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O curso de artes? Desconfiei que pudesse concluí-lo com um trabalho amigo. Saravá!

Diário de um ensaio

monográfico

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
Faculdade de Filosofia, Comunicação, Letras e Artes
Departamento de Linguagens do Corpo

Erica Cristina Silva Pereira

Caderno apresentado à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,


como pré-requisito para a obtenção do título de Bacharel em Comunicação das Artes do Corpo –
Habilitação em Dança, orientada pelo Professor Doutor Lucio José de Sá Leitão Agra.

São Paulo
2013

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Banca Examinadora

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AGRADECIMENTOS

Aos meus avós Dona Nega (Maria Quitéria Abdor Rodrigues), Seu Dinda (José Severino da Silva Siqueira), Seu
Martiliano (Martiliano Pereira) e Maria Mulata (Maria Silva Camargo Pereira), aos meus pais Dona Beth e Seu Luiz e
familiares.

Aos criadores, desenvolvedores e mantenedores do Prouni; a Rose Wiira, Evandro, Professor Jarbas, ao Setor de
Atendimento Comunitário e ao Setor de Administração de Bolsas de Estudos.

Aos amigos Michelle Mattiuzzi, Renata Bessa, Robson Silva, Marcelo Pereira, Barbara Sabrina, Uedes Reis, Eduarda
Gomes, Janaína Melo, Marcela Bonfim, Bruna Vitorino, Selma Berreto e Cláudia Simões pelas “negrices” na PUC.

Aos amigos queridos Fernando Saintive, Evelyn Sayeg, Claire Jean e Adriane Gomes.

Aos amigos do curso Fernanda Perniciotti, Lígia, Bruno Terra, Diego Marques, Emanuella Soares, Flora Rouanet,
Natasha Zacheo, Pedro Consorte, Gabriel Villas Boas, Nara Mendes, Lilian Souza,Bruna Freitag, Hannah Ferreira, Valeria
Ribeiro, Renata Gonnito e Daniela Bescow, Lucas Mondin,.

Aos companheiros de aventuras Lets, Mogli, Fernandinha, Vina, Glauco, Chacal, França, Raoni, Cássio, Kalanga,
Brunos, Limão, Abensur, Tatit, Van Ham, Marquinhos, Mateus, Kauê, Le, Sara, Fi, Lúcia, Bárbara, Lanza, Tatá e Klaus.

Ao mestre de capoeira Carlos Alberto Barbosa, o Mestre Barbosa.

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Aos embaixadores do samba de São Paulo Mestre Gabi, Fernando Penteado, pelo conhecimento compartilhado
durante os dias de preparação para o carnaval 2013 da Uesp.

Ao orientador desta pesquisa Lucio Agra, pela liberdade e confiança, além das pistas para estudos futuros.

Aos professores Amálio Pinheiro, pela motivação; Cassiano Sydow, pela paciência e curiosidades; Christine Greiner,
por todo o carinho e dedicação, além das dicas fantásticas e precisas; Carlos Gardin, pelas viagens imaginárias até a
Europa; Rosa Hercoles, pelas estratégias sensíveis de comunicação ; Gaby Imparato, pela humanidade; Lucila
Tragtenberg e LauraMartz, por mostrarem o quanto se canta com o dedão do pé.

Aos fotógrafos Half Henze, Leandro Pena , Fernando Pena e Renato Batata.

Ao professor Douglas, pelas fantásticas aulas de fotografia e Malu Guedes por tornar evidente a dimensão que a
compaixão traz.

A Gabriel Nascimbeni e Carminha Fernandes, pelo amor de cada dia.

À Ialorixá Maria Helena de Yoba e ao Ase Egbe Omo Yoba Tunde.

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“Um pensamento mutilador conduz necessariamente a ações mutiladoras”
(Edgar Morin)

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Diário de um ensaio monográfico: um olhar mestiço para a dança do mestre-sala e porta-bandeira

Apresentação
Serra, mar, mato, mangue, cachoeira, mata atlântica
Dança, pódio e cabelo duro
Corto qualquer mandinga com o meu berimbau
Bateria nota
As malas e as minhocas
Num ou noutro
Paixões, atrasos e casulos
Corredores
Projeto Salamandra
Os olhos de Claire
Sambas e saberes
Diz que fui por aÍ

A tal monografia
- Entre o sim e o não há um infinito de estrelas
- A busca por influências
- O tracejo desmesurado da rede de mestiçagem não cabe aqui
- Minueto no Brasil
- Samba
- Capoeira
- A dança (?) do mestre-sala e porta-bandeira

- Referências bibliográficas

Considerações sobre a tentativa de desenvolver um olhar mestiço à dança do casal porta-bandeira


Macumba
Agradecimentos especiais
As próximas páginas são suspensas...

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Apresentação

Desde o início do ano se planejava escrever uma monografia. Porém, ao longo da pesquisa foi percebido que
motivações pessoais tomaram conta do processo da produção do texto científico. O trabalho teve início em torno
do casal mestre-sala e porta-bandeira e a problemática evidenciava inquietações referente à necessidade que
algumas pessoas têm em divulgar a essa prática somente como afro-brasileira.

A questão da afro-brasilidade sempre esteve presente em meus trajetos artísticos, porém a maneira como
entendo as influências das culturas africanas não oculta a influência de outras, como a indígena e a europeia.

Após uma conversa com o orientador da pesquisa, Lucio Agra, tive a chance prazerosa de conhecer um outro
professor que desenvolve estudos a cerca da mestiçagem.

Conforme a pesquisa se desenrolava outras pistas de estudos apareceram e o candomblé surgiu como um
objeto de estudo para pesquisas futuras. O desdobrar das leituras e experiências tornou evidente que a dança do
casal porta-bandeira, tema inicial do trabalho, poderia não ser estudada de maneira generalizada. Diante disto e
sem tempo hábil para continuar a pesquisa, a tentativa de perceber profundamente os aspectos mestiços da
dança do casal porta-bandeira não foi possível muito menos a fundamentação teórica sobre mestiçagem ou
democracia racial. Por outro lado, o olhar mestiço vislumbrou paisagens antes não percebidas...

Este diário monográfico traz algumas vivências pessoais que envolvem infância, samba, dança, ritmo, canto,
preconceito e curiosidades ligadas a recém-descoberta mestiçagem cultural. Desde já agradeço à pessoa que
num passe de mágica trouxe este fio condutor. Obrigada Lucio!
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Serra, mar, mato, mangue, cachoeira, mata atlântica...

O samba, a lambada, o forró, os aboios e toadas foram ritmos frequentes em festas de uma família
pernambucana residente num bairro cubatense onde eram realizadas rodas de samba, quadrilha e ensaios do
bloco carnavalesco Cidade de Madeira. Cresci com a figura de meus pais, primos e avós. Sempre quando valia a
fuga dos cuidados de Dona Nega (avó materna) eu e meu primo íamos a celebrações em terreiros de candomblé
para as festa dos Ibejis1 e de Cosme e Damião, espaço de muito canto, dança e comidas.

Os adultos chamavam aquilo de macumba, alguns falavam que era coisa do Satanás. Apesar de medrosa, eu
ia, adorava comer os quiabos com a mão, dançar com as pomba-giras e ganhar doces e presentes. Não via nada
de mal, se fosse coisa do Satanás, então o sujeito era legal.

Na rua em que fui criada, morava um sambista, conhecido por todo o bairro, chamado Ademir. As casas de
madeira não retinham os sons, então, qualquer que fosse o barulho que algum vizinho fizesse, toda a vizinhança já
sabia qual era a dança. Ademir sempre colocava na vitrola clássicos de Bezerra da Silva, Nelson Sargento, Nelson
Cavaquinho, Geraldo Pereira, Zeca Pagodinho, Martinho da Vila, Adoniran Barbosa, Demônios da Garoa, Beth
Carvalho, Clara Nunes, Cartola, Aluísio Machado, Romildo de Bastos (que depois voltou a minha vida por meio de
outro sambista) e Candeia. Toda vez que ele passava em frente a minha casa, jogava frutas para meus cachorros e
gritava:

1 São um orixá-criança (energia), duas divindades gêmeas, ligados a tudo que se inicia, como rios, geminações de plantas e etc.

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- Vamos pro samba princesa!

Sem demora, corria atrás dele e ganhava uma tubaína mais um salgadinho de palitinho! Nossa como eu
gostava de tudo aquilo. Ademir era ex-marido da costureira do Bloco Cidade de Madeira, que também era minha
vizinha (filha da Vó Odete, a senhora que me benzia todas as semanas) e morava ao lado dele. Os filhos deles
brincavam comigo e eram meus amigos de festas nas ruas e de carnavais. Dentre as várias atividades que meus
pais me punham, eu contava os meses para chegar a farra dos ensaios de carnaval.

A Vila se transforma em harmonia


Pinta a avenida e faz o povo delirar
Chega de politicagem, vamos falar verdade
senão o bicho vai pegar!
Ô tira a mão do meu bolso por favor doutor,
não aguento mais essa de horror,
oi i tira a mão do meu bolso por favor doutor,
não aguento mais essa de horror !

A Siri é explosão, tem muito samba no pé


bate na palma na mão, convida a multidão pra vir sambar
Cidade de Madeira está no ar !2

Os ensaios aconteciam na área mais arejada da Vila Siri (o nome oficial do bairro é Vila dos Pescadores), lá (no
ensaio) iam pessoas de várias idades e todas as cores, mas predominantemente havia mais negros. Apesar da
fama que o bairro tinha de favela perigosa, as pessoas consideradas “ricas do bairro vizinho de gente branca”
ultrapassavam a passarela e caiam no samba da Siri. O sambão acontecia praticamente à luz da Lua, pois os

2Infelizmente não encontrei registros oficiais do desfile. O que há aqui é parte que ficou na minha memória, certamente aconteceu na década
de 90, no bairro Jardim Casqueiro de Cubatão (SP), também não sei quem foram os compositores.
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postes eram poucos e a prefeitura não fazia corretamente a manutenção. Havia várias rodas: de mulheres, moças
e crianças. Os meninos brincavam de pega-pega, de levantar a saia da mulherada e correr, de capoeira, etc., mas
quando tentavam fugir, bastava entrar na roda e sambar, pois ali estavam protegidos em cantos, palmas e sorrisos.
Ninguém perdia tempo com briga. Aos meus olhos de criança, aquele lugar era sagrado.

A infância traz lembranças ritmadas.

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Dança, microfones, pódio e cabelo duro

Aos quatro anos de idade, meus pais me matricularam em aulas de balé, ginástica rítmica e sapateado.
Dancei esses chamados “estilos”, exceto o balé, até os 16 anos, idade em que me dediquei ao ensino médio,
técnico e profissionalizante na área de eletroeletrônica. Compreendi a dança com o auxílio das professoras X (de
1992 a 1999), Fátima dos Santos (de 1999 a 2003) e Karla Rodrigues (de 2003 a 2004). Além das aulas de dança, eu
tinha um tecladinho, microfones de plástico e um som que funcionava como rádio, gravador de fitas e microfone.
Compunha e fazia entrevista com as pessoas e cachorros. Perguntava aos últimos por que faziam tanto cocô no
chão. Sem obter respostas, eu e meu primo confeitamos todas as merdas da rua com granulado colorido.

Não era fácil manter-me em alguns grupos, não entendia porque zombavam do meu cabelo. Chamavam-me
de microfone (coque), cabelo duro, neguinha sarará, perna grossa, cabelo de amolar faca, cabelo de bombril,
porca, porque eu suava bastante, e demente, pois eu era muito gaga na época e achava melhor ficar calada, pois
além de tudo eu era gaga.

Para fugir dos apelidos, meus pais compravam tudo do melhor e mais novo: sapatilhas, grampos, saias, gel e
etc. Eu tinha que ser a melhor em alguma coisa. Ganhei prêmios, medalhas, troféus e dores nos joelhos
permanentes. Aos oito anos quis alisar o cabelo (mamãe não deixou, mas eu insisti e ela me levou para fazer
“permanente afro”), sentia-me tão feia que tentei me matar com uma faca de cozinha. Quando furei o peito e
doeu, rapidamente desisti de morrer. Mas o cabelo não teve jeito, eu sofria com as químicas que faziam arder o
couro cabeludo, porém, meu cabelo era menos duro, eu pensava que seria melhor tratada por isso.

