4;
147:7). Se a comunhã o significa açã o de graças, o cristianismo significa pessoas alegremente
agradecidas.
O cristã o jubiloso é aquele que mantém um sentimento de temor e deslumbramento
diante de Deus, que experimentou o sentimento de pertencer a uma comunidade redimida. Ele
tem uma vívida gratidã o de fé nesse grande dom. Esse crente se abriu para a verdade de que
tudo o que possui vem de Deus, de que é completamente dependente de Cristo, de que "Jesus
salva".
Naturalmente, em um certo dia, pode acontecer de ele adorar mais com desâ nimo do que
com qualquer outra coisa. Neste vale de lá grimas, nenhuma vida cristã é uma espiral contínua e
ascendente rumo ao topo da montanha. Porém, a orientaçã o bá sica do cristã o é a da alegria e da
gratidã o. Esse é o legado do mistério pascal, da morte e ressurreiçã o de Jesus. Nã o somos os
filhos de Deus por nosso mérito, mas pela misericó rdia de Deus.
Essa é a marca que colocamos em cada celebraçã o de adoraçã o. Quando o dom da
redençã o graciosa se mostra sob o véu do símbolo, o clamor paulino emerge espontaneamente
do coraçã o: "Como Deus é rico em misericó rdia! Com que excesso de amor ele nos amou" (cf. Ef
2:4).
Quando a luz dessa verdade impressionante se acende em nossa consciência, muitos de
nó s ficam profundamente comovidos durante alguns momentos ou horas; no entanto, retomam
à s ocupaçõ es normais de sua existência corriqueira sem atingir o esclarecimento. Nã o é o caso
de Charles de Foucauld, o padre cuja vida e ministério inspiraram a formaçã o dos Irmã ozinhos
de Jesus. A experiência abriu sua mente. E sinalizou o amanhecer de uma vida nova. Uma imensa
alegria encheu seu coraçã o, maior do que qualquer felicidade que ele alguma vez conhecera.
O que torna sua vida diferente da nossa é que seu sentimento de deslumbramento nunca
desapareceu: "Tã o logo acreditei que havia um Deus, compreendi que nada mais poderia fazer, a
nã o ser viver exclusivamente para ele: minha vocaçã o religiosa data do mesmo momento de
minha fé".

CAPÍTULO DOIS
TRANSPARÊNCIA

Compreender a verdade do evangelho é lançar sobre nossa face tanto a tristeza quanto a
gratidã o. Viver como Jesus viveu é partir do chã o em direçã o ao mundo. "A imitaçã o de Jesus

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Cristo", escreve George Montague, "exige a verdadeira assimilaçã o de suas atitudes interiores e
seu modo de pensar".
Romano Guardini declarou certa vez que Francisco de Assis "permitiu que, na sua
personalidade, Jesus Cristo se tornasse transparente". Se for esse o significado de viver como
cristã o, por que as personalidades de tantos cristã os piedosos, decentes e corretos sã o tã o
opacas? Por que a paz de Cristo Jesus nã o reina em nosso coraçã o, uma vez que fomos
"chamados para viver em paz, como membros de um só corpo" (Cl 3:15)?
Por que a bondade, a compaixã o e a confiança que Grande-Medrosa viu brilhando nos
olhos do Pastor3 nã o brilham em nossos olhos? Por que nossa alegria, entusiasmo e gratidã o
contagiantes nã o afetam os outros com o amor por Cristo Jesus? Por que o encanto esplendoroso
do Senhor nã o flui de nossa personalidade? Por que nã o somos janelas para a obra de Deus? Por
que nã o somos transparentes?
Ter a mente de Cristo Jesus, pensar seus pensamentos, compartilhar seus ideais, sonhar
seus sonhos, pulsar com seus desejos, substituir nossas reaçõ es naturais em relaçã o à s outras
pessoas e situaçõ es pelo interesse de Jesus; e, ainda, assumir o sistema mental de Cristo tã o
completamente que "A vida que agora [Filho] vivo no corpo, vivo-a pela fé no [Filho] de Deus,
que me amou e se entregou por mim" (Gl 2:20). Tudo isso nã o é o segredo ou o caminho para a
transparência. E a pró pria transparência.
Muitas vezes nossa preocupaçã o com os três desejos humanos mais bá sicos —
segurança, prazer e poder — é o manto que encobre a transparência. A infinita luta para ter
dinheiro suficiente, bons sentimentos e prestígio rende uma colheita rica de afliçã o, frustraçã o,
desconfiança, raiva, ciú me, ansiedade, medo e ressentimento. Esses poderosos desejos
amparados pela emoçã o causam 99% do sofrimento auto-infligido e desnecessá rio em nossa
vida. Eles focalizam continuamente nossa atençã o no "eu" e nos impedem de ser transparentes,
ofuscando a luz e obscurecendo "a gló ria de Deus na face de Cristo" (2Co 4:6).
Joã o, o evangelista, fala do pecador como alguém em estado de trevas. "[Ele] anda nas
trevas; nã o sabe para onde vai, porque as trevas o cegaram" (lJo 2:11). E o "eu" autogovernado
que nos mantém presos numa série de movimentos e contramovimentos competitivos que nos
induzem a manipular as pessoas e controlar as situaçõ es, o que, para a maioria de nó s, destró i a
paz e a serenidade interna de nossa vida.
Preso na busca por segurança, prazer e poder, nosso pensamento a cada momento está
concentrado na sombria perseguiçã o a uma felicidade ilusó ria, e ficamos, assim, desatentos ao
Senhor da Luz. Nossos olhos nã o estã o fixos em Cristo Jesus, mas em nosso "eu". Nó s nos
conformamos com um passeio de montanha-russa, com divertidos picos e vales vertiginosos,
entremeados com longos períodos de quedas, empurrõ es e sofrimentos de diferentes graus.
Desde o início de seu ministério pú blico, Jesus elevou a mente de seus ouvintes para
além do nível do desejo bá sico e os advertiu para nã o se distraírem pelo excessivo interesse das
coisas materiais:

Portanto, nã o se preocupem, dizendo: "Que vamos comer?" ou "Que vamos


beber?" ou "Que vamos vestir?" Pois os pagã os é que correm atrá s dessas coisas;
mas o Pai celestial sabe que vocês precisam delas. Busquem, pois, em primeiro
lugar o Reino de Deus e a sua justiça, e todas essas coisas lhes serã o
acrescentadas. Portanto, nã o se preocupem com o amanhã , pois o amanhã trará
as suas pró prias preocupaçõ es. Basta a cada dia o seu pró prio mal.
Mateus 6:31-34

No simbolismo bíblico, o coraçã o é o olho do corpo. Os olhos ansiosos, agitados,


embaçados de muitos cristã os representam as manifestaçõ es de um coraçã o anuviado pelas

3
Grande-Medrosa (Much Afraid) e Pastor (Shepherd) sã o personagens do romanee Hinds'Feet on High Places (traduzido em
portuguê s como Pés como os da corça nos lugares altos [Sã o Paulo: Vida, 1989]), de Hannah Hurnard, uma alegoria sobre o esforço de
elevaçã o dos cristã os. (N. da T.)

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preocupaçõ es deste mundo. Os olhos límpidos de outros irradiam a simplicidade e a alegria de
um coraçã o fixo em Jesus Cristo, a Luz do mundo.
Quando o autor de Hebreus ordena ao leitor "[Tenhamos] os olhos fitos em Jesus, autor e
consumador da nossa fé" (Hb 12:2), ele nã o somente dá uma prescriçã o simples para a
transparência cristã , mas insiste numa reavaliaçã o de todo o sistema de valores da pessoa,
compreendendo que "onde estiver o seu tesouro, ali também estará o seu coraçã o" (Lc 12:34).
O apó stolo Paulo teve a audá cia de se vangloriar: "Nó s, porém, temos a mente de Cristo"
(ICo 2:16). A sua vangló ria era validada por sua vida. A partir da conversã o de Paulo, Jesus Cristo
ocupou sua mente e seu coraçã o. Cristo era a força cuja influência estava incessantemente em
açã o perante os olhos de Paulo (Fp 3:21). Ele era uma pessoa cuja voz Paulo podia reconhecer
(2Co 13:3), que o fortalecia nos momentos de fraqueza (2Co 12:9), o iluminava, mostrava o
significado das coisas e o consolava (ICo 1:4-5). Levado ao desespero pelos ataques difamadores
dos falsos apó stolos, Paulo aceitava as visõ es e revelaçõ es do Senhor Jesus (2Co 12:1). Para
Paulo, a pessoa de Jesus desvendava os mistérios da vida e da morte (Cl 3:3).
No romance de Harper Lee, To Kill a Mockingbird,4 Atticus Finch diz: "Você nunca
entenderá um homem até que esteja no seu lugar e olhe o mundo pelos olhos dele". Paulo olhou
pelos olhos de Jesus Cristo com tal sensibilidade que Cristo se tornou o "eu" do apó stolo (Gl
2:20).
Por que nã o poderia ser assim com todo cristã o que anda no Espírito? Paulo insiste em
que essa é a operaçã o normal do Espírito em nossa vida. A transparência é a epifania de Cristo
Jesus em nossa vida: eis o sentido da bela imagem registrada em 2Coríntios. Amédée Brunot
escreve em Saint Paul and His Message:5

Em uma das passagens mais bem acabadas de sua correspondência, cujas


leveza e lucidez sugerem o cálido raio de sol da Grécia sobre os má rmores do
Partenon, Paulo compara a mediaçã o de Cristo a uma luz cujos raios brilham
através de seus servos humanos e os transfigura (2Co 3:4ss.). O resplendor de
Moisés quando ele desceu do Sinai nã o é nada comparado à transfiguraçã o do
cristã o. Essa transfiguraçã o torna-se uma transparência na qual as faces se
misturam e os afetos se fundem. Trata-se de um abraço apaixonado (Fp 3:12-13).
De agora em diante, o coraçã o do cristã o bate afinado com o coraçã o de Cristo.

Paulo foi um testemunho vivo de um fenô meno nã o extraordiná rio na existência


humana: nó s nos tornamos semelhantes à queles a quem amamos.

A VIDA DE CRISTO
"No ú ltimo e mais importante dia da festa, Jesus levantou-se e disse em alta voz: 'Se
alguém tem sede, venha a mim e beba. Quem crer em mim, como diz a Escritura, do seu interior
fluirã o rios de á gua viva'" (Jo 7:37-38). Uma vez que Jesus ainda estava preso pelas limitaçõ es
humanas da carne mortal, ele nã o pô de se tornar, nas corajosas palavras de Paulo, "o Filho de
Deus com poder" (Rm 1:4). Ele nã o pô de ser glorificado até que fosse crucificado. Todo o
propó sito de seu sofrimento, de sua morte e ressurreiçã o redentoras era o de compartilhar
conosco os frutos de seu triunfo pascal.
Na glorificaçã o de Jesus há o que Edward Schillebeeckx chamou de "transferência de
poder": o Pai concede seu poder real a Cristo, a quem torna o Kyrios. O Senhor Jesus, entã o,
derrama o Espírito Santo para formar o povo santo de Deus, uma comunidade de profetas e
amantes que se renderá ao mistério do fogo do Espírito que queima por dentro, que viverá em
fidelidade cada vez maior à Palavra irresistível, onipresente. Um povo que entrará no centro de
tudo aquilo que é, no pró prio coraçã o e mistério de Deus, no centro daquela chama que consome
e purifica e deixa tudo incandescente com paz, alegria, coragem e amor excessivo.
4
Traduzido em portuguê s como O sol é para todos. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006. (N. da T.)
5
Traduzido em portuguê s como São Paulo e sua mensagem. Sã o Paulo: Flamboyant. (N. da T)

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"Nã o apaguem o Espírito", exorta Paulo (lTs 5:19). Resistir ao Espírito Santo é anular o
poder do mistério pascal e zombar do maior ato de amor que o mundo já conheceu. No
evangelho de Joã o, o ú nico pecado mencionado é blasfêmia — a rejeiçã o consciente, deliberada,
do Espírito de Deus.
Ainda conforme o franciscano Robert Powell e outros observaram, a igreja vem sendo
atualizada, mas nã o renovada. A igreja, como um todo, ainda vasculha o horizonte esperando o
brilho ígneo do novo Pentecostes. O comunista que aceita Karl Marx, mas nã o sua doutrina,
pouco difere do cristã o que aceita Jesus Cristo, mas se recusa a moldar sua vida de acordo com o
ensinamento de Cristo.
Paulo escreveu aos filipenses: "Pois, como já lhes disse repetidas vezes, e agora repito
com lá grimas, há muitos que vivem como inimigos da cruz de Cristo. O destino deles é a
perdiçã o, o seu deus é o estô mago e eles têm orgulho do que é vergonhoso; só pensam nas coisas
terrenas" (Fp 3:18-19). Paulo ainda chora por causa da debilidade, da extrema falta de
sinceridade, do adultério espiritual, da indiferença à oraçã o, da ignorâ ncia sobre a Palavra de
Deus, da religiosidade acomodada e da indolência apostó lica que mancham a vida cristã no
mundo de hoje.
Quando Jesus Cristo se revela através do evangelho, o qual é ativo e fecundo, ele pede
uma resposta espontâ nea. Sua mensagem nã o é uma renovaçã o de garantia para continuarmos
fazendo exatamente o que temos feito, mas, escreve Edward O'Connor, "uma convocaçã o para o
trabalho de eliminar de nossa vida, com fidelidade e perseverança, tudo em nó s que é contrá rio à
obra e vontade do seu Espírito Santo para nó s". Fé significa que estamos prontos para agir na
Palavra. Jesus é cristalino:

Nem todo aquele que me diz: "Senhor, Senhor", entrará no Reino dos céus, mas
apenas aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos céus. Muitos me dirã o
naquele dia: "Senhor, Senhor, nã o profetizamos em teu nome? Em teu nome nã o
expulsamos demô nios e nã o realizamos muitos milagres?" Entã o eu lhes direi
claramente: Nunca os conheci. Afastem-se de mim vocês, que praticam o mal!
Portanto, quem ouve estas minhas palavras e as pratica é como um homem
prudente que construiu a sua casa sobre a rocha. Caiu a chuva, transbordá ramos
rios, sopraram os ventos e deram contra aquela casa, e ela nã o caiu, porque tinha
seus alicerces na rocha. Mas quem ouve estas minhas palavras e nã o as pratica é
como um insensato que construiu a sua casa sobre a areia. Caiu a chuva,
transbordaram os rios, sopraram os ventos e deram contra aquela casa, e ela caiu.
E foi grande a sua queda.
Mateus 7:21-27

A fé autêntica, evangélica, nã o pode ser separada de uma disposiçã o de agir na Palavra


de Deus conforme as oportunidades se apresentarem. Sempre que a fé é aceita apenas como um
sistema fechado de doutrinas bem definidas, nó s perdemos contato com o Deus vivo. A fé que
salva é uma rendiçã o a Deus. "Dizer 'sim' na fé implica um constante pô r-se a caminho", escreve
Bernard Haring, "uma disposiçã o sempre renovada para receber a Palavra de Jesus e agir nela".
S0ren Kierkegaard, o pai do existencialismo cristã o, descreve dois tipos de cristã os: os
que imitam Jesus Cristo e um segundo tipo de pouco valor, aquele que fica contente em admirar
o primeiro.
A distinçã o de Raymond Nogar entre as "pessoas de pinturas" e as "pessoas de dramas"
coincide com Kierkegaard. As pessoas de pinturas vêem o evangelho em segurança, a uma certa
distâ ncia, como alguém aprecia a Ultima ceia de Salvador Dali na Galeria Nacional de Arte, em
Washington. As pessoas de dramas nã o sã o meras espectadoras, mas, como o pú blico atento que
assiste à tragédia grega Antígona, elas sã o atingidas pessoalmente no drama da morte e
ressurreiçã o de Jesus.

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Muitas vezes, a retó rica que usamos para descrever nossa vida em Cristo exibe apenas
uma leve semelhança com o que realmente somos. Orgulhamo-nos do que estamos oferecendo,
pois isso esconde o que estamos sonegando. Permitimo-nos acreditar que, só porque somos
capazes de um sentimento piedoso, somos capazes de amar. Thomas Merton escreve:

Uma dimensã o dessa conveniente espiritualidade é nossa total insistência em


ideais e intençõ es, em completo divó rcio com a realidade, com as açõ es e o
compromisso social. Tudo o que interiormente desejamos, tudo com o que
sonhamos, tudo o que imaginamos: isso é o belo, o divino e o verdadeiro.
Pensamentos bonitos sã o suficientes. Eles substituem tudo o mais, incluindo a
caridade, até mesmo a vida em si.

O que assistimos é a avareza, a ganâ ncia desmedida e a exploraçã o do pobre no seio da


comunidade. Freqü entemente, nossa reaçã o é denunciar os outros e nos afastar deles; no
entanto, todos estamos envolvidos.
O evangelho exige de nó s honestidade dolorosa. Nada mais do que isto: devemos ser
sinceros. Vá à luta pelo dinheiro e torne-se um hedonista ("Comamos e bebamos, porque
amanhã morreremos") ou arrependa-se e retorne ao espírito do evangelho. Somos chamados
para viver como profetas e amantes no Espírito de Jesus Cristo. Nã o podemos viver uma mentira,
pois estaremos enganando a igreja universal e a congregaçã o local sobre aquilo que esperam de
nó s. Thomas Merton observa:

O que o evangelho de Jesus Cristo nos oferece nã o é uma falsa paz que nos
permita evitar a luz implacá vel do julgamento, mas a graça para corajosamente
aceitar a verdade amarga que nos é revelada. Abandonar nossa inércia, nosso
egoísmo e submeter-nos completamente à s demandas do Espírito, rogando
sinceramente por ajuda e dedicando-nos generosamente a cada esforço que Deus
exigir de nó s.

Paulo escreve aos tessalonicenses: "Como homens aprovados por Deus para nos confiar
o evangelho, nã o falamos para agradar pessoas, mas a Deus, que prova o nosso coraçã o" (ITs
2:4). Eis a essência da perfeita sinceridade: nã o se preocupar com nada, exceto com o
julgamento de Deus sobre nossas açõ es; nã o mudar nossa atitude para satisfazer a pessoa que
está conosco; nã o defender uma opiniã o quando se está só e adotar outra em pú blico, mas falar e
agir como na presença de Deus, que pode provar nosso coraçã o. Sinceridade significa procurar
tornar o homem externo cada vez mais de acordo com o homem interno; ser simplesmente
verdadeiro consigo mesmo, de forma que nenhum aspecto humano possa nos tornar falsos.
No início da histó ria cristã , Agostinho acusou: "Muitos que chegam perto do caminho da
fé afastam-se amedrontados pela vida perversa dos maus e falsos cristã os. Quantos, meus
irmã os, vocês acham que sã o os que querem se tornar cristã os, mas sã o repelidos pelos maus
modos dos cristã os?".
Se aquele que está atrá s da verdade descobre que os cristã os estã o do mesmo modo
ensimesmados, repletos de culpa, desesperados, inseguros de seus fundamentos e assombrados
pelos mesmos medos — semelhantes a muitos que, no mar, se sentem num ambiente hostil e,
assim, vêem-se desorientados —, nã o é de admirar que tal indivíduo nã o sinta atraçã o pela
igreja. Uma mulher de 23 anos, fazendo um trabalho acadêmico na Universidade de Paris,
escreveu o seguinte:

Para mim, um cristã o é ou um homem que vive em Cristo ou um impostor.


Vocês, cristã os, nã o percebem que é com relaçã o a isto — ao testemunho quase
superficial que vocês dã o de Deus — que nó s os julgamos. Vocês deveriam
irradiar Cristo. Sua fé deveria fluir para nó s como um rio de vida. Deveriam nos

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contaminar com seu amor por ele. E assim, entã o, que Deus, que era impossível,
se tornaria possível para o ateu e para aqueles de nó s cuja fé oscila. Nã o podemos
evitar o choque, o transtorno e a confusã o que sentimos ao ver um cristã o que
seja, de fato, como Cristo. E nã o o perdoamos quando ele nã o o é.

A mulher, sem o saber, reiterou o que o cardeal Emmanuel Suhard escreveu numa
pastoral em 1947: "A grande marca de um cristã o é aquela que nenhuma outra característica
pode substituir, isto é, o exemplo de uma vida que só pode ser explicada em termos divinos".
É sintomá tico que, apesar de a igreja existir há 2 mil anos, a maioria das pessoas ainda
ignore o cristianismo. Por quê? Porque a presença visível de Jesus Cristo raramente está
presente nos cristã os como um todo. Nunca iremos levar as pessoas para Jesus Cristo e para o
evangelho simplesmente fazendo discursos sobre ambos. Edward Schillebeeckx é categó rico: "...
as pessoas, falando sem rodeios, estã o fartas de nossa pregaçã o. Elas querem uma fonte de força
para sua vida. Somente poderemos oferecer essa força tornando-a ativamente presente em
nossa pró pria vida".
O contato com os cristã os deve ser uma experiência capaz de provar à s pessoas que o
evangelho é um poder que transforma toda a vida. Em vez disso, nossa presença no mundo é
freqü entemente marcada por total falta de sinceridade, diluiçã o da graça e fracasso para agir na
Palavra.
A Palavra de Deus nã o faz rodeios: "Contra você, porém, tenho isto: você abandonou o
seu primeiro amor. Lembre-se de onde caiu! Arrependa-se e pratique as obras que praticava no
princípio" (Ap 2:4-5). Paulo expressa desgosto e apreensã o semelhantes sobre a fé dos coríntios:
"O que receio, e quero evitar, é que assim como a serpente enganou Eva com astú cia, a mente de
vocês seja corrompida e se desvie da sua sincera e pura devoçã o a Cristo" (2Co 11:3).
Aqui se vê um homem que verdadeiramente agia na Palavra de Deus. Paulo se importava
apenas com o julgamento de Jesus Cristo e nã o com o julgamento dos homens. E preocupava-se
mais com a satisfaçã o ou insatisfaçã o do Deus vivo do que com a aprovaçã o de seus semelhantes.
Paulo é testemunha corajosa da realidade do Deus invisível e poderoso exemplo para
muitos de nó s que se influenciam demais pela opiniã o dos outros e se preocupam tanto em
manter certa imagem aos olhos da comunidade, desejosos apenas de ser apreciados e aceitos
por qualquer grupo ao qual se associem, e nã o especialmente preocupados sobre sua imagem
aos olhos de Deus.
De outro modo, nã o negligenciaríamos com tanta freqü ência as coisas que somente Deus
vê, como a oraçã o privada e atos reservados de bondade. Merton escreve:

A falta de uma intençã o pura sutilmente deteriora tudo o que fazemos, de


forma que metade da nossa vida se torna uma mentira. Nunca podemos ficar à
vontade. Mas fazer coisas que ninguém jamais tomará conhecimento com
sinceridade absoluta, da mesma forma como fazemos as que as pessoas podem
ver, indica alto grau de santidade.

As Escrituras nã o existem para transmitir idéias inertes. É um chamado para amar, e o


amor que nã o leva à açã o nã o é amor. Todos os dias de nossa vida, a Palavra deve ser um
imperativo para redescobrir a verdade que, nas palavras de Hans Kü ng, "todo o segredo e o
centro da existência humana encontram-se na pessoa de Jesus Cristo".
Na minha opiniã o, a maior necessidade da igreja hoje é conhecer Jesus Cristo como
Senhor e Salvador. Esse é o tema central de toda a doutrina do evangelho de Joã o: "Para que
vocês creiam que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus e, crendo, tenham vida em seu nome" (Jo
20:31).
Mas tal conhecimento é mais do que um reconhecimento casual de que Jesus viveu e
morreu e ressuscitou. É o tipo de conhecimento que nos permite mudar. É um encontro com
alguém que altera o pró prio curso de nossa vida. Conforme observa Ralph Martin:

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... nã o é incomum a muitos cristã os ter uma idéia bastante incompleta do que a
Escritura diz sobre Jesus Cristo. Muitos têm uma vaga idéia de Jesus como "um
sujeito bom" que ajudou os pobres e disse para as pessoas se amarem umas à s
outras. Eles operam com uma noçã o indistinta, quase simbó lica, de Jesus como o
símbolo de uma idéia de bondade de um liberal.

Aqueles que dizem: "Jesus nunca feriria outra pessoa" muitas vezes pretendem, com isso,
descartar a possibilidade de que o Mestre também pediria a qualquer um para que se
arrependesse ou passasse pela dor de se reconhecer carente. Crer que tudo o que Jesus nos
pediu é que sejamos gentis uns com os outros é substituir o Cristo de Paulo pelo Cristo do
humanismo cristã o.
Em Hebreus, lemos: "Livremo-nos de tudo o que nos atrapalha e do pecado que nos
envolve, e corramos com perseverança a corrida que nos é proposta" (Hb 12:1). Na mesma carta
se diz: "Adoremos a Deus de modo aceitá vel, com reverência e temor, pois o nosso 'Deus é fogo
consumidor!'" (Hb 12:28-29). Esse Deus nã o é Cristo, o humanitá rio, Cristo, o mestre das
relaçõ es interpessoais, ou Cristo, o camarada. E o Cristo, Senhor e Salvador, que nos chama ao
arrependimento, muda nossa vida e nos coloca em uma nova direçã o. F. X. Durrwell escreve: "O
conhecimento de Jesus Cristo como Senhor redentor é o ú nico que tem algum valor para nó s".

