Você está na página 1de 168

Copyright © 2021 by Zulmar Fachin Rene Sampar

Categoria: Direito Constitucional


Produção Editorial Livraria e Editora Lumen Juris Ltda.

Conversão Epub: Rosane Abel Diagramação: Patricia Castillo


A LIVRARIA E EDITORA LUMEN JURIS LTDA.
não se responsabiliza pelas opiniões emitidas nesta obra por seu Autor.
É proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, inclusive quanto
às características gráficas e/ou editoriais. A violação de direitos autorais constitui crime
(Código Penal, art. 184 e §§, e Lei nº 6.895, de 17/12/1980), sujeitando-se a busca e
apreensão e indenizações diversas (Lei nº 9.610/98).

Todos os direitos desta edição reservados à Livraria e Editora Lumen Juris Ltda.

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
F139t Fachin, Zulmar
Teoria do Estado / Zulmar Fachin, Rene Sampar. – 6. ed. – Rio de Janeiro :
Lumen Juris, 2021.
Inclui bibliografia.
Epub 1225kb
ISBN 978-65-5510-835-4
1. Direito e política. 2. Democracia. 3. Direito constitucional. 4. Estado. 5.
Teoria do Estado. I. Sampar, Rene. II. Título. III. Série.
CDD 342
Ficha catalográfica elaborada por Ellen Tuzi CRB-7: 6927
“Ele não é território, nem população, nem
corpo de regras obrigatórias. É verdade
que todos esses dados sensíveis não
lhe são alheios, mas ele os transcende
. Sua existência não é pertencente à
fenomenologia tangível: é da
ordem do espírito. O Estado é, no sentido pleno
do termo, uma ideia. Não tendo outra
realidade além da conceptual, ele só
existe porque é pensado”.
Georges Burdeau. O Estado.
Sumário

Prefácio
Capítulo I - O Estado
1. Origem do Termo
2. Conceito
3. Elementos
3.1 Território
3.2 Povo
3.3 Soberania
3.4 Finalidade
Conclusões
Capítulo II - Origem, Formação e Extinção do Estado
1. Origem do Estado
1.1 Teoria da Origem Familiar
1.2 Teoria da Origem Patrimonial
1.3 Teoria da Força
1.4 Teoria da Origem Contratual
2. Formação e Extinção do Estado
Conclusões
Capítulo III - Afirmação Histórica do Estado
1. Estado Antigo
2. Estado Grego
3. Estado Romano
4. Estado Medieval
5. Estado Moderno
Conclusões
Capítulo IV - Modelos de Estado
1. Estado Absoluto
2. Estado Civil
3. Estado Liberal
4. Estado Social e de Bem-Estar
5. Estado Democrático de Direito
6. Estado Total
7. Estado Totalitário
Conclusões
Capítulo V - Formas de Estado, Formas de Governo e Sistemas de Governo
1. Formas de Estado
1.1 Estado Unitário
1.2 Estado Regional ou Autônomo
1.3 Estado Federal
2. Formas de Governo
2.1 Monarquia
2.2 República
2.3 Despotismo ou Tirania
2.4 Aristocracia
2.5 Oligarquia
3. Sistemas de Governo
3.1 Presidencialismo
3.2 Parlamentarismo
3.3 Diretorial
3.4 Conselhos
Conclusões
Capítulo VI - O Poder Constituinte
1. Poder Constituinte: Fazer e Alterar a Constituição
2. Poder Constituinte e Poderes Constituídos
3. Poder Constituinte Originário
3.1 Noção
3.2 Natureza
3.3 Titular
3.4 Agente
3.5 Formas de Manifestação
3.6 Características
4. Poder Reformador
4.1 Noção
4.2 Natureza
4.3 Titular
4.4 Agente
4.5 Formas de Manifestação
4.6 Características
5. Poder Constituinte Decorrente
6. Poder Constituinte e Poder Judiciário
7. Poder Constituinte Transnacional
Conclusões
Capítulo VII - Estado e Direito
1. Jusnaturalismo
2. Juspositivismo
2.1 Escolas Histórica e Exegética do Direito
2.2 O Estado e a Teoria Pura do Direito
2.3 Jurisprudência dos Conceitos, dos Interesses e dos Valores
3. Ascensão da Constituição Democrática
Conclusões
Capítulo VIII - A Separação dos Poderes
1. A Limitação do Poder Como Característica do Estado Moderno
2. Formulações Teóricas da Separação dos Poderes
2.1 A Contribuição de Aristóteles
2.2 A Contribuição de John Locke
2.3 A Contribuição de Montesquieu
2.4 A Contribuição dos Federalistas
Conclusões
Capítulo IX - Democracia
1. Origem e Conceitos
2. Democracia dos Antigos e dos Modernos
3. Democracia Direta, Semidireta e Representativa
4. Partidos Políticos
5. Sufrágio
6. Vantagens da Democracia e suas Promessas Não Cumpridas
Conclusões
Referências
Prefácio

O livro dos professores Zulmar Fachin e Rene Sampar, por sua temática,
mas, além disso, pela riqueza e precisão de informações sobre a caminhada da
humanidade até chegar ao conceito de Estado, fornece elementos para o
conhecimento preciso da motivação que gerou a necessidade de conceituar o
Estado. Sobre essa questão de fundamental importância, são aqui referidas as
principais colocações teóricas e as circunstâncias políticas e sociais que
levaram Maquiavel, em 1513, a colocar em sua obra máxima, “O Príncipe”,
esta conclusão clara e objetiva, aqui registrada: “Todos os Estados, os
domínios todos que já houve e que ainda há sobre os homens foram e são
repúblicas ou principados”.
A partir dessa conclusão de Maquiavel muitas produções teóricas
aprofundaram o tema, gerando um grande número de teorias, que, com
maior ou menor força, exerceram e continuam exercendo grande influência
nas reflexões sobre o Estado e em sua conceituação. Nesta obra está contido o
registro dessa evolução, com indicação precisa de autores e teorias, podendo-
se afirmar que aqui se encontra o essencial para o conhecimento do Estado e
das implicações das mais influentes conceituações. Assim é que no Capítulo
IV é feita a síntese das mais importantes e influentes concepções sobre os
modelos de Estado, analisando-se as concepções dos seguintes modelos
“Absoluto, Civil, Liberal, Social e de Bem-Estar, Democrático de Direito e
Totalitário”. Tudo isso tem base na evolução histórica e nesta obra estão feitos
os registros teóricos essenciais para a compreensão dessas diferentes
concepções.
A par disso, nesta obra é dedicado um capítulo especial ao exame do
conceito de Poder Constituinte, que é de fundamental importância para que
se chegue à moderna concepção de “Estado de Direito”. E sobre esse aspecto
do Estado existe também aqui uma análise rica e objetiva. Assim é que no
capítulo VII, no qual se estuda a ligação entre Estado e Direito, dedica-se
especial atenção à corrente teórica identificada como “Jusnaturalismo”, para
em seguida fazer-se o estudo do modelo teórico que o sucedeu, que foi o
“Juspositivismo”, culminando com o surgimento do “Estado Democrático”.
Mais adiante, já nas considerações sobre o Estado Democrático, são
registrados os avanços de fato e teóricos, que foram sintetizados na teoria da
“Separação dos Poderes”. Tratando desse tema, esta obra vai às origens
históricas, registrando as colocações de Aristóteles, Locke e Montesquieu.
Desse modo, o que se tem aqui, em relação a esse ponto, é um verdadeiro e
sintético caminhar pela história, enriquecendo os conhecimentos e
fornecendo elementos para reflexões teóricas.
Finalmente, mais um ponto altamente positivo desta obra, que merece ser
aqui destacado, é o relacionamento das noções de Estado e de suas variantes
com as modernas exigências de Democracia. Na realidade, essa temática
recebeu especial atenção nesta obra, que é mais do que uma síntese da “Teoria
do Estado”, pois todo o capítulo IX é dedicado ao estudo e à análise, com
citações oportunas e muito precisas dos mais importantes autores, do Estado
Democrático, indo às fontes históricas dessa concepção. Assim é que, depois
de se fazer o exame comparativo da “Democracia dos Antigos e dos
Modernos” é feita, também com muita precisão, a análise das diferentes
formas de Democracia hoje registradas pelos teóricos do Estado e do Direito,
assim como pelos teóricos políticos. Essas formas, como aqui exposto, são a
Democracia Direta, a Semi-Direta e a Representativa. E quanto a esse ponto é
feita ainda uma análise crítica da Democracia considerando suas vantagens e,
no plano dos fatos, ressaltando aquilo que aqui se denomina “suas promessas
não cumpridas”.
Por tudo o que foi exposto, pode-se afirmar que esta obra é um magnífico
e substancioso estudo do Estado, extremamente valioso para quem deseje não
só o conhecimento do Estado e de seus aspectos particulares, mas também
para que se possa avaliar, com fundamento em dados históricos e teóricos,
quais os desafios para a implantação efetiva do “Estado Democrático de
Direito”, qualificativo constitucional do Estado brasileiro.

São Paulo, julho de 2019.

Dalmo de Abreu Dallari


Professor titular e livre-docente de Teoria Geral do Estado da Faculdade de
Direito da Universidade de São Paulo - USP.
I
O Estado
1. Origem do Termo. 2. Conceito. 3. Elementos. 3.1 Território; 3.2 Povo; 3.3
Soberania; 3.4 Finalidade. Conclusões.

O Estado, realidade complexa, está presente na vida de cada pessoa. Pode


representar a salvaguarda dos valores mais caros, mas, ao reverso, pode-se
constituir também no “carrasco” que suprime ideais, sonhos e promove
genocídios.
O Estado é onipresente, embora nem sempre isto seja perceptível. Nas
palavras de Georges Burdeau1, jamais alguém viu o Estado, mas não se pode
negar que ele é uma realidade. O lugar que ocupa em nossa vida cotidiana é
de tal ordem que ele não poderia ser daí retirado sem que, ao mesmo tempo,
ficasse reduzida a nossa possibilidade de viver. Por ser produto da mente
humana, ele comporta todas as nossas paixões: é generoso ou somítico,
engenhoso ou estúpido, cruel ou complacente, discreto ou abusivo.
Já se pode notar, então, que o Estado desempenha uma complexa gama de
atividades. O homem nasce preso em seus laços e dele não tem o condão de se
emancipar. O Estado, assim, é um ente abstrato, mas encarna uma
personalidade jurídica. Distingue-se de outras organizações e corporações,
por suas características ímpares, como o fato de possuir funções exclusivas
dentro do território de sua jurisdição, além de não precisar de autorização,
mas tão somente reconhecimento de outras organizações de natureza
semelhante à sua, bem como dispor de poder coativo na consecução de suas
políticas e desideratos.
Perre Gaxotte, contemplando o Estado francês, em página feliz resgatada
por Darcy Azambuja2, tece o horizonte pelo qual, livre e soberbo, o Estado
transita: a autoridade estatal aparece sob os traços de um funcionário que é
investido dos mais amplos direitos e poderes, inclusive o de nos transformar
em combatentes para enfrentar situações que podem custar nossas vidas.
Transita Carl Schmitt3 por esta mesma linha, ao dizer que o Estado, como
possuidor do jus belli, concentrou em si poder considerável de exigir do povo
prontidão para matar e morrer pela sua causa.
O Estado é essa realidade multifacetária, que pode interferir na vida de
cada pessoa sob as mais variadas formas. Ainda nas palavras de Gaxotte4,
“não podemos dar um passo sem que ele seja avisado e encontre pretexto para
intervir. Um milhão de franceses, pelo menos, estão a serviço dele, dois ou
três milhões são pensionados por ele, e outros aspiram ao mesmo”. A lição do
escritor francês nos leva a refletir se ainda existe o Leviatã referido por
Thomas Hobbes, um dos teóricos do absolutismo, que concebia o Estado
como um deus mortal, acima do qual somente existia outro Deus: o imortal.
Enfim, constitui-se em uma realidade complexa. Estudá-lo para lhe
compreender, interpretá-lo para reconhecer a sua gnose, perscrutar seus
alicerces de modo a vislumbrar a sua finalidade sempre em transformação: eis
uma necessidade cada vez mais premente, que deve ser compartilhada. Mas
não basta estudá-lo. É preciso ter sensibilidade para captar essa obra que o
sentir humano engendrou. Rousseau5, ao tratar da morte do corpo político,
afirmou de maneira lapidar: “A constituição do homem é obra da natureza; a
do Estado, obra de arte”.

1. Origem do Termo
Estado, do latim status, significa condição, posição, ordem. O emprego da
palavra Estado, como sinônimo de sociedade política, é recente. Data de 1513.
Quem se encarregou de lhe propagar foi Maquiavel6, ao iniciar a sua mais
notável obra, O Príncipe: “Todos os Estados, os domínios todos que já houve
e que ainda há sobre os homens, foram, e são, repúblicas ou principados”.
Estava consagrada a expressão. A partir daí, passou-se a falar em État francês,
State inglês, Stato italiano, Staat alemão, Estado português, entre outros.
Mas a ideia de Estado como forma de organização política é mais antiga. A
polis dos gregos e a civitas ou a res publica dos romanos já traduziam a
concepção essencial de Estado. Durante o Império Romano, em sua fase de
expansão, e mais tarde entre os germânicos invasores, os vocábulos imperium
e regnum também passaram a exprimir a noção de Estado, nomeadamente
como organização de domínio e poder.
Aqui se faz necessário um esclarecimento. Quando se fala em Estado,
tornou-se usual fazer remissão ao Estado nacional moderno. Alguns
estudiosos do tema, como Martin Van Creveld7, tendem a considerar que,
antes da Revolução Francesa de 1789 e da Revolução Americana de 1776,
podem ser identificados governos, mas não Estados. Sob esta perspectiva, não
houve, portanto, um Estado grego, mas um governo grego; não houve um
Estado romano, mas um governo romano. Ao longo deste livro, não
adotaremos esta diferenciação. Utilizaremos apenas o vocábulo Estado em
referência a todo tipo de organização político-governamental que disponha
de território, povo, soberania e finalidade.

2. Conceito
Há uma pluralidade de autores que procuraram conceituar o Estado. Em
razão disso e da complexidade do tema, a divergência é acentuada8. Após
constatar a diversidade de conceitos, Dalmo de Abreu Dallari9 observa duas
orientações fundamentais: uma baseada na noção de força e outra que toma
por base a natureza jurídica do Estado.
No conceito de Estado ligado à força não está ausente a preocupação
jurídica, mas o Estado é visto, antes de mais nada, “como força que se põe a si
próprio e que, por suas próprias virtudes, busca a disciplina jurídica”. Nesta
linha, o Estado pode ser conceituado como “força material invisível, mas
limitado e regulado pelo direito” (León Duguit); “unidade de dominação”
(Heller); “institucionalização do poder” (Burdeau); “monopólio do poder”
(Gurvitch) e “monopólio da força legítima” (Max Weber).
Outras teorias, porém, abordam o tema sob o ponto de vista da natureza
jurídica do Estado. Por esta noção, não se ignora a força, mas se dá primazia
ao elemento político: tenta-se mostrar que todos os demais fatores (elementos
materiais) têm existência independente fora do Estado e só se compreendem
como componentes do Estado após sua integração em certa ordem jurídica. O
Estado é tido como uma organização. E, como organização precipuamente de
pessoas, o Estado passou a ser uma corporação dotada de território e governo.
Após essas observações, Dallari10 conceitua o Estado como “ordem
jurídica soberana que tem por fim o bem comum de um povo situado em
determinado território”. Nota-se que o autor destaca a finalidade (ou seja, o
bem comum) que, para ele, constitui-se em elemento do Estado. Tal
concepção designada por Dalmo de Abreu Dallari não assume o modelo de
uma unidade política e soberana de Estado que foi designado no Tratado de
Vestfália de 1648, indo além ao dispor sobre um elemento teleológico
(finalístico) que constitui, na visão de Dalmo Dallari, a essência estatal.
Nos últimos quatro séculos, diversas concepções se desenvolveram para
identificar a natureza do Estado. Citem-se, a partir de Jorge Miranda11, as
correntes dos idealistas (o Estado como finalidade para algo) e dos realistas (o
Estado como mera existência temporal), dos objetivistas (o Estado como
realidade exterior humana) e dos subjetivistas (o Estado como parte das
relações humanas), dos atomistas (o Estado tido como conjunto de
indivíduos) e dos organicistas (o Estado é uma entidade específica ou com
vontade própria), dos contratualistas (o Estado como produto da vontade
humana) e dos institucionalistas (o Estado como sentido ou instituição), dos
monistas (o Estado como titular do poder político) e dos dualistas (o Estado
como instrumento dos verdadeiros donos do poder), dos normativistas (o
Estado como realidade normativa) e dos não normativistas (o Estado não
redutível às normas jurídicas, isto é, segundo uma visão sociológica).

3. Elementos
Tornou-se tradicional entre os pensadores afirmar que os elementos
constitutivos do Estado são três: território, povo e soberania. Têm sido
acrescentados outros atributos, e é neste sentido que variam as interpretações.
Assim, Anthony Giddens12 aduz que um Estado é possível onde há um
arquétipo político (instituições governamentais, administrativas e políticas),
que governa sobre um dado território, possuindo autoridade sustentada por
um sistema legal e dispõe de capacidade de usar a violência de modo a
implementar suas políticas.
Tal conceito é compartilhado por Norberto Bobbio13. Para este autor, “do
ponto de vista de uma definição formal e instrumental, condição necessária
para que exista um Estado é que sobre um determinado território se tenha
formado um poder em condição de tomar decisões e emanar os comandos
correspondentes, vinculatórios para todos aqueles que vivem naquele
território e efetivamente cumpridos pela grande maioria dos destinatários na
maior parte dos casos em que a obediência é requisitada”.
No âmbito deste estudo, aceitar-se-á a finalidade como o quarto elemento.
Isto significa que o Estado deve possuir diretrizes que condicionam o seu agir
e existir, variando tais linhas mestras segundo cada autor e ideologia
governamental. Se o Estado possui uma finalidade, que coloca todo o aparato
estatal nos trilhos de uma teleologia comum, o Direito é o seu meio, ou seja, a
construção do Estado e o desenvolvimento de suas competências somente
podem ocorrer mediante regras, aprovadas mediante um critério
preestabelecido e publicadas para o conhecimento de todos.
Em outra palavras, o Estado de Direito, em suas peculiaridades geográficas,
é a estrutura que legitimamos – e lhe justificamos a existência – por creditar
ser a mais adequada para enfrentar os dilemas dos últimos séculos. Ele, neste
sentido, é realidade e promessa: é artifício humano que pretende canalizar o
poder do agir humano, mas também artífice de uma condição social que
possibilite a convivência mútua e coletiva.