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Em uma viagem (aos onze) para um festival de sapateado, ficamos em um hotel maravilhoso. As portas do
hotel fechavam sozinhas, eu nunca tinha visto aquilo. Esquecida da novidade, ao ver a porta fechar, levei um susto
e gritei. Uma professora, a qual eu não identifico, que, entre outras ações, ela tinha o costume de de me
chacoalhar e xingar, olhou para mim e perguntou:

- Está com medo de uma porta batendo, Erica? Lá onde você mora tem tanto tiro!

Foi o suficiente pra eu ficar calada por quase uma semana. Quando voltei a falar estava mais gagagagaga.
Saí desse grupo e passei a frequentar os outros.

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Corto qualquer mandinga com o meu berimbau

Ca, ca, ca, capoeira na beira da praia eu vou jogar


A noite estava tão linda, lua aparecia, estrela a brilhar
Quando o berimbau bateu, todo mundo se empolgou
O vento trouxe uma onda e a capoeira começou3

Em 1999 fui batizada na capoeira por Mestre Barbosa, espaço em que pude vivenciar capoeira, samba de
roda, maculelê e puxada de rede. Aprendi a cantar cantigas, dançar o jogo, tocar berimbau, reco-reco, pandeiro
e atabaque. As vivências na capoeira tiveram maior ocorrência até 2003. As semelhanças dos movimentos e
cantigas de capoeira com algumas práticas de candomblés eram perceptíveis. Na academia4 de Mestre Barbosa,
evangélicos, católicos, candomblecistas, umbandistas, pessoas do Seicho No Ie, entre outras crenças, batiam as
palmas, tocavam berimbaus, agogôs, reco-recos, pandeiros e atabaques, faziam reverências de mestres para
mestres, de Exu a Oxalá. A condição para estar ali era simples e objetiva, tinha que fazer parte.

3 Cantiga de capoeira composta por Mestre Barbosa.

4 Chama-se academia porque existe um tipo de academia com alunos, instrutores, formados, monitores, professores, contramestres e mestres.
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Bateria nota 10

Sempre gostei de sambar; meio mole e meio dura, era passista mirim e aos treze anos de idade fui rainha de
bateria da escola de samba que eu desfilava o Grêmio Recreativo Cultural Social Escola de Samba Independência
(inclusive, o Ademir era um dos jurados da escolha da rainha, e disse que votou em mim, rs.).

Uma criança com corpo de mulher perambulou pela avenida mostrando simpatia. Não sabia se dava tchau ou
requebrava. Completamente suada, com os pés sangrando, derreou a cabeça para trás e quando voltou ao eixo viu
a bateria abrir, A sensação energética suspendeu qualquer dor, estava ela em transe? Será que o orixá encostou?

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As malas e as minhocas

2007: jamais esquecerei do primeiro dia que cheguei na cidade de São Paulo. Fiquei espantada com a
multidão e as diferenças entre as pessoas que caminhavam nas ruas.

As mochilas pesavam mais de 10 quilos, e a mala pesava uma tonelada não só de roupas, panelas, sapatos
e livros. Havia muito medo e desejos ali. Nem eu acreditei que tinha saído de minha zona de conforto familiar. Papai
estava trabalhando em uma metalúrgica e mamãe estava comigo, subindo e descendo as ladeiras de Perdizes a
pé. Chegamos sem saber onde eu iria morar nos próximos tempos. Encontramos pensionatos com ratos e baratas,
até que achei Antonio. Esse nordestino simpatizou por meu sotaque pernambucano, chamou sua irmã e ela nos
acomodou numa prédio alugado por ele que era residência de estudantes bolsistas, pessoas endividadas, recém-
separados, gays, lésbicas, negros latino-americanos e africanos. Naquele lugar não havia preconceito, havia
companheirismo e até TV a cabo. Não tinha outra opção a não ser ajustar-se a todos que ali moravam e dividiam
qualquer espaço, banheiros, comidas, cozinhas e pagamentos.

Neste mesmo ano estourou uma ocupação na USP, os alunos entraram na reitoria para reivindicar ao
governo estadual que não escolhesse a dedo o próximo tesoureiro geral (não lembro o nome oficial disso). Os
corredores da reitoria pareciam galerias artísticas, as reuniões de comissão contavam com estudantes e com Marxs,
Trotskys, Fridas, Lampeões, Marias Bonitas, Zumbis e outros.

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Conheci pessoas que inicialmente eram chamadas de malucas; foram meus próximos amigos de aluguéis.

O mapa de minhas moradias percorreu Perdizes, Rio Pequeno, Jardim Bonfiglioli, Morro do Querosene, Lapa
e Vila Mariana. Morei em muitas casas, com muitas pessoas. Descobri novos sons, leituras, plantas, velas, banhos,
bebidas, livros, roupas, etc.

Ocupamos casas abandonadas para permitir a existência física de uma “universidade livre”, discutíamos
política, anarquias, ditaduras, neoliberalismos, absolutismos, Brasis, Áfricas, Americas-latinas e acomodávamos
amigos punks do Canadá, Afeganistão, França, Itália, Estados Unidos, Chile, Bolívia e Venezuela. Fizemos mapas de
possíveis ataques de grupos conhecidos por skinheads, neo-nazis, neo-fascis e carecas. Aprendi a correr dessas
pessoas também. A Rua Augusta não é lembrada apenas pelos bares e paqueras. Pessoas de alguns desses grupos
ou outros já correram atrás de mim e de amigos e desconhecidos com facas e bastões nas mãos.

A discussão sobre capital motivou que realizássemos atividades como fazer artes no farol, promover cursinho
para vestibulares, oficinas de hortas e cultivo de ervas medicinais, trocar pães integrais e bolos caseiros por legumes
e verduras em feiras orgânicas , etc. Agíamos sem mídias e sem glamour. Sentíamos que éramos minhocas.

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Num ou noutro

Ué, ser negra é algo que eu vivo todos os dias. Perceber politicamente “como” ser negra foi/é algo que
exigiu anos ). Desde a infância estudei com pessoas de classes sociais mais favorecidas. E me parecia que estas
pessoas estavam mais livres de violências do que eu 5. Porém, enquanto elas tinham medo de morrer num assalto,
em algum lar vizinho havia alguém rezando para não ser morto no assalto que iria cometer. Num toma lá, dá cá,
passei a infância e a adolescência rejeitada por alguns amigos do bairro (sendo chamada de riquinha), e por
alguns amigos do bairro “rico” (sendo chamada de favelada).

Ser vista pelas pessoas como alguém que é “isso ou aquilo” transformou momentos da minha vida em uma
loucura de céu e inferno: ora no céu eu era o capeta, ora no inferno eu era o anjo. Parecia haver apenas dois
caminhos. Assim que cheguei à cidade de São Paulo, rapidamente busquei pertencer a algum grupo, quis estar
“num ou noutro”. Que peleja! Eu namorava um rapaz de pele branca e a turma de pele negra dizia que eu não
valorizava os homens negros na tentativa embranquecer meus descendentes em colaboração com alguns autores
brasileiros que defendiam o mito da democracia racial. Uau! Particularmente, eu não estava fazendo nada daquilo,
no entanto as pessoas foram tão incisivas que passei a acreditar que sim.

5 Vi companheiros de samba e de capoeira como alvos de tiros, sendo desencarnados antes de completarem os 20 anos.

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Sem entender bulhufas de democracia racial, mas percebendo que muitos parentes iam para a missa aos
domingos e chamavam minhas danças e cantos de feitiços, macumbarias do maligno, pactuante com o capeta,
transformista, demônio, Satanás, Lúcifer, coisa ruim, gabiroto e etc., melhor dizendo, sendo rejeitada também pela
família cristã, senti acolhimento com os ideais contra o preconceito cultural, ideias estas até então desconhecidas.

O momento de curiosidade levou-me a encontrar estudos e entrevistas incríveis de Kabengele Munanga e


Sueli Carneiro. Percebi o quão eram pertinentes as críticas que os estudiosos fazem para com os ideais de
embranquecimento da população afrodescendente. Não li na íntegra o material bibliográfico que os dois criticam
(coisa a ser fazer em pesquisas futuras), contudo, no material de Munanga, foi observado um sentido de
mestiçagem a ser denunciado por ele.

Kabengele, em sua tese de livre-docência, depois publicada como livro Rediscutindo a mestiçagem no Brasil
mostra uma mestiçagem apoiada na falácia da “democracia racial”, por meio do ideário do branqueamento, que
assinala os negros como mestiços ou quase brancos, fato que para o autor contribui para a alienação de um
processo da construção de uma consciência étnica.

Munanga se aprofunda na hipótese que o processo de formação de uma identidade nacional recorreu a
métodos eugenistas que visam ao embranquecimento:

Apesar de o processo de branqueamento físico da sociedade ter fracassado, seu ideal inculcado através
de mecanismos psicológicos ficou intacto no inconsciente coletivo brasileiro, rodando sempre nas
cabeças de negros e mestiços. Esse ideal prejudica qualquer busca de identidade baseada na
“negritude e na mestiçagem”, já que todos sonham ingressar um dia na identidade branca, por julgarem
superior. (MUNANGA, 2006, p.16)

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Hipoteticamente, caso este processo se completasse, em vez de uma sociedade totalmente branca
ideologicamente projetada, nasceria uma nova sociedade plural de mestiços, negros, índios, brancos, asiáticos
“cujas combinações em proporções desiguais dão ao Brasil seu colorido atual” (MUNANGA, 2006).

Ou seja, para Munanga, a mestiçagem reuniria brancos, negros, mestiços, num “bolo só” além de ser uma
proposta de recuperar o ideário de unidade nacional que o branqueamento físico não alcançou.

Segundo o pesquisador, a proposta de uma nova identidade mestiça única vai à contramão dos
movimentos negros e outras minorias que lutam para a construção de uma sociedade plural e de identidade
múltiplas (MUNANGA, 2006).
As dificuldades dos movimentos negros em mobilizar todos os negros e mestiços em torno de uma única
identidade “negra” viriam do fato de que não conseguiram destituir até hoje o ideal de branqueamento.
(MUNANGA, 2006, p.16)

Em relação aos movimentos negros e o uso da palavra afrodescendente, Munanga aponta ainda que:

Algumas correntes dos movimentos negros preferem utilizar a expressão “afrodescendentes” ou


“identidade afrodescendente”, sugerindo, implicitamente, que essa seja capaz de criar o consenso e a
unidade que a identidade “negra” ou “mestiça” não consegue cristalizar. (MUNANGA, 2006, p.16)

De fato, atribuir ao termo “afrodescendente” o conjunto de etnias que vieram ao Brasil pode ser uma saída
para “combater” o preconceito racial de “gente de cor, mulatos etc.”, mas caso não haja um entendimento sobre
o que esta terminologia atribui, a estratégia que poderia “combater” o preconceito racial, passa a servir como mais
uma terminologia que comprime as diferenças entre os descendentes de africanos.

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Nesta mesma publicação Munanga mostra ambiguidades que rondam o conceito de mestiçagem;
propondo dois tipos de mestiçagem: no ponto de vista populacionista e no ponto de vista raciologista. Para tal, ele
faz referência às definições de Edouard Vince, em Géographes et Honnes D’ailleurs.

Quanto à mestiçagem, do ponto de vista populacionista:

(...) é um fenômeno universal ao qual as populações ou conjuntos de populações só escapam por


períodos limitados. É concebida como uma troca ou um fluxo de genes de intensidade e duração
variáveis entre populações mais ou menos contrastadas biologicamente. E entende-se por população um
conjunto de indivíduos que se reproduzem habitualmente entre si; um conjunto definido biologicamente e
não a priori6 (MUNANGA, p. 17, 2006)

E, no ponto de vista raciologista:

(...) se interessa principalmente pela mestiçagem entre as “grandes raças” definidas a priori7. A própria
natureza de sua abordagem leva-o, muitas vezes, a invocar a mestiçagem quando seu método
(baseado na divisão da espécie humana em grandes raças) coloca-lhe problemas. Nesse caso, a
mestiçagem serve-lhe para encobrir as rachas de seu edifício. (MUNANGA, p. 17, 2006)

6 (grifo
do autor) VINCKE, Edouard. Géographes et Honnes D‟ailleurs. Comission Français de la Culture de l‟Aglomération de Bruxelles. Collection
Document, n.28, Bruxelas, 1985, p. 27.

7 (grifo do autor) VINCKE, Edouard.. Op. Cit., ibidem.

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Pode ser que, para Munanga, a mestiçagem, do ponto de vista populacionista, tenha menos implicações
ideológicas do que a abordagem raciologista, pois seria a abordagem raciologista àquela que atribui em suas
definições o que seriam as variações imperfeitas dos ditos tipos puros, obscurecidos pela mestiçagem entre as
grandes raças originais (MUNANGA, 2006). Parece que Munanga está a falar de um sentido biológico e não cultural,
ainda que algumas correntes do movimento negro se apoiem em seus estudos para se isolarem em algum nível.