CONVERSÃO CONTÍNUA
A causa da maioria dos fracassos em agir na Palavra pode ser creditada à ignorâ ncia, à
desatençã o ou à insuficiente estima pela pessoa de Cristo. Um pouco de boa vontade para com o
mundo substitui tanto a conversã o radical quanto a expressa morte do "eu" que o evangelho
exige. Nã o queremos um Deus que nos mude ou nos desafie. O cristianismo autêntico ecoa na
primeira carta aos coríntios:

Os judeus pedem sinais miraculosos, e os gregos procuram sabedoria; nó s,


porém, pregamos a Cristo crucificado, o qual, de fato, é escâ ndalo para os judeus e
loucura para os gentios, mas para os que foram chamados, tanto judeus como
gregos, Cristo é o poder de Deus e a sabedoria de Deus.
ICoríntios 1:22-24

Se o povo de Deus nã o está ouvindo o chamado ao arrependimento ou suplicando seu


poder para cumpri-lo, será que é porque os ministros da Palavra estã o pregando outro Jesus
Cristo do pú lpito?
Nã o há ninguém na comunidade cristã que nã o seja chamado para a conversã o contínua.
Nã o há ninguém que ainda nã o tenha se deparado com o trabalho de construir a imagem de
Jesus Cristo em sua vida pela prá tica regular, diá ria, das virtudes cristã s. E conforme observa
Edward O'Connor, "você nã o pode se esquivar desse assunto". Paulo escreve: "Mas esmurro o
meu corpo e faço dele meu escravo, para que, depois de ter pregado aos outros, eu mesmo nã o
venha a ser reprovado" (ICo 9:27). "Nã o se deixem enganar: de Deus nã o se zomba. Pois o que o
homem semear, isso também colherá " (Gl 6:7).
O tom do Cristo de Deus nem sempre é doce e consolador. O evangelho proclama as
boas-novas da salvaçã o graciosa, mas nã o promete um piquenique num gramado verde. No
homem Jesus, nas suas palavras, o Deus invisível torna-se audível. E Deus convulsionou todo o
ser de Jesus no clamor: "O Reino de Deus está pró ximo. Arrependam-se e creiam nas [boas-
novas]!" (Mc 1:15).
O cristianismo, portanto, envolve bem mais do que o engajamento em lutas pelos direitos
humanos, causas ambientais ou programas de paz. A plenitude da vida no Espírito é mais do que
encontrar Cristo nos outros e servi-lo ali. E uma convocaçã o à santidade pessoal, à conversã o

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contínua e à nova criaçã o pela uniã o com Cristo Jesus. "Portanto, se alguém está em Cristo, é
nova criaçã o. As coisas antigas já passaram; eis que surgiram coisas novas!" (2Co5:17).
Por essa razã o, o evangelho de Joã o é especialmente importante para os cristã os
contemporâ neos. Por quê? Porque, em contraste com os sinó ticos e conforme argumenta John
McKenzie, "o evangelho de Joã o nã o é o evangelho do Reino, mas o evangelho do pró prio Jesus".
E impossível exagerar a centralidade de Jesus no quarto evangelho — central nã o somente
porque ele é o protagonista e mestre, mas porque ilumina cada pá gina do livro.
Na provocativa obra The Art and Thought of John [A arte e o pensamento de Joã o), Edgar
Bruns escreve: "O leitor é [...] cegado pelo brilho da sua imagem, passando a ser como um
homem que olha muito tempo para o sol: incapaz de ver qualquer outra coisa a nã o ser a luz do
astro". O ú nico pecado para Joã o é resistir ao Espírito Santo, rejeitar Jesus e nã o agir conforme
sua Palavra.
O tema dominante da segunda parte do evangelho de Joã o é a uniã o com o Senhor. Por
meio da bela imagem da videira e seus ramos, Jesus chama todas as pessoas para si.
"Permaneçam em mim, habitem em mim, recorram a mim, venham a mim", ele chama (cf. Jo
15:4ss.). De modo significativo, Jesus nã o diz: "Venham para um dia de renovaçã o, um retiro, um
grupo de oraçã o, uma liturgia", mas "venham a mim".
Seria essa a superioridade presunçosa de um religioso faná tico? Sim, nã o fosse ele o
Salvador do mundo. Trata-se de um egoísta ou o Senhor Ressuscitado que deve ser proclamado
como a ú nica esperança do mundo. Ninguém mais ousaria dizer:

Eu sou o caminho, a verdade e a vida.


Joã o 14:6

Eu sou a luz do mundo.


Joã o 8:12

Eu sou o pã o vivo que desceu do céu. Se alguém comer deste pã o, viverá para
sempre.
Joã o 6:51

Quem crê no Filho tem a vida eterna; já quem rejeita o Filho nã o verá a vida.
Joã o 3:36

Na prisã o, Paulo nã o conseguiu pensar em nada maior do que desejar aos efésios que:

... com as suas gloriosas riquezas, ele [Deus] os fortaleça no íntimo do seu ser
com poder, por meio do seu Espírito, para que Cristo habite no coraçã o de vocês
mediante a fé; e oro para que, estando arraigados e alicerçados em amor, vocês
possam, juntamente com todos os santos, compreender a largura, o comprimento,
a altura e a profundidade, e conhecer o amor de Cristo que excede todo
conhecimento — para que vocês sejam cheios de toda a plenitude de Deus.
Efésios 3:16-19

Paulo percebeu que, no Dia do Julgamento, nossa vida será avaliada e estimada em
termos de nossa relaçã o pessoal com o Jesus de Nazaré exaltado. Por isso, pô de escrever
realisticamente aos filipenses: "Considero tudo como perda, comparado com a suprema
grandeza do conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor, por quem perdi todas as coisas. Eu as
considero como esterco para poder ganhar Cristo" (Fp 3:8).

~ 26 ~
O apó stolo era como um homem obcecado: a mente estava inflamada com um só
pensamento e o coraçã o queimava em um só desejo: conhecer Cristo Jesus, o Senhor redentor.
(Nã o é de admirar que, para o exegeta François Amity, o conceito fundamental de Paulo é a
salvação.) Depois de refletir, Paulo virou-se e disse aos colossenses para esperarem um pouco:

Portanto, já que vocês ressuscitaram com Cristo, procurem as coisas que sã o


do alto, onde Cristo está assentado à direita de Deus. Mantenham o pensamento
nas coisas do alto, e nã o nas coisas terrenas. Pois vocês morreram, e agora a sua
vida está escondida com Cristo em Deus. Quando Cristo, que é a sua vida, for
manifestado, entã o vocês também serã o manifestados com ele em gló ria.
Colossenses 3:1-4

O Cristo de Paulo era nã o somente um grande mestre, exemplo de um grande homem ou


um símbolo das aspiraçõ es humanas mais nobres: ele era Senhor e Salvador. Reinterpretar Jesus
de qualquer outro modo é esvaziar o cristianismo de sua essência.

CAPÍTULO TRÊS
DISTRAÇÕES

Há certas questõ es urgentes que todo cristã o deve responder com total sinceridade. Você
tem fome de Jesus Cristo? Você anseia passar um tempo sozinho com ele em oraçã o? Ele é a
pessoa mais importante em sua vida? Ele preenche sua alma como uma cançã o alegre? Ele está
em seus lá bios como um grito de louvor? Ou ele está sufocado por distraçõ es, anulado pelo
orgulho? Você consulta com ansiedade suas memó rias, seu Testamento, para aprender mais
sobre ele? Você tem sede da á gua viva do seu Espírito Santo? Você está se esforçando para
morrer diariamente para qualquer coisa que iniba, diminua ou ameace sua amizade com ele?
Para verificar onde você realmente está com o Senhor, recorde o que o entristeceu no
ú ltimo mês. Foi a consciência de que você nã o ama Jesus o suficiente? De que você nã o buscou a
sua face em oraçã o com a freqü ência necessá ria? De que você nã o se importou com sua pessoa o
bastante? Ou você ficou abatido por causa de uma falta de respeito, de uma crítica de uma figura
de autoridade ou em razã o de suas finanças, da falta de amigos, de medos sobre o futuro ou pelo
aumento de peso?
De modo inverso, o que o alegrou no ú ltimo mês? Uma reflexã o sobre a sua eleiçã o para a
comunidade cristã ? A alegria de dizer suavemente: "Aba, Pai"? A tarde em que você se retirou
durante duas horas, levando só o evangelho como seu companheiro? Uma pequena vitó ria sobre
o egoísmo? Ou as fontes de sua alegria foram um carro novo, uma roupa de grife, um grande
evento, o sexo, um aumento salarial ou a perda de meio quilo em seu peso. 7
Quando todos os cristã os se rendem ao mistério do fogo do Espírito que queima por
dentro; quando nos submetemos à verdade salvadora de que alcançamos a vida somente através
da morte, assim como nos voltamos para a luz somente através das trevas; quando
reconhecemos que o grã o de trigo deve se enterrar no chã o e morrer, assim como Jonas deve ser
sepultado na barriga da baleia e o jarro de alabastro do "eu" deve ser quebrado para que os
outros percebam a doce fragrâ ncia de Cristo; quando respondemos ao chamado de Jesus "venha
a mim", entã o o poder ilimitado do Espírito Santo será liberado com surpreendente força na
igreja e no mundo.
Mas isso só acontecerá se nos apartarmos da vida que estamos acostumados a viver, uma
vida regida por nossos desejos de segurança, prazer e poder. Sã o esses desejos que nos impedem

~ 27 ~
de reconhecer a verdade de nossa necessidade da misericó rdia de Deus. Sã o esses desejos que
nos impedem de tirar os resíduos embaçadores de nossa vida sem Deus e nos obstruem a
transparência.

Segurança
Em um sentido muito ó bvio, o culto à segurança inclui os crentes que com freqü ência
adoram mais no altar do sucesso do que no altar do Deus vivo, que se curvam mais regularmente
à s vacas sagradas da segurança e do conforto do que ao domínio soberano de Jesus Cristo. A
síndrome da segurança é facilmente reconhecível quando o assunto é dinheiro. Uma pessoa
pode se sentir segura com apenas dez dó lares aqui e agora. Outra pessoa pode se sentir insegura
com 100 mil dó lares no banco.
A quantia nã o importa. O tipo de segurança que buscamos (financeira, de
relacionamento, profissional) nã o tem importâ ncia. O que importa é a quantidade de tempo,
energia, pensamento e atençã o que investimos na desgastante luta para alcançar as condiçõ es
que acreditamos ser indispensá veis para nos sentirmos seguros. Os detalhes de nossas listas de
compra sã o bastante arbitrá rios, mas o desejo de segurança é muito exigente e afasta nossa
mente do chamado superior para que nossos pensamentos e nosso coraçã o sejam habitados por
Cristo Jesus.
Num sentido menos ó bvio, o desejo de segurança é, na maioria das vezes, uma questã o
da nossa programaçã o emocional. Meus sentimentos de insegurança nã o sã o uma conseqü ência
inevitá vel de circunstâ ncias externas (como, por exemplo, a falência nos negó cios) ou de açõ es
de outras pessoas. A vontade de alcançar tranqü ilidade e estabilidade aloja-se em mim. Nã o está
à mercê de caprichos, fantasias e forças externas imprevisíveis. O que me traz a sensaçã o de
insegurança se liga à s minhas necessidades emocionais viciosas, que devem sempre ser
satisfeitas. Quando a realidade nã o atende minhas expectativas, fico frustrado, bravo, amargo,
ansioso e ressentido.
Por exemplo, digamos que você me fale que achou este livro um desperdício completo de
tempo e dinheiro. Sua crítica desperta a minha programaçã o interna e me afundo num pâ ntano
de tristeza, pena de mim mesmo e depressã o. A realidade nã o atendeu minhas expectativas. Eu
esperava, no mínimo, uma crítica construtiva, possivelmente positiva, e talvez até mesmo um
elogio.
No entanto, nã o foi você quem destruiu meu equilíbrio interno. Eu fiz isso.
Excessivamente preso ao meu preconcebimento de que necessito me sentir seguro (neste caso,
com sua aprovaçã o) e teimosamente convencido do como o mundo deveria funcionar, eu me
privo de forma prejudicial dos frutos do Espírito Santo e da vida plena que Jesus prometeu.
O Senhor passou pelo mundo como uma figura de luz e verdade, à s vezes temo, à s vezes
bravo, sempre justo, amoroso e eficaz, mas nunca inseguro. Uma palavra, um gesto, umas poucas
sílabas traçadas na areia, uma ordem como "venham, sigam-me!", e destinos foram mudados,
espíritos renascidos. Ele conversou com samaritanos, prostitutas e crianças e lhes falou da
verdade, da misericó rdia e do perdã o, nunca com sequer um traço de insegurança obscurecendo
seu semblante. Passando seu tempo com aqueles que eram desaprovados por todos, ele nunca
vacilou em seu desejo de lhes oferecer seu reino.
Quando nos apegamos a um miserá vel sentimento de segurança, a possibilidade de
transparência torna-se totalmente nula. Da mesma maneira que o amanhecer da fé exige o pô r
do sol de nossa anterior incredulidade, de nossas falsas idéias e convicçõ es equivocadas e
circunscritas, assim também o amanhecer da crença exige o abandono de nossa â nsia pelas
garantias materiais e espirituais. A segurança no Senhor Jesus implica o fim de nossos cálculos e
estimativas de custos.
O tipo de confiança que depende da resposta a ser recebida é falso, baseado apenas na
ansiedade. Na insegurança assustadiça, o crente suplica e até mesmo exige do Senhor garantias
tangíveis de que seu afeto será retribuído. Se nã o as receber, fica desanimado, frustrado, talvez
mesmo convencido de que tudo está acabado ou de que nunca realmente existiu. Se as receber,

~ 28 ~
se tranqü iliza, mas só por algum tempo. Ele precisa de provas adicionais — cada uma menos
convincente que a anterior. No fim, essa falsa confiança morre de pura frustraçã o.
O que o cristã o inseguro nã o aprendeu é que as garantias tangíveis, por mais valiosas que
possam ser, nã o podem gerar confiança, sustentá -la ou fornecer qualquer certeza de sua
presença. Jesus Cristo nos chama para que entreguemos nosso "eu" independente à completa
confiança. A transparência, a certeza e a paz só podem ser alcançadas quando essa decisã o é
ratificada e a ansiedade pela confiança, extinta.
O mistério da ascensã o do Senhor contém uma importante liçã o para o obcecado por
segurança. Jesus disse a seus discípulos: "Eu lhes afirmo que é para o bem de vocês que eu vou"
(Jo 16:7). Por quê? Como a partida de Jesus poderia beneficiar os apó stolos? Em primeiro lugar,
conforme ele disse: "Se eu nã o for o Conselheiro nã o virá para vocês; mas se eu for, eu o
enviarei" (Jo 16:7). Em segundo lugar, porque enquanto Jesus ainda fosse visível na terra,
sempre haveria o perigo de que os apó stolos se tornassem tã o apegados à visã o da sua carne
humana que poderiam abandonar a certeza da fé e se inclinar à evidência tangível dos sentidos.
Ver Jesus em pessoa era bom, mas "felizes os que nã o viram e creram" (Jo 20:29).
No inverno de 1952, durante um dos combates mais pesados da Guerra da Coréia, dois
cabos da marinha estavam agachados na trincheira de um posto de observaçã o avançado, quase
cem metros dentro das linhas inimigas. Jack Robison e Tim Casey eram amigos havia mais ou
menos um ano. Eles se conheceram na escola de armamentos de Quâ ntico, Virgínia, saíram
juntos em licença e depois viajaram para Camp Pendleton, Califó rnia, para o treinamento de
infantaria avançada. Seu regimento chegara em Pusan no outono de 1951.
Passava um pouco da meia-noite e uma neve clara caía. Acotovelando-se na trincheira, os
dois passavam um cigarro de um lado para o outro quando uma granada, arremessada por um
norte-coreano escondido a cerca de 25 metros de onde eles estavam, caiu bem no meio deles.
Casey percebeu o explosivo primeiro, displicentemente jogou fora o toco de cigarro e deitou-se
sobre a granada, que detonou imediatamente; o abdome de Casey absorveu a explosã o. Ele
piscou para Robison e rolou morto.
Quatro anos mais tarde, Robison entrou para a vida religiosa. Quando pronunciou os
votos solenes, em 1960, ele adotou um novo nome para simbolizar sua nova vida em Cristo
Jesus. Mudou seu primeiro nome de Jack para Casey, na esperança de que o espírito de auto-
sacrifício que animara a vida de Tim Casey caracterizasse também o seu. Ele também ajudou a
mãe de Casey, que era viú va, e passou a dividir suas férias de Natal entre a pró pria família, em
Rhode Island, e a sra. Casey, em Chicago.
Certo verã o, o padre Casey Robison fez uma visita surpresa à sra. Casey. Ele estava se
sentindo cansado e deprimido. Os dois seguiram o procedimento habitual de assistir à s novelas
da tarde na televisã o, segurando as mã os um do outro o tempo todo. Depois do jantar, sentaram-
se na sala de estar, tomando uma bebida e lembrando os dias em que Tim era vivo. A depressã o
do padre se prolongava. Inesperadamente, ele perguntou:
Mã e, você acha que Casey realmente me amava? Ela sorriu.
Oh, Jack, você me vem com cada uma! — disse num lâ nguido sotaque irlandês. — Você
nunca fala sério!
Estou falando sério — Robison respondeu. Havia um medo nos olhos da mulher.
Agora pare de zombar de mim, Jack.
Eu nã o estou zombando, mãe.
Ela o encarou com descrença. Entã o o medo se transformou em fú ria. A sra. Casey nunca
havia blasfemado ou tomado o nome do Senhor em vã o. Mas, naquela noite, ela se levantou e
gritou:
— Jesus Cristo, homem, que mais ele poderia fazer por você? Entã o ela se dobrou na
cadeira, enterrou a cabeça em seu peito
e começou a chorar. A mesma frase foi repetida vá rias vezes, até se tomar insuportá vel:
— Que mais ele poderia fazer por você?

~ 29 ~
Depois do que pareceu um longo tempo, ela deu um pá lido e pequeno sorriso, e disse
com suavidade:
— Ah, Jack, acho que todos nó s precisamos reconfirmar essas certezas de vez em
quando.
Foi nessa noite que o padre Casey Robison abandonou a insegurança e encontrou a paz
que vem com a genuína confiança.
"O Diabo nunca se alegra mais", disse Francisco de Assis, "do que quando rouba a paz do
coraçã o de um servo de Deus". Paz e alegria nã o terã o lugar quando o coraçã o de um cristã o
almejar um sinal depois do outro do misericordioso amor de Deus. Nada é dado como certo, nem
recebido com gratidã o. Os olhos preocupados e a testa franzida do crente ansioso sã o os
sintomas de um coraçã o em que a confiança nã o encontrou morada.
O pró prio Senhor precisa atravessar conosco todas as sombras do espectro emocional,
da raiva à s lá grimas, e entã o ao regozijo. Mas a verdade pungente permanece: nã o confiamos
nele. Nã o temos a mente de Cristo Jesus. "Nã o tenham medo, pequeno rebanho, pois foi do
agrado do Pai dar-lhes o Reino" (Lc 12:32). As palavras de sra, Casey deveriam bastar também
para nó s: "Jesus Cristo, que mais ele poderia fazer por você?".
A insegurança nã o somente paralisa nossa relaçã o com o Deus vivo, mas também
provoca um efeito devastador nas relaçõ es interpessoais. É o ponto de partida de toda
desavença social. Ela acaba com a sinceridade, que é a ponte para o mundo existencial do outro.
Ela corró i a verdadeira comunicaçã o e causa um tipo de ruptura no desenvolvimento da
personalidade autêntica. Ken Keyes Jr. escreve:

O centro da segurança é uma espécie de nível de consciência solitá rio. Quando


a sua consciência está preocupada em esforçar-se no sentido daquilo que você
julga como suas necessidades de segurança, você se torna mais isolado das
pessoas do que em qualquer outro nível. E sua energia se situa no nível mais
baixo. Quando está preocupado com a segurança, você é apanhado em condiçõ es
conflitantes nas relaçõ es com os outros. Você imagina os "outros" como objetos
capazes de ajudá -lo a ficar mais seguro — ou como objetos a combater, porque
ameaçam sua segurança. No nível da segurança, você nã o pode amar os outros,
uma vez que esse nível cria grandes distâ ncias entre você e as outras pessoas.

O cristã o inseguro encontra excessiva dificuldade para ouvir a opiniã o dos outros. Ele
possui tantas dú vidas sobre a pró pria identidade que precisa se afirmar o tempo todo, dominado
como está pelo medo de que, ao ouvir os outros ou ceder a uma opiniã o, ele possa, assim, perder
uma parte da sua frá gil identidade. Ou entã o, a incerteza sobre sua identidade dificilmente
permitirá que se afirme, uma vez que, ao expressar seus verdadeiros sentimentos aos outros, ele
poderia expor-se à s críticas. Ele raramente sorri, pois um riso com o coraçã o aberto (a vá lvula de
segurança embutida que o faz se lembrar de sua condiçã o de criatura) é um luxo que nã o pode
se dar: isso poderia reduzir a auto-estima e fazer que ele deixasse de se levar tã o a sério.
Esse homem nã o chora, o que seria uma fenda na sua armadura invulnerável. Mas, ao
contrá rio, pode chorar freqü entemente, só que sozinho — ele nã o pode deixar os outros
saberem que é menos do que perfeito. Ele nã o admite prontamente seus erros devido ao desejo
insaciá vel de aprovaçã o. Asneiras prejudicam sua credibilidade. "Vivemos numa época", diz J. B.
Priestley, "em que nenhum homem importante jamais admite que está errado".
Por que tantos cristã os se mumificam na idade madura? Por que paramos de crescer na
dimensã o espiritual de nossa vida? Por que nossas liturgias se tornam tã o estagnadas e nossos
encontros de oraçã o, tã o estilizados? Por que a criatividade e a flexibilidade cedem espaço para a
repetiçã o e a rigidez? Onde a vida é vivida como nova criaçã o?
Vamos dar, mais uma vez, a dica do que funcionou no passado. O sopro de Deus está
engarrafado, e o Espírito itinerante, bloqueado. O novo, o criativo, o jovem é visto com suspeita,

~ 30 ~
nã o com fascinaçã o. "Viver é mudar", escreveu John Henry Newman, "e ter vivido bem é ter
mudado freqü entemente". Mas o medo do fracasso evita qualquer surpresa do Espírito.
O físico Max Planck, ganhador do Prêmio Nobel, disse que o longo caminho labiríntico
que o levou à descoberta da teoria quâ ntica nunca teria sido atravessado se o seu grupo de
pesquisa tivesse medo de cometer erros. Na vida de muitos cristã os, a apreensã o sobre cometer
erros impede o crescimento, abafa o Espírito e garante o progressivo estreitamento de suas
personalidades.
A igreja de Jesus Cristo é um lugar de promessa e possibilidades, de aventura e
descoberta, uma comunidade de amor em açã o, estrangeiros e exilados numa terra estranha se
dirigindo para a Jerusalém divina. Mas aqueles que buscam segurança sã o os inimigos da
abertura. A insistência deles em preservar o status quo impede a inovaçã o e a espontaneidade e
desencoraja a exploraçã o de novas estradas na mente de Cristo Jesus. Querer manter as coisas
como estã o traz automaticamente uma nova insegurança, com mais precauçõ es, ameaças e
tensã o nervosa.
Joã o chama tal apego à segurança de "trevas", pois coloca-se em oposiçã o à Luz. Ele roga:
"Para que todos sejam um, Pai, como tu está s em mim e eu em ti. Que eles também estejam em
nó s, para que o mundo creia que tu me enviaste" (Jo 17:21). Viver na dependência da
"segurança" derrota a alegre confiança na sabedoria e no amor de Deus, prejudica as relaçõ es
interpessoais, impede a contínua renovaçã o da comunidade e a uniã o cristã e põ e em
desvantagem o cristã o sério que busca atingir a mente de Cristo Jesus.

PRAZER
Uma vez fechadas as janelas, trancadas as portas e apertadas as porcas e parafusos em
nossa maquinaria mental, começamos a nos sentir seguros. Mas o tédio e o desespero silencioso
de nossa existência hermeticamente fechada nos levam a buscar compensaçõ es e satisfaçõ es
através de todos os tipos de experiências agradá veis.
Quando as formas de prazer, lazer e recreaçã o reanimam a mente e o corpo e revitalizam
o espírito, elas proporcionam uma sensaçã o de equilíbrio, tranqü ilidade e completude. Mas,
buscadas em si mesmas, elas nos enviam a um passeio na montanha-russa, durante o qual cada
sensaçã o deve ser maior que a anterior para que a emoçã o continue.
O sexo pode ser a forma de prazer mais procurada, seguido pelo efeito embriagador do
á lcool ou pela energia impulsionadora das drogas. Para alguns, o prazer é encontrado no
conforto da comida. Para outros, é a vida por meio da mú sica ou do cinema que dá acesso à vida
emocional, profundamente enterrada. Quã o facilmente a busca de prazer se transforma em
obsessã o, e a obsessã o em um tipo de morte da alma:

Quem vive segundo a carne tem a mente voltada para o que a carne deseja;
mas quem vive de acordo com o Espírito, tem a mente voltada para o que o
Espírito deseja. A mentalidade da carne é morte, mas a mentalidade do Espírito é
vida e paz; a mentalidade da carne é inimiga de Deus porque nã o se submete à Lei
de Deus, nem pode fazê-lo. Quem é dominado pela carne nã o pode agradar a
Deus.
Romanos 8:5-8

O homem carnal está ostensivamente ligado à carne, segundo a qual vive e anda. No
entanto, muitos cristã os praticam uma "prudência da carne" ambivalente, a qual aspira a um
tipo de mediocridade dourada: o "eu" é cuidadosamente distribuído entre carne e espírito,
mantendo-se um olho atento em ambos.
Paulo chama a isso "visã o espiritual imperfeita". E a visã o dos que receberam o Espírito,
mas permanecem espiritualmente imaturos porque nã o se sujeitam por completo ao domínio do
Espírito. Eles se rendem à s suas paixõ es, permitindo, assim, que seus impulsos os limitem a uma

~ 31 ~
espiritualidade infantil. Paulo os compara a bebês incapazes de receber alimento só lido (ICo
3:2). "O cristã o perfeito", escreve Jean Mouroux, "é aquele que normalmente nã o se rende à s
exigências da carne, e que normalmente é submisso aos impulsos do Espírito".
Uma das formas mais intrigantes de auto-indulgência é a obsessã o narcisista com o
pró prio corpo. Partindo do interesse vá lido e ú til de manter a saú de, gastamos uma quantidade
inacreditá vel de tempo e energia para conquistar ou manter uma boa aparência. O planejamento
estratégico de Napoleã o para a invasã o da Rú ssia foi um esforço militar amador, se comparado à
engenhosidade, habilidade e precisã o logística do cuidado corporal.
Nã o há lanches rá pidos casuais, nem exercícios nã o planejados, nem carboidrato ou
caloria que nã o seja contabilizado. Procura-se orientaçã o profissional, consultam-se livros e
perió dicos, procuram-se spas, avaliam-se cirurgias plá sticas e debatem-se os méritos da dieta da
moda na televisã o. O que é uma rica vida espiritual comparada à primorosa sensaçã o de se
parecer com uma celebridade? Parafraseando o Cardeal Wolsey: "Que bom se eu servisse a Deus
do mesmo modo como controlo o meu peso".
Logicamente, a preocupaçã o com a aparência física nã o mantém nenhuma relaçã o com a
mente de Jesus Cristo. O Senhor sente apenas tristeza e compaixã o pela nossa patética
perseguiçã o da sensaçã o física. E os esforços para se encontrar excitaçã o e deflagrar uma paixã o
nã o terminam com o físico. Os cristã os sã o tã o propensos a dependência química, romances,
amizades interesseiras e comportamentos de risco quanto aqueles que nã o possuem Cristo no
coraçã o. Querem e buscam meios de preencher as lacunas abertas na vida. No entanto, saem
dessas experiências com pouco mais do que uma sensaçã o temporá ria de plenitude.
A falta de experiência com o amor divino fica dolorosamente evidente. Quer busquemos
preencher o vazio com atividades ostensivamente carnais, como sexo ilícito, á lcool ou drogas;
quer nos enganemos acreditando que nossa necessidade de prazer é baseada em uma
preferência espiritual, o nome do jogo é o mesmo.
Pense como as igrejas têm explorado e se aproveitado da carência para substituir o
entorpecimento em nossa vida por uma paixã o por algo mais, qualquer coisa. Criamos a
adoraçã o na qual a mú sica serve para mexer com as emoçõ es, mas a alma permanece impassível,
em que as palavras ditas sã o pouco mais do que manipulaçõ es do coraçã o. Criamos experiências
catá rticas cheias de choro e dança no Espírito, que nos deixam com a sensaçã o de ter tocado
Deus, mas que nã o conseguem nos dar a sensaçã o de que Deus nos tocou.
Corremos para as igrejas onde a mensagem parece boa e nos sentimos energizados e
enaltecidos — mas nunca desafiados ou condenados. Henri Nouwen diz: "Nã o é de se
surpreender que as experiências espirituais estejam crescendo rapidamente por todos os lados e
se tornando artigos comerciais altamente procurados. Multidõ es correm para lugares e pessoas
que prometem intensas experiências de comunhã o, emoçõ es catá rticas de alegria e doçura e
sensaçõ es libertadoras de arrebatamento e êxtase. Em nossa desesperada necessidade de
plenitude e incessante busca pela experiência da intimidade divina, somos todos propensos a
construir nossos pró prios eventos espirituais".

