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JUIZ [NÃO] É TRIBUNAL?

Face a animada discussão em torno das afirmações do Mmo. Juiz Efigênio Baptista (“O Tribunal
não vai tolerar”, “O Tribunal indefere”, “O Tribunal sou eu, apenas!”, etc.), contribuo com o
seguinte, na tentativa de, sem pretender esgotar o estudo e sem laivos de verdade absoluta,
ajudar a dissipar dúvidas sobre se o Juiz é, ou não, Tribunal:

1. São órgãos de soberania o Presidente da República, a Assembleia da República, o Governo,


os tribunais e o Conselho Constitucional (cfr. artigo 133 “Órgãos de soberania”, da
Constituição de 2004 da República de Moçambique, na redacção introduzida pela Lei n.º
1/2018, de 12 de Junho, doravante CRM 2004), sendo certo que os tribunais são órgãos
de soberania que administram a justiça em nome do Povo (cfr. artigo 1 “Definição”, da Lei
n.º 24/2007, de 23 de Agosto, Lei da Organização Judiciária, ou LOJ);

2. Sob epígrafe “Espécies de tribunais”, o artigo 222 da CRM 2004 determina;


1. Na República de Moçambique existem os seguintes tribunais:
a) Tribunal Supremo;
b) Tribunal Administrativo;
c) Tribunais judiciais.
2. Podem existir tribunais administrativos, de trabalho, fiscais, aduaneiros, marítimos,
arbitrais e laborais;
3. A competência, organização e funcionamento dos tribunais referidos nos números
anteriores são estabelecidos por lei, que pode prever a existência de um escalão de
tribunais entre os tribunais [judiciais] provinciais e o Tribunal Supremo.
(…)

3. Os tribunais são dotados de autonomia administrativa e regem-se nos termos da Lei n.º
9/2002, de 13 de Fevereiro-Lei do SISTAFE – cfr. artigo 4 (Autonomia dos tribunais), da LOJ
(*Fazendo uma interpretação actualista, deve-se ler: “Os tribunais são dotados de
autonomia administrativa e regem-se nos termos da Lei n.º 14/2020, de 23 de Dezembro-
Lei do SISTAFE);

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4. Os juízes são inamovíveis, não podendo ser suspensos, aposentados ou demitidos, senão
nos casos previstos na lei (cfr. artigo 216 “Independência dos juízes”, n.º 3, da CRM 2004),
ou seja:
i. Os juízes só podem ser responsabilizados, civil ou criminalmente, afastados,
suspensos, transferidos, aposentados ou demitidos do exercício das suas funções
nos casos previstos na lei (cfr. artigo 10 “Independência dos juízes”, n.º 3, da LOJ);
ii. Os magistrados judiciais não podem ser transferidos, suspensos, promovidos,
aposentados, demitidos ou por qualquer forma mudados de situação, senão nos
casos previstos neste Estatuto – cfr. artigo 6 (Inamovibilidade), do Estatuto dos
MAgistrados Judiciais (EMJ), aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 11 de Março.

Chegados a este ponto, indago, na busca de resposta da (im)possibilidade de o Juiz ser Tribunal:

A. Está o Juiz incluido na enumeração, taxativa, do que são órgãos de soberania, feita pelo
legislador constitucional no artigo 133 da CRM 2004? Não, não está.
B. O Juiz rege-se nos termos da Lei n.º 14/2020, de 23 de Dezembro-Lei do SISTAFE? Não, o
Juiz não se rege pela Lei n.º 14/2020, de 23 de Dezembro-Lei do SISTAFE, pois do seu artigo
3 (Âmbito de aplicação), n.º1, retira-se que a presente Lei aplica-se aos órgãos e
instituições do Estado, incluindo a sua representação no estrangeiro, designadamente:
a) órgãos e instituições da administração directa do Estado;
b) institutos e fundos públicos;
c) fundações públicas e empresas públicas, nas matérias aplicáveis;
5. outros órgãos e instituições que a lei determinar – nosso sublinhado -, sendo certo que,
conforme dispõe o artigo 4 (Autonomia dos tribunais), da LOJ, “Os tribunais são dotados
de autonomia administrativa e regem-se nos termos da Lei n.º 14/2020, de 23 de
Dezembro-Lei do SISTAFE.
C. Está o Juiz dotado de autonomia administrativa? Não, não está, pois não é órgão nem
instituição do Estado, como, por exemplo:

