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A LEITURA BÍBLICA SOB O VIÉS DA HIPERTEXTUALIDADE

Roberta Santana Barroso


Mestranda em Cognição e Linugagem (UENF). Graduada em Letras (UNIG).

Clodoaldo Sanches Fofano


Doutorando em Cognição e Linguagem (UENF). Mestre em Ciências das Religiôes
(FUV). Graduado em Pedagogia (FAVED). Graduado em Letras:
Português/Espanhol (UNIFSJ).

Edilaine da Silva Freitas


Mestranda em Cognição e Linugagem (UENF). Graduada em Letras (UNIFSJ).

Sinthia Moreira Silva Ribeiro


Mestranda em Cognição e Linugagem (UENF). Graduada em Letras (UNIFSJ).

Vanessa Amaral Tinoco


Mestranda em Cognição e Linugagem (UENF). Graduada em Enfermagem (UNIG).

RESUMO

O objetivo desse artigo é apresentar a leitura hipertextual na exegese bíblica


que se configura desde muito cedo na sua história. A concepção da Bíblia no
estudo em questão é a de um produto literário situado em determinado
contexto social e comunicativo, a própria constituição oral dos primeiros textos,
as diversas formas pelas quais passou e a opção pelo códice como formato
bíblico por excelência fez da Bíblia um livro hipertextual por natureza. A
escolha para a fundamentação teórica implicou na relação de obras ligadas ao
assunto, tomando por base o pensamento de Babo (2004), Marcuschi (2000),
Ribeiro (2005) dentre outros. Nesse estudo apresento os fundamentos teóricos
e os resultados de sua aplicação na leitura da Bíblia em suporte de hipertexto
digital, cuja estrutura gráfica também apresenta sistemas de indicações (links)
e tradicional, ou seja, impresso.

PALAVRAS-CHAVE: Bíblia. Leitura. Autoria. Hipertexto.

ABSTRACT

The objective of this article is to present the hypertextual reading in the biblical
exegesis that is configured since very early in its history. The conception of the
Bible in the study in question is that of a literary product situated in a
determined social and communicative context, the very oral constitution of the
first texts, the various forms through which it passed and the option for the
codex as a biblical format par excellence made the Bible a hypertextual book by
nature. The choice for the theoretical foundation implied the list of works related
to the subject, based on the thinking of Babo (2004), Marcuschi (2000), Ribeiro
(2005) among others. In this study I present the theoretical foundations and the
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results of their application in reading the Bible in support of digital hypertext,
whose graphic structure also presents systems of indications (links) and
traditional, that is, printed.

KEYWORDS: Bible. Reading. Authorship. Hypertext.

Toda a Escritura é inspirada por Deus e é útil


para o ensino, para repreensão, para correção,
para educação na justiça; a fim de que o homem
de Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado
para toda boa obra.

(BÍBLIA, II Tim. 3: 16-17)

1 Introdução

Com o alavancar de novas tecnologias, diversas opções de leitura digital


têm surgido e com isso a leitura, de um texto possui suas especificidades que o
tornam aberto às diversas inferências dos leitores em suas múltiplas
realidades, considerada em seu sentido amplo, passa a ser representado por
uma simbiose de múltiplas expressões: sons, imagens e recursos que a tornam
sedutora e geradora de textos, que conduzem o leitor a construir diversos
caminhos interpretativos.
Com as diversas práticas de leitura hipertextuais, os leitores passam a
fazer parte da estruturalização do texto, conectados com outros textos e
fazendo relações com outros, apropriando-os de sentidos. A informação e a
comunicação são enriquecidas com essas novas práticas de leituras. A
hipertextualização, assim corrobora para a construção de sentido, permitindo
enriquecer consideravelmente a leitura.
Para Lévy, ler é selecionar, esquematizar, associar a outros dados,
integrar as palavras e as imagens como uma memória pessoal em
reconstrução permanente. (LÉVY, 1996, p. 43). Por isso, quando lemos, não
temos uma atitude linear, relacionamos o texto a outros textos, a imagens, a
fatos, sendo a leitura uma ação de constante construção.
Nessa perspectiva, o hipertexto, a partir de uma nova dinâmica interativa
de leitura de qualquer tipo de texto entende-se que em sua prática, o leitor dá

