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O mensageiro como facilitador da economia cénica

em Ifigénia em Áulide

Ao morrer, Eurípides deixou entregue o pesado fardo de levar a palco uma das
suas últimas tragédias, Ifigénia em Áulide, nas mãos de seu filho – a fazer fé nas
informações da didascália1. As dificuldades cénicas com que este filho se deparou
foram certamente consideráveis – pelo menos, por aquilo que pudemos imaginar a partir
dos movimentos e da interacção das personagens em si e entre si, mas também tendo em
conta as recorrentes referências a circunstâncias espaciais e temporais que, sob o risco
de não serem levadas em consideração pela assembleia – e isto com um grau satisfatório
de verosimilhança –, de alguma forma teriam de estar plasmadas na escolha do aparato
cénico da representação (desde as máscaras e os figurinos, até aos adereços evocativos
do ambiente em que a acção era colocada no seu desenvolvimento). Por outro lado,
apesar da consciência de que os Atenienses do século V se encontravam munidos de
conhecimentos técnicos e de instrumentos que lhes abriam as portas para se servirem de
engenhos sofisticados como os “dei ex machina”, parece ser, contudo, evidente que,
ainda assim, o sacrifício e a degolação de Ifigénia em palco causariam sérios
inconvenientes e obstáculos ao melhor realizador (para além de, tradicionalmente, a
execução da morte estar remetida para fora da cena propriamente dita, ainda por cima
um sacrifício humano ou, na melhor das hipóteses, um homicídio consentido pela
vítima), para não falar da estranhíssima e muito complicada substituição, mesmo no
êxodo da peça, de Ifigénia por uma corça. Ora, é nossa firma convicção que, no
enquadramento ponderado destas dificuldades, o mensageiro é a solução mais eficaz e
mais digna para, por um lado, garantir a maior proporção de terror, através da evocação
demorada e minuciosa dos preparativos do sacrifício, do sacrifício propriamente dito e
da substituição miraculosa supra mencionada, sem poupar nenhum detalhe que ora
aumente o suspense, ora contribua para escurecer ainda mais o horror (talvez mesmo
superior àquele suscitado pela visualização imediata do acontecimento narrado, devido
à sensação de alongamento do intervalo de tempo em que os acontecimentos se
sucedem, sensação essa causada pela possibilidade de uma larga descrição); e, por outro
lado, para proporcionar o máximo de compaixão, por meio de uma cuidada escolha de
circunstâncias e de adjectivações que, ao engrandecerem as agudas emoções de cada

1
Citação em IA, pág. 18: «Tendo morrido Eurípides, seu filho faz representar […] Ifigénia em Áulide.».
uma das personagens intervenientes no drama narrado, possibilitam a criação de um
panorama mais convincente das tensões que ligam toda a rede de relações humanas em
presença – mesmo mais convincente do que a imediata visualização das reacções de
cada uma das personagens, de que resultaria sempre perda de profundidade, por causa
de um campo visual reduzido ou da comum distracção humana. De facto, o expediente
da colocação do discurso do mensageiro numa posição tão privilegiada, como era a do
êxodo, assegurava a captação da máxima atenção possível do público e, assim,
transformava-se num dos recursos mais trágicos da tragédia, na medida em que
combinava na perfeição terror e compaixão, sem a perda daquela solenidade que
caracteriza a tragédia mais propriamente ática (por comparação com outras soluções que
resultam, em meu entender, como coelho tirado de cartola, como sejam a técnica do
“deus ex machina”, em igual posição na estrutura da peça2).
Da introdução que compusemos como perspectivação do mensageiro como o
mais trágico facilitador da economia cénica, entre os outros expedientes de que um
tragediógrafo ateniense se poderia servir – como o “deus ex machina” ou o
incumprimento do “tabu” da morte em palco –, ficou claro ao leitor que o grande
discurso do mensageiro que nos serviu de esteio para a defesa das nossas impressões é
aquele que se espraia entre os versos 1540 e 1612, na medida em que é aquele que
beneficia da maior tensão trágica, já que o mensageiro vem suprir a expectativa do
público de ver entrar em palco uma personagem que resolva, por fim, a acção anunciada
desde o começo da tragédia. Não ignoramos, porém, que já antes um mensageiro tinha
intervindo na acção. Ora, estruturalmente, estas duas intervenções complementam-se: a
primeira (vv. 414-439) anuncia a chegada de Ifigénia e a segunda declara a sua
“partida” (suposta morte, seguida de transporte miraculoso para um outro lugar).
Detenhamo-nos, por um pouco, neste primeiro momento, nem que seja para
apreciarmos a sublimidade do outro.