3.1 Território
O primeiro elemento constitutivo do Estado é o território. Trata-se do
espaço físico onde o Estado se ergue, ou seja, a área sobre a qual incide o
poder estatal. Em termos jurídicos, é o locus no qual o Estado exerce a sua
jurisdição. A organização judiciária no Estado respeita este critério territorial
para distribuir competências, estabelecendo tribunais (nacionais, regionais e
estaduais), circunscrições judiciárias e comarcas.
A ideia de território, todavia, é mais ampla do que parece num primeiro
momento. Graças ao princípio da extraterritorialidade, além do território
propriamente dito, as normas jurídicas estabelecem extensões geográficas
fictícias como as embaixadas, os navios e aeronaves militares, o mar territorial
e o espaço aéreo14.
Thomas Fleiner Gerster15 lembra que o território é elemento valioso para a
Teoria do Estado, quando se pretende analisar um determinado contexto.
Assim, é correto afirmar que um país montanhoso se organiza de modo
distinto de um país com território plano; um país marcado por desertos
precisa lidar com problemas distintos de outro com florestas em abundância;
ilhas possuem organização peculiar, e um país continental como o Brasil
precisa lidar com determinadas questões que não constituem problemas para
a Eslovênia16, por exemplo.
É preciso pontuar que a divisão territorial dos países está em constante
transformação. No século XX, muitos países nasceram e outros deixaram de
existir, especialmente na Europa, que ainda hoje possui muitas regiões que
lutam por sua independência, como é o caso da Catalunha, na Espanha. Tais
movimentos separatistas podem ser vistos até mesmo no Brasil, como aquele
que busca seccionar os Estados do Sul (Paraná, Santa Catarina e Rio Grande
do Sul) para a formação de um país independente. É necessário que se diga,
porém, que este tipo de manobra é vedada pela ordem jurídica estabelecida na
Constituição de 1988. O caput do artigo 1º do texto constitucional disciplina
que a República Federativa do Brasil é formada pela união indissolúvel dos
Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Em igual medida, o artigo 60,
parágrafo 1º, inciso I, proíbe a emenda constitucional tendente a abolir a
forma federativa de Estado. Portanto, seria necessário um novo pacto
constitucional para a separação do território brasileiro.

3.2 Povo
O segundo elemento constitutivo do Estado é o povo, isto é, o conjunto de
indivíduos natos ou naturalizados possuidores de vínculos com o Estado em
razão de sua comum nacionalidade. Sem o povo, o Estado não existe, embora
possa haver povo sem Estado, como é o caso dos palestinos, dos bascos, dos
ianomâmis, dos curdos. Neste caso, denominam-se apátridas todos os povos
que estão nesta condição.
O conceito de povo tem suscitado divergências. Não raro, confunde-se
povo com nação ou com população. A ideia de povo é eminentemente
jurídica, pois se refere àqueles que outorgaram o poder para a Assembleia
Nacional Constituinte criar a sua Constituição e para os representantes
atuarem em prol do que ela instituiu. Por isto o vocábulo povo tem natureza
jurídica, em razão de ser competência do Direito estabelecer o vínculo povo-
Estado. Por sua vez, nação é utilizado de modo geral pela sociologia e envolve
valores como cultura, usos, costumes, tradições e ideais. Já o termo população
é um conceito demográfico e estatístico, em que se incluem todos os
indivíduos (nacionais, estrangeiros ou até apátridas) que estejam em
determinado território.
Em sentido político, a noção de povo compõe etimologicamente termos
usados há milênios, como república (res publica, que significa coisa do povo)
ou ainda democracia (demos kratia, autoridade exercida pelo povo). Registre-
se que a Constituição brasileira, em seu preâmbulo, fala em “representantes
do povo”. O artigo 1º, parágrafo único, afirma que todo o poder emana do
povo, que poderá exercê-lo por seus representantes ou diretamente, nas
hipóteses respaldadas pela própria Constituição.
Friedrich Müller17 lembra que esse é um daqueles termos usualmente
empregados, mas de complexa conceituação. Por essa razão, o autor aborda a
ideia de povo sob quatro aspectos: a) como povo ativo, que é o conjunto de
cidadãos natos que podem exercer o sufrágio e eleger os representantes de seu
Estado; b) como instância global de atribuição de legitimidade, que é o
sentido de cidadão conferido desde a formação do Estado moderno liberal; c)
como ícone, cujo desiderato é utilizar o termo povo como justificação a
determinadas políticas e teorias de justiça em que se estabelece um conceito
standard de povo, sem levar em conta as inúmeras diferenças entre as pessoas
e os grupos; d) e como destinatário das pretensões civilizatórias do Estado,
cujo critério de aferição é a garantia dos direitos humanos.
As três primeiras espécies possuem sentidos excludentes, ao menos pelo
fator da nacionalidade. O quarto aspecto é o mais abrangente, pois seu
critério de aferição é a humanidade que existe em cada pessoa, seja nacional,
estrangeiro ou apátrida. Ao demonstrar quão ampla pode ser a noção de
povo, Müller conclui que deve ser buscada uma interpretação na qual tal
conceito abranja o maior número de pessoas. Isso é necessário para que os
direitos humanos sejam concretizados, condição imprescindível para a
legitimidade de qualquer democracia.
Vinculada ao referido tema, uma questão de repercussão global é a
apatridia, isto é, grupos ou etnias que não são reconhecidos como nacionais
por nenhum país. Hannah Arendt, importante pensadora política do século
passado, destacou que os apátridas despontaram no século XX como um
novo grupo humano, a despeito de sua existência ter sido ignorada até então.
Nas palavras de Arendt18: “Desprovidos de importância, aparentemente
apenas uma anomalia legal, o apátrida recebeu atenção e consideração tardias,
quando, após a Segunda Guerra Mundial, sua posição legal foi aplicada
também aos refugiados que, expulsos de seus países pela revolução social,
eram desnacionalizados pelos governos vitoriosos”.
Conforme apontou a pensadora, o tema adquiriu relevância apenas a partir
de 1951, quando foi adotada uma Convenção pela Conferência das Nações
Unidas de Plenipotenciários sobre o Estatuto dos Refugiados e Apátridas,
convocada pela Resolução n. 429 (V) da Assembleia Geral das Nações Unidas,
de 14 de dezembro de 1950. A apatridia constitui ainda hoje uma anomalia
legal, uma vez que é responsabilidade do Estado prover a garantia dos direitos
de seus cidadãos. Como os apátridas não possuem um Estado, estão lançados
no mundo à margem do reconhecimento jurídico de seus direitos e de
proteção adequada.

3.3 Soberania
O terceiro elemento integrante do Estado é a soberania, ou seja, o poder
estatal de mando de última instância. Poucos temas têm gerado tão profundas
disputas entre os estudiosos quanto tal conceito.
A formação do Estado, do ponto de vista do poder, exige o seu
reconhecimento como ordem jurídica. Conforme exposto por Dalmo
Dallari19, uma ordem jurídica não é a mera existência de um conjunto de leis,
mas se exige a sua disposição de modo sistêmico, no afã de regular os diversos
elementos que compõem a sociedade, e que tal arranjo tenha caráter
permanente. Tal organização recebe do direito a condição de pessoa jurídica,
assumindo, com efeito, a salvaguarda de direitos determinados e também a
possibilidade de exigir a observância de deveres aos cidadãos.
A partir de então surge o tema da soberania. A ordem jurídica constituída
busca o máximo de eficácia tanto dos cidadãos que a compõem (soberania
interna) como no que diz respeito em sua relação com outros Estados
independentes (soberania externa). É o que Luigi Ferrajoli20 aponta como
suprema potestas superiorem non recognoscens (poder superior que não
reconhece outro acima), ou seja, interpreta-se o poder soberano estatal com
base em sua formação de Estado nacional moderno do século XVI. Duas
noções, portanto, caracterizam-na: a supremacia interna e a independência
externa.
A ideia de soberania interna aduz para a faculdade de o poder constituinte
originário (o povo) estabelecer a organização de seu Estado segundo o seu
próprio alvedrio, desde que não viole os objetivos internacionais assumidos,
em especial aqueles que garantem a proteção dos direitos humanos. Essa
capacidade se materializa no monopólio de legislar o seu próprio Direito e
regular a coação física em seu território. A soberania no plano internacional,
por sua vez, reconhece os Estados como iguais e independentes, desde que,
novamente, não violem os objetivos globais.
Diversos autores pontuaram a respeito da soberania. Jean-Jacques
Rousseau21, a exemplo de Jean Bodin e Thomas Hobbes, foi um destes
teóricos. Como se sabe, fez derivar da vontade geral a lei e o poder. Para ele, a
soberania consiste no exercício da vontade geral, que não pode ser
transmitida. Daí por que afirmava ser a soberania inalienável e indivisível.
Georg Jellinek22, um dos maiores vultos do século XX, não fala em
soberania, mas em poder supremo de governo. Para ele, o Estado é uma
comunidade com território, povo e poder supremo de governo próprio. A
totalidade desses três elementos é necessária para a existência do Estado.
Quando falta algum deles, não há Estado, mas apenas formas subordinadas a
um Estado. Em suas palavras: “Un Estado es una comunidad com propio
territorio, propios súbditos y propio poder supremo de gobierno. La totalidad de
estos tres elementos es necesaria para la existencia del Estado; cuando falta
alguno de ellos, no hay Estado, sino tan sólo formas subordinadas a un
Estado”.
Já Luigi Ferrajoli23 lembra que, na atualidade, a soberania popular se
encontra limitada pela ordem constitucional democrática, cujo intento é
salvaguardar direitos. Ao olhar para seu país de origem, a Itália, o autor
adverte que “a bem da verdade, as constituições continuam falando em
‘soberania popular’; porém, isso não passa de uma simples homenagem verbal
ao caráter democrático-representativo dos atuais ordenamentos”.
E complementa: “La sovranità appartiene al popolo”, conforme está escrito
no primeiro artigo da Constituição italiana. Porém, logo em seguida está
escrito que essa mesma soberania é exercida “nelle forme e nei limiti della
Costituzione”, isto é, nem mesmo o povo é soberano no antigo sentido de
superiorem non recognoscens ou de legibus solutus, no qual tudo era
permitido. Ferrajoli comenta também que nem mesmo a maioria, que pode
ser determinante no processo legislativo de construção da norma jurídica,
pode ser detentora plena da soberania, pois a garantia dos direitos de todos,
incluindo-se aqui maiorias e minorias, tornou-se o traço mais característico
do Estado Democrático de Direito.

3.4 Finalidade
Há, no entanto, autores que acrescentam outro elemento aos
anteriormente analisados: a finalidade. Entre eles, encontram-se Alexandre
Groppalli24, Dalmo de Abreu Dallari e Manuel García-Pelayo. Gropalli
inseriu no próprio conceito de Estado a finalidade ao defini-lo como “pessoa
jurídica soberana constituída de um povo organizado, sobre um território,
sob o comando de um poder supremo, para fins de defesa, ordem, bem-estar
e progresso social”.
Sustentando a mesma tese, Dalmo de Abreu Dallari25 entende que o
Estado, como sociedade política, tem um fim geral e constitui-se em meio
para que os indivíduos e as demais sociedades possam atingir os respectivos
fins particulares. O fim do Estado é a busca do bem comum de certo povo,
que vive em determinado território.
Manuel García-Pelayo26 também identifica a finalidade como elemento
constitutivo do Estado. Para ele, o Estado é uma organização que tem por
objeto assegurar a convivência pacífica e a vida histórica de um grupo
humano.
De modo geral, Thomas Fleiner-Gerster27 classifica os defensores da
vertente finalística em três grupos: tarefa de proteção externa do Estado
(defender a população contra ataques de países estrangeiros e estabelecer
relações internacionais), tarefa de proteção interna do Estado (garantir a
segurança das pessoas com o desenvolvimento das polícias) e Estado de bem-
estar social (que congrega objetivos que variam de acordo com cada
pensador, mas que visa, em linhas gerais, proporcionar os meios
fundamentais para a existência e desenvolvimento da sociedade).
É oportuno verificar que os autores citados identificam, portanto, objetivos
que serão buscados durante a afirmação da legitimidade do Estado e de suas
instituições. Na modernidade, a finalidade precípua atribuída ao ente estatal é
a de meio para a construção e desenvolvimento de sociedades, assegurando a
integridade física e patrimonial dos indivíduos, em uma visão mínima de
Estado, ou ainda buscando a justiça social, competência essa de um arcabouço
ideológico e político mais intervencionista, na qual não se estipula tão
somente as regras basilares de organização social e política, mas também se
busca garantir algum fragmento de igualdade entre os cidadãos.
Em ambos os casos, refratário de um modelo anárquico que nega a
autoridade como princípio balizador na construção social, subjaz o Direito
como alicerce para a construção do Estado e instrumento delimitador do
desenvolvimento das relações privadas, coletivas e políticas. Não é um
instrumento de emancipação, haja vista que também o Direito pode ser usado
como quimera para acobertar injustiças, como não garantir prerrogativas a
classes com menor poder de representação, ou até hecatombes, como ocorreu
no Holocausto dos judeus na Segunda Guerra Mundial.
Ao longo do século XX, o apogeu do constitucionalismo no Ocidente
fortaleceu o primado do Estado de Direito como o terreno mais seguro ao
florescer da vida em sociedade, e sua finalidade se voltou para a guarida de
direitos fundamentais dos cidadãos com base nos ideais democráticos que
vicejaram nas últimas décadas.
A Constituição brasileira de 1988 estabeleceu, em seu artigo 3º, as
finalidades ou objetivos fundamentais de nossa união republicana. São eles: a)
construir uma sociedade livre, justa e solidária; b) garantir o desenvolvimento
nacional; c) erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades
sociais e regionais; d) promover o bem de todos, sem preconceitos de origem,
raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
O desafio ao longo deste século é o de fortalecer essa estrutura
fundamental em busca de maior liberdade e igualdade aos cidadãos, além da
paz nas relações entre Estados.

Conclusões
1. O termo “Estado” foi empregado pela primeira vez por Nicolau
Maquiavel, em 1513, em seu livro O Príncipe.
2. O conceito de Estado tradicionalmente aceito é aquele oriundo da Paz
de Vestfália (1648), cuja noção geral é a de um poder unitário e soberano que
se irradia sobre um determinado território. Trata-se da estrutura fundamental
do Estado nacional moderno.
3. Adotam-se quatro elementos caracterizadores do Estado moderno:
a) Território: designa a área sobre a qual incide o poder do Estado. Pode
ser tanto uma área geográfica (território físico do Estado) como fictícia
(área determinada pelo Direito, como as embarcações e aeronaves).
b) Povo: conceito usualmente adotado nos ordenamentos jurídicos, remete
ao conjunto de pessoas natas ou naturalizadas que possui vínculos
jurídicos e políticos com o Estado.
c) Soberania: é o poder do Estado. Divide-se em soberania interna (que
garante o monopólio normativo e coativo nos limites do território
estatal) e externa (igualdade e independência entre todos os Estados no
plano internacional).
d) Finalidade: marca o propósito ou objetivo daquela sociedade política,
que pode ser o bem comum, a garantia da liberdade, a justiça social, a
salvaguarda de direitos fundamentais gerais, o desenvolvimento
econômico, dentre muitos outros.