PODER
O ú ltimo desejo que nos impede de vestir a mente de Jesus Cristo é a cobiça pelo poder.
Em seu ministério, Jesus rejeitou qualquer exibiçã o de poder, exceto o do Espírito Santo. Ao
contrá rio dos "reis das naçõ es [que] dominam sobre elas" (Lc 22:25), os discípulos nã o deviam
exercer autoridade. O pró prio Senhor executou o trabalho servil de escravo ao lavar os pés sujos
de seus discípulos, exigindo, entã o, que eles fizessem o mesmo. "Se eu, sendo Senhor e Mestre de
vocês, lavei-lhes os pés, vocês também devem lavar os pés uns dos outros. Eu lhes dei o exemplo,
para que vocês façam como lhes fiz" (Jo 13:14-15).
Quando Jesus se apropriou do título "Ebed Yahweh"6 de Isaías (cf. Lc 22:24-30), ele
reforçou sua identificaçã o servil quando segurou uma criancinha no meio do grupo e disse aos
discípulos que eles deveriam aprender a ser igual a ela. John McKenzie afirma:

6
Em hebraico: "Servo do Senhor", conforme Isaías 20:3. (N. da T.)

~ 32 ~
A agudeza dessa resposta sempre foi reconhecida. Efetivamente Jesus afirma
que nã o existe "primeiro" no Reino de Deus. Se você quiser ser primeiro, tome-se
servo de cada homem; retorne à sua infâ ncia, e entã o você estará preparado para
o primeiro lugar. Jesus deixa pouco espaço para a ambiçã o, e deixa menos espaço
para o exercício do poder. Servos e crianças nã o sã o portadores de poder.

Os jogos de poder que jogamos, aberta ou sutilmente, têm o objetivo de dominar pessoas
e situaçõ es, aumentando, assim, nosso prestígio, nossa influência e reputaçã o. Os variados
métodos de manipulaçã o, controle e agressã o passiva de que nos valemos geram uma vida que é
pouco mais que uma série de ataques e contra-ataques competitivos.
Convencemo-nos de que precisamos de poder para ser felizes. Desenvolvemos um
sistema de radar preciso, sintonizado nas açõ es e vibraçõ es de qualquer pessoa ou situaçã o que,
mesmo remotamente, ameacem nossa posiçã o de autoridade. A incapacidade de desenvolver
com profundidade relaçõ es afetuosas (com os outros e também com Deus) está arraigada em
nosso há bito de poder. Percebemos as pessoas como objetos que aumentam ou ameaçam nosso
prestígio, como peõ es a serem avançados ou eliminados, conforme possam proteger o líder e
apressar ou retardar a jogada vitoriosa no tabuleiro da vida.
O que um amigo meu chama "síndrome do reizinho" — a programaçã o emocional que
busca compensar a carência de poder que experimentamos quando criança — conduz à
preocupaçã o com símbolos de status, como carros de luxo, os mais modernos aparelhos
tecnoló gicos e casas de alto padrã o. Isso nos motiva a acumular dinheiro como método de
exercer poder.
Contudo, a busca pelo poder nã o se limita a ganhos materiais ou a uma carreira com o
propó sito de estabelecer um império pessoal. A atraçã o do poder é a força por trá s do desejo de
adquirir conhecimento como meio de ser reconhecido como pessoa "interessante". O
conhecimento pode ser poder, mesmo na vida espiritual. O perito sabe que deve ser consultado
antes de qualquer julgamento definitivo.
O jogo de parecer melhor que o outro impede a troca de idéias e produz espírito de
rivalidade e competiçã o demasiadamente humano. Mas os jogos de poder ocorrem à s custas da
relaçã o profunda com nossos irmã os e nossas irmã s. Nã o podemos seguir a jornada com aqueles
que desdenhamos sem que ninguém saia humilhado.
Um recente perfil psicoló gico de pró speros empresá rios americanos revelou quatro
características comuns: 1) sã o, em grande parte, expatriados (imigrantes ou exilados de seus
países nativos); 2) possuem um locus de controle interno que os impele a desempenhar um
papel ativo na construçã o de seu destino; 3) sã o encorajados pelo exemplo de empresá rios até
menos talentosos que abriram novas possibilidades de negó cios; e 4) têm os recursos
apropriados.
As mesmas qualidades eminentemente humanas podem caracterizar os cristã os que
buscam exercer autoridade e poder dentro da comunidade espiritual. Como exilados numa terra
estrangeira, eles nã o podem se apropriar da nossa cultura secular, entã o sã o movidos pela
necessidade de dominar os outros para serem felizes, incomodados pelo sucesso de Cinderela
dos irmã os e das irmã s menos dotados que assumiram papéis de liderança. Tais crentes sã o
diligentes na intriga política e clerical, fingindo se submeter à vontade de Deus.
Os estratagemas de poder sã o previsíveis. Orgulhamo-nos de nossas supostas
realizaçõ es, embora negando qualquer crédito pessoal. Vangloriamo-nos de nossos dons de
discernimento e fazemos oraçõ es por um contínuo esclarecimento. Manifestamos uma
extraordiná ria pseudo-serenidade em face da adversidade e humildemente reclamamos os
fardos da liderança.
O desejo de poder é sutil, podendo nã o ser reconhecido e detectado, e, portanto, nã o ser
combatido. Mas os cristã os bem-sucedidos na busca de poder, reunindo discípulos, adquirindo
conhecimento, alcançando status e prestígio e controlando o mundo estã o distantes da mente de
Jesus. Ficam receosos quando um discípulo rouba seu bastã o, cínicos quando a avaliaçã o é
~ 33 ~
negativa, paranó icos quando ameaçados, indecisos quando desafiados e loucos quando
derrotados.
Embora vivam completamente na carne, desconsideram a crítica por ela nã o estar "no
Espírito". Os cristã os que têm êxito no jogo do poder vivem uma vida vazia: por fora, há
considerá vel evidência de sucesso, mas, por dentro, estã o desolados, sem amor e carregados de
ansiedade. O reizinho procura dominar Deus, em vez de ser dominado. A tragédia é percebida na
flagrante tentativa de contradizer o Senhor.
Wilfred Owen, oficial britâ nico de 25 anos que morreu em batalha pouco antes do
armistício de 1918 (Primeira Guerra Mundial), descreveu magistralmente em The Parable of the
Old Man and the Young [A pará bola do velho e do jovem] o desejo de poder ao reconstruir a
narrativa do Gênesis do sacrifício de Isaque:

Entã o Abrã o levantou-se, cortou a lenha e partiu,


E levou com ele o fogo e uma faca.
E enquanto caminhavam os dois juntos,
Isaque, seu primogênito, olhou-o e disse:
Meu pai, veja os preparativos, fogo e ferro,
Mas onde está o cordeiro para o holocausto?
Entã o Abrã o amarrou o jovem com tiras e correias,
E ali construiu fortes e trincheiras,
E estendeu a faca para matar o pró prio filho.
Quando... olhe! Um anjo o chamou do céu,
Dizendo: nã o toque no rapaz,
Nã o lhe faça nada, Veja,
Um carneiro preso pelos chifres num arbusto;
Ofereça o Carneiro do Orgulho em seu lugar.
Mas o velho nã o fez assim, e matou o pró prio filho,
E metade das sementes da Europa, uma por uma.

"Mas o velho nã o fez assim!", protestamos. E, entretanto, persistimos em nossos esforços


para contrariar Deus, loucamente escolhendo a morte em vez da vida, a inércia em vez do
dinamismo, a dominaçã o em vez da submissã o, o poder em vez da rendiçã o. Mas Deus se recusa
a nos deixar com a ú ltima palavra em qualquer coisa. E essa é uma prerrogativa dele.
Acreditamos que podemos dar a ú ltima palavra, entã o Deus refuta qualquer "palavra
absoluta" que proferimos, qualquer "coisa definitiva" que fazemos. As narrativas bíblicas
mostram isso claramente: Deus se opõ e a nossa pulsã o de morte, segura nosso braço, abre uma
nova porta, mostra-nos um novo caminho. É por isso que aquele que busca o poder é
sentenciado à frustraçã o. Ralph Martin escreve:

Aqueles que estã o buscando responder ao chamado de Espírito para a


renovaçã o e a restauraçã o devem ser de tal modo cuidadosos que o egoísmo, o
ressentimento, a frustraçã o e o desejo de poder nã o os levem além daquilo que é
verdadeiramente do Espírito de Deus. O exemplo trá gico dos movimentos de
renovaçã o ao longo de histó ria da igreja, que desenvolveram um espírito de
orgulho e rebeliã o e, assim, trouxeram tanto a maldiçã o quanto a bênçã o aos
cristã os, deve estar sempre diante de nó s.

~ 34 ~
A vida conduzida por nosso desejo de segurança, prazer e poder obscurece a Luz dentro
de nó s e traz desnecessá rios sofrimentos mentais e emocionais, os quais sã o muitas vezes mal
interpretados como afliçõ es espirituais ou as inevitá veis dores do crescimento da vida no
Espírito. Essa é uma percepçã o errô nea. Elas nascem da nossa vontade, nã o da vontade de Deus.
A luta ansiosa por segurança, a perseguiçã o frenética ao prazer físico e espiritual e a
concorrência desesperada pelo poder expulsam a paz e a alegria, a serenidade e a autoconfiança,
a bondade, a paciência e os outros frutos do Espírito Santo.
O evangelho de Jesus Cristo nã o promete alívio, libertaçã o ou realizaçã o para esses males
auto-infligidos, senã o pela total submissã o à mente de Cristo. Tais males devem ser
cirurgicamente extirpados de seu nú cleo, e a capacidade de realizar a operaçã o é nossa. Nã o é
um conjunto de circunstâ ncias que rouba o fogo de Prometeu, e sim nossos há bitos, nossas
necessidades e nossos desejos incessantes. Em seu livro Inner Healing,7 Michael Scanlan diz:

Nã o raro, as pessoas fazem outras oraçõ es para elas, pedindo por


tranqü ilidade, sossego, estabilidade, entendimento, tolerâ ncia, alegria, libertaçã o
da ansiedade, de ressentimentos ou culpas, mas nada parece acontecer. Elas
naturalmente se inclinam a correr atrá s de bens desejá veis do modo como fariam
por diplomas, sucesso profissional ou desempenho físico, com a diferença de o
fazer através de Deus, em vez de outros. Esse nã o é o modo de cura interior por
meio do Senhor. O Senhor tem o dom para nó s, e devemos nos ajustar, aceitar o
dom. Nã o determinamos o que queremos, nem como o atingir. Decidimos aceitar
o dom do Senhor e fazer tudo que é necessá rio para recebê-lo e mantê-lo.

A jornada rumo à transparência exige o humilde reconhecimento diante de Deus de que


somos exageradamente preocupados com segurança, prazer e poder. Exige compaixã o genuína
para com os outros, ao vê-los manifestando vícios e necessidades baseadas na emoçã o. E nossa
íntima solidariedade nos momentos difíceis que reduz a presunçã o e a impaciência, e torna a
compaixã o possível. A jornada rumo à transparência começa com uma confrontaçã o honesta
com a verdade, que nã o é algo que alcançamos, mas Alguém.

7
Traduzido em portuguê s como A cura interior. Sã o Paulo: Paulinas, 1989. (N. da T.) queremos, nem como o atingir. Decidimos
aceitar o dom do Senhor e fazer tudo que é necessá rio para recebê -lo e mantê-lo.

~ 35 ~
PARTE DOIS
A MENTE DE CRISTO

CAPÍTULO QUATRO
A DESCOBERTA DO PAI

Aprender a pensar como Jesus nã o é, naturalmente, pouca coisa. Entretanto, muitas


vezes vivemos como se tivéssemos firme domínio de algo tã o completamente fora de nosso
pró prio modo de compreender e agir. Como se tal coisa fosse possível! Portanto, devemos seguir
em frente na busca pela mente de Cristo, sabendo que compreensã o plena é meta impossível.
Contudo, há muito a descobrir ao afastar o coraçã o dos desejos que nã o têm lugar no
evangelho de Cristo — segurança, prazer e poder — e encarar, em seu lugar, as paixõ es que
ocuparam a alma e a mente de Cristo. Jesus nã o esconde aquilo em que sua mente está focada:

Certa ocasiã o, um perito na lei levantou-se para pô r Jesus à prova e lhe


perguntou: "Mestre, o que preciso fazer para herdar a vida eterna?" "O que está
escrito na Lei?", respondeu Jesus. "Como você a lê?" Ele respondeu: "Ame o
Senhor, o seu Deus, de todo o seu coraçã o, de toda a sua alma, de todas as suas
forças e de todo o seu entendimento" e "Ame o seu pró ximo como a si mesmo".
Disse Jesus: "Você respondeu corretamente. Faça isso, e viverá ". Mas ele,
querendo justificar-se, perguntou a Jesus: "E quem é o meu pró ximo?"
Lucas 10:25-29

Jesus respondeu com a pará bola do bom samaritano para explicar a segunda parte do
grande mandamento. Mas ninguém lhe pediu que explicasse a primeira parte do grande
mandamento. Até hoje passamos uma grande parte do tempo em nossas igrejas falando sobre
amar o pró ximo (embora passemos pouco tempo agindo assim de fato) e, no entanto, raramente
consideramos o que significa amar a Deus de todo o coraçã o, toda a alma, toda a força e toda a
mente. Talvez a pará bola seguinte possa nos ajudar a ter uma compreensã o mais profunda do
que seria esse tipo de amor.

A PARÁBOLA DO HOMEM QUE CURA


Muitos anos atrá s, um bebê nasceu na pequena cidade mexicana de Hopi. O povo da
cidade tinha esperado aquele nascimento com muito interesse, uma vez que o bisavô era
irlandês, e a bisavó , negra; o avô era mexicano, e a avó , crioula; o pai era meio-índio, e a mãe,
espanhola. O pequeno bebê tinha uma ascendência bastante mestiça e, por conseguinte, uma cor
engraçada: uma mistura de branco e ouro, caramelo e café. Nã o sabendo como chamá -lo, seus
pais, por fim, lhe deram o nome de Willie. Logo apó s o nascimento, ele sofreu de pó lio e ficou
parcialmente paralisado do lado esquerdo.

~ 36 ~
Willie aprendeu cedo que as crianças podem ser muito cruéis com o que nã o
compreendem. Na escola, riam de sua cor maluca, puxavam seu cabelo de cor ocre e, à s vezes,
chutavam sua perna coxa. Quando as crianças brincavam de cabo-de-guerra na festa da igreja, os
colegas de sua equipe soltavam repentinamente a corda de forma que só Willie era arrastado
para a poça de lama. Mais tarde, na corrida de carrinho de mã o, seu parceiro jogou Willie numa
espinheira de pontas muito afiadas.
Naquela noite, a mãe de Willie deu-lhe um banho depois de ter retirado todos os
espinhos e esfregou o corpo dolorido com o calmante ó leo de babosa. Conforme ele adormecia, a
mãe o acariciava com ternura e lhe falava mais uma vez, como fizera tantas vezes antes, sobre o
grande El Shaddai e seu amor pelas criancinhas, como elas corriam para ele e nunca o queriam
deixar.
Como o grande dia da festa religiosa se aproximava, Willie trabalhou duro em sua tarefa
de alimentar Macho, o jumento do vilarejo, para juntar dinheiro. Na noite da festa, ele coxeou
ansiosamente para a praça da vila onde todos estavam reunidos para a celebraçã o. Os olhos
dançavam enquanto via as barracas de algodã o-doce, as belas senhoras em saias rodadas
arqueadas, os cavalos do carrossel num sobe-e-desce, os sombreiros enfeitados dos homens,
usados somente uma vez por ano, o palhaço colorido no terno listrado fazendo graça.
Willie estava perambulando, decidindo como gastar suas magras economias (se numa
tortilla ou num tamale), quando seus olhos se depararam com uma velha carroça de madeira.
Em um letreiro pendurado se lia: "O grande show dos remédios". Quando Willie cautelosamente
se aproximou, de repente o coraçã o subiu pela garganta. Um homem alto, magro, ossudo, apeou
da carroça, estendeu seus braços e preparou-se para falar.
Foi quando ele olhou diretamente para Willie. Sua face era castigada pelo sol, mas que
olhos! Eles eram tristes, porém tã o penetrantes, suaves e amá veis. O coraçã o de Willie lhe disse
imediatamente quem era esse homem. "É El Shaddai", gritou Willie. O homem que cura sorriu.
Sua face resplandeceu como um raio de sol e seus olhos dançaram alegremente.
— Aqui, irmã ozinho — disse o homem.
Ele deu a Willie uma garrafa cheia de um líquido laranja brilhante.
— Esfregue três gotas sobre o coraçã o toda noite, e coisas maravilhosas acontecerã o
a você.
Willie mexeu em seu bolso, pronto para oferecer tudo o que tinha por aquela garrafa,
mas o homem disse:
— O que recebi gratuitamente, devo dar gratuitamente.
O homem sentou-se na carroça. Willie aproximou-se e timidamente perguntou:
— O conteú do da garrafa vai endireitar a minha perna torta, senhor, e fazer minhas
manchas desaparecerem?
O homem que cura o pegou e sentou sobre os joelhos. Willie agora estava assustado. Ele
tinha medo de que o homem, quando visse sua pele de perto, risse como faziam todos os aldeõ es
que o haviam apelidado "Truta Malhada".
Willie nã o estava preparado para o que aconteceria a seguir. O homem abraçou a cabeça
do menino ao encontro do pró prio coraçã o. Ali estava tã o quente e calmo que Willie pensou na
lareira da sala da pequena casa onde vivia. Entã o sentiu gotas de chuva em sua cabeça e levantou
os olhos para ver as lá grimas de compaixã o caindo dos olhos do homem. Willie pensou
imediatamente em sua mã e. Mas, até mesmo por ela, o menino nunca havia sido amado assim
antes.
— Irmã ozinho, qual é o seu nome?
— Willie.
A cabeça do menino de forma alguma se desgrudava do peito do homem, e ele ainda
apertava a garrafa na mã o.

~ 37 ~
— Meu remédio é tã o poderoso, Willie, que nã o somente vai endireitar sua perna,
mas endireitará todos os caminhos sinuosos e todos os coraçõ es tortuosos. Cada vale de dor será
aterrado e cada montanha de orgulho, aplainada, e toda a humanidade verá a salvaçã o de Deus.
Ele tocou o cabelo cor de ocre de Willie e o beijou levemente na testa.
— Você gostaria de compartilhar meu jantar comigo, Willie? Em toda a sua vida,
ninguém jamais havia convidado Willie para jantar. Na verdade, ninguém, a nã o ser sua mã e e
seu pai, o chamara alguma vez para compartilhar coisa alguma. Sentimentos que Willie jamais
soubera que existiam brotaram do seu coraçã o.
Todos o haviam empurrado para seu isolamento mais e mais profundo. Mas o homem
quis compartilhar sua refeiçã o com ele. E Willie partilhava de sua companhia com alegria. Pegou
todo o dinheiro do bolso.
— Eu comprarei a sobremesa — anunciou Willie com satisfaçã o. — Sorvete de
limã o, algodã o-doce e biscoitos dente-de-leã o!
Os dois comeram com prazer. Willie falou sem parar e o homem o ouviu em silêncio.
Willie contou sobre o pai e a mã e, como a escola era dura, como ele desejava ter um amigo. Ele,
entã o, encarou-o firme com seus olhos tristes e suaves, e teve coragem suficiente para
perguntar:
— Você seria meu amigo, senhor?
— Eu sou seu amigo — respondeu o homem que cura.
Inesperadamente, uma sensaçã o de frio tomou conta do coraçã o de Willie. Ele nunca
tivera um amigo. E se ele nã o soubesse como ser um amigo? O homem era tã o generoso e bom,
tã o gentil e amoroso. "Com certeza, vou fracassar e aí perderei o ú nico amigo que já tive", pensou
Willie.
— Oh, senhor — o menino pediu em seu medo —, por favor, me diga o que significa
ser um amigo! Eu quero tanto aprender.
— Nã o aflija seu coraçã o, irmã ozinho. Eu lhe direi o tipo de amigo que sou e, entã o,
você poderá decidir por si mesmo que tipo gostaria de ser. Willie, se eu lhe disser palavras
bonitas, capazes de fazer você se sentir importante, mas nã o amá -lo, nã o serei seu amigo. Se eu
compartilhar meu conhecimento com você, de forma que compreenda todos os mistérios do
universo, mas nã o amá-lo, nã o serei de forma alguma seu amigo. Se eu der toda a minha comida
para alimentar sua família e cuidar de todas as suas necessidades, mas nã o amá-lo, nã o serei seu
amigo.
O homem continuou:
— Irmã ozinho, serei sempre paciente com você. Serei sempre gentil com você.
Nunca sentirei ciú mes de seus outros amigos.
Embora eu seja o ú nico filho de meu pai, nunca tentarei ser superior. Nunca serei esnobe,
nem rude. Nã o vou tirar vantagem de você para conseguir o que puder. Nã o me irritarei à toa.
Nã o ficarei chocado quando você me desapontar. Nã o me alegrarei com seus erros, mas ficarei
feliz quando você for sincero consigo. Nã o existe limite para meu perdã o, para minha confiança e
esperança em você, para minha capacidade de suportar todas as provas de amizade em relaçã o a
você.
E o homem disse mais:
— Willie, ouça com atençã o agora. Nunca trairei sua confiança. As profecias
desaparecerã o, as línguas cessarã o, o conhecimento passará , mas eu nã o o esquecerei. Jamais
deixarei de ser seu amigo. Irmã ozinho, talvez sua memó ria nã o seja tã o boa. Se você esquecer
tudo, nã o esqueça de que há três coisas duradouras na amizade: fé, esperança e amor. E a maior
delas é o amor.
Willie ouviu atentamente.
— É tã o bonito, senhor — disse, balançando a cabeça. — Mas tenho medo de nunca
poder ser um amigo assim. Sou muito fraco, muito feio, muito mal-humorado, muito bobo.

~ 38 ~
Por isso lhe dei meu elixir especial, irmã ozinho. Esfregue três gotas em seu coraçã o toda
noite. A primeira gota chama-se "perdã o", a segunda, "aceitaçã o", e a terceira, "alegria". Faça isso
e saiba que será abençoado.
Entã o o homem abriu seu sorriso mais amoroso e partiu. Willie correu, saltou, pulou e
dançou durante todo o caminho de casa. Quando chegou, foi para seu quarto, fechou a porta e se
ajoelhou ao lado da cama. Abriu a garrafa e começou a esfregar a primeira gota, o perdã o para os
outros, em seu coraçã o. Era muito doloroso, pois as outras crianças o haviam magoado
profundamente.
Mas logo uma coisa maravilhosa aconteceu: Willie tomara-se tã o aberto pela amizade do
homem que as gotas de líquido laranja nã o repousaram sobre o peito — na verdade, entraram
em seu coraçã o. O que normalmente levaria anos para o Espírito do homem que cura operar
num coraçã o comum aconteceu num instante no coraçã o aberto, inocente e transparente de
Willie. Toda angú stia a respeito de sua perna, das grandes manchas, tudo desapareceu. E Willie
começou a orar alto:
— Oh, El Shaddai, meu amigo, nã o me deixe. Você pode pedir qualquer coisa de mim.
Tudo o que desejo é você. Apenas ande a meu lado, segurando a minha mã o, em razã o de nossa
amizade e da alegria de estarmos juntos. Mesmo que você me faça passar por uma provaçã o a
respeito da cura de minha perna e das grandes manchas, nã o me importarei. Ficarei contente em
ser uma truta malhada, se apenas você estiver comigo. Lembro-me do que você disse ser o mais
importante. Eu o amo, meu amigo, Faça aquilo que você quiser. Somente nã o me abandone. E
nunca permita que eu o abandone.
Veja, depois que o Espírito do homem que cura entrou no coraçã o de Willie e percorreu o
seu ser, os olhos foram abertos para perceber quanto a vida seria vazia sem seu amigo. Esse
pensamento de tal modo abalou sua mente e intimidou seu coraçã o que Willie nunca mais foi o
mesmo. Mas também lhe abriu os olhos para ver que, no fundo de seu coraçã o, ele tinha de fato
somente um desejo ardente, nã o pelas coisas que o novo amigo havia prometido, mas pelo
pró prio homem que cura.

