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A Escolha Colectiva*

Economia e Finanças Públicas (2020-21)†

19 de abril de 2021

3 A Escolha Colectiva

3.1 O Problema da Escolha e os Tipos de Regras


Nos capítulos anteriores, foi considerado que as falhas de mercado justificavam
a intervenção pública, de forma a obter-se uma maior eficiência e/ou equidade.
Esta intervenção pública seria da responsabilidade das autoridades públicas, ou
do Governo, enquanto ‘ditador benevolente’, i.e. enquanto defensor do interesse
público. Na verdade, para que tal aconteça, aquele terá que dispor do conheci-
mento das preferências dos cidadãos para, a partir daquelas, i.e. através do uso
das regras correctas, se possa proceder à agregação das preferências. Por outras
palavras, a visão ideal do Governo, enquanto ditador benevolente, pressupõe que
este, não só identifica as falhas ou fracassos do mercado, como também conhece
as preferências dos cidadãos, por exemplo sobre os bens públicos. Pode, assim,
determinar as políticas públicas, tendo em conta a ponderação dada aos objecti-
vos de eficiência e equidade.
Esta visão ideal tem sido questionada por certos autores, que referem a exis-
tência de fracassos/falhas no sistema político, em particular no que diz respeito à
utilização de regras de decisão/votação, das quais resultem as intervenções públi-
cas que sejam as melhores do ponto de vista social. Este facto levanta, desde logo,
a questão:
O que é o interesse público/colectivo?
Aquela agregação de preferências:
• nem sempre é possível, tal como se afirma na abordagem da escolha social
a la Arrow;
*
Sumário das aulas de 01/21-Abril-2021, com base nos apontamentos da Professora Gertrudes
Guerreiro, o qual não dispensa a consulta dos apontamentos das aulas e do manual recomendado,
i.e. Pereira, P.T., Afonso, A., Arcanjo, M. & Santos, J.C.G. (2016), Economia e Finanças Públicas, 5ª
edição revista e atualizada, Lisboa: Escolar Editora.

Departamento de Economia, Universidade de Évora.

1
• nem sempre é verificável (ou desejável, por parte do Governo), tal como se
afirma na abordagem da escolha pública a la Buchanan.
Aqui iremos considerar a abordagem da escolha colectiva, que se torna par-
ticularmente interessante perante a questão dos bens públicos, na medida em
que, para estes, tal como visto nos capítulos anteriores, a quantidade (fornecida)
é única, mas existem diversos preços.
Quanto aos tipos de regras, temos:
• Ditadura – Um (único) agente decide isoladamente;
• Maioria Simples/Relativa – A opção que tiver mais votos é a escolhida;
• Maioria Absoluta – A opção que tenha mais de 50% dos votos é a escolhida;
• Maioria Qualificada – A opção que obtiver mais de 2/3, 3/4, 7/8, ..., dos votos
é a escolhida;
• Unanimidade – A opção escolhida tem que obter o voto favorável de todos.
Colocam-se, então, duas questões:
• que tipo de regra se deve usar?;
• existe alguma regra que não apresente problemas?.
Os tipos de regras desejáveis dependem do problema em causa. Como é sa-
bido, perante:
• problemas de eficiência – já que se está perante melhoramentos/melhorias
de Pareto, todos podem/têm que melhorar (ou, pelo menos não piorar) a sua
situação;
• problemas de equidade – já que se está perante uma redistribuição, uns
ficarão melhor e outros ficarão pior.
A questão da eficiência é bem evidente em Barbosa (1997: 56-57). Reproduzam-
se os quadros 1.5 e 1.6 e verifique-se que um resultado ineficiente seria aprovado
(por maioria simples), o que também levantaria problemas de equidade.