1 BURDEAU, Georges. O Estado. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. IX.


2 AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. 35 ed. São Paulo: Globo, 1996. p. 146.
3 SCHMITT, Carl. O Conceito de Político. Belo Horizonte: Del Rey, 2009, p. 49.
4 AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado, p. 147.
5 ROUSSEAU, Jean Jacques. O Contrato Social. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 107.
6 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2011, p. 05.
7 Cf. CREVELD, Martin Van. Ascensão e Declínio do Estado. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 02 e
seguintes.
8 Conforme bem lembrado por Santi Romano, “o conceito de Estado é um dos mais controvertidos da
hodierna ciência publicística, não só porque se compreende entre outros não menos incertos, mas
também, e principalmente, pela sua complexidade, o que dificulta o conhecimento de todas as suas
notas essenciais. Esta dificuldade resulta claramente do desenvolvimento da doutrina que a ele se
refere, pois esta teve necessidade de uma lenta e árdua integração para conseguir construí-lo; deriva
da própria terminologia com que aquele conceito às vezes vem expresso, traduzindo-lhe incompleta
ou aproximadamente os vários aspectos”. In ROMANO, Santi. Princípios de Direito Constitucional
Geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977. p. 59.
9 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 21 ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p.
116.
10 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado, p. 118.
11 MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Coimbra: Almedina, 2002.
12 GIDDENS, Anthony. Sociology. 2 ed. Cambridge: Polity Press, 1994. p. 309.
13 BOBBIO, Norberto. Estado, Governo, Sociedade: por uma teoria geral da política. 11 ed. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 2004, p. 95.
14 Neste sentido, comenta Carlos Roberto Husek que “não corresponde o território apenas ao país,
como visto nos mapas. Compreende o solo, o subsolo (domínio terrestre), rios e demais cursos
d’água que cortam ou atravessam o território (domínio fluvial ou lacustre), as águas que margeiam as
costas do território (águas territoriais) e que se estendem até certa distância (domínio marítimo) e o
espaço aéreo correspondente a tais domínios até a altura determinada pelas necessidades de defesa
(domínio aéreo)”. Cf.: HUSEK, Carlos Roberto. Curso de Direito Internacional Público. 3 ed. São
Paulo: LTr, 2000, p. 40 e seguintes.
15 FLEINER-GERSTER, Thomas. Teoria Geral do Estado. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 319.
16 O território esloveno corresponde aproximadamente a 0,25% do território brasileiro, ou seja, é
menor do que o Estado de Sergipe.
17 MÜLLER, Friedrich. Quem é o Povo? 2 ed. São Paulo: Max Limonad, 2000, p. 55-78.
18 ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo: antissemitismo, imperialismo, totalitarismo. 3 reimp.
São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 310.
19 DALLARI, Dalmo. O futuro do Estado. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 50.
20 FERRAJOLI, Luigi. A Soberania no Mundo Moderno. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 02.
21 ROUSSEAU, Jean Jacques. O Contrato Social, p. 33.
22 JELLINEK, Georg. Fragmentos de Estado. Madrid: Civitas, 1981. p. 58-59.
23 FERRAJOLI, Luigi. A Soberania no Mundo Moderno, p. 32-33. Para aprofundar a temática da
soberania, tomamos a liberdade de indicar um artigo dos autores: FACHIN, Zulmar; SAMPAR,
Rene. Soberania e ordenamento jurídico: um diálogo contemporâneo. In PAGLIARINI, Alexandre;
DIMOULIS, Dimitri (Orgs.). Direito Constitucional e Internacional dos Direitos Humanos. Belo
Horizonte: Fórum, 2012, p. 193-210.
24 GROPPALLI, Alexandre. Doutrina do Estado. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 1968, p. 265. No mesmo
sentido é a lição de José Afonso da Silva: “O Estado, como se nota, constitui-se de quatro elementos
essenciais: um poder soberano de um povo situado num território com certas finalidades. E a
constituição, como dissemos antes, é o conjunto de normas que organizam estes elementos
constitutivos do estado: povo, território, poder e fins”. Cf.: SILVA, José Afonso da. Curso de Direito
Constitucional Positivo, p. 102.
25 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado, p. 107.
26 GARCÍA-PELAYO, Manuel. Direito Constitucional Comparado. Madrid: Alianza Editorial, 1999, p.
10. Neste sentido: “El Estado es una organización que tiene por objeto asegurar la convivencia
pacífica y la vida histórica de un grupo humano. Pacífica no quiere decir basada en el consentimiento
general, sino simplemente en la eliminación de la violencia en las relaciones entre los individuos y
grupos que forman la probación de un Estado; vida histórica significa decir su própio destino dentro
y según las posibilidades de una situación”.
27 FLEINER-GERSTER, Thomas. Teoria Geral do Estado, p. 577-610.
II
Origem, Formação e Extinção do Estado
1. Origem do Estado.1.1 Teoria da Origem Familiar; 1.2 Teoria da Origem
Patrimonial; 1.3 Teoria da Força; 1.4 Teoria da Origem Contratual. 2. Formação e
Extinção do Estado. Conclusões.

Muito já se escreveu acerca da origem do Estado. As teorias, cada qual a


seu modo, procuram explicar como surgiu esse notável fenômeno da vida
humana. As principais são a teoria da origem familiar (patriarcal e
matriarcal), a teoria da origem patrimonial e a teoria da força. Essas três
teorias, de cunho histórico e antropológico, procuram traçar uma
compreensão acerca do desenvolvimento das primeiras comunidades
humanas sobre as quais o Estado moderno fincou seus alicerces.
Do ponto de vista político, é preciso mencionar também a teoria da origem
contratual do Estado, levada adiante, em especial, por pensadores do
jusnaturalismo. Por outro lado, sob o enfoque jurídico, o direito internacional
público nos apresenta algumas hipóteses de formação e extinção do Estado,
aqui compreendido em seu sentido moderno, ou seja, dotado de território,
povo, soberania e finalidade. Nesse sentido, tratar-se-á de cinco causas de
formação e extinção do Estado: a anexação forçada, a absorção voluntária, a
fusão, a dissolução voluntária e a dissolução involuntária.

1. Origem do Estado
1.1 Teoria da Origem Familiar
Para uma vertente da historiografia e teoria do Estado, a família é
considerada a cellula mater da sociedade. A partir dela, formaram-se
pequenos agrupamentos sociais que, ampliados e conjugados entre si, deram
azo a grandes sociedades como o Estado.
Aristóteles28 é um arauto dessa forma de conceber o surgimento da esfera
política. Em seu famoso livro A Política, o estagirita29 afirma que o Estado,
forma mais elevada de comunidade humana, teve seu surgimento da
conjugação de famílias: “Quando várias famílias se unem, constituem a
primeira sociedade, que é a aldeia. Quando várias aldeias se unem numa
única comunidade, grande o bastante para ser autossuficiente, configura-se a
cidade, ou Estado”. Para ele, a finalidade da fundação do Estado está em ser
capaz de “assegurar o viver bem”, ou seja, uma dimensão que ultrapassa a
mera existência biológica.
Assim, a cidade-Estado é uma forma natural de associação, assim como o
eram as associações primitivas das quais ela se originou”. A família para
Aristóteles é a fonte da qual se originou o Estado.
Afirma ainda Aristóteles30 que o Estado é uma criação da natureza e que o
homem é, por natureza, um animal político (zoon politikon). E aquele que não
tem cidade nem Estado, por natureza e não por mero acidente, ou é muito
mau ou muito bom, ou subumano ou super-humano. Aquele que for incapaz
de viver em sociedade, ou que não tiver necessidade disso por ser
autossuficiente, será uma besta ou um deus, não uma parte do Estado. E,
preocupado com a justiça, afirmava que o homem, quando perfeito, é o
melhor dos animais; quando apartado da lei e da justiça, porém, é o pior de
todos, pois a justiça é “o vínculo dos homens no Estado”.
Para Aristóteles, portanto, a dignidade humana somente se constituía na
polis, onde os homens eram verdadeiramente livres. É importante lembrar
que para o estagirita apenas os chefes de família deveriam participar das
atividades civis, mantendo-se todos os demais na privatividade do lar. Por
qual razão somente o homem e ninguém mais poderia integrar a ágora e
participar das discussões políticas? Porque somente aqueles que não se
preocupavam com o trabalho e a sobrevivência eram verdadeiramente livres,
e a polis era um locus para pessoas livres. Assim, o homem, animal político,
nasceu para viver em sociedade. E, de todas as formas de sociedade, a mais
importante é o Estado, à qual todos se acham vinculados.
Sobre o pensamento aristotélico, sustenta Sahid Maluf31 que, “em regra, o
Estado se forma pela reunião de várias famílias. Os primitivos Estados gregos
foram grupos de clãs. Estes grupos formavam as gens; um grupo de gens
formava a fratria; um grupo de fratrias formava a tribu, e esta se constituía
em Estado-cidade (polis). O Estado-cidade evoluiu para o Estado nacional ou
plurinacional”.
Em suma, sustentam os adeptos de tal teoria que o Estado é resultado da
ampliação da sociedade familiar. Há, nesse sentido, duas correntes
doutrinárias: a patriarcal afirma que o Estado nasceu do núcleo familiar,
submetido à autoridade do pai; enquanto a matriarcal defende que o Estado
nasceu de um núcleo familiar cuja autoridade era exercida pela mãe.
O pai, ao longo do tempo, foi considerado o chefe da sociedade conjugal.
E, com a ampliação da família, sua autoridade passou a ser exercida sobre
todo o agrupamento social. Remota no tempo, e hoje bastante criticada, a
teoria da origem patriarcal do Estado pode ser aceita não como critério
absoluto, mas como regra.
A teoria da origem familiar do Estado tem, porém, outra concepção. Forte
corrente doutrinária sustenta que a origem do Estado está na autoridade da
mãe e não na do pai. Os defensores da teoria matriarcal, ou matriarcalística,
afirmam que o primeiro núcleo familiar foi dominado pela mãe, e isto por
uma razão de natureza fisiológica: a maternidade, ao contrário da
paternidade, é sempre certa (mater semper certa).
A este respeito, vejamos a lição de Sahid Maluf32: “assim, como era
geralmente incerta a paternidade, teria sido a mãe a dirigente e autoridade
suprema das primitivas famílias, de maneira que o clã matronímico, sendo a
mais antiga forma de organização familiar, seria o fundamento da sociedade
civil”.
A referida tese também é contestada, pois, segundo Del Vecchio33, “ainda
que em tais casos a mãe tenha representado o centro da família, não há provas
de que ela haja exercido um poder igual ao do pater-familias”. Não se nega a
certeza da maternidade e que a mãe tenha representado o núcleo da unidade
familiar. Todavia, apesar disso, a mãe não exerceu poder sobre a família. Isso
foi feito, certamente, pelo pai.
A crítica que sofre a teoria da origem familiar do Estado, tanto no seu
desdobramento patriarcal quanto matriarcal, consiste em que se estaria
confundindo origem do Estado com origem da sociedade. A família seria uma
unidade social; o Estado, uma unidade política. Logo, a família teria dado
origem à sociedade e não ao Estado.
Tal crítica é bem sintetizada por Darcy Azambuja34: “que a sociedade em
geral, o gênero humano, deriva necessariamente da família, é fora de toda
dúvida e por isso se diz com razão que a família é a célula da sociedade. Não
se pode, porém, aplicar o mesmo raciocínio ao Estado. Não é de todo
improvável que em alguma região da terra o desenvolvimento de uma família
tenha dado origem a um Estado determinado. Esse processo, no entanto, não
foi geral”.
Nesse sentido, embora haja alguma divergência na tese que sustenta a
família como gênese fundamental do Estado, parece não haver dúvidas de que
a sociedade familiar deu origem à sociedade civil.

1.2 Teoria da Origem Patrimonial


Platão35 foi um dos primeiros a falar na origem econômica do Estado.
Sustentava esse pensador que os homens teriam de desenvolver atividades
econômicas distintas para facilitar a própria sobrevivência. Deste modo,
ensinava, deveria haver tecelões, agricultores, pedreiros, sapateiros, ferreiros,
carpinteiros, todos produzindo economicamente e de cujos benefícios a
coletividade poderia usufruir para a própria subsistência. Essas profissões
econômicas deveriam estar unidas, e foi dessa união que nasceu a cidade
(Estado).
É o que se nota dessa lição do pensador: “o que causa o nascimento a uma
cidade, penso eu, é a impossibilidade que cada indivíduo tem de se bastar a si
mesmo e a necessidade que sente de uma porção de coisas; ou julgas que
existe outro motivo para o nascimento de uma cidade? Portanto, um homem
une-se a outro homem para determinado emprego, outro ainda para outro
emprego, e as múltiplas necessidades reúnem na mesma residência um
grande número de associados e auxiliares; a esta organização demos o nome
de cidade”.
Assim, a gênese da cidade, para Platão, é a saciedade das necessidades
prementes da vida. Segundo o autor, a convivência entre as pessoas geraria a
especialização das funções. Para explicitá-las, Platão distingue três diferentes
modalidades de cidade: a cidade mínima, composta de camponeses e cuja
atividade comercial básica é o escambo; a cidade de luxo, na qual já se vê a
figura do soldado, necessário tanto para a proteção dos cidadãos (invejosos e
gananciosos entre si) como para a conquista de outros povos, pois o
crescimento da riqueza civil demanda o domínio sobre outros povos; e a
cidade ideal, denominada de Callipolis. Essa cidade se dividiria em três classes
(comerciantes, soldados e magistrados) cada qual com a sua virtude própria
(respectivamente, temperança, coragem e sabedoria). Mantendo-se em seu
próprio estamento e desempenhando as atividades que têm aptidão, obter-se-
iam: a liberdade, em âmbito pessoal, e a justiça, em nível social.
Tratando-se do surgimento do Estado sob uma ótica patrimonial, não se
pode olvidar também de John Locke36. O grande nome do liberalismo
político inglês se deteve em analisar a vida do homem no estado de natureza e
no estado de guerra. No estado de natureza qualquer um poderia fazer valer a
lei, executando-a a seu próprio modo. Inexistiria, igualmente, uma autoridade
que exercesse a jurisdição, o que acarretaria em pouca parcimônia na
resolução dos conflitos. Como os conflitos são inerentes às relações humanas,
Locke chama a atenção para a necessidade de estabelecer um pacto no qual
haja autoridades que solucionem as querelas cotidianas, sob pena de a vida
em sociedade se tornar um barril de pólvora, caminhando para um estado de
conflito que não garanta os direitos naturais.
Com efeito, as pessoas dispõem de algumas necessidades, como a de ter e
conservar a sua propriedade, da qual deseja desfrutar em paz e em segurança.
E é para proteger esse bem jurídico fundamental que se necessitou do Estado:
“o fim maior e principal para os homens unirem-se em sociedades políticas e
submeterem-se a um governo é, portanto, a conservação de sua propriedade”.
Em tal sentido, para Locke, a propriedade motivou o surgimento do Estado.
Já no século XIX, Karl Marx e Friedrich Engels arguiram que o Estado
surgiu com o escopo de assegurar a propriedade particular e garantir a divisão
entre duas classes: a dos proprietários (burguesia) e a dos que não são
proprietários (proletariado). O Estado, então, teria sido instituído pelos
proprietários, e a razão de sua origem era apenas a de salvaguarda de seus
bens, mantendo cristalizada a divisão social. A arquitetura do Estado para tais
autores se apoia na superestrutura, ou seja, uma organização que tem como
escopo a espoliação das classes trabalhadoras, e o Direito é um instrumento a
serviço da ideologia dominante.
Nesse sentido, Friedrich Engels, falando do surgimento do Estado Grego,
observou que na Grécia Antiga a riqueza era valorizada e respeitada como
bem supremo, e a propriedade permitia a dominação de uns sobre os outros.
Para garanti-la, os dominadores precisavam de um instrumento que pudesse
ser manuseado em seu benefício.
Afirma, neste sentido, Engels37: “Faltava apenas uma coisa: uma instituição
que não só assegurasse as novas riquezas individuais contra as tradições
comunistas da constituição gentílica; que não só consagrasse a propriedade
privada, antes tão pouco estimada, e fizesse dessa consagração santificadora o
objetivo mais elevado da comunidade humana, mas também imprimisse o
selo geral do reconhecimento da sociedade às novas formas de aquisição da
propriedade, que se desenvolviam umas sobre as outras – a acumulação,
portanto, cada vez mais acelerada das riquezas: uma instituição que, em uma
palavra, não só perpetuasse a nascente divisão da sociedade em classes, mas
também o direito de a classe possuidora explorar a não-possuidora e o
domínio da primeira sobre a segunda. E essa instituição nasceu. Inventou-se
o Estado”.
Sob essa ótica, o Estado nasceu com escopo definido: reconhecer,
legitimamente, as riquezas individuais e a propriedade privada, assegurando o
poder dos proprietários sobre os não proprietários. Por esse ângulo, com a
desejada extinção das classes sociais, o Estado desapareceria, pois na razão de
seu surgimento – assegurar o domínio de uma classe sobre outra – já não
existiria.

1.3 Teoria da Força


A teoria da força, ou da origem violenta do Estado, tem em suas fileiras
grandes defensores, a maioria deles pensadores que fizeram época ao olharem
para os meandros sociais e seus dilemas. Pontificam nesse sentido Nicolau
Maquiavel, Thomas Hobbes, Franz Oppenheimer, Ludwig Glumpowicz, Leon
Trotsky, Max Weber e outros. Em sua maneira pragmática de tratar da
política, Maquiavel38 deixa muito claro que os Estados são mantidos pela lei
ou pelas armas. Seu pensamento resume bem a teoria que propugna o
nascimento e manutenção estatal pela força: “os principais fundamentos de
todos os estados, tanto dos novos como dos velhos ou mistos, são as boas leis
e as boas armas”.
Ao lado de Maquiavel, Thomas Hobbes39 é um dos maiores arautos da
teoria da força. Sua análise se divide entre o estado de natureza e o civil,
instituído pelo contrato social. No estado de natureza (pré-contratual),
inexistindo qualquer convenção para regrar condutas, todos detinham o
direito hipotético sobre todas as coisas e nada lhes impunha o dever de
respeito a seu semelhante. Assim: “a natureza deu a cada um direito a tudo;
isso quer dizer que, num estado puramente natural, ou seja, antes que os
homens se comprometessem por meio de convenções ou obrigações, era lícito
fazer o que cada um quisesse, e contra quem julgasse cabível, e portanto
possuir, usar e desfrutar tudo o que quisesse ou pudesse obter”.
Além disso, havia entre as pessoas igualdade natural. Para Hobbes, como
os melhores bens são escassos, certamente muitos os desejariam e lutariam
pela sua conquista. Assim, a ambivalência do estado de natureza é o de que, se
todos podem possuir tudo (ampla liberdade), logo não possuirão nada, pois
se instala uma guerra pela conquista dos mesmos bens. A inexistência de
regras possibilitaria ao mais forte estabelecer domínio sobre o mais fraco.
Assim, a vida brotaria em um solo semeado por desconfiança mútua,
insegurança e medo. Para Hobbes40, portanto, “a origem de todas as grandes
e duradouras sociedades não provém da boa vontade recíproca que os
homens tivessem uns para com outros, mas do medo recíproco que uns
tinham dos outros”.
No estado de natureza, os homens estão em permanente estado de guerra
entre si. Nos termos do autor41: “não haverá como negar que o estado natural
dos homens, antes de ingressarem na vida social, não passava de guerra, e esta
não era uma guerra qualquer, mas uma guerra de todos contra todos”. Após
as disputas, era necessário garantir o domínio dos mais fortes (vencedores)
sobre os mais fracos (vencidos). O Estado, então, não teria surgido em
decorrência da vontade (como em Jean-Jacques Rousseau), mas do medo que
envolvia as pessoas em sua relação com os outros. A partir dessa antropologia
negativa hobbesiana, o contrato não é uma opção, mas uma necessidade para
a preservação da própria sociedade e para a legitimação do Estado.
Além de Hobbes, é lugar-comum na doutrina a afirmativa lapidar de
Trotsky: todo Estado se funda na força. Os seguidores do pensador russo
sustentam que na origem do Estado está a violência dos mais fortes. No
estágio primitivo, os agrupamentos de pessoas viviam em permanente estado
de guerra. O grupo vencedor precisava de um instrumento que lhe permitisse
manter o domínio sobre o grupo vencido. Com tal finalidade, idealizou-se o
Estado, por meio do qual o uso da força passou a ser legítimo.
Essa ideia foi sintetizada por Max Weber42, ao lecionar que o Estado
reivindica para si o monopólio do uso da força: “Em nossos dias, a relação
entre o Estado e a violência é particularmente íntima. Em todos os tempos, os
agrupamentos políticos mais diversos – a começar pela família – recorreram à
violência física, tendo-a como instrumento do poder. Em nossa época,
entretanto, devemos conceber o Estado contemporâneo como uma
comunidade humana que, dentro dos limites de determinado território – a
noção de território corresponde a um dos elementos essenciais do Estado –
reivindica o monopólio do uso legítimo da violência física. É, com efeito,
próprio de nossa época o não reconhecer, em relação a qualquer outro grupo
ou aos indivíduos, o direito de fazer uso da violência, a não ser nos casos em
que o Estado o tolere; o Estado se transforma, portanto, na única fonte do
direito à violência”.
Nota-se da lição do sociólogo alemão que o Estado surgiu para ser
utilizado como instrumento de dominação dos vencedores sobre os vencidos.
Aqueles, para assegurarem seu domínio sobre estes, instituíram o Estado, que
passou a deter o monopólio do uso legítimo da força física. Por meio do
Estado, os mais fortes (vencedores) passaram a dominar legitimamente os
mais fracos (vencidos).

