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MAI – AGO 2017 #16

Vinho do Sol
Tecnologia e manejo
sofisticados colocam o
Semiárido brasileiro no
mapa da vitivinicultura
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CARTA AO LEITOR

TRADIÇÃO E FUTURO

O vinho acompanha a humanidade desde tempos remotos, e cola”. No caso, relacionado à manipulação de genes com
preenchendo as páginas da história e da mitologia, e é, tradi- precisão, rapidez e menor custo.
cionalmente, um produto de regiões de clima temperado. A pesquisa agropecuária trabalha com os olhos voltados
Agora, essa bebida secular anda desafiando fronteiras. As também para o futuro. Não é de se estranhar que cientistas
videiras que lhe dão origem desenham uma nova geografia brasileiros estejam buscando plantas capazes de enfrentar
e crescem onde o sol forte reina o ano inteiro. Seca, altas doenças que nem sequer entraram no País. É o caso do desen-
temperaturas, pouca chuva não parecem impedi-las e não volvimento de variedades de arroz resistentes a Xanthomonas
amedrontam pesquisadores e produtores determinados a oryzae pv. oryzae, bactéria de difícil controle químico, que
obter, mesmo nessas condições, vinhos de qualidade. É o que dizima até 50% das suas lavouras. O Brasil está preparado
se observa no Vale do Submédio São Francisco, no Semiárido para enfrentá-la, graças ao melhoramento genético preven-
nordestino, onde vinhos tranquilos e espumantes vêm sendo tivo, que segue a máxima de que é melhor prevenir do que
produzidos durante todo o ano, graças à associação entre remediar. As primeiras linhagens de arroz com resistência
características naturais da região e tecnologia gerada pela à bactéria foram validadas no Panamá, como explicado no
pesquisa agropecuária. espaço da editoria Pesquisa.
Esse é o tema da reportagem Especial desta edição da Antecipar-se aos problemas que podem atingir a huma-
Ciência para a Vida. A matéria conta, ainda, experiências nidade no futuro, investigando, já agora, possíveis soluções,
de jovens produtores entusiasmados com as novas possibi- também é a preocupação de pesquisadores envolvidos na
lidades de trabalho, realização pessoal, renda e geração de busca de alternativas para a geração de energia, a exemplo do
emprego proporcionadas por esse vinho solar, que inspirou professor Fernando Galembeck. Nas páginas da entrevista,
nossa primeira capa totalmente ilustrada. A designer Luciana ele fala sobre higroeletricidade, seu potencial e limitações, e
Fernandes guiou-se por Van Gogh, artista que utilizava como também sobre outros estudos na área.
técnica a tinta a óleo e pinceladas justapostas lado a lado. Recomendamos ainda a leitura de reportagem sobre a
Na capa, foi usado giz pastel oleoso, que, com seu toque parceria entre Brasil e África, que vem fortalecendo a cotoni-
macio e preciso, deu ritmo à ilustração. É marcante na capa cultura em solo africano, na editoria Internacional. No artigo,
o contraste entre as cores − o vinho da bebida, o amarelo do o tema selecionado foram os Objetivos de Desenvolvimento
sol e o verde do mandacaru, planta típica da região semiá- Sustentável, aprovados pela Organização das Nações Unidas.
rida, assim como os tons de terra, que caracterizam a aridez e Eles deverão inspirar políticas públicas que guiarão a huma-
secura do solo. nidade nos próximos anos.
O vinho tropical é uma quebra de paradigmas, assim Esta edição, a 16, encerra um ciclo em que pudemos
como a Clustered Regularly Interspaced Short Palindromic entregar aos leitores nossa publicação de forma impressa e
Repeats (CRISPR), uma nova tecnologia que veio para disponibilizá-la, ao mesmo tempo, na internet. A partir da
revolucionar a genômica, permitindo identificar, no DNA, próxima edição, uma nova revista, digital e contemporânea,
pedaços de genoma de interesse e modificá-los de acordo poderá ser acessada apenas no endereço www.embrapa.
com necessidades da pesquisa. Funciona, de forma metafó- br/revista. O compromisso com a qualidade continuará o
rica, como um corretor ortográfico ou um processo de “corta mesmo.

—— Os editores

3
03 06 08 14
CARTA AO LEITOR

NOTAS

ENTREVISTA

ESPECIAL

O químico Fernando
Galembeck, professor
da Unicamp, fala
sobre o potencial da
higroeletricidade, uma
das suas frentes de
pesquisa em busca Nova geografia do vinho vem se
de alternativas para a estabelecendo em países de diferentes
geração de energia. continentes. É uma vitivinicultura particular
e diversa em relação àquela praticada
tradicionalmente em regiões de clima
temperado, altamente tecnológica e que
desafia a pesquisa agropecuária e jovens
produtores.

4 - Ciência para a vida


Presidente
Maurício Lopes

Diretores-Executivos
Ladislau Martin Neto
Vania Castiglioni
Waldyr Stumpf

Publicação de responsabilidade da
Secretaria de Comunicação da Embrapa

30 48
Chefe da Secretaria de Comunicação
Gilceana Galerani
Coordenador de Comunicação
em Ciência e Tecnologia

54 Jorge Duarte

40
Coordenador de Comunicação Digital
Daniel Medeiros
Coordenadora de Comunicação Institucional
Heloiza Dias da Silva
Coordenador de Comunicação Mercadológica
Gustavo Porpino

ARTIGO
CENÁRIOS

INTERNACIONAL
EXPEDIENTE

Editores
PESQUISA

Marita Féres Cardillo, Juliana


Miura e Fabio Reynol

Projeto Gráfico
André Scofano e Nayara Brito

Designers
Ana Elisa Sidrim, Bruno Imbroisi,
Fernando Jackson, Luciana Fernandes,
Renato Tardim, Roberta Barbosa

Capa
Luciana Fernandes

Revisão
Marcela Bravo Esteves

Colaboração
Os Objetivos de Eduardo Rodrigues e
Maria Eugênia Ribeiro
Desenvolvimento
Arte Finalização
Sustentável Roberta Barbosa

(ODS) são Consultores científicos para esta edição

tema do artigo Alexandre Nepomuceno, Aline Telles Biasoto,


Eduardo Melo, Elíbio Rech, Giuliano Elias

de Maria José Pereira, Jorge Tonietto, José Geraldo Di Stéfano,


Ladislau Martin Neto, Márcio Elias, Maria José
Amstalden Sampaio, Patrícia Coelho de Souza Leão

Graças ao Sampaio e Ctp – Impressão – Acabamento


Embrapa Informação Tecnológica
Técnica melhoramento Benim, Burquina Osório Vilela
Tiragem
revolucionária, a preventivo, o Faso, Chade, Filho. 5.000 exemplares

CRISPR permite Brasil está mais Mali e Togo se


ligar e desligar preparado para unem ao Brasil.
genes de forma enfrentar a A parceria,
precisa, rápida Xanthomonas baseada no
e com baixo oryzae pv. diálogo e troca
custo. Enzimas Oryzae, antes de experiências,
são usadas para mesmo que ela resulta no
cortar trechos do entre no País. A desenvolvimento
DNA em pontos bactéria dizima da cotonicultura
determinados, plantações em solo africano.
sem inclusão, de arroz e Parque Estação Biológica s/nº
necessariamente, causa perdas Edifício Sede 70.770-900, Brasília-DF
Fone: 61 3448 4834 | Fax: 61 3347 4860
de genes de econômicas sac@embrapa.br | www.embrapa.br

outras espécies. importantes.

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NOTAS

QUALIDADE DA CARNE BIOSSEGURANÇA EM


EM PÁGINA ESPECIAL PESQUISA ANIMAL
O Brasil é um dos mais importantes produtores de proteína

Foto: Kadijah Suleiman / Embrapa


animal no mundo, resultado de décadas de investimentos
em tecnologia que elevaram a produtividade e a qualidade
da carne brasileira, fazendo com que ela se tornasse compe-
titiva e chegasse ao mercado de mais de 150 países. Com
o objetivo de disponibilizar para a sociedade parte desse
conhecimento técnico-científico, num momento em que
denúncias de fraudes colocaram em xeque os padrões de
excelência alcançados por esse produto brasileiro, é que
a Embrapa lançou em março uma página especial sobre
a Qualidade da Carne no seu Portal. A página foi estru-
turada a partir de informações sobre as cadeias produ-
tivas de carne bovina, suína e de aves, agregando tecno- O Laboratório Multiusuário de Biossegurança para a Pecuária
logias e publicações voltadas para as diversas fases do (Biopec), instalado na Embrapa Gado de Corte, é a primeira
sistema de produção: genética, nutrição, boas práticas estrutura do Brasil de alto nível de biossegurança em pesquisa
de criação, sanidade, reprodução, processamento, trans- animal e vai aumentar a capacidade do País de garantir a
porte, abate, rastreabilidade e segurança do alimento. • qualidade sanitária dos rebanhos. É também o mais moderno
— Por Robinson Cipriano (para a revista XXI Ciência para a vida) laboratório de pesquisa em segurança e qualidade da carne
‹ navegue ›————————————————— da América Latina. Seu conjunto de instalações possibilita a
https://www.embrapa.br/qualidade-da-carne/ análise de bovinos, aves, suínos e de outras cadeias produtivas
—————————————————————————
de carne. Com o Biopec, o Brasil muda de estágio no que diz
respeito ao desenvolvimento de pesquisas em pecuária. Será
possível realizar, em um mesmo local, estudos relacionados a
FRUTOS LIMPOS agentes de alto risco, como vírus da febre aftosa, da influenza
SEM USO DE ÁGUA aviária, da influenza suína, raiva, brucelose, tuberculose.
Outra novidade é a possibilidade de pesquisar em um único
Foto: Leticia Longo / Embrapa

laboratório bactérias causadoras de tuberculose bovina, botu-


lismo, anthrax, salmonelose e de intoxicações alimentares. •
— Por Kadijah Suleiman (Notícias, portal Embrapa)
‹ navegue ›—————————————————
http://bit.ly/2njKzSM
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Equipamento móvel e compacto que não usa água na


limpeza vai ajudar produtores a classificar tomates e outros
frutos e hortaliças, no próprio campo, e contribuir para a redução de perdas no pós-colheita. Os trabalhos que deram origem ao
equipamento foram coordenados pelo pesquisador da Embrapa Instrumentação Marcos David Ferreira. O protótipo, desenvol-
vido em formato vertical, usa um sistema de escova de três vias em helicoide, que aumenta a eficiência de limpeza e permite clas-
sificação mais uniforme e menor incidência de danos físicos ao produto. Os métodos de seleção em máquinas estáticas conven-
cionais podem provocar quase três vezes mais lesões. Redução do tempo para chegar aos consumidores e agregação de valor ao
produto são outras vantagens apontadas pelo pesquisador. A economia de água, recurso não empregado no processo, é significa-
tiva, pois a limpeza convencional do tomate, por exemplo, pode consumir até 500 m3 de água por mês em algumas unidades de
beneficiamento. Licenciado para a empresa paulista MVisia (http://www.mvisia.com.br), o equipamento representa uma alterna-
tiva aos agricultores que têm pouco acesso à tecnologia automatizada. ‹ navegue ›—————————————————
A empresa pretende disponibilizá-lo ao mercado até o fim de junho. • http://bit.ly/2nLq2KU
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— Por Joana Silva (Agência Embrapa de Notícias)

6 - Ciência para a vida


CÁLCULO SIMPLES DE CAIXAS DE PIZZA NO
CUSTOS DA PECUÁRIA REFLORESTAMENTO

Foto: Felipe Ferreira / Embrapa


Recém-lançado pela Embrapa, o sistema CUSTObov Foto: Kadijah Suleiman / Embrapa O uso de papelão – até mesmo caixas usadas de pizza −
permite aos pecuaristas calcular o custo de produção da para controle do capim no coroamento (capina ao redor)
pecuária de corte e as margens que refletem o desem- de mudas em ações de reflorestamento pode auxiliar
penho econômico da propriedade. O sistema fornece na reabilitação de áreas degradadas, com um custo até
ao produtor análises que facilitam o controle financeiro 50% menor em comparação aos métodos tradicionais.
de seu negócio. Desenvolvida no formato de planilha A técnica, desenvolvida por pesquisadores da Embrapa
eletrônica (MS Excel), a ferramenta aceita reprodução Agrobiologia, viabiliza também a adoção da recuperação
sem limites, podendo-se criar arquivos que representem de pastagens por pequenos produtores. O método já é
várias fazendas ou diferentes exercícios para uma mesma utilizado em lavouras, mas é novidade em ações de reflo-
propriedade. De acordo com seu idealizador, o pesqui- restamento com espécies nativas. Nos projetos de recom-
sador da Embrapa Gado de Corte Fernando Paim Costa, posição florestal, a maior parte dos custos está associada
um grande número de produtores não tem na ponta do ao controle de plantas daninhas que colocam em risco a
lápis os gastos para produzir uma arroba de boi ou um sobrevivência das mudas. Cerca de dois terços do investi-
bezerro e todo o movimento financeiro envolvido. “E, mento são destinados ao controle da chamada matocom-
mesmo que ele registre tudo, não existe uma ferramenta petição. “Herbicidas, solução comum na agricultura, são
na qual possa inserir os dados”, diz. A pesquisadora pouco adotados no setor florestal com foco ambiental,
Mariana Pereira, do mesmo centro de pesquisa, chama porque são áreas próximas a recursos hídricos”, explica
atenção para o fato de que, embora o aplicativo seja o pesquisador Alexander Resende. No caso da técnica,
primordialmente uma ferramenta de controle voltado a disco ou placa de papelão, nova ou reutilizada é usada
avaliar situações reais, também é Art
e:
Lu
iz
para proteger a base das mudas de espécies florestais
Le
possível usá-lo como auxílio nos primeiros anos de plantio. A proteção faz com que
al
/E

nos processos de planeja- as gramíneas, que competem com as espécies de reflo-


m
bra

mento e tomada de deci- restamento, não se desenvolvam. Os experimentos no


pa

sões. O CUSTObov está campo mostraram, ainda, que o papelão aumenta a


disponível gratuitamente taxa de sobrevivência das mudas. “De onze espécies
no site da Embrapa Gado avaliadas, nove apresentaram índice de sobrevivência
de Corte. • igual ou superior a 80% quando coroadas com papelão,
—  Por Kadijah Suleiman enquanto apenas três atingiram esse índice quando
(Agência Embrapa de Notícias) usada a enxada”, diz o pesquisador Guilherme Chaer. •
— Por Ana Lucia Ferreira (Agência Embrapa de Notícias)
‹ navegue ›————————————————— ‹ navegue ›—————————————————
http://bit.ly/2nLCElt http://bit.ly/2oqmZWD
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ENTREVISTA

ELETRICIDADE NO AR
Químico Fernando Galembeck fala sobre como é possível obter
energia a partir de partículas de água suspensas no ar
Por Juliana Miura, Fabio Reynol e Juliana Freire