2
É inegável que, segundo toda a honestidade intelectual, a função de um mensageiro no êxodo e a de um
“deux ex machina” redundam estruturalmente em grande possibilidade de intermutação. No entanto, não
é de subestimar a solenidade que, por intermédio da distância magnânima e da largueza de vistas do
próprio mensageira, a acção que é narrada por este atinge. Este resultado firme e impactante é, ele sim,
radicalmente díspar do que se obtém com um “deus ex machina” em nada esperado e que, no final, parece
ilibar, com medidas extemporâneas (por exemplo, casamentos arranjados à força entre inimigos, como no
Orestes do mesmo Eurípides), o tragediógrafo de não ter resolvido o imbróglio com mais classe e
atempadamente.
A função do primeiro mensageiro, patenteia-no-la o próprio:
«ἐγὼ δὲ πρόδρομος σῆς παρασκευῆς χάριν / ἥκω3» (vv. 424-425). É que, ao contrário
da luta nocturna entre Agamémnon, Menelau e o Ancião, durante a qual as tabuinhas
que impediriam o anúncio que o mensageiro proferiu (ou seja, a chegada de Ifigénia
para o sacrifício, mas sob o pretexto do aliciamento da proposta de casamento com
Aquiles) de se realizar, a intervenção do mensageiro não contribui para essa “floresta de
enganos”4. Ele é um “pre-cursor”, um “pre-parador”, aquele que redirecciona a acção
para o seu cumprimento necessário, para a manifestação dos erros e das verdades
trágicas5, apesar do embuste em que ele próprio se encontra ainda enleado (de facto, não
sabia que a sua mensagem não dava início a um «φῶς… μακάριον» – v. 439). Ao
mesmo tempo, neste passo, o mensageiro também já serve como porta-voz das reacções
de muitos: a ele só, basta para anunciar a chegada de três pessoas, cada uma com o seu
estado de espírito (a mãe e a filha cansadas, o filho expectante); basta também para, em
meia dúzia de linhas, informar-nos sobre o estado de espírito geral de todo um exército,
na sua incerteza sobre o casamento e o noivo de Ifigénia. Isto sim é economia cénica e
poupança de recursos!
Somos agora chegados à grande fala final do mensageiro que, pela sua
ponderabilidade grave, é de molde a suprir as exigências estruturais exigidas a um bom
epílogo. No entanto, considerações puramente estruturais seriam poeticamente
superficiais e não explicariam a escolha e a organização das informações que o
mensageiro transmite. Até porque o mensageiro transmite a sua mensagem a alguém
muito particular que se encontra também numa situação muito específica. Ora bem, esse
alguém é Clitemnestra, cuja última fala já permitira vislumbrar a latitude da solidão de
mãe em que agora ela mesma se encontra: com efeito, depois de uma longa e penosa
altercação com a filha, apercebendo-se da inexorabilidade da circunstância, suspira com
dor: «σχές, μή με προλίπῃς» (v. 1467). Neste momento, ela é já a orba mater, a quem a

