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Crônicas de uma

japa girl in Brazil

Textos de
Cintia Yokoyama

Ilustrações de
Marilia Ueda

Projeto com
Distribuição gratuita. patrocínio da:
Dê crédito ao
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Sobre o projeto

Este projeto tem patrocínio da Secretaria Municipal de


Cultura de Londrina, fazendo parte do edital nº
002/2021 de Projetos Independentes de Bolsas Saberes,
Fazeres e Identidades, que visa selecionar projetos
culturais a serem beneficiados pelo Programa Municipal
de Incentivo à Cultura – PROMIC.

Dedico este trabalho a todas as mulheres da


minha família. Especialmente à batian, que é a
pessoa mais boazinha e pura que conheci na vida.
Se você ler todo o livro, vai notar que realmente
falo muito da batian.
Índice

CAPÍTULO 1
Prazer, eu sou um E.T.
que veio ao mundo para alucinar você

CAPÍTULO 2
A história da imigração nipo-brasileira,
segundo meu ditian

CAPÍTULO 3
A parte feliz e a parte triste da minha infância

CAPÍTULO 4
As gerações de nikkeis

CAPÍTULO 5
O lado amargo de ser uma mulher nipo-brasileira

CAPÍTULO 6
O lado bonito de ser uma mulher nipo-brasileira

CAPÍTULO 7
Essa é a mistura do Brasil com o Japão
Se ler o livro até o final, me manda DM no
Instagram dizendo o que achou :)

@japagirl.in.br

Ou manda um email pelo


cintinhadofunk@gmail.com

Arigatou!
CAPÍTULO 1
Comecei a conversar com a Marilia Ueda em
2021, depois de 10 anos sem se encontrar. E
vimos que tínhamos muito em comum, tocamos
em muitos assuntos que duas mulheres nipo-
brasileiras geralmente não ousam tocar e
chegamos a conclusão de que nos sentimos uns
extraterrestres no meio dessa bagunça que é o
Brasil. E o mundo.
Mas também foi um alívio encontrar alguém
que estava na mesma frequência que eu. E
pensamos que seria uma boa ideia sintonizar a
frequência com mais ETs nipo-brasileiros.
Tem um diálogo em uma série chamada “Get
Down” que fala que: temos que aceitar o lado
ruim das coisas boas e o lado bom das coisas
ruins.
E tem uma amiga que uma vez tweetou algo
assim: uma mesma história tem muitas
versões. E se você quer chegar nos fatos,
enxergar a verdade, é preciso escutar o maior
número de versões possíveis.
Neste livro, vou focar na minha versão,
porque acho que está faltando esse espaço para
uma mulher japonesa, ainda mais no Brasil.
Falar e questionar sobre o lado bom e lado ruim
de ser japonês já está sendo um tratamento de
choque, pra mim e pra minha família. São
temas delicados e me sinto censurada, porque
os tabus não devem ser cutucados. Não é
permitido que uma uma menina japonesa
questione um homem japonês.
O machismo é estrutural, está por todas as
partes. Tô sabendo que não é uma invenção
nossa, mas a gente capricha.
Eu demorei para entender ou querer
enxergar essa opressão que existe nas famílias
nikkeis. É difícil aceitar e me dar um descanso
de tanta cobrança. Demorei para aceitar que a
versão de uma mulher japonesa tem menos
importância. Eles não querem ouvir a minha
versão.
Me chamam de agressiva, desequilibrada e
radical. Só querem que eu honre e respeite a
versão deles. Mas não consigo fazer isso. A
versão deles oculta fatos, nuances e
personagens. A versão deles não dá mérito para
o esforço das mulheres.
Eu cresci vendo homens acabarem com a
autoestima e a liberdade de uma mulher. Nós
mulheres também fazemos isso com outras
mulheres. Hoje em dia isso se chama violência
psicológica, mas na minha infância isso era
parte da dinâmica em família que as mulheres
tinham que conviver. Realmente é
desconfortável tocar nesses assuntos, mas eu
não vou morrer com tudo isso entalado na
garganta.
A tradição manda que sim, que eu deveria
morrer calada. Mas esse é o lado bonito de ter
nascido no Brasil, dá para dar um jeitinho.
Minha família tem medo do que eu possa
expor sobre a nossa história, mas eu tenho
medo de ficar presa nesse estereótipo de menina
japonesa submissa para sempre.
Eu quero liberdade. É um processo de
autoconhecimento que estou passando junto
com eles. E com os nipo-brasileiros que vieram
conversar comigo durante o processo de
escrever este livro.
No fim, acho que é sobre entender a nossa
identidade e seguir debatendo sobre isso,
porque é algo em constante mutação e evolução.
O objetivo, no final, é a gente tentar aprender
com os erros e acertos dos nossos pais, para que
a próxima geração seja mais evoluída. E a
maneira de fazer isso não é criando tabus,
desconversando e entrando em silêncio.
Para enxergar todos os lados e entender
todas as versões, tem que debater abertamente,
sem firula e sem censura. Pode parecer algo
mais difícil para um japonês, mas daijoubu que
a gente tá no Brasil.
Estamos mais acostumados a nos abrir para
o diferente, para o novo e para o desconhecido.
Longe do Japão, a gente pode abrir mais o leque
e a mente.
Ser japonês no Brasil é um perrengue
invisível. Ninguém dá muito valor, nem nós
mesmos. Mas depois de 2020, que foi o ano em
que eu surtei, comecei a buscar outros ângulos
para olhar para nós mesmos. E passei a ver
muita beleza e muita força na nossa história de
imigrantes japoneses no Brasil. Isso está muito
presente em nós ainda, no nosso dia a dia, nos
nossos pais e avós.
Comecei a perceber que nós não somos muito
conscientes sobre a nossa identidade inusitada,
eu mesma não pensava muito a respeito antes
do surto e antes de sair do Brasil. Imigrações de
povos não são nenhuma novidade. Mas o
mundo ainda está se acostumando a pensar
globalmente, a nossa mentalidade ainda é
muito nacionalista. Por isso é tão estranho para
um europeu que eu tenha a cara asiática, mas
seja latino-americana.
Também percebi que esse tipo de mistura e
multi-nacionalidade é a tendência para as
próximas gerações. Na Europa mesmo, os
imigrantes - que são a grande força de trabalho
ainda que sejam invisíveis e menos cidadãos
que os europeus - estão mudando os rostos e
fenótipos dos filhos híbridos que estão
nascendo.
A Europa do futuro será mais plural e menos
branca, eles queiram ou não (risos). A Europa do
futuro vai ter mais uma cara de Brasil.
Lá no país do colonizador, senti o racismo de
um jeito diferente. Porque lá eles nem sabiam o
que eu sou. Imagino que seja algo parecido com
o que os coreanos, chineses e outros
descendentes de asiáticos sentem aqui no Brasil,
quando são todos categorizados como “japas”.

