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Eixo V

Comunicação Breve
O período de latência e a cultura contemporânea

José Outeiral
Membro Titular, Didata, da SPP

Enunciado
Sigmund Freud ao estudar (1905) o desenvolvimento da libido definiu o conceito
de “período de latência”. Este conceito é, sem dúvida, um elemento importante
para a psicanálise e faz parte do corpo teórico e clínico que instrumenta nossa
atividade. Uma questão, entretanto, me tem feito pensar: Estará a cultura
contemporânea, chamada por alguns de “alta modernidade” e por outros de “pós-
modernidade”, produzindo elementos que incidindo sobre o “período de latência”
causam ‘turbulência” e modificam esse conceito e a própria clínica, parcialmente
ou, mesmo, de forma significativa? Teria a cultura tal influência? Será necessário
recontextualizar esse conceito de “período de latência”?

Uma observação clínica


Uma observação passível de ser feita é de que a adolescência tem sofrido uma
expansão além dos limites em que habitualmente é conceituada, invadindo o
período de latência. A Organização Mundial da Saúde define a adolescência como
o período compreendido entre 10 e 15 anos e o Estatuto da Criança e do
Adolescente entre 12 e 18 anos. A observação clínica que faço e o que percebo
na sociedade, e nisso penso que não estou só, é que encontro, hoje, crianças,
com 7, 8 ou 9 anos “adolescendo”, com, por exemplo, interesses fortes na
sexualidade genital e contestando com vigor as normas e combinações da família
e/ou da escola. A seqüência “latência”, “puberdade” e, então, ”adolescência” não é
sempre encontrada. Desde que comecei a clinicar com crianças e adolescentes na
década de setenta, há três décadas portanto, pude fazer algumas observações
que quero compartir com os colegas. Na década de setenta a puberdade,
entendida como fenômeno biológico, era sucedida pela adolescência, fenômeno
psicológico e social. Na década de oitenta os dois processos pareciam ocorrer
simultaneamente. Na última década , entretanto, uma situação nova começou a se
evidenciar num “adolescer” antecedendo a própria puberdade. Que efeitos essas
circunstâncias poderão causar no “período de latência”? Há pouco tempo, em
conversa com uma mãe, ela me relatou que sua filha de 5 anos não queria ir para
a pré-escola sem soutien, já que a maioria de suas colegas estavam usando esta
peça de vestuário, evidentemente sem apresentar as manifestações corporais da
puberdade. Escuto no consultório como os pais de crianças ainda na pré-escola
falam dos “namorados” de seus filhos. Uma menina de oito anos, com um
funcionamento neurótico e com um bom nível de integração, em uma sessão,
disse que “gostava de mim” e que queria ter na sala de aula um namorado
parecido comigo: a fala, entretanto, parecia de uma adolescente de 15 anos,
desde a minha escuta. Uma precocidade percebida como inadequada.
Evidentemente que reconheço a transferência em crianças pequenas e nas que se
encontram no período de latência. Identifico que na latência o mecanismo de
repressão, resultado do encaminhamento da experiência edípica e da estruturação
do superego, leva a demanda instintiva, ao menos em parte, à sublimação, à
pulcritude, à moralidade, a um sentimento de vergonha, dentre outros
mecanismos, o que nos leva a utilizar a denominação “latência” para designar
esse período. Não que a atividade pulsional esteja ausente, o que seria
impossível, mas transformada e mantida, até a puberdade em razoável grau de
estabilidade e controle. Freud (1924) , em “A Dissolução do Complexo de Édipo”é
explícito ao escrever que “... não tenho dúvida de que de que as relações
cronológicas e causais, aqui descritas, entre a dissolução do complexo de Édipo ,
a ameaça sexual ( castração ), a formação do superego e o começo do período de
latência são de um gênero típico; porém, não desejo asseverar que esse tipo seja
o único possível. Variações na ordem cronológica e na vinculação desses eventos
estão fadadas a ter uma influência muito importante no desenvolvimento do
indivíduo”. A leitura desse escrito deve nos levar a uma reflexão e, talvez, a uma
recontextualização do conceito de “período de latência”.

A infância, a adolescência e a cultura contemporânea


Freud não escreveu o termo “adolescência” e sim “puberdade” ou “juventude”, já
que o idioma alemão, de sua época, não incluía essa palavra. Maud Mannoni
escreve que em língua francesa quem utilizou pela primeira vez o termo
“adolescência” foi Vitor Hugo, no final do século dezenove. A adolescência, para
alguns autores, se evidencia e adquire um estatuto psico-social, no período
compreendido entra as duas grandes guerras mundiais, 1918 e 1939. Até então a
passagem da infância ao mundo adulto acontecia em um curto espaço de tempo,
através dos rituais de iniciação. Considerando, por outro lado, que a infância –
como período de desenvolvimento, com necessidades e direitos específicos – não
tem mais de trezentos anos, sendo resultado (como a própria psicanálise) da
modernidade e do iluminismo, somos levados a refletir sobre a inserção da
infância e da adolescência no contexto da cultura contemporânea. Não devemos
esquecer a idéia transmitida por Freud ao desenvolver o conceito de séries
complementares (ou equação etiológica), enfatizando a formação da
personalidade como resultado de fatores constitucionais e sociais (vivência infantis
e situação atual). Nessa linha de pensamento a cultura incide, sim, no
desenvolvimento e nos processos maturacionais.
A cultura contemporânea, particularmente nos grandes centros urbanos, promove
– por exemplo – uma erotização genital no universo da infância (através, por
exemplo, da sociedade de consumo e da mídia ) que propicia a oportunidade de
um adolescer mais precoce e, por conseqüência um “encurtamento” ou uma
“turbulência” no período de latência. Os processos psíquicos da adolescência,
desencadeados antes da à puberdade, tumultuam o período de latência, levando
a dificuldades de aprendizado e na organização de aspectos éticos e morais.
Freud (1905) é explicito quanto aos aspectos das “influências externas” sobre a
latência, ao escrever “...a experiência mostrou ainda que as influências externas
de sedução são capazes de provocar interrupções do período de latência ou
mesmo seu término, e que, nesse sentido, o instinto sexual das crianças se revela
na verdade perverso e polimorfo; parece, além do mais, que qualquer atividade
sexual prematura diminui a educabilidade da criança”. A “sedução” vista hoje não
só como acontecendo no espaço doméstico, mas, também, como interferência da
cultura e da sociedade. Quando escrevo “cultura contemporânea” me refiro,
evidentemente, e no caso específico de crianças e adolescentes, não apenas à
sociedade em geral, mas, também, às estruturas familiares.

Comentários
Essas considerações que trago para a discussão, buscando as contribuições
freudianas, me levam a pensar que várias configurações clínicas que observamos
hoje podem ter relação com as rápidas e bruscas mudanças da cultura.
É possível, e não estou sendo original nessa idéia, de que estamos presenciando
uma pressão para a “desinvenção” de uma parte importante da infância, no caso
específico o “período de latência”. Para uma outra ocasião, mas no mesmo
sentido, poderá ser interessante discutir a expansão da adolescência que produz
o fenômeno da “adultescência”, condição que revela o desejo de uma parte
importante do mundo adulto, ocidental, urbano e contemporâneo, de “ser” ou ao
menos “parecer ser” adolescente. A mídia refere também aos “kidadults”,
indivíduos que cronologicamente são adultos, mas buscar vestir-se e portar-se
como crianças. Faltará, dessa maneira, adultos com que os adolescentes possam
estabelecer suas necessárias (e estruturantes) identificações.

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