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A

bipolaridade é crônica

Nasci em um dos anos mais quentes que marcaram uma guerra conhecida como
fria. Meus familiares apreensivos com ameaça de uma terceira guerra mundial,
observavam nos noticiário os acontecimentos da crise dos Mísseis de Cuba
enquanto aguardavam notícias do meu nascimento. Cresci. Fui criada alheia as
mudanças da sociedade que aconteciam ao meu redor. De certa forma, fui
enclausurada pela doutrina maniqueísta religiosa que encaixava o mundo entre
duas categorias, o bem e o mal. Qualquer atitude fora do padrão social
conservador seria classificada como algo maligno. Meus risos eram contidos,
assim como eram ocultos os motivos que me faziam sorrir.
Ainda criança lembro-me de meu pai realizando um grande jantar entre os
colegas de trabalho mais próximos. Posteriormente vim a descobrir que eles
comemoravam a promulgação do AI-5, ato que institucionalizou uma das
maiores contravenções aos direitos humanos que já aconteceu na história do
Brasil. Nesse momento de descoberta, não coube em mim tamanha repaginação.
Rompi meu momento de calmaria e boa moça. Fugi de casa. Não podia conceber
a ideia de que uma pessoa tão próxima de mim pudesse ter apoiado um sistema
de repressão brutal. Ainda acredito que demorei para enxergar o que acontecia,
contudo, confortava minha mente com o argumento de que era apenas uma
criança na época.
Esse argumento deixou de ser válido a medida que envelheci, minha mente
inquieta precisava de um choque de realidade que me fizesse entrar em contato
com o mundo real. Para isso era necessário romper com as fronteiras
conservadoras implantadas no meu inconsciente. Logo após fugir de casa fui
atordoada por uma onda de medo do futuro que por um instante não me
consumiu. Já num momento seguinte fui preenchida por lapso de coragem que
me fez juntar minhas economias para ir ao lugar mais longe e com o menor custo
de vida possível. Acordei em solo Angolano, território esse que compõe um dos
países mais pobres do Mundo.
O contato com pessoas vivendo realidades diferentes logo evidenciou meu
transtorno bipolar. Presenciei a miséria humana em seu termo mais explícito e
me sentia inconformada por não ter meios táteis para alterar o status quo. Estava
acostumada a uma vida mesquinha, com todos fazendo as minhas vontades.
Gritava por mudança e quando não era atendida me rebelava contra aqueles que
precisavam de minha ajuda. Mesmo o Brasil sendo marcado pela desigualdade
social de seu povo, foi somente nesse novo horizonte que tive contato com a
miséria pura causada pela ambição humana. Antes eu enxergava o mundo
através da perspectiva que foi imposta a mim, condicionada a aceitar fronteiras
sociais. Precisei viver onde não há esperança para aprender a lidar com as
diferenças.
Não foi fácil aprender, procurei tratamento para meu transtorno psicológico, o
acesso a saúde era parco e limitado a poucos. Em uma de minhas crises criei
uma identidade, me rodeie da elite local e procurei uma passagem pra França.
Num momento posterior, abdiquei de tudo que tinha para me aproximar dos
habitantes locais como um igual para assim conhecer suas necessidades. Foi um
caminho sem volta, hoje não me arrependo.
Além de todo o aprendizado que obtive, esse contato me proporcionou conhecer
uma pessoa que mudou minha. Me apaixonei pela primeira vez somente 30 anos,
na verdade essa foi a época que eu me permiti ter essa sensação. Julgava meus
sentimentos errados e sujos, tinha raiva de mim mesma por tê-los. Conheci a
mulher que mudou minha vida ao me cadastrar para começar um trabalho
voluntário ensinando adultos a ler e a escrever.
Ela era a fundadora da ONG na qual fui fazer parte, era uma canadense
destemida e logo deixou transparecer seu interesse por mim. De fato, ela foi
quem mais me ajudou a lidar com meus sentimentos enrustidos. Assumi minha
bissexualidade no momento em que comecei a escrever um livro sobre a minha
história. Não pude deixar de menciona-la. Afinal, a Le me ajudou a desconstruir
os padrões de certo e errado que me atormentavam. Passei a me aceitar, passei
ouvir meus desejos e respeitar o dos outros.
Um dia mostrei um rascunho que do que havia escrito a um dos meus alunos da
ONG. Ele riu do fato da minha vida ter sido marcada pelo prefixo “BI”. Na hora
fiquei orgulha por ele ter usado um termo de gramática que eu ensinei. Já em
casa fiquei intrigada com essa coincidência de ter nascido num conflito bipolar,
de eu apresentar o transtorno da bipolaridade e o fato de me identificar com a
bissexualidade. Indo mais afundo nas minhas reflexões, questionei inclusive fato
da dúvida entre defender meu pai como um fruto do convívio da sociedade de
seu tempo ou condena-lo como um mero salafrário que apoiava o regime
ditatorial. De fato vivi uma vida de duas vias, a me dividi entre a via da
realidade, e a via da forma que eu interpretava a realidade. Se posso fosse pra
escolher a mensagem no meu túmulo, essa seria: “O inconsciente não é
imparcial, isso estimula um consciente a ter duas vias, uma da verdade baseada
nas experiências próprias e outra verdade absoluta comum a todos, dessa forma
tudo ao nosso redor terá duas vias.”

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