Saindo da minha bolha da comunidade


japonesa no Brasil, entendi que o sentimento de
não-pertencimento não é algo individualizado
meu, nem algo específico que se vive aqui.
Entendi que asiáticos nos países ocidentais
sempre vão ser vistos como um elemento de
fora. Nossos costumes sempre vão causar algum
estranhamento nos brancos. Ainda que nós nos
adaptamos aos costumes deles.
E nem quero falar sobre fetichização de
asiáticas no ocidente. Ainda. É muita coisa que
dá para explorar e discutir. Mas em resumo, os
brancos não têm nenhuma vergonha na cara.
Desculpa se parece muito agressivo. É que é
para ser mesmo.
A mesma amiga do Twitter diz que, como
uma mulher negra, ela sempre vai ter que
trabalhar 20x mais que um branco para ganhar
o mesmo crédito. Tudo realmente é mais injusto
se você não nasceu no meio do privilégio branco.
Como cavar seu lugar de fala sendo uma
menina japonesa em quatro atos:
Mas também não sou doida de comparar a
realidade do nipo-brasileiro com a dos negros e
indígenas. Porque muitas vezes somos anulados
e inferiorizados, mas eles são marginalizados e
exterminados.
Os japoneses no Brasil geralmente ocupam
as classes média e alta, são respeitados em
alguns setores e níveis, conquistamos algum
lugar na sociedade. Nem sempre esse lugar me
dá orgulho. Por exemplo, quando certos nipo-
brasileiros são médicos apoiadores do atual
presidente ou quando certos nipo-brasileiros
deputados defendem ideologias nazistas.
É difícil demarcar as diferenças e nuances do
que é ser nipo-brasileiro, é difícil fugir das
crises de identidade. Mais difícil ainda é fazer
um homem japonês te ouvir.
Eu não me sinto preparada para representar
nada, uma causa ou uma forma de pensar. Não
desenvolvi pesquisa nem estive estudando
academicamente sobre os assuntos que vou
tocar neste livro. Mas sinto vontade de poder
conversar sobre os temas amarelos no Brasil
com meus iguais.
Por isso, esse humilde e-book é uma
tentativa de gerar debate e de aprender junto
com outros nipo-brasileiros sobre nós mesmos e
sobre a nossa história.
Eu começo contando a minha versão. A minha
visão do que é ser uma nipo-brasileira. Mas
depois, quero ouvir as histórias de vocês. A gente
troca figurinhas, e quem sabe até aprende e
evolui no meio disso tudo. Boa leitura, pessoal!
CAPÍTULO 2

Muitas crianças crescem ouvindo histórias.