Fotos: Fabio Reynol

8 - Ciência para a vida


Aposentado desde 2011 do quadro - O que é higroeletricidade? cargas elétricas opostas. Os metais
docente da Universidade Estadual Galembeck – É o aparecimento de captam essas cargas da atmosfera.
de Campinas (Unicamp), Fernando eletricidade, o aparecimento de uma E as captam de maneira diferente,
Galembeck está longe de parar de voltagem, num arranjo de materiais dependendo do metal: alumínio capta
trabalhar. O químico graduado e expostos à umidade elevada. Em (ou adsorve) preferivelmente os íons
com doutorado pela Universidade síntese, é a eletricidade advinda da negativos, enquanto o aço inox capta
de São Paulo (USP) notabilizou- umidade. Sabemos que existe muita íons positivos. Num ambiente úmido,
-se em especial por seus trabalhos eletricidade na atmosfera, que se os metais adquirem cargas elétricas
com nanotecnologia e publicou seu manifesta na forma de relâmpagos. que os energizam, criando uma tensão
primeiro estudo sobre nanopartí- O problema, até pouco tempo atrás, elétrica ou voltagem que pode chegar a
culas em 1978. Já dirigiu o Labora- era descobrir como essa eletricidade cerca de um volt. Isso já é significativo
tório Nacional de Nanotecnologia é gerada e quem são seus portadores. para captura de energia do ambiente.
no Centro Nacional de Pesquisas em Em um trabalho de 2010 e em outros É possível transferir e armazenar essa
Energia e Materiais, em Campinas trabalhos recentes, meus estudantes e energia, essa eletricidade. Gerada
(SP), foi vice-reitor da Unicamp e eu demonstramos que essa eletricidade em sistemas de pequena escala, essa
exerceu funções de gestão em insti- atmosférica está associada principal- eletricidade pode ser armazenada em
tuições como o Ministério da Ciência mente à umidade e pode ser transferida capacitores e pode acender LEDs por
e Tecnologia, Conselho Nacional para objetos situados na superfície da exemplo. Funciona.
de Desenvolvimento Científico e terra.
Tecnológico (CNPq), Fundação de - Como os senhores chegaram a
Amparo à Pesquisa do Estado de – De que forma essa constatação essa descoberta?
São Paulo (Fapesp) e Coordenação pode ser demonstrada? Galembeck – Por meio de uma série
de Aperfeiçoamento de Pessoal de Galembeck – A demonstração pode de fatos, alguns acidentais, que perce-
Nível Superior (Capes). De volta ser feita com um dispositivo simples, bemos em alguns experimentos. Em
à Unicamp como professor convi- construído com uma chapa de alumínio um experimento feito com partículas
dado, ele hoje se dedica, entre outros isolada eletricamente da terra e sepa- bem fininhas de sílica, medimos o
temas, ao estudo da eletricidade rada de outra chapa feita de outro potencial elétrico estático sobre esse
gerada pelo atrito, triboeletricidade, e metal, cobre por exemplo. As duas pó, tanto em umidade alta quanto em
daquela obtida das partículas de água chapas são separadas por uma folha de umidade baixa. Quando a umidade é
presentes no ar, higroeletricidade. papel isolante. Esse dispositivo é um alta, a sílica é mais negativa, quando
Nesta entrevista à Ciência para capacitor, é um dispositivo elétrico. a umidade é mais baixa, a sílica fica
a Vida, Galembeck, também membro Transferido para um ambiente de menos negativa, não chega a um poten-
da The World Academy of Sciences umidade elevada, nota-se uma dife- cial zero, mas fica bem menos nega-
(TWAS) e da Royal Society of rença de potencial elétrico entre as tiva. Portanto, a umidade provoca
Chemistry, fala sobre o potencial e a duas chapas, entre os dois metais. Essa uma variação no potencial elétrico.
possível aplicação da higroeletrici- diferença de potencial significa que Esse era um resultado novo e inespe-
dade, que, como sintetiza, é a eletri- o dispositivo acumulou energia, que rado, que precisava ser confirmado.
cidade advinda da umidade. É uma pode ser transferida e utilizada. Como Uma forma de verificação é, sempre,
das suas frentes na busca de alterna- nós explicamos o aparecimento da medir de forma diferente. Montamos
tivas estratégicas para a geração de diferença de potencial? No ar úmido outro experimento, medindo a carga
energia e da compreensão de fenô- existem moléculas de água que, por elétrica associada à umidade. Usamos
menos que intrigam muitas pessoas, sua vez, contêm íons. No caso da água, um instrumento simples chamado
até mesmo cientistas. são íons H+ ou OH-, portanto com copo de Faraday. É um par de cilin-

9
ENTREVISTA

dros metálicos, com diâmetros dife - Em determinadas épocas do


rentes, um dentro do outro. O externo ano, há menos umidade no ar em
é ligado à terra e o interno é ligado a algumas regiões. A tecnologia seria
um coulômetro, aparelho que mede viável para todo o Brasil e para
a carga dentro do cilindro interno. todos os períodos?
Resolvemos observar o que acontecia Galembeck – Depende da forma como
com o copo de Faraday quando mudá- o sistema é construído. Em prin-
vamos a umidade em torno deles e cípio, o melhor lugar para demonstrar
percebemos que mesmo um copo vazio a experiência é no meio da floresta,
acumula carga, quando a umidade onde a umidade é alta e razoavelmente
varia. Ensaiamos vários experimentos estável. Mas, para que a tecnologia
com diferentes metais, verificamos funcione, não é preciso trabalharmos
que se comportam de maneira bastante com umidade ambiente. No caso de
distinta e concluímos que o latão uma unidade construída num galpão
cromado, por exemplo, adquire muita fechado, seria necessário umidificar o
carga negativa quando a umidade ambiente, o que não seria muito dife-
aumenta. Já o cobre adquire muito rente do que faz um horticultor. Temos
pouca carga. que levar em consideração o consumo
de água, mas nada que não seja resol-
- Pesquisas com os protótipos vido em outras áreas.
em laboratório permitem mensurar
o potencial da tecnologia? – Quando lemos sobre essa
Galembeck – Temos um modelo do tecnologia, pensamos nas placas
equipamento que permite fazer uma "Em princípio, o para coleta de energia solar, placas
projeção do que seria o custo de uma melhor lugar para instaladas em telhados das casas...
unidade geradora. O investimento Galembeck – Sim, há um paralelo.
por quilowatt produzido é inferior ao
demonstrar a
de uma hidroelétrica de porte médio. experiência é no - Ela poderia ser usada em
Desse ponto de vista, seria viável. meio da floresta, algumas regiões?
Uma barreira séria, no entanto, ainda onde a umidade é Galembeck – Sim. A ideia é a geração
não superada, é que durante o processo de eletricidade em regiões remotas. Há
observamos uma corrosão grande do alta e localidades que enfrentam problemas,
alumínio. A higroeletricidade desenca- razoavelmente por exemplo, com o fornecimento de
deia a oxidação do alumínio, reduzindo estável." diesel. Épocas de seca nos rios que
sua vida útil. Ou seja, o investimento impedem que um barco com a carga
é baixo, mas a deterioração do mate- chegue, por exemplo.
rial acaba por tornar os custos altos,
por causa da necessidade de reposição – Qual seria o impacto
de material. Estamos agora dedicados ambiental dessa tecnologia?
a encontrar materiais que possam ser Galembeck – O principal impacto
usados como alternativas ao alumínio, está relacionado aos resíduos resul-
que sejam de custo baixo e apresentem tantes da deterioração do equipa-
grau de deterioração inferior. mento. No caso do alumínio, metal que

10 - Ciência para a vida


melhor funcionou nas experiências, tado pela disponibilidade de pessoal.
sua oxidação gera resíduo de óxido Há outros aspectos interessantes na
de alumínio. Uma solução razoável questão da higroeletricidade, além do
seria a seguinte: aproveitar os restos de que se refere à energia. Por exemplo, a
latas de alumínio, que são encontradas questão da segurança, diante da eletri-
em qualquer lugar do Brasil, mesmo cidade atmosférica e dos acidentes
remoto. A lata é um resíduo e, em vez "... no caso em industriais causados por descargas
de ser jogada no ambiente, pode ser que se necessite eletrostáticas.
usada na construção dos sistemas de
higroeletricidade. Em lugares remotos,
de uma unidade – Sim, lemos alguma coisa a
as latinhas não são levadas para reci- de geração respeito, sobre a redução de quanti-
clagem, justamente pela distância entre simples... embora dade de raios. É isso?
a localidade e os centros que reciclam seja cara, a Galembeck – Trata-se de conse-
esse resíduo. O funcionamento de um guir usar os sistemas para dissipar,
sistema de higroeletricidade produziria higroeletricidade para reduzir eletricidade atmosfé-
um novo resíduo, o óxido de alumínio pode ser uma rica. Também há problemas na área
resultante do processo de oxidação. solução." industrial. Acidentes são comuns,
Esse óxido pode ser usado como por exemplo, em silos e na indústria
componente de massa de cerâmica ou de alimentos, onde há material em
de cimento. Poderia ser uma linha de pó, serragem, resíduos da moagem
trabalho. de palha. Há uma classe de explo-
sões chamada "explosões de pó".
- O uso de metal virgem não A Springer acaba de lançar o livro
seria viável? Chemical Electrostatics, escrito por
Galembeck – Em termos econô- Thiago Burgo e por mim. No capítulo
micos, não. Agora, no caso em que se 12 desse livro, abordamos acidentes e
necessite de uma unidade de geração perdas causadas por descargas eletros-
simples, silenciosa, que não inco- táticas e há muitos livros inteira-
moda ninguém e não gera emissões mente dedicados a esse assunto. Por
de gases de efeito estufa, embora seja que? Ocorreram muitos acidentes nos
cara, a higroeletricidade pode ser uma Estados Unidos e em muitos outros
solução. Mas não creio que seja um países, acidentes que fizeram voar
sistema competitivo com as placas fábricas inteiras, deixando mortos.
fotovoltaicas, citando também outro Qualquer poeira orgânica que tenha
exemplo. Acho, realmente, que a viabi- carbono, de algum jeito, pode explodir.
lização do uso da tecnologia em escala Sabemos que isso ocorre quando a
depende da descoberta de um material poeira é eletrizada, mas não sabemos
alternativo ao alumínio. os mecanismos que fazem a carga
se depositar na poeira. A dificuldade
- Qual a perspectiva de tempo na prevenção é causada justamente
para novas experiências? pelo fato de que as pessoas não sabem
Galembeck – Nesse momento, o de onde vem a carga. Manuseio de
projeto anda devagar, está muito limi- produtos da biomassa, farinhas, grãos,

11
farelo, coisas desse tipo, celulose... A ferida para o papel, se não for devi-
eletrização desses produtos depende damente administrada, pode tornar-se
muito de variações da umidade. um problema. O papel eletrizado pode
produzir uma faísca, se passar perto de
– Um gerador pode ser usado qualquer objeto eletrizado, mas com
para segurança nesses casos, se sinal contrário. Esta é outra manifes-
instalado para tirar a carga elétrica tação da higroeletricidade.
do ar?
Galembeck – Não creio. A higroeletri- - E no caso das regiões que
cidade seria o mecanismo para retirar "Precisamos de tem bastante descarga elétrica,
a carga elétrica do ar, da atmosfera. bons métodos para problemas com raios, é possível
Precisamos de bons métodos para controlar?
medir essa eletricidade e avaliar proce-
medir essa Galembeck – Hoje, como nos prote-
dimentos para sua captura, de forma eletricidade e gemos de raios? Com para-raios.
segura. avaliar Em cidades como Brasília, morrem
procedimentos para pessoas vítimas de raio, certo? Mas,
– Uma empresa que trabalha nas previsões do tempo, há alguma
com esse tipo de pó tem todo inte- sua captura, de informação sobre eletricidade atmos-
resse para ter segurança, certo? forma segura." férica? Sabemos que a nuvem vem,
Galembeck – Empresas têm interesse, que é bom sair da praia ou da piscina.
mas precisamos primeiro chegar ao Mas, de fato, isso não é um comporta-
ponto de fazer demonstrações convin- mento objetivo, porque não sabemos
centes. As empresas de segurança não qual o potencial de descarga que está
podem arriscar adotar um sistema sendo criado. Em Cabo Canaveral,
novo sem certeza de que não terão quando vão lançar foguete, a eletrici-
problemas. dade da atmosfera é monitorada por
uma bateria de medidores de campo
– O sistema reduz descarga elétrico, pois foguetes já explodiram
atmosférica também? por causa de descargas eletrostáticas.
Galembeck – Sim. Isso pode ser No meu laboratório, procuramos
observado em uma experiência muito obter sistemas de medida que sejam
simples, na qual usamos uma folha de muito simples e baratos, com os quais
papel − usamos papel de filtro porque é possamos mapear potenciais elétricos
rastreável, reprodutível, é só celulose, ao nosso redor, para avaliarmos obje-
tem muito pouca impureza. Colocamos tivamente os riscos a que estamos
um objeto eletrizado atrás do papel expostos. Outro objetivo da nossa
e um eletrodo na frente. O eletrodo pesquisa é reduzir ou controlar a
acusa quando a umidade fica muito eletrização no ambiente, capturando
alta e, com o desenrolar da experi- a eletricidade. Assim, conseguiremos
ência, é possível verificar que o papel duas coisas: aproveitar essa energia
é eletrizado. Essa eletricidade trans- e reduzir a eletricidade da atmosfera,

12 - Ciência para a vida


evitando raios e outras descargas. necessidade de sensores distribuídos
que acusem, por exemplo, vazamentos.
– Essa aplicação é um dos É necessário monitorar esses sinais,
conhecimentos que vocês têm sobre mas há plataformas distantes, a cem
geração de eletricidade. Mais algum ou mais quilômetros da costa. Para
tem sido visualizado? manter os sensores, é preciso ter uma
Galembeck – Há alunos e colabo- fonte de energia. Seria muito bom se,
radores trabalhando com coisas nesses lugares, a geração fosse local,
semelhantes, mas não é bem higro- autônoma, e não é necessário produzir
eletricidade, como, por exemplo, a grandes quantidades de energia. Prova-
triboeletricidade, que é a eletricidade velmente consegue-se alimentar muitos
provocada pelo atrito. A experiência sensores e transmissores com um quilo-
básica de triboeletricidade é aquela de watt, que é menos do que se gasta para
pegar uma blusa de acrílico, esfregar iluminar uma residência média. Mas a
em um pente e vê-lo atrair pedacinhos fonte de energia precisa ser autônoma.
de papel. Nesse trabalho, pretendemos Voltando à geração de energia em
produzir nanotribogeradores − gera- grande escala, esse é o grande obje-
dores triboelétricos baseados em nano- tivo. Alguns pesquisadores na Índia e
estruturas. Não é uma coisa original Indonésia publicaram artigos afirmando
nossa, há várias experiências com que a higroeletricidade pode contri-
isso no mundo. As experiências com buir significativamente para o abas-
nanotribogeradores procuram atender tecimento naqueles países. Não sou
às demandas dos sistemas distribu- tão otimista quanto eles, mas se eles
ídos, sistemas que não estão ligados estiverem certos, isso será melhor para
às redes de distribuição de energia. todos. •
Estes não são uma parte muito grande
da matriz energética, mas são estra- "... pesquisadores
tégicos. Um celular, por exemplo: a na Índia e Indonésia
duração da bateria entre recargas é um ‹ navegue ›
problema sério que afeta muita gente.
publicaram artigos
Porém, quando você está andando está afirmando que a Royal Society of Chemistry
http://www.rsc.org/about-us/
também gerando eletricidade. A roupa higroeletricidade
que é atritada, o sapato... A pergunta é: pode contribuir The World Academy of Sciences (TWAS)
conseguiríamos colher uma parte dessa https://twas.org/
eletricidade e usá-la para carregar celu- significativamente
lares automaticamente? Outra situação para o Sobre o trabalho de pesquisadores indianos
http://www.iarjset.com/upload/2015/si/ncree-15/
é a das redes de monitoramento, seja abastecimento IARJSET%2088%20P157.pdf
para prevenção de desastres, seja para
naqueles países.
monitoramento de campos de petróleo. Site do livro Chemical Electrostatics
No caso aqui do Brasil, há poços que Não sou tão http://www.springer.com/gp/

são profundos, longe da costa e há otimista..." book/9783319523736

13
ESPECIAL

14 - Ciência para a vida


VINHOS TROPICAIS:
UM DESAFIO À
TRADIÇÃO
Por Fernanda Birolo e Viviane Zanella
Arte de Luciana Fernandes e Roberta Barbosa
Ilustrações de Luciana Fernandes

O sol é escaldante o ano inteiro. Clima das demais regiões vitivinícolas, em


seco, altas temperaturas e pouca chuva. que os estágios das plantas são determi-
Um cenário improvável para a produção nados pelo clima característico de cada
de vinhos, tradicionalmente oriundos época do ano, no Semiárido, onde não
de regiões mais frias. A tarefa, se não há grande variação climática de janeiro
impossível, é, no mínimo, desafiante. a dezembro, os ciclos vegetativos
E como tal é cumprida no Vale do são induzidos pelo estresse ou oferta
Submédio São Francisco, na região de água e pelas podas nos períodos
semiárida do Nordeste brasileiro, onde desejados.
as características naturais são aliadas a A possibilidade de uma videira
tecnologias, incluída a irrigação. Dessa chegar a produzir até cinco safras de
forma, é possível colher uvas e elaborar uvas a cada dois anos também dife-
vinhos tranquilos (sem borbulhas) e rencia a região. É um paradoxo para
espumantes (com borbulhas), brancos, a tradicional e já consagrada vitivini-
tintos e rosés, nos 365 dias do ano. cultura do “Velho e do Novo Mundo”,
Isso porque, no Vale, o momento da centrada em regiões de clima tempe-
colheita é definido pelo produtor, que rado, em que a videira produz apenas
Ilustração: Luciana Fernandes

consegue escalonar a produção de uvas uma safra por ano e sempre na mesma
de forma ininterrupta. Diferentemente época.