AMAR A DEUS DE TODO O CORAÇÃO


Nã o é difícil perceber para onde a pará bola nos leva. No evangelho de Mateus (22:34-40),
quando pediram a Jesus para indicar o maior mandamento, ele começou com Shema Israel, as
palavras de Deuteronô mio 6:5, e acrescentou Levítico 19:18, o preceito do amor ao pró ximo.
Embora Jesus distinguisse os dois mandamentos, o Senhor o fez obviamente apenas com a
finalidade de mostrar como eles se fundem em um e sã o insepará veis.
Se essas palavras forem interpretadas como a declaraçã o da atitude pessoal de Jesus em
relaçã o a seu Pai e à s pessoas que ele veio salvar, entã o Jesus encarna o grande mandamento.
"Tudo o que eu desejo é você, senhor" ecoa o amor ilimitado de Jesus e a obstinada obediência a
Deus. Sua declaraçã o: "É preciso que o mundo saiba que eu amo o Pai e que faço o que meu Pai
me ordenou" (Jo 14:31) oferece clara compreensã o sobre os pensamentos que habitaram a
mente de Cristo Jesus: Deus é, e isso é suficiente.
Habitar nesse lugar de descanso supremo nã o é abstraçã o sonhadora, nem desculpa para
afastar nosso "eu" das necessidades urgentes deste mundo. O apó stolo Paulo é completamente
realista. Ele nã o está aconselhando seus ouvintes a assumir uma fé simplista e etérea quando
escreve: "Seja a atitude de vocês a mesma de Cristo Jesus" (Fp 2:5). Ao contrá rio, esse é um lugar
central. Numa interpretaçã o simples, nó s, cristã os, começamos onde estamos, descobrimos o
que temos e, entã o, percebemos que já chegamos. Nã o é preciso buscar a Deus, implorar a Deus
que se revele a nó s, Paulo escreve: "Vocês nã o sabem que sã o santuá rio de Deus e que o Espírito
de Deus habita em vocês?" (ICo 3:16).
Viver aqui é perceber que temos o que buscamos. Nã o há necessidade de correr atrá s de
segurança, prazer e poder, como fazem os incrédulos. O reino de Deus está dentro de nó s. Tudo o
que precisamos é desacelerar o tempo humano e tirar um tempo para ouvir. Deus está lá todo o
tempo.

~ 39 ~
E assim clamamos com Willie: "Tudo o que eu desejo é você, Senhor"; e com Paulo:
"Quero conhecer Cristo" (Fp 3:10). Oramos com o salmista: "Uma coisa pedi ao SENHOR; é o que
procuro: que eu possa viver na casa do SENHOR todos os dias da minha vida, para contemplar a
bondade do SENHOR e buscar sua orientaçã o no seu templo (Sl 27:4).
Os cristã os que se transferem para esse lugar encontrarã o paz e prazer na suficiência
divina. Nesse momento, deixamos de nos preocupar sobre o que nã o temos porque estamos
usando o tempo para apreciar e desfrutar o que temos. A maior porcentagem do sofrimento
desnecessá rio, auto-induzido em nossa vida é eliminada porque as compulsõ es que uma vez nos
impulsionavam a conquistar segurança, experimentar prazer e desenvolver poder já nã o se
afirmam mais com suas demandas absurdas de satisfaçã o imediata. Preocupaçã o e ansiedade já
nã o nos afligem, porque percebemos que elas nã o vêm do evangelho e nã o têm nenhum
significado remidor. Apenas prolongam os tempos de trevas em nossa vida, sendo que nó s
podemos eliminá -las através da submissã o de nossos pensamentos ao senhorio de Jesus Cristo.
Naturalmente, em nossa condiçã o humana, nem sempre somos capazes de colocar a
mente e o coraçã o no caminho de Cristo. Mas sabemos que as agitaçõ es na superfície de nossa
alma nã o se tomarã o ondas ao sabor da maré se descermos ao santuá rio interior de nosso "eu"
agraciado e ficarmos em oraçã o, ouvindo nosso Deus, que nos lembra: "Acalma o teu coraçã o e
sossega. Estou com você. Nã o tenha medo. Eu gravei você nas palmas das minhas mã os. Tudo
está bem".
O efeito dessa escuta nã o é somente interno e pessoal. Quando as condiçõ es externas da
vida já nã o trazem segurança ou insegurança, quando os problemas triviais e inevitá veis do dia-
a-dia perdem seu poder de quebrar nossa concentraçã o e fragmentar nossa existência,
concebemos o mundo como um lugar mais amigá vel.
Experimentamos todo o mundo e tudo ao nosso redor de modo diferente — nã o mais em
termos de como eles poderiam satisfazer nossas necessidades viciosas, mas como manifestaçõ es
singulares de verdade, bondade e beleza no mundo. Vivemos em sintonia com a mente de Cristo
Jesus e passamos ao fluxo e à harmonia com o projeto criativo de Deus. George Maloney observa:
"Existe uma grande experiência de unidade ao encontrar Deus em todas as coisas. A dicotomia
entre açã o e contemplaçã o deixa de existir".
A percepçã o de que Deus é o suficiente revela a marca da vida transparente. Vã o-se as
tensõ es, confusõ es e lutas que sinalizavam o engodo provocado por nossos desejos mais bá sicos.
O agitado esquadrinhar do horizonte em busca de novas experiências cessa, o agitar constante
da mente para fugas e distraçõ es desaparecem.
Até mesmo os lapsos ocasionais de pensamentos egoístas sã o vistos como oportunidades
de crescimento numa relaçã o mais profunda com Deus. Seja agindo assim ou sofrendo a açã o,
respondemos com a mente de Jesus Cristo. Nisso reside a transparência.
Ao amar Deus de todo o coraçã o, toda a alma, toda a mente e toda a força, Jesus foi
transparente e, desse modo, revelou Deus. Em Jesus nã o havia nenhum "eu" a ser visto; apenas o
amor supremo e incondicional de Deus. Paul Tillich fez disso o critério da declaraçã o cristã de
que Jesus é a revelaçã o final de Deus: "Ele se tornou completamente transparente ao mistério
que ele revela".
Nossa habilidade em vestir a mente de Cristo Jesus ocorre em virtude de nossa uniã o
sagrada com ele. Esse é o dom do Espírito Santo: "Deus derramou seu amor em nossos coraçõ es,
por meio do Espírito Santo que ele nos concedeu" (Rm 5:5). O poder de amar a Deus de todo o
coraçã o é direito inato daquele renascido no Espírito de Jesus Cristo. É o que nos permite passar
pelo mundo como portadores cristalinos da imagem de Deus.

~ 40 ~
CAPÍTULO CINCO
UM CORAÇÃO MISERICORDIOSO

Uma das mais vívidas recordaçõ es de meu tempo entre os Irmã ozinhos de Jesus é a do
ano-novo de 1969. Encerramos o trabalho cedo, mas retardamos a ida para a cama até a meia-
noite para uma hora de adoraçã o noturna. O tempo passou depressa em câ nticos de açã o de
graças pelo dom imerecido de Jesus Cristo e do Espírito Santo como forma de compensaçã o pela
intemperança e pelo deboche que tradicionalmente caracterizam a véspera de ano-novo, e em
sincera intercessã o por alguns amigos que viviam sem esperança.
Em seguida, nos reunimos na cozinha. A mesa estava posta com pã o de frutas, conservas
de morango, pêssegos em calda e garrafas de vinho branco. Os Irmã ozinhos de Jesus vivem o que
pregam, e era uma hora alegre de festejos, humor brincalhã o e camaradagem.
Fui para a cama por volta das duas da manhã e adormeci pensando em algo que Paul
Gallico disse: que havia aceitado o pacto franciscano prontamente e seguido a lei primitiva em
todo o rigor, com exceçã o da clá usula impossível. Depois de tudo, Francisco de Assis nã o lhe
negaria a ú nica satisfaçã o que realmente queria: um altivo desdém e um vigoroso desprezo pelo
cristã o medíocre.
A manhã de ano-novo trouxe a primeira neve pesada. A paisagem de Saint-Rémy
mostrava-se gélida e estéril. Do modo como Ernest Hemingway apresentou o tema da morte em
Farewell to Arms,8 na frase inicial — "As folhas caíram cedo naquele ano" —, assim a natureza
expirava, e 1969 parecia um bom ano para a morte de todos os valores, atitudes e modos de
comportamento que nã o eram de Cristo Jesus.
Havia sete à mesa. A conversa centrava-se principalmente em nosso trabalho na cidade
de Montbard. Alguns trabalhavam em vinhedos locais, outros com carpintaria e alvenaria,
enquanto os menos dotados tinham empregos mais simples. Eu lavava pratos no Hotel de la
Gare e recolhia esterco numa fazenda vizinha.
A conversa da mesa seguia animada quando o irmã o alemã o observou que nossos
salá rios eram inferiores, e o espanhol explicou que os dias eram difíceis. Notei que nossos
patrõ es nunca eram vistos na igreja da paró quia, e um irmã o francês sugeriu que talvez fossem
hipó critas. As críticas se fizeram mais pesadas e o tom, mais cáustico. Concluímos que nossos
auto-suficientes patrõ es dormiam todo o dia de domingo, gastavam seu dinheiro sem reflexã o e
nunca elevavam a mente e o coraçã o em oraçã o para agradecer a Deus os dons da vida, da fé, da
família, da colheita e assim por diante.
O irmã o Dominique Voillaume estava sentado no fim da mesa, e nã o havia aberto sua
boca. Percebi lá grimas rolando de suas faces.
O que houve, Dominique? — Perguntamos. Sua voz era pouco audível.
Ils ne comprennent pas — foi tudo o que ele disse.
Eles não entendem. Quantas vezes, nos ú ltimos anos, aquela frase transformou meu
ressentimento em compaixã o. Como passei entã o a apreciar a visã o de Paul Gallico e a me
encantar com sua honestidade. Venho com freqü ência relendo a narrativa da crucificaçã o de
Cristo pelos olhos de Dominique Voillaume, adquirindo uma nova compreensã o da mente de
Cristo Jesus. No á pice de sua agonia de morte, surrado e tiranizado, açoitado e espancado,
cercado por uma multidã o de brutos, Jesus diz "Pai, perdoa-lhes. Ils ne comprennent pas".
O Mestre, cuja atitude para com o pecado fora tã o inexorá vel, o moralista rígido que
cercou o casamento com o alto muro da indissolubilidade, o juiz austero que condenou a simples
intençã o de se fazer o mal, o homem sagrado, no qual nem um ú nico sopro de suspeita jamais
tocou, esse Jesus foi nã o apenas chamado "amigo dos publícanos e pecadores", mas, de fato, o foi.

8
Traduzido em portuguê s como Adeus à s armas. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil: 2002. (N. da T.)

~ 41 ~
Judas Iscariotes adentra o jardim, ao lado da multidã o, e saú da o Filho do Homem com
um beijo. Jesus apela ao seu coraçã o e à sua consciência: "Judas, com um beijo você está traindo
o Filho do homem?" (Lc 22:48). Ele nã o censurará Judas diante dos outros. Nã o haverá nenhuma
humilhaçã o pú blica pela traiçã o. "Amigo, o que o traz?" é tudo o que ele diz.
A compaixã o pelos outros e a alegria por seu arrependimento reinam na mente de Cristo.
Jesus terminou a pará bola do bom samaritano com uma pergunta: "'Qual destes três você acha
que foi o pró ximo do homem que caiu nas mã os dos assaltantes?' O perito na lei respondeu:
Aquele que teve misericó rdia dele'. Jesus lhe disse: 'Vá e faça o mesmo'" (Lc 10:36-37).
Nas pará bolas da misericó rdia divina (Lc 15), Jesus fala do pastor levando alegremente a
ovelha perdida nos ombros e chamando todos os seus amigos para se alegrarem. A mulher
clama: "Alegrem-se comigo, pois encontrei minha moeda perdida". No retorno do filho pró digo,
o pai explica ao indignado filho mais velho: "Mas nó s tínhamos que celebrar e alegrar-nos!". O
tema subjacente de todas as três pará bolas apresenta uma compreensã o notá vel na mente de
Jesus: "Eu lhes digo que, da mesma forma, há alegria na presença dos anjos de Deus por um
pecador que se arrepende" (Lc 15:10).
A bondade que Jesus dedicava aos pecadores fluía de sua capacidade de ler o coraçã o
deles e descobrir ali a sinceridade e a bondade essenciais. Por trá s das pessoas de atitudes mais
irritadas ou de mecanismos de defesa mais enigmá ticos, de seus ares de dignidade, grosseria ou
zombarias, de seus silêncios ou de suas desgraças, Jesus via uma criancinha que nã o tinha sido
amada o bastante e que deixara de crescer porque os que estavam a seu redor deixaram de
acreditar nela. Adrian van Kaam escreve:

Nesse sentido, Cristo, e depois os apó stolos, fala freqü entemente sobre os
crentes como de crianças, nã o importando quã o respeitá veis, ricos, inteligentes e
pró speros eles possam ser. Pois, por trá s da força de cada um, esconde-se uma
pessoa pecadora, carente de redençã o, uma pessoa preciosa aos olhos de Deus
por causa do tesouro sem igual em que se torne no tempo e na eternidade.

Vejo com freqü ência Jesus Cristo se alegrando pelos pecadores arrependidos que foram
resgatados através da solidariedade dos Alcoó licos Anô nimos. Os aniversá rios de primeiro,
terceiro, oitavo ou vigésimo ano de sobriedade de um alcoó latra repercutem a alegria festiva do
retorno do pró digo.
Phil, homem velho e alquebrado com três dentes na boca, vivera vinte anos nas ruas
como bêbado. Agora ele se dirige ao pú lpito de uma sala lotada e silenciosa. É o primeiro
aniversá rio dele. Ninguém acreditava que conseguiria. Ele começa a falar que estava perdido e
agora fora encontrado. De repente, emudece e vira-se de costas para a audiência. Os presentes
aplaudem-no de pé. Homens e mulheres acorrem ao pú lpito e beijam efusivamente Phil.
No encantador livrinho Off the Sauce [Sem tempero], Lewis Meyer escreve:

Se alguém quisesse usar somente uma palavra para descrever o sentimento de


uma reuniã o do AA, essa palavra seria amor. Amor é a ú nica palavra que conheço
que encerra amizade, compreensã o, compaixã o, emparia, bondade, honestidade,
dignidade e humildade. O tipo de amor ao qual me refiro é aquele que Jesus tinha
em mente quando disse: "Amem-se uns aos outros". Podem atirar pedras, podem
virar a cara, mas há uma ligaçã o entre os AAs, uma ligaçã o que raramente se vê
em outro lugar. É o ú nico lugar que conheço onde o status nã o significa nada.
Ninguém zomba de ninguém. Todos estã o aqui porque fizeram de sua vida uma
completa desordem e tentam colar os cacos. As coisas bá sicas sã o bá sicas aqui.
(...) Assisti a milhares de cultos de igreja, reuniõ es maçô nicas, encontros de
irmandades — contudo, nunca encontrei o tipo de amor que percebo no AA. Em
pouco tempo, o importante e poderoso se rebaixa e o humilde se eleva. O
nivelamento atingido é aquilo que as pessoas querem dizer quando falam de
fraternidade.
~ 42 ~
A compaixã o de Cristo mostra-se com extraordiná ria clareza no jantar oferecido na casa
de Simã o, o leproso (Mc 14:3-9). Alguns dos convidados ficam furiosos quando uma mulher
quebra um frasco de alabastro de precioso perfume e começa a vertê-lo sobre a cabeça de Jesus.
"Deixem-na em paz", Jesus ordena. "Por que a estã o perturbando?". O Mestre ficou tã o
profundamente comovido com a bondade da mulher que decidiu que o acontecimento deveria
ser contado e recontado por todo o mundo. "Anotem isto!", Jesus ordenou aos discípulos: "Quero
que OS homens saibam até o fim dos tempos quã o profundamente o amor desta mulher me
afetou".
Essa declaraçã o é a explosã o por longo tempo contida de um amor que afinal pode se
expressar, o segredo de um coraçã o que se derrama. Jesus nã o apenas defende a açã o da mulher,
mas afirma seu valor e reconhece que ele ficou profundamente comovido por sua bondade.
Quando vemos o Mestre perdoar a prostituta e absolver todos os pecados em virtude de seu
grande amor (Lc 7:47), percebemos a alegria de Deus nos encontrando novamente. Descobrimos
que essa alegria é capaz de soterrar todo o mal que cometemos. Podemos finalmente parar de
nos preocupar com o passado, com a extensã o de nossa culpa, e com os limites do amor e da
misericó rdia de Deus.

AMAR O PRÓXIMO COMO A NÓS MESMOS


Dois fenô menos curiosos mancham a vida cristã no mundo de hoje. O primeiro é nossa
tendência a criticar mais do que elogiar. Ouça as conversas nos cafés, nas salas de estar e nas
igrejas. Preste atençã o à s autoridades e aos jornalistas. Nã o somente passamos a invejar o valor
dos outros, mas a ficar completamente tristes quando uma pessoa é elogiada.
Muitos cristã os hipercríticos apressam-se em negar a presença de qualquer valor em
qualquer lugar e superenfatizar os aspectos obscuros e feios de uma pessoa, situaçã o ou
instituiçã o, a despeito de suas facetas nobres e valiosas. Eles se regozijam em expor as falhas e
imperfeiçõ es dos outros e vangloriam-se da ausência de bondade.
Certa vez, o senador William Fulbright, do Arkansas, fez um comentá rio sobre essa
insidiosa tendência na mídia: "Aquele farisaísmo puritano que jamais ultrapassa a superfície da
vida norteamericana tem rompido as frá geis barreiras da civilidade e do comedimento, e a
imprensa tem estado na vanguarda da nova agressividade".
O alvo pode ser o governo nacional, a força pú blica local ou o garçom da lanchonete.
Pouco importa. O foco está nos limites da realidade, naquilo que uma pessoa ou instituiçã o nã o é.
As faltas e os defeitos de cará ter sã o motivo de celebraçã o porque nos fazem sentir superiores e
até mesmo nobres. No dia de minha ordenaçã o, meu pai me disse: "Lembre-se de que é
impossível superestimar o valor de alguém". Suas palavras contrariam nossa tendência de
subestimar o valor de todos.
O segundo fenô meno nã o deixa de ter conexã o com o primeiro. É o que se poderia
chamar a preponderâ ncia da auto-estima negativa. A auto-estima consiste em como nos vemos
refletidos nos olhos dos outros. Isso, por sua vez, condiciona a percepçã o do mundo e a interaçã o
com a comunidade. Na condiçã o de cristã os, a auto-estima negativa se expressa basicamente
como uma imagem de pessoas nã o amadas. Negamos nosso pró prio valor, somos assombrados
por sentimentos de insuficiência e inferioridade, e nos fechamos para o valor dos outros porque
ameaça nossa existência.
A exaltaçã o do outro é vivenciada como um ataque pessoal. Quando um colega é
apreciado, ficamos transtornados e irritados, depreciamos seus motivos como presunçã o e
censuramos a perniciosidade dos cultos de personalidade. Dizemos a nó s mesmos: "Sou uma
pessoa estú pida, injustiçada. Tenho potencial, mas ninguém se importa". Nas reuniõ es de grupo,
nos sentimos como intrusos. Suspiramos: "Ninguém me ama".
A auto-estima negativa nã o seria tã o prejudicial, nã o fosse o fato de que interagimos com
os outros nos termos de nossa auto-ima-gem. Selecionamos da realidade apenas os aspectos que

~ 43 ~
confirmam a pró pria visã o obscura que temos a nosso respeito. Escolhemos a dimensã o de uma
situaçã o que aponta para a rejeiçã o.
Numa simples conversa com alguém de nossa intimidade, a falta de entusiasmo confirma
o que suspeitá vamos: "Sou um chato". Se encontramos na rua uma pessoa que valorizamos e ela
nos ignora, à noite, ao deitar, esqueceremos as experiências agradá veis, até mesmo belas do dia
e, em vez disso, dormiremos enfatizando o ú nico incidente que aumentou nosso auto-retrato
negativo. Por conseguinte, todo e qualquer encontro se torna uma aprovaçã o ou desaprovaçã o
de todo o nosso ser. Cada incidente se torna uma condenaçã o geral do "eu" e uma reafirmaçã o de
inutilidade.
Para amar o pró ximo como a nó s mesmos, precisamos reconhecer nosso valor e nossa
dignidade intrínsecos e nos amar de forma saudá vel e consciente, conforme Jesus nos ordenou
ao dizer: "Ame o seu pró ximo como a si mesmo". A tendência de sempre e sempre nos
repreendermos com rigor pelos fracassos reais ou imaginá rios, depreciar e subestimar nosso
valor e enfatizar exclusivamente nossa desonestidade, nosso egocentrismo e nossa falta de
disciplina pessoal é conseqü ência de nossa auto-estima negativa. Reforçados pela avaliaçã o
crítica de nossos semelhantes, por reprovaçõ es e humilhaçõ es de nossa comunidade, acabamos
radicalmente incapazes de aceitar, perdoar ou amar.
No discurso de abertura em uma conferência carismá tica regional em Atlantic City, Nova
Jersey, o padre Francis McNutt tocou em um nervo exposto quando disse: "Se Jesus Cristo o
perdoou de todos os pecados, lavando-o no seu sangue, que direito tem você de nã o perdoar a si
mesmo?".
A capacidade de amar a si mesmo é a raiz e o pilar bá sico de nossa capacidade de amar
aos outros e a Deus. Só posso tolerar nos outros aquilo que posso aceitar em mim. Van Kaam
escreve:

A bondade para com o meu precioso e frá gil "eu", quando inspirado
exclusivamente por Deus, constitui o nú cleo de bondade para com os outros e
com as mú ltiplas formas criadas do Divino ao meu redor. É também uma condiçã o
necessá ria para minha apresentaçã o a Deus.

Ironicamente, nossa auto-repugnâ ncia nos leva de modo bem freqü ente a prejudicar a
auto-estima de outros. Andrew Greeley escreve:

A missã o de Deus no mundo e sua missã o na relaçã o com o crente enquanto


indivíduo é essencialmente uma missã o de superaçã o da auto-aversã o. Pois a
auto-aversã o é uma barreira ao amor. Nã o odiamos outras pessoas porque nos
amamos demais, mas porque nã o conseguimos nos amar o bastante. Nó s as
tememos e desconfiamos delas porque nos sentimos inadequados em nossa
relaçã o com elas. Nó s nos escondemos por trá s de nossa raiva e ó dio porque em
algum recesso profundo de nossa personalidade nã o acreditamos que somos bons
o suficiente para elas.

Certa noite, em Nova York, do lado de fora do Schubert Theater, durante o intervalo de
uma peça, eu, alguns cavalheiros de smoking e umas senhoras em seus vestidos longos
está vamos numa intensa discussã o a respeito da influência de Schopenhauer sobre o Teatro do
Absurdo de Samuel Beckett. Eu estava prestes a fazer uma intempestiva observaçã o que evitaria
mais discussõ es sobre o assunto por, pelo menos, uns cem anos, quando uma senhora idosa
vendendo o jornal Variety se aproximou. Ela calçava tênis e usava um boné de taxista. Joguei
uma moeda em sua mã o e peguei o jornal.
— Posso falar com o senhor um minuto? — ela implorou. Naquele tempo, eu sempre
usava o colarinho clerical. Sabia que nã o poderia me distinguir por minhas virtudes, mas poderia

~ 44 ~
fazê-lo por minha roupa. Usava o colarinho romano quando tomava banho e o colocava sob o
pijama ao dormir.
— Sim — respondi de forma ríspida. — Espere um minuto. Ao me voltar para o
grupo de amigos, que estavam ansiosos, esperando meu contragolpe final, ouvi a senhora dizer:
— Jesus nã o teria falado assim com Maria Madalena.
Ela desapareceu rua abaixo. A magnitude do que havia ocorrido começou a me corroer
durante a continuaçã o do teatro. Estivera tã o preocupado com o meu status que tratei a mulher
como uma má quina de vender jornal: depositei uma moeda em sua mã o e saquei o jornal. Nã o
demonstrei nenhum consideraçã o pelo serviço que ela me prestava, nenhum interesse por sua
vida e tive uma espantosa falta de apreço por sua dignidade pessoal.
A preocupaçã o com minha soberba, somada à falha em tratá -la com um amor afetuoso,
imbuído de respeito pela santidade de sua
personalidade ú nica, exacerbou seu sentimento de inutilidade e, além disso, prejudicou
sua auto-estima. Seu autoconceito se formou pelo modo como ela viu a si mesma refletida nos
olhos de outras pessoas. Se viesse à igreja no domingo e eu estivesse no pú lpito, exortando-a a
amar a Deus acima de todas as coisas... quanta hipocrisia do homem que ajudou a minar sua
capacidade de amar alguém. Uma humanidade retraída tem uma capacidade diminuída de
receber os raios do amor de Deus.