As mazelas da escravidão negra no país mantiveram pessoas de minhas famílias em subempregos, sendo mal
remuneradas, ficando cegas, perdendo partes do corpo, levantando móveis para não estragar nas enchentes, etc.
Mas as tristezas e dificuldades não podem ser isso apenas. É preciso se infiltrar! Misturar-se. O isolamento torna as
coisas mais estagnadas e facilita o que eu chamo de escravidão parte II 8. Quando falo de mistura, não falo de uma
sociedade da mesma cor, não. Ter consciência étnica é compreender as diferenças e percebê-las como
experiências irreversíveis. Nada adianta lutar por uma pureza genética e cultural que não existe e nem existirá. Emerge
a necessidade de uma consciência econômica, pois a meritocracia não existe para quem é obrigado a pular por
cima de cadáveres no caminho da escola. Em dado momento, ser chamada de macaca parece ter menos
implicações do que ter de escolher entre tirar xerox do material da próxima aula ou almoçar. Macaco é um lindo
animal. Não consigo entender como alguns descendentes de pessoas que foram escravizadas caem na hipocrisia de
se oporem a políticas afirmativas que providenciam uma melhor distribuição de vagas em universidades. Esperar um
ensino público de qualidade pode demorar décadas. Quem precisa estudar precisa agora, quem tem fome come já,
caso contrário jaz! Esse papo de que as cotas tendem a “denegrir” (palavra mais que preconceituosa) os negros
pode ser um dos sintomas do que venha a ser o mito da democracia racial, esta que eu também denuncio!

8 Escravidão parte II seria esta que separa seres sábios entre alfabetizados e analfabetos, legitimando a existência de empregos mal
remunerados. Com salários baixos não se paga aluguéis, só se paga contas. São trabalhos que praticamente só ajudam a nos manter vivos para
continuar trabalhando para outrem.
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Paixões, cantos, atrasos e casulos

Em uma das cavernas da PUC (Centro Acadêmico 22 de Agosto) conheci o amigo que me levou para
cantar numa banda de samba e choro. O amigo é o Fernando Saintive 9. Depois desse encontro fiz parte de vários
grupos e trabalhei como cantora em alguns bares da Vila Madalena (SP) e Bixiga (SP). Aproximadamente, os shows
iniciavam 0h e terminavam às 3h. Eu acordava às 6h e entrava nas aulas por volta das 8h40. O sono não batia, mas
para alguns “colegas” de sala sim. Para a minha felicidade, a maioria dos professores sabia que não se tratava de
brincadeira, era trabalho. Em alguns casos, quando eu explicava os atrasos:

- Você está se vitimizando.


- Não, eu estou trabalhando.

Ainda não sei citar quais sambas influenciaram meus amigos companheiros de bandas, mas posso citar o nome
dos amigos que também influenciaram o meu samba, são eles: Gabriel Arce, Paulo Lattari, Tiago Ucella, Thiago
Branduliz, Guerra, Pedro Brandimarte, Victor Oliveira, Daniel Tatit, Daniel Van Han, Diego Caldas, Marcelo
Constantino, Kailash Bernucci, Flávio Azevedo, Lucas Loli, Paulo Muniz, Ligia Fiocco, Pedro Gattás, Fernando Saintive
e Gabriel Nascimbeni. Do encontro com este último, nasceu Luiza.

9 Eu
e o Fernando participamos daquela mesma banda com formações diferentes, e de outros grupos de samba. Atualmente, estamos com um
novo projeto de música, não sabemos se nos cabe algum gênero, na melhor das hipóteses, não nos identificamos com algum gênero em
específico.

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Eu havia parado para descansar no intervalo da aula de teoria geral da administração, quando ouvi uma
gritaria e desci as escadas. Lá estava Michelle Mattiuzzi, Sara Panamby, Otavio Donasci, Lucio Agra e outras
pessoas. Michelle e Sara estavam em um casulo, nuas, acarinhadas por plásticos filmes.

- O que é isso?
- Aula!
- Qual curso?
- Artes do Corpo.
- Prazer, Erica.
- Prazer Otavio Donasci.

Em 2009, ingressei no curso de Comunicação das Artes do Corpo, com habilitação em Dança. Os jeitos de se pensar
e fazer dança eram diferentes do que eu havia vivido. A preocupação com o corpo era algo novo para um joelho
machucado.

Não à toa, preciso mencionar professores como Jorge de Albuquerque Vieira, Dalva Garcia, Christine Greiner, Neide
Neves, Rosa Hercoles, Vera Sala, Donasci, Vera Achaktin, Gaby Imparato, Marta Soares, Toshi Tanaka, Samira Br,
Cassiano Sydow e Lucio Agra.

As aulas sobre Teoria Geral dos Sistemas grudaram em meus braços ao ponto de eu ver vultos de palavras
soltas. Tudo era TGS, ninguém mais me aguentava.

E quando eu dei conta que não tenho um corpo, sou um corpo? Pirei.

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Perambulando pelo corredor encontrei o Donasci com a Flora, corri para o mercado, naquele agora éramos
quatro. Com três meses de gestação, eu e Luiza vivemos momentos íntimos. Ouvi a urina descer para um lugar que
não era a privada. Meu corpo esquentou e um milagre aconteceu: fiquei não sei quanto tempo sem pensar em
nada. Estava eu naquele casulo que tanto desejava, o elo ao curso10.

10 Sinceramente não sei verbalizar o que é o casulo, o que foi o casulo, o que será. Sugiro que este entendimento seja permitido por meio da
experiência. Procure Otavio Donasci com urgência!
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Corredores

A sala de aula parece não caber as qualidades de saberes que existem na universidade. Gírias e cientificismos
compartilham momentos nos centros acadêmicos, corredores, rodas, bares, festas beneficentes, paredes, corredores,
banheiros, etc.

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Projeto Salamandra

Pirofagias, contos de fadas, anatomias e liberdades.

Frutas, pães, flores, cores, águas, bichos, terras.


Adriane Gomes.

Lugar para relaxar e sentir as informações aparecendo no corpo enquanto se improvisa. Improvisação ensaiada,
treinada, esquecida e lembrada.

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Fotografias de Half Henze

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Fotografia de Leandro Pena

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Fotografia de Ligiane Braga

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Os olhos de Claire

Entender que sou natureza foi como entender que sou um corpo.
Trepar em árvores, deitar em formigueiros, sentir-me atacada por macacos e avestruz.

Afinal, quando nus somos iguais.

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Sambas e saberes

Popularmente, o casal porta-bandeira é conhecido por ostentar – entre quilos de fantasia,


ginga, realeza e agilidade dos movimentos ritmados e frenéticos – a bandeira da escola de
samba, de 1,20x90 cm, que além de trazer o símbolo da escola e em alguns casos a data de
fundação, traz a escola representada pelos símbolos.

Em sentidos horário e anti-horário a porta-bandeira exibe o pavilhão da agremiação. A


função precípua dos dois é apresentá-lo e protegê-lo com elegância e cordialidade, entre
meneios, mesuras e capoeiragem. O casal se movimenta pra lá e pra cá delineando no
chão e no ar um trajeto de proteção e galhardia.

Em dezembro de 2012, janeiro e fevereiro deste ano aconteceram cursos de formação de jurados na União
das Escolas de Samba Paulistas (Uesp). Na ocasião conheci Fernando Penteado e Mestre Gabi, dois embaixadores
do samba. A dupla compartilhou informações sobre sambas e carnavais.

Mestre Gabi falou dançando, mostrou intimidade com a gravidade, parecia flutuar.

Penteado rezou seu samba, contou de outros e proporcionou lugares ainda não pessoalmente imaginados
de outras épocas.

51
Ambos sambistas deram pistas de pesquisas para estudos futuros. Como, por exemplo, o batuque de
Campinas e o de Pirapora do Bom Jesus e a existência de vários jeitos de se fazer samba .

Estive presente em dois dias de desfiles das escolas de samba do grupo II da Uesp, no autódromo de
Interlagos (SP). Não pude fotografar e nem sequer tocar o papel, pois estava na cabine dos jurados. As
agremiações que me fizeram sambar sentada foram:

Amizade Zona Leste


Império Lapeano
Acadêmicos do Ipiranga
Flor de Vila Dalila
Os Bambas
Flor de Liz
Combinados de Sapopemba
Independente
Unidos de São Miguel
Brinco da Marquesa
Primeira da Aclimação
Príncipe Negro da Cidade Tiradentes
Valença Perus

A escola mais bonita tinha fantasias inacabadas, sorrisos, felicidades, alegrias, sambas.
A escola campeã tinha fantasias impecáveis, patrocínios e torcida.

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Diz que fui por aí

Convém recordar que vivi momentos em que gostaria de pertencer a algum lugar, era agonizante estar em
cima de muro. Aliás, era um horror a agonia de me questionar se seria eu a sujeita da enfadonha frase “negra de
alma branca”.

Com tendências a me interessar por temas que envolvem as culturas afro-brasileiras, considerando que
dentro das “afro-brasileiras” tem indígenas, francesas, portuguesas, etc., segui amargurada sem saber onde colocar
tais inquietações. E infeliz com os títulos “cultura nacional”, “raízes afro-brasileiras”, “matrizes afro-brasileiras”, “origens
afro-brasileiras” etc.

Coincidentemente ou não o professor orientador performer e poeta Lucio Agra surgiu piolhando meus
cabelos pixaim, e foi motivo decisivo na minha opção em escrever um trabalho de conclusão de curso. Alguma
parte de mim sabia que esse cara tinha algo brilhante para me movimentar e de fato, entre as várias articulações
do saber que Lucio exprime, seu lábios e seu olhar mais que penetrante disseram: mestiçagem, Amálio Pinheiro.

Por algum tempo pensei que se tratava de mais um teórico “repeteco do teco-teco”. Mas me surpreendi. No
mês de junho, na semana das Artes do Corpo, a convite do próprio Lucio, Amálio participou de uma conversa sobre
mestiçagem no Tucarena. Com a síndrome do atraso crônico tirei os sapatos molhados – de um dia chuvoso – para
entrar na roda de conversa sem fazer muito barulho, pois todos já estavam lá. Foi quando vi Amálio pela primeira
vez. Fiquei encantada com a voz, delicadeza e humildade que saía daquele corpo de barba e chapéu. Nunca
havia me sentido tão atraída por tanta conversa até então fiada.

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Num vai e vem de perguntas e respostas, vi as pessoas boquiabertas com sobrancelhas enrijecidas e olhares
perdidos. Amálio e toda a sua doçura eram uma rapadura bem dura para aqueles que (inclusive meus eus) se
acostumaram a perceber o outro como uma oposição de si. E lá se foram meus dias ouvindo a gravação daquela
conversa, e lá se foram as tardes e as noites de dedicação e tentativas de entendimento. Momento em que
hipoteticamente me senti como um pote virado com todas as coisas caídas, esgueirando para uma nova
configuração sistêmica11·. Naquele lugar, Pinheiro compartilhou pensamentos que mais tarde pude encontrar em
entrevistas, livros e vídeos.

Para aproximar cada vez mais sobre um dos jeitos de se entender mestiçagem passei a frequentar o Grupo
de Pesquisas Comunicação e Cultura: Barroco e Mestiçagem, em que Amálio participa na própria universidade.

11 VIEIRA,
Jorge de Albuquerque. (2008) Ontologia Sistêmica e Complexidade: formas de conhecimento – arte e ciência uma visão a partir da
complexidade. (Vol.3). Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora.

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A tal monografia

Uma vez que Mestre Gabi e Penteado falaram que a dança do casal porta-bandeira é uma mistura de minueto,
samba e capoeira, um sorriso se abriu em meus lábios e o tema/assunto para a pesquisa apareceu: a dança do casal
porta-bandeira e a mistura de samba com minueto.

Vivi e Gabi, carnaval 2002.


Disponível em http://www.camisaverde.net/carnavais.html#

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O primeiro modelo de monografia foi feito de maneira formal: ABNT + pesquisa científica. Mas o desenrolar
do processo de redação incluiu tanto “eu” que não tive como mascarar o desejo de providenciar um “diário
monográfico”. Houve dificuldade em distanciar as inquietações de mim e a facilidade de poder apresentar um
trabalho de conclusão de curso que não precisa ser entregue no formato científico. Desconfiei que numa
graduação de Artes eu pudesse agir dessa maneira e providenciar mais um ensaio: livro de artista.