15
ESPECIAL

NOVA
GEOGRAFIA
DO VINHO

O “Velho Mundo”, identificado ano. Na América do Sul, destacam-se o


com o continente europeu, é consa- Mais recentemente, o mapa da Brasil e a Venezuela, além do Peru e
grado historicamente na produção vitivinicultura mudou novamente, Equador. Na Ásia, os principais produ-
de vinhos. Entre os mais tradicio- passando a contemplar outras regiões tores são Myanmar (antiga Birmânia),
nais produtores estão países como do globo, com os chamados “vinhos Tailândia, Índia, Indonésia e Vietnã.
França, Portugal, Espanha e Itália. Já tropicais”. Produzidos nas lati- A África é representada pela Etiópia,
os países do “Novo Mundo” tiveram tudes mais baixas, entre os trópicos Gabão, Quênia, Namíbia e Tanzânia; e
seus vinhos reconhecidos, sobretudo, de Câncer e Capricórnio, são defi- a Oceania, pela Polinésia Francesa.
a partir da segunda metade do século nidos como os vinhos obtidos de uvas “A produção de vinhos tropi-
XX. Aí se incluem os Estados Unidos, produzidas em regiões nas quais é cais é muito particular e diversa em
Chile, Argentina, África do Sul, possível, em condições naturais, mais relação àquela praticada em regiões
Austrália, Nova Zelândia e também o de um ciclo anual da videira, com de clima temperado, e suas caracterís-
Brasil, onde a produção foi concen- uma ou mais colheitas por ano. As ticas são desafiadoras quando compa-
trada inicialmente nas regiões de variantes de clima exploram locali- radas às da vitivinicultura tradicional”,
clima subtropical, nos estados do Rio dades com períodos menos úmidos até avalia o agrônomo e pesquisador da
Grande do Sul e Santa Catarina. Em climas áridos. Embrapa Uva e Vinho Giuliano Elias
comum entre os dois “mundos” está Essa nova geografia do vinho está Pereira, que atua em Petrolina (PE), na
a característica de apenas um ciclo estabelecida em mais de uma dezena Embrapa Semiárido. É uma atividade
da videira e uma colheita de uvas por de países, de diferentes continentes. altamente tecnológica, pois ações de

16 - Ciência para a vida


manejo, como poda, irrigação e uso No entanto, não existe apenas rios muitos produtos químicos para o
de reguladores de crescimento para a uma vitivinicultura tropical, pois são controle das doenças e a grande quan-
quebra de dormência, são as grandes diversas as variações entre as regiões. tidade de água afeta a qualidade da
responsáveis por garantir esse novo Na Índia e na Tailândia, por exemplo, uva e, consequentemente, também a
modelo de cultivo e a produtividade o clima é Tropical de Monções, com do vinho. Assim, a opção dos vitivini-
desejada. inverno extremamente seco e verão cultores é realizar apenas uma colheita
Além disso, em tempos em que as bastante chuvoso. O norte do Peru por ano, de forma a obter um produto
mudanças climáticas sugerem desa- é quente e árido, praticamente sem de melhor qualidade.
fios às regiões produtoras tradicio- chuvas. Já o Semiárido brasileiro é Além do número e período de
nais, a vitivinicultura tropical pode quente, seco e com pouca precipi- colheitas, outras características podem
ser considerada como um laboratório tação. Cada um desses atributos exige ser diferentes em cada localidade. O
permanente para avaliar os efeitos da um modo diferente de produção. enólogo James Kalleske, da vinícola
produção em condições de clima mais A enóloga Nikki Lohitnavy, Hannen Wines, de Bali, na Indonésia,
quente. A adaptação de variedades em proprietária da vinícola GranMonte, destaca que a poda da videira é feita
Ilustração: Luciana Fernandes

áreas tropicais para vinhos de quali- na Tailândia, explica que, nas condi- de um modo específico na região.
dade poderá ser uma referência para ções daquele país, é possível colher Toda a produção é irrigada por sulco
as regiões de clima temperado se ante- uvas até duas vezes por ano para e inundação, e são utilizadas varie-
ciparem aos potenciais impactos no produzir vinho. No entanto, durante dades de uvas não convencionais na
futuro. a estação chuvosa, seriam necessá- produção mundial de vinhos.

17
ESPECIAL

Foto: Marcelino Ribeiro

VINICULTURA
DOS TRÓPICOS
ATRAI GERAÇÃO
JOVEM E
MULTINACIONAL
Trabalhar em um universo tão tradicional como o da
produção de vinhos, mas com características tão particulares
como as da vitivinicultura tropical, requer uma junção de
criatividade e coragem. E muitos jovens ao redor do mundo
estão mergulhando nessa atividade.
Nascido em uma tradicional região produtora de vinho,
o australiano James Kalleske, de 31 anos, desde cedo se
interessou pela área. Aos 17 trabalhou pela primeira vez
em uma vinícola, e aos 21 já era um dos principais gerentes
da produção de vinho local, ainda antes de terminar a
graduação.
Depois decidiu ir para Bali, na Indonésia, por ser uma
região mais instigadora para o cultivo de uva e produção de
vinho, o que, para ele, funciona como um estímulo. Em suas
diversas viagens para outras áreas tropicais, especialmente na
Ásia, Kalleske tem observado que a maioria dos produtores
nesses locais são jovens. “Acho que o pessoal mais novo é
mais entusiasmado com essa aventura em regiões tropicais”,
comenta.
Foi esse entusiasmo que o australiano encontrou na amiga
e também enóloga Nikki Lohitnavy, da Tailândia, que se
interessou pela vitivinicultura quando o pai se aposentou e
começou a produzir vinho por hobby. Ela gostava de lidar
com as plantas do jardim e começou a se envolver também
com as parreiras, passando a conhecer outros produtores,
O australiano James Kalleske sempre se interessou pela vitivinicul- buscar informações e viajar pelo mundo. Até que decidiu:
tura (foto tirada durante evento promovido pela Embrapa) “Isso é o que eu realmente quero como profissão.”

18 - Ciência para a vida


Ilustrações: Luciana Fernandes
Nikki foi para Austrália e se
graduou em enologia. Durante o
curso, toda técnica ou tecnologia que
aprendia passava para o pai aplicar nos
vinhedos e na produção de vinho – que
então era feita por uma vinícola contra-
tada. Quando concluiu os estudos,
voltou para a Tailândia e a família
construiu a própria vinícola, passando
a ter mais controle sobre o processo
de vitivinificação, o que aumentou a
Foto: Marcelino Ribeiro

qualidade do produto.
Hoje, aos 39 anos, Nikki conta
que as pessoas se surpreendem com
sua trajetória: uma mulher tão nova,
asiática e produzindo vinho. Para ela, Nikki Lohitnavy, da Tailândia, construiu sua própria vinícola (foto tirada durante evento
o mais importante é quando experi- promovido pela Embrapa)

mentam o vinho e constatam que é de


boa qualidade.
Foto: Fernanda Birolo

E como surpresas são inerentes


à exploração de novos mundos, esse
foi o sentimento experimentado pelo
enólogo português Ricardo Henriques
quando aceitou a proposta de cruzar
o oceano e se instalar no Semiárido
brasileiro. “Quando a gente vem de
uma região que é muito tradicional,
falar que você pode colher uva toda
semana, ou fazer duas safras por ano,
parece um absurdo.”
Essa possibilidade, ele conta, ia
contra aquilo que sempre estudou.
Hoje, aos 32 anos, Ricardo já se habi-
tuou às diferenças, e se sente realizado
em trabalhar com aquilo que gosta.
“Eu tenho a possibilidade de fazer
uma coisa nova em uma região nova,
e acredito que a vinícola e também a
região ainda têm muito para oferecer”,
avalia. Possibilidades da vitivinicultura do Semiárido surpreenderam o português Ricardo Henriques

19
ESPECIAL

PRODUÇÃO
NACIONAL

No Brasil, existem registros de cultivo fazenda Milano, estão instaladas na quando as vinícolas evitam programar
de uvas em regiões tropicais já no região as vinícolas Bianchetti e Garziera as colheitas, por se tratar do período
século XVI, mas a atividade tornou- e o Grupo São Braz. Segundo levanta- mais chuvoso. Entre uma safra e outra,
-se efetivamente comercial a partir de mento feito pelo pesquisador Giuliano para “simular” o frio do inverno, é
1956, quando a empresa Cinzano S.A. Pereira junto às vinícolas locais, são necessário reduzir a irrigação para 5%
plantou 100.000 pés de uvas híbridas cerca de 500 hectares de vinhedos que a 10% nos períodos secos, por cerca
para elaboração de vinhos no Vale do produzem aproximadamente 4 milhões de 20 a 30 dias, para que as videiras
Submédio São Francisco. de litros de vinhos finos – além dos acumulem reservas. Na sequência, é
Mas foi na década de 1970 que a vinhos comuns que também começam a feita a poda e a aplicação dos insumos
produção de vinhos se tornou mais ganhar espaço na região –, empregando, com o objetivo de reduzir a dominância
conhecida, com a implantação da direta ou indiretamente, cerca de 3.000 apical, estimular e homogeneizar a
fazenda Milano e, posteriormente, da pessoas. brotação. Depois, a irrigação volta para
fazenda Ouro Verde. Na de 1980, os Essa, que é a principal região 100% do coeficiente da cultura (Kc), e
primeiros vinhos tropicais apareceram tropical produtora de vinhos no País, um novo ciclo produtivo começa.
no mercado, quando a Vinícola do Vale está situada entre os paralelos 8º e 9º Assim, dentro de uma mesma área
do São Francisco, localizada em Santa do Hemisfério Sul, nos municípios as videiras poderão estar, ao mesmo
Maria da Boa Vista (PE), lançou os pernambucanos de Petrolina, Lagoa tempo, em diferentes estágios de
vinhos Botticelli. No início dos anos Grande e Santa Maria da Boa Vista, e produção: algumas recém-podadas,
1990, foi a vez da vinícola Adega Bian- em Casa Nova, na Bahia, com altitude outras brotando, umas florescendo,
chetti Tedesco lançar seus vinhos no de aproximadamente 350 m. As condi- outras maturando e outras ainda com
mercado, seguida pela Vinícola Garziera ções climáticas da região, com uma as uvas prontas para a colheita. Desse
e pela Duccos Vinícola. temperatura média anual de 26ºC, alta modo, os produtos elaborados são
No início dos anos 2000, a produção luminosidade e água disponível para sempre jovens, pois os vinhos ficam
foi reforçada com a chegada de grandes irrigação a partir do Rio São Francisco, prontos e são vendidos nos diversos
investidores, como o Grupo Miolo, da propiciam ciclos vegetativos constantes, meses do ano, conforme demanda dos
Serra Gaúcha, que comprou a fazenda intercalados, com colheitas nos vários mercados nacional e internacional.
Ouro Verde, e o Dão Sul/Global Wines, meses do ano. A região conta com uma O pesquisador Jorge Tonietto, da
de Portugal, que criou a vinícola Vini- pluviosidade média de 550 mm ao ano, Embrapa Uva e Vinho, pondera que a
Brasil. Atualmente, além dessas e da concentrada entre dezembro e abril, possibilidade de produzir uvas e vinhos

20 - Ciência para a vida


Foto: Fernanda Birolo
NÚMEROS DO SÃO FRANCISCO:
• 4 milhões de litros/ano
• 65% são espumantes (70% moscatel e 30% fino
brut e demi-sec)
• 34% de vinhos tintos, na sua grande maioria
jovens e alguns de guarda que passam por
um período em barricas de carvalho

Ilustrações: Luciana Fernandes


• 1% de brancos
• 95% são destinados ao mercado nacional
e o restante é exportado para países da
União Europeia, Ásia e Estados Unidos.

durante todo o ano estabelece um novo para períodos específicos da produção. e rosados, elaborados pelo método
paradigma para a enologia – o just-in- Uma delas é que os trabalhadores são Charmat, apresentam notas agradáveis
-time. “Com uma produção regular de altamente especializados, pois executam de frutos, com bom equilíbrio, e ficam
vinhos sendo colocada no mercado ao a mesma atividade durante todo o ano, prontos rapidamente também. Estão em
longo do ano, garante-se aos consu- até mesmo recebendo capacitação com segundo lugar em termos de volume e
midores que eles sempre tenham à sua os melhores especialistas da área. “No são elaborados das variedades Syrah,
disposição vinhos jovens e frescos, caso das enxertias, por exemplo, os Grenache, Chenin Blanc, Sauvignon
valorizando as características típicas dos índices de produtividade e de sucesso Blanc e Verdejo.
vinhos tropicais”, avalia. são superiores aos do nosso grupo em Em seguida, estão os vinhos jovens,
Além disso, com a produção ao Portugal. É como se fosse uma indústria entre tintos secos e doces/suaves, elabo-
longo do ano, as equipes estão sempre de produção em série”, observa. rados com as variedades Syrah, Tempra-
trabalhando, no vinhedo ou na adega, Vinhos do Vale do Submédio São nillo e Barbera. Também são elaborados
com estruturas de vinificação menores, Francisco apresentam qualidade e tipi- vinhos tintos de guarda (que passam
mais enxutas e com investimentos cidade. Segundo o pesquisador Giuliano por processo de envelhecimento) em
menores, pois se consegue programar o Elias Pereira, para os espumantes pequenos volumes, das variedades
número de cubas necessárias de acordo moscatéis, entre a colheita e os vinhos Syrah, Touriga Nacional, Alicante
com as colheitas, em determinado mês. estarem prontos para o mercado são Bouschet e Cabernet Sauvignon. Os
Essa peculiaridade possibilita, ainda, a necessários apenas 35-40 dias, o que faz tintos jovens são frutados, leves, agradá-
geração de empregos permanentes. com que esses produtos sejam jovens veis, enquanto os tintos de guarda apre-
Uma única vinícola instalada e os mais produzidos na região, com sentam coloração muito intensa, aromas
na região do Vale do Submédio São rápida elaboração. Esses tipos de vinhos frutados com toques de especiarias,
Francisco, a ViniBrasil, por exemplo, caíram no gosto do consumidor por intensos na boca, precisando de alguns
emprega diretamente 120 funcionários, serem produtos com baixo teor alcoó- meses de repouso para consumo. Por
entre campo, adega e escritório, para lico (entre 7-8º GL) e elevados teores último em volume, os vinhos brancos,
uma área de 120 hectares em produção de açúcar. São elaborados a partir das que são florais, leves e agradáveis, são
e outros 40 em implantação. O enólogo variedades moscatéis Itália e Moscato elaborados a partir de uvas Chenin
responsável, Ricardo Henriques, ressalta Canelli. Blanc, Viognier e Sauvignon Blanc.
as vantagens de não haver sazonali- Da mesma forma, os espumantes Também estão sendo elaborados vinhos
dade, já que não necessitam contratar finos secos e meio-secos brancos licorosos e brandy.