Benefícios difusos e custos concentrados


1 2 3 4 5 Total
Benefícios 10 10 10 10 10 50
Custos 30 30 60
B-C -20 -20 10 10 10 -10

Benefícios concentrados e custos difusos


1 2 3 4 5 Total
Benefícios 7 7 7 21
Custos 5 5 5 5 5 25
B-C -5 -5 2 2 2 -4

2
Estes dois exemplos mostram como uma regra democrática, no caso a maio-
ria simples, pode dar origem a um resultado algo paradoxal. Na verdade, outros
paradoxos são relevantes na matéria, nomeadamente o paradoxo de Condorcet
(em homenagem ao nome de quem o terá apresentado em primeiro lugar). Na
verdade o paradoxo de Condorcet não é o único a colocar-se nestas questões da
escolha colectiva. Ainda antes deste ter sido apresentado por Condorcet, um ou-
tro autor francês, Borda, apresentou um outro paradoxo, o qual ficou conhecido,
precisamente, por paradoxo de Borda, que se ilustra de seguida.
Ordem 1 votante 7 votantes 7 votantes 6 votantes
1.a A A B C
2.a B C C B
3.a C B A A
Conforme é evidente, a opção A é a preferida por mais votantes, ou seja 8. É,
no entanto, também a opção mais detestada pela maioria dos votantes, i.e por 13.
O mesmo se poderia concluir com este outro exemplo:

Ordem 4 votantes 5 votantes 2 votantes 6 votantes 3 votantes 4 votantes


1.a A A B B C C
2.a B C A C A B
3.a C B C A B A
Por sua vez, o paradoxo de Condorcet chama a atenção que o ‘ciclo de votações’
torna intransitivas as escolhas colectivas. Por exemplo:
Ordem Classe A Classe B Classe C
1.a Piscina Jardim Escola
2.a Jardim Escola Piscina
3.a Escola Piscina Jardim
Conforme é evidente, ao confrontar-se a escolha da Piscina com a do Jardim, as
classes A e C preferem a piscina ao jardim. Ao confrontar-se a escolha do Jardim
com a da Escola, as classes A e B preferem o jardim à escola. Assim, em termos
transitivos, a piscina deveria ser preferida à escola, mas, de facto, não o é, porque
as classes B e C preferem a escola ao jardim.
Note-se que não se deve confundir o paradoxo de Condorcet com o critério de
Condorcet, o qual afirma que se houver uma proposta que ganhe em todos os con-
frontos par-a-par deverá ser a escolhida.1 Vejamos uma aplicação deste critério.
votantes 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
1.o lugar A A B C A B C B C A
2.o lugar B C C A C C A C A C
3.o lugar C B A B B A B A B B
1
De facto, o paradoxo de Condorcet caracteriza-se pela inexistência de um vencedor à Condor-
cet.

3
Este quadro pode ser condensado no seguinte:
votos 1 3 3 3
1.o lugar A A B C
2.o lugar B C C A
3.o lugar C B A B
De acordo com o método da pluralidade, ganha a proposta que tiver mais vo-
tos em 1.º lugar. De acordo com este método, ganharia a proposta A. Todavia, a
comparação par-a-par mostra que, efectivamente, 4 em 10 preferem a proposta A
à proposta C, mas que, obviamente, 6 em 10 preferem a proposta C à proposta A.
O critério de Condorcet pretende ser um critério de justiça. Assim, a proposta C
é preferível à proposta A e é, também, preferível à proposta B, já que, 6 em 10 vo-
tantes a preferem, em relação a B. Logo, de acordo com aquele critério, a proposta
C deverá ser a escolhida.
Tal como atrás se referiu, o paradoxo de Condorcet associa-se ao teorema de
Arrow.
Em termos mais rigorosos, o teorema de Arrow afirma que “Não há forma de
passar das preferências individuais para as preferências colectivas”, sem que se
viole, pelo menos uma, das seguintes condições, perfeitamente aceitáveis/desejá-
veis:
• Postulado de Pareto – As preferências sociais devem valorizar mais os me-
lhoramentos de Pareto;
• Inexistência de ditadura – As preferências sociais devem reflectir as prefe-
rências de todos e não somente de um (único) indivíduo;
• Racionalidade das preferências – As preferências devem respeitar o princí-
pio da transitividade;
• Domínio irrestrito das preferências – Por exemplo, da mesma forma que
se admite que alguém prefira despesa pública em saúde ou educação a des-
pesa em defesa nacional, não se pode, à partida, impedir que outro alguém
prefira despesa pública em defesa nacional do que em saúde ou educação;
• Independência em relação às alternativas irrelevantes – Se, em termos so-
ciais, X é preferível a Y, esta preferência não se deve alterar se se introduzir
ou eliminar uma alternativa Z.
Por outras palavras, o teorema de Arrow afirma que, salvo raras excepções, não
há nenhuma regra de escolha colectiva que satisfaça, simultaneamente, aquelas 5
condições. Este resultado parece suscitar dúvidas sobre a possibilidade de se pro-
ceder à escolha colectiva, por via da dificuldade/impossibilidade de se agregarem
as preferências individuais numa única que traduza, fielmente, os interesses co-
lectivos. Conforme iremos ver, no próximo ponto, nem sempre é impossível re-
solver o problema da escolha colectiva, tal como acontece quando se aplica o, cha-
mado, teorema do votante/eleitor mediano.

