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“Ob uniuiratus obstinationem famam consecuta”1:

a
a 7. Heróide como premissa para uma nova imagem de Dido

RESUMO: Ao reinventar em elegia a imagem tradicional de Dido, sem todavia conseguir


sobrepujar a longevidade literária do canto IV da Eneida, de que certamente já teria tomado
conhecimento aquando da composição das suas Heróides, Ovídio aumentou a possibilidade
do reaproveitamento desta mesma figura para propósitos apologéticos no âmbito da defesa
da monogamia, o que evidencia um tratamento inovadora das relações entre Elissa e os dois
homens da sua vida: Siqueu e Eneias. O objectivo deste ensaio não é outro senão pôr em
evidência estas inovações, estudando-lhes os processos de construção e comparando-as no
espelho da Eneida.

Mesmo o leitor menos atilado não pode deixar de se aperceber, ao entrar em


contacto com os textos dos Padres da Igreja, sobretudo com os que lidam com questões
de moralidade matrimonial, de que há uma tendência bem vincada no recurso à
personagem de Dido como exemplo pagão para expor a ridículo todos aqueles Cristãos
que se furtam às obrigações da monogamia por supostas fraquezas da carne. O
argumento é o seguinte: se até os pagãos tinham estes exemplos de virtude, viúvas que
se obstinavam em não contrair segundas núpcias por deferência para com o primeiro
marido, não era natural que mulheres com preceitos morais mais elevados não
conseguissem dar mostras da mesma virtude. É natural que, apesar de todas as
originalidades de Ovídio, também não seja bem essa a imagem com que um leitor da 7.ª
Heróide acabe, sobretudo se tiver em conta as últimas vontades de Dido, que, nesse
texto, vão no sentido de imortalizar na pedra do epitáfio, mais do que a saudade pelo
primeiro marido, a relação, mesmo que turbulenta e enfim fatal, com Eneias: «Nec
consumpta rogis inscribar Elissa Sychaei» (v. 193)2. Claro que esta ênfase sobre Eneias
como causa mortis era necessária, na medida em que torna todo o epitáfio numa
reflexão retrospectiva sobre o trabalho literário que então se concluía; de facto, o
conteúdo do epitáfio é um in tumuli marmore carmen, tal como toda a Heróide
promoveu a construção de uma nova Dido debaixo da eminência da morte, que permite
o aprofundamento elegíaco da profundidade psicológica da personagem. Ainda assim,
não é o melhor exemplo do que uma mulher que supostamente, como diz Tertuliano,
«maluit... uri quam nubere»1 escolheria para deixar em homenagem e memória da sua
devoção conjugal ao primeiro marido. Estas considerações preliminares permitem
estabelecer com firmeza que, se o texto de Ovídio contribui com alguns novos
elementos para a criação de um ideia de uma Dido monogâmica, é desnecessário
procurar referências imediatas e que saltem aos olhos, até porque, para tal, seria
necessário anular todas as tensões em que a paixão por Eneias a faz saltar, o que
diminuiria em muito o interesse da personagem. Não, a inovação de Ovídio é saber
deslocar o eixo da balança entre Siqueu e Eneias e assim, por subtis afirmações em
episódios conhecidos, por maior importância em lugares menos esperados, dar a ler ao
público um quadro mais compreensível de Dido na sua femini(li)dade.
O primeiro episódio a isolar que sustenta o que acaba de ser proposto é, pela sua
pertinência para a compreensão de como Dido vive interiormente a paixão com Eneias à
luz do seu passado com Siqueu, a visita à marmorea aedis, onde se encontra um
sacratus Sychaeus, que se estende mais propriamente entre os versos 97 e 112 e que se
encontra muito a propósito encaixada entre o primeiro encontro amoroso de Dido e