21
ESPECIAL

NA VANGUARDA DAS SOLUÇÕES


A vitivinicultura tropical mais desen- Além disso, segundo Pereira, rápida no segundo semestre.
volvida do mundo encontra-se no “trabalhos de pesquisa apontam que a No caso dos espumantes e vinhos
Nordeste do Brasil. Segundo o pesqui- elaboração de vinhos a partir de uvas brancos, dois dos principais atributos
sador Giuliano Elias Pereira, o Brasil colhidas nos meses mais frescos do são o frescor aromático e gustativo e a
está na liderança e na vanguarda dessa ano, entre o outono e o inverno, poderia tipicidade aromática varietal. Para isso,
nova fronteira vitivinícola, pesqui- melhorar a estabilidade e também valo- ele reforça a necessidade de colher
sando e apresentando alternativas para rizar a tipicidade dos vinhos, princi- as uvas com acidez relativamente
qualificar e inovar ainda mais os vinhos palmente tintos e brancos tranquilos, elevada, sem comprometer a riqueza de
tropicais. enquanto para espumantes, carro-chefe açúcares. “Uvas muito maduras tendem
O pesquisador também destaca o da região, e vendidos e consumidos em a apresentar baixa acidez e a perder boa
papel pioneiro do Brasil ao criar, por maior escala, a produção em qualquer parte do potencial aromático, compro-
intermédio da Embrapa, o principal época do ano é viável.” metendo assim a qualidade do produto
fórum internacional de apresentação Segundo Celito Guerra, pesquisador final, que em vez de frescor aromático
de pesquisas e debates dos países que da Embrapa Uva e Vinho, o clima apresentará notas de frutas sobre-
produzem em regiões tropicais, por quente tem a vantagem de propor- maduras e compotas”, complementa
meio do Simpósio Internacional de cionar mais de uma safra por ano. Guerra.
Vinhos Tropicais (ISTW). Realizado Porém, como desvantagem, ocorre Ele destaca que as condições do
de forma itinerante nos países produ- a combustão de alguns compostos clima exigem que após a colheita
tores, o evento possibilita uma efetiva durante a maturação da uva, como aconteça o transporte à vinícola, com
e crescente cooperação internacional ácidos orgânicos, aromas e matéria um rápido resfriamento das uvas para
para essa atividade inovadora. A última corante. O fenômeno é mais intenso na inibir o desenvolvimento de microrga-
edição, o 5º ISTW, ocorreu de 19 a época mais quente do ano, de agosto nismos nocivos e diminuir a velocidade
21 de outubro de 2016, em Petrolina a dezembro. Com base nisso, Guerra de reações de oxidação do mosto. Em
(PE), e a próxima deverá ocorrer em afirma que as videiras que melhor se relação à vinificação, o pesquisador
2018. Pereira pontua que os princi- adaptam são as que produzem uvas comenta a necessidade de controles
pais gargalos atuais do Vale do São com altos teores de acidez, aroma rígidos no processo pela menor esta-
Francisco são “o aumento da produti- delicado e, no caso das tintas, com bilidade química de certos compostos
vidade, os testes em andamento com alto potencial para produção de anto- de uvas produzidas em climas quentes,
Ilustrações: Luciana Fernandes

novas variedades, diferentes sistemas cianinas e taninos. Atenção especial que afetam diretamente a qualidade, a
de condução das videiras deve-se dar à maturação da uva, pois longevidade e o equilíbrio dos vinhos.
e o reconhecimento da é uma fase muito curta e a combustão Entre as inovações lançadas e em
Indicação Geográfica de ácidos, aromas, polifenóis e outros desenvolvimento no Vale do São Fran-
para os vinhos da compostos é cisco, destaque para os vinhos espu-
região.” intensa e mantes rosados, com as uvas Syrah e

22 - Ciência para a vida


Grenache, novas
variedades em fase de testes para espu-
mantes brancos, vinhos comerciais
de guarda e de alta qualidade, como
os elaborados com a colheita de uvas agressivos e amargos,
Syrah no período de inverno, com o comprometendo o equi-
desengace manual das bagas. líbrio de vinhos tintos. Com
Segundo Giuliano Pereira, isso, o desengace manual tem
pesquisas apontam que os engaços de respondido positivamente à qualidade
uvas na colheita, na região do Vale do de tintos de guarda. Da mesma forma,
São Francisco, não estão lignificados em vinhos brancos de guarda, uvas
e ao passarem pela desengaçadeira são colhidas no período de inverno no Vale
quebrados, podendo ir com cascas e do São Francisco podem melhorar os
sementes para a maceração, possibi- vinhos, com alta qualidade e tipici-
litando a extração de taninos verdes, dade.

23
Foto: Fernanda Birolo
ESPECIAL

CADA VEZ MELHORES

Por se tratar de uma região viti- mentos, que estão sendo iniciados,
vinícola relativamente recente, incluem ainda a Touriga Nacional.
muitas questões ainda provocam Utilizando uvas com maior
a pesquisa na busca de soluções grau de maturação e elabo-
de problemas e no apontamento de rando vinhos com maior duração
novas alternativas para o futuro da de maceração, a pesquisadora
produção tropical brasileira. Nessa está testando também o uso de
linha, a Embrapa tem experimen- chip de carvalho. “Como nossos
tado diferentes práticas e métodos vinhos em geral são jovens, então
de vinificação que proporcionem estamos propondo um envelhe-
maior qualidade para os vinhos, cimento rápido e de baixo custo,
com inovações para agregar valor que pode ser uma alternativa de
ao produto local. um novo produto para a região”,
Na busca de soluções para um destaca. Qualidade e estabili-
dos principais problemas da vitivi- dade dos vinhos ainda estão sendo
nicultura na região, que é a estabi- avaliadas.
lidade dos vinhos, um trabalho da Outros novos produtos também
pesquisadora Aline Telles Biasoto poderão ser propostos em breve
Marques, da Embrapa Semiá- para o setor produtivo, utilizando
rido, identificou que o aumento do diferentes métodos de elaboração.
tempo de maceração – o período Nas pesquisas, em parceria entre
em que a casca e as sementes são a Embrapa Semiárido e o Insti-
mantidas com o vinho – pode ser tuto Federal de Educação, Ciência
uma alternativa para melhorar e Tecnologia do Sertão Pernam-
a estabilidade dos compostos buacno (IF Sertão-PE), estão
fenólicos. sendo testados processos ainda
De acordo com a pesquisa- pouco usados na região, como
dora, os testes incluíram vinifi- a maceração carbônica e mace-
cações com diferentes tempos ração a frio, além de um ainda
de maceração de uvas colhidas inédito, que é a termovinificação,
em diferentes estádios de matu- que consiste no uso de tempera-
ração, avaliando também se a turas elevadas para a extração do
colheita antecipada da uva seria mosto. Os estudos comparam esses
um problema para a estabilidade três métodos, além da vinificação
fenólica. O resultado, no entanto, tradicional, analisando as carac-
apontou que ela foi mais influen- terísticas físico-químicas, compo-
ciada pela duração da maceração, sição fenólica e aromática e perfil
enquanto o grau de maturação da sensorial.
uva não apresentou diferença signi- De acordo com a enóloga
ficativa. Até o momento foram e professora do IF Sertão Ana
avaliadas três safras com a varie- Paula Barros, que lidera o projeto
dade Syrah, e os próximos experi- em parceria com a pesquisadora

24 - Ciência para a vida


da Embrapa Aline Biasoto, “o que pouco utilizado na região, favorece o entre 13 diferentes uvas viníferas de
estamos buscando é verificar se existe aumento da área foliar, formando mais importância econômica no Brasil e no
uma diferença significativa entre os ramos, mais folhas e, consequente- mundo. Entre as cultivares testadas
métodos, principalmente na questão mente, aumentando a quantidade de estão algumas das principais varie-
da estabilidade dos vinhos, e analisar frutos. dades utilizadas na região – Syrah,
se vale a pena o investimento para as “Nossa preocupação era que Tempranillo e Cabernet Sauvignon
indústrias, podendo até mesmo ser a produção maior nesses sistemas para vinhos tintos e Chenin Blanc
um diferencial para agregar valor aos pudesse reduzir a qualidade do fruto, e Sauvignon Blanc para brancos –,
produtos.” mas isso não aconteceu. Então possi- e outras ainda sem tradição local,
velmente vamos ter uma melhor como Merlot, Malbec, Petit Verdot e
QUALIDADE TEM INÍCIO NO CAMPO resposta de produtividade nesse Grenache, para tintos, e Chardonay
sistema, sem perder ou até mesmo para brancos, além de três seleções do
Para que um vinho de qualidade melhorando a qualidade dos frutos e, programa de melhoramento genético
chegue à mesa do consumidor, tudo em consequência, também dos vinhos”, da Embrapa.
começa no campo. E, como as condi- ressalta a pesquisadora. A comparação Entre os principais resultados
ções do Vale do Submédio São Fran- foi feita com o sistema mais utilizado obtidos, a pesquisadora aponta a
cisco são diferentes, é necessário na região, que é a espaldeira, em que confirmação do potencial e da elevada
fazer escolhas apropriadas às suas a vegetação cresce no sentido vertical, qualidade da uva Tempranillo, com
especificidades. “Precisamos esco- como uma cortina. vantagem em relação à Syrah, que é
lher as cultivares mais adaptadas, os Quanto aos porta-enxertos, embora atualmente o carro-chefe da vitivi-
melhores clones, definir o manejo da os dados ainda estejam em análise, já nicultura local. Outras com elevado
água, a condução das plantas, enfim, é possível afirmar que aqueles muito potencial enológico, como a Merlot e
todo o sistema de produção precisa ser vigorosos, a exemplo do IAC 572, não a Malbec, não alcançaram produtivi-
ajustado”, ressalta a pesquisadora da são adequados para a produção de uvas dade economicamente rentável para as
Embrapa Semiárido Patrícia Coelho de de vinho, pois há um desequilíbrio vinícolas. “Isso não significa que essas
Souza Leão. entre os desenvolvimentos vegetativo e uvas não possam ser produzidas aqui,
Para subsidiar as escolhas dos produtivo da videira. “Ele faz com que mas sim que, havendo interesse em
produtores de vinhos da região, é a planta produza muitos ramos e folhas investir nessas cultivares, é necessário
preciso definir as melhores cultivares e apresenta uma produção menor”, buscar clones superiores e mais produ-
e porta-enxertos, os sistemas mais destaca Patrícia. tivos”, ressalta Patrícia.
apropriados de condução, irrigação, Os estudos identificaram que porta- Além disso, também foi identifi-
adubação, entre outras práticas agronô- -enxertos de vigor mediano, como o cado o excelente potencial de uma das
micas. Um estudo com essa finalidade Paulsen 1103, SO4 e IAC 766, apresen- seleções da Embrapa para desenvol-
avaliou duas cultivares de uva – Syrah taram melhor produtividade e equilí- vimento de uma variedade visando a
e Chenin Blanc –, durante nove safras brio das plantas, também mostrando elaboração de vinhos brancos comuns,
produzidas em quatro anos, usando bons resultados em relação à qualidade já que não são da espécie Vitis vinifera,
seis diferentes porta-enxertos em dois da uva e do vinho. A indicação do mais mas sim híbridos. “Sua vantagem é
sistemas de condução. apropriado para cada variedade, no principalmente do ponto de vista agro-
Entre os resultados obtidos, ainda entanto, ainda necessita da conclusão nômico, pois é produtiva e resistente
em fase de finalização, foram obser- das análises. a doenças, e ainda mantém o poten-
vadas vantagens de um sistema de A indicação das cultivares mais cial enológico elevado,
condução, que consiste no crescimento adaptadas às condições do Vale do com qualidade similar
Ilustrações: Luciana Fernandes

da vegetação em dois planos incli- Submédio São Francisco também à dos vinhos finos”,
nados, formando um “Y”. De acordo está sendo analisada pela Embrapa destaca a pesquisa-
com a pesquisadora, o sistema, ainda Semiárido, por meio da comparação dora.

25
ESPECIAL

TROPICAIS DE ALTITUDE

Além do Vale do São Francisco, primeiros vinhos comerciais deverão criadas infraestruturas enoturísticas,
outras regiões de clima tropical, mas estar no mercado em 2018, mas desde que podem atrair muitos visitantes e
de altitude, estão começando a se 2010, a Embrapa vem realizando enófilos.
destacar. É o que ocorre na Chapada estudos com testes de variedades Em um futuro próximo, outras
Diamantina, no Estado da Bahia, além nesses dois municípios. Segundo regiões de altitude do Nordeste brasi-
de São Paulo e Minas Gerais, que vêm Pereira, os principais vinhos em que leiro poderão também ser incluídas
produzindo uvas e vinhos nos últimos as empresas estão investindo são espu- no roteiro dos vinhos. É o caso do
oito anos, entre 900 e 1.300 m de alti- mantes elaborados pelo método tradi- município pernambucano de Gara-
tude. Segundo Giuliano Elias Pereira, cional, com a segunda fermentação nhuns, a cerca de 900 m de altitude,
nessas condições, a altitude compensa na garrafa, com as variedades Char- onde a Embrapa Semiárido introduziu
a latitude, oferecendo um clima com donnay e Pinot Noir, além dos vinhos e vem avaliando as primeiras culti-
temperaturas mais amenas ao longo tintos, elaborados a partir das uvas vares de uva para vinhos, em parceria
do ano. Na Chapada Diamantina, prin- Syrah, Malbec, Cabernet Franc e Pinot com a Universidade Federal Rural de
cipalmente nos municípios de Morro Noir, e brancos, com Chardonnay e Pernambuco (UFRPE) e o Instituto
do Chapéu e Mucugê, localizados Sauvignon Blanc. Agronômico de Pernambuco (IPA).
entre 1.000 e 1.200 m de altitude, a “Os vinhos da Chapada Diaman- De acordo com a pesquisadora
temperatura média anual é de 19ºC e o tina têm apresentado qualidade e tipi- Patrícia Coelho de Souza Leão, a
uso da irrigação é obrigatório. cidade muito interessantes, e os consu- região é uma bacia leiteira, sem
A vitivinicultura tropical de alti- midores terão grandes surpresas”, nenhuma tradição vitivinícola. “Isso
tude vem se desenvolvendo rapi- destaca Pereira. Além do excelente é um desafio muito grande, porque
damente, e tende a ser uma nova nível tecnológico dos produtos, o nós podemos estar ofertando uma
referência no mundo dos vinhos. Os pesquisador comenta que estão sendo nova alternativa, não só agrícola,

26 - Ciência para a vida


mas também do
enoturismo, já
que é uma locali-

Ilustração: Luciana Fernandes


dade com clima de
altitude e com forte potencial turís-
tico”, observa. tura, que
Até o momento, foram identifi- usa o método
cadas as variedades que se adaptam da dupla poda,
à região e estão em fase de vinifi- desenvolvido pelo engenheiro-
cação os primeiros vinhos elabo- -agrônomo Murilo de Albu-
rados a partir das uvas produzidas na querque Regina, pesqui-
área experimental. De acordo com a sador da Empresa de
pesquisadora, também há interesse Pesquisa Agropecuária de
de pelo menos um empresário local Minas Gerais (Epamig). A técnica vez de
na implantação de uma área comer- diferenciada é caracterizada por uma produção, acon-
cial, que deve contar com o apoio das poda em agosto, como normalmente tece em janeiro e
instituições envolvidas na pesquisa, ocorre no Hemisfério Sul. Só que a colheita em junho-
utilizando como base os resultados a poda, nessa nova técnica, é para -julho, em função das varie-
nela obtidos. a formação dos ramos, cujas uvas dades, em condições de inverno seco,
Já nos estados de Minas Gerais são descartadas entre novembro e com dias quentes e noites frias, o que
e São Paulo, tradicionais produtores dezembro, no início da estação das contribui para a qualidade da uva e
de café, surge uma nova vitivinicul- chuvas. Já a segunda poda, dessa para a tipicidade dos vinhos.