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sentido aos textos lidos num processo de construção e desconstrução.
Marcuschi corrobora dizendo que:

O leitor do hipertexto é o responsável pelos movimentos que


conduzem à construção do sentido. Entretanto, essa não é
uma tarefa apenas do leitor do hipertexto, mas de todo e
qualquer leitor, já que a coerência não é uma propriedade
estrutural do texto, mas uma operação do indivíduo sobre o
texto: uma perspectiva interpretativa (MARCUSCHI, 2000,
p.17).

Assim como para Chartier (1998, p. 152) “O texto implica significações


que cada leitor constrói a partir de seus próprios códigos de leitura, quando ele
recebe ou se apropria desse texto de forma determinada”. Como prática social,
o sujeito pertence a uma rede de interpretações, onde a leitura desestabiliza os
sentidos já dados ao texto estruturado. Cada leitor, portanto, é sujeito social e
histórico em suas próprias manifestações de leitura.
Pretende-se, portanto, refletir e analisar os efeitos produzidos pelo
hipertexto na leitura de textos bíblicos seja no suporte digital ou impresso, por
conseguinte as confluências feitas através dos recursos hipermidiáticos.

2 O Hipertexto como rede de informações interativas

O hipertexto é um texto escrito (digital ou impresso) no qual apresenta


uma rede de várias informações interativas a serem lidas de forma não-linear
permitindo assim um número maior de associações, fazendo com que o leitor
crie o seu próprio caminho de leitura. Associando a perspectiva de Babo, para
quem “o hipertexto é o espaço de liberdade total do leitor”, e compara o leitor
do hipertexto ao “consumidor do hipermercado, na medida em que este tem a
pretensão de passear livremente pelos produtos e escolher” (BABO, 2004,
p.110). Essas escolhas ocorrem não de forma linear, na qual seu formato
pertence como objeto de leitura em ambientes diferentes seja ele impresso ou
eletrônico, cuja história dos conceitos de construção de textos enfatiza que:

O hipertexto tem história recente, mas possui fundamentos


antigos nas enciclopédias, nas colecções e nas bases de
dados. As dificuldades semânticas de acesso aos documentos

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e aos conhecimentos não desaparecem, mas foram, em parte,
contornadas, por meio de novo dispositivos pragmáticos
(LAUFER; SCAVETTA, 1998, p. 8).

Essas associações ou informações, cuja leitura contribuirá para a


ampliação dos conhecimentos por descoberta pode ser de forma digital ou
tradicional. No meio digital o funcionamento é baseado em links (Internet
através da WWW). Esses links ocorrem na forma de termos destacados no
corpo de texto principal, ícones gráficos ou imagens e têm a função de
interconectar os diversos conjuntos de informação, oferecendo acesso sob as
informações que estendem ou complementam o texto principal. Segundo Pierre
Lévy: “O hipertexto é constituído por nós (os elementos de informação,
parágrafos, páginas, imagens, sequências musicais etc) e por links entre esses
nós, referências, notas, ponteiro, “botões” indicando a passagem de um nó a
outro” (LÉVY, 1999, p.56). Portanto os itens das informações não são ligadas
linearmente, suas conexões ocorrem de forma a ter novas experiências de
navegação sobre a leitura hipertextual. De acordo com Pierre Lévy navegar em
um hipertexto significa, portanto, desenhar um percurso em uma rede que pode
ser tão complicada quanto possível. “Porque cada nó pode, por sua vez, conter
uma rede inteira” (LÉVY, 1993, p. 33).