Geralmente, a mesma história é contada
repetidas vezes. É um método de ensino que
funciona demais. As lições das histórias entram
na sua mente e inconsciente. A minha criança
interior guarda histórias que meu ditian fez
questão de me contar muitas vezes.
Tem também as histórias que não quiseram me
contar, as histórias que eu entendi nas
entrelinhas e as histórias que vi acontecendo
diante dos meus olhos puxados.
Mas para mim, a história da imigração
japonesa no Brasil é a história da minha
família. Então eu começo com eles. Com um
resumo das histórias do meu ditian.
Ele é descendente de militares e trabalhadores
da classe média do Japão. Apesar de ter nascido
e crescido no Brasil ele se identifica como
japonês, assim como a maioria dos
descendentes da mesma geração dele. Eles se
veem como japoneses vivendo fora do Japão.
E se você for para São José dos Campos ou
outras cidades com forte presença dos
japoneses, pode ser que você entenda o meu
ditian. É como se a comunidade tivesse montado
um pequeno Japão nesses lugares. Temos os
nossos clubes, encontros, eventos culturais e
esportivos, parceiros de negócio, amigos,
parentes, tudo dentro desse pequeno Japão. Meu
ditian junto com a geração dele construiu esse
espaço ao longo dos anos.
A história dele começou na lavoura, quando
meus bisavós - esses sim, nascidos no Japão -
vieram para o Brasil buscando uma vida mais
promissora.
Primeiro, meus bisavós foram para a região de
Ourinhos, capinar cafezal.
Meu ditian diz que eles não estavam
habituados ao trabalho braçal, acharam a vida
na roça muito dura e fugiram de lá para
trabalhar na região de Arujá, onde meu ditian
nasceu. Ele é o quinto filho, de oito irmãos.
Acredito que as famílias japonesas se
instalaram por quase todo o interior de São
Paulo e Norte do Paraná, mas meus bisavós se
mudaram também porque em Arujá eles
conheciam mais japoneses, logo mais contatos
de trabalho e rede de suporte. Nessa época, a
família do Japão havia mandado algum
dinheiro para os meus bisavós, suficiente para
comprarem uma terrinha, menor que uma
chácara, e eles começaram a plantar batatas.
Depois, começaram a granja.
O ditian tem memórias de ver minha bisavó
desmaiando de fome para garantir que todos os
filhos tivessem se alimentado bem. Meu bisavó
morreu aos 41 anos e passou seus últimos anos
doente, trabalhando como professor de japonês.
Os irmãos do ditian que trabalhavam na
lavoura. Meu ditian diz que era fraco para
levantar enxada - problemas de pulmão, então
ele ajudava minha bisavó com as tarefas
domésticas, fazia entregas em São Paulo e
outras cidades, aprendeu a cozinhar, a fazer
consertos na casa, a dirigir, a fazer
contabilidade e tudo mais que fosse necessário.
Ele sempre fala com muito carinho da mãe
dele. A chama de “mamãe”, em português. E
acha que seu pai era um tanto machista e frio.
Minha bisavó cuidou dos 8 filhos sozinha por
décadas, morreu aos 92 anos e eu lembro dela
velhinha e fraquinha na casa da rua Anápolis.
O ditian conheceu a batian quando ele tinha 20
anos de idade. E minha batian tinha 12.
E eles se casaram quando ele tinha 29, e a
batian 21. Até eles casarem, eles moravam em
casas próximas e as famílias dos dois se davam
bem. O ditian foi o único homem da vida dela. A
batian não foi a única mulher da vida dele.
Foram nove anos de cortejo. E mais de 50 anos
de casados.
A minha batian nasceu na região de Agudos
e depois a família se mudou para São José dos
Campos.
Ela é a primeira filha de 7 irmãos. Também
trabalhavam na lavoura. Ela sempre foi dona de
casa e assumiu o papel de mãe dos irmãos
quando a mãe dela faleceu. Tudo que ela fez na
vida foi cuidar e se preocupar com os outros,
primeiro com os irmãos, depois com os filhos e
netos.
Quando eles se casaram, eles foram morar
em casas que faziam parte de uma cooperativa
agrícola. O governo financiava moradia,
material e equipamentos para viabilizar esse
trabalho e o comércio de pequenos produtores.
A maioria das famílias eram japonesas. Minha
mãe e tia nasceram nessa cooperativa.
Na década de 70, a cooperativa acabou e
meus avós compraram um lote na Rua
Anápolis. Nessa época meu ditian trabalhava
como motorista. Foram vários anos de economia
até terminarem de construir a casa. Onde meu
tio, terceiro e último filho nasceu. Minha mãe,
sendo a filha mais velha, ajudou nos gastos da
construção dessa casa. Ela começou a trabalhar
aos 16 anos de idade.
O ditian sempre fala com muito orgulho da
casa da Rua Anápolis e sobre como foi difícil até
se estabelecerem. Hoje em dia a casa está
alugada, mas eu passo lá na frente e revivo
minha infância e todo passado da minha família
por tabela.
Minha mãe conheceu meu pai em São José
dos Campos. Meu pai é do interior do Paraná,
mas foi treinar em um time de beisebol de uma
fábrica chamada Kanebo. Eles se conheceram
em um baile de kaikan (que é tipo um clube
para japoneses socializarem). E minha mãe
engravidou de mim antes do casamento.
Quando ela contou ao meu ditian, ele chorou de
desgosto e disse que eles deveriam se casar. E
assim foi.
Quando eu tinha 3 anos de idade, meus avós
foram trabalhar como dekasseguis no Japão. Eu
e meus pais ficamos em SJC. Aproximadamente
metade das histórias do meu ditian são sobre a
época que eles trabalharam no Japão. Viver no
nosso país de origem foi um período marcante
para eles.
Meu ditian conta que o objetivo dos pais dele
era juntar dinheiro no Brasil e voltar para o
Japão, lá na década de 30. Muitos não
conseguiram ou não quiseram voltar e aqui
estamos! Já na década de 80 e 90, quando o
ditian foi para o Japão, o objetivo era juntar
dinheiro lá e voltar ao Brasil.
Foram só três anos trabalhando como
dekasseguis, mas eles juntaram o dinheiro para
voltar ao Brasil e construíram a segunda casa, na
rua Fortaleza. O plano era ter três casas, duas
para alugar e uma para viver.
Meu ditian diz que foi o primeiro nikkei de
São José dos Campos a ir trabalhar de dekassegui
no Japão. Eu não tenho outras fontes para
confirmar, mas ele afirma que é isso sim. Junto
com a batian e ditian, foram minha tia e tio
trabalharem de dekassegui.
E eles trabalharam em fábricas de montadoras
de peças automobilísticas. Esquema fordismo,
trabalho repetitivo e braçal. Era um trabalho
duro, mas para os dekasseguis era um sacrifício
que valia a pena. Porque 1 hora de trabalho lá no
Japão equivale a umas 40 horas de trabalho no
Brasil. Você trabalha como um corno, mas ganha
o dindin.
As mulheres ganhavam cerca de 50% menos
que os homens. E o assédio sexual e psicológico
de chefes e superiores para com mulheres
obviamente é super normalizado.
E as mulheres só devem aguentar caladas. Os
chefes passavam pela minha batian e davam
tapa na bunda dela.
Tem um tio japonês que em tom de
brincadeira diz que mulher nasceu para ser
escrava. Parece extremo e radical, mas a verdade
no fundo da piada é que todos temos isso
internalizado de alguma forma. A mulher sofre
mais. E paciência.
Até aqui eu só tenho as histórias que meu
ditian e outros membros da família me contaram.
Minhas lembranças começam quando meus avós
voltaram do Japão quando eu tinha 6 anos e
lembro de ir encontrá-los no aeroporto de
Guarulhos. Naquela época, a japonesada trazia
dinheiro vivo, amarrado com fita no próprio
corpo, porque nos anos 90 não tínhamos pix.
Com esse dinheiro, o ditian e a batian começaram
a construir a casa na Rua Fortaleza, de novo, com
as próprias mãos.
Essa época da vida deles é o que marcou o
início da minha. Lembro de me sentir segura e
feliz na casa da batian e ditian. Eles cuidavam de
mim, mas me deixavam ser livre. Eu tive mais
liberdade para ser eu mesma, mais que a minha
mãe e tia. Por ser a neta, e não filha, me
cobraram menos.
Minha família é muito japonesa. Até a geração
dos meus pais, eu diria que é muito mais
japonesa que brasileira. Nos círculos de amigos
dos meus pais, a maioria é descendente com
poucos casais miscigenados. Minha mãe trabalha
há 25 anos em uma escola “japonesa” no Brasil. E
meu pai trabalha para a irmã mais velha,
mantendo os negócios em família.
E desde que me entendo por gente, lembro de
me sentir presa e sufocada nesse círculo bem
nipônico, sem querer ofender ninguém da
comunidade. Depois de velha, entendi que a
asfixia vinha do patriarcado opressor que
normalmente acontece nas famílias nikkeis.
Para mim, a parte bonita da imigração
japonesa no Brasil é essa história de honra ao
trabalho e à família que o ditian me mostrou. Eu
o admiro porque ele foi um trabalhador humilde
e honesto a vida toda. Ele resolve tudo sozinho,
constrói a própria casa e banca o que diz. E amou
e cuidou da minha batian de um jeito muito
fofinho, ainda que com pitadas fortes de
machismo japonês.
A parte feia são esses temas que eles querem
jogar debaixo do tapete. É quando a gente repete
o negacionismo e a mentalidade reacionária dos
corações sujos. É um ranço que vem dos nossos
ancestrais e não conseguimos resolver. E tudo
isso tem a ver com o machismo japonês, com o
orgulho que eles não conseguem engolir. Com a
dor das mulheres que eles ignoram ou tem medo
de olhar.
Dor que muitas vezes é causada por eles
mesmos. Porque, por exemplo, você reparou que
eu só contei a história do meu ditian? A história
da minha batian existe, mas ela fica meio
escondida atrás do meu ditian. Quem tem lugar
de fala para narrar a história é o homem. A
batian contava menos, ela dava suporte à
narrativa do ditian, como deve ser.
Mas quando minha batian estava sozinha com
a minha mãe, ela contava o que eles não queriam
ouvir. E às vezes, chorava baixinho. De tristeza,
de preocupação, de ansiedade. Nada disso pode
ser mostrado para eles. Esse tipo de emoção e
sentimento são considerados uma fraqueza. E
desconfortável de ver. Um japonês deve aguentar
e mostrar que é forte sempre.
A história que eu li nas entrelinhas é tudo isso
que as mulheres guardam para dentro. Como
elas aguentam os perrengues, como elas
carregam a dor dos homens nas costas e ainda
conseguem sorrir e serem doces, mesmo com
tanta dor. Essa história que acho que falta contar.
Então, segue a leitura!
CAPÍTULO 3