1
Cf. Tertuliano, De exhortatione castitatis, XIII, 3 (cf. tertullian.org: Sources Chrétiennes, 1985).
2
Todas as citações do texto latino são tiradas da edição crítica de Henri Bornecque (Belles Lettres, 1965),
que serviu de base para a tradução portuguesa disponível.
Eneias e o escorço autobiográfico cujo ensejo a recordação do marido dá à primeira (em
que também não deixa de haver uma referência, se bem que velada, à recusa de muitos
pretendentes, tanto mais valerosa quanto ela era agradável a seus olhos: «Mille procis
placui, qui in me coiere querentes / Nescio quem thalamis praeposuisse suis» (vv. 123-
124). Este pedacinho é precioso: se é certo que Vergílio também detalhava os sons que
viriam de um de marmore templum (IV, v. 457), e mesmo que a ideia do miro... honore
(v. 458) não esteja ausente3, a possibilidade - permitida pelo facto de aqui ser a própria
Dido a falar de viva voz - de se confiar intimamente ao primeiro marido num estilo que
muito se aproxima do da prece, com a confissão dos pecados que lhe está intimamente
associada, proporciona desenvolvimentos muito mais patéticos e intimistas. Se ambos
os textos se aparentam no ambiente, é inquestionável a muito maior impressão que
causa a materialização da voz do antigo esposo na consciência da heroína e que é uma
originalidade de Ovídio: «Elissa, ueni.». É sob toda a simplicidade deste mote que o
passo orbita nas suas ressonâncias mais marcadamente íntimas, porque, de consciência
pesada, ainda assim Dido cede ao chamamento e vai. Na realidade, uma maior presença
de Siqueu no texto ovidiano traz consigo também uma maior presença da própria Dido
que, sobrecarregada pela falta, constrói o seu discurso à volta do tema do pudor
ultrajado: laese pudor (v. 97), plena pudoris (v.98) e tarda pudore (v. 104). Não
admira, pois, que com esta repetição da própria palavra pudor alguma literatura cristã
ulterior tenha podido concentrar-se sobre este lado mais elegíaco de Dido. É certo que a
heroína desculpa o seu comportamento pela esperança de um mansurus rite uir (cf. v.
108). Mas se o faz é para pedir perdão, o que se encaixa bem na dialéctica cristã
consciência da falta/remissão do pecado. Para além do mais, nesta fase pelo menos, a
justificação do erro também se encontra grandemente desenvolvida em torno da palavra
rite: como se Dido se tentasse mover dentro dos limites da legitimidade, dos bons
costumes e da religiosidade. Depois, a personagem optará por uma listagem de motivos
que, eventualmente, poderiam assegurar a permanência de Eneias, motivos esses que
não têm grande coisa de resignação ou de “pró-cristão”. Ainda assim, o seu exame não
será despiciendo para o nosso propósito, na medida em que, por mais “mesquinhos” que
os argumentos possam parecer, esses mesmos argumentos dão-nos a conhecer uma
Dido muito mais humana, com a tentação muito vincada para deitar mão de todos os
expedientes em momentos de crise, com aqueles laivos de fino e frio revanchismo que
tão bem se encaixava na imagem clássica da psicologia feminina. Por outras palavras,
quando Ovídio destrona uma trágica rainha e a coloca no contexto todo humano da
indecisão entre dois amantes (um ausente e um presente), ao pagar um tributo à elegia,
contribui sem o saber para esses aproveitamentos ulteriores de que temos vindo a falar
no decurso deste ensaio e que agora se referem à fraqueza feminina.
Como vimos, o reconhecimento da falta abre uma brecha na memória de Dido,
que, em ambiente intimista, se apresenta na fraqueza e na fragilidade da sua história
pessoal. Agora, logicamente, seguem-se os já aludidos argumentos que pretendiam
convencer Eneias a ficar4. Mas que argumentos são esses tais, a que mais acima se

3
Nesta comparação, resulta bem patente que Ovídio se inspirava positivamente no texto vergiliano. Neste
particular, a semelhança entre as descrições do “oratório” é inequivocamente concludente: as oppositae
frondes e os alba uellera (v. 100) correspondem por decalque ponto por ponto com as uelleribus niueis e
a festa fronde (v. 459) de Vergílio. Exemplos deste género provam como a poética de Ovídio, desde a sua
génese, se afirmou sempre como leitura detalhada (quase comentário) e crítica dos “clássicos” - da qual,
aliás, não está excluída uma grande dose de (auto-)ironia e rebeldia de mocidade de bem.
4
Certamente que o leitor deste ensaio já se apercebeu de que chegámos a um momento em que já não é
possível estender mais o paradoxo, em que temos vindo a expor as nossas ideias entre os três eixos
Eneida-Heróide-Padres da Igreja, sem apresentar uma explicação mais abrangente. Como é que podemos
afirmar que quer a “conversa” com o antigo marido (em si bastante convincente), quer os estratagemas
aludiu com a expressão causas... honestas (v. 109)? Numa primeira fase, Dido começa
ex abrupto com aquilo que mais certamente o abalaria. Aquele que nunca largara a mão
de Julo, símbolo da possibilidade de regeneração da pátria perdida em solo itálico, não
se preocuparia com a eventualidade de Dido estar grávida e de ter um rebento que
pudesse servir a mesma causa? Neste momento, com a expressão nondum nati funeris
auctor (v. 136), o diálogo de surdos, a que nos referimos em extensão na nota 4, atinge
novos píncaros, pois que Dido pensa brincar com os sentimentos paternais de Eneias.
No entanto, a verdade é que Eneias ficaria muito mais angustiado com a realidade desta
ameaça, porque tal teria ressonâncias a nível da prossecução dos destinos, no que dizia
respeito à preservação e à propagação da raça (paradoxo unicamente resolúvel pela
necessidade desses desígnios terem lugar em Itália). É este lado de mulher que, sem
conhecer a profundidade dos conflitos internos do amante, sabe identificar os assuntos
que o fazem sofrer, mesmo sem lhes compreender toda a relevância, e que neles aposta
toda a sua felina vingança, como uma fera que quer magoar sem saber a dor que as suas
garras causam - é este lado de mulher que mais caracteriza a psicologia da Dido
ovidiana. No entanto, como a mulher armada desconfia das próprias armas, já que as
não conhece nos seus efeitos, tenta depois todos aqueles expedientes que foram
esquecidos na nova imagem cristã: com efeito, temendo o fracasso das suas tentativa,
tentar corromper pelo ouro e pelo poder - Pygmalionis opes (v. 150) e sceptra (v. 152) -,
pela promessa de heroicidade em combates («unde... triumphus eat» - v.154), pela
necessidade da espera por melhores condições climatéricas («Temporibus certis dantque
negantque uiam» - v. 170), etc. Mas, constantemente, por trás desta propensão para a
felina vingança, pressagiados pela ideia dos temporibus certis reaparecem as fraquezas e
as fragilidades: já só se pede uma prorrogação do prazo, o tempo suficiente para
esquecer...
Em suma, a análise destes dois episódios (a conversa com Siqueu e a psicologia
vingança/fragilidade das tentativas para convencer Eneias a ficar) permite concluir que,
com a pouca atenção prestada, por parte dos Padres da Igreja, ao tratamento da questão
do suicídio e ao enquadramento propriamente “pagão” das relações matrimoniais, o
original tratamento ovidiano de Dido, no momento mais elegíaco da epopeia - o reviver

