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Sed “bene Messalam” sua quisque ad pocula dicat1

O que é que um jarro de Mássico diz sobre Messala?

No seu artigo “A wine-jar for Messala”, a grande ideia de Nisbet pode resumir-
se com as mesmas palavras com que o classicista conclui esse texto: «the style also
reflects the recipient». Esta conclusão segue-se a uma enumeração recapitulativa das
referências textuais e dos recursos estílicos em que, segundo o mesmo professor,
Horácio teria posto a sua complacência para construir um panegyricus Messalae que
elogiasse o literato através de artifícios e expedientes ao gosto e ao estilo do elogiado. O
propósito deste nosso ensaio não será outro senão o de, por meio da colação com outras
tentativas de louvor através da poesia e da apreciação do tom da ode no contexto do
livro em que esta se insere, tentar moderar uma interpretação excessivamente
“personalizante” do poema, em favor da valorização da sua vocação artística dentro do
esforço poético que Horácio desenvolve no livro III das Odes – isto, para estabelecer
confortavelmente a «significance in its own right» (pág. 85) que é possível atribuir ao
vinho no retrato de Messala que pode surgir da ode, sem cairmos em «farfetched
allegorical interpretations» (pág. 89), mas também sem deixarmos de ceder à tentação
de seguirmos as pistas desse «power of association» (pág. 84), entre sabores e
caracteres, que a rica carta de vinhos parece sugerir em Horácio.

Ao abrirmos o nosso esboço de análise crítica, devemos começar estranhamente


por rebater uma das últimas asserções do artigo, sobre a qual Nisbet consegue mesmo
estabelecer, depois de um esforço de associações cruzadas que se estende por algumas
páginas, a identificação do suposto pseudónimo poético “Codro” com o próprio Messala
enquanto poeta, sobretudo devido à citação de ambos os nomes como exemplos em
contextos em que se louvam as composições líricas que brilham por terem como nota
mais característica a sua «mellifluousness» (pág. 90). E que asserção é essa tal?
Encontramo-la na página 89: «The Graces particularly suit Messalla because of the
charm of his writing.» Ora bem, devemos mesmo começar por contestar esta
interpretação, não só, como dissemos, porque a partir dela se defende uma das
conclusões mais ousadas e mais extensas do ensaio proposto para estudo, mas também
porque a enunciação desta ideia se segue a um alerta contra as tentativas de explicação
que caiem em «farfetched allegorical interpretations» (pág. 89). O mínimo que
podemos dizer é que esta admoestação também pode virar-se contra o seu autor, tanto
mais que tememos que esta sua explicação da alusão às Graças dê uma base demasiado
frágil em que o resto do artigo possa assentar… Com o propósito de sentir a audácia do
autor na compreensão da relação das Graças com Messala, basta citar o comentário de
Porfirião que, pela sua autoridade, nos obriga a repensar o que é que efectivamente se
pode retirar desta alusão das Graças para o conhecimento do estilo poético de Messala.
Diz o gramático e comentador: «Segnesque nodum soluere Gratiae – Hoc est: quae
nodum non soluunt. Hoc autem ad id pertinet, quod, qui fida gratia inter se iuncti sunt,
numquam ab amicitia resoluuntur.» E eis que, de repente, a menção das Graças ganha
uma interpretação toda ela adequada a um contexto de partilha entre amigos, num
ambiente de banquete que, pela intimidade entre os dois homens, pode prolongar-se até
ao nascer do Sol, ao ponto de ter havido necessidade de se recorrer às «uiuae lucernae»
(v. 22), durante bom tempo. No entanto, se é verdade que esta explicação, também
1
Tibulo, Elegias, II, 1, 30. Este verso de Tibulo parece ter sido escrito de propósito para descrever muito
apropriadamente o esforço de Horácio nesta ode e, ao mesmo tempo, sugere a comparação, que
empreenderemos, entre ambos os poetas no que diz respeito ao relacionamento de cada um com
Messala e ao carácter do amigo comum (cf. sobretudo Nota 2).
justificada pela famosa iconografia que Nisbet bem conhece, mas subvaloriza (cf. pág.
89: «characteristic circle of three»), se revela tributária de uma análise de conjunto
mais à luz da comunidade de temas que dá um corpo orgânico à maioria dos poemas do
livro III das Odes – o elogio do amor, da amizade, do convívio; numa palavra: da
sociedade (ponto em que iremos insistir ao longo da nossa exposição, até para justificar
a tímida, mas necessária alusão a Vénus) –, do que segundo a biobibliografia de
Messala, também não é menos verdade que ignore por completo essa aura de «charm
and property» (pág. 92) e essa recusa de «insani amores» (p. 89) que Nisbet parece
preferir valorizar. De resto, neste sentido, outra alusão às Graças noutra ode deste livro
III parece confirmar o símbolo que essas figuras mitológicas parecem revestir nestes
ambientes de partilha social, a saber: a possibilidade de disfrutar do vinho, sem cair no
excesso de com ele se perder também a ocasião de disfrutar dos outros prazeres que
constituem um convívio digno desse nome. Com algum exagero na escolha das
palavras, podemos dizer que as Graças são o símbolo desse Epicurismo mais
propriamente filosófico – indulgente, mas sereno2 –, antes da interpretação corrupta de
que alguns dos seus autoproclamados seguidores vão arvorar-se em paladinos... Seja
como for, é esse o espírito do livro III das Odes – e, sem mais delongas, aqui fica citado
o referido passo que, quase sem mais comentários, se explica a si mesmo como síntese,
repetimo-lo, deste Epicurismo ainda indulgente, mas sereno: «(…) tris prohibet supra /
rixarum metuens tangere Gratia / nudis iuncta sororibus. / Insanire iuvat… (…)»
(Odes, III, 19, 15-18).