3 A hipertextualidade no texto bíblico

A Bíblia é constituída de múltiplos textos e escrita por diversos autores,


constituindo uma hipertextualidade. O texto é abordado de uma forma não-
linear e recriado, continuamente, no movimento próprio de uma interpretação
dialógica, quebrando assim os pressupostos de uma unicidade textual e de
uma hierarquia linearizada e rígida. A Bíblia, assim como as diversas
interpretações realizadas servirá como um novo suporte de texto permitindo
usos, manuseios e intervenções do leitor infinitamente mais numerosos e mais
livres do que qualquer uma das formas antigas do livro (Chartier,1998, p. 88).
A Bíblia, enquanto produto literário de várias épocas apresenta a
vida de determinado povo através dos escritos sagrados e apresentando
hipertextualidade na forma tradicional por meio de citações, anotações, notas
de rodapé, verbetes, termos em dicionários, etc.

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Todas essas características fazem do hipertexto uma
ferramenta intertextual, veloz, dinâmica e interativa - diferente
do simples texto. E fazem do computador e da internet o
suporte ideal para abrigá-lo, fazendo do hipertexto uma forma
de literatura contemporânea por excelência. E nessa literatura
o leitor não é só um receptor passivo das informações. Ele faz
parte, ativamente, da construção do texto, pois toda leitura tem
como resultado um produto único, fruto das decisões e
escolhas não só do autor, mas também do leitor (BERCITTO,
2009, p. 24).

A Bíblia em uma tradução pode encontrar diversas edições nos formatos


mais variados. Existem Bíblias para o público infantil, Bíblia de Estudo da
Mulher, Bíblia Jovem, Bíblia do Adolescente, Bíblia para deficientes visuais,
Bíblia do Executivo, Bíblia formato de agenda, de luxo, populares, de bolso e
até mesmo a Bíblia do Surfista, produzida pela Bola de Neve Church. Todas
essas versões possuem variações das mesmas traduções.
Assim, é possível entender por Bíblia desde um pequeno poema/canção,
uma sequência de leis, um único livro completo (como os Salmos), uma
sequência desses (como os Evangelhos) até um agrupamento maior de seu
conjunto (como o Antigo ou Novo Testamento). Para o leitor atual, a Bíblia
cristã é entendida como o conjunto maior formado pela união dos dois
Testamentos.
O hipertexto digital amplia, através das infinitas possibilidades de
leitura, por meio da informação de maneira cada vez mais variada e veloz no
ciberespaço, os sentidos da leitura, independente do tema, especificamente
aqui, a bíblica. Conforme Ribeiro é importante lembrar que as tecnologias
digitais de leitura e escrita ainda são fundadas sobre a escrita, talvez de forma
ainda mais imbricada. O leitor que navega em espaços digitais só pode se
mover porque lê, assim como o faz no livro (RIBEIRO, 2005, p.127). A Bíblia,
por meio de diversos e variados contextos, existe por meio do processo de
comunicação que através das relações de indivíduos se propaga e amplifica.
Outrossim o hipertexto digital facilita, através dos links, o processo de
leitura do texto bíblico. Por meio dos links, o tema abordado se torna mais
dinâmico, expandido criando possibilidades para que o leitor possa navegar e
criar novos sentidos para um texto. Umberto Eco trará luz a essa diferença
explicando que de um lado, assume-se que interpretar um texto signifique

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colocar em evidência o significado intencionado pelo autor ou, em todo caso,
sua natureza objetiva, sua essência, uma essência que, considerada como tal,
é independente de nossa interpretação do outro, assume-se, ao contrário, que
os textos possam ser infinitamente interpretados (ECO, 2000, p. 279).
Na Bíblia on-line ficam mais patentes estes links que levam a
hipertextos, ampliando as possibilidades de leitura da informação, criando uma
nova relação com a informação disponível no ambiente digitalizado, pode-se
dizer que foi uma das primeiras obras a utilizar, de forma consistente, links em
um mesmo documento. Flora, destaca:

Determinado fragmento textual (determinada “página”) que


estou lendo pode assim ser ligado a outros fragmentos que
posso fazer aparecer com um simples clique no mouse em tal
ou tal parte do texto de partida. Vê-se assim o que a leitura
ganha nessas operações intelectuais que o dispositivo
favorece. Não apenas se encontram reativados os
instrumentos do livro tradicional, mas instantaneidade de
exibição dos textos abre caminho para novas possibilidades
(SUSSEKIND, 2006, p. 31).