A COMPAIXÃO DE JESUS
Pensar como Cristo é ter a atitude relacional que Jesus teve com os seus discípulos. Sua
atitude foi lindamente expressa para mim numa excursã o no ú ltimo outono pela Sleepy Hollow
Village, à s margens do rio Hudson. A ú nica orientaçã o do nosso guia era: "Por favor, sejam gentis
com os cordeiros. Eles nã o se aproximarã o se vocês os amedrontarem".
Quando os olhos de Jesus observavam as ruas e ladeiras, ele sentia compaixã o porque as
pessoas estavam desorientadas. Ele lamentou por Jerusalém. Suas palavras nã o vinham
carregadas de repreensã o e humilhaçã o, castigo e moralismo, acusaçã o e condenaçã o,
ridicularizaçã o e depreciaçã o, ameaça e chantagem, avaliaçã o e rotulagem. Sua mente era
constantemente habitada pelo perdã o de Deus. Ele tomou a iniciativa de procurar os pecadores e
justificou sua incrível facilidade e familiaridade com eles por meio de pará bolas de misericó rdia
divina.
A mulher flagrada em adultério, nem mesmo perguntou se estava arrependida. Nem
exigiu uma firme decisã o de se corrigir. Nã o lhe fez uma preleçã o sobre as severas
conseqü ências de uma futura infidelidade. Ele viu sua dignidade como ser humano prestes a ser
destruída pelos presunçosos fariseus. Depois de lembrá -los de sua participaçã o na culpa da
mulher, ele olhou para a mulher, a amou, perdoou e advertiu para que nã o pecasse mais.
O psicó logo francês Mare Oraison afirma: "Ser amado é ser olhado de tal maneira que a
verdade do reconhecimento é revelada". Um cristã o que nã o apenas vê, mas olha o outro,
comunica à quela pessoa que ela está sendo reconhecida como ser humano em meio a um mundo
de objetos impessoais — como alguém, nã o algo. Se essa simples verdade psicoló gica, difícil e
exigente como ela é, fosse praticada nas relaçõ es humanas, talvez pudéssemos eliminar 98% dos
obstá culos para se viver igual a Jesus. Pois este é o pró prio fundamento da justiça: a capacidade
de reconhecer o outro como ser humano no qual brilha o sinal do Cordeiro em sua testa.
A simples compra de um selo postal ou de alguns mantimentos no supermercado pode
ocasionar uma troca de olhares entre balconista e cliente capaz de transformar um gesto
rotineiro num verdadeiro encontro humano mutuamente enobrecedor. As palavras sã o
desnecessá rias nessa interaçã o, pois o cristã o conhece o segredo fundamental de Jesus em
relaçã o aos discípulos: seu respeito soberano pela dignidade deles. Eles sã o pessoas, nã o
brinquedos, nem cargos ou possibilidades de compensaçã o pessoal.
Na narrativa de Lucas sobre o sofrimento de Jesus, o autor destaca que, depois da
terceira vez que Pedro negou conhecê-lo, "o Senhor voltou-se e olhou diretamente para Pedro"

~ 45 ~
(Lc 22:61). Naquele olhar foi revelada a verdade do reconhecimento. Pedro sabia que ninguém
jamais o amara como Jesus. O homem a quem ele confessara como o Cristo, o Filho do Deus vivo,
olhou em seus olhos, viu neles o terror transparente, percebeu nele o terrível drama do vício da
segurança e o amou.
O amor de Jesus por Pedro repousava na completa e incondicional aceitaçã o do discípulo.
Nó s, que tã o automaticamente impomos condiçõ es para nosso amor ("se realmente me amasse,
você faria..."), nã o vemos que isso é troca, nã o amor incondicional. (Pois colocamos um de nossos
desejos para completar a frase.)
Na atitude de Jesus para com Pedro, conseguimos entender que nenhum homem jamais
foi tã o libertador de pressõ es, convençõ es ou vícios. Jesus era de tal modo liberto do fogo de
desejos, demandas, expectativas, necessidades e da programaçã o emocional inflexível que podia
aceitar o inaceitá vel. Nã o precisava recorrer a gritos, ataques de ó dio ou ameaças indevidas. Ele
transmitiu seus sentimentos mais profundos a Pedro através de um olhar. E aquele olhar
transformou e recriou Pedro: "Saindo dali, chorou amargamente" (Lc 22:62).
Compaixã o significa que você sente empatia pela afliçã o de outra pessoa e envia o sinal:
"Sim, eu sei. Estive lá também". Você vivência a situaçã o a partir da posiçã o daquela pessoa. Ser
compassivo é compreender os conflitos que outras pessoas criaram para si pró prias sem ser
arrastado por seu drama pungente. E você sabe que a compaixã o será mais efetiva se estiver
centrada na aceitaçã o amorosa.
Ao ver Pedro exercendo seu vício e sofrendo por isso, Jesus permaneceu profundamente
sintonizado com a humanidade e dignidade do homem. Seu olhar transparente, imbuído de
perdã o divino, nã o somente fez Pedro chorar, mas lhe permitiu continuar em frente sua jornada,
em direçã o ao alto, numa vida mais rica com Cristo. Alguns dias depois, o Jesus ressuscitado diria
ao mesmo homem:

"Digo-lhe a verdade: Quando você era mais jovem, vestia-se e ia para onde
queria; mas quando for velho, estenderá as mã os e outra pessoa o vestirá e o
levará para onde você nã o deseja ir". Jesus disse isso para indicar o tipo de morte
com a qual Pedro iria glorificar a Deus. E entã o lhe disse: "Siga-me!".
Joã o 21:18-19

Dessa vez nã o houve negaçã o ou reclamaçã o. Pedro aceitou o que antes havia sido
inaceitá vel. Anos mais tarde, o mesmo homem escreveria: "Amem-se sinceramente uns aos
outros, porque o amor perdoa muitíssimos pecados" (1 Pe 4:8). À luz do pró prio crescimento
doloroso, Pedro fala aos cristã os gentios: "Como crianças recém-nascidas, desejem de coraçã o o
leite espiritual puro, para que por meio dele cresçam para a salvaçã o" (IPe 2:2).
A traiçã o de Pedro ao Mestre, como tantas de nossas pró prias recaídas morais e rejeiçõ es
ao caminho do Senhor, nã o foi um fracasso terminal, mas uma oportunidade para um doloroso
crescimento individual em direçã o à pessoa que Deus desejava que ele fosse. Seria irrealista
supor que, anos mais tarde, Pedro louvaria a Deus por aquela criada que o tornou num covarde
choroso no pá tio de Caifá s?
Jesus nã o tinha interesse em reforçar autoconceitos negativos. "Nã o quebrará o caniço
rachado, nã o apagará o pavio fumegante" (Mt 12:20). Ele era impiedoso somente com aqueles
que mostravam desprezo pela dignidade humana, e nã o tinha compaixã o dos que punham
intolerá veis fardos nas costas de outros, eles pró prios se recusando a carregá -los. Jesus
desmascarou as ilusõ es e boas intençõ es superficiais dos fariseus pelo que eles eram, chamando-
os hipó critas: "Raça de víboras" (Mt 12:34). Ele nã o compactuava com os que nã o mostravam
misericó rdia ou compaixã o.
Viver e pensar como Jesus é descobrir a sinceridade, a bondade e a verdade muitas vezes
ocultas por trá s do grosso e á spero exterior de nossos semelhantes. É ver nos outros o bem que
eles pró prios nã o vêem e afirmá-lo em face de poderosas evidências em contrá rio. Nã o se trata
de um otimismo cego que ignora a realidade do mal, mas de uma perspectiva que reconhece o

~ 46 ~
bem de maneira tã o repetida e insistente que mesmo o obstinado acaba reagindo de forma
positiva. No homem Jesus, a mente de Deus era transparente. Nã o havia nada do "eu" para ser
visto, apenas o amor incondicional de Deus. Ao ver Pedro no pá tio, Jesus revelou o fundamento
do ser do homem.
O eixo da revoluçã o moral cristã é o amor (Jesus o classificou como o sinal pelo qual o
discípulo seria reconhecido). O perigo espreita em nossas tentativas sutis de minimizar,
racionalizar e justificar nossa moderaçã o a esse respeito. Oferecer a outra face, caminhar a milha
extra, nã o devolver os insultos, reconciliar-se um com o outro e perdoar setenta vezes sete vezes
nã o sã o caprichos arbitrá rios do Salvador. Ele nã o prefaciou o Sermã o do Monte com "seria bom
se...". O novo mandamento estrutura a nova aliança no seu sangue. Tã o central é o preceito do
amor que Paulo o chamou cumprimento da Lei.
Segundo John McKenzie, "a razã o demanda moderaçã o no amor, como em todas as
coisas; a fé, aqui, destró i a moderaçã o. A fé nã o tolera um amor moderado por um companheiro
humano mais do que tolera um amor moderado entre Deus e o homem". O mandamento do
amor é o completo có digo moral do cristã o. Thomas Merton declarou que um "bom" cristã o que
abriga ó dio no coraçã o por qualquer pessoa ou grupo étnico é objetivamente um apó stata da fé.

APRENDENDO A PENSAR COMO CRISTO: UMA HISTÓRIA


Nas fases iniciais dos Alcoó licos Anô nimos, houve uma considerá vel discussã o sobre as
qualificaçõ es necessá rias para ser membro. Quais seriam as regras para admissã o? Certos
indivíduos poderiam ser excluídos, como num clube social? Quem entraria e quem seria deixado
de fora? Quem determinaria se um alcoó latra era digno ou indigno? Alguns pediam para limitar
a condiçã o de membro à s pessoas de "responsabilidade moral"; outros insistiam que a ú nica
exigência a ser cumprida seria a confissã o pessoal: "Eu acredito que sou um alcoó latra. Eu quero
deixar de beber".
O debate foi resolvido de modo bastante incomum. A histó ria está relatada no livro Os
doze passos e as doze tradições, cujos autores naturalmente permanecem anô nimos. Nele
encontramos uma notá vel compreensã o da compaixã o conforme a praticada por Cristo, que
resume de forma admirá vel o que tento dizer neste capítulo. No calendá rio dos AA, era o ano
dois. A organizaçã o consistia de dois grupos diligentes e obscuros de alcoó licos esforçando-se
por crescer.
Uma pessoa recém-chegada a uma reuniã o de um dos grupos pediu para entrar. O
homem falou francamente com o membro mais velho do grupo e provou de imediato que seu
caso era desesperador e, acima de tudo, ele queria melhorar.
— Mas — ele perguntou — vocês vã o me deixar participar de seu grupo, mesmo
sendo eu vítima de outra droga, até mesmo mais estigmatizada que o á lcool? Vocês nã o vã o me
querer em seu grupo. Ou vã o?
O membro mais velho chamou dois outros participantes e confidencialmente jogou a
bomba em suas mã os. Ele disse:
— Bem, e entã o? Se mandarmos este homem embora, ele logo morrerá . Se o
deixamos ficar, só Deus sabe que tipo de problema causará . Qual deve ser a resposta, "sim" ou
"nã o"?
A princípio, os conselheiros só conseguiam ver objeçõ es.
— Nó s só lidamos com alcoó licos. Nã o deveríamos sacrificar este aqui pelos muitos
outros?
Assim ia a discussã o, enquanto o destino do recém-chegado pendia na balança. Entã o, um
dos três falou em tom muito diferente:
— Do que realmente temos medo — ele disse — é de nossa reputaçã o. Estamos
muito mais preocupados com o que as pessoas poderiam dizer do que com o problema que esse
alcoó lico desconhecido nos traz. Conforme falá vamos, cinco palavras curtas vieram à minha
mente. Alguma coisa continua repetindo dentro de mim: o que o Mestre faria?

~ 47 ~
Nenhuma outra palavra foi dita.

CAPÍTULO SEIS
A OBRA DO REINO

Jesus Cristo nã o é apenas o centro do evangelho, mas é todo o evangelho. Os quatro


evangelistas nunca se concentram em outra personalidade. Personagens marginais permanecem
na periferia, e nã o se permite a mais ninguém tomar o centro do palco. Vá rios indivíduos sã o
apresentados somente para interrogar, responder ou reagir a Jesus. Nicodemos, a mulher
samaritana, Pedro, Tomé, Caifá s, Pilatos e muitos outros sã o secundá rios em relaçã o à pessoa de
Jesus.
E é assim que deve ser, pois o Novo Testamento é uma visã o da salvaçã o. Quando baixar
a ú ltima cortina, Jesus eclipsará todas as pessoas famosas, formosas e poderosas que já viveram.
Cada homem e cada mulher serã o considerados conforme sua resposta a Jesus. Segundo
escreveu T. S. Eliot: "O minha alma, [...] prepara-te para quem sabe como questionar". 9
No homem Jesus há uma absoluta compatibilidade de propó sitos em relaçã o a Deus. No
entanto, aqui está em questã o mais do que conhecimento e ligaçã o afetiva: Jesus vive para
esclarecer o reino de Deus e a vida no reino de Deus.

A minha comida é fazer a vontade daquele que me enviou e concluir a sua


obra.
Joã o 4:34

As palavras que eu lhes digo nã o sã o apenas minhas. Ao contrá rio, o Pai, que
vive em mim, está realizando a sua obra.
Joã o 14:10

Pai, se queres, afasta de mim este cá lice; contudo, nã o seja feita a minha
vontade, mas a tua.
Lucas 22:42

E no templo, Jesus responde de forma lacô nica À sua mãe: "Por que vocês estavam me
procurando? Nã o sabiam que eu devia estar na casa de meu Pai?" (Lc 2:49). Outra passagem é
ainda mais bá sica. Jesus estava ensinando, cercado por um grupo de ouvintes. Alguém o tocou:
"Tua mãe e teus irmã os estã o lá fora e te procuram". E ele, que sabia muito bem quem era a sua
mãe, retrucou com a mesma profundidade que marcou sua vida na terra: "Quem é minha mã e, e
quem sã o meus irmã os?". Jesus fez uma pausa, olhou os que estavam sentados ao seu redor e
continuou: "Aqui estã o minha mãe e meus irmã os! Quem faz a vontade de Deus, este é meu
irmã o, minha irmã e minha mã e" (Mc 3:31-35).
Nã o devemos permitir que essas palavras sejam interpretadas como alegoria. A vontade
de Deus é uma realidade. E como um rio de vida partindo de Deus em direçã o a Jesus — uma
circulaçã o sangü ínea da qual ele recebe vida de maneira mais profunda e poderosa do que a
recebida de sua mãe. E quem estiver pronto para fazer a vontade de Deus se torna parte dessa
circulaçã o sangü ínea.

9
Coros de "A rocha", em Poesia. Trad. Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981, p. 183. (N. da T.)

~ 48 ~
O crente, o homem que faz a vontade divina, está unido à vida de Cristo Jesus de forma
ainda mais verdadeira, mais profunda e mais forte do que Jesus esteve unido à sua mã e.
Percebemos aqui uma falta absoluta de sentimentalismo humano em Jesus. Os dois focos de seu
ministério sã o Deus e ele pró prio. Insistamos mais uma vez: é assim que deve ser.
A mente de Jesus estava fixada no cumprimento da vontade divina por meio da
proclamaçã o do reino de Deus. A intimidade de Jesus com Deus e a consciência da santidade de
Deus o encheram de profunda sede das coisas divinas. Sua vida interior de confiança e rendiçã o
amorosa nã o é simplesmente questã o de oraçã o pessoal, experiência religiosa privada e jú bilo
na presença íntima de Deus. Essa relaçã o limitada com Deus ignoraria o mundo real e sua luta
por redençã o, justiça e paz. Nã o, a vida interior de Jesus Cristo ganha expressã o numa qualidade
vital, especial, de presença no mundo e em situaçõ es mais ativas.
Havia um intenso desejo dentro de Jesus de apresentar seu Pai por meio do serviço ao
pobre, ao cativo, ao cego e a todos os necessitados. Jesus era completamente consumido por essa
missã o. Foi a experiência de Jesus da santidade de Deus que criou o imperativo de pregar o reino
da justiça, da paz e do amor clemente de Deus.
Jesus Cristo planejou sua vida em torno de tal missã o, renunciando aos confortos da
estabilidade e da permanência: "As raposas têm suas tocas e as aves do céu têm seus ninhos, mas
o Filho do homem nã o tem onde repousar a cabeça" (Lc 9:58). Ele nunca se demorou muito num
ú nico lugar. Quando os discípulos o procuravam, ele respondia: "É necessá rio que eu pregue as
boas-novas do Reino de Deus noutras cidades também, porque para isso fui enviado" (Lc 4:43).
Outros teriam ficado para trá s, preocupados com segurança, prazer e poder, mas Jesus seguiu
em frente, sem parar, sempre dirigido pela visã o do reino.
"A relaçã o do Mestre com seus discípulos só pode ser compreendida no contexto da
missã o de Jesus", escreve José Comblin. Jesus nã o estava preocupado com as famílias de seus
discípulos ou com as famílias de amigos e colegas. Quando um discípulo pediu um tempo para
enterrar um familiar, Jesus respondeu: "Deixe que os mortos sepultem os seus pró prios mortos;
você, porém, vá e proclame o Reino de Deus" (Lc 9:60).
Quando Jesus recebeu o batismo de Joã o no rio Jordã o, passou por uma fundamental
experiência de identidade. Os céus se abriram, o Espírito desceu na forma de uma pomba e Jesus
ouviu a voz de seu Pai: "Tu és o meu Filho amado; em ti me agrado" (Lc 3:22). Os evangelhos
sinó ticos relacionam a identificaçã o de Jesus como "servo de Javé" diretamente a Deus.
Independentemente das evidências externas, Jesus experimentou no Jordã o uma confirmaçã o
interior, decisiva, de que era o Filho, o Servo e o Amado do Pai. George Aschenbrenner diz: "Essa
clara e essencial experiência de identidade origina-se da profunda intimidade com o seu Pai, é
por ela produzida e a celebra".
As tentaçõ es no deserto desafiaram a autenticidade da experiência do Jordã o. Todos os
três estratagemas de Sataná s ("se és o Filho de Deus...") tiveram a intençã o de enfatizar a mesma
questã o: Jesus era realmente o Filho-Servo amado? Ou a experiência no Jordã o foi somente uma
ilusã o? Alguém mais ouviu a voz que Jesus ouviu?
Sataná s atacou frontalmente a identidade religiosa de Jesus. 0 periscó pio do evangelho
nã o descreve a luta interna e o conflito feroz no coraçã o humano de Jesus, mas essa era uma
questã o tumultuosa. Aschenbrenner observa: "Aqui lhe era exigido, assumindo riscos e com
confiança, que ratificasse, e assim assumisse como missã o e atividade, a sua relaçã o com o Pai".
Na aridez, na simplicidade, na vastidã o e no despojamento do deserto, Jesus interpretou, em
novo e decisivo nível, sua existência e sua missã o no mundo, emergindo do deserto com o sopro
de Deus em sua face.
Nã o se deve supor, no entanto, que o tempo de provaçã o havia acabado. Lucas diz:
"Tendo terminado todas essas tentaçõ es, o Diabo o deixou até ocasiã o oportuna" (4:13). A
confiança de Jesus no Pai nã o se amparava em uma ú nica decisã o que o deixava certo da sua
missã o e imune ao Tentador. A luta com o Diabo no deserto foi o primeiro de uma série de
desafios à sua autoconsciência e identidade interna como Filho-Servo-Amado do Pai.
A constante tentaçã o de seu ministério seria a de cumprir sua missã o de modo contrá rio
ao propó sito de Deus. Ele poderia começar com uma demonstraçã o flamejante de poder,

~ 49 ~
transformando pedras em pã o, e terminar com uma exibiçã o sensacional de poder, descendo da
cruz para vingar-se dos inimigos de Deus. O fascínio pelo aumento de segurança, prazer e poder
é o caminho mundano de Sataná s. Jesus rejeitou isso totalmente.
Na loucura final do amor, Jesus aceita livremente a morte na cruz. É o ú ltimo ato de
confiança, o á pice de uma vida vivida em Deus. Jesus sabe quem ele é. Ele reafirma sua posiçã o
como Filho-Servo-Amado do Pai e, no nível mais profundo de sua existência, cumpre sua missã o.
A morte de Jesus na cruz dá a forma final, definitiva e eterna de sua identidade espiritual e
confiança íntima, amorosa em Deus. John Shea comenta: "Deus nã o ressuscitou Jesus dos mortos
porque este nunca hesitou, replicou ou questionou, mas, havendo hesitado, replicado e
questionado, ele permaneceu fiel".
A autoconsciência de Jesus e o zelo incansá vel demonstrado em seu ministério devem ser
compreendidos como relacionados direta e incessantemente à sua vida interior de crescente
intimidade com o Pai. Nã o devemos perder de vista esta ligaçã o ló gica: a primazia da missã o e
seu profundo zelo em proclamar o reino de Deus nã o derivam de reflexã o teoló gica, do desejo de
edificar os outros, da espiritualidade da moda ou de um sentimento indefinido de boa vontade
para com o mundo. Sua fonte é a santidade de Deus e a autoconsciência que Jesus possui de sua
relaçã o com Deus.
É altamente significativo que o evangelho seja pontuado por inú meras interrupçõ es das
atividades principais de Jesus com o propó sito de se retirar para orar. A Bíblia indica que Jesus
precisavadesse tipo especial de contato íntimo com o Pai. Seu pró prio crescimento interior e o
senso de missã o e direçã o dependiam muito dos momentos de oraçã o. Shea diz: "Apesar de
serem especulaçõ es (mas nã o especulaçõ es gratuitas), podemos imaginar que Jesus ia à s
montanhas para orar nã o porque estava marchando em direçã o ao reino, mas porque precisava
renovar sua liberdade na garantia que Deus lhe dera".
O coraçã o de Deus é o esconderijo de Jesus, um forte e protetor espaço onde Deus está
pró ximo, onde a relaçã o é renovada, onde a confiança, o amor e a autoconsciência nunca
morrem, mas sã o continuamente reacesos. Em tempos de oposiçã o, rejeiçã o, ó dio e perigo, Jesus
retira-se para aquele esconderijo onde é amado. Em tempos de fraqueza e temor, nasce ali um
vigor suave e uma perseverança poderosa. Em face ao aumento da incompreensã o e da '
desconfiança, somente o Pai o compreende. "Ninguém sabe quem é o Filho, a nã o ser o Pai..." (Lc
10:22).
Os fariseus conspiram em segredo para destruí-lo, os amigos dos bons tempos faltam
com a lealdade, um discípulo o nega e outro o trai, mas nada pode demover Jesus do amor do Pai.
Na reclusã o, nos lugares isolados, ele se encontra com El Shaddai, e o que esses momentos
significam para o Mestre dificilmente poderia ser compreendido.
Mas uma coisa pode ser dita: a identidade primeira, crescente, definitiva de Jesus como o
Filho, Servo e Amado de seu Pai é ali profundamente reforçada. Nada deve interferir na
proclamaçã o das boas-novas da vida eterna e na ajuda à s pessoas para que tenham um estilo de
vida que lhes permita crescer para a eternidade — um modo de paz e justiça, com lugar para a
dignidade humana ser reconhecida e para o amor florescer.
Igualmente essencial em relaçã o a isso é o fato de Jesus encorajar os discípulos a
adotarem a mesma prá tica da pausa e do descanso. No retorno exultante dos discípulos apó s um
ministério produtivo, Jesus os aconselha a preservar a humanidade e se centrar na
autoconsciência: "Venham comigo para um lugar deserto e descansem um pouco. Entã o eles se
afastaram num barco para um lugar deserto" (Mc 6:31-32).
É importante manter esses momentos de retiro no contexto e dentro do ritmo da vida
muito ativa e atarefada de Jesus. Tais momentos de oraçã o sã o sempre orientados para sua
presença no mundo. As principais decisõ es de sua vida (por exemplo, a seleçã o dos doze que
formariam um círculo íntimo de amizade e compartilhariam sua missã o) sã o sempre precedidas
de uma noite sozinho no topo da montanha. Sem esquecer, é claro, a noite de suplício no jardim
do Getsêmani, passada em sú plicas por forças para fazer a vontade do Pai.
É difícil, entã o, deixar de pensar na quantidade de casamentos errados, empregos
errados, relaçõ es pessoais erradas e todo o sofrimento concomitante que seriam evitados se os

~ 50 ~
cristã os submetessem o processo de tomada de decisã o ao domínio de Jesus Cristo e
compartilhassem a sua confiança na direçã o de Deus. Muitas vezes nos esquecemos de que
temos o mesmo acesso a Deus desfrutado por Jesus. Mas jamais deveríamos nos esquecer de que
o nosso Criador cuida de nó s. Deus conhece cada um de nó s pelo nome e está profundamente
envolvido nos dramas de nossa existência pessoal. "Até os cabelos da cabeça de vocês estã o
todos contados" (Lc 12:7).
Dentro desse clima de confiança, podemos tranqü ilamente procurar discernir a vontade
de Deus. É em tal atmosfera que todas as decisõ es se tornam claras e todas as açõ es florescem. O
resultado é menos vago, ambíguo e incerto do que poderíamos supor. Os sons da paz interior
ressoam no coraçã o afinado com Deus, enquanto o coraçã o desafinado, iludido em cantar sua
pró pria cançã o, pulsa com agitaçã o, conflito, dissonâ ncia e contratempos.
Ao considerar o que significa para nó s vestir a mente de Cristo, podemos facilmente nos
afastar das preocupaçõ es de Jesus com a sua missã o — ele era, afinal, o Messias, o Enviado. O
Mestre era sem pecado e nã o teve nenhuma das distraçõ es de família, trabalho e vida moderna
se interpondo no caminho de seu chamado. Mas, em vez de sucumbir a essas distraçõ es,
podemos encontrar esperança seguindo o exemplo de Cristo em sua devoçã o sincera à s coisas
de Deus.