Para seguir o caminho aberto pelas reflexões contidas na Nota 2, sem abandonar
as referências aos deuses, atardemo-nos agora sobre a referência mais obcecante de toda
a ode: «Liber» (v. 21). Neste aspecto, concordamos com Nisbet que, tendo debaixo de
olho a etimologia simples, bem notou que esta designação do deus do vinho se refere,
antes de mais, ao seu «liberating power» (p. 88). Contudo, despojá-la-íamos dessa
suposta carga litúrgica que o autor encontra antecipada no início do poema. Na verdade,
a «pia testa» (v. 4) é tão facilmente intermutável com o deus do vinho, que até lhe são
atribuídas acções muito dentro do campo semântico de «Liber»: «geris» (v. 2) e
«admoues» (v. 13). Em nossa opinião, esta intermutabilidade que faz do deus uma
simples metáfora (tal como depois Vénus o será para “moderação nos amores”)
autoriza-nos a desconfiarmos de um suposto pastiche da linguagem religiosa, para
simplesmente, com Porfirião, nos deixarmos impressionar para bela síntese que Horácio
nos lega quanto aos benefícios do vinho. Diz-nos o comentador com palavras simples,

2
Sem exagerarmos este ponto, apenas propomos que o grande apego de Nisbet à «mellifluousness»
(estilística) de Messala talvez se prenda antes com a confusão entre essas duas atitudes que se
assemelham, sem serem exactamente a mesma coisa: essa experiência vivida do Epicurismo horaciano e
aqueloutro contentamento terno e pacífico do doce Tibulo. No entanto, em vez de ambos os tons se
referirem a uma mesma faceta carregadamente melíflua do amigo comum Messala, a possibilidade
destes dois posicionamentos existenciais na companhia de Messala parece ser antes a prova do carácter
disponível (assim se deve interpretar «mellifluous») de Messala, com tendências para a contensão e
para as castas alegrias (neste particular, Nisbet lembra-se bem da reveladora reserva: «si laeta aderit» -
v. 21). Assim, resolvemos aquela dificuldade que fez com que Nisbet procurasse provar que quem era
mencionado pela expressão «prisci Catonis» (v. 11) era, na verdade, Catão de Útica e não, segundo a
interpretação tradicional, Catão-o-Censor (cf. pág. 86). Até estranha que Nisbet não tenha querido ser
partidário da associação tradicional, depois de ter referido tanto o carácter conservador de Messala em
relação à religiosidade tradicional. A interpretação em favor de Catão-o-Censor impõe-se tanto pelo
carácter tipicamente romano (que não ignora a doçura grega, como Tibulo) de Messala, como pela
construção do poema que enuncia os benefícios do vinho para convencer alguém sábio e sério que dele
desconfia, pela imoderação que pode causar, a desfrutá-lo.
mas cheias de admiração: «Belle haec dicuntur» (com. ad vv. 2-4). Esta última
consideração permite-nos enunciar aquele que para nós é o verdadeiro ponto nevrálgico
do poema: não tanto aludir através de referências obscuras aos gostos literários ou aos