No caminho traçado pelos links, os leitores navegam no universo de


sentidos propiciados pelos textos. Com os hiperlinks e nós estabelecidos no
hipertexto ocorre à materialização da interação dialógica, pela qual são
mapeadas as unidades de criação textual. Assim, no hipertexto digital o
processo de construção do conhecimento eleva os padrões de processamento
do texto impresso.
Contudo, é importante ressaltar que as características do texto impresso
permanecem no texto digital. Afirmamos, com Koch, que o leitor da escrita
digital faz de seus interesses e objetivos o fio organizador das escolhas e
ligações, procedendo por associações de ideias que o impelem a realizar
sucessivas opções e produzindo, assim, uma textualidade cuja coerência
acaba sendo uma construção pessoal, pois não haverá efetivamente dois
textos exatamente iguais na escritura hipertextual (KOCK, 2002, p. 72).
Ainda sobre a concepção de hipertexto, Koch destaca: todo texto
constitui uma proposta de sentidos múltiplos e não de um único sentido e todo
texto é plurilinear na sua construção, [...] então, [...] poder-se-ia afirmar que —

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pelo menos do ponto de vista da recepção — todo texto é um hipertexto (KOCK
2002, p. 61).
Compreender o caminho da leitura bíblica é tão importante quanto
discernir seus múltiplos significados. A reflexão sobre os aspectos teóricos e
práticos das variadas formas de leitura bíblica possui relevância quanto às
próprias descobertas de sua análise. Pois a cada leitura que faz do mesmo
texto, novas descobertas e “linkagens” são acionadas mediante suas
expectativas e anseios vividos naquele instante pelo qual a leitura está
construindo outros sentidos ao texto.
A Bíblia não só deve ser lida, mas também interpretada para atender a
sua significância. Dessa maneira a Bíblia atenderia ao conceito de rizoma de
Deleuze e Guattari. Para eles, “O livro imita o mundo, como a arte, a natureza:
por procedimentos que lhes são próprios e que realizam o que a natureza não
pode ou não pode mais fazer. A lei do livro é a da reflexão, o Uno que se torna
dois” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 03).
Os métodos tradicionais são representados pela palavra digitalizada
revolucionando esse tipo de leitura. Na folha impressa essa informação se dá
por completo, já na folha em tela essas imagens podem estar ocultas e serão
ativadas pelo comando. Em O que é o virtual? Pierre Lévy diz:

A digitalização e as novas formas de apresentação do


texto só nos interessam porque dão acesso as outras
maneiras de ler e de compreender. Para começar, o
leitor em tela é mais “ativo” que o leitor em papel: ler em
tela é, antes mesmo de interpretar, enviar um comando a
um computador para que projete esta ou aquela
realização parcial do texto sobre uma pequena superfície
luminosa.
A tela informática é uma nova “máquina de ler”, o lugar
onde uma reserva de informação possível vem se
realizar por seleção, aqui e agora, para um leitor
particular. Toda leitura em computador é uma edição,
uma montagem singular (LÉVY, 1996, p.40-41).

Com as diversas práticas de leitura hipertextuais, os leitores


desenvolvem uma parceria com os autores, ou se torna coautor diante dos
textos lidos. Dessa forma, a informação e a comunicação se enriquecem
mutuamente originando novas práticas de leituras. Assim, o hipertexto digital