Foto: Fernanda Birolo

27
ESPECIAL

EM BUSCA DA INDICAÇÃO GEOGRÁFICA


São quase 50 anos desde os primeiros O grupo também trabalha na estru- vinhos, a descrição da tipicidade dos
projetos de elaboração de vinhos nas turação da Indicação de Procedência produtos, com base na viticultura e
áreas de clima tropical do Semiá- (IP) do Vale do Submédio São Fran- enologia regionais, e a caracterização e
rido e a experiência e o acúmulo de cisco para vinhos finos tranquilos e a valorização da paisagem e do enotu-
conhecimento gerados pelos empre- espumantes, iniciativa sob a coorde- rismo. E, ainda, com a participação
endedores da região, em colaboração nação dos pesquisadores Jorge Tonietto dos produtores, está sendo elaborado
com a pesquisa, reforçam a imagem e Giuliano Pereira, cujos trabalhos o Regulamento de Uso, documento
da agricultura brasileira como inova- deverão estar concluídos ainda em que estabelece padrões de produção
dora, capaz de encontrar soluções para 2017 para encaminhamento ao Insti- a serem adotados para os vinhos que
problemas complexos, abrindo novas tuto Nacional de Propriedade Industrial receberão o selo de Indicação de Proce-
oportunidades na faixa tropical do (INPI). "Essa será a primeira indicação dência na região.
globo. geográfica (IG) de vinhos tropicais do A indicação geográfica, além de
Em 2002, por demanda do setor Brasil e a primeira do mundo equi- valorizar os territórios vitícolas brasi-
produtivo local, a Embrapa Uva e valente ao padrão europeu, possibi- leiros, reforça a reputação do vinho
Vinho e a Embrapa Semiárido come- litando a qualificação dos produtos brasileiro, servindo para qualificar
çaram um projeto de pesquisa com o com padrões de identidade típicos do sistemas de produção de uvas e vinhos,
objetivo de desenvolver tecnologias Semiárido brasileiro, onde a produção diferenciando a indústria vinícola
para a produção de vinhos de quali- de uvas e vinhos ocorre durante todo nacional.
dade com tipicidade regional. "Além o ano, viabilizando a promoção dos Segundo Mauro Zanus, chefe-
de estarmos testando novas cultivares vinhos tropicais por meio das vinícolas -geral da Embrapa Uva e Vinho, a
para qualificar os espumantes, que integrantes do Instituto do Vinho do estruturação da Indicação Geográ-
representam 70% da produção atual Vale do São Francisco (Vinhovasf)", fica permitirá atribuir um ”sentido de
e são os mais apreciados da produção informa Tonietto. lugar” à produção local. “Os consu-
do Semiárido, estamos avaliando No âmbito do projeto está sendo midores de vinhos percebem a quali-
diferentes sistemas de manejo para feita a delimitação geográfica da área dade considerando, além dos elementos
aumentar a produção e também de produção da futura IG, com base da cor, aroma e sabor, todo o entorno
avanços no processo de elaboração de no zoneamento edáfico e climático, dos produtos, sendo a vinculação
Ilustração: Luciana Fernandes

vinhos tintos, como a retirada manual no relevo e no uso do solo, que inclui dos vinhos com a peculiaridade do
do engaço, que qualifica ainda mais as áreas de vinhedos e das vinícolas. 'lugar Semiárido' um diferencial que,
os produtos", informa o pesquisador Estão sendo feitas a caracterização certamente, será valorizado pelos
Giuliano Pereira. da qualidade química e sensorial dos mercados”, assinala Zanus. •

28 - Ciência para a vida


‹ navegue › ———————————
Simpósio Internacional de Vinhos Tropicais
(ISTW). Mais informações no site:
https://www.embrapa.br/uva-e-vinho/istw.

Embrapa Semiárido
https://www.embrapa.br/semiarido

Embrapa Uva e Vinho


https://www.embrapa.br/uva-e-vinho
————————————————————

29
CENÁRIOS

EDITOR DE GENES
Ao “cortar” e “colar” partes do genoma
de plantas, animais e microrganismos,
a técnica CRISPR tem potencial para
revolucionar a ciência da vida

Por Fernanda Diniz


Arte: Roberta Barbosa
Infografia: Bruno Imbroisi

No mundo digital, a definição DNA de qual- imunológico"de bactérias, que,


contemporânea do verbo quer espécie quando são atacadas por um determi-
“editar” é a possibilidade de e modificá-lo nado vírus, guardam pedaços do DNA
alterar um arquivo. Essa é a de acordo com do organismo agressor. Com isso,
base para compreender o que as necessidades toda vez que entram em contato com
significa a edição de genomas. da pesquisa, sem a aquele mesmo vírus, conseguem reco-
Atualmente, a tecnologia mais promis- inclusão de genes de outras nhecê-los rapidamente. Essa capaci-
sora nessa área é denominada CRISPR espécies.” Por exemplo: no caso de dade instigou os cientistas, levando-os
(Clustered Regularly Interspaced uma doença genética, fruto de uma a alterar a informação do patógeno,
Short Palindromic Repeats) que, como mutação nas bases nitrogenadas da no caso o vírus, colocando em seu
explica o pesquisador da Embrapa Soja cadeia de DNA, é possível corrigir isso lugar a informação de outra sequência
Alexandre Nepomuceno, “funciona com o uso dessa ferramenta. de DNA. “Assim, surgiu o sistema de
como um corretor ortográfico, permi- A técnica foi descoberta edição gênica", comenta Nepomuceno.
tindo identificar genes de interesse no em estudos sobre o "sistema Por meio dessa técnica é possível

30 - Ciência para a vida


corrigir e criar novas situações. Um de amilopectina, já aprovado
exemplo recente é um milho desenvol- como não transgênico nos
vido nos Estados Unidos para atender Estados Unidos, apesar de ter
a dois segmentos − fabricação de sido modificado geneticamente.
Ilustrações: BriAnna Shultz e nettel9 / iStock.com / Embrapa

papel e utilização na indústria alimen- "Essas tecnologias já estão


tícia. A semente do milho tem dois revolucionando a ciência pela faci-
tipos de amido: a amilose (25%) e a lidade de uso e precisão da modi-
amilopectina (75%), mas para utili- ficação genética, além de fugir da
zação nessa indústria, quanto menos polêmica dos transgênicos", afirma. mudança que
amilose, melhor. Para atender a indús- Isso porque a tecnologia CRISPR levaria centenas de anos na
tria, foi desenvolvido um milho modi- permite reforçar ou inibir determinada natureza, por meio de mutações natu-
ficado com a técnica CRISPR, desli- característica de um organismo, sem a rais, pode ser feita com apenas uma
gando o gene que produz a amilose, necessidade de incluir genes de outras mutação induzida, a partir do uso
o que gerou um produto com 100% espécies. Segundo o pesquisador uma dessas tecnologias.

31
CENÁRIOS

MUDANÇAS RADICAIS NOS


HORIZONTES DA GENÉTICA

Técnicas para editar e modificar o DNA são utilizadas desde


a década de 1980, mas a tecnologia CRISPR pode ser consi-
derada revolucionária por permitir a manipulação de genes
com maior precisão, rapidez e menor custo. Ela vem substi-
tuindo com bastante eficácia as TALENs (Transcription Acti-
vator-like Effector Nucleases), que eram as mais utilizadas
para alterar genes específicos em uma ampla variedade de
TUDO COMEÇOU COM ELES células e organismos.
Descoberta em 2012, a tecnologia utiliza enzimas Cas
para cortar o DNA em pontos determinados. Voltando à
A CRISPR é uma tecnologia relativamente nova – metáfora do corretor ortográfico, ela permite localizar e
começou a ser utilizada na agricultura em 2014. Segundo substituir genes, assim como palavras em um texto, sendo
o pesquisador da Embrapa Recursos Genéticos e Biotec- que o primeiro passo é localizar o gene a ser editado para,
nologia Elibio Rech, que, junto com Nepomuceno, é um depois, fazer a alteração desejada.
dos pioneiros no uso dessa tecnologia no Brasil, trata- A iniciativa pioneira com a tecnologia CRISPR na agri-
-se de uma evolução do conhecimento anunciado pelos cultura mundial foi obtida pela pesquisadora chinesa Caixia
pesquisadores James Watson e Francis Crick em 1953: a Gao (veja referência em navegue) com plantas de trigo para
descoberta da estrutura da molécula de DNA, sigla para resistência a uma das piores ameaças à cultura: uma doença
ácido desoxirribonucleico, responsável pela transmissão fúngica denominada Powdery mildew, que afeta não apenas
das instruções genéticas que coordenam o desenvolvi- o trigo, mas muitas outras culturas de importância agrícola.
mento e funcionamento de todos os seres vivos. Hoje, Gao utiliza também a CRISPR para desenvolver varie-
A façanha revolucionou a pesquisa científica e criou dades melhoradas de milho e arroz.
novos paradigmas para a biologia, a medicina, a agricul- Uma das vantagens dessa tecnologia é o fato de ela não
tura, a indústria e muitas outras áreas que se beneficiam depender da transgenia, o que pode facilitar sua aceitação
dos desenvolvimentos tecnológicos nas ciências da vida. pela sociedade, que ainda manifesta resistência aos orga-
O modelo desenvolvido por Watson e Crick demonstrou nismos geneticamente modificados (OGMs). Em alguns
que o DNA se assemelha a uma escada em caracol, o casos, a tecnologia pode até envolver transgenia, se forem
que lhes rendeu o prêmio Nobel de Medicina nove anos usados genes de espécies diferentes, mas, na maior parte
depois. Seguindo a descoberta, o geneticista suíço Werner das pesquisas, como as desenvolvidas por Gao, a edição do
Arber identificou enzimas de restrição capazes de cortar a genoma é feita dentro da própria planta.
molécula de DNA, o que também lhe rendeu o Nobel de Para a cientista chinesa, é preciso aprender com os erros
Medicina em 1978. que foram cometidos em relação aos organismos trans-
Muitos termos que invadem hoje o cotidiano da socie- gênicos. Ela explica que, na China, a aceitação desses
dade contemporânea, como células-tronco, genoma, produtos não é boa, de forma geral. É necessário que a
transgênicos e clonagem, entre outros, são derivados sociedade conheça os benefícios e a forma de utilização
da descoberta de estrutura do DNA, porque, de todas dessa tecnologia para que não caia no mesmo nível de desin-
as áreas da biologia, a que mais avançou foi a de formação dos OGMs, o que levou grande parte da sociedade
biologia molecular. a rejeitá-la na década de 1990.

32 - Ciência para a vida


Aplicação da CRISPR para
geração de bois com dupla
musculatura.

O cruzamento desses bois COMO PRODUZIR UM BOI COM DUPLA MUSCULATURA


com outros bovinos de
corte resulta em híbridos,
cujas carcaças apresentam 1) A sequência de interesse do DNA, ou gene, é
maiores índices de identificada. No caso, o gene responsável por
inibir a dupla musculatura é o GDF8
rendimento e
produtividade.
2) Com o trecho conhecido faz-se um RNA-guia
(gRNA), com uma sequência que se encaixa
nesse gene de interesse

gRNA
3) O gRNA é acoplado
à proteína Cas9 , capaz
de cortar sequências
de DNA. Cas9

sequência
guia
4) A Cas9 gRNA procura a
combinação que se encaixará nele

5) Ao encontrar a sequência indicada pelo gRNA, a Cas9 a


corta no trecho indicado

6) O sistema de reparo da célula restabelece a ligação

resultar na inativação do gene

7) As células com o gene GDF8 silenciado poderão ser


selecionadas e clonadas para produção de animais com a
característica (fenótipo) de musculatura dupla.

33
CENÁRIOS

TECNOLOGIA É ESTRATÉGICA PARA O PAÍS


A CRISPR tem grande potencial Biology), formado pelas mais impor- editados, incluindo suínos, ovinos e
de utilização como ferramenta para tantes universidades, empresas e insti- bovinos. Entre os resultados obtidos
o desenvolvimento de processos e tutos de pesquisa do Brasil e do mundo com a aplicação dessa tecnologia no
produtos inovadores e agregação de que trabalham com o tema. Com isso, mundo, destacam-se a produção de
valor à biodiversidade, assinala o as tecnologias, as plataformas tecnoló- leite com menos ingredientes alergê-
pesquisador Elíbio Rech. Essa tecno- gicas e os produtos gerados pelo INCT nicos, de biofármacos no leite, desen-
logia representa uma quebra de para- farão parte de um modelo de inovação volvimento de vacas leiteiras sem
digma na engenharia genética até agora aberta e de cooperação competitiva e chifres, de ovelhas mais musculosas
utilizada porque permite "ligar" e ficarão à disposição da sociedade. e de miniporcos para comercialização
"desligar" genes dentro de uma mesma Para manter o protagonismo na como animais domésticos.
planta, sem deixar genes estranhos ao utilização da tecnologia CRISPR no Para o pesquisador da Embrapa
organismo no produto final. Brasil, a Embrapa a estabeleceu como Recursos Genéticos e Biotecno-
No Brasil, ainda há poucos uma de suas linhas de pesquisa estra- logia Maurício Machaim, o foco das
grupos trabalhando com a CRISPR. tégicas. “A possibilidade de editar pesquisas hoje está voltado à cura e à
A Embrapa é uma das pioneiras na genomas com alta precisão, a custos prevenção de doenças de animais, que
sua utilização no País. O pesquisador relativamente baixos, representa uma são o grande problema dos produ-
lembra que ela começou a ser testada nova revolução para a ciência”, enfa- tores: “Só o carrapato causa prejuízos
logo após a publicação do primeiro tiza Maurício Lopes, presidente da à pecuária brasileira superiores a R$
artigo no mundo em 2012: “Naquela Empresa. Ele explica que o uso dessa 5 bilhões por ano. Mas existem outros
época, não havia um projeto específico. tecnologia permitirá olhar a biodiver- problemas, como a mosca-dos-chifres,
Foram geradas plantas de soja, mas o sidade em um sentido mais amplo, a por exemplo.”
objetivo era dominar a metodologia e partir de um uso sustentável de seus O também pesquisador da Embrapa
comprovar sua eficiência.” recursos. Recursos Genéticos e Biotecnologia
O foco principal das pesquisas da Eduardo Melo ressalta que hoje os
Embrapa, no momento, é a geração de AVANÇOS NA ÁREA ANIMAL principais desafios da ciência são: a
plantas de algodão e soja com resis- velocidade e a oportunidade. Nesse
tência a pragas e doenças, tolerância a A biotecnologia animal vem cenário, a tecnologia CRISPR pode
estresses climáticos e aumento do teor evoluindo de forma vigorosa no representar uma aliada da ciência na
proteico e da quantidade de óleo, espe- Brasil. A década de 1980 foi marcada busca por essas soluções, seja para
cialmente no caso da soja. pelas microinjeções pró-nucleares de produzir medicamentos no leite de
Rech acredita que a aprovação, em embriões para produção de animais animais seja para curar doenças que
2016, do projeto “Instituto Nacional transgênicos, cuja eficiência foi muito afligem os rebanhos. “A velocidade que
de Ciência e Tecnologia (INCT) de baixa. A década de 1990 foi domi- ela oferece para ligar ou desligar genes
Biologia Sintética”, o qual ele coor- nada pela clonagem por transferência não tem precedentes em outras técnicas
dena, pelo Conselho Nacional de nuclear, com o nascimento da ovelha de edição de genomas”, afirma. Ele cita
Desenvolvimento Científico e Tecnoló- Dolly, na Escócia, e da vaca Vitória da como exemplo de sucesso o trabalho
gico (CNPq), pode fortalecer e intensi- Embrapa, no Brasil. Nos anos 2000, de uma equipe norte-americana que
ficar as pesquisas com a CRISPR, entre outras técnicas foram incorporadas conseguiu silenciar 62 genes de vírus
outras tecnologias. Isso porque o INCT ao conjunto de ferramentas cientí- em suínos.
contará com o apoio e será incluído ficas. Desde os anos 2010, a tecnologia “Na Embrapa Recursos Genéticos e
no consórcio internacional de biologia CRISPR passou a dominar a área de Biotecnologia, ainda estamos em fase
sintética "OpenPlant" (do inglês Open biotecnologia da reprodução animal. de domínio e estabelecimento da meto-
Technologies for Plant Synthetic Hoje, já existem mais de 300 animais dologia com a construção de vetores

34 - Ciência para a vida


REGULAMENTAÇÃO NO BRASIL
para a edição de genomas de bovinos.
A partir do momento em que conse-
guirmos dominá-la, as possibilidades
serão infinitas, comenta. Ao mesmo
tempo, o pesquisador faz questão de

Foto: Tomas May /Embrapa


ressaltar que a tecnologia ainda é muito
nova: “Para a ciência, uma tecnologia
de cinco anos ainda é muito recente.
O mundo inteiro, praticamente, ainda
está em fase de testes.” (Leia também
Múltiplas perspectivas para a pecuária Sistema de placas “ready-to-use” para detecção de OGM em alimentos.
de leite, na página 39).
A regulamentação para utilização da tecnologia CRISPR no Brasil é uma
questão ainda indefinida. Nos Estados Unidos, o Food and Drug Adminis-
tration (FDA), órgão governamental americano responsável pelo controle
DISPUTA DE PATENTES dos alimentos (tanto para uso humano como animal), tem demonstrado
a tendência de considerar os produtos editados pela tecnologia CRISPR
como não transgênicos.
A patente da tecnologia CRISPR nos Segundo o pesquisador da Secretaria de Relações Internacionais da
Estados Unidos é disputada entre dois Embrapa Marcelo Freitas, a diferença mais expressiva entre as regulamen-
cientistas norte-americanos: Jennifer tações relacionadas à biossegurança no Brasil, Estados Unidos, Argen-
Doudna, da Universidade da Califórnia, e tina e China é que, aqui, a aprovação de um produto resultante de NBTs
Feng Zhang, do Instituto de Tecnologia de (new plant breeding techniques), incluindo a tecnologia CRISPR, leva em
Massachusetts (MIT). conta todo o processo de desenvolvimento, enquanto nos outros países
A briga entre os dois impactou a forma se concentra nas características do produto final, independentemente do
estadunidense de deferir patente. Até processo.
março de 2013, o United States Patent Alexandre Nepomuceno, que também é membro da Comissão Técnica
and Trademark Office (USPTO) avaliava as Nacional de Biossegurança (CTNBio), explicou que a CRISPR e outras
patentes considerando todo o desenvol- tecnologias utilizadas no melhoramento genético de plantas, animais e
vimento do processo, incluindo atas de microrganismos vêm sendo alvo de discussões nesse órgão há dois anos.
laboratório. Hoje, a patente é deferida a "Nossa preocupação é definir como as novas ferramentas se encaixam na
quem depositar o pedido primeiro, assim Lei de Biossegurança, vigente no Brasil desde 2005", ressalta. Está claro
como é feito pelo Instituto Nacional de que a regulamentação das técnicas de edição de gene faz parte do escopo
Propriedade Intelectual (INPI), no Brasil. dessa Lei, já que ela abrange qualquer tipo de manipulação genética.
A coordenadora de Propriedade Intelectual Em termos técnicos, a técnica CRISPR já está sendo utilizada em vários
da Secretaria de Negócios da Embrapa, projetos no Brasil, mas ainda há muitas questões a serem debatidas, espe-
Sibelle Silva, afirma que existem hoje, cialmente em relação à regulamentação e à percepção pública. “É muito
no mundo, 662 documentos de patentes importante para o desenvolvimento de produtos no Brasil que a sociedade
que mencionam a tecnologia CRISPR. Nos seja claramente informada sobre os detalhes da tecnologia, procurando-
Estados Unidos, há 22 patentes conce- -se evitar o mesmo erro cometido mundialmente com a falta de informação
didas a partir do uso dessa tecnologia. sobre o uso da transgenia”, opina a pesquisadora Maria José Sampaio, da
Coordenação de Políticas Globais da Secretaria de Relações Internacionais
da Embrapa.

