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FLÁVIO KOMATSU

O japonês paraguaio

#NAOESTAMOSNAAMAZON
O Brasil é a mais
avançada democracia racial do mundo.
(Gilberto Freyre)
“O que aconteceu com o japonês desta sala?”

Eu estava no sétimo ano. A professora


acabara de entregar as notas. Então, na frente de
toda a turma, se voltou pra mim e fez essa pergunta.
Era pra ser uma piada: eu havia tirado “só” 7 na
prova.

Porque japonês é inteligente. Não eu:


qualquer japonês. Uma qualidade inata, geralmente
voltada para área de exatas. E eu era inteligente de
fato, nesse sentido escolar bem restrito. Qualquer
nota diferente de 10 fazia de mim uma decepção. E
o 10, quando vinha, não era mérito meu, mas
mérito de toda a raça. Somos uma só entidade, e,
por isso mesmo, todos iguais.

Enfim, eu tirava boas notas. Era popular


entre as mães dos alunos. Todas elas mandavam os
filhos lá em casa, pra estudar e pegar o bom
exemplo. Porque japonês é disciplinado. Não eu:
qualquer japonês. Mas, fora da escola, minha vida
era outra. Eu não queria mais nada com aquilo. E
tinha um campinho do lado de casa: “uma partida,
e a gente volta e estuda...”

Sempre havia novos garotos no campo. E


toda vez sucedia uma primeira impressão. Já viu
japonês bom de bola? Só karatê, kung fu, arte ninja.
É que a gente nasce de cesariana invertida, e abre a
barriga na base da espada. Ao contrário do negro,
que é Robinho ou Pelé, e já nasce fazendo
embaixadinha.

Adianta lembrar que sou brasileiro? Eu nem


sei falar japonês. Descendente, sim, de japoneses (e
também de espanhóis, e de portugueses...) Mas eu
tenho esses “olhos puxados”. “Cabelo bom, olha só
que lisinho!” Isso basta pra dispensar meu nome.
Qualquer referência oriental tá valendo. Então
primeiro se escolhe “o negão”. Por último, “vai o
jackie chan mesmo”.

Depois disso vinha a parte boa: é que eu


jogava bem acima da média. Eu era rápido. Era liso.
Não pensava muito no coletivo... Queria driblar o
outro time inteiro, principalmente o infeliz que não
me escolheu. A certa hora começavam os gritos: “o
japa vai passar no meio!” E eu passava mesmo.
Adorava fazer isso. Quando vinham dois de uma
vez, eu gingava e lançava a bola entre eles. Por um
segundo, os dois hesitavam. E aí eu já tinha ido...

Chegava o final da tarde, a preocupação com


os estudos voltava. Eles vinham com seus livros
intocados e, desesperados, começavam as
perguntas. Então eu lhes passava minha folha: é
isso aí que vocês têm que saber. “Mas e os livros?”
“E todas aquelas páginas?” Lição número um, meus
queridos: quem não presta atenção, depois estuda
dobrado. Eu nunca faltava na aula. E, estando lá,
não desperdiçava. Assim eu descobria os atalhos, o
menor esforço pro melhor resultado.

Essa dinâmica foi se repetindo de alguma


forma até o ensino médio. Foi quando um colega,
percebendo a farsa, anunciou para o mundo meu
veredito: “fomos enganados, esse japa é do
Paraguai!”

Porque paraguaio é falsificado. Não eu:


qualquer paraguaio. Não sei se a fama persiste, e o
quanto era verdade, mas todo mundo tinha um
conhecido que fazia dinheiro indo pro Paraguai.
Comprava relógio, roupa de marca, aparelho
eletrônico e depois vendia. Tudo pirateado ou mais
barato do que a gente dispunha.

“O japonês é bom.”

“O negro é malandro.”

E o paraguaio? “Parece bom, mas não é.”


Final do ensino médio. Entre vestibulares e
hormônios, um churrasco de despedida. A garotada
se provocando. Comentários de sentido ambíguo.
Conforme a noite se aproximava, os pares do
evento iam se definindo. A certa hora, eu também
provoco... E a garota me diz “não gosto de
japonês”. Deve ser ironia, pensei, e tentei entrar na
brincadeira: o problema são meus olhos puxados?

“O problema é mais embaixo...”

Quem ouviu, deu risada.

E não teve dúvida do que ela estava falando.

O japonês é bom. Quase mesmo um santo.


Tem feições delicadas, é honrado no porte, está
sempre sorrindo e pronto a ajudar. As mães das
garotas me adoravam. E os pais das garotas se
sentiam seguros. Afinal japonês é quase assexuado.
Não tem malícia, só pensa em estudar. E, confiando
na mentalidade do pai, a filha então me conduzia:
enquanto ele assistia TV, ela me apresentava o resto
da casa.

Porque japonês tem o pau pequeno. Não eu:


qualquer japonês. Com o advento da internet e a
disseminação da informação científica, finalmente
consultei a média, peguei a régua, e fui verificar...