A proposta recebeu vários títulos:


A dança do mestre-sala e porta-bandeira: samba e minueto
A dança do mestre-sala e porta-bandeira: sambas, minuetos e capoeiras
A dança do mestre-sala e porta-bandeira: sambas, minuetos, capoeiras e outras danças
A dança do mestre-sala e porta-bandeira: elementos de mestiçagem
A dança do mestre-sala e porta-bandeira: um olhar mestiço
Um olhar mestiço à dança do mestre-sala e porta-bandeira
Diário monográfico

O último resumo ficou assim:


A pesquisa tem o propósito de desenvolver um olhar mestiço à dança do casal mestre-sala e porta-
bandeira. O trabalho abarca estudos referentes à mestiçagem de Amálio Pinheiro e uma investigação de quais
seriam algumas influências culturais que permeiam essa dança. O objetivo geral é identificar, por meio da
observação, elementos gerais da dança – indumentária, ginga, sambailar e pavilhão – e traçar uma breve rede de
influências. Os fundamentos teórico-metodológicos contam com informações de sambistas, observação da dança
do casal porta-bandeira e leitura de materiais bibliográficos. A hipótese é que a dança traz elementos de origens
distintas: uma europeia e outra brasileira, com forte influência africana.

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Entre o sim e o não há um infinito de estrelas
(Os primeiros contatos com alguns textos de Amálio, as memórias e a dança do casal porta-bandeira)

Em uma entrevista ao site Gostonomia, Pinheiro diz que a mestiçagem:

(...) está na capacidade de incorporar o outro nas mais diversas situações, por meio dos mais variados
procedimentos e sintaxes. E de reconhecer a presença do outro, nas mais diversas situações. Não se trata
de outro que você descobre e coloca num nicho, o endeusa. Trata-se de um outro para ser comido e
digerido de maneira plural .(PINHEIRO, 2010)

Pinheiro parece propor um jeito de abordar o diferente longe das dicotomias das oposições 12 , mas
aproximando as diferenças de tal maneira que não devem ficar apenas a mercê das “facilidades” das oposições,
ou seja, diante das relações de mestiçagem o “um” não é mais a mesma coisa e o “outro” também não, pois a
mestiçagem está na incorporação, ainda que o indivíduo não a providencie propositadamente. Num pensamento
mestiço:

As teorias de mestiçagem são um lugar para a articulação das diferenças, com acentuação a ideia de
processo articulatório, do que a mera aceitação da diferença que pode implicar com a tolerância e
aceitação”. É neste viés que vale destacar que a prática das relações de mestiçagem pode se dar
naturalmente pela ação de incorporação do outro ainda que o indivíduo não teorize sua ação.
(PINHEIRO, 2010)

12“As oposições dizem: o que eu faço é bom, o que você faz é ruim. Quando considera que a cultura do outro não é boa, termina por
considerar o outro como não-cultura. Quando isso acontece, você pode exterminar o outro, em último caso você pode não considerar o outro
como gente” (PINHEIRO, 2010).

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Na mesma entrevista, Pinheiro expõe que, para se articular as diferenças, faz-se necessário o
reconhecimento das mesmas ,afastadas de verbos como tolerar e respeitar:

O problema de termos de superar o mero reconhecimento das diferenças tem que ver com o fato de
que as diferenças, se são vistas de um ponto de vista isolado, terminam por se tornar identidades,
fechadas dentro de si mesmas. Daí que o reconhecimento das diferenças é necessário, mas como uma
etapa inicial que se dirige para um momento mais complexo, que é o da articulação dessas diferenças
em conjuntos nos quais as mesmas, antes isoladas, agora deverão pertencer a configurações ou tessituras
desierarquizadas. Justamente me interesso pelas teorias da mestiçagem porque seriam o lugar da
articulação das diferenças. Repare que vivemos em uma época em que muitas pessoas, muitos grupos
falam de aceitação das diferenças; usa-se inclusive a palavra tolerância, ou respeito, às
diversidades. Tolerar alguém que é diferente significa não aceitá-lo como outro. Significa situá-lo como
diferente: “eu reconheço você como diferente desde que continue assim diferente essa alteridade
afastada” .(PINHEIRO, 2010)

Ou seja, no processo de mestiçagem, o reconhecimento das diferenças é necessário como uma etapa
inicial que se dirige para um momento mais complexo. Esse momento seria o da articulação das diferenças que
antes percebidas de maneira isoladas são vislumbradas desierarquizadas. Se as diferenças forem vistas de um
ponto de vista isolado terminam por ser tonar identidades fechadas, como, por exemplo: o grupo que me acusou
de “embranquecida”.

Na tentativa de se fortalecer num pensamento entre negros, aquele grupo promoveu ações semelhantes às
de seus opressores. Mas, como isolar-se dessa maneira, prestando-se para com essa radicalidade e abrindo
concessões quando convier? Como ser radical vivendo num espaço em que muitas culturas se encontram, tanto
artisticamente, linguisticamente, carnalmente, espiritualmente, economicamente, ideologicamente, etc.? Como

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negar a presença do outro por não pertencer a determinada cultura e apoderar-se de alguns ideários da cultura
deste outro a quem tanto rejeita no intento de se fortalecer? Não faz sentido.
Em seu texto introdutório de “Comunicação e Cultura”, Pinheiro aponta que a necessidade de atribuição
ontológica à América Latina praticada por muitos pesquisadores cria um impedimento para se pensar na condição
de conhecimento:

Ora o continente é visto como um “ser” imperfeito, deformado, que teria deturpado as essências originais
clássicas ou, no melhor dos casos, prolongado, como cópia piorada, as influências matrizes da tradição
centro-europeia; ora busca resgatar a identidade ou identidades perdidas, tentando aplicar aqui
conceitos e teorias desgastadas e emprestadas dos próprios opressores antigos e atuais .(PINHEIRO, 2007)

Em movimentos similares, comentando uma publicação de Roger Bastide 13, Pinheiro (2004), assim como o
referido, compartilha a leitura de que, ao estudar o Brasil, o sociólogo não sabe que sistema de conceitos utilizar:
“Todas as noções que aprendeu nos países europeus e norte-americanos não valem aqui. O antigo mistura-se com
o novo. As épocas históricas emaranham-se umas nas outras (...) Seria necessário, em lugar de conceitos rígidos,
descobrir noções de certo modo líquidas, capazes de descrever fenômenos de fusão, de ebulição, de
interpenetração; noções que se modelariam conforme uma realidade viva, em perpétua transformação.”

Entendendo que a América Latina não se constitui como um “ser” imperfeito que deturpa as essências
consideradas originais clássicas ou que seja configurada como uma cópia piorada de tradições centro-europeias
ou como um “ser” que busca identidade perdida, seja ela indígena europeia ou africana, chega-se a interminável
conclusão que a tentativa de se fundar nessas pistas evidencia o óbice de se perceber que as culturas e as

13 BASTIDE, Roger. Brasil, terra de contrastes. São Paulo: Fifel, 1959, página 65.

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combinações de linguagens não acontecem de maneira linear e hierárquica (como propõe a estrutura
polarizadora do pensamento de escolas que frequentei) dentro de uma cultura ou no encontro desta cultura com
outras. Ainda que se trate de uma cultura isolada (raridade) esta em algum momento pode ter entrado em contato
com outra. E como já foi dito anteriormente, insistir em atribuir o caráter de isolamento com o intuito de valorização
pode ser uma maneira de apodera-se de conceitos do “opressor” para legitimar uma inteireza e pureza cultural que
não se encontra.

Considerando que a dança do casal porta-bandeira se desenvolveu num lugar de mescla de linguagem e
traduções interculturais, não há interesse de promover informações que apontem um surgimento a partir do
encontro entre colonizado e colonizador; pois entender tal dança nesta premissa binária implica em ocultar e
simplificar “o caráter súbito e excessivo das contaminações entre códigos (...) e linguagens 14” que ocorrem ao longo
do tempo. Está aí a necessidade de se desenvolver um olhar mestiço. Segundo Pinheiro, o termo mestiçagem:

(...) não remete a cor, mas a modos de estruturação (...) que acarretam, pela confluência de materiais
em mosaico, bordado e labirinto, outros métodos e modos de organização do pensamento. Tais modos
não binários desconhecem o dilema entre identidade e oposição: a mestiçagem se constitui como uma
trama relacional, conectiva, cujos componentes não remontam saudosa e solitariamente as instâncias
autorias perdidas, mas sim festejam o gozo sintático dessa tensão relacional que se mantém como
ligação móvel em suspensão. Aquilo que pretende permanecer como diferença, fora das texturas
fronteiriças em trânsito, corre o risco de transformar-se em homogeneidade carrancuda, repetitiva e
totalitária. (PINHEIRO, 2007)

Dessa maneira, percebendo a mestiçagem como um processo de mistura de linguagens, confluência de


códigos culturais e diferenças, torna-se evidente (literalmente como Amálio pontua) o festejo do gozo das tensões

14 LANZA, Sônia Maria (Org.); PINHEIRO, A. (Org.). Comunicação e Cultura. Campo Grande: Uniderp, 2007.
60
relacionais móveis. E aquilo que queira permanecer como diferente corre o risco de tornar-se homogêneo,
repetitivo e totalitário.

„Há uma tendência de se divulgar eventos de samba, capoeira etc. como manifestações típicas e
estagnadas, originárias de uma cultura apenas. Em muitos lugares veem-se os títulos: Show de sons de matrizes
africanas, Resgatando as raízes afro-brasileiras, Aula de dança afro, etc. A tentativa de valorizar uma ou outra
cultura tende a simplificar demais as transformações e contaminações que as manifestações culturais
experimentaram ao longo do tempo. A impressão que se dá é que tais fenômenos são estranhamente percebidos
como se estivessem iguais desde o princípio, princípio este que existe apenas no imaginário das pessoas. Sabe-se
que desde a escravidão existe a desvalorização e perseguição dessas culturas. Afirmar que uma coisa surgiu de
outra é como traçar uma linearidade para fatos que acontecem de maneira simultânea e confluente, não
cabendo assim em especulações de raízes ou matrizes. Além do que a valorização pelo isolamento tende a
homogeneizar e deixar totalitário o que de alguma forma não tem totalidade, pois os encontros entre indígenas,
portugueses e africanos não pode ficar a mercê de tentativas de valorização cultural que desvaloriza a
contribuição do outro, um jeito de deixar invisível e de certa forma violentar.

Num pensamento mestiço, fica impossível traçar hierarquicamente (ou não) quais são todas as influências
culturais presentes, neste caso, na dança do casal porta-bandeira :

Porque a mestiçagem é sempre falível, inacabada e móvel. Não é uma inteireza que se conquista. Ela se
dá como um processo interminável, por isso é incômoda. Não admite um fim, uma vitória, um começo, é
um encadeamento de alteridades. Na América Latina a mestiçagem é, em muitos radicais casos, levada
a cabo por atitude barroca nas linguagens e na vida, desde o descobrimento. (PINHEIRO, 2010)

61
Muito menos considerar que a dança do casal porta-bandeira seja tradicional de uma cultura, pois a
„incorporação do outro‟ ocorre independente do querer social ou pessoal, ou seja, já não valem autorias ou origens.