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trouxe interações entre a leitura no suporte tradicional. Segundo Villaça: “os
hipertextos servem para interromper o fluxo de leitura por intermédio de redes
remissivas interligadas, os links, e para conduzir o leitor a um vertiginoso delírio
de possibilidades (VILLAÇA, 2002, p.107).
Encontram-se hoje no mercado editorial cristão as chamadas bíblias
tradicionais e as bíblias especiais. As primeiras são as com tradução na
linguagem formal e as especiais atingindo assim aos diversos níveis sociais,
faixa etária e até profissional. Em se tratando de um livro religioso, não são
poucas as editoras que divulgam gratuitamente a Palavra de Deus.
Visando analisar algumas características que determinam à
hipertextualidade das primeiras impressões, verificamos que elas possuem
relevância quanto ao seu conteúdo e utilização. A leitura dos textos bíblicos,
em sua maioria, possui referências entre si, relacionando as citações dentro ou
fora de um mesmo Livro, com as demais partes de outros Livros do Velho e do
Novo Testamento, guiada pela sua tradição doutrinária a que o leitor está
inserido. Observamos em muitas leituras do texto bíblico que alguns
personagens já conheciam as escrituras e a elas fizeram muitas referências.
Um exemplo encontra-se no Evangelho de Lucas onde Jesus, ao ser tentado
no deserto, não respondeu às provocações de Satanás com suas próprias
palavras, mas usou trechos das Escrituras, não sem referenciá-las. “Disse-lhe
então o Diabo: Se tu és Filho de Deus, manda a esta pedra que se torne em
pão. Jesus, porém, lhe respondeu: Está escrito: Nem só de pão viverá o
homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus” (Luc. 4:3-4).
A referência às Escrituras remete o leitor ao trecho do livro do Antigo
Testamento que diz: “Sim, ele (Deus) te humilhou, e te deixou ter fome, e te
sustentou com o maná, que tu nem teu pais conhecíeis; para te dar a entender
que o homem não vive só de pão, mas de tudo o que sai da boca do Senhor,
disso vive o homem” (Dt. 8:3).
Não resta dúvida que para o leitor menos fluente esses percursos do
Livro Sagrado são mais complexos, um instrumento de orientação externa ao
texto é bastante importante para auxiliar nessa relação. As referências
marginais e as chamadas concordâncias são algumas das estruturas gráficas
que levam o leitor a compreensão mais clara do texto.

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Já o leitor mais familiarizado em suas mais variadas interpretações
observará a importância e o significado do número quarenta na Bíblia. Ao fazer
a leitura do texto bíblico onde faz alusão aos quarenta dias e quarenta noites
do dilúvio (Gn. 7:4), traz à memória desse leitor outros textos que também
fazem referência ao número quarenta, como aconteceu com Moisés ao ficar o
mesmo período no Monte Sinai (Ex. 24:18) e também com os israelitas ao
andar pelo deserto durante quarenta anos para chegar à terra prometida
(Nm.14:33), além da tentação de Jesus quando levado pelo Espírito ao deserto
durante quarenta dias e quarenta noites (Mt. 4:2), e assim inúmeras outras
referências.
Portanto, isso se dá por um trabalho feito pelos estudiosos ao longo de
sua história, mostrando a coexistência no livro do Antigo e Novo Testamento
dando continuidade histórica, mas também a concretização das profecias do
primeiro. Para evidenciar tal assertiva Ribeiro ressalta que repensando o
modus operandi de quem lê um hipertexto, ordinariamente, é fácil conceber
Jesus Cristo navegando pelo Velho Testamento, aos 12 anos de idade
(RIBEIRO, 2005, p. 128).
Verificamos, assim, a possibilidade de relacionar os diversos livros da
Bíblia, livros compostos em épocas, idiomas e contextos distintos que
sustentam a leitura hipertextual. É nesse suporte que se sustenta Barthes
acerca da leitura hipertextual:

São múltiplas e se entrelaçam, sem que nenhuma possa


dominar as outras; este texto é uma galáxia de significantes,
não uma estrutura de significados; não tem início; é reversível;
nele penetramos por diversas entradas, sem que nenhuma
possa ser considerada principal; os códigos que mobiliza
perfilam-se a perder de vista, eles não são dedutíveis (o
sentido, nesse texto, nunca é submetido a um princípio de
decisão, e sim por lance de dados); os sistemas de sentido
podem apoderar-se desse texto absolutamente plural, mas seu
número nunca é limitado, sua medida é o infinito da linguagem
(BARTHES, 1992, p. 39-40).

