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Textos de
Cintia Yokoyama
Ilustrações de
Marilia Ueda
Projeto com
Distribuição gratuita. patrocínio da:
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Sobre o projeto
CAPÍTULO 1
Prazer, eu sou um E.T.
que veio ao mundo para alucinar você
CAPÍTULO 2
A história da imigração nipo-brasileira,
segundo meu ditian
CAPÍTULO 3
A parte feliz e a parte triste da minha infância
CAPÍTULO 4
As gerações de nikkeis
CAPÍTULO 5
O lado amargo de ser uma mulher nipo-brasileira
CAPÍTULO 6
O lado bonito de ser uma mulher nipo-brasileira
CAPÍTULO 7
Essa é a mistura do Brasil com o Japão
Se ler o livro até o final, me manda DM no
Instagram dizendo o que achou :)
@japagirl.in.br
Arigatou!
CAPÍTULO 1
Comecei a conversar com a Marilia Ueda em
2021, depois de 10 anos sem se encontrar. E
vimos que tínhamos muito em comum, tocamos
em muitos assuntos que duas mulheres nipo-
brasileiras geralmente não ousam tocar e
chegamos a conclusão de que nos sentimos uns
extraterrestres no meio dessa bagunça que é o
Brasil. E o mundo.
Mas também foi um alívio encontrar alguém
que estava na mesma frequência que eu. E
pensamos que seria uma boa ideia sintonizar a
frequência com mais ETs nipo-brasileiros.
Tem um diálogo em uma série chamada “Get
Down” que fala que: temos que aceitar o lado
ruim das coisas boas e o lado bom das coisas
ruins.
E tem uma amiga que uma vez tweetou algo
assim: uma mesma história tem muitas
versões. E se você quer chegar nos fatos,
enxergar a verdade, é preciso escutar o maior
número de versões possíveis.
Neste livro, vou focar na minha versão,
porque acho que está faltando esse espaço para
uma mulher japonesa, ainda mais no Brasil.
Falar e questionar sobre o lado bom e lado ruim
de ser japonês já está sendo um tratamento de
choque, pra mim e pra minha família. São
temas delicados e me sinto censurada, porque
os tabus não devem ser cutucados. Não é
permitido que uma uma menina japonesa
questione um homem japonês.
O machismo é estrutural, está por todas as
partes. Tô sabendo que não é uma invenção
nossa, mas a gente capricha.
Eu demorei para entender ou querer
enxergar essa opressão que existe nas famílias
nikkeis. É difícil aceitar e me dar um descanso
de tanta cobrança. Demorei para aceitar que a
versão de uma mulher japonesa tem menos
importância. Eles não querem ouvir a minha
versão.
Me chamam de agressiva, desequilibrada e
radical. Só querem que eu honre e respeite a
versão deles. Mas não consigo fazer isso. A
versão deles oculta fatos, nuances e
personagens. A versão deles não dá mérito para
o esforço das mulheres.
Eu cresci vendo homens acabarem com a
autoestima e a liberdade de uma mulher. Nós
mulheres também fazemos isso com outras
mulheres. Hoje em dia isso se chama violência
psicológica, mas na minha infância isso era
parte da dinâmica em família que as mulheres
tinham que conviver. Realmente é
desconfortável tocar nesses assuntos, mas eu
não vou morrer com tudo isso entalado na
garganta.
A tradição manda que sim, que eu deveria
morrer calada. Mas esse é o lado bonito de ter
nascido no Brasil, dá para dar um jeitinho.
Minha família tem medo do que eu possa
expor sobre a nossa história, mas eu tenho
medo de ficar presa nesse estereótipo de menina
japonesa submissa para sempre.
Eu quero liberdade. É um processo de
autoconhecimento que estou passando junto
com eles. E com os nipo-brasileiros que vieram
conversar comigo durante o processo de
escrever este livro.
No fim, acho que é sobre entender a nossa
identidade e seguir debatendo sobre isso,
porque é algo em constante mutação e evolução.
O objetivo, no final, é a gente tentar aprender
com os erros e acertos dos nossos pais, para que
a próxima geração seja mais evoluída. E a
maneira de fazer isso não é criando tabus,
desconversando e entrando em silêncio.
Para enxergar todos os lados e entender
todas as versões, tem que debater abertamente,
sem firula e sem censura. Pode parecer algo
mais difícil para um japonês, mas daijoubu que
a gente tá no Brasil.
Estamos mais acostumados a nos abrir para
o diferente, para o novo e para o desconhecido.
Longe do Japão, a gente pode abrir mais o leque
e a mente.
Ser japonês no Brasil é um perrengue
invisível. Ninguém dá muito valor, nem nós
mesmos. Mas depois de 2020, que foi o ano em
que eu surtei, comecei a buscar outros ângulos
para olhar para nós mesmos. E passei a ver
muita beleza e muita força na nossa história de
imigrantes japoneses no Brasil. Isso está muito
presente em nós ainda, no nosso dia a dia, nos
nossos pais e avós.
Comecei a perceber que nós não somos muito
conscientes sobre a nossa identidade inusitada,
eu mesma não pensava muito a respeito antes
do surto e antes de sair do Brasil. Imigrações de
povos não são nenhuma novidade. Mas o
mundo ainda está se acostumando a pensar
globalmente, a nossa mentalidade ainda é
muito nacionalista. Por isso é tão estranho para
um europeu que eu tenha a cara asiática, mas
seja latino-americana.
Também percebi que esse tipo de mistura e
multi-nacionalidade é a tendência para as
próximas gerações. Na Europa mesmo, os
imigrantes - que são a grande força de trabalho
ainda que sejam invisíveis e menos cidadãos
que os europeus - estão mudando os rostos e
fenótipos dos filhos híbridos que estão
nascendo.
A Europa do futuro será mais plural e menos
branca, eles queiram ou não (risos). A Europa do
futuro vai ter mais uma cara de Brasil.
Lá no país do colonizador, senti o racismo de
um jeito diferente. Porque lá eles nem sabiam o
que eu sou. Imagino que seja algo parecido com
o que os coreanos, chineses e outros
descendentes de asiáticos sentem aqui no Brasil,
quando são todos categorizados como “japas”.