É interessante ver que os processos culturais se dão independentes dos agentes ou dos titulares. Muitas
vezes as pessoas praticam essas articulações da mestiçagem, que superam as fronteiras chamadas
identitárias, sem saber na verdade que o fazem; quando indagadas a respeito, reafirmam um território
fácil de identidade (grupo, partido, raça, etc.). Porque uma coisa são as práticas vivas da cultura, outra
as coisas que a pessoa fala integrada aos grupos sociais. (PINHEIRO, 2010)

Partindo da suposição de que as pessoas na condição de escravas conviviam com indígenas em quilombos
e com os senhores de engenho e donas de casa, a única afirmação que se pode fazer diante disso é que essa
dança aconteceu em vários lugares sem a necessidade de um nome para ela ou uma data. Caso haja a insistência
da atribuição de ideias que permeiam origens, a dança pode ter surgido quando a mucama, sem perceber ou
não, movimentou o seu corpo de um jeito parecido com a sinhá, assim como a sinhá se movimentou de um jeito
parecido com a sua mucama. Assim como o indígena compôs sua dança com o negro livre do quilombo, assim
como o negro livre ou cativo aprendeu a estabelecer relação com seus ancestrais junto a outros negros diferentes
dele. Assim como antes da chegada dos portugueses os indígenas se conheciam e reconheciam neste continente,
assim como os negros na África se encontravam, conheciam e se reconheciam naquele continente, assim como os
portugueses se encontravam na Europa entre si e entre outras culturas europeias. Uma vez que a mestiçagem é
compreendida como um processo dinâmico, o desenvolvimento de um olhar mestiço para a observação da dança
do casal porta-bandeira implica em não se assegurar na eficácia do tracejo da rede de mestiçagem desta dança:

Visto que não se trata de um sentido acabado que se mostra somente quando expresso em obras visíveis,
mas de tendências estruturais para formações de arabescos curvilíneos, descontínuos e móveis, em
estado de fermentação, não se pode mais falar, hierárquica ou triunfalistamente, de algo pronto
anteriormente ou de algo absolutamente atual que coroasse o processo. (PINHEIRO, 2004)

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A busca por influências

Tarcila Rodrigues (2012) em sua pesquisa de conclusão de curso intitulada A dança do mestre-sala e porta-
bandeira: tradição e influências 15 diz que a coreografia do casal porta-bandeira é pouco estudada e que a
literatura disponível é escassa; ela contou com pesquisa bibliográfica e entrevistas a sambistas. A pesquisadora
aborda o assunto sob o olhar da identidade e conta com o autor Stuart Hall e foca seus estudos nas influências da
dança com as escolas de samba. Quando aponta os “pontos de balizamento” da dança de acordo com o desfile,
a pesquisadora faz uma reflexão sobre a relação de surgimento da dança do mestre-sala e porta-bandeira com as
escolas de samba:

O surgimento do casal de Mestre-sala e Porta-bandeira, dentro do contexto histórico, está diretamente


ligado à figura do Porta-estandarte e do baliza, duas figuras importantes das Escolas de Samba, que
representavam a estrutura carnavalesca influenciando o nascimento das escolas do século XX. O baliza
hoje Mestre-sala, protegia a Porta-estandarte para que ninguém roubasse a bandeira da escola, símbolo
de grande preciosidade para a escola, uma vez que, essa peça corria o risco de ser arrebatada por
componentes de outros grupos rivais. O roubo ocorria, normalmente, no clímax da euforia, quando as
agremiações se encontravam, e os Mestres-salas, desenvolvendo o bailado, se descuidavam da
proteção da Porta-bandeira. (RODRIGUES, 2012, p.7)

15 Quando trata de influências, a pesquisadora se refere às relações da dança do casal porta-bandeira com os desfiles de escola de samba.
Sua pesquisa não se atenta ao minueto, à capoeira ou ao samba. Inclusive, ela não fala a palavra minueto em toda a pesquisa.

63
O mestre-sala Gabi quando fala da bandeira (ou pavilhão) também faz referências às brigas que fizeram
parte do desenvolvimento da figura da porta-estandarte e do baliza na escola de samba:

Antigamente a galhardia maior de uma escola de samba quando se encontrava com outra era roubar o
pavilhão e é por isso que todos os pavilhões antigamente eram de cetim, porque havia uma briga
literalmente, com a navalha, e a navalha não corta o cetim, então por isso elas permaneciam intactas.
(MARTINS, 2013)

Mas, quando se refere às “influências” da ação do casal porta-bandeira, Mestre Gabi fala do minueto e da
capoeira: “Esta dança tem uma influência europeia, vinda do minueto (...) é uma mistura de minueto com
capoeira” e comenta que além dos passos miúdos, outros trejeitos europeus estão presentes: “A roupa do mestre-
sala precisa ser social, sempre social, e a porta-bandeira de vestido (...) inspirado na roupa da corte (...) que tem
toda aquela fidalguia para manter sempre a elegância (MARTINS, 2013).

Outro pesquisador, Miguel Brígida, numa publicação ao VI Congresso de Pesquisa e Pós-Graduação em


Artes Cênicas intitulado A dança do mestre-sala e da porta-bandeira: performance e ritual na cena afro-carioca,
também aponta uma relação da dança do casal porta-bandeira com a figura do baliza e da porta-estandarte das
escolas de samba:
Na história e composição do corpo coreográfico das escolas de samba cariocas, sua origem pode ser
localizada a partir da figura da porta-estandarte e do baliza, elementos constitutivos da estrutura
espetacular dos ranchos carnavalescos que influenciaram o surgimento das escolas de samba no início
do século XX no Rio de Janeiro. O baliza tinha a função de proteger e defender a porta-estandarte de
um possível roubo de sua bandeira, o símbolo maior da agremiação, por integrantes das escolas
concorrentes (BRÍGIDA, 2010).

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E assim como Mestre Gabi, Miguel indica que a dança tem influências europeia, indígena e africana:

Será sempre imprecisa a tentativa de acharmos a possível origem desta dança, suas transformações e
complexidades de narrativas quanto prática performática. (...) Se recuarmos um pouco nessas narrativas
descortinaremos a cena de escravidão de um Brasil colônia onde os negros aprendiam gestos (...) para
cumprirem suas tarefas como serviçais nos bailes da corte, para os quais ensaiavam mesuras, etiquetas e
também, observavam os gestos (...) do mestre de cerimônia, além da coreografia (...) dos casais
dançando minuetos. Ao retornarem as senzalas, caricaturavam, ridicularizando e debochando de seus
comportamentos ensaiados, utilizando para esta performance movimentos de rituais (...) incluindo alguns
gestos de capoeira. (BRÍGIDA, 2010)

Admitindo que a dança do casal porta-bandeira é uma mistura de danças de três continentes (Europa,
África e América do Sul) tornam-se impossíveis as definições de tempo e local onde as danças se misturavam, e
como se relacionavam, como por exemplo: o tempo que as danças oriundas da África se misturaram por lá e o
tempo em que se misturavam aqui, o tempo que as misturas de danças populares europeias influenciaram para o
surgimento do minueto e como esta dança foi misturada aos trejeitos portugueses e luso-brasileiros , e o mais difícil,
“imaginar” as danças ameríndias e suas misturas e influências. Fato que contribui para a constatação que não há
como evidenciar uma autoria para a dança do casal, a menos que se debruce num lugar de “confabulações” ou
de erros intelectuais16·.

Em sua fala sobre a dança do casal porta-bandeira, Mestre Gabi (2013) afirma, diante seus anos de
experiência, que o casal porta-bandeira “não pode sambar, pois se trata de uma dança diferente, com influência
europeia, vinda do minueto”. Este tipo de exigência que Mestre Gabi (2013) aponta foi desenvolvida ao longo dos

16ParaEdgard Morin (2002, p. 26) “os nossos sistemas de ideias (teorias, doutrinas, ideologias) não só estão sujeitos ao erro como também
protegem os erros e ilusões que neles estão inscritos. Faz parte da lógica organizadora de qualquer sistema de ideias o fato de resistir à
informação que não convém ou que não se pode integrar”.

65
anos, assim como outras exigências que virão, dependendo assim do tempo e do lugar em que acontece a dança
do casal (seja no desfile de carnaval ou nas rodas de samba). Sua fala aponta mais uma pista que se apoia na
hipótese que a dança não possui um “acabamento”, não é estática, é dinâmica.

No acervo digital da Fundação Biblioteca Nacional é possível encontrar alguns documentos antigos
referentes à escravidão africana no Brasil, como, por exemplo: notas fiscais e títulos em cartórios, assim como
balanços patrimoniais que registram compra e venda de escravos, casamentos entre negros e brancos, alforrias,
inventário de equipamentos para tortura, pinturas, fotografias, etc. Para mostrar um pouco da indumentária de
pessoas na condição de escravas, algumas fotografias disponibilizadas neste acervo estarão dispostas aqui. Por
meio da observação é possível reparar que as pessoas escravizadas se vestiam de maneira semelhante aos
“donos”; não se especula o caráter obrigatório ou pacificador de algumas pessoas se vestirem como as outras, mas
pode-se intuir que os encontros culturais influenciam de maneira imensurável.

Tanto os textos lidos quanto o bate-papo que foi feito com a participação dos embaixadores do samba,
Mestre Gabi e Fernando Penteado, expuseram que a dança do casal porta-bandeira tem influências do minueto,
do samba e da capoeira, e que ocorre de maneira espetacular também nos desfiles da escola de samba. Mas,
considerando os estudos de mestiçagem de Amálio Pinheiro, pode-se admitir que as influências culturais que
rodeiam essa dança estão além dessas misturas que são perceptíveis principalmente pela visão. Ou seja,
considerando o processo de contaminação cultural desde a chegada dos portugueses no Brasil e o encontro
cultural entre populações negras, indígenas e europeias, tem-se de admitir as impossibilidades em calcular a
imensurável rede de mestiçagens que de fato influenciaram o desenvolvimento dessa e de outras ações que
tenham a contribuição de tais culturas.

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Escravas, Marc Ferrez, publicada entre 1870 e 1899

67
Fotografia de Christiano Junior, publicada entre 1864 e 1866
68
Sem indicação do fotógrafo, com data de publicação em 18 – – ]

69
La recolte du café, Marc Ferrez, publicada entre 1870 e 1899

70
O tracejo desmesurado da rede de mestiçagem não cabe aqui

Minueto no Brasil

Em seu livro História da Dança, Luís Ellmerich (1987), quando comenta sobre as danças antigas, aponta o
minueto como uma manifestação artística que envolve a dança e a música e fala de outra dança considerada
brasileira, a quadrilha, que recebeu influência também do minueto:

MENUET (minueto) – originário do “Branle de Poitou” e mencionado pela primeira vez em 1664. O nome
deriva de “pas menus” que significa passos miúdos. Introduzido na corte de Luís XIV pelo mestre de dança
Pécour, tornou-se dança típica do período Rococó. Executa-se aos pares, e, como na quadrilha, as
damas passam alternativamente de um cavalheiro para outro. Nenhuma dança teve vida tão longa e
importância tão grande no reino da música. Lully introduz o minueto nas suas óperas, Philipp Emanuel
Bach na sonata e Haydn na sinfonia. O minueto consiste de duas partes: repetida cada uma, volta-se à
primeira para, depois, terminar com uma terceira parte, o chamado “trio”. Compasso ternário, moderato
ou alegretto (ELLMERICH, 1987, p.26).

Segundo Marco Antonio Perna (2005), em Samba de Gafieira: a história da dança de salão brasileira “o
minueto era uma dança francesa de ritmo ternário, de pares ainda não enlaçados, caracterizada pela
graciosidade e equilíbrio dos movimentos”. Acredita-se que o minueto foi primeiramente dançado no Brasil por volta
do século XVI, junto aos primeiros centro-europeus; uma das razões deste “achismo” é o fato de não ter encontrado
documentos17 bibliográficos sobre o minueto dançado neste período no Brasil. O minueto ganha destaque nos
documentos e registros no Brasil depois da chegada da família real portuguesa ao Rio de Janeiro em 1808.
Segundo Perna (2005):

17 Muitos documentos oficiais antigos podem ser encontrados na Fundação Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, e no site da Instituição.

71
Com a vinda da corte portuguesa (…) para o Rio de Janeiro, muitos hábitos europeus, como as danças e
os bailes, foram trazidos de forma ainda mais forte, pois a música e a dança eram as manifestações de
lazer preferidas pela corte e pela sociedade letrada. (PERNA, 2005, p. 14)

Ainda que o estopim mais famoso historicamente da vinda da família real e corte portuguesa sejam as
guerras napoleônicas, os costumes e a “moda” europeia tinham o aval e o gosto “refinado” dos franceses 18.

Nos séculos XVII e XVIII, o Brasil seguia as tendências culturais de Paris e, como o minueto estava em voga
na capital francesa e em toda Europa, também fez muito sucesso por aqui. Podemos comprovar tal
sucesso através de Luís Edmundo que relata que “nos salões senhoriais do Rio colonial, por ocasião das
festas, tocava-se apenas música de dança, (...) e dançava-se o minueto”. (Edmundo apud ELLMERICH,
1987, p. 119).

Uma pesquisa acadêmica Dança de Salão: instrumento para a qualidade de vida na área da
Administração, feita por Poliana Toneli, traz informações que interessam para este trabalho. Toneli (2007) aponta
onde aconteciam os bailes da aristocracia carioca, além de deixar evidente o “evento” que era saber dançar aos
moldes franceses:

O sucesso das Danças Sociais europeias no Rio de Janeiro – onde foram apresentadas inicialmente,
irradiando-se mais tarde para os demais estados brasileiros – foi tão grande que qualquer evento era
motivo de bailes para a aristocracia carioca. Estes bailes aconteciam em salões, conhecidos por
sociedades dançantes, como o Cassino Fluminense, a Sociedade de Recreação Campestre e o Clube

18 Deacordo com vários livros de “história geral”, Paris, no século XVII, era considerada centro cultural da Europa e no século XIX era a capital da
arte e do lazer.