4
3.2 Análise de Alguns Tipos de Votação
Eventualmente, a primeira referência à melhor regra de votação, como suporte à
escolha colectiva, foi feita por Wicksell, em princípios do século XX, o qual de-
fendeu o uso da regra da maioria qualificada em problemas de afectação. Mais
tarde, Buchanan & Tullock (1962) formalizaram o problema de acordo com a Fi-
gura 1 [cf. Pereira et al. (1992: 95)]. De acordo com a proporção de votantes que é
necessária para a aprovação de uma determinada opção – em que 0% = 0 repre-
sentaria a ditadura e 100% = 1 a unanimidade – existirão custos, ditos de decisão,
os quais aumentam com aquela proporção, e custos, ditos externos, que serão os
suportados pelos votantes que saem derrotados, os quais diminuem com aquela
proporção.2
Querendo determinar a proporção que minimize a soma dos dois custos, há
que determinar o ponto em que a curva dos custos totais (i.e. de decisão + externos)
atinge o seu mínimo, tal como se pode verificar na Figura 1.

Custos externos
Custos de decisão
Custos totais
Custos

0 0.2 0.4 0.6 0.8 1


Proporção

Figura 1: Os custos externos e de decisão

Os custos externos chamam a atenção que as regras de votação podem ter im-
plicações sobre a eficiência ou sobre a equidade.
Em relação aos problemas de redistribuição, quanto maior o número de votos
favoráveis à aprovação de uma mudança (em relação ao status quo), mais difícil é a
sua aprovação. A propósito desta questão, considere-se a Figura 2, [cf. Pereira et
al. (1992: 95)].
2
Por exemplo, se se tratar da unanimidade, será, em princípio, esta a situação que poderá envol-
ver mais tempo na tomada de decisão, logo maiores custos de decisão, mas será também aquela em
que, em princípio, não haverá derrotados, logo os custos externos deverão alcançar o seu nível mais
baixo.

5
UB

Y
X

Status Quo

0 UA

Figura 2: Regras de decisão e de bem-estar de duas classes sociais, A e B

Em relação à Figura 2, X e Y seriam aprovadas por A e B, por serem ambas me-


lhores, para ambas as classes, que o status quo, mas Z somente seria aprovada por
B. Se esta classe for mais numerosa, poderia Z ser aprovada, mas se não for, então,
uma situação mais eficiente pode, assim, ser reprovada. Também, o confronto en-
tre X e Y mostra que Y é mais eficiente (que X), mas, de facto, pode ser aprovada a
situação X se a classe social A for mais numerosa (que a classe social B).
O teorema do eleitor/votante mediano afirma que:

• Se a escolha colectiva for realizada utilizando a regra da maioria absoluta;

• Se todos os eleitores/votantes tiverem preferências uni-modais [por tradu-


ção de single-peaked];