3
O texto grego citado será sempre o de Gilbert Murray, Oxford, 1913, disponível on-line em
http://www.perseus.tufts.edu/hopper/.
4
A expressão não é gratuita: apesar de ser uma comédia, a peça Floresta de enganos, de Gil Vicente,
apresenta paralelos impressionantes com o imbróglio profundo que sustém a acção em Eurípides. Se não
quiséssemos ir mais longe (e descobrir, em ambos os casos, uma intriga nupcial que, de alguma maneira,
leva ao “sacrifício” de uma jovem), a nossa Grata Célia (que bem podemos entender como “agradável aos
deuses”) retoma bem o tema da jovem Ifigénia oferecida como sacrifício expiatório e propiciatório.
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É bem lícito asseverar que este efeito se alcança também não abrindo mão de uma certa linguagem
dúplice e ambígua. O que dizer dessa expressão, «Ἀρτέμιδι προτελίζουσι τὴν νεάνιδα» (v. 433) – afinal,
sacrifício de casamento ou de morte? –, e de toda a outra linguagem sacrificial (corbelhas, coroas, etc.)?
O mensageiro é arauto do futuro malgré lui, enquanto a dúvida ainda impende sobre os restantes e os
domina, à velocidade a que a notícia se espalha: «Ὑμέναιός τις ἢ τί πράσσεται;» (v. 430).
confirmação dos seus medos e a novidade de uma resolução insuspeitada se consomem
indiferenciadamente no mesmo silêncio que o mensageiro vem romper6. Não
percebemos quem está em cena, mas a receptora privilegiada é sempre Clitemnestra.
O cuidado da composição e a largueza do conteúdo destes «θαυμαστά… καὶ δεινὰ» (v.
1538) ressaltam daquelas duas sentenças iniciais: «σαφῶς» (v. 1540) e «ἀπ᾽ ἀρχῆς» (v. 1541) –
a retórica terá de ser perfeita. Devemos certamente associar a todos estes expedientes estilísticos
bombásticos uma dicção pausada e uma locução intensa da parte do mensageiro, sobretudo para
re-presentar aquela ordem de silêncio que lhe ressuma amiúde à boca: «σιγῇ» (v. 1560) e
«εὐφημίαν… σιγὴν» (v. 1564). É este o ambiente pesado e expectante necessário para a
prossecução desses dois motivos a que já nos referimos (primeiro, convencer Clitemnestra e,
segundo, convencer o público de que, com estas palavras, Clitemnestra só pode ficar
convencida, cf. nota 6) e também dum outro terceiro, que se começa a manifestar ao longo da
descrição do sacrifício e da listagem dos comportamentos e dos sentimentos das muitas
personagens envolvidas, e que é o que vem mencionado mesmo no término da fala:
«πόσει πάρες χόλον» (v. 1609). Missão impossível, como vimos, essa de reatar as boas
relações conjugais entre Clitemnestra e Agamémnon, apesar do cunho de veracidade
dos comportamentos relatados que justificaria uma tal reaproximação (v. 1607:
«ἐγὼ παρὼν δὲ καὶ τὸ πρᾶγμ᾽ ὁρῶν λέγω») e da vontade expressa de Agamémnon (v.
1604: «πέμπει δ᾽ Ἀγαμέμνων μ᾽ ὥστε σοι φράσαι τάδε»), mais tarde ratificada pelo coro
(v. 1620: «τούσδ᾽ αὐτοὺς ἔχων σοι φράζειν μύθους»). Em suma, temos de ler este
discurso entrando na dinâmica (que é a mistura dos nossos três motivos) da intenção
mais profunda de Agamémnon em convencer sem apelo Clitemnestra do seu
comportamento irrepreensível, antes e depois da substituição miraculosa de Ifigénia por
uma corça.
No sentido de concluir este ensaio com a reafirmação do poder sintético e
efectivo de que o mensageiro se serve para evocar com precisão a parte da acção que o
público não viu, atentemos nesses contrastes que opõem o bucolismo do bosque sagrado
e das clareiras floridas à aglomeração da soldadesca ou, por ventura, aqueloutros que

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É o mínimo que podemos dizer, se considerarmos correctamente o efeito que a grande revelação do
mensageiro – que, segundo toda a hipótese, foi construída de feição a dissipar as suas dúvidas e a
consolá-la de uma falsa perda – imprimiu nesta mãe. Nos versos 1616-17, profere: «πῶς δ᾽ οὐ φῶ /
παραμυθεῖσθαι τούσδε μάτην μύθους (…);». E o público fica estarrecido, ele que se tinha deixado
apaziguar; em relação a Clitemnestra, a meta principal em função da qual todo este discurso tinha sido
edificado, a missão de consolo e conforto do mensageiro quedou gorada e quejandas palavras de nada
serviram. É esta atmosfera de fracasso que obriga a uma releitura do passo, no sentido de perceber
também o objectivo que nele transparece de sintonizar o público com esta “boa nova”, público esse que
depois se surpreende com a reacção final de Clitemnestra, porque até então sentira que cada palavra do
mensageiro tinha contribuído para acalmá-la.
nos excitam à piedade em relação a um Agamémnon terrivelmente sofredor e, ao
mesmo tempo, à estupefacção diante da vontade férrea e máscula de uma Ifigénia
prestes a imolar-me motu proprio (ou melhor, colo proprio). Ao ouvirmos tais
descrições, fazemos nossos os sentimentos do exército e, assim preparados, em silêncio
e expectantes, sentimos como facas cortantes na carne cada um daqueles movimentos
em torno do altar. A oração do adivinho passa demasiado depressa, para repentinamente
os nossos olhos –
só por um momento afastados – pasmarem diante dum milagre (também a audição tinha
sido enganada pelo som dum “baque” – v. 1581, IA). No entanto, se despertamos
também para o estrondo de liberdade que é poder soltar as velas de novo, graças ao
concurso de uma corça, é só para sentirmos com maior pena aquela incompreensão que
não larga Clitemnestra até mesmo ao último momento. É que o mensageiro de
Clitemnestra apenas cumpriu a sua missão junto de nós e não pôde evitar (assim o
sabemos sem ele no-lo ter lembrado) um sangrento homicídio conjugal!

Bibliografia

A tradução portuguesa consultada foi Ifigénia em Áulide, trad. Carlos de Almeida, 2.ª
ed., Gulbenkian, 1998 [no corpo do texto, abreviada por IA]. Para a estrutura dos
grandes quadros cénicos, coligiu-se informação passim em Ifigenia in Aulide, introd. e
com. L. Comelli, Signorelli, 1981.

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