72
Harmonia. O mais famoso foi o Cassino Fluminense, ponto de encontro da alta sociedade. (TONELI, 2007,
p. 28)

Imagine só uma dança de origem francesa, sendo dançada por portugueses no Brasil, na então capital do
Estado do Brasil, que foi o Rio de Janeiro.

Por meio da observação da dança do casal porta-bandeira, pode-se perceber a influência europeia não
apenas nos movimentos, mas também na indumentária e o próprio nome “mestre-sala”. Quando comenta sobre as
danças de corte, Toneli (2007) faz referência aos mestres-de-baile:

No século XV, as danças realizadas pelas classes baixas em suas festas e comemorações chegaram aos
salões da nobreza por meio de dançarinos e/ou mestres-de-baile. Estes eram contratados pelos nobres
para que lhes ensinassem as Danças Sociais que, ao chegarem aos salões da corte, ganharam
refinamento e status, tanto que além de serem executadas nos grandes bailes, passaram a fazer parte da
educação da nobreza. (TONELI, 2007, p.21)

É sabido que as pessoas escravizadas não necessariamente ficavam isoladas em senzalas, “pois onde havia
trabalho havia um negro trabalhando”. Nesta premissa, havia negros nas casas, nos salões de festa, nas senzalas,
nas fazendas, etc. Aproveitando a queixa das polarizações entre negros e brancos, o contato com os senhores e as
sinhás proporcionou contaminações culturais aos negros da mesma maneira que proporcionou contaminações
para os brancos, fato que segundo a teoria mestiça ocorre sem a necessidade de teorização. Propositalmente ou
não, os negros puderam observar os passos ternários do minueto e de outras danças modais. Mestre Gabi brinca
que a escrava viu a sinhá dançar em seus ensaios para os bailes e quando ia pra senzala se divertia imitando as
danças e os trejeitos podendo até usar de peças da indumentária da sinhá para compor a brincadeira (MARTINS,
2013).

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Samba

Acredita-se que os primeiros navios negreiros chegaram ao Brasil no século XVI com mão de obra escrava para a
produção de açúcar, fumo, café, atividades de mineração e trabalho doméstico, entre outras atividades
(MUNANGA, 2006)

A rota transatlântica destes navios envolveu a chegada de povos da África Austral (Moçambique, África do
Sul, Namíbia), África Ocidental (Senegal, Mali, Níger, Nigéria, Gana, Togo, Benin, Costa do Marfim, Guiné-Bissau, São
Tomé e Príncipe, Cabo Verde, Guiné, Camarões), África Centro-Ocidental (Gabão, Angola, República do Congo,
República Democrática do Congo, República Centro Africana) e de outros lugares19 (MUNANGA, 2006).

É sabido que assim que chegavam à costa brasileira, as pessoas escravizadas eram estrategicamente
separadas de seus conterrâneos pelos senhores que as vendiam. Iam morar e trabalhar em lugares que seus donos
forçavam, sendo obrigadas também a dividir espaço com pessoas de “reinados” amigos e rivais (PENTEADO, 2013).

Diante da mistura de populações africanas no Brasil, fica evidente que o samba não era a única dança que
era praticada nas senzalas – para abordar o assunto “samba” seria necessário fazer uma pesquisa mais
aprofundada, pois o samba, assim como capoeira, cultos aos ancestrais etc. não é uma “coisa” homogênea que
aconteceu em todas as senzalas do mesmo jeito, pois vieram pessoas na condição de escravas de vários lugares do

19 Não se sabe precisamente mais informações sobre a trajetória desses povos porque em 15 de dezembro de 1890, o Ministro da Fazenda do
Governo de Marechal Deodoro, Ruy Barbosa, deu ordens para queimar grande parte da documentação, em livros de cartórios, comarcas,
registros de posses e movimentações patrimoniais, que continha o número de escravizados e outras informações referentes.

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continente africano, cada povo com culturas distintas, assim como o minueto, uma dança considerada francesa
que se espalhou pela Europa.

O embaixador do samba Fernando Penteado (2013) diz que “onde havia um braço negro, ali existia o
samba”. Segundo ele, o samba é uma palavra que se origina da palavra semba, do quimbundo, língua angolana.

Em uma conversa informal na universidade20, o pesquisador angolano, Moises Katenda (2013) disse que a
palavra samba pode ter vários significados atribuídos a ela, segundo o mesmo, em seu país de origem, semba
deriva da palavra quimbundo samba, além de ser substantivo (nome de pessoa ou lugar), orar (quem vem do verbo
kwazamba), majestade (quando se junta com o substantivo Kalunga, fica Kalunga Samba : todo poderoso).

Penteando (2013) afirma que “semba significa umbigo, ponto energético forte do corpo humano que atua
como um conector com as forças das naturezas ancestrais”.

Considerando o surgimento de muitos dialetos no encontro cultural indígena, português e africano, estas
duas maneiras de se entender a mesma palavra não anula a peculiaridade de seus significados; pode haver mais
palavras parecidas com samba, como, por exemplo, a palavra iorubana sàngbá (lê-se xambá), à qual se atribui
significado de “ele realizou feitos maravilhosos”.

20 Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Campus Perdizes.

75
O embaixador do samba diz também que a prática de corpos em círculos, indo ao centro da roda, ao som
de pedaços de paus e metais, favoreceu o encontro das várias maneiras de conexão com o ancestral 21, e estas
ações podem receber vários nomes, como, por exemplo, batuque (PENTEADO, 2013).

Considerando que o samba é um evento com batuques, cantigas, danças, rezas, etc. então, pode ser que
utilizar a palavra “samba” pra nomear singularmente a multiplicidade de expressões culturais que envolvem tais
ações aparenta uma atitude equivocada. A menos que se reflita sobre algumas peculiaridades de samba que
existem ou que se refira ao samba como um evento.

Acreditando que as peculiaridades de samba no Brasil provêm de encontros culturais, assim como a
capoeira, a ação do casal porta-bandeira pode ser entendida como um evento que aconteceu junto e não a
“partir de”, pois como se trata de uma dança que se desenvolve em “regiões ou processos civilizatórios onde não
vigora o conceito progressivo e linear de sucessão, esta que tornaria qualquer outro produto uma variante
hierarquicamente determinada pela suposta influência de algo anterior e pretensamente mais acabado 22”, não
procede a eleição de uma autoria e linearidade de acontecimento.

21 Em relação à variedade de conexões com o ancestral, pode-se ter, por exemplo, os candomblés (um assunto mais familiar). Entre as várias
maneiras de se entender candomblé, há a que o mesmo é um nome dado ao conjunto de vivências e costumes africanos distintos entre si,
ainda que se mantenha alguma predominância étnica de Jeje, Ketu, Fon, Angola, e etc. E não necessariamente seja uma religião, mas sim a
própria vivência de costumes supostamente de alguma cidade africana, considerando que assim como a dança do casal porta-bandeira, a
realização destes costumes têm influências culturais incontáveis dos processos dinâmicos que são a mestiçagem. Entre os costumes das
vivências iorubanas, por meio da observação no Ase Egbe Omo Yoba Tunde, as pessoas que fazem parte da comunidade abrem pontos
energéticos no corpo para estreitar conexões com orixás, sejam as forças da natureza (ancestrais energéticos), presentes em todo universo
como ondas eletromagnéticas potentes capazes de suspender tecidos e objetos, ou ancestrais humanos importantes, como, por exemplo,
quem “descobriu” o metal e o transformou: Ogun.

22 Ver “Por entre mídias e artes, a cultura”, Amálio Pinheiro, p. 1.

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Neste momento, a hipótese da pesquisa cai, pois a ação do casal mestre-sala e porta-bandeira não é
meramente uma mistura de samba e minueto, mas sim uma ação que é influenciada por minuetos, mas não uma
mistura com o samba, mas algo que se desenvolveu junto aos sambas e às capoeiras, influenciados também por
outras danças que vieram do continente africano, assim como danças que se desenvolveram com influências
africanas, indígenas e europeias aqui no Brasil. Além do que, não há como resumir as danças que vieram do
continente africano por samba, então não se trata de uma mistura de samba, mas uma mistura de várias ações que
envolvem: culinária dança, canto, batuques, reza etc. Desse modo, não se sabe também qual é o minueto que que
influencia essa dança. Ou seja, quais sambas, quais minuetos e quais capoeiras, e quais outras danças puderam
influenciar a dança do casal porta-bandeira? Não existe resposta pra isso.

Capoeira

Segundo a pesquisa bibliográfica de Carlos Alberto Barbosa, o Mestre Barbosa, a capoeira tem vários
significados para autores diferentes:

A primeira proposição de que se tem conhecimento sobre o termo Capoeira é de José de Alencar, quem
em 1865, em seu livro “Iracema”, propôs o vocabulário tupi Caa-Apuam-era, traduzido por “ilha de mato
já cortado”. Já Henrique Beaurepaire Rohan, em 1879, propôs o tupi Co-puera, significando “roça velha”.
Para Macedo Soares, o vocabulário vem simplesmente do guarani Caápuêra, “mato que foi”,
atualmente” mato miúdo que nasceu no lugar do mato virgem que se derrubou”. L. Barbosa Rodrigues,
no século passado, propôs em seu livro Paranduba Amazonense a forma Caapoêra. Já para o Visconde
de Porto Seguro, o termo certo é Capoêra. (BARBOSA, 1999)

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Barbosa (1999) afirma que tupinólogos foram unânimes em aceitarem o étimo Caá por “mato, floresta
virgem” e Puêra por pretérito nominal que significa “que foi e não existe mais” e em sua pesquisa apresenta ainda
outras versões para este vocábulo:

(...) vem da existência, no Brasil, de uma ave chamada Capoeira (Odontophorus capueira-spix) que vive
em vários estados brasileiros e também no Paraguai. Para Atenos Nascentes, o jogo da Capoeira se liga à
ave porque o macho da Capoeira é muito ciumento e por isso trava lutas tremendas com o rival que
ousa entrar em seus domínios. (BARBOSA, 1999)

Ao longo do estudo, o Mestre de capoeira mostra as várias hipóteses que envolvem a ideia de origem dessa
prática. Na presente pesquisa, o termo “origem” não alberga as indagações que surgem quando se pretende a
perspectiva do olhar mestiço. Logo, o que interessa observar em seu estudo com ressalvas é que a capoeira tem
influência de danças praticadas também no continente africano, neste caso, do povo Bantu:

Única luta autenticamente Brasileira, a Capoeira tem sua origem, como quase todas as outras lutas, na
dança e religiosidade de um povo, neste caso, pelos negros Bantus - Congo e Angola, que vieram (...) no
século XVI(...). Sabe-se, através de pesquisas bibliográficas, que os negros Bantus, da região onde está
situada a atual Angola, praticavam danças litúrgicas ao som de instrumentos de percussão, tais como:
Cujuinha = dança guerreira com espada; Cuissamba = dança de castigo e feiticeiros e representação de
julgamento; Uianga = dança dos caçadores (BARBOSA, 1999).

O intuito de Barbosa, por meio de seu estudo, além de outras argumentações, é afirmar que a capoeira é
brasileira, mas neste caso, não vale apoiar-se neste pensamento, pois não cabe encontrar uma autoria nacional
para a capoeira, mas sim perceber as influências que a circundam. Ele aponta que a capoeira tem forte influência
dos povos de Angola considerando as pesquisas de outros autores, além das especulações de vocábulos indígenas.

78
A ideia de que a capoeira possui influência indígena, na presente pesquisa, não se pauta em buscar alguma
bibliografia que diga isto. Talvez seja algo até precipitado (pois também exige um nível de aprofundamento ao qual
não se pode fazer neste momento), porém, supondo que comunidades negras e indígenas se relacionavam em
quilombos, pode-se pensar então que estavam ali a se misturar.

As influências das práticas da capoeira também não são aferíveis, pois, considerando a multiplicidade de
danças oriundas do continente africano que aqui chegaram e os encontros destas ações em batuques em senzalas
distintas com pessoas em fazendas e casas grandes também distintas, assim como os encontros acontecidos em
quilombos, etc., como calcular as probabilidades de existência dessas práticas, ou melhor, o verbo é calcular?
Quantos tipos de capoeira se desenvolveram e se desenvolvem atualmente 23?