para conseguir um novo marido (já não tão evidentemente conciliáveis) podem ter sido ulteriormente
interpretados como duas faces da mesma defesa do uniuiratus? É certo que Ovídio não estava preocupado
com a “segunda virgindade” da viuvez como alguns Padres da Igreja, mas, ao manter o conflito
amor/dever que é propriamente o motor e o enquadramento da paixão entre Dido e Eneias na Eneida,
trabalhando, porém, a questão do dever unicamente em relação à personagem de Dido (porque todos os
desígnios dos fados de que Eneias tem de se ocupar obrigatoriamente na Eneida se encontram ausentes
aqui), dever esse que nasce da própria vivência do amor, Ovídio torna esses estratagemas numa
legitimação, o que sem dificuldades poderia permitir a interpretação cristã do insucesso das perspectivas
da nova união entre Dido e Eneias como a consequência do mesmo insucesso no reunir das condições que
permitiriam falar de legitimidade da união. O centro da reflexão ulterior parece ter passado para aqui,
negligenciando, por conseguinte, todos os problemas que as referências a episódios sexuais ou ameaças
de suicídio poderiam ter colocado, ao entravar esta imagem de escrúpulo religioso de Dido em relação aos
padrões do que pode e deve ser um casamento. Escrúpulos esses que reaparecem na censura que Dido
mais tarde fará a Eneias: «Pone deos et quae tangendo sacra profanas. / Non bene caelestis impia dextra
colit» (vv. 129-130). (O aparente desconhecimento da missão “fatal” de Eneias permite um tratamento
mais “tradicional” da relação com a divindade, contra a qual o comportamento sui generis de Eneias
parecia ir. É que a Dido de Ovídio não está verdadeiramente compenetrada daquela situação que ela
própria enuncia, mais como quem repete as desculpas esfarrapadas de um amante “mau pagador”, do que
como quem entende a inelutabilidade dos fados e os sacrifícios pessoais em prol do bem comum a que
eles obrigavam Eneias: «Sed iubet ire deus.» - v. 139. Esta impossibilidade de entendimento entre dois
discursos completamente surdos um para o outro - porque, como dissemos, para Dido o dever surge
sempre pensado a partir do amor - é a maior, e também a mais burlesca, destruição da grandiloquência da
epopeia.)
dos amores à beira da morte -, abre as portas para uma aproximação a esta personagem
sob um ângulo mais humano e, como vimos, sempre com um pensamento muitíssimo
audaz por parte dos apologéticos, mais “cristão”, com o seu enfoque na questão do
pudor, dos deveres em relação ao antigo marido e da fragilidade feminina.

BIBLIOGRAFIA

Ovídio, Heróides, ed. Arthur Palmer, vol. 2 - Commentário, Bristol Phoenix Press,
2015 (passim; para as citação da Eneida, v. pág. 345)

Ovídio, Heróides, ed. Henri Bornecque e trad. Marcel Prévost, 3.ª ed., Les Belles
Lettres, Paris, 1965

Ovídio, Heróides, trad. Carlos André, Cotovia, Lisboa, 2016

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