1.4 Teoria da Origem Contratual


Enquanto a força ou a violência aparecem como motivos justificadores
para a formação de uma esfera política, a teoria contratual da origem do
Estado propugna o pacto ou contrato social como um momento necessário
para a transposição de um estado primitivo hipotético para uma sociedade
civil organizada que resguardasse os direitos naturais.
Assim, tais pensadores – como Thomas Hobbes, Baruch Spinoza, Samuel
Pufendorf, John Locke, Jean-Jacques Rousseau, Immanuel Kant e, já no
século XX, John Rawls – comungam de uma mesma sintaxe, qual seja, o pacto
como um pontífice necessário entre duas realidades sociais e como
fundamento do poder político de um povo. Trata-se de um movimento
racional de identificação de algumas debilidades limitadoras e da tentativa de
sua superação para o florescimento da vida em sociedade.
Norberto Bobbio43 identifica três eixos de compreensão da teoria
contratual: uma ancorada na comprovação histórica do estado de natureza
com base em uma análise antropológica e histórica das sociedades; o segundo
eixo que perscruta o fortalecimento do Direito como instrumento hábil para a
organização da vida em sociedade e o consenso popular como fundamento de
legitimidade da política; e o terceiro e último eixo analítico que propunha o
contrato como elemento de contenção do poder arbitrário proveniente das
monarquias europeias da época. Nessas três hipóteses, importa reconhecer
que não há um fundamento orgânico ou teológico para a fundação do Estado,
mas se trata de um consenso que já orbita na trajetória do Direito e da
política, oscilando segundo a visão de cada autor.
Consoante tratado no ponto anterior, Thomas Hobbes tinha como
imprescindível a configuração do pacto para conter a irretorquível guerra de
todos contra todos, e John Locke admoestava ser o contrato a saída para a
constituição de um arquétipo judicial de resolução de conflitos. Jean-Jacques
Rousseau44, por sua vez, via no contrato a possibilidade de romper com o
progresso da desigualdade, desencadeado pela propriedade. Para ele, a
propriedade é um conceito que vai além da noção de posses materiais, e
representa a ambição pelo consumo que a tecnologia impregnou nas pessoas.
Assim, os maiores proprietários são os maiores consumidores, gerando
imensa desigualdade social. Pelo contrato social, poder-se-ia estabelecer um
arranjo social novo, de modo que cada pessoa pudesse ter o mesmo peso
decisório. Em suas palavras, “uma forma de associação que defenda e proteja
a pessoa e os bens de cada associado com toda a força comum, e pela qual
cada um, unindo-se a todos, só obedece contudo a si mesmo, permanecendo
assim tão livre quanto antes” (ROUSSEAU, 1987, p. 32).
A consequência desse arquétipo, na teoria rousseauniana, é a obtenção de
liberdade e igualdade para todos. Preciosa é a análise de Miguel Reale45 acerca
deste pacto: “não se esqueça, em verdade — e este ponto tem sido muito
facilmente olvidado — que na obra de Rousseau se contrapõem dois
contratos sociais, um falso e o outro verdadeiro: um é o contrato leonino ou
histórico, o pseudocontrato da desigualdade e do arbítrio, se é que se pode
denominar contrato o que é mero resultado da força; o outro é o contrato
ideal ou racional, que é o da liberdade e do consenso mútuo. A História nos
apresenta uma sociedade fundada na violência e na opressão, na desigualdade
dos bens e das dignidades; a Razão nos aponta uma sociedade fundada na
Justiça e no respeito humano. O que se deve fazer é proclamar o primado da
Razão sobre a História, sobrepor o contrato social racional ao contrato social
leonino que se diz maliciosamente implícito nos desmandos dos mais fortes e
na subserviência dos débeis”.
Mais recentemente, já em meados de 1970, John Rawls, que se
autointitulou neocontratualista, publicou o livro Uma Teoria da Justiça. Ele se
vale da ideia de contrato ou acordo original como um instrumento hipotético
de refundação da sociedade, tendo como ideia norteadora os princípios de
justiça. Em outros termos, Rawls está questionando: se pudéssemos reordenar
a nossa sociedade, quais princípios escolheríamos para estabelecer a sua
direção? Há, imiscuído na referida questão, um desafio: encontrar uma
justificação para o Estado que prescinda de ideias particulares de bem. Para
tanto, o autor estabelece a posição original (semelhante ao estado de natureza
pré-contratual) e o véu da ignorância, ou seja, um instrumento que
impedisse, em primeiro lugar, que qualquer um soubesse qual seria o seu
lugar na sociedade a ser pactuada e, em segundo lugar, não permitisse que
alguns pudessem eleger o princípio social-norteador que lhes aprouvesse. Ou
seja, os instrumentos mencionados impediriam privilégios e serviriam de
critério para a obtenção de justiça.
Em tal hipótese, impossibilitados de controlar o resultado da escolha de
todos, é possível que fossem eleitos, de fato, os melhores princípios para
todos, para que ao final se fizesse justiça. Utilizando a metáfora do próprio
Rawls46, se ninguém puder controlar a divisão do bolo, desconhecendo,
portanto, a quem pertencerá a primeira ou a última fatia, é mais vantajoso
que todas as fatias sejam do mesmo tamanho.
Nas palavras do filósofo, são os princípios de justiça “que pessoas livres e
racionais, interessadas em promover seus próprios interesses, aceitariam em
uma situação inicial de igualdade como definidores das condições
fundamentais de sua associação”. Para Rawls47, em tais condições, todas as
pessoas elegeriam os dois princípios apontados como bastiões de sua
sociedade: “Primeiro: cada pessoa deve ter um direito igual ao sistema mais
extenso de iguais liberdades fundamentais que seja compatível com um
sistema similar de liberdades para as outras pessoas. Segundo: as
desigualdades sociais e econômicas devem estar dispostas de tal modo que
tanto (a) se possa razoavelmente esperar que se estabeleçam em benefício de
todos como (b) estejam vinculadas a cargos e posições acessíveis a todos”.
Assim, a teoria contratual é aquela que estabelece o pacto como o
fundamento hipotético de uma nova sociedade, celebrado sobre os escombros
do estado de natureza48. Não obstante, tal formulação, hipotética no conjunto
da obra destes autores, preparou o terreno para o avanço e a consolidação do
constitucionalismo no século XIX. Nesta linha de pensamento, Luigi
Ferrajoli49 aponta que “o denominado contrato social uma vez traduzido em
pacto constitucional, não é mais uma hipótese filosófico-política, mas um
conjunto de normas positivas que obrigam entre si o Estado e o cidadão,
tornando-os dois sujeitos de soberania reciprocamente limitada”.
Os autores do contratualismo, deste modo, são lembrados em razão de
terem conjecturado sobre temas fundamentais ao Direito e ao Estado, como
justiça, liberdade e igualdade, embasados pelo iluminismo, liberalismo e
jusnaturalismo, que adquiriam força na Europa monárquica dos séculos XVII
e XVIII.

2. Formação e Extinção do Estado


O Estado moderno, caracterizado pelos elementos citados anteriormente
(território, povo, soberania e finalidade) se forjou de diferentes maneiras. O
século XX foi especialmente fecundo na formação de novos Estados,
sobretudo em razão de dois acontecimentos específicos: na primeira metade
do século, houve o colapso dos grandes impérios (Otomano, Austro-
Húngaro, Britânico, Prussiano e Russo) e, na segunda metade, ocorreu a
descolonização, especialmente no continente africano. Assim, os impérios
deixaram de existir e se tornaram Estados, enquanto as antigas colônias
conquistaram independência de seus colonizadores. Acrescente-se ainda a
desintegração de alguns Estados (União Soviética, Iugoslávia,
Tchecoslováquia), ocorrida nas décadas de 1980 e 1990.
Nesse compasso, atualmente a formação e a extinção do Estado são faces
de uma mesma moeda. Em outras palavras, não há no presente momento
novos continentes a serem descobertos neste planeta, logo não há mais
espaços geográficos disponíveis para ocupação. É forçoso concluir, por
conseguinte, que o nascimento de um novo Estado em nosso tempo demanda
a extinção de outro. Formação e extinção de Estados, deste modo, circulam na
mesma cadência.
Em se tratando das diversas conjunturas políticas e sociais que podem se
abater em face de um Estado, quando se pode considerar que seus alicerces
foram ruídos ao ponto de se reconhecer sua extinção? Em igual medida, quais
fatores condicionam a criação de um Estado? James Crawford50,
internacionalista da Universidade de Cambridge, comenta que um Estado
não se extingue por mudanças substanciais em seus elementos
caracterizadores (território, povo, soberania e finalidade), por ocupações
inimigas ou limitação da independência nacional. Todos esses fatores
enfraquecem as instituições estatais e podem conduzir a revoluções, mas não
são capazes de dar termo ao Estado. Então, o que subjaz na sua existência?
Crawford aponta que o Estado existe quando suas fundações legais (como a
separação dos poderes) e suas instituições ainda sobreviverem, bem como
quando se possa verificar os seus cidadãos por detrás desses aparatos estatais.
Registre-se, portanto, que um dos fatores ainda umbilicalmente ligados à
formação de Estados é o elo da nacionalidade ou etnia. Ou seja, constitui-se
um Estado com base no fator étnico de seus cidadãos. A antiga reivindicação
dos catalães em prol de sua independência da Espanha dá eco à referida
teoria. Assim, parte da doutrina internacionalista considera que as condições
políticas internas dos Estados não são absolutamente determinantes para a
manutenção de sua personalidade jurídica de direito internacional. Isso
significa que mesmo na hipótese de ditaduras, comumente levadas a cabo
pelo poder Executivo sobre as demais funções, o Estado não perderá a sua
condição51.
Entretanto, existem momentos (belicosos ou pacíficos) nos quais se
verifica a necessidade de extinção ou de formação de Estados. Abordaremos
cinco dessas causas: a anexação forçada, a absorção voluntária, a fusão, a
dissolução voluntária e a dissolução involuntária.
A anexação forçada de Estados tem seu apogeu em períodos de guerras. No
período da Segunda Guerra Mundial, por exemplo, as potências econômicas
do eixo (Alemanha, Itália e Japão) ocuparam diversos países no afã de
ampliar a sua zona de influência e expandir seu império tardio52. Em tal caso,
resta clara a fragilização da soberania nacional. Mas quais as condições para
que um Estado anexado seja considerado extinto? Ainda segundo o professor
de Cambridge, um dos fatores determinantes é a condição interna do país,
quando o período de subserviência chega ao fim. Em outras palavras, finda a
anexação forçada, é preciso sopesar os despojos do antigo Estado e avaliar se
há condições (instituições e povo) para o seu ressurgimento.
Oportuno mencionar que James Crawford critica a adoção do critério
temporal como instrumento para determinar a extinção de um Estado
anexado. Para o autor, o critério a ser adotado não pode ser forjado tendo em
vista o período de ocupação. Como exemplo, tem-se o caso dos países
Bálticos (Lituânia, Letônia e Estônia), que tiveram suas soberanias “inativas”
por meio século ante o domínio da União Soviética, readquirindo sua
independência somente em 1991. Mesmo após décadas, esses Estados ainda
possuíam vitalidade para retornar à sua condição de independência. Cite-se
também a Coréia, anexada pelo Japão de 1910 a 1945, e que subsistiu como
Estado até a sua divisão, na década de 1950.
Já a absorção voluntária, via de regra, ocorre pela reunificação de Estados
que estiveram divididos. O exemplo mais cristalino é o da absorção da
República Democrática Alemã (Deutsche Demokratische Republik, ligada aos
soviéticos) pela República Federal Alemanha (Bundesrepublik Deutschland,
ligada aos países ocidentais), ocorrida após um plebiscito popular. Finda a
absorção, o país absorvido (a República Democrática Alemã, no exemplo
citado) deixa de existir.
A fusão se distingue da absorção na medida em que os dois Estados deixam
de existir para formar um terceiro. Seu nascimento, portanto, ocorre por um
acordo comum, não pela imposição de um sobre o outro. É o que ocorreu
com o Iêmen, país do sudoeste da Península Arábica. Em 1990, a República
Árabe do Iêmen (ao norte) e a República Democrática do Iêmen (ao sul)
promoveram a sua fusão, criando a República do Iêmen. Hildebrando
Accioly53 cita ainda o caso da unificação da Itália, possibilitada pela fusão dos
ducados de Modena, Parma, Toscana e o Reino de Nápoles aos Reinos de
Sardenha e Piemonte.
A dissolução voluntária, ao contrário das formas anteriores, não tem o
condão de incorporar dois países, mas de dissolver ou desagregar um Estado.
É voluntária uma vez que ocorre mediante acordo entre as partes envolvidas.
Por exemplo, exatamente à meia noite do dia 31 de dezembro de 1992, a
Tchecoslováquia foi extinta com o propósito de se fundarem dois novos
Estados: a República Tcheca e a Eslováquia. É importante lembrar que o
processo transitório entre a ditadura comunista para a democracia tcheca foi
conduzido de modo pacífico, o que permitiu a alcunha do termo “Revolução
de Veludo” para expressar aqueles acontecimentos. Outro exemplo é o da
divisão do Sudão, em 2011. Após muitos anos de guerra civil, acordou-se pela
divisão do território, que foi reconhecida pelo ditador Omar Al-Bashir, no
poder desde 1989.
A dissolução involuntária54, por sua vez, ocorre quando a extinção não é
fruto de um acordo. O exemplo mais claro é o da República Socialista Federal
da Iugoslávia, criada no fim da Segunda Guerra e extinta em 1992. Sob o
comando de Josip Broz Tito, o país conjugava um microcosmo que reunia
seis repúblicas socialistas: Eslovênia, Croácia, Bósnia e Herzegovina, Sérvia,
Montenegro e Macedônia, além de duas províncias autônomas no interior da
Sérvia (Kosovo e Voivodina). Ao longo das décadas de 1980 e 1990, mediante
inúmeros conflitos, situação que fomentou a criação do Tribunal Penal
Internacional para a antiga Iugoslávia (em inglês, UM-ICTY que significa
International Criminal Tribunal for the Former Yugoslavia), os países
paulatinamente conquistaram as suas independências, o que culminou na
extinção da antiga Iugoslávia.

Conclusões
1. Quatro são as origens mais conhecidas do Estado:
a) Familiar: a sociedade surgira de famílias que se constituíram em tribos e
povoados.
b) Patrimonial: as pessoas se uniram com o propósito de aumentar as
especialidades laborais e facilitar a sobrevivência.
c) Pela força: o surgimento do Estado ocorreu para a salvaguarda da
integridade física de seu povo.
d) Contratual: o Estado é oriundo de um pacto entre todos os cidadãos.
2. Como na atualidade o território do planeta foi todo mapeado, a
formação de um novo Estado demanda a extinção de outro. Logo, nascimento
e morte de Estados são momentos de um mesmo ato.
3. As causas extintivas de Estado mais comuns são: a anexação forçada (a
exemplo dos países anexados pela aliança do eixo), a absorção voluntária
(como ocorreu com a Alemanha após a queda do muro de Berlim), a fusão (a
exemplo do Iêmen), a dissolução voluntária (a exemplo da Tchecoslováquia e
do Sudão) e a dissolução involuntária (como ocorreu com a Iugoslávia).