• Se a escolha colectiva incidir sobre um problema uni-dimensional, i.e. exis-


tindo uma única variável;

então o resultado da escolha colectiva coincidirá com a escolha do eleitor/votante


mediano, i.e. aquele cujo valor ideal (para aquela variável) assume a posição me-
diana em relação aos valores ideais de todos os eleitores/votantes.
Considere-se o seguinte exemplo de aplicação do teorema do eleitor/votante
mediano.
Considerem-se 5 votantes, cada um com um valor ideal de despesa pública,
G̃1 , G̃2 , G̃3 , G̃4 e G̃5 , tais que o nível de utilidade de cada um dos votantes decresce
à medida que o nível de despesa pública se afasta do seu valor ideal, G̃i , tal como
se mostra na Figura 3.

6
Utilidade

G̃ Despesa Pública

Figura 3: As preferências dos votantes

Por hipótese, admita-se que G̃1 < G̃2 < G̃3 < G̃4 < G̃5 .
Suponha-se agora que se colocam à votação dois níveis de despesa pública, GA
e GB (sendo GB > GA ), de tal forma que GB está mais próximo de G̃3 do que GA
está. Neste caso, obviamente, haverá 3 votos a favor de GB e 2 a favor de GA . Pode
concluir-se, então, que o votante mediano é o determinante.
Veja-se, para terminar, uma aplicação do teorema do eleitor/votante mediano,
tendo por base as votações em bens públicos financiados diferenciadamente.3
Admita-se que cada votante votará no nível de despesa pública que lhe ma-
ximiza os benefícios líquidos, ou seja no ponto onde os benefícios marginais são
iguais aos custos/sacrifícios marginais, tal como mostra a Figura 4 [cf. Pereira et
al. (1992: 106)].
3
Note-se que as figuras que se seguem não devem ser entendidas como perfeitamente rigorosas,
do ponto de vista matemático, porque não se dispõe do conhecimento do valor da utilidade, se Q = 0
– por isso mesmo não se apresenta a sua escala, nem a origem dos eixos – mas, obviamente, são
suficientemente rigorosas para ilustrar a questão em análise.

7
SM g; BM g

SM g

BM g

Q

Figura 4: O voto individual na despesa pública

Admita-se, agora, que o bem público é financiado através de uma tributação


uniforme, ou de um imposto per capita. Tal como em Trigo Pereira et al. (2012:
106-108), admita-se que os benefícios marginais são iguais e que os sacrifícios
marginais são distintos, conforme mostra a Figura 5 [cf. Pereira et al. (1992: 107)].

8
SM g; BM g
SM gP

SM gM

SM gR

BM g

Q
Q˜P Q˜M Q˜R

Figura 5: O voto na despesa pública com tributação uniforme

Admita-se, agora, que o bem público é financiado através de uma tributação


proporcional e progressiva, cujo objectivo é o de aproximar os sacrifícios margi-
nais. Tal como em Trigo Pereira et al. (2012: 108-109), admita-se que os sacrifícios
marginais são iguais e que os benefícios marginais são distintos, conforme mostra
a Figura 6 [cf. Pereira et al. (1992: 109)].

9
SM g; BM g

SM g

BM gP

BM gM

BM gR
Q

Q
Q˜R Q˜M Q˜P

Figura 6: O voto na despesa pública com tributação proporcional e progressiva

Finalmente, uma hipótese ideal seria a de todos os indivíduos terem como va-
lor ideal de quantidade de bem pública a mesma. Tal obrigaria a que os benefícios
e sacrifícios marginais fossem distintos, de indivíduo para indivíduo, o que se po-
deria obter com os chamados imposto à Lindhal, conforme se mostra na Figura 7
[cf. Pereira et al. (1992: 111)].

10
SM g; BM g

SM gP

SM gM
BM gP
SM gR
BM gM

BM gR
Q

Q
Q˜R = Q˜M = Q˜P

Figura 7: O voto na despesa pública com tributação proporcional à Lindahl

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