E a internet trouxe outros milagres. Pessoas


além do itinerário do dia. De repente uma janelinha
surge, e faz esquecer as outras que havia. Papo vai,
papo vem, marcamos de nos conhecer. Cinema,
sorveteria, o interior do carro na despedida...
Repetimos. Em interiores mais cômodos.
Enredando, entre beijos, conversas mais íntimas.
No terceiro ou quarto encontro, Jussara se abriu
comigo:

“Na primeira vez que a gente saiu... Bem, eu


comentei com uma amiga. Comentei que você era
japa... Ela disse que não ia dar certo. Que a gente
não era compatível... Biologicamente, sabe? Por eu
ser negra e você, japonês... Os tamanhos não iam
bater.”

Mas e agora? eu perguntei. Você já


tranquilizou sua amiga?

Ela riu. Eu ri com ela.

E ri pela primeira vez.

Eu demorei a me dar conta disso. Fui


descobrindo com o passar dos anos... Que toda
garota que saía comigo era assediada pela pergunta:
“e o pau do japonês?” Ninguém fazia a menor
cerimônia. No falocentrismo de minha vida, eu não
tive lá muita culpa. Meu pau era tema de quem eu
mal suspeitava, de quem eu mal conhecia nem
pretendia comer.

(o japonês é bom por natureza, a sociedade


é que o corrompe)
A Manu aguentou por dois anos. Encontrou
seu limite numa noite de sexta. A caminho de casa,
o bar pelo caminho, passou pela mesa em que
estavam os três homens. Distraída, buscava a chave
na bolsa, e só se deu conta quando veio a pergunta.
O que gritou perguntando era o tio, cutucando o
que era o pai. O terceiro era o ex da Manu, que
ainda marcava de beber com a família. “Fiquei tão
nervosa que deixei a chave cair”, ela contou na
mensagem enviada. “Acabei de quatro no meio da
rua, sem conseguir achar nada com os três ainda
rindo...” Cinco minutos depois, mandei a foto do
pau: pode encaminhar pra eles.

No começo eu emudecia. Fingia que não


tinha entendido. Ria sem graça, desconversava, até
chegar na autodepreciação. Zombava eu mesmo
antes deles: “é pouco, mas é de coração”. Mas
enfim iniciado na coisa, os feedbacks foram
surgindo. Eu já suspeitava, investigando por conta,
que não estava tão mal... Mas, muito além disso, as
garotas se impressionavam (menos pelo tamanho
que pela expectativa). Pra quem afinal espera um
peso mosca, um médio ligeiro é quase um Mike
Tyson.

E ângulo é tudo na vida. A foto saiu


imponente. A foto só dele mesmo, sem revelar o
proprietário. Os três nunca mais tocaram no
assunto, e aí a Manu adotou o método. Amigos,
conhecidos, até o chefe dela: quem perguntou,
ganhou autografado.

Mas a coisa saiu do controle...

Nem ela soube dizer quantas vezes...

Então, quando a foto vazou (junto da outra


foto me identificando), os suspeitos já eram tantos
que não fez sentido perguntar quem...

O ano era 2012. O trauma ainda vai pelo


século. A foto da tara e da cara postadas: você
encontra até hoje se procurar a hashtag.
#japonespauzudo... Eu fui ao topo dos maiores
assuntos. O celular não parava, meus amigos
ligando, e tantos outros na fila requerendo amizade:
os milhares de desconhecidos que comentavam
meu pau pelas redes.

Excluí contas. Tirei licença. Tive mesmo que


sumir por uns tempos... Um nude vazado é uma
causa perdida, e não teve como remediar o estrago.
Ter a coisa pública é parte da minha vida, e quem
não sabia fica agora sabendo. Isso é menos um
conto do que a minha libertação...

Do medo de medirem meu pau.

Do medo de ser medido por ele.

Do medo de ser ou não ser conforme a


medida do japa padrão.

...
Segundo a enciclopédia do marketing digital,
“bait” é um tipo de conteúdo utilizado como uma
espécie de isca. Sua estratégia é ganhar visibilidade
por meio do engano e da provocação: falsas
notícias, falsas promessas, falsos relatos, a invenção
de inimigos... Aí você clica pelo preconceito, ou
pela ilusão de que vai corrigi-lo. Aí você clica pela
sede de sangue, ou pela ilusão de que vai se redimir.
Aí você clica pela curiosidade mórbida, e nem
lembra como veio parar aqui.

Eu também não, meu querido, mas ainda


pretendo sair...

“Então toda essa história é mentira?”


pergunta o leitor indignado. E essa é a grande
verdade: a minha questão não lhe toca. Clicou no
link, na hashtag, e só o tamanho ainda importa. Ao
menos ele fantasia com um japonês agora. Não eu.
Não um qualquer. Com o japonês pauzudo.
“Grande coisa!”, alguém pode dizer.

É pouco, mas é de coração.


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flavio.komatsu
newsletter: eu só queria escrever...
FLÁVIO KOMATSU nasceu em
Uberlândia em 1981. Mestre em Estudos de
Literatura pela UFSCAR, vive em São Carlos
desde 2013. Autor do romance hipertextual
Terminal e do livro de poemas Ano que
vem eu vou, publicou em 2023 o livro de
contos Tão somente o sublime de graça.

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