28 ARISTÓTELES. A Política. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 04-05.


29 Aristóteles é conhecido como estagirita, em referência à cidade de seu nascimento, Estagira, na
Macedônia.
30 ARISTÓTELES, A Política. p. 146-147.
31 MALUF, Sahid. Teoria Geral do Estado. 24 ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 54.
32 MALUF. Teoria Geral do Estado, p. 55.
33 DEL VECCHIO, Giorgio. Teoria do Estado. São Paulo: Saraiva, 1957, p. 45.
34 AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado, p. 98.
35 PLATÃO. A República. 13 ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2012, p. 50-91.
36 LOCKE, John. Dois Tratados Sobre o Governo. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 495.
37 ENGELS, Friedrich. A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. 14 ed. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1997, p. 119-120.
38 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe, p. 59.
39 HOBBES, Thomas. Do Cidadão. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 32.
40 HOBBES, Thomas. Do Cidadão, 1998, p. 28.
41 HOBBES, Thomas. Do Cidadão, 1998, p. 33.
42 WEBER, Max. Ciência e Política: duas vocações. São Paulo: Cultrix, 1968. p. 56.
43 BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; GIANFRANCO, Pasquino. Dicionário de Política. 11 ed.
Brasília: UNB, 1998, p. 271-272.
44 ROUSSEAU, Jean Jacques. O Contrato Social, p. 32.
45 REALE, Miguel. O contratualismo – posição de Rousseau e Kant. Revista da Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo, São Paulo, v. 37, p. 118-150, 1942.
46 RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 13
47 RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça, p. 73.
48 A exceção aqui é Jean-Jacques Rousseau e sua conhecida formulação idílica do bom selvagem, isto é,
de que as pessoas em seu estado de natureza eram bondosas e amorosas, mas que perderam esta
condição quando passaram a viver em sociedade, que lhes rendeu desejos e preocupações outrora
inexistentes. Esta formulação está em seu livro Discurso Sobre a Origem da Desigualdade entre os
Homens, também conhecido como segundo discurso, e se deve à crítica do autor à sociedade
nobiliárquica de seu tempo.
49 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. 3 ed. rev. São Paulo: RT, 2010, p.
793.
50 CRAWFORD, James R. The Creation of States in International Law. Oxford: Oxford Press, 2007, p.
702-708.
51 Isto fica muito claro quando observados alguns casos práticos: na Itália de Mussolini, na Alemanha
de Hitler, na Espanha de Franco, em Portugal no período de Salazar, no Brasil na Era Vargas ou na
ditadura militar e em todos os casos ocorridos na América Latina onde o Poder Executivo tomou o
Estado para si. Nessas hipóteses, os respectivos países não perderam suas personalidades jurídicas de
direito internacional.
52 A Itália anexou a Etiópia e a Albânia; a Alemanha incorporou a Áustria já que não foi contra a sua
vontade (fato que ficou conhecido como Anschluß, que significa ocupação ou anexação em alemão),
a Tchecoslováquia e a Polônia. O Japão manteve sua ocupação à Coréia (ocorrida em 1910 e
perdurou até o fim da guerra, em 1945).
53 ACCIOLY, Hildebrando; SILVA, G. E. do Nascimento; CASELLA, Paulo Borba. Manual de Direito
Internacional Público. 20 ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 62.
54 Accioly denomina esta forma de “desmembramento de Estados”.
III
Afirmação Histórica do Estado
1. Estado Antigo. 2. Estado Grego. 3. Estado Romano. 4. Estado Medieval. 5.
Estado Moderno. Conclusões.

A realidade estatal é dinâmica. Constatar um processo histórico de


transformação do Estado é imprescindível para que possamos compreender
seus institutos e o legado que recebemos. Não se localiza temporalmente um
momento preciso no qual se possa identificar o nascimento do Estado.
Tradicionalmente, contudo, os autores tendem a captar um lampejo evolutivo
e lhe organizar com base em uma perspectiva cronológica. Neste caso,
didaticamente se pode falar que o Estado percorreu as seguintes fases: Estado
antigo, Estado grego, Estado romano, Estado medieval e Estado moderno.
Oportuno mencionar que o uso do vocábulo “afirmação” ou “evolução”
que foi utilizado neste capítulo não é axiológico, isto é, não significa que se
está defendendo um contínuo progresso ou desenvolvimento entre um
período tido por inferior para outro considerado mais aprimorado. Cada
período histórico do Estado precisa ser estudado dentro de suas
peculiaridades e condições históricas, políticas, jurídicas e sociais, sob pena de
anacronismos.

1. Estado Antigo
O Estado antigo é também chamado Estado arcaico, Estado oriental ou
Estado teocrático. Tinha cunho eminentemente religioso, místico. Remonta
há cerca de 3000 anos antes da Era Cristã e se formou na região da Baixa
Mesopotâmia, às margens dos rios Tigre e Eufrates, na extensão do Rio Nilo
na África oriental e na América do Norte e do Sul pré-colombianas. Em rigor,
existiram vários Estados na Antiguidade, todos com características
semelhantes.
Podem-se colher na doutrina as principais características que marcaram o
Estado Antigo: a) religiosidade: o governante exercia o poder em nome da
vontade de uma divindade; b) concentração de poderes: um mesmo
governante acumulava as funções militar, judicial, sacerdotal e de coleta de
impostos, denotando assim a natureza unitária do poder; c) heterogeneidade:
era formado e mantido pela força das armas; d) instabilidade territorial: a
base territorial do Estado não era definida – aumentava ou diminuía
conforme as conquistas ou as derrotas do governante; e) não eram Estados
nacionais, mas agrupamentos de pessoas que reuniam diferentes raças
conquistadas e escravizadas; f) diferenças de classe: os nobres, os chefes
militares e os sacerdotes de culto nacional gozavam de regalias, enquanto os
párias e os escravos viviam à margem da lei; g) confusão entre as ideias de
família, Estado, religião e organização industrial.
Dessas características, duas são destacadas por Dalmo de Abreu Dallari55: a
natureza unitária e a religiosidade. De um lado, “o Estado Antigo sempre
aparece como uma unidade geral e não admite qualquer divisão interior, nem
territorial nem de funções. A ideia da natureza unitária é permanente e
persiste durante toda a evolução política da Antiguidade”.
Dallari também constata a marcante influência religiosa, visto que a
autoridade dos governantes e as normas de comportamento individual e
coletivo eram tidas como expressão da vontade de um poder divino. Esse
cunho teocrático significa estreita relação entre o Estado e a divindade. Isto
pode ocorrer de duas formas diferentes: a) o governo é unipessoal, e o
governante é considerado um representante do poder divino, pois se
confundia, às vezes, com a própria divindade; b) o poder do governante é
limitado pela vontade da divindade cujo veículo é um órgão especial: a classe
sacerdotal. Seguindo essa mesma linha de raciocínio, Fustel de Coulanges56
arremata: “se nós nos transportarmos, em pensamento, para o seio dessas
antigas gerações de homens, encontraremos em cada casa um altar, e ao redor
deste altar, toda a família reunida”.
Por outro lado, Darcy Azambuja57 recorda que os agrupamentos viviam
em contínuo estado de guerra entre si, sobrevivendo aqueles que possuíam o
mínimo de organização política. Assim, “as sociedades primitivas, ainda mais
do que as modernas, viviam em estado permanente de luta, contra os grupos
vizinhos e contra a natureza para obtenção de alimentos. Nessa luta, só os
grupos organizados, isto é, os que possuíam uma autoridade que os orientasse
e dirigisse é que poderiam sobreviver; os outros sucumbiriam fatalmente”. A
falta de uma autoridade central, que dirigisse as forças sociais do grupo contra
o inimigo a vencer ou os objetos a conquistar, determinaria a derrota dessa
sociedade anárquica e inorgânica.
Assim, sob o ponto de vista político, a constituição de um governo, ou seja,
uma autoridade com poder e força suficiente para conduzir as ações de um
povo dentro de um território foi elemento preponderante na formação das
sociedades. Isso se justifica em virtude de não haver organização social sem
poder, e a distribuição, organização, legitimação e exercício desse poder é o
que diferencia as comunidades humanas. Firme em tal propósito, lembra
Eduardo Bittar58 que o poder necessita de algo mais além da própria força,
pois ele age de modo estratégico na relação entre os homens. Por conseguinte,
o poder é algo distinto da mera força ou emprego da violência.
Em uma análise mais detalhada do aspecto histórico da ação
governamental, Martin Van Creveld59 fragmenta o Estado Antigo em dois
grupos. O primeiro é o das tribos sem governantes (ou sociedades acéfalas),
cuja característica proeminente é o da incapacidade de amplas ações
coordenadas ante a falta de liderança governamental com autoridade sobre
todos. Por não haver um governo que estabelecesse conexão entre
agrupamentos, a família ou clã era a máxima extensão que essas tribos
atingiam, tendo o homem adulto como seu porta-voz. O embrião do Direito
já estava presente mesmo nessa forma primitiva de Estado: as leis eram
eminentemente consuetudinárias e todos os direitos e obrigações decorriam
das relações de parentesco. Na hipótese de violação das normas de
organização social, cabia ao homem o julgamento e aplicação da sanção que
era pautada somente na persuasão, haja vista inexistir uma instituição
policial. Em aldeias mais avançadas, o papel decisório era de competência de
uma assembleia constituída por anciãos.
Por sua vez, as tribos com governantes (também denominadas de chefias)
alcançaram maior complexidade em sua organização pela existência de
indivíduos que se autoproclamavam no direito de governar e exercer o papel
de sumo sacerdotes. Creveld comenta que o fragmento de governo surgiu
quando houve a adesão obediente dos indivíduos ao governante,
independente da relação de parentesco. Isso permitiu que as tribos se
tornassem numericamente maiores, o que significou maior especialização na
divisão do trabalho, permitindo a criação de exércitos, por exemplo. Outra
consequência da expansão da tribo foi a instituição de tributos sobre o
produto do trabalho ou sobre o uso de terras e equipamentos rudimentares.
Oportuno verificar ainda que a extensão da relação de mando e obediência
para além das relações de parentesco fortaleceu o aspecto impessoal do
governo, conduzindo a tribo a se dividir socialmente. Assim, abaixo dos
governantes, havia a classe dos privilegiados, formada basicamente por seus
parentes60. A terceira e última classe era a dos plebeus, constituída de
trabalhadores em geral.
Logo, se por um lado há um traço religioso flagrante nas ações que
moviam as sociedades antigas, é inolvidável lembrar o traço governamental
que se estabeleceu nessas comunidades, dada a necessidade de algum poder
organizar a vida coletiva.

2. Estado Grego
A cidade-Estado se distingue das formas de organização antigas devido a
seu caráter de durabilidade ou permanência. Pode-se encontrar até hoje os
edifícios construídos em muitas cidades-Estados espalhadas pelo mundo.
Nelas, havia ao menos um mercado, uma praça, um edifício de poder e
muitos habitantes que não trabalhavam no campo.
A Grécia foi o berço da filosofia, em que pontificaram Sócrates, Platão e
Aristóteles. Ali, as classes mais privilegiadas puderam viver a democracia. Em
Atenas, por exemplo, as pessoas se reuniam em praça pública (ágora) para
discutir questões da coletividade, mas em especial para contar seus feitos em
busca de notoriedade e imortalidade. Embora se saiba que apenas uma
parcela dos atenienses tivesse direito à voz, especificamente os chefes de
família, o debate existia e aquele tempo tem servido de inspiração para muitos
estudiosos.
Oportuno mencionar que o termo cidade-Estado tem uso semelhante a
Urbe61, isto é, a extensão urbana edificada. Já o termo polis, muito utilizado
para se referir a Atenas em seu período democrático, conferindo-se destaque
a Sócrates, Platão e Aristóteles, não era propriamente a cidade, “e sim os
atenienses”62, isto é, o termo remetia à organização da convivência de agentes
dialógicos, tendo seu verdadeiro espaço situado entre esses falantes que
conviviam segundo tal propósito. A principal função da polis era manter um
espaço público duradouro que sobrevivesse ao tempo e que registrasse as
histórias por meio de grandes poetas como Homero, Hesíodo, Heródoto,
Sófocles e outros.

A polis primitiva tem sua origem no período homérico, há quase três mil
A polis primitiva tem sua origem no período homérico, há quase três mil
anos, após o início da ocupação da península balcânica pelos povos Ageus,
Jônios e Fólios. A celebrada democracia grega surge apenas entre os séculos V
e IV a.C., e resulta diretamente do governo de Sólon, poeta e legislador grego,
que em 594 a.C. estabeleceu leis gerais de organização das diversas famílias
que constituíam a cidade. A Constituição de Sólon, como é conhecida,
mostrou-se inovadora por ter congregado a oligarquia (Conselho de
Aerópago, grupo que tomava as maiores decisões estatais), aristocracia (os
melhores que seriam os magistrados do poder executivo) e a democracia
(sistema judicial composto por cidadãos de Atenas, escolhidos mediante
sorteio. O número de cidadãos variava entre 501, 1001 e 1501, de acordo com
a gravidade do crime).
François Châtelet63 aponta a grande contribuição grega desse período: a
criação da lei, fator revolucionário do ponto de vista da organização social e
política. Se outrora as decisões coletivas brotavam de julgamentos secretos e
particulares, a legislação passou a ser concebida por um ou mais homens e
expressa em textos claros e públicos. Nas palavras do historiador francês, a lei
“é provavelmente a invenção política mais notória da Grécia clássica: é ela que
empresta sua alma à Cidade, quer essa seja democrática, oligárquica ou
monárquica”.
Já o sucessor de Sólon, Clístenes, criou instituições coletivas que
fomentaram a participação cidadã, além de retirar, em parte, o poder dos
chefes de família. A democracia na cidade-Estado ateniense era regida pela
isonomia (todos eram iguais perante a lei) e a isegoria (todos tinham o direito
de exprimir seu ponto de vista, que seria analisado antes de se tomar
decisões).
Châtelet64 lembra também que a democracia atingiu seu auge na segunda
metade do século IV a.C., quando se estabeleceram reformas para estender a
isonomia e a isegoria a todos os homens nascidos em Atenas. As
municipalidades agrupadas em tribos passaram a ser administradas pelo
Conselho, garantindo a participação de todos os cidadãos. E todas as tribos
reunidas se vinculavam ao poder central da Assembleia Geral dos Cidadãos,
que se reunia periodicamente e tomava decisões por maioria. A Assembleia
tinha a competência para resolver as questões gerais de maior importância,
como editar decretos, eleger os magistrados e designar membros para a
câmara de justiça.
As ideias políticas fervilhavam nesse período graças à Constituição de
Atenas, materialização da democracia grega. Relata Sahid Maluf que, ao
deixar de ser órgão principal do Estado, o Conselho passou a ser eletivo e
subordinado à Assembleia dos Cidadãos. As magistraturas tornaram-se
temporárias; os governantes eram escolhidos e nomeados pela Assembleia
Geral, para mandato de um ano. Os cidadãos investidos em funções públicas
eram obrigados a prestar contas periódicas, e, quando assim não
procedessem, eram citados diante da Assembleia popular65.
É célebre o discurso de Péricles, filho de Xântipos, imortalizado por
Tucídides66, na obra História da Guerra de Peloponeso. Em determinado
momento, Péricles trata dos diferenciais que constituíam a democracia
ateniense: “vivemos sob uma forma de governo que não se baseia nas
instituições de nossos vizinhos; ao contrário, servimos de modelo a alguns ao
invés de imitar outros. Seu nome, como tudo depende não de poucos mas da
maioria, é democracia. Nela, enquanto no tocante às leis todos são iguais para
a solução de suas divergências privadas, quando se trata de escolher (se é
preciso distinguir em qualquer setor), não é o fato de pertencer a uma classe,
mas o mérito, que dá acesso aos postos mais honrosos; inversamente, a
pobreza não é razão para que alguém, sendo capaz de prestar serviços à
cidade, seja impedido de fazê-lo pela obscuridade de sua condição”.
E prossegue: “conduzimo-nos liberalmente em nossa vida pública, e não
observamos com uma curiosidade suspicaz a vida privada de nossos
concidadãos, pois não nos ressentimos com nosso vizinho se ele age como lhe
apraz, nem o olhamos com ares de reprovação que, embora inócuos, lhe
causariam desgosto. Ao mesmo tempo que evitamos ofender os outros em
nosso convívio privado, em nossa vida pública nos afastamos da ilegalidade
principalmente por causa de um temor reverente, pois somos submissos às
autoridades e às leis, especialmente àquelas promulgadas para socorrer os
oprimidos e às que, embora não escritas, trazem aos transgressores uma
desonra visível a todos”.
O Estado grego era a cidade-Estado. Atenas se tornou a principal cidade-
Estado do mundo antigo entre os séculos V e IV a.C. Tal período é conhecido
como o Século de Péricles67. O apogeu grego tem início com a literatura de
Heródoto e se encerra com a Guerra do Peloponeso, ocorrida entre 431 e 404
a.C. Esse conflito foi imortalizado pelas palavras de Tucídides.
3. Estado Romano
Se a Grécia foi o berço da Filosofia, Roma foi o esplendor do Direito. As
instituições jurídicas nasceram às margens do Tevere e, petrificadas pelo
tempo, permanecem até hoje como rochedo a sustentar o ordenamento
jurídico de significativo número de países. Enumerar aqui os institutos
jurídicos que herdamos do Direito Romano seria temerário, dada a sua vasta
quantidade.
Pode-se, porém, afirmar que o Estado romano ergueu-se sobre os alicerces
da família, que se dividia em família propriamente dita e gens (gentes). A gens
teria sido o núcleo a partir do qual nasceu o Estado (civitas). “O primitivo
Estado-Cidade dos romanos, portanto, era uma reunião de gens. As gentes
reunidas formavam a Curia; várias Curias formavam a Tribu; e diversas
Tribus constituíam a Civitas. Essa possuía um Senado cujos membros eram os
pater-familias. Por isso mesmo, ainda no decorrer do Império, os senadores
conservavam o título tradicional de pater”68.
A história de Roma é comumente dividida em três períodos: período
monárquico, que vai da fundação em 753 a 509 a.C., cuja sociedade se dividia
entre patrícios, plebeus e escravos; período republicano, de 509 a 27 a.C., no
qual o poder era dividido entre os cônsules, o Senado, as Magistraturas, a
Assembleia Popular e o Conselho da Plebe; e, por fim, o período imperial, que
vai de 27 a.C. a 476 d.C., quando ocorreu a queda do Império Romano do
Ocidente. Nessa última fase, identifica-se o período do Alto Império e do
Baixo Império.
Os romanos eram marcados pelo desejo de expansão. No período imperial,
ápice de sua expansão, estima-se que o Império Romano possuiu de 50 a 80
milhões de habitantes. À medida que consolidavam a conquista de novos
espaços territoriais, materializavam a integração jurídica dos povos
dominados e ampliavam ilimitadamente a área de abrangência de seu Estado.
Em seguida, os romanos passavam a utilizar o Direito como instrumento para
tornar definitivas as vitórias dos seus exércitos.
As normas jurídicas protegiam o cidadão romano, de tal modo que as
pessoas que pertenciam ao território conquistado por Roma se sentiam
seguras não apenas porque vislumbravam a possibilidade de serem cidadãs
romanas, mas também porque passavam a ter a sua proteção. Roma foi quem
primeiro percebeu a importância do Direito para a convivência social. Ao lhe
instrumentalizar, estabeleceu o domínio sobre o mundo conhecido até então.
A base do Direito romano estava inscrito na Lei das Doze Tábuas (em
latim, Lex Duodecim Tabularum), gravadas em madeira e expostas no Fórum
para que todos tivessem conhecimento de suas prescrições. Cada uma delas
regulava um domínio jurídico distinto: as tábuas I e II remetiam à
organização e procedimentos sub judice; a tábua III trazia direitos de crédito e
como agir contra inadimplentes; a tábua IV tratava do pátrio poder e do
casamento; a tábua V regulava o direitos de sucessões e tutelas; a tábua VI
regulava o direito de posse e propriedade; a tábua VII fazia referência a
direitos prediais; a tábua VIII apresentava uma série de delitos; a tábua IX
enunciava normas de direito público; a tábua X regulava o direito sacro; e,
por fim, as tábuas XI e XII traziam normas gerais complementares69.
Em pelo menos dois pontos o Estado Romano lembrava o Estado Grego: a
participação de parte significativa do povo nas decisões de governo e a
separação entre Estado e Religião. O Estado e a religião passaram a ser duas
ordens distintas, e o poder divino deixou de ser invocado como fundamento
do poder terreno.
O povo participava diretamente do governo. Nos comícios, os cidadãos
decidiam sobre questões de importância para a coletividade. No entanto,
como se sabe, poucos eram os que tinham direito de participar e decidir:
somente os cidadãos romanos.