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i. Presidente da República, Conselho de Ministros/Governo, Presidência da
República, Ministério ou Comissão Nacional de natureza interministerial – cfr.
artigo 36, n.º 1, da Lei n.º 7/2012, de 8 de Fevereiro, Lei Lei de Base da Organização
e Funcionamento da Administração Pública;
ii. Comissões Nacionais independentes (exemplo: Comissão Nacional de Eleições,
Comissão Nacional dos Direitos Humanos, Comissão Nacional dos Títulos
Honoríficos e Condecorações e Comissão Central de Ética Pública), Provedor de
Justiça, os Conselhos Superiores (exemplo: Conselho Superior da Magistratura
Judicial, Conselho Superior da Magistratura do Ministério Público, Conselho
Superior da Magistratura Judicial Administrativa), etc. etc. – cfr. artigo 50, n.º 1 e 2,
da Lei n.º 7/2012, de 8 de Fevereiro.
D. Pode um tribunal ser suspenso, aposentado ou demitido? Não, não pode, pois a
suspensão preventiva do exercício da profissão de juiz (prevista no artigo 103 do EMJ) e as
penas disciplinares de aposentação compulsiva (prevista nos artigos 64, n.º 1, al. g), e 71,
ambos do EMJ) e de demissão (prevista nos artigos 64, n.º 1, al. h), e 72, ambos do EMJ)
aplicam-se aos magistrados judiciais/aos juízes que tenham cometido infracção disciplinar.

Agora, importa trazer à colação o seguinte:

1. Segundo o artigo 225 (Composição) da CRM 2004:


1. O Tribunal Supremo é composto por juízes conselheiros, em número estabelecido por lei.
2. O Presidente da República nomeia o Presidente e o Vice-Presidente do Tribunal Supremo,
ouvido o Conselho Superior da Magistratura Judicial.
3. Os Juízes Conselheiros são nomeados pelo Presidente da República, sob proposta do
Conselho Superior da Magistratura Judicial, após concurso público, de avaliação curricular,
aberto aos magistrados e a outros cidadãos nacionais, de reputado mérito, todos
licenciados em Direito, no pleno gozo dos seus direitos civis e políticos.
4. Os Juízes Conselheiros do Tribunal Supremo devem, à data da sua designação, ter idade
igual ou superior a trinta e cinco anos, haver exercido, pelo menos durante dez anos,
actividade forense ou de docência em Direito, sendo os demais requisites fixados por lei.

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2. Segundo o artigo 228 (Composição) da CRM 2004:
1. O Tribunal Administrativo é composto por Juízes Conselheiros, em número estabelecido
por lei.
2. O Presidente da República nomeia o Presidente do Tribunal Administrativo, ouvido o
Conselho Superior da Magistratura Judicial Administrativa.
3. Os Juízes Conselheiros do Tribunal Administrativo são nomeados pelo Presidente da
República, sob proposta do Conselho Superior da Magistratura Judicial Administrativa.
4. Os Juízes Conselheiros do Tribunal Administrativo devem, à data da sua designação, ter
idade igual ou superior a trinta e cinco anos e preencher os demais requisitos estabelecidos
por lei.