Eu nasci em São Paulo e meus pais voltaram


para São José dos Campos quando eu tinha um
ano de idade. Meus pais trabalhavam, então eu
passava o dia todo com a batian. Eu tenho uma
vaga lembrança de ficar sentada no chão da
cozinha assistindo a batian cozinhar. E de ficar
conversando e andando com ela pelo Parque
Industrial, onde eles construíram a primeira
casa.
São José dos Campos é uma cidade que
cresceu com as fábricas que se instalaram lá na
década de 50 e 60. É uma cidade de proletários.
Uma das fábricas mais importantes da cidade foi
a Kanebo, indústria têxtil japonesa. Que trouxe
muito japonês para cá e empregou muito
descendente daqui. Do Japão, também teve a
Panasonic. O primeiro emprego da minha mãe
foi na National, empresa japonesa também.
Lembro que eu pedia uma irmãzinha pros
meus pais. Ser uma criança por vezes é muito
solitário. E ela nasceu em São José dos Campos,
em janeiro de 1991.
Nesse mesmo ano, nós nos mudamos para
Londrina. Meu pai jogava beisebol e nosso círculo
social eram as famílias que faziam parte do time,
que se chamava Ótica Central - nome da loja do
tio que patrocinava as camisetas do time. Boa
parte dessas famílias eram descendentes de
Okinawa, japoneses da ilha sul, que não são os
mesmos japoneses do norte.
Na década de 90, a comunidade em Londrina
era mais forte e unida. Tinha mais undokais,
mais eventos e atividades nos kaikans. As
famílias se juntavam mais. Minha mãe falou
uma coisa muito certeira:
nessa época, a colônia juntava as famílias mais
ricas e pobres, porque o importante era sermos
um coletivo. Hoje em dia, tenho a impressão que
somos mais classistas e individualistas. Não tem
comunidade, só tem corporações.
A bolha da comunidade japonesa que me
inseriram sempre me causava uma certa
repulsa, sempre tive uma sensação de não
pertencimento, sempre fiz questão de ser meio
rebelde. Eu nunca quis ser a típica menina
japonesa - apesar de sempre ter sido. Acho que
sempre quis fugir da minha identidade, era mais
fácil querer fazer parte do mundo dos brancos. E
até pensar que era branca. O que hoje em dia faz
eu me sentir uma palhaça.
Nos meses de férias escolares, dos meus 6 aos
11 anos de idade, eu ia para a casa da batian em
São José dos Campos. Até tinha uns amiguinhos
e crianças da família para brincar, mas o que eu
gostava mesmo era de passar tempo com meus
avós. Dormia junto com eles, a gente ia pra feira
toda quarta-feira e eu só gostava de acompanhar
a rotina deles. Meu ditian cuidava da horta, das
plantas do jardim e de todo canto da casa que
precisasse de um reparo ou cuidado. E a batian
era a dona de casa e a dona matriarca.
Quando chegava o fim das férias, meu pai
vinha de Londrina me buscar e eu ia embora
chorando, como se estivessem me levando de
volta pra prisão. Eu não me senti livre em
Londrina até entrar na UEL, onde cursei
jornalismo.
No colégio, eu tive amigos não descendentes,
mas só quando entrei na UEL senti que saí um
pouco da bolha, conheci pessoas que me
marcaram e me influenciaram. Pessoas que me
ajudaram a me entender melhor.
Em São José dos Campos eu me sentia mais
livre para ser eu. Gostava de dançar, de olhar
pro céu e de sonhar. Em Londrina, eu não
dançava mais. E sonhava menos. Foi onde
minha infância acabou, onde eu entendi que não
podia mais ser uma criança mimada. Tem um
motivo muito claro do porquê eu não gosto de
Londrina e do apartamento onde eu e minha
irmã crescemos.
Mas começando esse processo de escrever e
expor nossa história, eu entendi que falar da
parte triste da minha infância machuca muito a
minha família. Então, por enquanto, eu vou
pular essa parte.
E vou focar na parte bonita. Que foi essa
época em que vivi o equilíbrio perfeito da
segurança e liberdade com meus avós. Eles são
muito japoneses e seguem os valores dos nossos
ancestrais, mas me deixavam ser eu. Meu ditian
é um senhor tranquilo e nunca perde o controle.
Para disciplinar a prole, ele nunca dava bronca e
soltava gritos, só olhava com desgosto. E isso já
era o suficiente. E a batian, meu deus do céu, eu
não consigo explicar o quanto ela era boazinha.
Ela ensinava tudo com muita paciência e jeitinho
japonês.
Era uma vida simples e muito honrada. No
bairro onde eles se estabeleceram, vivem muitas
famílias japonesas até hoje e todo mundo se
conhece. Tem lojas de produtos japoneses, na
feira mais da metade dos feirantes são
descendentes. Meu ditian tem a alcunha de
“prefeito”entre os vizinhos, pois está marcando
presença na região desde os anos 40.
Minhas férias com meus avós eram
basicamente comer (comida de batian), brincar e
viver a rotina deles. E eu sou muito grata por
eles terem compartilhado isso comigo. É a época
da minha vida que eu mais me senti livre,
segura e amada.
CAPÍTULO 4