A leitura da Bíblia, normalmente, é feita pelo fiel de uma forma que vai
muito além de um sentido rígido do autor ao leitor. Comprovadamente, a
“Palavra de Deus”, faz com que o leitor seja capaz de manter um diálogo real
com os textos bíblicos, porque sua interpretação se dá pela revelação do
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Espírito Santo. Klaiber e Marquardt, ao traduzir o comportamento do cristão na
leitura da Bíblia, destaca, no capítulo intitulado “O falar de Deus na Palavra da
Bíblia”:

Quando o Espírito de Deus abre o ouvido e o coração para a


sua Palavra, aquele que é tocado pelo poder da pessoa de
Jesus e de sua mensagem, entende e aceita, nas palavras das
testemunhas bíblicas, a voz de Deus; isto produz de imediato
uma relação pessoal muito íntima entre os textos bíblicos e o
homem concreto, independentemente de qualquer teoria sobre
a relação entre Palavra de Deus e palavras dos homens nos
escritos da Bíblia. (KLAIBER; MARQUARDT,1999, p.55)

Muitos outros livros têm sido escritos para auxiliar no estudo da Bíblia,
assim como nas próprias Bíblias de Estudos existem a Chave Bíblica, Índices
de Diagramas e Ilustrações, Símbolos Temáticos, Orientações de como usar a
Bíblia, calendário para leitura anual e Mapas Bíblicos.
Os dicionários bíblicos baseados nas línguas bíblicas originais (hebraico
e grego) auxiliam na apreciação e interpretação de algumas palavras. Sendo
assim é útil estudar seu ambiente textual, usando atlas ou os mapas das terras
bíblicas e livros sobre história como auxílio, ressaltando a riqueza de tais livros
e seu significado. É permitido refletir nisso diante que Barthes aclama:

Sabemos agora que um texto não é feito de uma linha de


palavras a produzir um sentido único, de certa maneira
teológico (que seria a "mensagem" do Autor-Deus), mas um
espaço de dimensões múltiplas, onde se casam e se
contestam escrituras variadas, das quais nenhuma é original: o
texto é um tecido de citações, saídas dos mil focos da cultura
(BARTHES, 2004, p. 62).

Os textos da Bíblia são compostos de relatos e de simples afirmações,


pois ela mesma possui seu próprio comentário por utilizar recursos que os
comprove. Portanto, essas ferramentas e técnicas de busca (notas, referências
e outras) tornam a Bíblia um livro hipertextual. Para Ribeiro o Livro Sagrado
fixou-se o hipertexto mais famoso e circulador da humanidade: a Bíblia,
organizada em livros, capítulos e versículos, devidamente numerados e cheios
de referências internas, num sistema há séculos funcional e muito bem
projetado (RIBEIRO, 2005, p. 124).

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Isto aproximaria sua leitura ao modo de outros livros como enciclopédias
e dicionários, como afirma Pierre Lévy que a leitura de uma enciclopédia
clássica já é do tipo hipertextual, uma vez que utiliza as ferramentas de
orientação que são os dicionários, léxicos, índices, thesaurus, Atlas, quadros
de sinais, sumários e remissões ao final dos artigos (LÉVY, 1996, p.44). Por
conseguinte, as práticas de leitura têm passado por mudanças suscitadas por
um novo suporte de leitura, pela construção de sentidos de um texto.

Considerações finais

Esse artigo procurou apresentar uma análise da Bíblia impressa e digital


apontando como sua hipertextualidade se dá fazendo uso dos instrumentos
gráficos de busca, mediante um processo histórico surgido em diversos
momentos após sua composição, mesmo porque os autores dos textos não
foram, necessariamente, os editores dos livros.
Esse procedimento metodológico e cognitivo propicia ao leitor uma
ruptura com a ordem não linear da leitura da Bíblia, objeto de estudo do
presente trabalho, pois sua organização em capítulos e versículos, possibilita
uma intertextualidade entre as diversas unidades de texto. Ler, nesse aspecto,
torna-se um ato fruído e prazeroso, de forma a criar um pertencimento de sua
relação com a leitura bíblica.

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