3. Extrai-se do artigo 54 (Competências do Presidente do Tribunal Supremo), n.º 1, da LOJ


que compete ao Presidente do Tribunal Supremo, no exercício das suas funções
jurisdicionais, representar e dirigir o tribunal (al. a)) e nomear os presidentes dos tribunais
e das secções, ouvido o Conselho Superior da Magistratura Judicial (al. f)), competência
que encontra tradução nos artigos:
i. 64 (Juiz-Presidente), da LOJ, na redacção trazida pela Lei n.º 11/2018, de 3 de
Outubro: O Juiz-presidente do tribunal superior de recurso é designado pelo
Presidente do Tribunal Supremo, por um mandato de cinco anos renovável uma vez,
ouvido o Conselho Superior da Magistratura Judicial, de entre os juízes
desembargadores que integram aquele mesmo órgão jurisdictional; e
ii. 52 (Distribuição de Juízes), n.º 1, da LOJ: Compete ao Presidente do Tribunal
Supremo distribuir os Juízes [Conselheiros] pela secções.

4. Compete ao Juiz Presidente do tribunal superior de recurso dirigir e representar o tribunal


(cfr. artigo 65 “Competências do Juiz-Presidente”, al. a), da LOJ); compete aos juízes
presidentes dos tribunais judiciais de província dirigir e representar o tribunal (cfr. artigo
75 “Competências do Juiz-Presidente”, al. a), da LOJ) e compete ao Juiz Presidente do

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tribunal judicial de distrito dirigir e representar o tribunal (cfr. artigo 87 “Competências do
Juiz-Presidente”, al. a), da LOJ).

Mais: As audiências e demais actos judiciais decorrem, em regra, na sede do respectivo tribunal –
e não no domicílio voluntário do Meritíssimo Juíz, vincamos - (cfr. artigo 13 “Audiências”, n.º 3,
da LOJ), sendo certo que os presidentes dos tribunais e das secções dirigem as sessões e
audiências de discussão e julgamento (cfr. artigo 14 “Direcção da audiências”, da LOJ).

Mais ainda: O Código de Processo Penal (a seguir, CPP), aprovado pela Lei n.º 25/209, de 26 de
Dezembro, tem a seguinte estrutura (no que ao nosso estudo interessa):

PARTE PRIMEIRA
Livro Preliminar
Fundamentos do Processo Penal

TÍTULO I
Princípios Fundamentais e Garantias do Processo Penal
CAPÍTULO I
Disposições Preliminares e Gerais

CAPÍTULO II
Suficiência da Acção Penal e Questões Prejudiciais

PARTE SEGUNDA
LIVRO I
Dos Sujeitos do Processo

TÍTULO I
Do Juiz e do Tribunal (nosso destaque)

CAPÍTULO I
Da Jurisdição

CAPÍTULO II
Da Competência

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SECÇÃO I
Competência material e funcional

SECÇÃO II
Competência territorial

SECÇÃO III
Competência por conexão

CAPÍTULO III
Declaração de Incompetência

CAPÍTULO IV
Conflitos de Competência

CAPÍTULO V
Impedimentos, Suspeições e Escusas

Conforme facilmente se constata, o legislador distingue, no Título I, do Livro I, da Parte Segunda


do CPP (artigos 15 e seguintes), as figuras de “Tribunal” e de “Juiz”, deixando, destarte, bem
patente que as mesmas não se confundem.

Aliás, vale, aqui e agora, lembrar que o artigo 43 (Impedimento do juiz), n.º 1, do CPP, determina
que nenhum juiz efectivo ou substituto pode funcionar em processo penal:
i. quando for ou tiver sido cônjuge ou representante legal do arguido, do assistente ou da
pessoa com legitimidade para se constituir assistente ou parte civil, ou com algum deles
viver ou tiver vivido em condições análogas às de cônjuge – cfr. al. b);
ii. quando ele, o seu cônjuge ou a pessoa que com ele viva em condições análogas às de
cônjuge, ascendente, descendente, for ou tiver sido parente até ao terceiro grau, tutor
ou curador, adoptante ou adoptado do arguido, do assistente ou de pessoa com
legitimidade para se constituir assistente ou parte civil, ou afim destes até àquele grau
– cfr. al. c).