Estive perguntando para todos os nipo-


brasileiros que conheço se eles se identificam
como brasileiros ou japoneses. E cada um
responde uma coisa. Não tem um padrão. Tem
um primo de 17 anos que se entende como
japonês e uns tios de 60 anos que se sentem mais
brasileiros. Alguns ficam divididos, sem escolher
um lado, somos um pouco dos dois.
Nós fomos mudando com o passar dos anos,
conforme as gerações foram avançando, a
cultura e pessoas brasileiras foram entrando
mais na casa do nipo-brasileiro. A mistura foi
acontecendo aos poucos. Ainda que a gente
mantenha os valores do Japão de um jeito muito
disciplinado.
Nós fomos criando essa mistura ao longo
dessas 3 ou 4 gerações. Meu ditian lamenta que a
nossa cultura japonesa no Brasil vai acabar com
o tempo. Mas eu não vejo assim. Essa nossa
cultura é algo que vai se transformando sempre.
E acho que está mudando para algo interessante,
algo que ainda não consigo ver claramente e ler
totalmente.
No ying-yang da vida, é preciso enxergar o
lado bom e o lado ruim. Acho que finalmente
consegui fazer isso olhando para a minha
família e para nossa história. Hoje em dia
consigo ter mais orgulho de ser japonesa. Apesar
de toda a opressão machista.
Ser uma menina japonesa no Brasil fazendo
discurso feminista na internet. Tenho quase
certeza que meus ancestrais não vislumbraram
esse futuro pra mim. Mas aqui estou. E escrevo
sobre o que eu vejo das gerações de nikkeis no
Brasil:

Na geração dos meus avós, a pressão para


casar com descendentes era grande. Na época
deles, fazia mais sentido manter as coisas dentro
da comunidade. Parecia perigoso se envolver com
os ocidentais. Na juventude dos meus avós se
fazia “miyai” que seria o casamento arranjado
dos japoneses. Os pais dos meus avós se davam
bem e o ditian ficou apaixonado na batian
porque ela era muito gata. Então no caso deles,
acho que foi um “miyai” amigável e de comum
acordo entre as partes.
A primeira e segunda geração de japoneses
tiveram que cavar nosso espaço no Brasil. E eles
começaram na lavoura e nas granjas.
Obviamente, a realidade era muito mais difícil
do que a propaganda que fizeram do Brasil pra
eles. Disse meu ditian: “Falavam que era fácil
fazer dinheiro, que dava para comer carne
bovina de graça, porque tinha muito gado”.
Nosso idioma, nosso jeito, nossos olhos, tudo
parecia exótico para os brasileiros. O choque
cultural era muito chocante. Parecia fácil para
um branco explorar o japonês com cara de
bobinho. Para se proteger em um lugar hostil, as
famílias japonesas se uniam e se ajudavam.
Honrar a família era um instinto de
sobrevivência. Houve a época em que eles foram
proibidos de falar e ensinar o idioma japonês.
Mas sempre mantiveram a cultura e a língua
japonesa vivas dentro de casa.
Com o passar dos anos, foram aprendendo o
idioma português. A criar gosto pelas coisas
daqui, pela comida, pela natureza e paisagens,
pelas pessoas e costumes. Ainda que o Japão
sempre esteja acima. Para o meu ditian, Japão
sempre será uma cultura superior. Sabemos
como fazer as coisas e temos orgulho disso. No
Brasil “é muita bagunça”, diz ele.
Na geração dos meus pais, ainda havia
pressão para casar com descendentes. Mas a
regra já era menos rígida. Eles tinham liberdade
para escolher os parceiros, mas que seja
descendente de preferência. A maioria dos
amigos dos meus pais eram nipo-brasileiros.
Quatro kokeshis, quatro gerações de mulheres
Ainda fazia mais sentido manter as coisas
entre nós e o objetivo era ter uma vida bem-
sucedida no Brasil. Foi a geração que começou a
ter nível superior, a virar médico, engenheiro e
empresário.
Nos anos 70 e 80, os japoneses no Brasil se
sentiam brasileiros também. Em São Paulo e
norte do Paraná dá para enxergar que nós
conquistamos nosso pequeno espaço neste país
continental. E a maneira de conquistar nosso
lugar, foi seguindo os valores dos nossos
ancestrais. A disciplina também é um instinto de
sobrevivência.
Mas em outras partes do país, somos vistos
como estrangeiros. Apesar de sermos a maior
comunidade japonesa fora do Japão,
representamos um número pequeno entre o povo
brasileiro. Somos minoria e meio invisíveis. Vejo
que a geração dos meus pais ainda não pensa
muito sobre a nossa identidade. As crises mal
resolvidas são uma herança deles. Tem muitas
questões que eles não terminaram de resolver,
muito porque não se discute a respeito.
E é aí que surge a minha geração. Nós já
estamos mais integrados na sociedade e cultura
brasileira. Não queremos estar presos aos valores
e tradições da nossa família. Mas ainda estamos
muito ligados às nossas raízes. Os tabus ainda
nos assombram.
Quando comecei a conversar com mulheres
nipo-brasileiras no Instagram, vi que muitas de
nós nos sentimos culpadas ou até meio lerdas,
por demorarmos tantos anos para questionar e
falar sobre os tabus. Percebi que nós estamos
passando por questões muito parecidas e ao
mesmo tempo. E é algo muito particular nosso.
Parece que todas estamos passando por um
processo de autoconhecimento e amadurecimento
em relação a nós mesmas, à nossa família e a
esse peso que as mulheres carregam. Também
vejo que nós nos cobramos muito.
A voz e a régua disciplinadora dos meus
ancestrais às vezes não me deixam enxergar
meus méritos. Não dou valor pro peso que estava
carregando em silêncio. Me sinto mal por
acreditar que era uma dor só minha. Por isso,
temos que aprender a nos dar um descanso de
tanta cobrança. Respirar como um yogi, acalmar
a mente para conseguir olhar no espelho e ver
algo bonito, algo em evolução, em andamento.
Olhando para as mulheres da minha família e
para mim, eu vejo que essa revolução no olhar é
algo especialmente difícil de se fazer. Porque acho
que só uma mulher japonesa entende a maneira
como a nossa autoestima é estraçalhada ao longo
da vida. Sem querer me fazer de vítima ou fazer
mais um mimimi.
Uma mulher japonesa tem mais dificuldade de
se valorizar, se priorizar e de cuidar mais de si do
que dos outros.
Nossas batians foram criadas para servir o
homem. Dói ouvir que o estereótipo de uma
mulher japonesa é ser submissa. Por isso, as
mulheres da minha geração são julgadas por
serem reativas e agressivas demais.
Tem muita força na história das mulheres da
minha família. Mesmo que nos registros
masculinos elas tenham cumprido o papel de
submissão como eles queriam. A minha batian e
minha mãe aguentaram muita opressão para que
eu, minha irmã e minhas primas possamos ser
mais livres.
No bom e mau sentido, elas me mostraram
uma capacidade enorme de amar e de perdoar.
Elas também têm muita resistência à dor. Física,
emocional e psicológica. Por sermos proibidas de
falar o que realmente pensamos, aprendemos a
ouvir com humildade. E por termos nascido no
Brasil, somos mais flexíveis, abertas e malandras.
Isso é o que enxergo das gerações de nikkeis.
A nossa luta é o que nós vamos criar com o
legado que nos deixaram. Eu sempre fui muito
rebelde e ingrata com a herança que me
deixaram. Agora, acho que estou começando a
aprender sobre gratidão. Arigato, batian.
CAPÍTULO 5