4. Estado Medieval
A derrocada do Império Romano do Ocidente conduziu ao
estabelecimento do medievo. Trata-se de um período de difícil compreensão
ante a sua instabilidade, heterogeneidade e falta de unidade política. Assim,
não é uma tarefa simples a busca das características de um Estado Medieval.
Os elementos mais importantes que marcaram o Estado Medieval foram o
cristianismo, as invasões bárbaras e o feudalismo.
O cristianismo buscava assegurar a igualdade entre os homens, de modo
que eles não podiam ser tratados como se uns valessem mais do que outros.
Feitos à imagem e semelhança de Deus, todos tinham o mesmo valor. Mas,
durante sua vigência passou-se a fazer outra espécie de distinção: a dos
homens tementes e não tementes a Deus. Neste sentido, “o cristianismo
substituiu a distinção entre nacionais e bárbaros, livres e escravos, pela
distinção entre crentes e incréus, a única que conta, definitivamente, para a
justiça divina”70. Tamanha era a influência da religião cristã que seus
preceitos determinavam crenças e costumes em praticamente todos os
domínios da existência humana.
A relação entre a Igreja cristã e os soberanos foi marcada pela tensão. Estes
dois polos de poder tinham a demarcação de sua atuação, ao menos, desde o
século V, com a conhecida doutrina das duas espadas, no qual uma mesma
mão não poderia empunhar as espadas da autoridade e do poder de maneira
simultânea. Com o passar dos séculos, houve a tentativa de submissão do
poder temporal ao poder espiritual, ou seja, a tentativa de a igreja cristã obter
o controle não apenas das questões de fé, mas também do aspecto político-
governamental dos reinos e territórios. O jurista italiano Gustavo
Zagrebelsky71 aponta que o apogeu deste movimento ocorreu com a Encíclica
Unam Sanctam Ecclesiam, promulgada pelo Papa Bonifácio VIII, no ano de
1302, que declara expressamente: Oportet autem gladium esse sub gladio, et
temporalem auctoritatem spirituali subiici potestati, ou seja, é necessário que
uma espada esteja sobre a outra e que a autoridade temporal esteja sujeita à
espiritual. Esta encíclica é mais um elemento que culminaria na reforma
protestante, ocorrida alguns séculos mais tarde.
Em nível político, o cerco e conquista de Roma por Alarico, no ano de 410
d.C., foi decisivo para a formação do Estado medieval pois prenunciava a
queda do Império no Ocidente, em 476. Na expressão de São Jerônimo72, “foi
conquistada a cidade que conquistou o universo”. Com efeito, a insegurança
gerada pelas invasões bárbaras, a debilidade econômica e ainda a perda de
expressividade das cidades pela baixa densidade populacional lançaram o
mundo europeu no feudalismo e no medievo. De modo geral, pode-se dividir
esse grande período da história em quatro momentos: da queda do Império
Romano até a consolidação do Sacro Império Romano Germânico (séculos V
a IX); o segundo período se caracteriza pelas reformas monásticas e políticas
na Igreja, Investiduras e Cruzadas (séculos X e XI); em seguida o período da
escolástica e o florescimento das universidades (século XIII); e por fim o
enfraquecimento do lastro entre fé e razão, o resgate do humanismo e o
renascimento urbano (séculos XIV e XV).
De um ponto de vista moderno, a desordem deste período era notável, pois
não havia unidade de comando. Os limites territoriais eram incertos e as
guerras, constantes. Para Dalmo de Abreu Dallari73, “se percebe que, no
Estado Medieval, a ordem era sempre bastante precária, pela improvisação
das chefias, pelo abandono ou pela transformação de padrões tradicionais,
pela presença de uma burocracia voraz e quase sempre todo-poderosa, pela
constante situação de guerra e, inevitavelmente, pela própria indefinição das
fronteiras políticas”.
Através destes legados e em meio à complexa história de conquistas e
invasões, o feudalismo é o sistema socioeconômico que se resume na relação
de outorga do feudo pela vassalagem, cujo vínculo contratual, por um lado,
engloba o nobre que concede, de modo revogável, uma extensão de terra e
oferece proteção militar, e de outro a obrigação do vassalo em lhe render
lealdade (homenagem) e serviços (trabalhar e lutar, caso necessário, para a
defesa dos interesses de seu senhor). Com efeito, era um sistema alicerçado na
propriedade da terra. Os senhores feudais detinham a posse de muitas
extensões de terras e cediam-nas para que outras pessoas as explorassem e,
como pagamento, dessem-lhes uma parte da produção. Caracterizou-se esse
sistema pela exploração do trabalho humano.
Martin Van Creveld74 aponta que o surgimento do feudalismo se confunde
com a dispersão do poder imperial, outrora muito concentrado na figura do
imperador. Segundo ele, a ideologia imperial ruiu quando os grupos
influentes na sociedade europeia (aristocracia e Igreja) buscaram emancipar
seus domínios. Com isso, o lugar do imperador “foi tomado por um sistema
que dava destaque bem maior aos direitos coletivos da aristocracia e da
religião estabelecida”, fragilizando a intensa concentração do poder nas mãos
do imperador.

5. Estado Moderno
O Estado moderno é resultado de profundas transformações na Europa
ocorridas especialmente entre os séculos XV a XVIII. Não se trata de um
arquétipo ideal ou estático: o Estado é fruto de seu tempo, isto é, foi gestado
em virtude de uma série de acontecimentos que motivaram o rompimento
com as estruturas antecedentes. Por isto ele nunca esteve concluído, mas vem
se transformando desde então de acordo com a peculiaridade de cada
contexto. Em síntese, sua realidade é dinâmica. Eis a razão de se compreender
alguns de seus pressupostos: a) Em nível filosófico, o humanismo, levado a
cabo por Francesco Petrarca, Dante Alighieri e Giovani Boccaccio,
bombardeou o teocentrismo e construiu sobre seus escombros o
antropocentrismo, isto é, a alocação do ser humano no centro do universo em
contrapartida ao teocentrismo medieval.
b) Em nível econômico, a necessidade de obter especiarias das Índias (cujo
monopólio era italiano) e conquistar novas terras serviu de inspiração
para a busca por rotas marítimas alternativas às já conhecidas à época. A
conquista do Império Romano do Oriente pelos turcos foi um momento
marcante rumo a esta iniciativa, por representar um obstáculo
intransponível por terra em direção à Ásia, fortalecendo o movimento
das grandes navegações e do mercantilismo, cujo ápice se deu com a
chegada dos europeus ao continente americano.
c) Em nível cultural, a ocupação turca, segundo Peter Burke75, forçou
artistas e pensadores reunidos em Constantinopla a migrarem para
outros lugares, em especial, a Itália. Quebrantando as clausuras impostas
durante o medievo, a concentração na península itálica (Firenze, Siena e
Venezia) de inquietos pensadores – como Michelangelo, Rafael Sanzio,
Leonardo da Vinci, Donato di Niccoló (conhecido como Donatello),
Filippo Brunelleschi, Sandro Botticelli e muitos outros –, permitiu o
reflorescimento empírico e científico em inúmeras vertentes, como
anatomia, arte, astronomia, arquitetura, música, ópera, teatro, entre
outras. A renascença marca o período de redescoberta da antiguidade
clássica esmaecida pelo ideal teológico, bem como pela efervescência
cultural que inaugurou as novas bases do pensamento moderno no
mundo artístico, econômico, político, filosófico e social.
d) Em nível científico, alguns dogmas milenares foram paulatinamente
sendo postos à prova graças às evidências científicas que alicerçaram o
pensamento moderno. Pontificaram nas diversas áreas científicas
grandes pensadores que, com suas teorias revolucionárias, refundaram a
interação entre as pessoas e o mundo à sua volta. Como exemplo, pode-
se indicar a teoria heliocêntrica de Nicolau Copérnico (do grego, helios
kentron, que significa sol no meio), que abriu caminho para Johannes
Kepler; os avanços da astronomia, mecânica, hidrostática e da hidráulica
de Galileu Galilei, Leonardo da Vinci e posteriormente Isaac Newton; o
abandono da alquimia e início da química moderna com Jan Baptist
Van Helmont, Robert Boyle, Joseph Priestley, Georg Ernst Stahl, e
finalmente John Dalton e Antoine Lavoisier; e as descobertas na
medicina realizadas desde Raimondo Dei Luzzi, até Paracelso, Andreas
Versalius, Miguel Servet, Gabriele Falloppio, Girolamo Fabrizio,William
Harvey e outros.
e) Em nível religioso, a reforma protestante colocou em xeque a hegemonia
católica e possibilitou o acesso aos textos sagrados e à relativização dos
dogmas teológicos. Foi Martinho Lutero o responsável pela primeira
tradução europeia da Bíblia cristã (do grego para o alemão). Com efeito,
secularização não é sinônimo de caça às religiões, mas sua contenção de
modo que não se espraie a todos os domínios da vida. Como um dique, a
esfera pública secular pretende alijar o discurso religioso para a esfera
privada, tornando autônomas as decisões políticas, sociais e culturais.
f) No que tange à organização social e política, o feudalismo perdia sua
vitalidade, embora seus espectros pudessem ser percebidos ainda no
século XIX. A reforma protestante e o renascimento fomentaram a
reorganização do poder, outrora mantido pela Igreja e pelos Impérios. O
aperfeiçoamento da metalurgia incorporou a pólvora na tecnologia
bélica, tendo como efeito a necessidade de fortalezas cada vez mais
inexpugnáveis: tal proteção somente poderia ser financiada pelos reis
apoiados pela burguesia em ascensão. O acordo selado entre realeza e
burguesia enfraqueceu a nobreza feudal e o papado, semeando o Estado
nacional. Mais tarde, tal acordo seria abalado pelo iluminismo,
movimento burguês que revolucionou a perspectiva centralizadora e
monopolizadora do conhecimento, mantido apenas entre o clero e os
monarcas, e instou o fim da monarquia absolutista como modelo
medieval que se arrastava modernidade adentro.
g) E quanto ao Direito, a doutrina do direito natural ou jusnaturalismo foi
um passo importante no reconhecimento de um catálogo de direitos
(liberdade, igualdade, propriedade, entre outros) que não poderiam ser
infringidos por veleidade soberana do monarca. Em igual medida,
fortaleceu-se, por influência do direito inglês, a Rule of Law ou o ideal de
que a legalidade deveria ser o arrimo sobre o qual se estabeleceria o
Estado liberal burguês. Com efeito, enfraqueceu-se a tomada de decisões
coletivas por arbítrio do chefe do Executivo, e se fortaleceu o ambiente
de segurança jurídica que é basilar para o desenvolvimento das relações
sociais, dos negócios e para a proteção dos direitos e garantias
fundamentais.
Toda essa miríade de acontecimentos possibilitou que o processo de
ascensão do paradigma estatal moderno se afirmasse desde o século XVII.
Tem sido aceito pela doutrina que o Estado Moderno nasceu a partir dos
tratados da Paz de Vestfália (ou Tratados de Münster e Osnabrück), assinado
em outubro de 1648, ao fortalecer o modelo de Estado soberano76. Segundo
Hildebrando Accioly e Geraldo Eulálio do Nascimento Silva77, “com a Paz de
Vestfália, que pôs termo à Guerra dos Trinta Anos, triunfava o princípio da
igualdade jurídica dos Estados, estabelecia-se em bases sólidas o princípio do
equilíbrio europeu, surgiam os primeiros ensaios de uma regulamentação
internacional positiva”. Com o reconhecimento da soberania estatal, pôs-se a
termo a relação entre Estado e Igreja, embora se garanta a liberdade de crença
dos cidadãos e de influência às religiões.
Com base nos pressupostos citados – humanismo, reforma protestante,
renascimento, iluminismo, enfraquecimento do feudalismo e ascensão real e
burguesa –, tem-se algumas características fundamentais do Estado moderno.
Em primeiro lugar, o poder que outrora pertencera aos reis foi incorporado
ao Estado. Em outras palavras, o Estado é o manancial do poder legítimo. O
sociólogo Max Weber78 aponta que essa é a principal característica do Estado
moderno, qual seja, a estrutura política que reivindica o monopólio do
constrangimento físico legítimo. Com efeito, verificam-se outros traços que
são consequência a ele: racionalização do Direito e especialização das funções
legislativa e judicante; fortalecimento do poder policial para possibilitar a
segurança dos indivíduos e manter assegurada a ordem pública;
estabelecimento de uma administração que se ramifica em diversos domínios,
como economia, saúde e educação; e manutenção permanente de um
exército.
Assim, concentrado o poder na mesma instituição, buscou-se a sua
separação79 e despersonalização. Isto foi possibilitado pela autonomia sempre
crescente da administração pública que se tornou cada vez mais burocrática.
A França foi o país que melhor aprimorou esse sistema ao longo do século
XVII (e por tal razão o termo burocracia deriva da palavra bureau, que em
francês significa escritório ou gabinete). Van Creveld80 destaca que o modelo
francês, cuja administração detinha funcionários públicos de carreira, ou seja,
sua função não era adquirida de forma hereditária, foi copiado para a Prússia,
Espanha e Suécia naquele mesmo século. A administração burocrática tem
como função permanecer para além dos governos e se fortaleceu na medida
em que a tipografia de Johann Gutemberg se popularizou e possibilitou que
as informações pudessem ser produzidas em larga escala e armazenadas em
diferentes locais.
Outra característica do poder se relaciona quanto ao seu exercício. No
Estado moderno, a fonte do poder legítimo tem origem no povo, mas seu
exercício ocorre mediante representação. Para tanto, garante-se a realização
de eleições periódicas para o preenchimento dos cargos do Legislativo e do
Executivo em todas as suas esferas (no caso de Estados federais, o exercício do
poder é descentralizado. No Brasil, país que adota o federalismo como forma
de Estado, há legisladores e administradores eleitos mediante processo
eleitoral quatrienal para as esferas municipal, estadual e federal. No que toca
ao tempo de mandato, a exceção brasileira é o Senado Federal, cujos
membros têm mandato de oito anos).
Com relação ao Direito, o Estado moderno é fruto de uma doutrina liberal.
Seu pressuposto filosófico remete a uma concepção particular de Estado que
se opõe tanto a formas absolutas de poder como a modelos sociais de
organização da política. Em termos políticos e jurídicos, o liberalismo perfaz
um Estado limitado, ou seja, delimita-se com precisão um espaço em que os
tentáculos estatais podem adentrar de modo legítimo, garantindo-se um
amplo espaço de liberdade aos cidadãos. Logo, não está a se falar de uma
liberdade interior ou livre-arbítrio, tema muito caro aos teólogos do período
medieval, mas da liberdade na relação do Estado com os indivíduos entre si,
ou seja, volta-se para uma discussão política.
Ao longo das correntes de pensamento político e filosófico, a consciência
da liberdade tomou rumos variados. Com Thomas Hobbes, Baruch Spinoza e
Jean-Jacques Rousseau, ela só poderia existir através do Estado. Por sua vez,
Karl Marx e Auguste Comte identificavam o agir livre somente quando os
indivíduos tomassem consciência dos caminhos históricos cujo beneplácito
de dominação (Max Weber) construiu uma sociedade dividida em classes e
hierarquizada pela força do capital desigual. Trilhando caminhos distintos,
outros autores – como Benjamin Constant, John Stuart Mill, Alexis de
Tocqueville e Isaiah Berlin –, legitimavam e, ao mesmo tempo, desconfiavam
do Estado, propondo uma precisa demarcação entre o público e o privado.
Cite-se como exemplo John Stuart Mill, para o qual todo e qualquer Estado
que propugna um modo de viver livre deveria garantir ao menos a liberdade
em três domínios: irrestrita liberdade de consciência, crença e opinião
(expressar opiniões ou lhes publicar); resguardar a liberdade de cada um
dispor da sua vida da maneira como lhe melhor aprouver, independente dos
resultados que possam advir; por fim, a liberdade de associação para qualquer
propósito, salvo se resultar em dano a outras pessoas. Mill81 aduzia que “a
única liberdade que merece o nome, é a de procurar o próprio bem pelo
método próprio, enquanto não tentamos desapossar os outros do que é seu,
ou impedir seus esforços para obtê-lo. Cada qual é o guardião conveniente da
própria saúde, quer corporal, quer mental e espiritual. Os homens têm mais a
ganhar suportando que os outros vivam como bem lhes parece do que os
obrigando a viver como bem parece ao resto”.
Por fim, especialmente influenciados pelos Estados Unidos da América os
Estados ocidentais têm adotado uma Constituição como fundamento de sua
ordem jurídica, no que tange a organização social, do poder político e para
garantia dos direitos individuais. Conforme Dalmo de Abreu Dallari82 nos
aponta: “a consciência da existência de uma Constituição, como expressão da
individualidade e da história de um povo, surgiu e se desenvolveu no quadro
das lutas contra o Absolutismo, tendo papel de extrema relevância na busca
de redução ou eliminação de fatores de dominação e na luta pela abolição de
privilégios”.
Assim, imbuídos desses pressupostos e objetivos, a teoria e a prática se
conjugaram ao longo de mais de três séculos para formar o Estado com suas
características contemporâneas. Embora com nuances próprias, as principais
fundações estatais continuam se mantendo: é no Estado que se encontra o
locus do qual emana o poder legítimo, despersonalizado, separado em funções
(Legislativa, Executiva e Judiciária) e exercido mediante representação, além
de ainda ser o principal protagonista em nível internacional e esfera de
realização da vida em sociedade em âmbito interno.