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Importa, também, lembrar que os tribunais são órgãos da pessoa colectiva pública/de Direito
Público Estado e que, sendo órgãos de uma pessoa colectiva, são preenchidos por
titulares/agentes/servidores a quem cabe formar e expressar a sua (tribunais) vontade: os Juízes.

Dada a sua pertinência, não é despiciendo trazer à ribalta o seguinte:


1. Em primeira instância, o tribunal judicial de província pode funcionar como tribunal
singular ou colegial, conforme o determinado pela lei de processo ou outro diploma – cfr.
artigo 70 (Funcionamento), n.º 1, da LOJ;
2. O tribunal judicial de província é composto por um juiz profissional, podendo nele
participarem quatro juízes eleitos, quando funcione em primeira instância, como tribunal
colegial, nos termos do artigo 17 da presente lei – cfr. artigo 71 (Composição), n.º 1, al. b),
da LOJ, na redacção dada pela Lei n.º 11/2018, de 3 de Outubro;
3. Funcionando em primeira instância, como tribunal colegial, o tribunal judicial de província
não pode deliberar sem que estejam presentes, pelo menos, dois juízes eleitos, nos termos
do artigo 17 da presente Lei, além do juiz profissional – cfr. artigo 72 (Quorum), n.º 1, da
LOJ, na redacção dada pela Lei n.º 11/2018, de 3 de Outubro;
4. Dita o artigo 20 (Tribunal singular), n.º 1, do CPP de 2019: Compete ao tribunal singular,
em matéria penal, julgar os processos cuja competência não cabe ao tribunal colegial (al.
a)) e que devam ser julgados em processo especial (al. b)), sendo certo que o tribunal
singular é integrado por um juiz professional (cfr. n.º 2) – nosso destaque;
5. Extrai-se do artigo 366 (Intervenção e competência do tribunal), do CPP de 2019:
1. A discussão e julgamento da causa é feita composto o tribunal nos termos da lei.
2. Os juízes eleitos participam nos julgamentos em 1.ª instância em todos os casos
previstos na lei ou sempre que a sua intervenção for determinada pelo juiz da causa,
promovida pelo Ministério Público ou requerida por um dos sujeitos processuais.

Alcançado este ponto, sou tentado a dizer que o Juiz é a pessoa necessariamente física/singular
e viva que, mediante provimento por nomeação (cfr. artigo 10 “Provimento provisório e
definitivo”, do EMJ), por contrato (cfr. artigo 11 “Provimento por contrato”, do EMJ), ou
mediante provimento em regime especial (cfr. artigo 12 “Provimento provisório em regime
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especial”, do EMJ), dirige e representa determinado tribunal judicial, administrativo, de polícia,
marítimo, fiscal, de trabalho ou de qualquer outra espécie, e/ou exerça, nesse mesmo tribunal,
na qualidade de seu titular, agente ou servidor, a função/tarefa de aplicar a lei, administrar a
justiça e fazer executar as suas (tribunal) decisões - cfr. artigo 3 “Função da magistratura
judicial”, n.º 1, do EMJ, aplicável ipsis verbis aos Magistrados Judiciais e mutatis mutandis aos
demais Juízes.

CONCLUSÕES:

1. O Juiz é, sem duvidas, um servidor público, que exerce as suas funções num determinado
tribunal, que, friese-se, é um órgão de soberania;
2. As decisões (sentenças) e deliberações (Acórdãos) são dos tribunais, não são dos Juízes
que os compõem, individualmente considerados, e que, por isso, tomam tais decisões e
deliberações como seus (tribunais) titulares/agentes/servidores;
3. Não existe a possibilidade de personificar os tribunais nas pessoas dos Juízes, sendo, por
isso, intragável a afirmação do Mmo. Juiz Efigénio Baptista: “O Tribunal sou eu, apenas!”;
4. Assim, é nosso humilde entendimento que JUIZ NÃO É TRIBUNAL!!!

Autor: Celso Estêvão Tuto


(Licenciado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Eduardo Mondlane - 2009)

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Domingo, 20 de Fevereiro de 2022

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