O "EU" DIVIDIDO
Jesus sempre pareceu saber quem era. Ao longo de sua vida, houve um desenvolvimento
da consciência de sua pessoa e missã o, mas ele sempre teve um sentido coerente do "eu". Sua
autoconsciência habitual e sua fidelidade resoluta à missã o contrastam com o modo como
vivemos na sociedade contemporâ nea. Um estilo de vida centrado em segurança, prazer e poder
impede a possibilidade de estabelecer qualquer sentido coerente do "eu" pela simples razã o de
que tais desejos excluem Deus de forma peremptó ria.
Da mesma maneira que a mente de Cristo Jesus criou o mundo, assim também nossa
mente cria o nosso. Um "eu" á vido por segurança, prazer e poder barganha livremente a
autoconsciência por alguma coisa que aumentará a ilusã o de completude que esses desejos
trazem. Nossos padrõ es viciosos (expectativas, desejos, afeiçõ es, demandas e modelos mentais)
dominam a percepçã o do "eu", dos outros e do mundo. Esse centro á vido, manipulador, mantém-
nos naquele passeio de montanha-russa de prazer e desapontamento que transforma a
continuidade de cará ter e a fidelidade à visã o numa impossibilidade.
Paulo chama a vida conduzida pelo desejo sarx — a vida na carne. Nela, nossa
programaçã o mental e emocional nos coloca sob o controle da necessidade de obter o bastante
do mundo para nos sentir seguros, impele-nos a encontrar a felicidade através de mais e
melhores experiências prazerosas e dirige nossa vontade para o domínio de pessoas e situaçõ es,
aumentando, assim, nosso prestígio e poder.
A crise de espiritualidade moderna, grosso modo, é Espírito versus carne. O fracasso ou a
recusa em residir na mente de Cristo cria dualidade e separaçã o dentro de nó s. Nã o escolhemos
com determinaçã o entre Deus e Mamom, e nosso adiamento já constitui, em si, uma decisã o. Nó s
nos dividimos cuidadosamente entre carne e Espírito com os olhos atentos em ambos. A
relutâ ncia em admitir com toda a consciência que somos filhos de Deus causa esquizofrenia
espiritual do tipo mais aterrador.
Nã o que eu tenha medo de lhe dizer quem sou; na verdade, posso lhe dizer porque eu
mesmo nã o sei quem sou. Nã o dei a anuência interna e profunda à minha identidade cristã .
Tenho medo de perder minha vida ao encontrar meu verdadeiro "eu". Deus me chama pelo meu
nome, e nã o respondo porque nã o sei meu nome.
O estilo de vida dos cristã os esquizó ides é errá tico porque, em diferentes momentos, nos
separamos deliberadamente de nosso verdadeiro "eu". Agarramo-nos a certos eventos,
experiências e relaçõ es por conta pró pria e excluímos a presença do Espírito que habita em nó s.
Pode ser um filme, uma conversa, um caso de amor ilícito ou uma transaçã o empresarial. Depois,
reentramos no "eu" que se considera cristã o e tomamos parte em eventos onde Deus é celebrado

~ 51 ~
em discursos e câ nticos. Depois, confidenciamos a amigos que "o culto foi um pouco chato esta
noite".
Alimentados pelo que alguém chamou "o agnosticismo da negligência" (falta de
disciplina pessoal para superar o bombardeio da mídia, conversas fú teis e relaçõ es utilitá rias),
nossa autoconsciência torna-se embaçada, a presença de um Deus amoroso se perde na
distâ ncia e a possibilidade de confiança e intimidade parece menos plausível. A desatençã o com
o sagrado destró i a abertura para o Espírito.
Da mesma maneira que a falta de atençã o, na esfera das relaçõ es humanas, destró i o
amor entre duas pessoas, assim a desatençã o com o verdadeiro "eu" destró i a amorosa
consciência da relaçã o divina. Um coraçã o imaturo se transforma em vinhedo devastado. É
impossível contemplar Deus com o coraçã o e a cabeça cheios de assuntos terrenos.
Quando periodicamente nos fechamos para Deus, nosso coraçã o é tocado pelo frio dedo
do agnosticismo. O agnosticismo cristã o nã o consiste tanto na negaçã o de um Deus pessoal
quanto na incredulidade da desatençã o ao sagrado. O modo como vivemos dá testemunho
irrefutá vel de nossa consciência amorosa ou de sua falta.
Viver no Espírito implica o conhecimento existencial de ser amado por Deus e
compartilhar a pró pria experiência por Jesus desse amor. Mas muitas coisas que fazemos em
nossos momentos de solidã o nada têm a ver com o Espírito ou com a vontade viva de Deus.
Incomodados com tal dicotomia, mergulhamos em atividades espirituais e somos envolvidos por
organizaçõ es e eventos relacionados à igreja num esforço de preencher o vazio que sabemos
carecer de conteú do.
Pouco propensos a renunciar ao controle administrativo de nossa vida e sem vontade de
correr o risco de viver em uniã o com Javé, procuramos segurança pessoal e certezas em rituais,
devoçõ es, liturgias e encontros de oraçã o. Essas estruturas proporcionam uma quantidade
mó dica de paz e prometem que a piedade confortá vel e as posses materiais que constituem o
sentido do "eu" nã o serã o perturbadas.
Há uma necessidade de discernimento cuidadoso aqui. As evidências de seriedade,
sinceridade e esforço sã o importantes. Mas alguma coisa está faltando. Essa alguma coisa é a
transparência. A gló ria que resplandece na face de Cristo Jesus nã o resplandece em muitos de
nó s. Diferentes de Jesus, nã o demos nossa anuência profunda e interna ao que pretendemos ser.
Nã o nos rendemos ao mistério do fogo do Espírito que queima por dentro. Até nos
aproximamos o suficiente do fogo para sentir o calor, mas jamais mergulhamos nele, nã o saímos
queimados e transformados de forma incandescente. Podemos ser mais agradá veis do que a
maioria das pessoas, ou ter melhor moral, mas nã o vivemos como novas criaturas. Em vez disso,
nossa personalidade opaca revela nosso coraçã o dividido.

VIVENDO NO REINO
O ú nico modo possível de escapar de nossa autoconsciência obsessiva e entrar na vida de
Cristo é a rendiçã o a Deus, permitindo que Deus seja Deus. Uma tal rendiçã o envolve escavar o
campo de nosso coraçã o e procurar a pérola da verdade de Deus escondida no fundo de nó s:
pertencemos a Deus. Essa preciosa descoberta toma a segurança, o prazer e o poder em cacos
pintados, sem valor. "Eu as considero [todas as coisas] como esterco para poder ganhar Cristo" (Fp
3:8).
Ao declarar a realidade de nossa condiçã o divina como filhos e filhas do Criador do
universo, adquirimos sentido coerente do "eu". Devemos nos perder para nos encontrar. A perda
pavimenta o caminho para o Espírito Santo transformar nossa vida. Já apartados da carne,
começamos a compreender o que Paulo quis dizer com: "Foi para a liberdade que Cristo nos
libertou" (Gl 5:1).
A consciência amorosa de filho do Pai nos afasta de uma vida perdida na procura de
nossos desejos bá sicos e nos liberta da busca pelo reino de Deus. Agora nã o precisamos viver
vidas bifurcadas por nossas necessidades. Tudo o que temos e somos forma somente um "eu",
um coraçã o que bate com a essência de Jesus. Nã o pode haver firmeza de cará ter ou consistência

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de conduta sem esse ato corajoso de auto-afirmaçã o. Paulo disse: "Já nã o sou eu quem vive, mas
Cristo vive em mim" (Gl 2:20). Nisso se encontra a transparência.
Com o véu erguido, muito do sofrimento emocional causado por nossos desejos viciosos
sã o curados. Podemos começar a derrubar todos os nossos jogos de manipulaçã o: o jogo do
dinheiro, o jogo da segurança, o jogo homem-mulher, o jogo do poder, o jogo do conhecimento, o
jogo de ser especialista e assim por diante. Podemos nos apresentar simplesmente aos outros
assim: "Aqui estou. É tudo o que tenho". Na autoconsciência humilde e em liberdade soberana,
podemos verdadeiramente ser para os outros sem medo de rejeiçã o, nem em razã o do benefício
que possam nos proporcionar.
Certa noite, em Coney Island, eu e alguns amigos está vamos na entrada de um
restaurante comendo cachorros-quentes. Perto dali, a alguns metros, no meio da calçada, um
homem negro derramava uma lata de cerveja sobre a cabeça e a blusa de uma jovem branca
grá vida. Ela nã o devia ter mais que 15 anos de idade.
O homem relatava com detalhes só rdidos como havia abusado sexualmente da moça no
passado e o que tinha em mente para mais tarde. Ela começou a chorar. Alguém de nosso grupo
viu a cena com desgosto e disse:
— Vamos dar o fora daqui.
Começamos a andar para o carro quando, como um sino que soa profundamente dentro
de minha alma, ouvi: "Quem é você?". Parei como se meus sapatos estivessem colados no chã o.
Eu sou o filho de meu Pai — respondi.
Essa é minha filha — foi a réplica.
Voltei, afastei a garota dali e conversei com ela durante vá rios minutos. Alguns
espectadores começaram a gritar comigo, chamando-me por nomes vulgares. Naquela noite,
lamentei, nã o pela multidã o ou mesmo pela garota, mas por mim. Lamentei pelas inú meras
vezes em que havia agido como a sentinela silenciosa, com medo de reconhecer quem sou,
incapaz de reconhecer ao menos minhas irmã s. Vi a dignidade da jovem sendo degradada e
fiquei contente por me afastar. Eu havia violado minha pró pria identidade: "Quem sabe que deve
fazer o bem e nã o o faz, comete pecado" (Tg4:17).
Nã o raro somos automovidos e automotivados, em vez de ser movidos e motivados pelo
Espírito. Quando o sentido do "eu" deriva de desejos bá sicos pró prios, agimos de modo a obter a
aprovaçã o, evitar a crítica ou escapar da rejeiçã o. Dietrich Bonhoeffer escreveu:

Sataná s deseja que eu me volte para dentro de mim mesmo até que seja
escravizado e me torne uma força destrutiva na comunidade. O impulso de Jesus
Cristo é para aumentar a minha liberdade de forma que possa me tornar uma
força de amor criativa. É o espírito do egocentrismo e do egoísmo contra o
espírito da franqueza e da abnegaçã o pelo benefício dos outros.

A cura para o nosso egoísmo é desenvolver um coraçã o perspicaz. Quando vestimos a


mente de Cristo e focalizamos o pensamento e o comportamento no reino de Deus, podemos
começar a avaliar nossas escolhas, decisõ es e motivaçõ es sob nova luz. Saímos de uma condiçã o
em que éramos sonâ mbulos e dirigidos por nossos instintos mais mundanos e passamos para
um lugar de vida em total consciência de nossa posiçã o como herdeiros do Deus supremo.
George Maloney escreve:

Costumá vamos taxar as pessoas de que nã o gostá vamos conservadoras, se


fô ssemos liberais, e liberais, caso nos considerá ssemos conservadores. Outros
grupos pessoais de conveniência eram as geraçõ es mais jovens e as mais velhas.
Hoje sinto que a verdadeira diferença que separa os humanos é a diferença entre
pessoas (jovens e velhas) que vivem predominantemente num nível sensorial e as
que vivem num nível mais elevado de consciência. O primeiro grupo é o sujeito ao

~ 53 ~
qual se destina a publicidade típica da televisã o de hoje. Acima de tudo,
valorizaçã o do conforto corporal, da ausência de dor, de comer e dormir bem,
beleza corporal e saú de tísica. O segundo grupo engloba um segmento menor da
humanidade, o que está sempre atingindo uma maior síntese do conhecimento,
uma maior experiência do sentido unificado da vida, com o homem dirigindo
todas as suas energias para aquele fim.
De algum modo, o processo de focar nossa vida na mente e na obra de Jesus implica
distanciar nosso "eu" do mundo ao redor, num esforço para escapar de nossas disfunçõ es e
nossos vícios. Para o mundo, parecemos loucos e desorientados. Portanto, esse tipo de foco nã o
se impõ e sem uma decisã o diá ria (até mesmo de hora em hora) de se render ao domínio do
Espírito. Ralph Martin diz:

Prontamente, para uma sincera vida de fé, devemos renunciar à escravidã o à s


trevas; nos libertar da ligaçã o com as coisas que nos afastam de uma pura
rendiçã o à açã o de Deus em nó s. Precisamos eliminar totalmente aquilo a que
renunciamos ao fazer nosso batismo e que ratificamos a cada Pá scoa. E é aqui que
encontramos grande dificuldade e nos deparamos com os obstá culos do egoísmo,
da sensualidade, da ambiçã o, do ressentimento, do orgulho, do medo etc.

Os cristã os falam muitas vezes da necessidade de submissã o a Deus. Mas há uma


diferença essencial entre submissã o e rendiçã o. A primeira é a aceitaçã o consciente da realidade.
Há uma rendiçã o superficial, mas a tensã o continua. Digo que aceito quem sou, mas nã o aceito
tã o completamente que esteja disposto a realmente demonstrar como sou. Trata-se de uma
aceitaçã o indolente, que pode ser descrita por palavras como resignação, complacência,
reconhecimento, concessão. Repousa ali um sentimento de reserva, um esforço na direçã o da nã o
aceitaçã o.
Em contrapartida, a rendiçã o é o momento quando minhas forças de resistência param
de agir, quando nã o posso fazer mais nada, exceto responder ao chamado do Espírito. "O estado
emocional da rendiçã o", escreve o dr. Harry S. Tiebout, "é um estado no qual existe uma
persistente capacidade para aceitar a realidade. É um estado realmente positivo e criativo".
A capacidade de se entregar é um dom de Deus. Por mais que ansiosamente possamos
desejar isso, por mais que diligentemente possamos nos esforçar para obter isso, a rendiçã o nã o
pode ser alcançada por empenho pessoal. "Com relaçã o ao ato de rendiçã o, deixe-me enfatizar
este ponto", adverte Tiebout. "Trata-se de um evento inconsciente, nã o determinado pela
vontade do paciente, ainda que ele assim o deseje".
Entretanto, a intensidade de nosso desejo importa. Nossa dedicaçã o para o crescimento é
o determinante isolado mais importante do desenvolvimento espiritual. Sem intenso
compromisso interior somos pouco mais do que diletantes praticando jogos espirituais. A pérola
de grande valor — a mente de Cristo — deve ser o mais valioso tesouro em nossa vida, e
devemos procurá -la na oraçã o perseverante, na cura sacramental e na força da comunidade
cristã .
Somente entã o se revelará em nossa vida o milagre da transparência, do amor e da
unidade. "Se vocês, apesar de serem maus, sabem dar boas coisas aos seus filhos, quanto mais o
Pai que está nos céus dará o Espírito Santo a quem o pedir!" (Lc 11:13). É vontade de Deus que
cresçamos em santidade (lTs 4:7), conheçamos a verdade que nos liberta (Jo 8:32) e nos
alegremos com uma alegria que ninguém pode tirar de nó s (Jo 16:22).

O REINO E O MUNDO
A consciência viva da bondade e do amor de seu Pai criou o imperativo missioná rio no
coraçã o de Jesus e o consumiu com o zelo pela casa do Pai (Jo 2:17). Pensar como Jesus é
experimentar ser amado tã o completamente por Deus que nos tornamos, em termos
existenciais, incapazes de ser outra coisa senã o os filhos do P ai em Cristo Jesus. Trata-se de uma

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novidade esmagadoramente jubilosa, que nos torna um povo esmagadoramente jubiloso. Nã o
podemos reprimi-lo porque o amor, por sua natureza, significa compartilhar.
Percebemos, portanto, que todos os homens e mulheres sã o amados da mesma maneira,
mas reconhecemos que muitos nã o sabem disso. Eles estã o fechados na solidã o, no medo, na
alienaçã o, na apatia e na ignorâ ncia. Ninguém lhes contou todas as coisas que aconteceram em
Jerusalém; sã o como ovelhas sem um pastor.
A assombrosa performance de Robert DeNiro no filme Taxi driver captura com vigor essa
condiçã o. Ele interpreta Travis Bickle, um taxista que nã o sabe quem é, onde vai ou por que está
vivendo. Ele procura um veterano taxista para conselho. "Nã o se leve tã o a sério", ele lhe diz,
"embebede-se e durma. É tudo o que há. Você é apenas um taxista". Quantos de nossos irmã os e
irmã s vagam pelos dias com o mesmo sentimento de falta de propó sito, de ser ó rfã o no mundo.
Que dá diva podemos ser para o mundo quando nos tornamos respostas transparentes à s suas
perguntas mais sinceras!
Em face à solidã o e à dor que vemos no pró ximo, nã o podemos simplesmente fechar as
portas e dizer: "Ficarei em meu pró prio mundinho, seguro e sereno, na presença amorosa de
Deus". Nossa consciência de Deus se torna o local de nascimento de um zelo consumidor e de um
desejo muito grande de proclamá-lo do alto da montanha. Somos levados pelo Espírito a
proclamar, pela palavra e pelo exemplo, a paz, a justiça e o amor clemente de Deus.
Talvez por nada mais (ou nada menos) do que nossa amizade oferecida a outro, uma
amizade verdadeira, desinteressada, sem condescendência e cheia de profundo respeito,
podemos levar o outro a descobrir: "Também sou amado por meu Pai em Jesus". É a consciência
amorosa da santidade de Deus revelada em Jesus Cristo, junto com uma profunda compaixã o
pela humanidade redimida, que cria o imperativo da missã o cristã .
Um amigo meu escreveu certa vez:

Ser um filho do Pai, como Jesus, é realmente se alegrar com essa relaçã o e
abraçar totalmente essa identidade. É desfrutar completamente e sentir grande
orgulho por estar tã o bem situado. É sentir o extraordiná rio privilégio que é meu,
embora sem nenhum mérito pró prio. É apreciar, num sentido muito humano, a
dignidade do título a mim concedido e andar com minha cabeça erguida. E ter a
conduta aristocrá tica de alguém nascido para a realeza. E nã o invejar nenhum
homem por coisa alguma, pois minha posiçã o privilegiada transcende todas as
comparaçõ es, eclipsa todas as honrarias e títulos mundanos, e enche meu cálice
com uma alegria para além de qualquer descriçã o.
Com o que meu Pai se parece? Um dia, ele ficou tã o apreensivo de que eu nã o
pudesse compreender quã o amoroso e sá bio, gentil e poderoso ele é que me
enviou uma expressã o completa e perfeita de si mesmo em seu Filho Jesus. Tudo
o que meu Pai tem, ele confiou a Jesus, de forma que, ao contemplar Jesus, posso
ver e conhecer meu Pai. Permita-me contar a coisa mais linda e emocionante que
ele já me disse. Ao acordar a cada manhã e ao me deitar tranqü ilo, enlevado e
feliz, sempre ouço isto como pela primeira vez: "Como o Pai me amou, assim eu o
amo".

A relaçã o de Cristo com o Pai, além de seu contínuo foco nas coisas de Deus, leva-o a um
lugar onde o desejo mais profundo é de que tudo e todos se encontrem unidos sob Deus. O
desejo é refletido na "oraçã o sacerdotal" de Jesus no cená culo:

Para que todos sejam um, Pai, como tu está s em mim e eu em ti. Que eles
também estejam em nó s, para que o mundo creia que tu me enviaste. Dei-lhes a
gló ria que me deste, para que eles sejam um, assim como nó s somos um: eu neles
e tu em mim. Que eles sejam levados à plena unidade, para que o mundo saiba
que tu me enviaste, e os amaste como igualmente me amaste.

~ 55 ~
Joã o 17:21-23

Há na oraçã o um chamado maravilhoso para a unidade entre a ordem criada e seu


Criador. Se quisermos pensar como Jesus, devemos também abrir caminho por entre as ilusõ es
de querer nos separar dos outros. Embora façamos um esforço consciente para viver distante
das preocupaçõ es do mundo, também precisamos reconhecer que Deus criou um mundo repleto
de beleza, brilho, vivacidade e intensidade. Tal reconhecimento é elemento essencial para
habitar o reino de Deus. George Maloney escreve:

Seja o que for que a pessoa estiver fazendo, abrindo ou fechando os olhos, ela
encontra a Presença Divina em todos lugares, na unidade de todas as coisas. O
que a impele para fora de si, num espírito de adoraçã o e serviço [...] É uma
experiência de Deus no âmago de toda a matéria. O homem ama este ser, esta
pessoa, esta á rvore, esta pedra e, ao mesmo tempo, ama a Deus. Nã o há um
movimento deste para aquele, mas, em sua visã o, ele vê a um só tempo o ser
criado e o amor infinito de Deus, que criou este ser e o oferece ao homem como
uma dá diva. Este encontra a dá diva e o Doador no mesmo olhar.

A cultura em que vivemos produz, em grande parte, o conceito de limites, de separaçã o


entre nó s e os outros em prol da saú de mental. Em teoria, esse conceito nos permite viver de
forma a impedir que as disfunçõ es dos outros alterarem o modo que desejamos viver a pró pria
vida.
Boa parte de nossa discussã o até aqui poderia se enquadrar na definiçã o de limites, ou
seja, de como viver sem se preocupar com as expectativas dos outros. No entanto, devido a
nossos desejos egocêntricos, torcemos a noçã o de limites para servir como desculpa para
ignorar as necessidades dos outros. Permitimos a colocaçã o de limites a fim de nos tornarmos
nã o uma ferramenta para o crescimento, mas uma barreira entre os relacionamentos.
O chamado de Cristo à unidade nos ordena a agir para além do sentido isolador dos
limites pessoais e das barreiras normalmente associadas ao comportamento automotivado. Já
nã o posso mais olhar os outros como pessoas com quem nã o tenho ligaçã o. Em vez disso, a
unidade em Deus me chama a considerar todas as pessoas e coisas como extensã o da família de
Deus, na qual estou incluído. Nã o há limites entre a parte de Deus que vive no "eu" e a parte que
vive em toda a criaçã o. Sobre essa condiçã o, Ken Keyes Jr. escreve:

Você pode agir com grande eficácia, pois perdeu as redes viciosas que
limitavam sua receptividade. Você está agora em harmonia com as mais delicadas
vibraçõ es de todas as pessoas e do mundo ao seu redor. Abre-se um amplo
espectro das melhores sugestõ es que o mundo ao seu redor lhe envia o tempo
todo, mas que anteriormente nã o era possível captar, pois sua consciência estava
ocupada.

A vida de Francisco de Assis oferece uma excelente idéia do que significa viver em
unidade com a criaçã o de Deus. Suas palavras e seus gestos sã o a manifestaçã o de um coraçã o
completamente entregue a Deus. Francisco compreendeu que a beleza das coisas sensíveis é a
voz com a qual anunciam Deus. "É você que me faz bonito, nã o eu, mas você". Naquele momento,
Francisco descobriu aquilo que as coisas criadas ocultavam, mas agora a criaçã o proclamava em
alto som. Foi sua reflexã o sobre elas e a atençã o que ele lhes dedicou que soltou as vozes das
coisas numa exclamaçã o: "Como é bonito aquele que nos fez!".
Ao conversar amavelmente com os pá ssaros, ao repreender o lobo de Gubbio por
perturbar a vizinhança, ao proteger um cordeiro em Porziuncola para lembrar os irmã os sobre o
Cordeiro de Deus e escrever um câ ntico lírico ao Irmã o Sol, Francisco comungou com Deus na
natureza e revelou uma consciência có smica de insuperá vel sensibilidade.

~ 56 ~
Acima de tudo, foi por seus gestos que Francisco refletiu a beleza transparente de seu
espírito. Numa manhã chuvosa, ele se aproximou da praça onde ficava a igreja da aldeia. Uma
multidã o o seguia, cantando: "Santo, santo, o santo de Deus".
Os aldeõ es sabiam que o padre local nã o levava uma vida de retidã o moral. Quando
Francisco chegou à praça, aconteceu de o padre sair da igreja. A multidã o observava num
silêncio tenso. O que faria Francisco? Denunciaria o padre pelo escâ ndalo que provocava?
Pregaria aos aldeõ es sobre a natureza da fragilidade humana e a necessidade de compaixã o?
Simplesmente ignoraria o padre e continuaria seu caminho?
Francisco deu um passo adiante, ajoelhou na lama, tomou a mã o do padre e beijou-a. Isso
foi tudo. "O esplendor de uma alma justa", escreveu Tomá s de Aquino, "é tã o atraente que
ultrapassa a beleza de todas as coisas sensíveis".
Algo notá vel acontece quando admitimos nossa unidade com toda a criaçã o de Deus:
tudo aquilo que abandonamos, recebemos de volta. Nossas preocupaçõ es com relaçã o a
segurança, prazer e poder se desvanecem no reconhecimento de que tudo está bem no reino de
Deus. O ensino de Jesus: "Nã o se preocupem com o amanhã, pois o amanhã trará as suas
pró prias preocupaçõ es" (Mt 6:34) nã o é mais uma má xima moral, mas uma realidade pessoal, no
nível da experiência diá ria. Nesse contexto, o escritor Murray Bodo afirma sobre Francisco:

E ele nã o estava preocupado ou ansioso com o ontem, o hoje ou o amanhã , pois


Cristo é, todas as coisas estã o nele e ele está no Pai. Francisco nã o mais se
preocupou, nã o porque fosse um otimista ingênuo, mas porque havia se tomado,
em oraçã o e penitência, um realista que via a insignificâ ncia de tudo, exceto de
Deus, e em Deus, e com ele, e por ele, a importâ ncia de tudo. Deus estava em todos
lugares e sua presença enchia a criaçã o com um poder e uma gló ria que faziam
tudo reluzir com bondade e beleza aos olhos de Francisco. O toque de Deus em
tudo inspirava tudo o que existia.

Tudo o que fora abandonado é trazido de volta e experimentado de um novo modo pelo
poder transformador do Espírito que nos habita. Segurança, prazer e poder estarã o à disposiçã o
do amor e serã o integrados na personalidade cristã total. Cessa a esquizofrenia espiritual que
absorveu tanto tempo e drenou tanta força. Uma imensa quantidade de energia está agora
disponível para a edificaçã o do reino.
A paz e a alegria ininterruptas que fluem da uniã o com Deus e com o mundo de Deus sã o
os frutos triunfantes do Espírito Santo e o objetivo da peregrinaçã o cristã . As duas estã o
disponíveis para nó s nas mesmas condiçõ es que Francisco as obteve: completo desprendimento.
Observa Bodo:

Tudo o que Francisco via ou ouvia ou cheirava ou inspirava era seu, porque
nada lhe pertencia. Ele veementemente arrancou de seu coraçã o todo desejo de
posse e toda ganâ ncia, e conforme Jesus prometera, todas as coisas lhe foram
dadas, carregadas e transbordantes de amor.