35
CENÁRIOS

COMO A ENGENHARIA GENÉTICA PODE MELHORAR A SOJA?


Por Lebna Landgraf

A resposta pode estar na ferra- VERSATILIDADE DA TECNOLOGIA mente fica silenciado no genoma
menta CRISPR. da própria soja, aceleramos um
Nos laboratórios da Embrapa O aumento dos teores de processo que poderia levar muitos
Soja há oito meses, a tecnologia ácidos oleicos na soja também é anos para acontecer espontanea-
está ajudando os pesquisadores a destaque nos estudos. Nesse caso, mente na natureza”, completa. O
desenharem algumas construções o objetivo é melhorar a qualidade pesquisador cita, em contraponto,
gênicas para angariar caracterís- do óleo de soja, pois o aumento o caso da tecnologia Cultivance,
ticas diferenciadas à cultura da no teor de ácido oleico propor- disponível no mercado desde
soja. A soja está presente em 33 ciona maior estabilidade do óleo 2015, que se baseia em uma soja
milhões de hectares no Brasil, e reduz a necessidade de hidroge- resistente ao herbicida da classe
que é hoje o segundo produtor nação química, responsável pela das imidazolinonas, que possui o
mundial do grão. produção dos indesejáveis ácidos gene ahas transferido de plantas
A ferramenta CRISPR/Cas graxos trans. “Com relação às de Arabidopsis. “Como a caracte-
vem sendo estudada pela pesqui- sementes de soja, nosso objetivo rística foi introduzida no genoma
sadora Liliane Henning, da será desligar genes que aceleram da soja via outra espécie vegetal
Embrapa Soja, com o objetivo de seu processo de deterioração, tanto (Arabidopsis), é considerada uma
desativar genes com caracterís- na pré-colheita quanto durante o soja transgênica”.
ticas indesejáveis e, dessa forma, armazenamento”, conta Henning. A CRISPR pode ainda ser
promover a melhoria da qualidade Já o pesquisador Alexandre utilizada para melhorar a resposta
de grãos e sementes. No caso dos Nepomuneco, da Embrapa Soja, da soja aos seus principais pató-
grãos, o foco é a alteração de rotas busca desativar genes envolvidos no genos, como o fungo causador
metabólicas para reduzir a ação metabolismo do etileno, hormônio da ferrugem-asiática, a mais
dos fatores antinutricionais. vegetal que interfere nos meca- severa doença da cultura. Traba-
A leguminosa apresenta alto nismos de aumento de tolerância à lhos conduzidos nessa linha pela
valor nutricional. Em média, seca: “O gás etileno está envolvido pesquisadora Francismar Correa
possui 38% de proteínas, 20% de com a maturação da soja e, quando Marcelino, da Embrapa Soja, iden-
lipídios (óleo), 5% de minerais e interferimos nesse metabolismo, tificaram genes relacionados à
34% de carboidratos. Apesar de podemos ampliar o tempo que a patogenicidade que são expressos
suas características benéficas, os planta suporta períodos de seca”. pelo agente causador da doença no
grãos contêm alguns fatores que O desafio é desenvolver uma momento da infecção e transferidos
podem diminuir a disponibili- planta de soja não transgênica com para a soja, que tem como alvo
dade de nutrientes e a absorção de resistência ao herbicida da classe regiões do DNA da planta. “Identi-
aminoácidos. “Utilizando a tecno- das imidazolinas. “Nossa ideia ficar tais regiões e posteriormente
logia CRISPR/Cas para desligar é utilizar a tecnologia CRISPR/ promover alterações pontuais com
genes que determinam a expressão Cas para editar os genes ahas da uso da CRISPR/Cas que impeçam
dos fatores antinutricionais, como própria soja, e não ter que inseri- tal ativação ou desligamento de
Foto: Paulo Lanzetta / Embrapa

os inibidores de tripsina, por -los de outra espécie. Assim, o genes da soja pelo patógeno pode
exemplo, podemos aumentar a produto final seria uma planta não contribuir para o desenvolvimento
digestibilidade da soja”, avalia a transgênica”, conta Nepomuceno. de novas alternativas de controle da
pesquisadora. “Ativando o gene ahas que atual- doença”, explica.

36 - Ciência para a vida


PRECISÃO PARA A CANA-DE-AÇÚCAR

Foto: Paulo Lanzetta / Embrapa

Por Vivian Chies

Ganhar agilidade e, principalmente, em outra variedade capaz de crescer de


precisão na engenharia genética da forma eficiente em solos com alto teor
cana-de-açúcar, cultura que tem papel de alumínio. O protocolo de transfor-
relevante tanto na cadeia de alimentos mação genética gerado nesses traba-
quanto para a segurança energética do lhos, agora, servirá de base para o
Brasil – essa é a proposta dos pesqui- desenvolvimento de novas caracterís-
sadores da Embrapa Agroenergia. Em ticas nas plantas, utilizando a tecno-
2015, a biomassa da cana foi respon- logia CRISPR/Cas9 .
sável pela geração de 16,9% de toda a O pesquisador Hugo Bruno Corrêa
energia consumida no País, principal- Molinari explica que um sistema de
mente na forma de etanol e eletricidade transformação genética bem estabele-
gerada com a queima do bagaço. cido da espécie com que se vai traba-
Com o uso da engenharia gené- lhar é um dos pré-requisitos para o
tica e técnicas convencionais, pesqui- uso da CRISPR/Cas9, uma evolução
sadores desse centro de pesquisa já das técnicas de modificação genética.
desenvolveram uma cana transgênica “É uma transformação genética com
tolerante à seca, que está em fase de precisão”, resume. Mas há uma dife-
avaliação a campo, e estão trabalhando rença importante, já que nenhum dos

37
CENÁRIOS

elementos utilizados para promover a comportamento que se quer modificar.


modificação permanece no genoma das A CRISPR/Cas9 não constitui uma
plantas: “Nem a enzima, nem qual- nova técnica que dispensa o conheci-
quer outro elemento utilizado para a mento e as metodologias desenvolvidas
transformação ficam presentes.” Por até então para modificação genética.
isso, o Departamento de Agricultura “Todas as expertises que hoje existem
dos Estados Unidos tem considerado serão aproveitadas e será necessário
não geneticamente modificadas as um domínio ainda maior do que se está
variedades de plantas obtidas por essa fazendo. É uma evolução da técnica!”,
técnica. ressalta.
A precisão é justamente a grande No caso da cana-de-açúcar, essa
vantagem apontada por Molinari no uso necessidade de conhecimento limita a
da CRISPR/Cas9. Com a metodologia aplicação da tecnologia CRISPR/Cas9.
convencional, o DNA portador das Diferente de milho e soja, por exemplo,
características desejadas (DNA doador) a planta ainda não tem o sequen-
é inserido na planta que se quer modi- ciamento completo de seu genoma
ficar, mas não há como direcioná-lo disponível. Ainda assim, os pesquisa-
para a região exata do genoma em que dores conseguiram, nos poucos genes
ele precisa ficar. O que se faz, então, cujas sequências já foram decifradas,
é repetir o processo muitas vezes, características importantes que podem
gerando, frequentemente, milhares ser modificadas com essa técnica de
de indivíduos. Os cientistas, então, precisão.
observam o comportamento de cada Mas a tarefa não deve ser fácil.
um deles para identificar e selecionar Enquanto em boa parte das plantas há
aquele que apresenta a característica apenas um par de cada gene, na cana
que se pretendia adicionar sem perder o há seis pares. Ou seja, para conferir à
desempenho que a planta já tinha. planta a característica desejada, será
“Adotar a tecnologia CRISPR é preciso fazer a mesma modificação
adicionar uma espécie de localizador em cada um deles. O desafio é grande,
ao processo, que leva a enzima Cas9 mas Molinari acredita que vale a pena.
e o DNA doador até o local exato do Muitas propriedades desejáveis às
cromossomo exato em que ele precisa culturas agrícolas, especialmente no
ficar. A Cas9 é uma enzima que faz atual cenário de mudanças climáticas,
‘cortes’ no DNA da planta, provocando não são encontradas em mutações natu-
uma mutação que inativa um gene rais que viabilizem programa de melho-
indesejado, ou abrindo caminho para a ramento clássico, por cruzamentos. A
entrada de um DNA doador”, explica engenharia genética com a CRISPR/
Molinari. Cas9 surge, então, como técnica pode-
Contudo, a fim de indicar à rosa. “Temos oportunidade de, com
CRISPR para onde levar a enzima e precisão cirúrgica, modificar exata-
o DNA doador, é preciso conhecer (e mente aquela característica que é alvo
muito bem!) o genoma do organismo do estudo. É uma ferramenta muito
ao qual se pretende conferir uma nova interessante, porque temos a precisão a
característica. É essencial conhecer nosso favor”, defende o pesquisador da
muito bem o gene que governa o Embrapa Agroenergia.

38 - Ciência para a vida


MÚLTIPLAS PERSPECTIVAS PARA A
PECUÁRIA DE LEITE
Por Marcos La Falce

Em um futuro próximo, o panorama da pecuária de leite poderá Também há propostas para


sofrer mudanças importantes. Ferramentas de edição genômica, como produção de leite hipoalergênico,
CRISPR, poderão ser aliadas importantes para que a área de melho- com a alteração da beta-lactoglobu-
ramento genético animal possa promover inúmeras modificações em lina e outras proteínas que compõem
qualidade e quantidade com velocidade superior às técnicas até então o produto e são responsáveis por
existentes. provocar intolerância em consumi-
De acordo com o pesquisador Luiz Sérgio Camargo, as ferra- dores. Outra pesquisa em andamento
mentas de edição genômica podem incluir aplicações bastante pontuais visa alterar determinadas enzimas
na bovinocultura leiteira. “Existem mutações benéficas que surgem para ampliar a quantidade de ácidos
conforme a evolução de determinada espécie ou raça e que, no entanto, graxos insaturados, como o ácido lino-
não existem em outra raça com a qual precisamos trabalhar. A enge- leico conjugado (CLA, presente em
nharia genética de precisão permite uma eficiência muito maior para grande quantidade no azeite de oliva),
que possamos desenvolver tal mudança em raças que não possuem as o que possibilitaria a produção de leite
características que gostaríamos”, explica. com elementos que possuem papel
Com a técnica, será possível editar o genoma de acordo com a preponderante na redução do risco de
mutação desejada ou mesmo inserir uma sequência gênica encon- doenças humanas, como arterioescle-
trada em outra raça no exato ponto que vai determinar a alteração. O rose, infarto, AVC e vários tipos de
pesquisador completa: “Isso proporciona um controle muito maior câncer, entre outras.
sobre o que se pretende, em comparação com as ferramentas usadas “Todas essas perspectivas na área
anteriormente.” agrícola, como outras de tamanha
Um exemplo recente da aplicação da edição genômica na pecuária importância na área da saúde humana
é a geração de animais mochos em raças de produção leiteira, como a e animal, tornar-se-ão realidade com
holandesa, em que raramente nascem animais sem chifres, ao contrário maior rapidez, caso se decida por uma
da raça britânica Angus, naturalmente sem chifre. Segundo Camargo, regulamentação segura mas menos
já foram gerados nos Estados Unidos dois animais em cujo genoma foi complicada, baseada nas características
adicionado o alelo “mocho” (polled), um deles já em fase de produção finais do produto e que seja mundial-
de sêmen. Embora o impacto econômico dessa mudança não seja tão mente reconhecida e aceita pelos
relevante, é significativo para o bem-estar animal e dos trabalhadores. consumidores”, alerta a pesquisadora
Foto: Liliane Bello

“Sem necessidade da descorna química ou com ferro quente, não há Maria José Sampaio. •
sofrimento para o animal. Por sua vez, a ausência do chifre é mais
‹ navegue › ———————————
segura para o trabalhador e para o próprio rebanho”, ressalta.
Artigo mais recente da pesquisadora chinesa
Camargo revela que há perspectivas de pesquisas para induzir
Caixia Gao
mutações ou introduzir genes ou alelos visando desenvolver animais https://www.nature.com/articles/ncomms12617
com maior resistência a carrapatos, especialmente nas raças de origem
Sobre CRISPR
europeia, mais suscetíveis ao problema. O carrapato bovino causa
http://revistapesquisa.fapesp.br/2016/02/19/
prejuízos acima de US$ 2 milhões/ano à pecuária brasileira: “Porém, uma-ferramenta-para-editar-o-dna/
isso ainda depende dos resultados de estudos genômicos e fenotípicos
https://www.youtube.com/
associados que mostrem o caminho para uma edição do genoma que
watch?v=SuAxDVBt7kQ
promova o aumento da resistência ao parasita.” ————————————————————

39
PESQUISA

MELHORAMENTO PREVENTIVO

BRASIL SE
PREPARA PARA
UMA DAS
MAIS TEMIDAS
DOENÇAS DO
ARROZ

40 - Ciência para a vida


Cientistas desenvolvem variedades
resistentes à bactéria Xanthomonas e
se antecipam para proteger principal
cereal do prato do brasileiro
Por Fabio Reynol
Arte: Fernando Jackson

Uma doença perigosa surgiu na Ásia há é capaz de causar”, ressalta o pesquisador da


muitos anos. Ela dizima entre 20% e 30% Embrapa Marcio Elias Ferreira, coordenador
dos grupos atingidos e, não raro, até mais do projeto e um dos responsáveis pelo arroz
de 50%. A enfermidade se espalhou pelo recém-desenvolvido.
mundo e hoje já assola as vizinhas Venezuela As perdas a que Márcio Elias se refere
e Colômbia. A boa notícia é que o Brasil está alcançam facilmente a casa dos bilhões de
mais preparado para enfrentá-la. Não se trata dólares. Quando a ferrugem-da-soja chegou
de uma ameaça à saúde humana, mas à segu- ao Brasil em 2001, o País não estava prepa-
rança alimentar da população e à economia rado. O cientista lembra que foram gastos
agrícola. Trata-se da Xanthomonas oryzae mais de 3,5 bilhões de dólares em medidas
pv. oryzae, bactéria de difícil e dispendioso de controle e uso de fungicidas, somente no
controle químico, que se tornou um pesadelo primeiro ano de combate à doença. Estima-se
para rizicultores asiáticos e sul-americanos. que a ferrugem-da-soja já custou 25 bilhões
O patógeno ainda não foi encontrado de dólares ao setor agrícola nacional desde
nas lavouras brasileiras, mas o País está em que chegou ao País.
condições de enfrentá-lo graças ao melho- Prevenir custa menos, especialmente no
ramento genético preventivo, trabalho que que se refere a culturas de grande impor-
desenvolve plantas resistentes a doenças que tância econômica como a soja. No caso do
nem sequer chegaram ao território nacional. arroz, há também uma questão socioeconô-
No segundo semestre de 2016, cientistas mica, pois o cereal faz parte da mais popular
brasileiros validaram no Panamá as primeiras dieta nacional, o arroz com feijão. Prevenir-
linhagens de arroz com resistência à bactéria. -se de um mal como a Xanthomonas signi-
Se a doença cruzar suas fronteiras, o Brasil fica dizer que os brasileiros não precisarão
já terá material disponível para ser reprodu- comprar arroz a preços elevados nos super-
zido e distribuído a produtores antes de o mal mercados em um futuro próximo, o que
impor prejuízos. ocorre quando fortes quebras de produção
O novo arroz é resultado do trabalho do provocam desabastecimento. O meio
Programa de Melhoramento Genético Preven- ambiente também agradece. “As plantas
tivo da Embrapa, realizado por dois centros resistentes limitam o impacto ambiental,
Foto : Paluo Lanzetta/Embrapa

de pesquisa da Empresa (Recursos Gené- ao minimizar a aplicação de químicos para


ticos e Biotecnologia e Arroz e Feijão), em combater doenças ou pragas”, lembra Márcio
parceria com o Instituto de Pesquisa Agro- Elias, atualmente lotado no Agricultural
pecuária do Panamá (IDIAP). “Trata-se de Research Center (ARS), em Beltsville, no
um trabalho estratégico que poupa o País de estado de Maryland, Estados Unidos, por
perdas enormes que uma doença como essa meio do programa Embrapa Labex-USA.