Eu vi muitas histórias tristes de mulheres


asiáticas. O livro "Sorrisos Amarelos”, de Marina
Yukawa, conta histórias de várias mulheres
asiáticas no Brasil. Tem também o livro “As boas
mulheres da China”, de Xinran. E tem as minhas
histórias que envolvem a minha família. Todas
carregam esse peso do silêncio e da submissão. É
algo tão enraizado em nossa passado e tão delicado
de lidar que parece melhor não mexer nesse
vespeiro. Às vezes, é até melhor viver em negação
do que olhar para esse lado amargo.
Mas guardar para dentro adoece. A mente e o
corpo. Eu comecei a sentir isso depois dos 30. E
comecei a colocar para fora. Não é gostoso abrir
essa caixa de Pandora, ser o agente do caos. Mas é
o que acabei fazendo com a minha família. Eu
mostrei a minha dor que escondi a vida inteira e
eles se assustaram muito. Tinha coisa muito antiga
que estava entalada, me deixando asfixiada.
É triste ver como cada mulher da minha família
guarda a dor para si e sofre sozinha. A terapia me
ajudou a questionar isso.
A pensar coisas que eu não me permitia pensar. E
a ser mais auto-suficiente, depender menos de
aprovação. Mas ainda falta muito, ainda não
encontrei o equilíbrio. Eu assustei minha família
porque faltava mostrar a minha versão da história
para eles. Era importante para mim quebrar o
silêncio, dar um grito de raiva que estava
guardado há uns 30 anos.
Depois da tormenta, vem a calmaria. Botar para
fora me ajudou a entender e relembrar algumas
coisas. Só quando externalizei, entendi como eles
anulam o que eu falo. Lembrei que sempre vou ser
a desequilibrada e radical da história, se tento
defender o meu lado. Mesmo que o lado deles não
tenha mais argumentos plausíveis.
Eu passei a minha infância e adolescência
inteiras dizendo ao meu pai que ele tinha um
problema, uma doença psicológica e tinha que se
tratar. A doença dele me deixou doente por muitos
anos, me deixou presa, não me deixava enxergar
uma saída. Ele nunca me escutou. A minha saída
foi fugir e preferir a solidão do que a servidão de
ter que respeitar um pai que não me respeita. Se
ele me respeitasse, ele assumiria o que fez, sem eu
ter que pedir e fazer todo o esforço por ele. Se ele
me respeitasse, ele teria a coragem de me defender
ao invés de me deixar lutando sozinha.
Eu cresci sendo ensinada que uma menina
japonesa não pode deixar um homem
desconfortável, vulnerável. Nós temos que engolir
a dor e ficar em silêncio.
É isso que a minha família me pede. Mas
infelizmente não encontrei um jeito melhor do que
usar minha própria história para ilustrar como é o
machismo em uma família nikkei. É diferente das
famílias brasileiras, de imigrantes italianos,
espanhóis, portugueses ou dos países africanos.
Não tem lavação de roupa suja nas famílias
nikkeis. Ninguém fala as verdades na lata. Muitas
vezes os problemas se “resolvem” na base do
silêncio mesmo. E as mulheres têm menos voz
sempre, o homem é quem decide. Até meu ditian
admite isso.
Expor como a relação com meu pai é totalmente
destruída é meu jeito de mostrar o machismo para
a minha família. E é como eu me livro da criança
interior que esteve amargurada a amaldiçoada por
todos esses anos aqui dentro. Depois de 30 anos, a
minha prima entendeu porque ela me encontrava
triste trancada no meu quarto, quando éramos
pequenas. Essa menina não habita mais esse corpo,
por mais que eu sempre seja a Cintia-tchan dos
meus tios, avós e pais. A minha criança interior
morreu quando eu entendi que meu pai não era
meu herói. Era mais um vilão que atrasava meu
desenvolvimento e cortava a minha vibe.
Ninguém está preparado para lidar com a
minha loucura. Demorei 35 anos para entender
como meu passado está muito ligado ao jeito
patriarcal japonês de lidar com as coisas. Demorei
para entender o que é essa solidão da mulher
japonesa que conheço desde criança.
Entender a história dos meus antepassados é
doloroso, tem muita violência contra a mulher.
Tem muito grito abafado e entalado na garganta.
O livro “Scream from the Shadows” conta sobre
o movimento Uman Ribu, que aconteceu no Japão
nos anos 70. Era a versão japonesa do Women’s
Lib, movimento feminista que foi forte dos EUA,
França, Reino Unido nessa mesma época. Elas
falavam de libertação sexual, sobre como a mulher
japonesa deve cumprir um papel na sociedade e
não tem nenhum poder sobre sua sexualidade.
Quem controla nosso sexo é o homem.
Este movimento de mulheres do meio
universitário e intelectual do Japão semeou as
primeiras vertentes e discursos do feminismo
moderno de lá. A ideia do feminismo é algo muito
recente no Japão e assusta muito os homens.
Em 2017, Shiori Ito liderou o movimento MeToo
no Japão expondo seu caso de abuso sexual. Ela só
conseguiu ser ouvida e ter uma resolução na justiça
depois que o caso ganhou visibilidade em outros
países.
Daqui de longe, dá para perceber que o tema no
Japão é muito mais tabu e censurado do que no
Brasil. E entre a comunidade nipo-brasileira acho
que só começamos a falar sobre isso nos últimos
anos.
Considerando todo esse nosso passado sombrio,
dá para entender porque custa tanto para os
homens da família me darem voz e lugar de fala. É
difícil demais escutar e dar a razão para uma
mulher japonesa, fere o ego de gerações.
Eu entendo nosso contexto. E entendo que por
mais que eu queira expor e falar da minha história,
a minha família ainda não está preparada para
isso.
Então não vou contar a história do meu pai e
como ela me afetou. Mas eu posso pelo menos
contar que fui censurada e que a voz deles sempre
pesa mais que a minha, não posso?
Esse é o lado amargo de ser uma mulher nipo-
brasileira. Por mais que eu grite, argumente ou
siga o protocolo. No final, eles sempre vencem. E o
meu discurso vira mimimi.
CAPÍTULO 6

