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A Banda, a Trompa, A Roda, o Samba

Meu primeiro sapato de banda e de samba foi um kichute. Minha primeira síncopa foi num
dobrado conhecido como “Sargento Calhau” de autoria de Antonino Manoel do Espírito
Santo, hoje considerado a “Canção do Marinheiro”. Na terceira parte ou o Trio dessa marcha,
as tubas desenham um treme terra melódico e “qual linda garça...”, trecho do poema “Cisne
Branco” inserida na referida balada militar, espraia-se numa marcação de lundu-dobrado,
marcha-polca maxixada nas ruas de São João Del-Rei.

Sou cria de banda de música, a Theodoro de Faria, fundada em 1902, dissidência da antiga
banda Ribeiro Bastos. Como Cláudio Camunguelo, flautista e compositor carioca, sou neto de
avô músico, Teófilo Rodrigues, o “Seu Tiófo”, como era mais conhecido. Em 1917, contando
com 26 anos de idade, assumiu a regência da filarmônica e durante 50 anos, manteve suas
atividades dentro de sua própria residência. Ainda jovem, junto com outros amigos fundaram
ranchos, cordões e blocos carnavalescos, sendo um dos mais famosos o “Rancho
Carnavalesco Custa mas Vai”, que também teve como sede sua própria residência.

Talvez por isso a banda, em muitas cidades, pois geralmente os músicos são quase os
mesmos, tem a fineza de possuir dois tipos de repertório: a música para banda propriamente
dita com suas marchas, dobrados e fantasias; e a música para a dança e o entretenimento....
Daí o praticar escalas, arpejos e um bom álbum de canções. Além disso, por ser um espaço de
resistência negra, convêm recordar as palavras de José Ramos Tinhorão¹ “... as bandas de
escravos foram as avós das liras do interior”, são donas de duas formas de aprendizagem
musical: uma de receita oral e outra de receita escrita. A primeira vem no sentido do fazer
tocando, lúdico e poético, um soar participativo e espontâneo, intuitivo e mágico. A outra
voltada para os métodos, a leitura e o professor, ou o mestre. Ambas são dialógicas e
essenciais na Arte. Não é à toa que Seu Luiz e Seu Zé, os imponentes senhores das tubas,
costumavam me perguntar se eu gostava de cantar como tocava, ou se gostava de tocar como
cantava. E como eles cantavam e contracantavam! Que fusão de linguagens, do repertório do
falar diversificado e do considerar do discurso musical pautado na memória afetiva.

A banda de música é a mais antiga e a menos estudada instituição ligada à criação e à


divulgação da música no Brasil, já dizia Vicente Salles². Foi ela a grande divulgadora de
repertório entre o povo, seja popular ou erudito. Pelo tipo de instrumento e repertório (e
acrescento aqui o aprendizado), sua música “parece” estar mais relacionada com o erudito;
contudo, em relação à sua organização, ela demonstra uma dinâmica social que se enquadra
Grande estudioso das bandas de música do Grão-Pará
numa cultura mais popular. Está presente na procissão do samba e da santa, e assim, no altar
da música o teleco-teco incensa um ritual de ritmos e gêneros. Dentro desse calendário
festivo, tocar e cantar era uma felicidade.

Quando menino, ainda menino pequenininho com pisar devagarinho para me distrair na
banda, era o responsável pelo centro. Todo músico de banda precisa saber o que é o canto (a
melodia), o contracanto (a resposta que trabalha enquanto o canto “descansa”), o centro
(acompanhamento rítmico-harmônico que identifica o gênero da composição) e a marcação
(combinação do baixo e “pancadaria”, ou percussão). Mais ou menos assim que os músicos
mais velhos nos fazem compreender a função e o comportamento das vozes musicais, ou seja,
“toca mais, quem ouve mais”. Nas estantes compridas de madeira, de um canto a outro da
sede, vários álbuns de sambas e marchas carnavalescas juntamente com partes de dobrados e
fantasias perfilavam. Coletâneas de clássicos de sambas dos anos 30 até sucessos atuais do
ano de 1976, data do meu ingresso como instrumentista no corpo musical. Anteriormente, eu
carregava a mala de partituras.

Como não entrar na roda? E qual roda? DaMatta (apud. MOURA p. 37, 2004) ao referir-se a
roda de samba comenta que, “a roda é uma ampliação do universo doméstico, o espaço onde
o trabalhador dá lugar ao boêmio e a rotina cede vez à criatividade”. Moura, outro
apreciador do samba, complementa que toda essa paisagem sonora, que não separa música e
vida é definida como o mundo do samba. Posso dizer o mesmo da banda. Uma reconstrução
de laços de sociabilidade onde alegorias e adereços de apregoados poéticos do músico amador
na filarmônica, tirados de suas ocupações, expressam a condução do que se canta ou toca na
sala de ensino e de ensaio da roda e da vida. Diz o músico verdureiro: “Vamos decorar esta
peça enquanto ela está fresca, para amadurecer até o dia da festa”; do músico alfaiate
“Mestre! Precisamos costurar mais esta melodia”; do músico sapateiro “Verdade! E o
contracanto não está solado com a marcação”. E os barbeiros? Bom, eles tinham a sua
música³.... Já o relojoeiro era um problema, principalmente com o ingrediente tempo, queria a
precisão rítmica de um relógio suíço num batuque Alcione. Precisava dizer o músico poeta e
malandro “Sinta o tempo, meu Gallo! Enxergue com os ouvidos e ouça com os olhos, porque
se for seguir o que está escrito na partitura, vira samba de mineiro branco...”

Essa alegria da roda reflete no contingente de seus membros e no seu repertório. Este espaço
indefinido é o que garante a apropriação de um imaginário sonoro pleno de metáforas e
ditados do corriqueiro popular de uma comunidade traçada no sagrado e no profano.
Uma saudosa recordação das bandas de barbeiros. Talvez essa música tenha sido o primeiro serviço
urbano de música de entretenimento oferecido no Rio de Janeiro e Salvador.
Tradicional, num universo heterogêneo sambado e erudito, onde as realidades das bandas de
música pertencem tanto ao mundo rural quanto urbano.

E este ambiente familiar da banda, que também se expressa no samba, influencia a formação
musical de tantos brasileiros através das funções que exercem na sua comunidade. Trilhas
sonoras advindas de uma apreciação pautada na memória afetiva que se mostra importante na
minha prática musical, no intuito de preservação desta cultura, preferências e gostos musicais.
É a escala cromática que se apresenta como o colorido da música, da colcheia que se torna
coxinha e do diapasão, que se transforma jocosamente em “Diazepan”, torna-se agora
ansiolítico natural nos ouvidos transtornados de ansiedade justamente pelo afloramento da
euforia de tocar. Nesse desabrochar de papéis interpretativos, que convertem sons e poesias
em momentos memoráveis de uma roda que não pára de girar. Se é pecado sambar, o perdão
divino é recebido como uma alegria que atravessa o mar e se ancora na pluralidade brasileira
de mestres de banda e de samba. Como eu, com a trompa na banda e na roda do samba, na
banda com o samba e na roda com a trompa. Com o samba, com a trompa, com a banda na
roda...

Uma saudosa recordação das bandas de barbeiros. Talvez essa música tenha sido o primeiro serviço
urbano de música de entretenimento oferecido no Rio de Janeiro e Salvador.

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