41
PESQUISA

Sem tempo hábil para remediar


Uma das vantagens de se estudar tência das plantas, executar os cruza- que tenhamos certeza de que se trata
preventivamente um patógeno quarente- mentos adequados, selecionar plantas do mesmo organismo encontrado pela
nário é conhecê-lo antecipadamente para resistentes e desenvolver novas culti- primeira vez no Brasil”, explica.
saber como combatê-lo. Quando uma vares. São várias etapas, que exigem Além de antecipar uma solução
doença de alto risco entra em um país, muito tempo. Trabalhar preventivamente menos onerosa para um possível
o impacto econômico imediato é muito diminui os custos e aumenta a efici- problema futuro da agricultura brasi-
alto. Se o microrganismo não for conhe- ência do processo”, detalha o cientista. leira, o melhoramento preventivo
cido, as ações de combate demandarão Ele ressalta que mesmo a confirmação também possui o importante papel de
longo tempo, prolongando o prejuízo. da identidade do organismo quarente- capacitar os cientistas a trabalhar com a
“Geralmente, demora-se muito para nário pode ser demorada. “Muitas vezes doença ou praga com antecedência. Isso
desenvolver protocolos de avaliação de temos de enviar amostras de plantas deixa a agricultura nacional muito mais
sintomas, conhecer a biologia do orga- infectadas com a nova doença para preparada para enfrentar o problema
nismo, identificar os genes de resis- especialistas no assunto no exterior para quando ele enfim cruzar as fronteiras.

Sequeiro e irrigado adaptados


Quando a doença chegar ao Brasil, desenvolvidas para outros países. mento preventivo começa no Banco de
os agricultores já poderão contar com “Em geral, as variedades desen- Germoplasma. Os genes que procu-
plantas resistentes tanto de arroz irri- volvidas para as condições de plantio ramos estão conservados nas milhares
gado, plantado majoritariamente no estrangeiras não se adaptam às brasi- de variedades que guardamos para uso
Rio Grande do Sul, quanto de sequeiro, leiras e são pouco produtivas aqui”, presente e futuro no melhoramento de
cultivado em vários outros estados conta o pesquisador da Embrapa Paulo plantas”, conta Rangel.
brasileiros. As cultivares desenvolvidas Hideo Rangel. Por sua vez, ele frisa O Banco de Germoplasma de
são adaptadas às condições de plantio que as novas cultivares apresentam Arroz, situado em Goiás, forneceu os
daqui. É justamente a adaptação às alta produtividade. Rangel coordena materiais de que os cientistas preci-
condições locais o maior obstáculo o Banco de Germoplasma de Arroz, savam para obter as novas linhagens
para se importar solu- da Embrapa Arroz e Feijão, uma arca resistentes à bactéria, selecionados
ções prontas de Noé moderna que preserva mate- entre as 27.000 variedades de arroz
riais capazes de gerar novas plantas. O conservadas em baixa temperatura e
acesso a esse imenso arquivo genético umidade. “Selecionamos três genes
é fundamental para os trabalhos de de resistência de amplo espectro, ou
melhoramento que dependem seja, aqueles que promovem resistência
da diversidade para desen- simultânea a várias ‘raças’ de Xantho-
volver materiais com monas. Os genes foram introduzidos
as características em uma mesma variedade para desen-
almejadas. “O volver plantas resistentes”, detalha
melhora- Márcio Elias.
Foto : Paluo Lanzetta/Embrapa

42 - Ciência para a vida


PESQUISA
INTERNACIONAL
Plantas desenvolvidas para resistir a organismos quarentená- também. Por isso, uma das primeiras ações no trabalho de
rios ausentes no Brasil não podem ser testadas, em campo, resistência a Xanthomonas foi assinar um acordo de coope-
no País. A opção de teste exige a introdução do organismo ração entre a Embrapa e o IDIAP do Panamá" comenta Márcio
quarentenário para testar a resistência das novas plantas em Elias Ferreira. “Recentemente, assinamos um acordo especí-
câmaras de contenção de altíssima segurança, o que requer fico de colaboração científica em melhoramento preventivo
instalações especializadas e envolve custos elevados. Mesmo com o Serviço de Pesquisa Agropecuária dos Estados Unidos
com todo o controle, o risco de escape está sempre presente. (ARS-USDA) para a realização de pesquisa similar com outras
A opção mais racional é testar as novas plantas melhoradas espécies agrícolas, como feijão, soja e videira”, completa.
nos países que já possuem a praga ou doença. Por esse motivo, Além do instituto panamenho IDIAP e do ARS, a Embrapa
o melhoramento genético preventivo é fortemente atrelado a mantém colaborações visando ao melhoramento genético
parcerias internacionais. preventivo com o Instituto de Pesquisas Agropecuárias do
“Não há como fazer melhoramento genético preventivo Chile (Inia-Qilamapu), com Ministério da Ciência e Tecno-
sem colaboração de cientistas de outros países. Organismos logia de Angola e com a Corporação Colombiana de Pesquisa
quarentenários estão no exterior e os especialistas no assunto Agropecuária (Corpoica).

Acordos visando ao melhoramento genético preventivo

Serviço de Pesquisa Agropecuária


dos Estados Unidos

Corporação Colombiana de
Instituto de Pesquisa Pesquisa Agropecuária
Agropecuária do Panamá

Ministério da Ciência e
Instituto de Pesquisas Tecnologia de Angola
Agropecuárias do Chile

43
PESQUISA

Foto : Shutterstock/Embrapa
Próximos passos
Os testes de resistência conduzidos O desenvolvimento das variedades dedica a desenvolver novas variedades
no Panamá foram coordenados pelo de arroz resistente à bactéria é feito por de feijão-preto e feijão-carioca resis-
melhorista Ismael Camargo e pelo meio da técnica de retrocruzamento tentes à bactéria quarentenária Pseu-
fitopatólogo Felipe González, pesqui- baseado em análise de DNA. Os cien- domonas syringae pv. phaseolicola,
sadores do IDIAP. Eles usaram tistas acompanharam os genes transfe- uma importante doença do feijoeiro
isolados da bactéria que são comuns ridos de três fontes de resistência para em vários países. O trabalho já identi-
em lavouras de arroz naquele país. variedades de arroz adaptadas ao Brasil ficou três genes candidatos ao controle
Após os resultados positivos obtidos na analisando o DNA das sementes produ- das nove raças conhecidas do pató-
América Central, a equipe do projeto zidas em várias gerações do programa geno. Essa fase da pesquisa deve durar
pretende testar os materiais também na de melhoramento. As novas linhagens dois anos e envolve colaboração entre
Colômbia por meio de parceria com a possuem os genes de resistência a vários pesquisadores brasileiros e
Corpoica. “Sabemos que nossas plantas Xanthomonas e, ao mesmo tempo, são estadunidenses. A mesma abordagem
são resistentes às raças da bactéria muito parecidas geneticamente com está sendo aplicada para desenvolver
que estão no Panamá, agora vamos variedades que já são utilizadas nas variedades de soja resistentes ao pulgão
ver se apresentam desempenho seme- lavouras brasileiras. “A análise de DNA Aphis glycines, praga que assola plan-
lhante em relação àquelas presentes facilita e torna mais rápida e eficiente a tações nos Estados Unidos e que ainda
na Colômbia. Queremos oferecer ao seleção das características já presentes não foi detectada no Brasil.
produtor brasileiro um material com em variedades de arroz plantadas por
grandes chances de resistir a um amplo nossos agricultores, com o acréscimo ‹ navegue › ———————————
leque de raças do patógeno, caso a dos genes de resistência à bactéria”, Melhoramento preventivo
doença seja detectada no País”, almeja relata o cientista. http://bit.ly/2mLMY9K
o pesquisador. Márcio Elias Ferreira agora se

44 - Ciência para a vida


O café que driblou a ferrugem

Foto : Paluo Lanzetta/Embrapa


Todas as vezes que você erguer uma xícara de café brasi- Centro de Investigação das Ferrugens do Cafeeiro, em
leiro, agradeça a Alcides Carvalho. Graças a ele, a cafei- Oeiras, Portugal. Ao longo dos anos, várias progênies
cultura nacional foi melhorada para resistir a um fungo com diferentes níveis de resistência ao fungo foram iden-
que dizimava cafezais de outros países. tificadas e as plantas selecionadas usadas em cruzamentos
No início dos anos 1950, a ferrugem do cafeeiro não no Brasil.
fazia parte das preocupações dos cafeicultores brasileiros, Quando a ferrugem do cafeeiro cruzou as fronteiras
mas estava na pauta de pesquisa de Carvalho, geneticista brasileiras, a pesquisa já contava com híbridos resistentes
do Instituto Agronômico de Campinas (IAC). e prontos para serem multiplicados. Em uma época em
Vinte anos antes de a doença chegar ao Brasil, o cien- que o café era o principal produto agrícola do Brasil, a
tista se preocupou em obter plantas resistentes ao fungo visão do cientista poupou o País de prejuízos gigantescos.
que amarela as folhas do cafeeiro e reduz a produção. Ele Este é um dos mais bem-sucedidos casos de melhora-
cruzou espécies canéfora com arábica com o intuito de mento preventivo de que se tem conhecimento, e efeitos
associar a resistência da primeira às propriedades senso- do trabalho de Alcides Carvalho perduram até os dias de
riais proporcionadas pela segunda. hoje. Estima-se que a maioria dos cafeeiros em produção
Para identificar plantas de café resistentes à ferrugem, atualmente no Brasil possua parte de seu material gené-
Carvalho estabeleceu colaboração internacional com o tico oriundo das pesquisas do geneticista. •

45
46 - Ciência para a vida
47
INTERNACIONAL

O FIO QUE
NOS UNE
À ÁFRICA
Soluções tecnológicas e troca de
saberes – apostas para o fortalecimento
da cotonicultura em solo africano

Por Cristiane Vasconcelos e Edna dos Santos


Arte: Roberta Barbosa

Num continente onde a ajuda internacional historicamente e com dificuldade de acesso a novas tecnologias.
tem faltado na resolução de problemas como a miséria e a Em 2009, esse cenário começou a mudar com o início
insegurança alimentar, uma parceria tem sinalizado pers- do projeto Cotton-4 (C-4). Promovido pela Agência Brasi-
pectivas diferentes. Em vez de mero aporte de recursos e leira de Cooperação (ABC) e contando com a parceria da
tecnologias, troca de conhecimento e valorização do saber Embrapa, o projeto vem, mais do que oferecer soluções
local têm sido a fórmula do projeto “Fortalecimento tecnoló- tecnológicas, favorecer diálogos e intercâmbio de experiên-
gico e difusão de boas práticas agrícolas para o algodão nos cias e saberes para proporcionar a adaptação de tecnologias
países do C-4 e Togo”, ou, resumidamente, Cotton-4 + Togo. de acordo com as condições e as demandas locais, permi-
Desenvolvido pelo Brasil em conjunto com Benim, Burquina tindo, assim, elevar a produtividade do algodão em mais de
Faso, Chade, Mali e Togo, o projeto tem por objetivo apoiar 100% em campos experimentais do projeto.
os cinco países africanos no desenvolvimento do setor coto- “Existe um modelo mental de produção no Brasil e um
nícola, aumentando a produtividade, diversidade genética e na África. Nós fizemos a composição dessas experiências”,
qualidade do produto cultivado. afirma José Geraldo Di Stefano, coordenador técnico do
O algodão é uma das principais atividades econômicas projeto e analista da Embrapa Algodão. “O Brasil não apre-
no oeste africano, onde estão localizados os países que parti- sentou um modelo pronto. Desenvolveu um de acordo com
cipam do projeto. Mais de dez milhões de pessoas dependem as necessidades de cada país, região e local, proporcionando
diretamente da cultura nessa região. A sobrevivência dos uma verdadeira reflexão sobre os diferentes sistemas de
agricultores está atrelada ao que é produzido em pequenas produção e possíveis soluções”, reforça o coordenador.
propriedades, com tamanho em média de um a três hectares, A atitude brasileira de buscar o conhecimento local foi

48 - Ciência para a vida


o diferencial, acredita o pesquisador discussão da proposta. Em março de
Sebastião Barbosa, atual chefe-geral da 2009, com o projeto definido quanto a
Embrapa Algodão, já que, segundo ele, tecnologias e metodologias, iniciava-se
outros países haviam tentado uma ação oficialmente a cooperação internacional
parecida na mesma região, sem êxito entre Brasil, Benin, Burquina Faso,
em termos de adoção e continuidade. Chade e Mali – o Togo só entraria no
Por isso, muitas pessoas duvidaram, projeto em 2015.
inicialmente, que a experiência brasi- Do lado brasileiro, a Embrapa
leira seria bem-sucedida. assumiu a responsabilidade técnica do
C-4, ou seja, de sua execução por meio
HISTÓRIAS COMPARTILHADAS da troca e adaptação de tecnologias.
Por atuar diretamente com o tema, a
O caminho até esse ponto Embrapa Algodão assumiu a liderança
de equilíbrio não foi curto. técnica. Ao longo desses cinco anos, a
Começou iniciativa contou ainda com o envolvi-
em 2006, mento de pesquisadores de diferentes
quando a centros de pesquisa da Empresa, espe-
primeira cializados nas tecnologias levadas ao
missão com continente africano.
pesquisadores Pelo lado africano, a parceria
brasileiros da foi mediada por uma instituição
Embrapa e espe- de pesquisa de cada país: Instituto
cialistas da ABC de Economia Rural do Mali (IER),
chegou ao Mali para Instituto Ambiental e de Pesquisas
fazer um diagnóstico da coto- Agrícolas de Burkina Faso (Inera),
nicultura regional e indicar prio- Instituto Togolês de Pesquisa Agro-
ridades para um projeto de coope- nômica (ITRA), Instituto Nacional de
ração técnica. A missão resultou Pesquisas Agrícolas de Benin (Inrab)
num projeto estruturante de longo e Instituto de Pesquisa Agrícola para o
prazo, sob liderança de Sebastião Desenvolvimento do Chade (ITRAD).
Barbosa, que O pioneirismo da proposta obteve
incluía em o reconhecimento do Programa das
seu escopo a Nações Unidas para o Desenvolvi-
construção mento (PNUD), com a concessão, em
de infra- 2016, do prêmio S3 Award de Coope-
estruturas, ração Sul-Sul para o Desenvolvimento
como prédios Sustentável, organizado pelo escritório
e laboratórios, regional do PNUD para a América
e a promoção Latina e o Caribe (RBLAC), com apoio
de treinamentos do Escritório de Apoio a Políticas e
de pesquisadores Programas/Cooperação Sul-Sul (BPPS/
e técnicos africanos, SSC), de Nova Iorque. O projeto brasi-
para adoção e continuidade das leiro foi um dos quatro ganhadores,
soluções tecnológicas apresentadas. concorrendo com 33 programas de 19
Nova missão foi ao Mali para países da América Latina. »