Demorei quase 35 anos para ver o lado bonito


de ser uma mulher nipo-brasileira. Ou seja, de
mim mesma e das minhas iguais. Aos olhos de
um branco privilegiado no Brasil, nós somos
realmente muito exóticas.
E a primeira ideia brilhante que surge na cabeça
desses brancos quando veem uma asiática é
aquela lenda urbana de que nossas ppks são na
horizontal.
A minha teoria sobre o surgimento dessa
lenda é que a nossa ppk é tão de qualidade que
eles ficam confusos com o produto, não
entendem o que estão consumindo. Ao longo da
vida, aprendi que temos que ter paciência com a
velocidade de aprendizado de alguns meninos.
Tem alguns que são mais lentinhos mesmo, fazer
o quê.
Acho que a nossa sexualidade é tão oprimida
e fetichizada porque é muito desconcertante para
eles lidarem com a nossa beleza exótica. Eles
ficam desnorteados mesmo, vendo as coisas
verticais na horizontal. É uma bruxaria que só a
gente sabe fazer.
Nossos corpos carregam muita dor e violência.
Mas ainda assim, nossos cabelos são lisos,
grossos e sedosos. A pele de pêssego envelhece
em outro timing e tem um cheiro de flor de
cerejeira. Temos uma cara fofa, mas sabemos dar
coice. Os brancos se espantam e invejam também.
Depois do divórcio que senti e entendi como as
mulheres asiáticas são objetificadas nos países
ocidentais, eu não queria olhar para isso. Igual
minha mãe evita falar sobre qualquer coisa
sexual. Eu nunca falei muito sobre sexo com ela.
Com a minha irmã um pouco mais.
Mas a gente não teve muito espaço para
amadurecer nossas ideias sobre a nossa própria
sexualidade. Tocar nesse assunto é algo muito
desconfortável para minha mãe. Isso porque
acabamos sendo cis hétero mesmo. Só imagino
como deve ser complicado para os filhos nikkeis
LGBTQIA+. É uma luta desafiadora para a nossa
geração.
Na minha adolescência em Londrina, as más
linguas falavam que eu era lésbica. Como ando
dizendo nos textos, eu sempre fui um ET para os
outros, inclusive para os fofoqueiros. Mas eu
nunca fui explorar para confirmar isso. Eu casei
com um homem e meio que deixei esse assunto
morrer dentro de mim.
Só depois do divórcio, comecei a pensar e
explorar mais. E a entender mais o tamanho do
poder da nossa sexualidade. Eles não esperam
isso de uma japa, mas você sabia que dá para
controlar e manipular quem te objetifica e te
trata como uma gueisha intelectualmente
desfavorecida? Geralmente são os homens
brancos que subestimam a minha inteligência. E
é um jogo em que eles se acham mais espertos
que eu, mas no final eles fazem o que eu quero. É
até divertido!
Mais velha, eu vejo melhor a beleza interior e
exterior das mulheres nipo-brasileiras. A gente
ainda não se valoriza como deveria, na minha
opinião. Mas estamos caminhando e evoluindo
para isso. Eu vejo isso quando olho para minha
mãe, minha tia e pra mim mesma.
A gente tem o poder de envelhecer mais
devagar. Minha tia foi ao banco providenciar a
aposentadoria e o atendente perguntou: mas é
você que tá se aposentando? A resposta é: sim,
me respeita que não parece, mas eu tenho uma
idade.
Esse poder é muito útil e divertido de ter na
sociedade em que vivemos. Nós também
conseguimos nos transformar, nos adaptar,
mudar de opinião, religião e posicionamento
político. Minha mãe começou terapia depois dos
50 e pouco anos e está descobrindo coisas novas
sobre si mesma. Ela diz que se sente mais forte e
mais livre para ser ela mesma. Consegue se
impor mais nos perrengues do trabalho e falar
mais o que pensa.
Essa fase de autoconhecimento da minha mãe
acontece também porque eu pedi muito isso a
ela. Eu preciso que ela seja forte para eu
conseguir ser forte. Eu entendo a fundo as
inseguranças dela, porque são as minhas
também. Na terra do colonizador, entendi que
não adianta eu passar por esse processo sozinha
ou com pessoas que pensam que eu sou um
alienígena.
Voltei pro Brasil e estou passando por isso
com as mulheres que me criaram e mais me
amaram na vida. Não é fácil, tem partes
assustadoras. Para uns, olhar para a bagunça
que nós mesmos criamos, assusta mais que um
filme de terror japonês.
Às vezes o que mais nos amedronta é olhar no
espelho e ver o que não queremos, as
assombrações e demônios do passado. Eu tenho
dentro de mim todo esse passado sombrio e
cheio de dor das mulheres que me criaram.
Mas o amor que a batian cultivou em nós nos
dá alguma liberdade. Ela está em mim, na
minha mãe e na minha tia. Todos os dias ela se
manifesta em nós. O amor da batian é maior que
as dores no nosso corpo, o que se destaca é a luz
de bondade e pureza que ela colocou nas
mulheres da familia. Além dos genes
privilegiados.
E todo esse axé bom, minha filha, nenhum
machista com fetiche em japa consegue tirar de
nós. Esse quadro bonito de nós mesmas não se
apaga com o olhar feio dos racistas e vai durar
pra sempre. Igual a nossa saudade pela batian.
CAPÍTULO 7