feitos políticos e militares de Messala, mas sobretudo realçar o seu carácter moderado,
que até precisa de um grande prelúdio para se permitir ser um pouco indulgente. É
quase possível imaginar um Messala que se faz de difícil e um Horácio matreiro que
acaba por fazer ceder o amigo, sem que a causa nunca tenha estado perdida. Se
quisermos, será nesta tentativa de convencimento que temos de encontrar um retrato de
Messala. Por conseguinte, o carácter de Messala não aparece fragmentado numa série de
referências, como sugere Nisbet, mas sim neste balancear constante do poeta entre a
imponente responsabilidade civil de Messala e o seu casto saber viver. Para provar
ainda melhor esta nossa ideia, cremos chegado o momento de, como mencionado no
incipit, compararmos esta ode com alguns versos de Tibulo em contexto idêntico. Esta
comparação permitir-nos-á sentirmos melhor este traço do carácter de Messala, pois que
também Tibulo sente necessidade de estabelecer essa reserva e aludir aos benefícios do
vinho, que aparecem como compensação merecida e diversão agradável depois do
exercício constante de tão elevados cargos públicos. É a mesma coisa que está em causa
no poema de Horácio, apesar de Nisbet afirmar que «Messala attained great eminence
in war and politics, but Horace’s poem says nothing about his achievements, not even
his recent conquest of Aquitania» (pág. 92). A justificação é ainda mais inverosímil:
«political discretion»3. Esta gente era conhecida; nada estranha que não se mencione
directamente tal ou tal façanha, é a sombra em peso da pessoa que está em pano de
fundo. Quem é que não reconhece aquele tipo de pessoa séria e responsável que era
Messala atrás daquelas alusões às pessoas que beneficiam sobremaneira dos efeitos do
vinho: preocupados, sábios, conhecedores de segredo de Estado, ansiosos, etc. (cf. 4 e 5
estrofes)? Mas, enfim, comparemos esse passo de Tibulo, Elegias, I, 7, 39-43, sempre
sob a antífona «multo tempora funde mero» (v. 50 da mesma elegia):

«Bacchus et agricolae magno confecta labore


Pectora tristitiae dissoluenda dedit.
Bacchus et adflictis requiem mortalibus adfert,
Crura licet dura conpede pulsa sonent.
Non tibi sunt tristes curae nec luctus, Osiri…»

O argumento é o mesmo e resulta ainda mais convincente depois de o poeta ter passado
os primeiros vinte versos, sempre em referência à vitória de Messala sobre a Aquitânia,
a descrever rios e terras com aquele ar de geógrafo militar que perscruta os mapas com
atenção. E quem nos assegura de que aquele «bonus dies» (v. 6) não tem que ver com
este triunfo?4 Apesar de não vermos motivos para negarmos a interpretação de que
«languidiora» (v. 8) seja um tijolo na construção de um «relaxed style to suit the
manner of the recipient» (v. 85)5, preferimos cingirmo-nos às evidências de que
«languidiora», tal como diz Porfirião e Nisbet confirma, se refere à maturação do