JUSTIÇA
Em 1975, o teó logo George Lindbeck afirmou:

Estamos agora, conforme se diz geralmente, em meio à s mudanças mais


importantes dos dois milênios de histó ria cristã . Uma vitoriosa revoluçã o contra
os termos tradicionais de pensamento e de vida é um mal necessá rio hoje como
em qualquer época no passado. Somos confrontados com inú meras propostas,
muitas vezes contraditó rias, sobre o caminho que a mudança deveria tomar. Na

~ 57 ~
opiniã o de alguns, para mencionar apenas dois exemplos, o caminho é o do
movimento carismá tico e, para outros, o das teologias de libertaçã o.

Mais de trinta anos depois, a concepçã o de mundo escolhida pelos que vêem através dos
olhos e da mente de Cristo continua sendo um agradá vel casamento entre a espiritualidade
pessoal e a teologia da libertaçã o. Com Jesus, esperamos a unidade da comunidade global, o
amanhecer do dia em que o leã o deitará com o cordeiro, o Oriente e o Ocidente se
compreenderã o um ao outro, negros e brancos realmente se comunicarã o, cidades apá ticas e
desesperadas experimentarã o o brilho do sol de uma vida melhor e todos se alegrarã o no
Espírito que nos torna um só .
O sentimento de unidade com o mundo criado, nossa liberdade no Espírito e a
consciência de que a libertaçã o e a liberdade sã o o nú cleo da mensagem de Jesus dirigem nossa
atençã o para a emancipaçã o do mundo. Nã o podemos afirmar ter a mente de Cristo e ficar
insensíveis à opressã o de nossos irmã os. Nã o podemos fechar os olhos para a luta do mundo por
redençã o, liberdade e paz. Sabemos que o bem que se faz ao pobre — o menor de nossos irmã os
(Mt 25:40) — se faz ao pró prio Jesus. Sabemos que precisamos nos entregar a açã o concreta em
nome da libertaçã o. Há coisas a se fazer. O teó logo Enrique Dussel diz:

A pessoa que enxerga um Outro livre na figura do pobre e liberta o escravo do


Egito é quem verdadeiramente ama Deus, pois o escravo no Egito é a real epifania
do pró prio Deus. Se alguém libertar o escravo no Egito, libertará Deus. Mas, se
renegar o escravo no Egito, renegará Deus. Quem nã o se dedica à libertaçã o dos
escravos no Egito é um ateu. E Caim matando Abel. Uma vez Abel morto, Caim
ficou só . Ele acreditava ser agora o ú nico, o Eterno. Ele se apresentou como um
deus panteísta. Foi essa a tentaçã o de Adã o no Eden: "Vocês serã o como deuses".
Ser como Deus é pretender ser o ú nico e supremo ser, é recusar-se a libertar o
Outro, aquele que foi assassinado.
Deus, porém, continua se revelando a nó s como o Outro que nos chama. Ele é o
primeiro Outro. Se eu nã o ouvir meu semelhante escravizado, também nã o estarei
ouvindo Deus. Se nã o me dedicar à libertaçã o de meu semelhante, entã o sou um
ateu.
Eu nã o somente nã o amo Deus, mas estou, de fato, lutando contra Deus, pois
estou afirmando minha pró pria divindade.

O que leva os cristã os a colaborar na libertaçã o do oprimido é a certeza de que a


mensagem do evangelho é radicalmente incompatível com uma sociedade injusta, alienada.
Muitos cristã os têm conhecido a Jesus Cristo de modo pessoal. Ele é o Salvador que, ao nos
libertar do pecado, nos liberta da pró pria raiz da injustiça social. Sua obra redentora abrange
toda a dimensã o da existência humana. "A vida contínua da igreja como um processo de
libertaçã o é um princípio essencial na doutrina cristã ", observa Dussel. "Ela está incorporada na
noçã o do Pessach,10 e a vida da igreja é pascal".
O fogo da liberdade pentecostal deve ser lançado sobre as trevas das estruturas,
instituiçõ es e situaçõ es opressoras e desumanizadoras. A obra redentora de Jesus Cristo
continuará inacabada até que esse fogo seja aceso. A luz nã o comunga com a treva (lJo 1:5). Na
condiçã o de cristã os com a mente de Cristo, devemos questionar o mundo: "Quem sã o os
opressores e quem sã o os oprimidos?".
O Espírito de Deus pode nos conduzir através do deserto para desejar, clamar e pregar a
liberdade para toda a humanidade: na arena da política nacional ou local para legislá -la, na praça
para preservá -la, no seio de nossa família para revitalizá -la ou no nú cleo de nossa igreja
moribunda para recriá-la.

10
"Pá scoa", em hebraico. E forma utilizada pelos judeus para designar a festa que comemora a libertaçã o do Egito. (N. da T.)

~ 58 ~
A unidade tã o fervorosamente desejada por Jesus Cristo e expressa em sua oraçã o
sacerdotal pressupõ e a liberdade em todas as suas formas. A igreja, como corpo visível do
Senhor, deve se empenhar para alcançar a liberdade global, participar na construçã o de uma
ordem social justa, a fim de estimular e radicalizar a dedicaçã o dos cristã os. A sagrada aliança
entre a contemplaçã o e a açã o pode revitalizar a presença da igreja no mundo e tornar o
comprometimento com o domínio de Jesus mais profundo e radical.
Quando passamos a ter a mente de Cristo, enxergamos nossa vida e o crescimento no
Espirito de modo bastantes simples. Sabemos, parafraseando Pascal, que todas as teologias
revolucionarias e libertá rias, todas as espiritualidades carismá ticas, asiá ticas e apofá ticas, todos
os monturos de retó ricas e débeis boas intençõ es, todos os resmungos e hesitaçõ es dos cristã os
cerebrais, ocupados em cultivar suas idolatrias, nã o valem mais que um ato de amor que, num
determinado momento, emancipa um escravo do exílio no Egito.

~ 59 ~
PARTE TRÊS
O PODER DA CRUZ

CAPÍTULO SETE
A SABEDORIA DA RESSURREIÇÃO

Esta investigaçã o sobre a mente de Cristo é reconhecidamente um construto


simplificado, projetado para localizar, identificar e explorar a complexa rede de vontades,
atitudes, motivaçõ es, padrõ es de pensamento e jogos de palavra que motivam o comportamento
humano na carne e no Espírito. Nossa análise tem como meta a transparência infalivelmente
associada à Verdade, que é Jesus Cristo.
No percurso, o Espírito Santo põ e para fora o lixo que há no ferro-velho da mente, limpa
o só tã o da programaçã o emocional viciada, livra o cristã o da condená vel prisã o da carne e
elimina considerá vel e desnecessá rio sofrimento existencial que nã o nasce da vontade de Deus.
Agora resta uma questã o crucial: onde se encontra o poder transformador? Uma exposiçã o
sobre a vida cristã pode ser informativa, até mesmo ú til, mas "o Reino de Deus nã o consiste de
palavras, mas de poder" (ICo 4:20).
Nenhum crente que esteja aberto a tudo o que é verdadeiro, correto, amá vel, nobre e
puro (Fp 4:8) despreza a contribuiçã o da ciência. O estudo da psicologia aumentou
significativamente nossa compreensã o do comportamento humano e forneceu uma chave para
as câ maras internas da mente. Muitos na igreja passaram a apreciar os benefícios emocionais e
espirituais do aconselhamento, das prá ticas de meditaçã o, da ioga, da oraçã o contemplativa e
assim por diante.
Contudo, também precisamos reconhecer que tais prá ticas humanas sã o limitadas em
sua capacidade de nos proporcionar completo discernimento e direçã o espiritual. Para isso,
devemos nos voltar unicamente à Palavra inspirada de Deus. E o evangelho aponta para apenas
uma fonte de redençã o: a cruz de Jesus Cristo.
Jesus Cristo crucificado é o poder de Deus e a sabedoria de Deus (ICo 1:24). O poder do
Pentecostes emana da cruz. O Pentecostes nã o é simplesmente a festa do Espírito Santo, mas a
festa do poder da ressurreiçã o e gló ria de Jesus Cristo comunicada a outros. Jesus nã o pô de ser
glorificado até que fosse crucificado. Jesus nã o foi constituído o Filho messiâ nico de Deus em
poder antes de morrer na carne. Assim acontece conosco. O poder do Senhor ressuscitado
transmitido à igreja pelo Espírito Santo nã o pode ser recebido, a nã o ser pela participaçã o na
morte de Jesus.
Para nó s, o processo de morte e ressurreiçã o foi iniciado na conversã o, mas para
continuar a beber da á gua viva do Espírito, devemos nos aproximar do corpo do Deus
crucificado, de quem emana as á guas redentoras (Jo 19:34). Devemos continuamente ter
"participaçã o em seus sofrimentos" (Fp 3:10). Se existem poucos crentes cheios do Espírito,
carregados de poder, transparentes, é porque poucos mergulharam na verdadeira vida de Jesus
e morreram para o pecado, o egoísmo, a desonestidade e o amor degradado.

~ 60 ~
Onde quer que o Espírito de Deus sopre como um furacã o na histó ria cristã , ele o faz por
meio dos profetas e amantes de Cristo, que têm incondicionalmente se rendido à loucura da
cruz. "Os mistérios do sofrimento e da morte de Cristo", escreve Bernard Tyrell, "sã o
inexauríveis na riqueza do seu propó sito, do seu valor e do seu poder de cura".
A investigaçã o da mente de Cristo é uma viagem a lugar nenhum se o peregrino ainda
estiver preso à carne. A transparência será obstruída se ele cobrir com um pano de seda a á spera
madeira da cruz. O poder do Espírito somente opera com dinamismo naqueles cristã os que
participam do sofrimento de Jesus, da vergonha, da humilhaçã o e da dor de sua cruz. Lucien
Cerfaux afirma: "Se a palavra da cruz é o poder de Deus, é precisamente porque ela carrega
consigo o poder da ressurreiçã o".
O poder da ressurreiçã o é nulo a menos que crucifiquemos "a carne, com as suas paixõ es
e os seus desejos" (Gl 5:24). O impacto de todo esforço sincero para melhoria, restauraçã o e
renovaçã o espiritual desaparecerá como num sonho da noite passada se nã o for sustentado pelo
poder do mistério pascal. O poder indizível do Espírito é libertado com força extraordiná ria pela
loucura da cruz, que é

... escâ ndalo para os judeus e loucura para os gentios, mas para os que foram
chamados, tanto judeus como gregos, Cristo é o poder de Deus e a sabedoria de
Deus. Porque a loucura de Deus é mais sá bia que a sabedoria humana, e a
fraqueza de Deus é mais forte que a força do homem.
ICoríntios 1:23-25
Segundo Paulo, o sinal perfeito da maturidade humana é a cruz. É a principal
manifestaçã o do amor sincero com o qual Jesus obedeceu a vontade de Deus, entre as duras
realidades de sua curta permanência na terra. Com a mesma chama de amor filial que o elevou
ao Pai na manhã da Pá scoa, Jesus se capacitara para suportar a dor do sofrimento e da morte. O
amor era o significado da cruz, ainda que seu fogo estivesse oculto nas sombras, e foi esse
mesmo amor que irrompeu das trevas para a gló ria no completo esplendor da ressurreiçã o.
Barnabas Ahern escreve:

Considerando-se que é o mesmo amor que encheu o coraçã o do Crucificado e


que vive no Senhor da gló ria ressuscitado, pode-se perguntar por que Paulo nã o
usou a expressã o "sabedoria da ressurreiçã o". A resposta é simples. Paulo
escreveu as epístolas para pessoas que viviam neste mundo, e nã o no mundo do
porvir. Recomendar "a sabedoria da ressurreiçã o" careceria do realismo de que
os convertidos precisavam para enfrentar a verdade da vida terrena. Como os
coríntios eram tolos o bastante para acreditar que já haviam alcançado a
plenitude da vida ressurreta (ICo 4:8), era esse o tipo de fantasia que Paulo
precisava corrigir. O homem que vive neste mundo deve enfrentar a dura
realidade: a vida terrena, endurecida pelo pecado pessoal e global, nunca pode ser
uma utopia.

Pouco antes de Paulo chegar em Corinto, ele havia passado por Atenas. Ele está , entã o,
desanimado por ter fracassado em conquistar a comunidade grega pelo uso da teologia natural.
Falando agora aos coríntios incultos, muitos dos quais levavam vidas depravadas, Paulo
abandona completamente a abordagem da sabedoria prolixa e prega a loucura da cruz. "Pois a
mensagem da cruz é loucura para os que estã o perecendo, mas para nó s, que estamos sendo
salvos, é o poder de Deus" (ICo 1:18).
George Montague observa: "Quando Paulo usa aqui a palavra loucura ou absurdo, a
palavra grega (movia) sugere algo que é simpló rio, estú pido, banal, ou seja, loucura nã o no
sentido de ser socialmente perigoso, mas antes menosprezado, ignorado porque é ridículo". E é
isso precisamente o que Paulo proclama. Suas palavras contrariam o gosto natural dos judeu e
gregos, pois ele prega o Cristo crucificado. Os judeus estã o, de fato, procurando um Messias, mas

~ 61 ~
a morte vergonhosa de Jesus na cruz prova que ele nã o era o glorioso libertador que esperavam.
A cruz permanece sendo um impedimento para eles, um obstá culo para a fé.
Os gregos entendem a figura do Messias como um filó sofo maior que Platã o. Ele levará os
homens a contemplar a ordem e a harmonia do universo. Mas que Messias é esse que mexerá
com tal devoçã o confortá vel e culta, invertendo seus valores e indo para a morte numa cruz,
vítima dos detritos irracionais da humanidade? Tal Messias é realmente uma estupidez aos
gregos.
No entanto, Paulo prega a loucura da cruz — o Cristo crucificado que é o poder e a
sabedoria de Deus — e consegue um incrível sucesso. A pregaçã o da cruz chama o Espírito para
a vida. Judeus e gregos, postos no mesmo patamar, deixam de lado seus preconceitos para serem
tocados pelo poder e pela sabedoria da cruz. Anos mais tarde, o pai da igreja Joã o Crisó stomo
escreveu:

Quando os que buscam sinais e sabedoria nã o apenas deixam de encontrar tais


coisas, mas até mesmo ouvem o contrá rio do que desejam e, entã o, por meio
desse contrá rio sã o persuadidos — isso nã o mostra o poder indizível daquele que
está sendo anunciado? Algo semelhante a um navegante pego na tempestade e
desejoso de um porto, a quem você, em vez de indicar um porto, levasse a outra
parte mais violenta do mar, e mesmo assim esse alguém o seguisse com gratidã o.
Ou igual a um médico que atraísse um homem ferido e, na falta de medicamento,
prometesse curá -lo nã o com drogas, mas queimando-o novamente! Isso é, de fato,
resultado de grande poder. Assim também os apó stolos foram vitoriosos nã o
apenas sem mostrar um sinal, mas realmente com algo que parecia contrá rio a
todos os sinais conhecidos.

Todo o câ none paulino sugere, sem nenhuma sombra de dú vida, que Paulo aqui nã o
somente está falando da cruz, mas também da ressurreiçã o, a qual prova que aquela é o poder e
a sabedoria de Deus. O mapa rodoviá rio para a mente de Cristo possui como emblema o sinal da
cruz.
Os quatro evangelhos sã o os constituintes da igreja primitiva. Eles estabelecem o cará ter
fundamental e as características essenciais da comunidade apostó lica. A igreja moderna se
esforça para se conformar a eles. Tudo o que é enfatizado no Novo Testamento deveria ser
enfatizado na igreja de hoje. Tudo o que era periférico nã o deveria se tornar central hoje.
Jesus Cristo, no mistério de sua morte e ressurreiçã o, está no centro do Novo Testamento
desde a genealogia de Mateus até o "maranata" do Apocalipse. Em 1959, num discurso feito em
Veneza, Itá lia, Giovanni Montini expô s tal idéia deste modo: "Compreender o mistério pascal é
compreender o cristianismo, ignorar o mistério pascal é ignorar o cristianismo". A mesma ló gica
rigorosa deve ser aplicada à vida espiritual do cristã o. A espiritualidade da igreja é uma
espiritualidade pascal, e nã o outra qualquer.
Voltemos, por um momento, nossa atençã o mais uma vez a Francisco de Assis, o homem
chamado por seus contemporâ neos "a mais perfeita imagem de Cristo que já existiu". Ele subiu
ao monte santo, e seu espírito serve como uma tocha sobre o caminho estreito. Seu bió grafo,
Tomá s de Celano, escreveu: "As palavras só ganham sentido quando se tenta expressar o amor
de Francisco pelo seu Senhor crucificado". Mais de 130 anos depois da morte de Francisco, o
teó logo Bonaventure afirmou: "O amor de Jesus Cristo crucificado absorveu de tal modo a mente
de Francisco que esse amor se revelou na sua carne. Durante dois anos antes de sua morte, ele
carregou no corpo as marcas da crucificaçã o".
Há dois modos certeiros para o cristã o se privar do poder e da sabedoria da cruz e, deste
modo, perder sua força transformadora. O primeiro é intelectualizar a crucificaçã o, falar em tons
pedantes sobre o valor soterioló gico da morte redentora de Jesus. Essa abordagem a reduz e a
envolve numa capa protetora que a designa apenas para a mente. Nã o transmite inspiraçã o para
o restante de nosso ser; nenhuma vontade visceral de mudar.

~ 62 ~
A cruz é um fato degradante de nossa histó ria e, portanto, precisamos resistir à tentaçã o
de amenizar seu significado. Carlo Carretto diz: "Sendo cristã os, é melhor que nó s nã o nos
vangloriemos do triunfo da ressurreiçã o sem antes aceitar a tremenda realidade da crucificaçã o
e morte [de Cristo] em nó s". Temos suavizado a cruz ao trivializá-la (chegando mesmo a removê-
la de algumas de nossas igrejas), ao ajustá -la com precisã o ao nosso teologismo esquemá tico e
ao ignorá -la em favor da ressurreiçã o.
O sofrimento e a morte de Jesus Cristo nã o aconteceram num plano frio, intelectual,
estrelado. Esvaziamos seu pleno significado ao nos referir a ela nos tons neutros de especulaçã o
teoló gica, o que leva até mesmo a sermõ es abstratos e pregaçõ es vazias. Intelectualizar é um
modo sutil, mas eficiente, de roubar-lhe seu poder. Jü rgen Moltmann, citando H. J. Iwand, diz:
"Fizemos a amargura da cruz, a revelaçã o de Deus na cruz de Jesus Cristo, tolerá vel a nó s
mesmos, aprendendo a entendê-la como uma necessidade no processo de salvaçã o. [...] Em
conseqü ência, a cruz perde seu cará ter arbitrá rio e incompreensível".
O segundo modo é mineralizar a crucificaçã o. Você conhece aquele homem seminu,
tranqü ilo e familiar, pendurado num crucifixo. Ao transformá -lo num objeto de ouro, prata,
bronze ou má rmore, livramo-nos de sua agonia e morte como homem. "Nã o é simplesmente
magnífico o Cristo de S. João da Cruz de Salvador Dali?", dizemos enfatuados. Francisco teria
lamentado. Quanto mais o reproduzimos, mais nos esquecemos dele e de sua hora terceira.
No dia em que o homem mineralizado foi crucificado, nã o havia nada nele, a nã o ser
medo e carne. Anos atrá s, um amigo me deu um crucifixo muito caro. Um renomado artista
contemporâ neo havia esculpido as mã os de Jesus delicadamente na madeira. Na hora terceira,
no entanto, os artistas romanos esculpiram o homem crucificado sem nenhuma arte. Nã o foi
aplicada nenhuma delicadeza ao se martelar os cravos, nenhum pigmento vermelho foi
necessá rio para representar uma gota realística do fluxo de sangue de suas mã os e seus pés. Sua
boca foi extraordinariamente contorcida apenas com seu levantamento na cruz e sua
permanência ali, tremendo de dor.
Temos de tal modo intelectualizado e mineralizado o sofrimento e a morte desse Homem
santo que já nã o enxergamos o lento desfibrar de seu tecido, a expansã o da gangrena, sua sede
intensa. Em vez disso, a imagem que temos dele no crucifixo parece tã o tranqü ila, especialmente
a que o mostra usando vestes sacerdotais. Supomos, por sua postura calma, que toda a sua vida
foi assim.
Jesus entrou em nosso mundo como um mú sico, mas o mundo foi perturbado por seu
câ ntico. Na sexta-feira da crucificaçã o, o mundo retornou à paz da qual necessitava. Jesus quis
transformar o mundo num grande ó rgã o de catedral, e extraiu mú sica do pã o seco, de manadas
de porcos, de prostitutas e defuntos. Naim, Jericó , Cafarnaum e Betâ nia puseram dois pregos em
suas mã os para calar sua mú sica. Chicago, St. Louis, Nova York e Los Angeles fazem a mesma
coisa com suas mentes e seus minerais.
Eu gostaria de ser Francisco, nem que fosse apenas por uma hora. Nã o porque o escritor
Renan o chamou "ú nico verdadeiro cristã o depois de Cristo"; nem porque Daniel Lord o
descreveu como "o mais semelhante a Cristo entre todos os santos"; nem ainda porque o teó logo
Romano Guardini disse que "o Galileu voltou à terra em Assis".
O segredo da transparência de Francisco se enraíza na madeira da cruz. Ele muitas vezes
entrou em êxtase diante de uma imagem do Senhor crucificado. Num momento como esse, os
pensamentos de Francisco poriam abaixo todos os meus elevados conceitos teoló gicos e me faria
esquecer meus queridos minerais. Segurança, prazer e poder cessariam sua sirene, porque eu
compreenderia o mistério da hora terceira e conheceria o amor incompará vel no coraçã o de
Jesus Cristo, que agradou o divino Pai.
Nos primeiros tempos da Ordem Franciscana, quando os frades ainda nã o estavam
familiarizados com os salmos, eles perguntaram com muita simplicidade a Francisco como
deveriam orar. Ele respondeu: "Orem deste modo: nó s o adoramos, Senhor Jesus Cristo, e o
louvamos porque, através de sua santa cruz, redimiu o mundo". Desde sua conversã o até sua
morte, Francisco se preocupou, tanto na mente quanto no coraçã o, com Jesus Cristo crucificado e
com

~ 63 ~
O poder e a sabedoria de Deus. A cruz era o motivo de sua pobreza, a fonte de sua
perfeita alegria, a alma de sua transparência. Ele era como um homem obcecado, sua mente
fervilhava com um só pensamento e seu coraçã o chamejava com um só desejo: conhecer o Cristo
crucificado.
Francisco separou o essencial do secundá rio e considerou seu modo de vida
simplesmente conseqü ência exterior de um imenso, apaixonado e determinado amor à pessoa
de Jesus. Assinar todas suas cartas com o tau, 11 fazer dele a sua bandeira exclusiva na parede da
cela, romper com a tradiçã o moná stica beneditina e fundar uma ordem mendicante, passar
semanas e meses nos carceri (grutas) em livre louvor a Deus, viver em pobreza e simplicidade
absolutas, tudo isso nã o se tratava de desejo por novidade, mas de compulsã o do amor.
O que é central no Novo Testamento deve ser centrai na vida da igreja hoje. O que era
central na vida de Francisco deveria ser central na vida do peregrino que busca uma
compreensã o cristã mais elevada e uma uniã o transparente com Deus.
Estou escrevendo estas palavras à s duas horas da madrugada da Sexta-Feira da Paixã o. O
campus da universidade está dormindo, meu espírito está sensível a Deus. Em algum lugar
distante, um rá dio está tocando. É um antigo spiritual: "Eu creio numa colina chamada monte
Calvá rio". As palavras: "Eu creio que Cristo, que foi morto na cruz, tem o poder de mudar vidas
hoje". Eu ouço Jesus proferindo a palavra profética na quietude da noite:

Irmã ozinho, talvez a coisa mais difícil para você aceitar neste momento seja o
fracasso em fazer de sua vida o que deseja. Esta é a cruz que você menos quis, a
cruz que nunca esperou, a cruz que acha mais difícil de carregar. De algum lugar
você tirou a idéia de que eu esperava que sua vida fosse uma histó ria imaculada
de sucesso, uma espiral ascendente indestrutível para a santidade. Nã o percebe
que sou realista demais para isso?
Testemunhei um Pedro afirmando três vezes nã o me conhecer, um Tiago que
quis poder em troca do serviço ao reino, um Filipe que, depois de três anos
comigo, nã o sabia que devia ver o Pai em mim e um grupo de discípulos que
estavam certos do meu fim no Calvá rio. O Novo Testamento está repleto de
homens que começaram bem e vacilaram. Entretanto, apareci a Pedro. Tiago nã o
é lembrado por sua ambiçã o, mas pelo auto-sacrifício ao reino. Filipe viu o Pai em
Cristo quando lhe mostrei o caminho. E os discípulos, antes desesperados,
tiveram coragem suficiente para me reconhecer no estranho que repartia com
eles o pã o na escuridã o da estrada para Emaú s. A questã o é esta: espero mais
fracassos seus do que você espera de si mesmo.
O mais urgente agora, irmã ozinho, é desejar o Espírito Santo. Clame, deseje
fervorosamente e ore pelo Espírito noite e dia em incansá vel intercessã o.
Somente o Espírito pode levá -lo adiante e para cima. Somente o Espírito pode
torná -lo bom e manter seus olhos fixos em mim.
Felizmente, sua vida, assim como a minha, percebe a ressurreiçã o depois do
Calvá rio. E minha natureza humana, em sua presente ressurreiçã o, obtida
completamente do esplendor da divindade, que mostra, como claro espelho, tudo
para o que você foi chamado. Se sofre comigo, você será glorificado comigo. O
destino de Cristo, seu irmã o, é seu destino. Com o apó stolo Tomé, vá a Jerusalém e
morra comigo. Quando for, lembre-se de que, quando ascendi aos lugares divinos,
nã o saí da terra. Permaneci em muitos lugares e, singularmente, em seu coraçã o.
É de sua interioridade profunda que obterá força para continuar a viagem, nada
louvando, nada valorizando, de nada se vangloriando, além da cruz que carreguei
sozinho na longa estrada do Calvá rio.