Pavilhão

O uso da bandeira nas escolas de samba pode ter muitas atribuições, partindo do pressuposto que as
escolas de samba sugiram de maneiras diferentes, não há como estabelecer uma afirmação que contemple todas
as motivações que foram consideradas para o uso da bandeira. Além disso, as variáveis dos encontros culturais
podem ser estudadas por vários pontos de vista. O ponto de vista aqui tende a considerar informações obtidas em
conversas com os especialistas, observações, vivência e leituras. Dependendo do lugar onde o pesquisador olhe, o

23Alguns capoeiristas tem a mania de defender a existência de a apenas duas práticas de capoeira, a capoeira Angola (tendo como
articulador o Mestre Pastinha) e a Capoeira Regional (tendo como articulados o Mestre Bimba). Algo que aparentemente é equivocado, pois
partindo da constatação que a capoeira é uma prática influenciada por manifestações de várias culturas, como seria possível a afirmação que
esta teria apenas duas correntes de práticas?

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uso da bandeira pode aparecer de maneiras diferentes em cada escola de samba, assim como o próprio
surgimento das mesmas.

Miguel Santa Brígida (2010), em uma publicação do VI Congresso de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes
Cênicas, incita que o uso da bandeira tem relação com as Congadas:

(...) localizamos como eixo fundamental de nossos estudos as festas das comunidades negras nos cortejos
de coração da Rainha e do Rei do Congo, onde havia uma bandeira conduzida por um negros descalço
compondo a performance do porta-estandarte (MIGUEL, 2010)

Fernando Penteado, quando fala do samba no Estado de São Paulo, aponta a cidade de Campinas e a de
Piraporinha24 do Bom Jesus como lugares que desde os tempos da escravidão fazem o batuque, prática esta que
influenciou o desenvolvimento do que se tem por “samba paulista”. Quando se refere ao pavilhão, Penteado
pontua “o encontro dos paninhos”, tanto em conversas na sede União das Escolas de Samba Paulistanas (Uesp),
quanto em outros lugares, como na pesquisa de Carlos Antonio Moreira Gomes (2010) em Batuque Memorável no
Samba Paulistano:

Quando nós chegamos ao Brasil como escravos, história que todos sabem, a primeira coisa que os donos
faziam era separar nossas famílias. Não deixavam famílias ou negros da mesma tribo seguirem juntos. Isto
era pra dificultar as fugas. Quando ia embora, o negro levava alguma coisa, rasgava algum pano e ia
embora com aquele pano e dali para frente, você cultuava aquele pano amarelo. Constituía outra
família, mas continuava com aquele pano. Vão 200, 300 anos. O Santo, Bom Jesus de Pirapora, foi

24 http://www.piraporadobomjesus.sp.gov.br/historia/religioso-cultural-historico

80
achado por escravos no dia 6 de agosto de 1725, história parecida com a de Nossa Senhora Aparecida.
Colocaram aquela estátua num lugar ali e a lavoura do local começou a prosperar. Então, vinham
senhores pedir para suas fazendas prosperarem também. Tinha que vir a pé, e quem os traziam eram os
escravos. Por isso que tinha os barracões, onde os escravos dormiam e faziam as comidas para os
senhores. Cada um trazia sua cozinheira. As famílias começaram a se encontrar, pois começaram a
achar o paninho da mesma cor. Hoje, o paninho amarelo que estamos pegando como exemplo, para
nós é o pavilhão. (GOMES, 2010, p.89)

Em relação ao pavilhão, não há uma hipótese que possa ser considerada como única, pois os pioneiros do minueto
no Brasil também hasteavam bandeiras, aliás, num emaranhado de encontros culturais, é possível que as influências
para o uso da bandeira sejam muitas, assim como as hipóteses de “surgimento” e desenvolvimento da ação do casal
porta-bandeira.

81
Congado dos Pretos em Morro Velho, fotografia de Augusto Riedel, publicação entre 1868 e 1869

82
A dança (?) do mestre-sala e porta-bandeira

Sem se prolongar entre definições do que seria a dança, a música e a performance, encontro dificuldade
em dar uma “definição” ao que seria a dança do mestre-sala e porta-bandeira25.

Afirmar que esta ação corporal é somente dança pode reduzir outras alternativas de observação,
dependendo de quem executa e de quem vê pode significar, entre outras possibilidades, ritual, espetáculo, e etc.
Não há interesse em dissertar sobre as teorias da dança, pois a opção que se tem é a de desenvolver um olha
mestiço, este que implica em traduções.

Confesso que houve uma tentativa pessoal de fazer referências à dança do casal porta-bandeira como
performance, um dos motivos é a própria inquietação do que venha a ser a performance. Percebi que, além dos
movimentos coreografados, há improvisações. Em alguns casos o casal canta trechos do samba-enredo da escola,
ao som de ritmos e festas. Esta observação compreende que a dança do casal porta-bandeira não parece um
teatro, nem encenação e acontece junto a várias outras ações (batuques, rezas, proteção, ostentação, etc.) que
estão de certa maneira ligadas umas as outras. Então pergunto: é dança ou uma ação, ou as duas coisas, ou tudo
isso ou nada disso? As respostas destas perguntas não aparecem em livros. As respostas destas perguntas podem ser
feitas a um ou mais casais porta-bandeiras ou para pessoas que assistam à manifestação. Mas quem assiste não
necessariamente estará no papel de espectador, mas no papel de participante.

25Não é por falta de oportunidades, pois num curso de Comunicação das Artes do Corpo, poucas não foram as chances de dialogar e discutir
quais seriam as definições de dança que outras pessoas compartilham a partir de leituras e vivências pessoais .
83
Existem muitas maneiras de entender a performance, Lucio Agra, em uma mesa redonda “Conceito de Arte
e Performance” – no evento Performance, Corpo, Política e Tecnologia – e em seu texto “Por que a Performance
deve resistir às definições” incita reflexões sobre a frase que dá título ao texto. Na ocasião, quando se refere ao
questionamento “O que é Performance?”, Lucio exprime que esta pergunta “evoca uma ambiência de
pensamento a qual está se afastando”, ambiência esta em que “ainda é possível estabelecer definições precisas,
ou seja, ter algo definitivo sobre as coisas”. E aponta uma citação de Liliana Coutinho que complementa a
observação de que a definição tende a limitar e impor um território:

Como compreender a pertinência do uso do termo performance em arte sem tentar esboçar uma
definição ou, pelo menos uma clarificação de seus usos, por mais escorregadia e insubmissa que seja a
forma na qual ela nos aparece e sem que tal definição implique a limitação de seus vários modos de se
concretizar? (...) Qualquer definição formal de Performance, se necessária, teria de dar conta de todas
as possibilidades de ocorrência concreta, logo de todos os contextos de experiência. (COUTINHO, 2008,
p.8 apud AGRA)

Ou seja, a preferência de se referir à “dança” do casal porta-bandeira como performance manifesta uma
insatisfação às terminologias que também acontecem nos estudos do Lucio Agra. Assim como atribuir uma
definição para capoeira e para samba, pois a capoeira pode ser luta, dança, ritual, arte-marcial, jogo, arte e etc.
Embora aconteça ao som de atabaques e berimbaus com cantos e danças, a definição popular que se tem é de
luta ou jogo; assim como o samba, que envolve práticas semelhantes e é popularmente conhecido por dança ou
estilo musical.

Dessa maneira, fica difícil usar uma terminologia para esta manifestação mestiça idealizando-a por alguma
qualidade artística e até científica. Tudo bem que para existir certos tipos de diálogos, principalmente o acadêmico,

84
faz-se necessário o uso de palavras, porém, neste momento, vale inquietar-se e justificar algumas atribuições ou
terminologias ou manter-se numa dúvida eterna, ainda que haja uma aproximação com a performance.
Entretanto, assim como a performance, não há como definir o que seria a ação do casal porta-bandeira, pois a
mesma é executada de várias maneiras, seja de forma ritualística quanto espetacular. Pode ser que criar uma nova
palavra não seja a solução (se é que existe solução para as coisas), mas pensar sobre é interessante.

Submeter a ação do casal porta-bandeira ao termo performance também pode esvaziar o que é a ação
do casal porta-bandeira, talvez seja mais interessante propor um olhar mestiço que perceba a tradução e os
processos de mestiçagem. Caso eu insistisse em vislumbrar esta ação como performance estaria mais uma vez
“encaixotando” o assunto em alguma prática artística, que politicamente pode parecer uma tentativa de fazer
valer dentro de um lugar.

Para Pinheiro :

A aceleração dos contágios entre séries culturais e midiáticas redesenhou e distribuiu em vaivém formas
além da razão dual, habilitadas às traduções interfronteiriças .(PINHEIRO, 2007, p.10)

Encerro aqui esta fase, a que me refiro como introdução ao pensamento mestiço. Infelizmente não há
tempo hábil para tais estudos. Existe o interesse em continuar com os estudos da mestiçagem, algo a ser
desenvolvido no Mestrado, na pesquisa intitulada O candomblé como mescla de cultura de linguagens.

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Referências bibliográficas

AGRA, Lucio. Porque a performance deve resistir às definições. Disponível em : http://superficiedosensivel.files.wordpress.com/2013/03/por-


que-a-performace-deve-resisitir-c3a0s-definic3a7c3b5es-lucio-agra.pdf.

GOMES, Carlos. Um Batuque Memorável no Samba Paulistano. São Paulo: 2010 (não há especificação da editora, direitos reservados ao
Centro Cultural São Paulo)

BARBOSA, C. Capoeira. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Educação Física). Instituição não informada. Santos, 1999.

BRÍGIDA, Miguel. A dança do Mestre-Sala e da Porta-bandeira: Performance e Ritual na Cena Afro-Carioca. Apresentado no VI Congresso de
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FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL. Tráfico de escravos no Brasil. In: Projetos. Escravidão no Brasil. 1999. Disponível em:
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MARTINS, Gabriel. A dança do mestre-sala e porta-bandeira: fundamentos. São Paulo: União das Escolas de Samba de São Paulo (Uesp), 3 fev.
2013. Informação verbal. Ciclo de Palestra de Introdução ao Samba: Histórias, Expressões Artísticas e Pontos de Balizamento. Palestra sobre a
Dança do Mestre-Sala e Porta-Bandeira, ministrada por Mestre Gabi.

MORIN, Edgard. Os sete saberes para a educação do futuro. Lisboa: Instituto Piaget, 2002.

_________Introdução ao Pensamento Complexo. Lisboa: Instituto Piaget, 2008.

MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a Mestiçagem no Brasil: Identidade Nacional versus Identidade Negra. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.

___________.; GOMES, N. (2006) O Negro no Brasil de Hoje. Editora Global, 2008.

PENTEADO, Fernando. Semba: história do samba. São Paulo: União das Escolas de Samba de São Paulo (Uesp), 3 fev. 2013. Informação verbal.
Ciclo de Palestra de Introdução ao Samba: Histórias, Expressões Artísticas e Pontos de Balizamento. Palestra de História do Samba na cidade
de São Paulo – “Batuques” – e Evolução, ministrada por Fernando Penteado.

86
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PINHEIRO, Amálio. Por entre Mídias e Artes, a Cultura. Revista Brasileira de Ciências da Comunicação e da Cultura e da Teoria da mídia
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do Sul: UNIDERP, 2007, v. 1, p. 17-31.

______________. Entrevista: Amálio Pinheiro. São Paulo: Revista Gostonomia, 30 mar. 2010. Entrevista a Silvia Regina. Disponível em:
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RODRIGUES, Tarcila.. A dança do mestre-sala e porta-bandeira: tradição e influências. 2012. 18f. Trabalho de conclusão de curso (Pós-
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TONELI, Poliana. Dança de Salão: instrumento para qualidade de vida no trabalho. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharel em
Administração). Instituto Municipal de Ensino Superior de Assis.

VIEIRA, Jorge de Albuquerque. (2008) Ontologia Sistêmica e Complexidade: formas de conhecimento – arte e ciência uma visão a partir da
complexidade. (Vol.3). Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora.

87
Considerações sobre a tentativa de desenvolver um olhar mestiço a dança do casal
porta-bandeira

O propósito de desenvolver um olhar mestiço a dança do casal do porta-bandeira foi provisoriamente concluído, mas
não no sentido acabado de desenvolvimento, pois uma vez em contato com os estudos da mestiçagem presente em
textos de Amálio Pinheiro, têm-se a consciência que a mestiçagem está em lugares que não necessariamente estão
evidentes e tida como um processo dinâmico compreende em conclusões intermináveis assim como a não
completude ou inteireza de um entendimento. A introdução ao pensamento mestiço fez–me perceber o fracasso de
não ter atentado em fazer uma pesquisa mais específica, como por exemplo: entrevistar, observar e perceber um
casal, um único casal e investigar ali o peculiar, porém esta ideia surgiu depois de muitas leituras e entendimentos.
Obviamente, não sacaria isso antes de entender um pouco sobre a mestiçagem.