3
O que acaba por fazer Nisbet é ignorar o aspecto político evidente, embora não mencionado
nominalmente, para transformar esta ode quase num manifesto de arte poético à intenção de Messala.
4
Aqui temos, todavia, de admitir, com Nisbet, que também não repugna a ideia de que Horácio tivesse
em mente um aniversário; é que igualmente nos apercebemos dessa predilecção pela comemoração de
aniversários no círculo de Messala, que Nisbet judiciosamente menciona: «An interest in birth-dates and
birthdays was also typically Roman, and is particularly noticeable in the circle of Messala (…)» (pág. 83).
5
De facto, não negamos, como já dissemos, o «power of association» da carta de vinhos…
vinho: «uetustissima» (comentário ad locum). Na verdade, que melhor maneira de
convencer um bom amigo a divertir-se um bocado, esquecendo o muito trabalho que o
ocupa freneticamente, do que ir buscar à garrafeira um bom vinho velho, mostra de
apreço e convite irrecusável?

Antes de resumirmos os nossos propósitos, e antes mesmo de terminar, não


podemos deixar de dizer uma ou outra palavra sobre a escolha do vinho: o Mássico.
Não é que, para o final, alteremos a nossa posição capital sobre o facto de a escolha do
vinho não ser a parte mais importante para determinar o retrato que de Messala se pode
extrair desta ode, mas sim a sua própria estrutura balanceada em que se elogiam os
efeitos do vinho como lenitivos sobre as necessárias ocupações oficiais. Nada mudados
às nossas ideias. Apenas queremos dar uma explicação mais simples, que dispense as
grandes elucubrações de Nisbet, que o levam a percorrer a história romana em busca de
antepassados de Messala (cf. pág. 84 passim). Noutro passo, Horácio diz tout court:
«obliuioso Massico» (Odes, II, 7). Simplesmente, quadra bem6.

Enfim, pensamos que, ao identificarmos os elementos da ode III, 21 que são


explicáveis através da repetição de temas que estrutura a orgânica do livro III das Odes,
redescobrimos o que se deve extrair com segurança do poema sobre o retrato de
Messala, a saber: o rigor no cumprimento do dever que, ainda assim, se deixa adocicar
com uma boa noite de convívio entre amigos e uns copos de vinho. Neste sentido,
cremos que Nisbet errou em deslocar o centro da interpretação para os gostos literários
de Messala, de que a ode não nos deixa asseverar com segurança, quanto mais partir
para identificações literárias, como aquela que mencionámos no segundo parágrafo.
Este posicionamento horaciano face ao carácter de Messala é justificado pela passagem
de Tibulo que trouxemos à colação. Ao estabelecer o que é comum entre ambos, não só
ficámos a conhecer melhor Messala, como não confundimos duas atitudes diferentes
(um epicurismo horaciano sereno e uma ruralidade erudita e doce tibuliana) que apenas
nos falam de relações particulares – e mais sobre os autores, do que sobre o «recipient».

Bibliografia

Devido à própria índole do trabalho, permitimo-nos suprimir a bibliografia, que


apenas abrange os textos clássicos e o artigo de Nisbet. Por comodidade, todas as
citações latinas foram extraídas de http://latin.packhum.org.

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Ou, em atenção aos enófilos, como diz Columela (III, 8, 5), numa bonita passagem: «His tamen
exemplis nimirum admonemur curae mortalium obsequentissimam esse Italiam, quae paene totius orbis
fruges adhibito studio colonorum ferre didicerit. Quo minus addubitemus de eo fructu, qui uelut indigena
peculiarisque et uernaculus est huius soli. Neque enim dubium Massici Surrentinique et Albani atque
Caecubi agri uitis omnium, quas terra sustinet, nobilitate uini principes esse». De facto, o que é que
poderíamos exigir mais a um amigo dedicado do que um vinho desta qualidade? (Aquele comentário
sobre o fruto «indigena peculiarisque et uernaculus» diz muito sobre o esforço poético de Horácio no
livro III das Odes: a sublimação da expressão poética do amor, em contexto romano e, como tal, regado
de bom vinho.)

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