11
Nome da 19ª letra do alfabeto grego (z) e da ú ltima do alfabeto hebraico (x). É a mais antiga grafia sob a forma de cruz. Esse sinal
foi adotado por algumas ordens religiosas como símbolo da cruz de Cristo, e Francisco de Assis o utilizava como assinatura. A escolha
do tau está associada ao texto de Ezequiel 9:1-7, que fala de pessoas sendo marcadas com um "sinal" (tau) em razã o de gemerem e
chorarem pelas abominaçõ es cometidas em Jerusalé m. (N. da T.)

~ 64 ~
O poder e a sabedoria de Deus manifestam-se singularmente na morte e na ressurreiçã o
de Jesus Cristo. E, de fato, surpreendente que do maior ato de amor de Jesus flua seu maior
poder? A vida do cristã o nã o é a imitaçã o de um heró i morto. O cristã o vive em Cristo, e Cristo
vive no cristã o por meio do Espírito Santo. Somos capacitados para viver nova vida, na qual o
pecado nã o tem lugar. Se nã o o fazemos, frustramos o poder do mistério pascal por recusar a fé
no poder. "Quantas vezes os cristã os nã o parecem dispostos a acreditar que foram
transformados e que o impossível se tornou possível?", pergunta John McKenzie.

VIDA NO ESPÍRITO
Sem o Espírito Santo mediado pela cruz de Jesus, somos destinados a uma vida de medo,
vício e dor. Mas quando compreendemos a realidade da cruz e sublimamos tudo na vontade do
Espírito Santo, tocamos no rico veio do tesouro disponível pelo Espírito de Deus. Imagine a vida
com os seguintes dons:

O dom da Páscoa: libertação do medo da morte


A morte de Jesus possibilita a resposta à freqü ente e apavorante questã o da alienaçã o e
do absurdo. Tememos o fim da vida porque significa o fim de nossa influência, nosso afeto, do
tempo com nossos amados. O teó logo Wolfhart Pannenberg escreve:

A morte de Jesus privou a morte de seu poder de nos separar de Deus. Sua
morte nã o o separou de Deus. Uma vez que o Pai mantém sua comunhã o com
Jesus em sua morte na cruz, a morte perdeu seu poder de separar de Deus.
Portanto, a comunhã o com Deus está aberta a todos cuja vida terminaria em
morte. O amor de Deus pelo mundo toma-se tangível em Jesus.

A promessa do mistério pascal é que haverá tempo de sobra (interminá vel) para
conhecer, amar e se alegrar uns com os outros no reino de Deus.

O dom de Dietrich Bonhoeffer: o amor que perdoa


"Quando ainda éramos fracos, Cristo morreu pelos ímpios", conforme Romanos 5:6. O
sinal indiscutível dos cristã os que foram perdoados é a habilidade de amar seus inimigos. É um
dom extraordiná rio e a marca infalível da atividade do Espírito Santo. "Amem, porém, os seus
inimigos, façam-lhes o bem [...] Entã o, a recompensa que terã o será grande e vocês serã o filhos
do Altíssimo, porque ele é bondoso para com os ingratos e maus" (Lc 6:35).
Nã o possuímos a mente de Cristo até nos reconhecermos como inimigos perdoados de
Deus e, de certa forma, estender o perdã o e a reconciliaçã o aos nossos inimigos. Jesus Cristo
crucificado nã o é somente um exemplo heró ico para a igreja; é o poder de Deus, força viva que
transforma nossa vida por sua Palavra: "Pai, perdoa-lhes, pois nã o sabem o que estã o fazendo"
(Lc 23:34). Em cada ato de perdã o pessoal, o cristã o encontra o Deus que Moisés conheceu: "E
passou diante de Moisés, proclamando: "SENHOR, SENHOR, Deus compassivo e misericordioso,
paciente, cheio de amor e de fidelidade, que mantém o seu amor a milhares e perdoa a maldade,
a rebeliã o e o pecado (Ex 34:6-7).

O dom do cobrador de impostos: pobreza de espírito


"Ele nem ousava olhar para o céu, mas batendo no peito, dizia: 'Deus, tem misericó rdia
de mim, que sou pecador'" (Lc 18:13). O poeta francês Paul Claudel disse que o maior pecado é
perder o sentido do pecado. O homem sem um sentido vivo do horror do pecado nã o conhece
Jesus Cristo crucificado.
O conhecimento de que o pecado existe e de que somos pecadores só vem da cruz.
Podemos nos iludir, acreditando que o pecado é simplesmente uma aberraçã o ou falta de

~ 65 ~
maturidade; que a preocupaçã o com segurança, prazer e poder é causada por estruturas sociais
opressivas e idiossincrasias de personalidade; que somos pecaminosos, mas nã o pecadores, já
que somos meras vítimas de circunstâ ncias, compulsõ es, meio ambiente, há bitos, educaçã o e
assim por diante.
O sofrimento de Cristo expõ e essas mentiras e racionalizaçõ es na cruz da verdade.
Mesmo a ú ltima perversã o da verdade a que nos apegamos — a gabarolice de que somos, ao
contrá rio, bastante humildes ao negar qualquer semelhança com Cristo — desaparece quando
ficamos frente a frente com o crucificado Filho do homem.

O dom de madre Teresa: serviço abnegado


Esse dom incorpora a mente de Cristo. É o modo mais eficaz de transcender os desejos
que continuamente focalizam a atençã o no "eu". Madre Teresa se dedicou aos que a maioria de
nó s atravessaria a rua para evitar: o sujo, o doente, o infetado, o desesperado. Sua motivaçã o nã o
era conseguir reconhecimento ou mesmo o agradá vel sentimento de ajudar outros. Para ela,
servir significava dar amor, doar-se. Ela falou uma vez de seu trabalho: "Nã o é quanto fazemos,
mas quanto amor colocamos no que fazemos. Nã o é quanto nos doamos, mas quanto amor
colocamos em tal doaçã o".
Ao sofre na cruz, Jesus abandona completamente seu "eu". Ele é o homem para os outros.
Ele esquece de si. Preocupa-se com os apó stolos (Jo 18:8). Tenta sensibilizar Pilatos. Conforta as
mulheres a caminho da cruz. Perdoa o ladrã o. Oferece conforto a Maria e Joã o quando se
encontram ao pé da cruz. O dom mediador aqui é o poder de sair de si mesmo através do serviço
abnegado.

O dom de Francisco de Assis: um coração alegre


"Sejam agradecidos" (Cl 3:15). A açã o de graças é o câ ntico do pecador salvo. Já vimos
que, imerso na consciência do Calvá rio, do amor misericordioso do Deus redentor, o teor da vida
de Francisco se tornou em humilde e alegre açã o de graças. Por nenhum mérito nosso, mas pela
misericó rdia divina, fomos chamados das trevas para a magnífica luz. "Pois vocês sã o salvos pela
graça, por meio da fé — e isto nã o vem de vocês — é dom de Deus" (Ef 2:8).
O desnecessá rio sofrimento emocional associado com o viver por nosso desejo de
segurança, prazer e poder (depressã o, ansiedade, culpa, medo e tristeza) é subjugado pelo poder
transformador do amor de Jesus Cristo. A cruz é uma confrontaçã o com a irresistível bondade de
Deus e o mistério de seu amor. Deus se agrada quando trabalhamos e se deleita quando
cantamos. E o pecador salvo canta: "É justo lhe dar graças e louvor". John J. English escreve:

Eu me lembro da mudança de uma pessoa em particular. Um grupo de pessoas


que conhecia o homem há anos se afastou dele, pois nã o podiam suportar o modo
como mudou. Até mesmo sua expressã o facial foi transformada. De repente, ele se
libertara. A experiência bá sica era a profunda percepçã o de que Deus o amava.
Ele havia alcançado muito pela oraçã o ao nosso Senhor suspenso na cruz. E foi
profundamente tocado pelas palavras de Paulo: "Mas Deus demonstra seu amor
por nó s: Cristo morreu em nosso favor quando ainda éramos pecadores". A
experiência que possuía do amor humano nã o tinha o poder de libertá -lo como
fez aquela simples oraçã o diante do Senhor crucificado.

O dom do Cristo crucificado: fidelidade ao compromisso com a vida de alguém


No Calvá rio, Jesus sela sua eleiçã o como Messias. Suporta tudo com firmeza, apesar da
solidã o e da desolaçã o que provocam enorme pressã o sobre sua autoconsciência de Filho-Servo-
Amado. Participamos do pessach (em hebraico, "passagem") de Jesus ao compartilhar o
sofrimento e a morte advindos da firme manutençã o de nosso compromisso.
O poder das trevas (segurança, prazer e poder) tenta nos seduzir a retornar, a renegar
nosso compromisso, a renunciar à obediência a Cristo por uma espécie de auto-aniquilaçã o física
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ou moral. A cruz nos confronta com o custo do discipulado, nos lembra que nã o há Pentecostes
fá cil e leva dentro de si o poder vivo que nos capacita a suportar inevitá veis humilhaçõ es,
rejeiçõ es, sacrificios e solidã o impostos pela viagem a uma consciência cristã elevada.

O dom de Maria Madalena: o amor desinteressado


No reino do discipulado cristã o, é possível que a igreja nunca tenha congregado alguém
que amasse mais Jesus Cristo que Maria Madalena. O foco de sua atençã o ao longo da
crucificaçã o nã o foi o sofrimento, mas o Cristo sofredor, que a amou e se entregou por ela. Nã o
devemos aceitar que essas palavras sejam interpretadas como alegoria. O amor de Jesus Cristo
na cruz era uma realidade ardente por Madalena, e a vida dessa mulher é totalmente
incompreensível sem isso. Se for para falar da vida cristã, da espiritualidade autêntica ou dons
do Espírito Santo, deve-se falar de Jesus Cristo pregado na cruz, ou nã o se falar nada.
Em um comentá rio sobre o jantar na casa de Simã o, o fariseu (Lc 7:36-50), Père de la
Colombière disse: "É certo que, de todos ali presentes, quem mais honra o Senhor é a pecadora,
que está tã o convencida da infinita misericó rdia de Deus que todos os seus pecados lhe parecem
apenas um á tomo na presença dessa misericó rdia".
Jesus disse: "E conhecerã o a verdade, e a verdade os libertará " (Jo 8:32). Qual é a verdade
bá sica que liberta Maria Madalena? É que Deus a ama com um amor extraordiná rio. Esse dom —
nã o a cogniçã o intelectual, mas a consciência de sua experiência — é mediado pelo Espírito do
Cristo crucificado. A experiência pessoal viva do amor de Jesus Cristo é o poder e a sabedoria
que ilumina, transforma e transfigura Maria Madalena e todos os amantes extravagantes em
histó ria cristã. A palavra profética do Senhor a Margery Kempe, de Lynn, permanece sempre
antiga, sempre atual: "Mais agradá vel a mim do que todas as suas oraçõ es, penitências e boas
obras é que você acredite que eu a amo".

CRISTIANISMO AUTÊNTICO
No inverno de 1968, morei numa caverna no deserto de Zaragoza, na Espanha.
Encravada em uma montanha de granito, ela se encontra a cerca de 1.800 metros acima do nível
do mar. Ali nã o via outra face nem ouvia o som de uma voz humana, exceto nas manhã s de
domingo, quando um irmã o da aldeia de Farlete trazia comida, á gua e querosene para o lampiã o
que usava para ler à noite.
A caverna fora compartimentada: à direita havia uma capela com um notá vel altar de
pedra, um taberná culo feito de ferro forjado e entrelaçado com veludo vermelho, que o
assemelhava a uma arca do tesouro, e um grande crucifixo na parede de fundo. O lado esquerdo
era equipado com uma laje de pedra que servia de cama, uma escrivaninha de pedra, uma
cadeira de madeira, um fogareiro e um lampiã o de querosene. Eu me levantava toda manhã à s
duas horas para o que a igreja antiga chamava "adoraçã o noturna".
Na noite de 13 de dezembro de 1968, durante o que começou como uma longa e solitá ria
hora de oraçã o, ouvi Jesus dizer: "Por amor a você, deixei a companhia de meu Pai. Vim até você,
que correu de mim, fugiu, nã o quis ouvir meu nome. Por amor a você, fui coberto de cuspe,
perfurado e espancado e preso à madeira da cruz".
Justamente nessa manhã , num período de tranqü ilidade, percebi que aquelas palavras
ainda estã o acesas em minha vida. Mesmo que esteja em estado de pecado ou de graça,
fidelidade ou infidelidade, as palavras permanecem. Naquela noite de 1968, olhei muito tempo
para o crucifixo e, simbolicamente, vi o sangue fluindo de cada ferida e poro do corpo de Cristo.
Ouvi o clamor de seu sangue: "Isto nã o é brincadeira. Nã o é um jogo ou uma piada o fato de que o
amei".
Quanto mais olhava, mais compreendia que nenhum homem havia me amado e que
nenhuma mulher jamais poderia me amar como ele. Aprendi naquela noite o que um sá bio
franciscano me disse no dia em que entrei para a ordem: "Quando você conhecer o amor de
Jesus Cristo, nada mais no mundo parecerá belo ou desejá vel".

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Há quanto tempo você é cristã o? Há quanto tempo tem vivido no Espírito? Sabe o que é
amar Jesus Cristo? O que é ter seu amor insatisfeito, suportado na solidã o e pronto para abrir
seu coraçã o inquieto, voraz? Você sabe o que é ter a dor aplacada, o vazio preenchido, alcançar e
abraçar este Homem santo e dizer sinceramente: "Nã o posso deixá-lo ir. Nos bons e nos maus
tempos, na vitó ria e na derrota, minha vida nã o tem sentido sem você"? Se essa experiência nã o
iluminou sua vida com seu resplendor, entã o, independentemente de idade, disposiçã o ou
condiçã o de vida, você nã o compreende o que significa ser cristã o.
Isso, e somente isso, é o cristianismo autêntico. Nã o um có digo do que se pode ou nã o se
pode fazer; nã o uma moralizaçã o tediosa; nã o uma lista de ordens proibitivas e, certamente, nã o
o mínimo necessá rio exigido para se evitar as dores do inferno. A vida no Espírito é a emoçã o e o
incitamento de ser amado por Jesus Cristo e por ele estar apaixonado. Se o Espírito nã o queimar,
ele nã o existe. A oraçã o que brota de meu coraçã o é essa. Se você ainda nã o a possui, pode vir a
conhecê-la com uma insuperá vel e apaixonada alegria como a que conheci no amor do Jesus
Cristo crucificado, no poder de Deus e em sua sabedoria.

EPÍLOGO
A REVOLUÇÃO

O Senhor me disse que desejava que eu fosse um louco, de um tipo jamais visto antes",
disse Francisco de Assis. Uma suave revoluçã o acontecerá pela humilde organizaçã o dos cristã os
loucos que estã o dispostos a subverter a ordem estabelecida ao reorganizar sua vida em torno
da mente de Cristo. Sua questã o é a transparência por meio da veracidade, e seu estilo de vida
será moldado pelo evangelho de Jesus Cristo.
Se "a verdade consiste em que a mente dê à s coisas a importâ ncia que elas têm na
realidade", nas palavras de Jean Danielou, entã o o desejo de segurança, prazer e poder será
avaliado de forma realista como sendo palha, e o domínio de Jesus Cristo pragmaticamente
afirmado como a ordem da verdadeira realidade.
Os loucos por Cristo sã o violentos, como o evangelho ordena que sejam (Mt 11:12), mas a
violência se aplica a eles pró prios (Gl 5:24). Sua bondade é o belo fruto da reverência a Deus, da
compaixã o pelo mundo e do respeito a si mesmos. Suas prioridades sã o pessoais, determinadas
nã o pela religiã o popular do momento, por políticas de poder ou pela cultura do consumo, mas
pelo Sermã o do Monte e pelo mistério pascal.
Para o louco, Jesus Cristo nã o é um sá bio ou um admirá vel reformador: é o segundo
Adã o, autor de uma nova criaçã o. "Estou fazendo novas todas as coisas!" (Ap 21:5). Jesus
redirecionou a realidade e deu-lhe uma orientaçã o revolucioná ria. Jesus nã o arrumou o mundo.
Ele o levou a uma freada barulhenta. O que ele refez a partir dos materiais humanos da velha
ordem nã o foram pessoas mais agradá veis, com moralidades melhores, mas coisas novas (2Co
5:17).
As categorias de tais revolucioná rios transcendem todas as distinçõ es classistas. Homem
versus mulher, clérigo versus leigo, progressista versus conservador, carismá tico versus
tradicional, moderno versus pó s-moderno — todos estã o dissolvidos no amor unificador do
Espírito (Gl 3:28). As ú nicas exigências para ser membro é a consciência empírica de Jesus como
Senhor redentor e de Deus como Aba, a rendiçã o incondicional ao domínio do Espírito Santo e o
comprometimento constante com a missã o de construir o novo céu e a nova terra.
O sentido de missã o entre os loucos causará destruiçã o na vizinhança. Medos serã o
despertados e rumores circularã o de que tais pessoas estã o ficando "estranhas". Os amigos os

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aconselharã o a se restabelecer e a fazer algo construtivo com suas vidas (como procurar
segurança, prazer ou poder). Os vizinhos cochicharã o que sã o faná ticos religiosos. Os familiares
darã o demonstraçõ es ostensivas de suas realizaçõ es duvidosas. Estratagemas serã o planejados
para levá -los a ver e sentir como sã o de fato: loucos. Catherine de Hueck Doherty diz: "É como se
o mundo precisasse de loucos — loucos por Cristo! Loucos pelo amor de Deus! Pois sã o tais
loucos que mudam a face da terra".
Conforme seria de esperar (Jo 15:18), esses loucos serã o ofendidos. O cristianismo hoje é
basicamente inofensivo, um tipo de religiã o que jamais transformará coisa alguma. Jesus Cristo,
o mestre revolucioná rio, transgrediu a ordem religiosa e política da Palestina. Os cristã os
também sã o compelidos a transgredir e, se nã o o fizerem, isso é mau sinal: nã o estarã o sendo
revolucioná rios de fato.
Talvez a motivaçã o da revoluçã o ou sua inspiraçã o orientadora possa ser mais bem
descrita por um sonho que tive durante um retiro de silêncio na selva. Meu conselheiro
espiritual o considerou reflexo fiel da mensagem do evangelho e recomendou que fosse
compartilhado com o povo de Deus.
Em meu sonho, vejo um homem andando no corredor da morte e uma mulher sendo
preparada para receber a injeçã o letal num presídio do Texas. Vejo os fornos de Auschwitz e
Dachau e caminhõ es carregados de corpos de judeus mortos circulando na noite. Vejo Hiroshima
e 95 mil corpos queimados, carbonizados, irreconhecíveis, espalhados por ruas e ladeiras. Vejo o
corpo amarrotado de John F. Kennedy tombado na morte. Vejo a princesa Diana depositada num
caixã o fechado na catedral de Londres.
Agora vejo fileiras de cruzes fora do muro da antiga cidade de Jerusalém com centenas
de corpos pregados a elas: ladrõ es, rebeldes, assassinos. Em uma colina, vejo mais três cruzes
com os corpos de outros três homens mortos, e todos parecem ser o mesmo indivíduo;
entretanto, o homem do meio parece ter sido atacado e brutalizado um pouco mais do que os
outros.
Em seguida, passados dois dias, encontro-me na praça de uma grande cidade. Um grupo
de homens correm ao redor como se estivessem loucos. Estã o dizendo a coisa mais absurda: a
crucificaçã o do homem do meio, nas três cruzes, nã o fora apenas outra execuçã o política. Estã o
dizendo que é o evento mais importante na histó ria do mundo. Estã o dizendo que o homem
agora é o centro da fé e o objeto de adoraçã o de homens de todas as idades e em todo o tempo
por vir. Estã o fora de si de tanta alegria.
Fico desnorteado. A proclamaçã o alucinada nã o tem nenhum precedente em meu estudo
das religiõ es mundiais. Nã o se ajusta a nenhuma das minhas categorias teoló gicas. Nos termos
da minha compreensã o religiosa, é um escâ ndalo, uma afronta. Além do mais, esses homens
parecem um pouco fantasmagó ricos, e alguém está dizendo que a mulher em sua companhia
fora uma prostituta. De qualquer maneira, o homem estava morto. Eu o vira, e ele estava tã o
morto quanto Kennedy deitado no caixã o.
Mas, só para ter certeza, volto à colina. Enquanto estou ali, olhando para o que era agora
uma cruz vazia, um homem surge na linha do horizonte. De algum lugar, um poderoso coro está
cantando: "Rei dos reis e Senhor dos senhores".
Dou uma olhada. Já nã o estou só . Até onde a vista alcança, a paisagem e pontilhada por
pessoas. Todas estã o cantando "Rei dos reis e Senhor dos senhores". O homem se dirige a passos
largos para o centro. Ele está banhado de luz. Como se duas cortinas fossem levantadas, os céus
se abrem e estã o repletos dos seres mais belos que eu já vira.
O homem pá ra e levanta a mã o. A terra fica em silêncio. Olho para o ele. Sua face é
incandescente como o brilho do sol ao amanhecer, seus olhos fulguram como estrelas vésper. "A
paz esteja com você", ele diz. Suas palavras sã o mais uma ordem do que uma saudaçã o. O
universo se aprofunda numa ainda maior quietude.
"Venha a mim", ele diz, "quando chamá-lo por seu nome. Sim, eu sei seu nome. Eu o
conheci acordado e dormindo. Antes que uma palavra estivesse na ponta de sua língua, eu sabia
todas elas. Examinei cada movimento seu. Estou familiarizado com todos os seus passos. Mais do
que um pastor conhece suas ovelhas, eu o conheço pelo nome. Venha a mim".

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Tem início uma lista de chamada. Vejo Bob Dylan e Bono. Francisco de Assis aparece,
seguido por Martinho Lutero. Vejo Howard Hughes e Dorothy Day, Adolph Hitler e Mohandas
Gandhi, Nelson Rockefeller e Charles de Foucauld. Os seguintes sã o Agostinho e Ray Charles, o
profeta Amó s e Hugh Hefher, Jeremias e David Letterman, Maria e José, Paris Hilton e Brad Pitt,
Pedro, Tiago e Joã o. Kim Jong-Il e George W. Bush. Há ainda meu irmã o, meu vizinho, o sujeito
que tentou lavar meu pá ra-brisa nas ruas de Nova York. Eles vêm sem parar. Todas as pessoas
formosas, famosas e poderosas e os bilhõ es de anô nimos, nã o famosos, nem celebridades.
Ouço chamar meu nome: "Brennan". Quando dou um passo à frente, o homem olha para
mim e, em seguida, através de mim. Ele olha através de todo o meu blefe e minha retó rica, olha
através de meus livros e retiros, para além de toda a minha racionalizaçã o, minimizaçã o e
justificaçã o. Pela primeira vez, sou visto e conhecido como realmente sou. Tremendo, pergunto:
Qual é a minha sentença, Senhor? Ele responde firme, mas suavemente:
Nã o sou seu juiz — e me entrega o Livro. — A palavra que proferi já julgou você.
Uma longa pausa. Entã o ele sorri. Caminho até ele e lhe toco a face. Ele toma minha mã o e
vamos para casa.
O conteú do desse sonho é mais real do que o livro que você tem em mã os. Num dia e
hora exatos, conhecidos somente pelo Pai (Mt 24:36), Jesus Cristo, o Rei da gló ria, ofuscará o
brilho de todas as pessoas formosas, famosas e poderosas que já viveram. Cada homem, cada
mulher que alguma vez respirou será avaliado e medido somente em termos de sua relaçã o com
o carpinteiro de Nazaré. Esse é o reino da verdadeira realidade. O domínio de Jesus Cristo e sua
primazia na ordem criada (Ef 1:10) estã o no centro da proclamaçã o do evangelho. Essa é a
realidade.
Quando os loucos que buscam viver com a mente de Cristo perguntam a si mesmos "Por
que existo?", eles respondem: "Por causa de Jesus Cristo". Se os anjos se perguntarem, a resposta
será a mesma: "Por causa de Jesus Cristo". Se o universo inteiro de repente pudesse falar, de
norte a sul e de leste a oeste, ele clamaria em coro: "Nó s existimos por causa de Cristo".
O nome de Jesus ecoaria nos mares, nas montanhas e nos vales. Seria audível no
tamborilar da chuva. Seria escrito no céu com raios. As tempestades rugiriam o nome "Senhor
Jesus Cristo Deus-Heró i", e as montanhas o ecoariam de volta. O sol, em sua marcha pelos céus
rumo ao oeste, cantaria um hino ensurdecedor: "Todo o universo está repleto de Cristo".
Se houver qualquer prioridade em nossa vida pessoal ou profissional mais importante do
que o domínio de Jesus Cristo, desqualificamos a nó s mesmos como testemunhas do evangelho e
como membros da suave revoluçã o. Desde o dia em que Jesus rompeu os laços da morte e a era
messiâ nica irrompeu na histó ria, há uma nova agenda, um conjunto sem igual de prioridades e
uma hierarquia revolucioná ria de valores para o crente.
O carpinteiro nã o somente refinou as éticas platô nicas ou aristotélicas, reordenou a
espiritualidade do Antigo Testamento ou renovou a velha criaçã o. Ele trouxe uma revoluçã o.
Precisamos renunciar a tudo o que possuímos, nã o apenas a maior parte. Precisamos abandonar
nosso velho modo de vida, e nã o corrigir apenas algumas de suas poucas aberraçõ es. Devemos
ser uma criaçã o completamente nova, nã o simplesmente uma versã o renovada. Seremos
transformados de uma gló ria a outra, até mesmo na pró pria imagem do Senhor — transparente.
A mente será renovada por uma revoluçã o espiritual.
O pecado capital, naturalmente, é continuar a agir como se nunca houvesse acontecido.
Quando temos fome de Deus, nos movemos e agimos, ficamos alertas e reativos. Quando nã o a
temos, somos diletantes jogando jogos espirituais. "Deus nã o tem importâ ncia nenhuma, a nã o
ser que ele tenha absoluta importâ ncia", disse Abraham Heschel.
O intenso desejo de aprender a pensar como Jesus já é um sinal da presença de Deus. O
resto é operaçã o e atividade do Espírito Santo. Suponho que a maioria de nó s esteja na mesma
posiçã o dos gregos que se aproximaram de Filipe e disseram: "Queremos ver Jesus" (Jo 12:21). A
ú nica questã o é: "Com que intensidade?".

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