Conclusões
1. O Estado antigo era marcado pela constante luta entre os grupos
humanos, que se caracterizavam, em especial, pelo caráter religioso do
comando político e pela concentração de poderes do líder. Nesse período
primitivo já se observam os embriões das regras jurídicas e do governo.
2. O Estado grego era a cidade-Estado, organizações políticas e jurídicas
com maior durabilidade em relação ao Estado arcaico. Nela se verificou o
apogeu do pensamento filosófico e da democracia.
3. A marca do Estado romano é a especialização de seu sistema jurídico,
um legado herdado por praticamente todo o Ocidente.
4. No Estado medieval europeu se tem o apogeu do modo de vida cristão,
principal emblema desse período. A organização social e política era
predominantemente feudal, com o poder político fragmentado entre o rei e os
suseranos.
5. O Estado moderno é fruto de profundas alterações na Europa.
Caracteriza-se, de modo geral: 1) pela soberania do Estado; 2) pela fonte do
poder político ser o povo, que o exerce por meio dos representantes; 3) pelo
reconhecimento de que o poder estatal é uno, porém seu exercício se divide
em funções distintas (regra geral os Estados aplicam a teoria tripartite do
poder, que o fraciona em função legislativa, executiva e judiciária); e pelo
reconhecimento de direitos fundamentais.

55 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado, p. 62-63.


56 COULANGES, Fustel de. A Cidade Antiga. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 35.
57 AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado, p. 110.
58 BITTAR, Eduardo C. B. Curso de Filosofia Política. 3 ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 21-22.
59 CREVELD, Martin Van. Ascensão e Declínio do Estado. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 02-29.
60 Lembrando que esta classe poderia ser consideravelmente numerosa, em razão de a poligamia ser
regra nestas tribos.
61 O termo Urbe, escrito com letra maiúscula, é utilizado, por antonomásia, para se referir à cidade de
Roma.
62 Citação de Schachermeyer apud ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 11 ed. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2010, p. 243.
63 CHÂTELET, François (et al). História das Ideias Políticas. 2 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009, p.
14.
64 CHÂTELET, François (et al). História das Ideias Políticas, p. 16.
65 MALUF, Sahid. Teoria do Estado, p. 98.
66 TUCÍDIDES. História da Guerra do Peloponeso. 4 ed. Brasília: UNB; São Paulo: Imprensa Oficial.
2001, livro Segundo, § 37, p. 109 (Clássicos IPRI).
67 Péricles foi o responsável pela construção da Acrópole, principal símbolo do período glorioso da
democracia grega.
68 MALUF, Sahid. Teoria do Estado, p. 102.
69 Para aprofundar o estudo das normas de cada tábua, cf: The Twelve Tables. In YALE LAW
SCHOOL. The Avalon Project. Disponível em:
<http://avalon.law.yale.edu/ancient/twelve_tables.asp>. Acesso em: 17/04/2021.
70 PERELMAN, Chaïm. Ética e Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1996. p. 31.
71 ZAGREBELSKY, Gustavo. Scambiare la Veste: stato e chiesa al governo dell’uomo. Roma: Laterza,
2010, p. 22.
72 São Jerônimo apud LE GOFF, Jacques. A Civilização do Ocidente Medieval. 2 ed. Lisboa: Estampa,
2005, p. 42 (volume I).
73 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado, 2000, p. 68-69.
74 CREVELD, Martin Van. Ascensão e Declínio do Estado, p. 72-74.
75 BURKE, Peter. O Renascimento Italiano: cultura e sociedade na Itália. São Paulo: Nova Alexandria,
1999, p. 277.
76 Segundo Gomes Canotilho, “o Estado corresponde, no essencial, ao modelo oriundo da Paz de
Vestfália (1648). Este modelo, assente, basicamente, na ideia de unidade política soberana do Estado,
está hoje relativamente em crise como resultado de fenômenos da globalização, da
internacionalização e da integração interestatal”. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito
Constitucional e Teoria da Constituição. 6 ed. Coimbra: Almedina, 2002, p. 90.
77 ACCIOLY, Hildebrando; SILVA, G. E. do Nascimento; CASELLA, Paulo Borba. Manual de Direito
Internacional Público, p. 09.
78 WEBER apud FREUND, Julien. Sociologia de Max Weber. 5 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p.
159-160.
79 Remetemos o leitor ao capítulo VIII que trata de modo específico sobre a separação dos poderes,
tema muito caro a Teoria do Estado e que, por esta razão, possui a integralidade de um capítulo nesta
obra.
80 CREVELD, Martin Van. Ascensão e Declínio do Estado, p. 190-193.
81 MILL, John Stuart. A Liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 37-39.
82 DALLARI, Dalmo de Abreu. A Constituição na Vida dos Povos: da Idade Média ao século XXI. São
Paulo: Saraiva, 2010, p. 45
IV
MODELOS DE ESTADO
1. Estado Absoluto. 2. Estado Civil. 3. Estado Liberal. 4. Estado Social e de Bem-
Estar. 5. Estado Democrático de Direito. 6. Estado Total. 7. Estado Totalitário.
Conclusões.

O Estado pode intervir na esfera privada dos indivíduos, bem como nas
mais diversas espécies de relações sociais. A intervenção pode ter maior ou
menor intensidade. Sob esse enfoque, podemos identificar alguns modelos de
Estado: absoluto, civil, liberal, social e de bem-estar, Democrático de Direito,
total e totalitário.

1. Estado Absoluto
O Estado absoluto, tido como aquele em que há concentração de poderes
no Executivo, sempre esteve presente nas comunidades humanas.
Modernamente, surge como um legado do feudalismo, cujo apogeu é o fim
do Império Carolíngio, em meados do século IX. Humanismo, renascimento
e reforma protestante foram os principais fatores responsáveis pelo
quebrantamento da unidade medieval e, ao mesmo tempo, base para o Estado
moderno, que viria a se estabelecer83.
Corolário das transformações ocorridas na Europa a partir do século XV,
que estremeceram as já fatigadas estruturas medievais, o Estado absoluto se
caracteriza pela concentração da totalidade do poder de governar, seja na
figura de uma autoridade, de um grupo ou de um partido. Fortalecido pelo
elo entre nobreza e burguesia em ascensão, tal modelo se tornou
predominante no ambiente europeu pós-medievo por três séculos84. Carl
Schmitt85, jurista alemão do século XX, comenta que o Estado absolutista
formado a partir do século XVI, “originou-se precisamente do colapso e da
dissolução do Estado de Direito medieval, pluralista, feudal-estamentário e de
jurisdição, apoiando-se no exército e no funcionalismo. Por conseguinte, ele é
um Estado do Poder Executivo e do governo”.
O absolutismo, que unificava o poder monárquico e que propiciou a
formação do Estado nacional, teve grandes vultos do pensamento ocidental a
lhe inspirar. Pontificaram nele Nicolau Maquiavel, Jean Bodin, Robert Filmer
e Thomas Hobbes.
Com efeito, Pierangelo Schiera86 admite três perspectivas distintas para
analisar o tema do absolutismo: sob o olhar da soberania, do aspecto jurídico-
institucional e do político-racional. O absolutismo sob o olhar da soberania é
aquele que concebe o poder concentrado nas mãos de um soberano. Essa
forma de organização do poder não se confunde com a tirania: sob o ponto de
vista da gestão do poder, o tirano é aquele que dispõe do poder em suas mãos
e não conhece limites em sua utilização, enquanto o monarca absoluto, por
sua vez, estaria limitado pelos costumes e tradições herdadas de seus
antepassados como também pela autoridade religiosa, que detinha hegemonia
sobre o poder governamental mesmo no período que marca o fim do
medievo e ascensão do iluminismo.
O absolutismo sob o aspecto jurídico-institucional é aquele que, mediado
pela influência do cristianismo, conferiu a legitimidade suficiente ao monarca
para se estabelecer juridicamente como o representante de Deus. Lembra
Sahid Maluf87 que “assim como a propriedade é direito exclusivo do dono
sobre a coisa, o poder de imperium é direito absoluto do Rei sobre o Estado”.
E, nessa dinâmica, seus poderes não encontrariam limites. Segundo Schiera, o
rei “não é mais súdito de ninguém e reduziu a súditos todos aqueles que estão
debaixo de suas ordens”.
Ernst Kantorowicz88 mostra em seu livro Os Dois Corpos do Rei que a
legitimação do poder absoluto no monarca ocorreu em consonância à
teologia cristã, por volta do século XII. O referido historiador aponta um
conhecido tratado anônimo desse período, chamado De consecratione
pontificum et regum, no qual defendia a consagração e deificação real no
momento de sua coroação, tornando-o christomimétés (personificação de
Cristo) e verdadeiro sucessor das ações de Jesus Cristo na Terra. Com efeito,
o rei adquiria seu poder e sua autoridade. Assim, se a Igreja, corpo místico
divino, possuía Cristo como cabeça, o rei assumia essa mesma autoridade no
vértice do Estado; e a iconografia desde a Idade Média até o início da Idade
Moderna é rica em associar a figura do monarca como um Deus com poderes
políticos e sobrenaturais absolutos.
A concentração de poderes na figura real fazia com que ele fosse, de fato, a
centralidade do reino em todos os aspectos. Com efeito, sendo a sua casa o
epicentro da organização social e política, era inevitável que os assuntos
domésticos da realeza fossem, de fato, a principal questão do reino. De
maneira impreterível, o rei estava no centro das questões: tudo o que
transcendia à Corte era secundário. Assim, Corte real e Estado se
confundiam. Norbert Elias89, um dos principais estudiosos do tema, lembra
que a pompa e a fortaleza da morada real, como se observa no Palácio de
Versailles, representavam a pujança do próprio Estado. Somente ao captar
esta imprecisão entre o público e o privado, regra jurídica tão apregoada no
século XVIII e seguintes, é que se compreende o significado da afirmação de
Luís XIV, L’État C’est moi, que significa “O Estado sou eu”, emblema mais
tradicional na expressão do poder monárquico.
Nessa dinâmica que conecta política e religião, Robert Filmer90, teórico
inglês que se notabilizou menos por sua obra e mais por ser alvo de John
Locke no livro Primeiro Tratado sobre o Governo, defendia em seu livro
Patriarcha, or the Natural Power of the Kings um poder patriarcal e absoluto
do rei, cuja fonte de legitimidade emanava do próprio Adão. Assim,
fundamentando as prerrogativas do rei nas escrituras e na tradição, Filmer
tinha como enfoque a doutrina dos direitos naturais que se tornava
perigosamente atrativa: não é necessário muito esforço hermenêutico para
notar que o jusnaturalismo, ao enunciar que todos são naturalmente livres ou
iguais, contrapunha-se à divisão social nobiliárquica e à legitimidade do
governo real monopolizador do poder, essências do Estado absoluto.
Por fim, a terceira e última perspectiva apontada por Schiera é a do
absolutismo sob o aspecto político-racional, isto é, aquele que marca o limiar
da separação entre política e teologia, distinção essa notavelmente presente na
obra de Nicolau Maquiavel e Thomas Hobbes.
Vivendo sob a efígie do Estado absoluto, ainda no século XVI, Nicolau
Maquiavel propugna a necessária secção entre política e teologia perante uma
sociedade italiana de forte apego à cristandade. Para ele, o governo ideal é
aquele cuja direção seja entregue nas mãos de um príncipe soberano. Para
tanto, deve se valer de sua virtù, isto é, a capacidade astuta do governante de
intervir nas situações e alterar o rumo da história em detrimento do homem
medieval temerário da providência divina, e ainda contar com a sua fortuna,
ou seja, possuir a sagacidade de agir na ocasião oportuna.
Já Thomas Hobbes, imortalizado pelo livro O Leviatã, também imaginava
ser possível a construção do Estado apenas quando todo o poder estivesse
depositado em um soberano. O contexto de insegurança geral era atributo da
luta existente entre os próprios homens (o que Hobbes denomina de luta de
todos contra todos), havendo a necessidade da existência de um governo forte
o bastante para conter “o lobo”, metáfora utilizada para designar a natureza
competitiva e voraz do homem em seu estado de natureza (o homem é o lobo
do próprio homem). Esse governo forte pode ser resumido na expressão
hobbesiana Auctoritas, non veritas facit legem, ou seja, não é a verdade e sim o
poder que decide o certo e o justo.
Para contornar tal situação, a sociedade deveria estabelecer um pacto
irrevogável, um contrato social que possibilitaria ao monarca absoluto a força
e o poder ilimitado, instrumentos necessários ao controle da nação. Uma das
noções que diferenciam a doutrina hobbesiana dos imperadores medievais é:
a legitimidade do soberano advém da sociedade e não se relaciona com
manifestações divinas. Sobre isso, Hobbes91 afirma que a “pretensão de um
pacto com Deus é uma mentira tão evidente, até perante a própria
consciência de quem o faz, que não constitui apenas um ato injusto, mas
também um ato próprio de um caráter vil e inumano”.

2. Estado Civil
No Século das Luzes92, a concepção do Estado absolutista no qual o rei
possuía dois corpos (um material e um místico, manancial de sua divina
legitimidade para governar) se tornou insustentável. Nas palavras de
Kantorowicz93, “o misticismo, quando transposto do cálido crepúsculo do
mito e da ficção para o frio foco da luz da razão e do fato, geralmente deixa
pouca coisa que o recomende”. Isto aconteceu com o mito dos dois corpos do
rei, sepultado pelo racionalismo em ascensão, ceifando um dos principais
alicerces de seu poder absoluto.
O Estado civil é o arquétipo desenvolvido pelos autores contratualistas
como um meio de oposição ao absolutismo que literalmente reinava em sua
época. É aquele no qual o governo é exercido pelos cidadãos, ideia expressa na
obra de alguns autores, como John Locke e Jean Jacques-Rousseau.
Ao se oporem ao poder absoluto, os mencionados pensadores
identificaram o estado de natureza em oposição ao estado civil. Cada qual,
segundo conveniências peculiares, concebia uma razão específica para a
transição entre os dois domínios, oferecendo assim diferentes fatores de
origem e legitimidade do governo civil. A fundação da soberania civil se daria
no contrato social, um instrumento hipotético que legitimaria tal renovação
política e jurídica na sociedade uma vez que todos consentiriam para esta
nova realidade.
Nesse sentido, John Locke94 é o pensador que melhor soube esboçar uma
reação contra o absolutismo, o que se justifica pela compreensão do autor no
que tange à concentração de poderes no Estado pós-contratual, ao prever que
o poder estatal deveria ser distribuído entre vários órgãos, cada qual
encarregado de uma tarefa específica. Com efeito, um órgão deveria legislar e
o outro solucionar os litígios. Assim, o monarca deixara de enfeixar em suas
mãos todo o poder estatal, e Locke constituiu-se um dos notáveis ideólogos
da doutrina da “separação” de poderes95.
Em seu famoso livro Dois Tratados Sobre o Governo, Locke comenta que
“sempre que qualquer número de homens estiver unido numa sociedade de
modo que cada um renuncie ao Poder Executivo da lei da natureza e o
coloque nas mãos do público, então, e somente e então, haverá uma sociedade
política ou civil. E tal ocorre sempre que qualquer número de homens no
estado de natureza entra em sociedade para formar um povo, um corpo
político sob um único governo supremo, ou então quando qualquer um se
junta e se incorpora a qualquer governo já formado. Pois com isso, essa
pessoa autoriza a sociedade ou, o que vem a ser o mesmo, o Legislativo desta a
elaborar leis em seu nome segundo o exija o bem público, a cuja exceção a sua
própria assistência é devida. E isso retira os homens do estado de natureza e
os coloca no de uma sociedade política, estabelecendo um juiz na Terra,
investido de autoridade para resolver todas as controvérsias e reparar os
danos que possam advir a qualquer membro da sociedade”.
Vê-se, portanto, o especial enfoque que esse autor confere às funções
legiferante e judicante: sua criação, autonomia e independência eram o
diferencial entre o estado de natureza e o estado civil. Ao contrário de
Thomas Hobbes, Locke não teorizava o estado pré-civil como uma guerra
declarada, mas um conflito em potencial: o problema se estabelece quando
cada um resolve julgar as questões segundo seu alvedrio e aplicar penalidades,
motivos que implicam o desejo de formar um governo com a mesma lei e
jurisdição autônoma. Assim, acima de todos os fatores, o autor consigna um
governo pautado na legalidade que proteja a propriedade e a liberdade, traços
de um governo civil.
Jean-Jacques Rousseau é outro autor que via a necessidade de se buscar o
governo civil. Rousseau nutria profundo pessimismo com a sociedade de sua
época, razão por que enaltecia o homem em seu estado de natureza, o
denominado “bom selvagem”. Pela sua inerente perfectibilidade e o desejo de
consumo nascido na revolução industrial, os indivíduos buscariam apenas
posses, esquecendo-se do presente para viver o futuro. Seu pacto social visava
defender “cada associado com toda a força comum, e pela qual cada um,
unindo-se a todos, só obedece contudo a si mesmo, permanecendo assim tão
livre quanto antes”96. Para tanto, estabeleceu a vontade geral, segundo a qual
cada membro adulto deveria participar da elaboração das leis. O
consentimento geral garantiria a isonomia, pois seria como se cada um
legislasse para si.
Somado ao pensamento de John Locke, Jean-Jacques Rousseau e também
Montesquieu, as revoluções liberais (Revolução Inglesa iniciada em 1640,
Revolução Americana de 1776 e a Revolução Francesa de 1789) foram
eventos referenciais na história ocidental por fortalecerem o Estado liberal-
burguês ao se buscar a proteção jurídica aos direitos fundamentais de
primeira dimensão97.