Olhar a dança de maneira generalizada providenciou muitas perguntas sem respostas:

- Que Europa é essa que foi citada ? Portugal? França?


- Que África é essa que foi citada?
- Quais indígenas são esses que são citados?
- Que época é essa de escravidão?

88
O intuito de realizar uma introdução à mestiçagem aconteceu, mas com ressalvas. Pois a cada leitura, novas
conexões apareceram e dimensões até então ocultas surgiram como possiblidade de entendimentos. Assim como
disse o Jagunço filósofo de Guimarães Rosa: “eu quase que nada sei, mas desconfio de muita coisa”.

Driblar os pensamentos dicotomistas não foi/é tarefa fácil. A tentativa de desmistificar a atribuição sólida da afro-
brasilidade à dança forçou a investigação a atentar-se apenas as pistas do hipotético surgimento, atitude que deixou
a desejar sobre as outras influências que viriam a ser percebidas, “olhar para o lado cegou para os outros”.

De maneira não proposital o assunto mestiçagem interessou de um jeito diferente em relação ao assunto sobre a
dança do casal porta-bandeira,; uma vez que senti-me presa por não ter me atentado a uma pesquisa mais
específica, e também por ouvir vozes nas ruas ”Mestiçagem, mestiçagem”, dei conta estava comendo mestiçagem,
vestindo mestiçagem, “macumbando” mestiçagem.

A mestiçagem grudou tanto que gostaria de continuar com os estudos para uma próxima etapa de pesquisa com
providências específicas , rs. O próximo olhar será para um culto a um orixá em uma casa de candomblé no Brasil e
um jeito de se cultuar este “mesmo” orixá na África.

Haja vista que esta conclusão é falsa de partida, conduzo as inquietações e pequenos fracassos para um fracasso
ainda maior, o mestrado. Considero como parte desta “conclusão” o pré-projeto da próxima pesquisa, o único
material anexo que está impresso neste trabalho. Surgiu um anexo, rs. Um não, vários, mas não cabe =)

89
mACUMBa

Quando criança entrei no centro de macumba (era assim que os parentes cristãos chamavam) para dançar, comer,
rir e etc. Adora brincar de macumba, furtava comidas da cozinha da minha avó (esta ação era vista como um furto,
pois Dona Nega não admitia que a alimentação fosse feita antes do horário), colocava-as no chão, também furtava
uma saia enorme e ficava rodando com os batuques das panelas. Minha avó quase teve vários troços vendo eu e
meus primos imitarmos os adoradores do coisa ruim que bebe sangue. Detalhe: eu sou a neta mais velha, então na
hora da bronca, a “culpa” era toda minha.

Para me estabelecer socialmente para meus amigos e familiares frequentei por muitos anos a Igreja Católica. Não
perdia uma missa de domingo, chegando a até ministrar cursos de catecismos e crismas.

Assim que sai da casa dos meus pais cai em candomblés e umbandas. Vale mencionar que fiquei praticamente três
meses morando numa casa de candomblé em São Vicente (SP), mesmo sem ter passado por rituais de iniciação.
Depois fiquei por mais ou menos um ano participando como visitante de vários encontros em uma casa de umbanda
no Tatuapé (SP).

Neste ano, fui ao centro da cidade de São Paulo e entrei numa loja de artigos artesanais. Assim que vi uma cabaça
quis comprá-las, assim como as palhas da costa. Na hora de pagar a dona do estabelecimento me deu a cabaça e
pediu para que eu voltasse na loja para buscar um berimbau.

90
Dias depois, sentei no chão e trancei a palha na cabaça, pedi para que meu orixá (energia) me levasse para uma
casa de candomblé. No mesmo mês quis aprender a dirigir e senti que a atendente da auto escola emanava boas
energias:

- Moça, você tem uma energia boa. Participa de algum candomblé?


Ela levantou as mangas e mostrou um adorno em cada braço, chamados de ican ou contra-eguns (espanta energias
vibracionais baixas).
- É mãe ou pai? “Me” leva lá pra jogar?

No dia seguinte fui jogar os búzios. Escolhi participar de um ritual chamado bori (alimentar a cabeça) com o intuito de
fortalecer o ponto energético que fica na cabeça. Montei um igba ori, assentamento em que as energias do ponto
energético da cabeça são também manuseadas. E no mesmo ano, fiz um ritual conhecido como iniciação.

A iniciação consiste em desobstruir pontos energéticos do corpo, o que aumentou a sensibilidade. Existem várias
maneiras de se iniciar, a minha consistiu em ficar durante sete dias num quarto em contato com vários igbás e
somente com as pessoas com mais de sete anos de experiência em candomblé. As pessoas para entrarem no quarto
tinham que tomar banhos de ervas para “esfriar” o corpo e ficarem um tempo perto do igbá do Exu da casa para
que fossem atraídas para aquele assentamento as energias que não pudessem entrar naquele quarto ou roncó
(nome que se dá para esta qualidade de quarto). Durante o tempo de recolhimento aprendi um pouco de um dos
dialetos iorubanos da casa, comi comidas com ingredientes nunca antes visto, posições corporais também
desconhecidas, entender frases que os ataques falam, etc.

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Fotografia tirada na festa de iniciação por Guilherme Godoy
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Durante tempos eu desconfiei de muitos Babalorixás e Ialorixás – popularmente conhecidos como pais e mães de
santo – quando jogavam búzios. Desconfiava porque me apoiava em suposições baseadas na similaridade de
situações que vivemos cotidianamente, como: perder emprego, separar do amor, ir mal na prova e etc. Porém depois
que fiz o bori e a iniciação, vi algo que me marcou. Em três dias diferentes, joguei búzios após banhos e chás e
meditações, e a Ialorixá me pediu para que eu pegasse os 16 búzios, levassem para a cabeça, lados esquerdo e
direito e para baixo. As três quedas foram iguais.

Depois disso e de outras coisas que não posso comentar (somente quem se inicia pode saber) percebi mais uma vez
o quanto a arrogância cega. Não à toa, várias pessoas que fotografam ou estudam o candomblé sentem a
necessidade de participar deste e de outros rituais. As vivencias fazem com que abordagem não se limite entre as
especulações que envolvem crença ou descrença. O que percebi nas práticas desses rituais que participei é que não
se trata de uma fé cega, e sim na própria experimentação de atividades que envolvem culinária, linguagens
codificadas (como os batuques), matemáticas (existem umas contas piores que logaritmos e progressões
geométricas), ervas, conhecimento do potencial energético de elementos orgânicos e não-orgânicos, etc.

Quanto mais leio sobre o candomblé mais percebo a importância de praticar para entender. Concordo com todos
aqueles que dizem que muitos ensinamentos são práticas, experiências e vivências.

Aos poucos entendi o que são os orixás eborás e o que são os orixás funfuns. Seriam os funs aqueles que existem desde
que o mundo é mundo, a própria energia, como por exemplo Iroko, que é a energia das árvores. O eborás seriam
seres-humanos que desenvolveram técnicas para manusearem as energias, como por exemplo Ossain, aquele que
estudou os aspectos energéticos das plantas, tendo a energia o seu nome (muitos outros desenvolveram as energias
das plantas e seus nomes também dão nomes para estas energias).

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As informações que disponho sobre candomblé são tão mestiças quanto a dança do casal porta-bandeira. Pois
vieram práticas de se estabelecer relações com as forças da natureza muito peculiares. E a maioria destas atividades
envolvem danças, batuques e comidas, ou seja, os fatores de mestiçagem são muitos. Não existe candomblé puro
em lugar algum, tanto que existem vários tipos de organização candomblecista como por exemplo: Ketu, Fon, Jeje,
Achanti, Angola, etc. Em cada nome desse existe uma variedade imensa de jeitos mestiços de existência.

Os iaôs (pessoas que entram em transe quando em contato com alguma concentração energética de orixás), por
exemplo, quando incorporam os orixás (incorporam não na totalidade energética, pois não há como incorporar uma
energia, caso alguém incorpore alguma energia em sua totalidade essa pessoa corre o risco de explodir, é como se
jogar no fogo e ser tomado por ele, é como se jogar no mar e sentir as células lentamente se afogando) , também
fazem uma homenagem ao ser-humano ou seres-humanos que desenvolveram tecnologias para manusear as
energias , na maioria dos casos, estas pessoas tornaram-se reis ou rainhas e são homenageadas por pessoas que
vestem roupas muito parecidas com as roupas da porta-bandeira, como as fotografias das mulheres negras, com as
roupas de modas de épocas francesas, etc. Existem práticas consideradas como “feitiços” que estão presentes no
livro de São Cipriano, etc., permitindo uma brincadeira, as poções do amor não são somente africanas, são
portuguesas, indígenas, holandesas, espanholas, etc. além das misturas de todas elas, rs. Além dos aspectos
considerados religiosos, os can

Para tanto, a próxima pesquisa a ser realizada continua com a introdução ao olhar mestiço e pesquisas de campo
que envolvem práticas mestiças de um candomblé Ketu em São Paulo e de um culto a orixá, vodun e/ou outros
nomes de Oió. Nigéria, lá vou eu! A hipótese é que o candomblé não é somente afro-brasileiro, nem puro, nem

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estático, muito menos existe na África. Além da curiosidade de saber como Yoba ou as Yobas são culturadas em uma
das cidades que viveram.

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As próximas páginas são suspensas...

Os momentos que virão são um mistério. Não se sabe muita coisa , mas se sabe o suficiente para desconfiar de
qualquer certeza.

Além de estar com assuntos para anos de pesquisa, estou menos mal por não pertencer a algum grupo fechado, rs.
Há o interesse em se debruçar nos estudos sobre a mestiçagem cultural e a mestiçagem denunciada por Munanga,
pretende-se entender também o que seria a identidade, além dos vários jeitos de se entender “cultura”. A temática
sobre ações também influenciadas pelas culturas africanas permanece. Em dado momento, pretende-se publicar
artigos e até livros infantis, o intuito é divulgar ações também influenciadas pelas culturas africanas com olhos mestiços
que valorizam os encontros culturais.

De antemão, por me considerar uma sujeita influenciada por várias culturas vejo-me no velho e no novo – nos
entendimentos que fiz sobre mestiçagem parece que as épocas se emaranham-se (palavra utilizada também por
Amálio), pois os contágios acontecem sem as teorizações de maneiras de se pensar e entender a vida (não existe
uma eficácia em selecionar o que continua e o que não continua culturalmente, seria esta mais uma prisão em
dicotomias e certezas concretas).

Neste ano, durantes os ensaios de uma banda sem nome e sem gênero com os amigos Fernando Saintive (cordas),
Arthur Porciuncula (clarinete), Fernando Salvador (cordas), Kaoei Couto (bateria), Davi Moreno (percussão), Diego
Caldas (baixo), conheci uma canção composta pelo último que esboça o quanto eu não sei contar o tempo e
quanto não caibo em mim, encontro-me nas coisas:

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De fluturar nos tempos um talvez
Será que posso até voltar
Contando espaços dentro um, dois, três
Estalo escuta o que vai dar
Indago se és tu ou
Traço o compasso e passou
É caos acaso, Cronos, Cairós
Tu e eu em nós

É quando lembrança se torna esperança


E o tchau se avança perante o oi
Passado tudo , futuro é presente
E simplesmente foi

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Agradecimentos especiais

Laroiê Exu ! (Saudação ao orixá Exu)

A Selma Barreto, Diego Marques, Renata Bessa, Flora Rouanet, Bruno Terra, Uedes Reis; por cada abraço, beijo,
carinhos.

Vera Sala, Dalva Garcia, Vera Achaktin e Neide Neves, por todas as aulas e conversas maravilhosas de corredor.

Christine Greiner, Lucio Agra, Ana Teixeira, por todas as dicas e motivações de liberdade.

Rosa Hercoles, por todas as ajudas burocráticas e comunicativas.

Gaby Imparato, por todos os paus de aquarianas.

Evandro e Rose, por todas as conversas e possiblidades de estudar.

Adriane Gomes, por toda a cumplicidade.

Mãe a pai, por todas as malas pesadas, por cada lugar que morei, por todas as mesadas e amores.

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Obà siré !

(Saudação ao orixá Yoba)

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Créditos da próxima fotografia: Iniciação Ekedi Erica de Yoba, Claire Jean

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