Quando falei do onigiri com churrasco, os


nipo-brasileiros entenderam na hora. Como é
bom entender e amar essas duas culturas. E como
é mais legal ainda misturar as duas culturas. A
culinária que as batians criaram no Brasil
poderia ser um livro à parte. Tem a memória
afetiva que deixa a comida mais gostosa.
Mas no nosso jeito caseiro de fazer comida,
tem bastante técnica e adaptação criativa nas
receitas. Comer bem sempre foi importante na
nossa família, fazer o almoço e jantar bem feitos,
com gohan, verduras e alguma carne. E com
sabor, com umami. É difícil manter essa
disciplina diária, mas as nossas mães fizeram
isso muito bem.
Eu sou feita de gohan, o arroz japonês que
esteve em quase todas as refeições da minha
vida. E no Brasil, a gente mistura gohan com
feijão. Junto, geralmente tem alguma verdura
refogada, que leva shoyu, hondashi, mirin.
Adiciona um bife nesse prato, e eu não preciso de
mais nada.
Senti muitas saudades desse nosso jeito de
comer vivendo na terra do colonizador. Lá, eles
não entendem muito de mistura. As refeições são
divididas em primeiro, segundo e terceiro prato.
Come-se cada coisa separada. Mas eu sempre via
brasileiros e latinos fazendo uma gororoba dos
três pratos. Eu matava a saudade de casa indo
para restaurantes peruanos, colombianos,
mexicanos, cubanos. Nossas culturas são muito
irmãs realmente.
Esse jeito de misturar as coisas no prato de
comida e na vida é muito natural para nós. Mas
é muito estranho para um europeu. Eles ainda
têm um longo caminho para se acostumarem e
aceitarem a pluralidade.
Vendo os brancos europeus não entendendo
nada ao olharem para alguém como eu, que
comecei a me entender melhor. O lugar que eu
ocupo ou que eles me colocam.
Quem olha para mim nunca vai dizer que eu
sou brasileira. Mas eu me sinto muito mais
brasileira que japonesa. Eu não sei nem me
comunicar em japonês. O Japão para mim é
como se fosse o fantasma de um parente distante
que às vezes me assombra e às vezes me
conforta. A minha cara e a minha cor me puxam
pro Japão e me tiram do Brasil. Ainda que eu
sinta que minhas raízes estão aqui.
Isso sempre vai dar tilt na cabeça de algumas
pessoas. Como deu na cabeça dos próprios nipo-
brasileiros. Nós começamos a falar sobre
identidade e preconceito amarelo no Brasil há
muito pouco tempo. Só agora estamos discutindo
entre nós e debatendo mais abertamente. Parece
mais difícil romper o silêncio dentro da nossa
comunidade e com a nossa família. Mas isso já
está acontecendo.
E somos nós mesmos que estamos abrindo
essa porteira. Os filhos e netos nikkeis que saem
do estereótipo e entram, se quiserem. Que são
LGBTQIA+, que viram artistas, que viram mães
e mostram um mundo mais aberto e plural para
os filhos. Um pouquinho de onigiri, um
pouquinho de farofa.
Também parece uma luta pequena, essa nossa.
Representamos 1,1% da população brasileira.
Somos pequenos igual o arquipélago de onde
viemos. Mas nada como a disciplina e o esforço
diário para construir coisas enormes e
impressionantes, nossas batians nos ensinaram.
A nossa geração está começando esse
movimento. Que é silencioso, parece que
acontece na maciota. Sempre vamos ser minoria.
Mas essa mistura de culturas é algo muito
particular nosso e que eu passei a ver muito
valor. Nós temos esse poder da alquimia, de
misturar e dar boa. Misturamos umas coisas que
alguns pensam que não vai combinar nem a pau
e combina!
Nipo-brasileiro acabou ficando mais
debochado e ousado que japonês. Eu sei que no
Japão, não me veem como uma japonesa raiz. E
eu estou em paz com isso. Eu quero mesmo é
ficar na terrinha e fazer bagunça com os meus
iguais. Com os japoneses que ousaram
conquistar terreno no Brasil e acabaram se
apaixonando pela cultura brasileira, que às
vezes é tão oposta, mas às vezes tão
complementar com a nossa cultura japonesa.
Esse ying-yang bonito, nikkeis, só a gente
entende. É uma herança que nos foi dada e a
gente decide o que fazer com ela. Que a usemos
com responsabilidade e honra. Gambare!
Ser nipo-brasileiro é
comer onigiri com churrasco

Domo arigato por ler meus textos e me chama no insta!


@japagirl.in.br

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