Foto: Fabiano José Perina / Embrapa 49


INTERNACIONAL

Foto: Mohamed Hadjab / ABC


Dia de Campo no Chade apresenta benefícios das plantas de cobertura para o solo

PESQUISA ADAPTATIVA
O Cotton-4 +Togo baseou-se na adap- deterioração, procuravam novas áreas. melhor aproveitamento da água.
tação sustentável de tecnologias e Não havia iniciativas para recupe- “Na África, toda a água que cai
conhecimentos brasileiros às condi- ração, apenas uma degradação cada tem que ser disponibili-
ções de clima, solo e saberes do oeste vez maior. Em meio a esse cenário, zada para produção de
africano. Segundo Sebastião Barbosa, a experiência brasileira e a longa alimentos e de algodão”,
a primeira missão ao Mali resultou no história de sucesso baseada na adoção defende Di Stefano.
relatório que indicou as prioridades do plantio direto indicavam, como Dessa forma, os produ-
para o projeto, estruturadas, então, em alternativa, a adaptação dessa tecno- tores podem aproveitar
três eixos tecnológicos que orientaram logia às condições locais. a água especificamente
as atividades: melhoramento genético, Outra técnica adotada foi a rotação para o desenvolvi-
manejo integrado de pragas (MIP) e de culturas no mesmo terreno. Alter- mento de plantas,
sistema de plantio direto. naram-se algodão e grãos, como em vez de desper-
Entre as prioridades, destacou- milho, sorgo, feijão-caupi ou outra diçá-la com o
-se a conservação de solos. Com solos cultura que fizesse parte da tradição preparo do solo e
pobres em nutrientes e deficientes em alimentar do país. Além de tornar com o aumento de
água, pequenos produtores da região o solo mais rico, pois cada cultura sua fertilidade. Isso pode
plantavam somente o algodão durante plantada deixa, ali, nutrientes impor- ocorrer a partir da introdução
todo o ano. Num costume repassado tantes para as culturas que virão, e não do sistema Integração
de geração a geração, eles preparavam desgastar esse recurso, e sim recu- Lavoura-Pecuária (ILP)
a terra para o plantio aguardando as perá-lo, o plantio direto proporciona com uso de plantas
chuvas, mas com o mínimo sinal de ganhos também quando se trata do de cobertura prote-

50 - Ciência para a vida


toras do solo e introdução de culturas Nas propriedades de agricultores fami- nova espécie no Mali pelos pesquisa-
alimentares. liares, também no Mali, a produtivi- dores Ranyse Querino, da Embrapa
Aliado aos protocolos de plantio dade média saltou de 800 quilos de Meio-Norte, e Mamotou Togola, do
instalados, com o entendimento e a algodão por hectare para 2,2 toneladas. IER.
concordância dos agricultores, a cada A de milho chega a quatro toneladas. Cada um desses eixos contou com
ano, o Brasil forneceu aos países parti- Di Stefano ressalta a impor- ações de capacitações e treinamentos
cipantes dez variedades de algodão, tância da estrutura construída e outras promovidos pelo Cotton-4 +Togo,
sendo nove de fibra branca e uma melhorias que devem ser propiciadas com atividades nos campos da África,
colorida, com diferentes caracterís- pelo projeto para a continuidade das além da participação de pesquisadores,
ticas morfológicas e com potencial ações pelas instituições de pesquisa técnicos e produtores desses países em
para adoção na região. A intenção foi dos países do Cotton-4 + Togo: “A missões a diferentes regiões produ-
investir no melhoramento genético a revitalização dos laboratórios possi- toras do Brasil. Assim, conhecendo
partir de testes e estudos comparativos bilitará amenizar as principais difi- os sistemas produtivos brasileiros e
com as variedades locais realizados culdades dos sistemas de produção e comparando com os deles, foi possível
nos campos experimentais das institui- ampliar oportunidades de elaboração chegar de modo mais eficiente aos
ções parceiras. de projetos de pesquisa pelas institui- protocolos instalados nas chamadas
As variedades mais bem adaptadas ções desses países.” Unidades Comunitárias de Aprendi-
foram a BRS 286 e a BRS 293, não só Por fim, o terceiro eixo tecnológico zagem, construídas nas estações de
por sua produtividade, mas, principal- foi o manejo integrado de pragas, com pesquisa na África.
mente, pela coloração de fibra muito foco principal na adoção de técnicas
branca. Seu uso proporcionou um de controle biológico, considerado o TECNOLOGIA AVANÇADA
aumento da produtividade nos expe- maior problema da região, abrangendo
rimentos feitos, ordenadamente, em lagartas como a Helicoverpa armi- Em 2015, com início da segunda fase
Mali, Burquina Faso e Chade e depois gera, com potencial de destruição de do Cotton-4, que então passou a ser
em Benim. Segundo Di Stefano, diferentes culturas nesses países. chamado Cotton-4 + Togo, com a
a variedade BRS 293 chegou a “Assim como o plantio direto, o entrada desse último país, os desafios
apresentar produtividade de Manejo Integrado de Pragas (MIP) se voltaram para ações que permitam
700 quilos a mais do também não foi levado como modelo a consolidação das soluções tecnoló-
que as variedades pronto do Brasil. Aquele que foi gicas avançadas, garantindo que, num
locais. implantado nas culturas africanas foi país onde 70% da população é anal-
Na estação construído de acordo com as experi- fabeta, a informação com qualidade
de Sotuba, no ências locais”, explica o coordenador. seja facilmente compreendida pelos
Mali, totalmente Com a adoção do plantio direto e o produtores.
revitalizada pelo melhoramento genético das varie- A filosofia de trabalho, segundo
projeto, com dades, o MIP fechou a proposta de adianta o coordenador técnico, é
a construção de melhoria dos sistemas de produção do investir no diálogo. “O programa
prédios, salas de oeste africano. Diálogo: Pensar +1 está sendo
treinamentos e labora- Ainda com foco no manejo inte- proposto como estratégia para o desen-
tórios, a produtividade grado, foi instalado um laboratório volvimento da segunda fase do C-4,
atual chega a seis tone- de entomologia na estação de Sotuba para despertar internamente um novo
ap
a ladas de algodão e seis para produção do inimigo natural da olhar para sua missão e estudar novas
br
m
a
/E toneladas de milho. Antes lagarta, o Trichograma, nas ações maneiras de interação entre pessoas e
os
rb
le
Ba do início do projeto, os de controle biológico. Em 2014 foi processos, num verdadeiro exercício
ey

Fo
t o :K registros eram de 800 quilos e de confirmada a espécie local – o Tricho- de aprendizagem organizacional”,
1,5 a 2,5 toneladas, respectivamente. gramma lutea e ainda identificada uma prevê Di Stefano. »

51
INTERNACIONAL

C-4 + TOGO PELA ÓTICA


AFRICANA
O produtor Abdoulaye Traore do tecnologia que o projeto trazia. Mudei as capacitações e o investimento na
distrito de Sanankoroba e cidade de minha maneira de cultivar e isso tem infraestrutura de pesquisa dos países
mesmo nome, no Mali, possui uma contribuído para a melhoria dos meus serão de “valor inestimável” para
fazenda de 25 hectares, dos quais cinco campos de produção, o que me permitiu muitos estudos agronômicos a serem
são destinados ao algodão, 15, ao milho autossuficiência”, conta Traore. desenvolvidos pelas instituições locais.
e cinco, ao arroz. Para ele, o algodão Segundo o produtor, antes de adotar Ele diz que, por enquanto, não se
ocupa um lugar importante no sustento as práticas recomendadas pelo projeto pode falar de uma mudança no sistema
da família de 25 pessoas, incluindo a produtividade do algodão variava de produção do algodão no país, mas
cuidados com saúde, vestuário, uma de 600 a 900 quilos de algodão por acredita que o plantio direto pode trazer
nova construção, entre outras necessi- hectares e cerca de 2 mil quilos de uma melhoria significativa nos rendi-
dades financeiras. milho. “Agora o meu retorno é de 1,5 mentos dos produtores se for ampla-
Até a chegada do C-4, o cultivo mil a 2,1 mil quilos de algodão e 3 a mente adotado. “As ações ainda são
era feito da forma tradicional, com 4 mil quilos de milho por hectare”, muito fragmentadas. No entanto, alguns
semeadura manual após a aração do compara. agricultores-piloto já estão desfrutando
solo. Com o projeto, a família Traore A propriedade se tornou referência dos benefícios do sistema de plantio
aprendeu a semear diretamente sobre para os demais produtores da região, direto, especialmente o ganho do tempo
resíduos de milho e de plantas de cober- e ele, um multiplicador da filosofia do dedicado à aração e a capacidade de
tura, sem qualquer forma de preparo do projeto e defensor do plantio direto. plantar mais cedo, sem falar no impacto
solo, mesmo quando há baixa quanti- de uma fertilidade melhorada visível
dade de chuva. Outros produtores ficam VALOR INESTIMÁVEL em parcelas nas quais foi utilizada a
à espera de um volume significativo técnica”, observa.
de chuva para começar a lavoura. “No Na avaliação do chefe do programa Abdoullaye Hamadoun, diretor da
início eu estava hesitante. Alguns anos de Algodão do Instituto de Economia Estação de Pesquisa de Sotuba do IER,
depois, comecei a ver as vantagens da Rural do Mali (IER), Amadou Yattara, no Mali, onde foram desenvolvidos os

Foto: Mohamed Hadjab / ABC


Dia de Campo no Mali

52 - Ciência para a vida


primeiros trabalhos do C-4 + Togo, diz
que o sucesso do projeto se deve, entre
outros fatores, ao fato de “os parti-
cipantes do projeto terem visitado o Mudei minha maneira
Brasil, visto como o País faz sua agri- de cultivar e isso tem
cultura e conhecido diferentes sistemas
de produção.”
contribuído para a
melhoria dos meus
MULTIPLICAÇÃO DO CONHECIMENTO campos de produção
NO MALI
Abdoulaye Traore, produtor do Mali
O técnico agrícola do IER Sidiki Diarra
trabalha no C-4 desde a sua implan-
tação. Ele lembra que no início o
projeto foi recebido com desconfiança
pelos produtores. “O sistema de plantio
direto ia contra uma prática que vem (...) alguns agricultores-
sendo adotada há décadas pelos nossos -piloto já estão desfru-
produtores, que é arar a terra antes do
plantio”, relata.
tando dos benefícios
Entre as estratégias adotadas para do sistema de plantio
vencer essa resistência inicial, ele direto (...)
destaca os agentes multiplicadores bem
treinados e motivados para convencer Amadou Yattara, chefe do programa de
os produtores, apresentando os benefí- Algodão do Instituto de Economia Rural do
Mali (IER)
cios por intermédio da realidade local,
visível nas 19 Unidades Comunitárias
de Aprendizagem. Na segunda etapa do
projeto, foram treinados 35 extensio-
nistas e 70 produtores de cada país por Espero que todos possam
meio de capacitações e dias de campo, experimentar a tecno-
quando puderam observar in loco os
logia transmitida pelo
Fotos: Mohamed Hadjab / ABC
benefícios do plantio direto.
No futuro, ele espera que o C-4 projeto para melhorar
possa chegar a todas as áreas produ- seu conhecimento, sua
toras do Mali e trazer uma grande produtividade e propor-
contribuição para o país. “Espero que
todos possam experimentar a tecnologia cionar lucros (...)
transmitida pelo projeto para melhorar Sidiki Diarra, técnico agrícola do IER
seu conhecimento, sua produtividade
e proporcionar lucros, e ainda contri-
buir para garantir a renda dos produ- ‹ navegue › —————————————————————————————————
tores, segurança alimentar e, portanto, Matéria do site da ONU
para estabelecer a paz social no Mali”, https://nacoesunidas.org/brasil-ajuda-paises-africanos-a-modernizar-producao-de-algodao/
conclui. • —————————————————————————————————————————

53
ARTIGO

EM LINHA COM OS OBJETIVOS DE


DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
Por Maria José Amstalden Sampaio e Osório Vilela Filho
Foto: arquivo pessoal

Aprovados pela Organização das Nações Unidas Há uma orientação, estabelecida em


(ONU) em 2015, após processo de consulta reuniões interministeriais, para que as institui-
global iniciado em 2013, seguindo mandato ções elaborem planilhas de vinculação entre
emanado da Conferência Rio+20, os 17 Obje- as metas do Plano Plurianual (PPA) 2016-
tivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 2019 e as metas e indicadores dos ODS. A
têm sido incorporados pelos países-membros vinculação e o alinhamento das atividades
como um dos pilares para a construção e imple- das instituições com o cumprimento dos ODS
Maria José Amstalden mentação de políticas públicas que visam a guiar serão auditados pelo Tribunal de Contas da
Sampaio
a humanidade até, e além de, 2030. União (TCU) com base nos indicadores nacio-
Em setembro de 2015, o governo brasileiro nais a serem desenvolvidos ainda no primeiro
Pesquisadora da aderiu à Agenda 2030 para o Desenvolvimento semestre de 2017.
Embrapa
Sustentável. A agenda contempla um plano Com vistas a preparar a Embrapa para o
Campos de Atuação: de ação internacional para o alcance dos 17 devido envolvimento institucional na imple-
Políticas públicas
globais e nacionais no
ODS, desdobrados em 169 metas, que abordam mentação dos objetivos e metas de desenvol-
setor agrícola diversos temas fundamentais para o desenvolvi- vimento sustentável, foi criado, pela Presi-
mento humano, em cinco perspectivas: pessoas, dência da Instituição, um grupo de trabalho,
planeta, prosperidade, parceria e paz. coordenado por sua Secretaria de Inteligência
Os 17 ODS envolvem temáticas diversifi- e Macroestratégia (SIM), com o objetivo
cadas como erradicação da pobreza, segurança de elaborar a estratégia de alinhamento e
alimentar e agricultura, saúde, educação, igual- o acompanhamento das ações da Empresa
Foto: Cynthia Araujo

dade de gênero, redução das desigualdades, em relação aos ODS, conforme diretrizes
energia, água e saneamento, padrões sustentáveis governamentais.
de produção e de consumo, mudança do clima, O trabalho inicial do GT foi mapear
cidades sustentáveis, proteção e uso susten- como os Eixos de Impacto e os 12 Objetivos
tável dos oceanos e dos ecossistemas terrestres, Estratégicos expressos no VI Plano Diretor
crescimento econômico inclusivo, infraestru- da Embrapa se relacionam com os 17 ODS.
tura e industrialização, governança, e meios de Existe uma considerável convergência das
Osório Vilela Filho implementação. propostas institucionais já em andamento com
Para conferir legitimidade à Agenda 2030, o os ODS e que a Instituição poderá elencar,
Analista da Embrapa
compromisso brasileiro com os ODS foi deixado nos próximos anos, inúmeras contribuições
claro com a publicação do Decreto número ao cumprimento das metas da Agenda 2030
Campos de Atuação: 8.892/2016, que criou a Comissão Nacional para e à discussão dos indicadores nacionais nos
Políticas públicas e
relações internacionais os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e próximos meses. •
lhe deu competência para elaborar plano de ação ‹ navegue › ——————————————
para implementação da Agenda 2030, com estra-
www.odsnospodemos.org
tégias, instrumentos, ações e programas, bem https://nacoesunidas.org/pos2015/agenda2030/
como para acompanhar e monitorar o desenvol- http://www.agenda2030.org.br/

vimento dos ODS. ——————————————————————

54 - Ciência para a vida


Foto: Ronaldo Rosa/Embrapa

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