3. Estado Liberal
Enquanto o Estado civil concebia a necessidade de se estabelecer um
governo em que o cidadão teria participação nas decisões coletivas, o Estado
liberal também surgiu como uma resposta ao absolutismo, mas ia além da
ideia de governo civil, na medida em que os liberais buscavam um arquétipo
estatal limitado, com (poucas) competências bem definidas, além de direitos
reconhecidos. Norberto Bobbio98 situa muito bem o nascimento do Estado
liberal: ele nasce de uma “contínua erosão do poder absoluto do rei”.
Seus principais alicerces são a liberdade e a propriedade privada. Inspirado
pela máxima de Gournay, lembrada por James Henderson99, laissez-faire,
laissez-passer lê monde va de lui-même (“deixai fazer, deixai passar, o mundo
caminha por si só”), ele não interfere na esfera privada e nas relações entre
particulares, sendo, por conseguinte, um Estado absenteísta. Sua atuação
cinge-se à proteção dos direitos individuais e à limitação do poder estatal.
Assim, colocou-se o indivíduo no centro da questão política, motivo pelo qual
Norberto Bobbio100 afirma que “sem individualismo não há liberalismo”.
O liberalismo tem seu apogeu com o surgimento dos ideais iluministas,
movimento racionalista cujo intuito era romper com os alicerces medievais.
Em nível político, as teses iluministas de Francis Bacon e John Locke
bombardeavam a justificação divina para a autoridade dos reis. O pressuposto
filosófico do Estado liberal é o jusnaturalismo, no qual se reconhece que todos
os homens indiscriminadamente dispõem de um catálogo de direitos
fundamentais irrenunciáveis, tais como os direitos à vida e à liberdade.
O grande emblema do Estado liberal é a Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão de 1789, aprovada no ímpeto da revolução. Seu texto
com dezessete dispositivos carrega o furor por libertação do Ancien Régime,
absoluto e arbitrário, que tomou conta da França. Inspirados pela
Constituição dos Estados Unidos de 1787, os constituintes franceses
proclamaram os direitos “naturais, inalienáveis e sagrados” dos homens,
tendo a liberdade como maior apanágio da nova estrutura política e jurídica
que seria constituída no país. Ela é apontada na Declaração em suas diferentes
concepções: liberdade política (art. 1º), liberdade perante a lei (art. 4º),
liberdade pessoal pela garantia contra qualquer prisão, detenção ou pena
arbitrária que não seja estipulada pela lei (artigos 7º e 8º); presunção de
inocência (artigo 9º); liberdade de opinião e de livre expressão (artigos 10 e
11); e liberdade de culto (artigo 10).
Ao lado da liberdade, a igualdade consta logo do artigo primeiro101; seu
objetivo era bombardear a enraizada sociedade de classes francesa e enaltecer
a soberania popular. A maior demonstração do espírito revolucionário e do
anseio por libertação durante a Revolução Francesa advém desse dispositivo
primeiro, um “preâmbulo” que abalava a estrutura feudal e nobiliárquica
profundamente enraizada em toda a Europa e de modo especial na França.
Assim, o documento proclama que a finalidade do Estado é a garantia dos
direitos naturais (liberdade, a propriedade a segurança e resistência à
opressão) e salvaguarda à lei como expressão da vontade geral. Para Hannah
Arendt102, a Declaração de Direitos francesa não pretendia anunciar apenas
uma nova fonte de legitimidade do poder ao substituir a monarquia pelo
regime republicano pautado na soberania popular, mas se apresentar como a
pedra fundamental de um novo corpo político erigido sobre a liberdade,
substrato e finalidade do governo e do poder.
A figura que pode representar esse Estado é a de um policial que resguarda
as liberdades dos cidadãos para o melhor desenrolar de seus negócios
privados. O principal interesse dos cidadãos, por sua vez, era o de garantir um
locus de suas vidas distante da intervenção do poder público. É o significado
da primeira dimensão de direitos fundamentais.
Historicamente, o Estado liberal foi uma conquista do pensamento que se
impôs no século XVIII. Desejando assegurar um ambiente de ordem jurídica
e política para possibilitar seus negócios, a burguesia ascendente defendia o
estabelecimento de limites ao despotismo político e à garantia de liberdade
nos negócios privados. O ideário burguês foi interpretado por John Stuart
Mill103 nos seguintes termos: “há um limite para a interferência legítima da
opinião coletiva sobre a independência individual, e encontrar esse limite,
guardando-o de invasões, é tão indispensável à boa condição dos negócios
humanos como a proteção contra o despotismo político”.
A supremacia do liberalismo econômico em conjunto com as revoluções
industriais ocorridas na Europa e nos Estados Unidos gerou um processo de
muita desigualdade entre as pessoas. Foi o mote que teóricos sociais, como
Karl Marx e Friedrich Engels, encontraram para criticar tal modelo que
beneficiava diretamente a burguesia. Desde então, para restabelecer o
equilíbrio das relações entre os particulares e entre esses e o Estado, tornou-se
necessária alguma intervenção estatal, que varia de acordo com cada país.
É importante ressaltar que os princípios liberais retornaram ao contexto
político nas últimas décadas do século XX. Em boa parte do mundo, a
começar dos governos de Margareth Thatcher na Inglaterra e Ronald Reagan
nos Estados Unidos, os países adotaram políticas neoliberais: privatizações de
empresas estatais, benefícios ao capital privado, ajuste fiscal, redução de
direitos sociais, entre outras medidas. Vários setores da atividade estatal
foram transferidos para a iniciativa privada como forma de reduzir a
participação do Estado e diminuir a estagflação oriunda da política
keynesiana.
Os principais economistas dessa corrente foram Ludwig Von Mises e
Friedrich Hayek, ambos da escola austríaca. Sob tal ideologia, diversos países,
como o Brasil, privatizaram alguns serviços públicos antes ofertados pela
Administração Pública, tais como telefonia, energia elétrica e conservação de
estradas de rodagem.
4. Estado Social e de Bem-Estar
O Estado social e de bem-estar surgiu no Ocidente como resposta ao
avanço do pensamento comunista no século XX, tendo como escopo a
relativização do liberalismo clássico para tornar o Estado mais atuante na
sociedade em prol de justiça social.
O Estado liberal se tornou fatigado devido aos movimentos operários que
denunciavam a contradição entre a lei, que proclamava a igualdade de todos,
e a dura realidade experimentada pelos proletários. Ao fazer valer a liberdade
e a propriedade, direitos que mais interessavam à classe burguesa, a igualdade
era apenas formal. Em outras palavras, embora os documentos proclamassem
a igualdade de todos, a realidade era de imensa desigualdade econômica e
política na sociedade europeia dos séculos XVIII e XIX.
Assim, Luigi Ferrajoli104 pontua que “o núcleo essencial das primeiras
cartas fundamentais [...] é formado por regras sobre o limite dos poderes e
não sobre a fonte ou as suas formas de exercício”. Não obstante, o enfoque
dos textos liberais eram os limites de atuação do poder do Estado e não
essencialmente a promoção de maior igualdade entre as classes.
A progressiva exploração dos trabalhadores gerou ao menos duas
consequências. A primeira delas se relaciona às lutas sindicais ao longo do
século XIX. A segunda consequência é a de ter estabelecido o terreno fértil
para que as ideias de Karl Marx, Friedrich Engels e outros pensadores
comunistas pudessem germinar, fator que determinou a história política de
todo o século XX.
Enquanto o liberalismo visava a intervenção pontual do Estado de modo a
permitir a ampla liberdade individual, os entusiastas sociais consignavam a
presença maciça do Estado para equilibrar as relações entre os particulares e
promover justiça social. Um detalhe importante é o de que o postulado
marxista visava o fim do Estado: o Estado, a economia capitalista, a ideologia,
o Direito e a cultura são todos elementos constituintes de uma superestrutura
mantenedora da exploração entre as classes. Para Marx, ao ter germinado
neste solo de desigualdade e luta de classes, as instituições políticas e jurídicas
emanadas da burguesia liberal não poderiam ser transformadas ou corrigidas.
O fim da exploração demandava o fim do Estado e de suas instituições.
A crítica do comunismo ao longo do século XIX se tornou audível demais
para não ser percebida. Seu ponto mais alto foi a criação da URSS - União das
Repúblicas Socialistas Soviéticas, país que encampou oficialmente o
comunismo como modelo de Estado. Para evitar o desmoronamento do
liberalismo, a concepção do Estado no Ocidente (em especial dos países
europeus) sofreu reformas em sua concepção original105. Assim, concebeu-se
o Estado de bem-estar social (Welfare State), com a finalidade de recompor a
igualdade social, econômica e cultural.
O Estado de bem-estar teve início no século XIX, porém foi no século XX
que atingiu seu ponto mais elevado. A Constituição do México (1917), a
Declaração de Direitos do Povo Trabalhador e Explorado da União Soviética
(1918) e a Constituição alemã de Weimar (1919) foram os primeiros
documentos normativos que asseguraram direitos próprios do Estado social.
Na segunda metade do século XX, o Estado de bem-estar social vigorou em
grande quantidade de países, tanto naqueles governados por comunistas
quanto nos administrados por governos liberais. Na Europa ocidental foi
adotado, sobretudo, para conter o avanço do comunismo. Já na América
Latina, a estratégia para conter o avanço comunista na região foi a adoção de
regimes militares, apoiados e financiados pelos Estados Unidos.
No Brasil, observa-se uma primeira fase de avanço de políticas sociais na
“era Vargas”, quando Getúlio Vargas aprovou uma legislação benéfica aos
trabalhadores. Desde 1995, com a consolidação do Plano Real e as políticas
sociais dos governos de Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da
Silva e primeiro mandato de Dilma Rousseff, milhões de pessoas saíram da
linha da pobreza e experimentaram uma condição de vida melhor. Contudo,
a crise econômica que atingiu o país a partir de 2015 inverteu a curva
descendente da miséria, lançando milhões de pessoas à extrema pobreza.
Flávio Pansieri106lembra que, apesar de ter implantado diversas políticas
de atendimento aos necessitados, o Brasil ainda “não alcançou seu estado de
bem-estar social e, atualmente, mesmo com possibilidades de manobras
econômicas para seu desenvolvimento, permanece limitado a fatores
econômicos internacionais, que condicionam as ações governamentais à
sobrevivência do capital”. Nesse sentido, a efetivação de políticas sociais tem
esbarrado no dever de honrar compromissos assumidos no campo
econômico, seja na ordem internacional, como o pagamento de juros da
dívida, seja pelos déficits orçamentários que assolam o país.
É preciso pontuar, por fim, a complexidade em se estabelecer o que seja
bem-estar. Se o Estado desenvolver uma política de alocação de recursos em
determinadas áreas, a fim de aprimorar a qualidade de vida das pessoas (em
tese, de todas as pessoas), qual critério deve ser utilizado para a tomada dessa
decisão? Sendo os recursos escassos, é justo, razoável e seguro aumentar o
bem-estar de algumas pessoas em detrimento de tantas outras? Ronald
Dworkin, notável jurista norte-americano, foi quem melhor demonstrou tal
dificuldade, haja vista a ideia de realização do bem-estar variar segundo o
desejo de cada indivíduo107. Como não há um parâmetro para igualar a todos
e descobrir qual seria a noção razoável de bem-estar, o autor rejeita tal
concepção como critério para a definição de como será feita a divisão de
recursos em uma sociedade.
Por conseguinte, embora o Estado de bem-estar social tenha existido por
certo tempo, diminuindo a desigualdade social e melhorando a qualidade de
vida da população, é preciso discutir seriamente a sua viabilidade, em razão
de os desejos serem infinitos e as possibilidades escassas. Todavia, tal
dificuldade não pode ser utilizada como pretexto para a omissão das políticas
públicas, em especial no combate à pobreza, à marginalização e à baixa
escolaridade da população.

5. Estado Democrático de Direito


O Estado Democrático de Direito é uma evolução do mero Estado do
Direito. Enquanto este buscava afirmar os princípios da laicidade e da
legalidade (em um momento em que algumas figuras estavam acima de toda
legislação), o Estado Democrático de Direito assume os objetivos
fundamentais da democracia. Esta afirmação seria redundante não fosse o
conceito de democracia ser pleno de controvérsias. Trataremos desse regime
político mais à frente, mas se pode afirmar desde já que a essência do Estado
Democrático de Direito se filia à noção de transformação social operada pelas
regras do Direito.
Para José Afonso da Silva108, a principal tarefa do referido modelo consiste
“em superar as desigualdades sociais e regionais e instaurar um regime
democrático que realize a justiça social”. Para tanto, ele aponta os princípios
que norteiam a consecução deste grande objetivo: a) o princípio da
constitucionalidade (legitimidade atrelada a uma Constituição promulgada,
escrita e com supremacia em relação ao ordenamento jurídico); b) o princípio
democrático (garante a participação plural); c) o sistema de direitos
fundamentais (direitos individuais, coletivos, sociais e culturais); d) o
princípio da justiça social; e) o princípio da igualdade; f) os princípios da
divisão de poderes e da independência do juiz; g) o princípio da legalidade; h)
o princípio da segurança jurídica.
Na luta travada ao longo do século XX pela afirmação dos modelos de
Estado liberal (intervenção mínima) e comunista (estatização plena), o Estado
democrático surge como uma terceira via ao aglutinar princípios daqueles
dois modelos. Seu fortalecimento ocorreu após o mundo assistir a um levante
de governos autoritários na Europa, na primeira metade do século XX. A
legitimação do Estado autoritário, na visão de Paolo Biscaretti di Ruffìa109,
deveu-se pela ampliação do Poder Executivo, tendo em vista maior eficiência
na busca pelos interesses nacionais, e pela diminuição da capacidade de
controle legislativo.
Prevalece no Estado democrático de Direito a democracia como
instrumento para a tomada das decisões coletivas (soberania popular) e a
proteção dos direitos fundamentais. Além disso, ao lado do processo de
fortalecimento desses ideais, está o avanço do movimento de
constitucionalização de direitos, que adquiriu especial relevo após a Segunda
Guerra Mundial. A Constituição se consolida, então, como documento
normativo que valida todo o ordenamento dos Estados. Na lição de Hans
Kelsen110, a Constituição “é sempre o fundamento do Estado, a base da
ordem jurídica que se quer apreender”.
Portanto, a Constituição no centro (em uma visão helicoidal) ou no topo
do ordenamento jurídico (visão piramidal) significa que sua eficácia se irradia
para todo o sistema jurídico de um país. Logo, a Constituição assume uma
função normativo-diretiva que condiciona as esferas pública e privada aos
seus preceitos. O controle de constitucionalidade nasce exatamente desse
locus de paradigma normativo assumido pela Constituição escrita: as normas
que não estiverem de acordo com o paradigma (formal e materialmente)
devem ser repelidas do sistema. Assim, reconhecida a eficácia inerente às
normas constitucionais, pode-se dizer que o Estado democrático demanda a
existência de uma jurisdição constitucional.
No Estado democrático de Direito, portanto, reconhece-se a força
normativa da Constituição e o caráter claramente compromissário do Direito
para com a sociedade. Esse processo objetivou a uma natural aquisição de
preponderância por parte do Judiciário e a uma considerável evolução da
jurisdição constitucional, isto é, do sistema de proteção e aplicação das
normas constitucionais. Nos termos de Hans Kelsen111: “a garantia
jurisdicional da Constituição – a jurisdição constitucional – é um elemento
do sistema de medidas técnicas que têm por fim garantir o exercício regular
das funções estatais”.
Destarte, a constitucionalização dos direitos consolida a ampliação da
jurisdição constitucional que altera o papel do juiz no Estado: ele sai da mera
aplicação autômata da norma e “passa a integrar o circuito de negociação
política”, nas palavras de Lenio Streck112. Se as normas constitucionais
vinculam os agentes políticos, e o Tribunal Constitucional detém a última
palavra sobre sua extensão e seu conteúdo, claramente se identifica um
Judiciário integrante do campo de decisões estatais. Em outras palavras, o
Judiciário entra na arena de temas que vão além do juiz privatista e mero
aplicador da norma, que mediante subsunção resolve os casos concretos. O
papel do juiz deixa de ser somente la bouche de la loi (o juiz boca da lei) para
assumir a função de la bouche du droit (o juiz boca do Direito)113.
Esse fenômeno tem sido observado, em especial, em virtude de a
democracia trazer à pauta de discussões diversos temas que envolvem
questões polêmicas na sociedade, como aborto, liberação de entorpecentes,
pena de morte e eutanásia. Ao não encontrar consenso no Parlamento, tais
discussões são levadas à Suprema Corte, o que apenas amplia a dinâmica
participativa do Judiciário. Com efeito, surge um interessante problema do
ponto de vista constitucional: juízes não eleitos pelo voto da população devem
decidir questões morais abstratas? A resposta depende do entendimento que
se tem acerca da democracia: se ela for lida apenas sob a premissa majoritária
(isto é, um método de tomada de decisão coletiva da maioria), a jurisdição
constitucional pode ser considerada antidemocrática. Em outra vertente,
consoante expõe Ronald Dworkin114, a jurisdição pode contribuir para que a
democracia cumpra sua finalidade, conceituando-a como “autogoverno com
a participação de todas as pessoas, que atuam conjuntamente como membros
de um empreendimento comum, em posição de igualdade”. Para Dworkin, a
regra majoritária só seria válida quando atendidas três condições: a) igual
oportunidade de todos os cidadãos na vida política; b) igual participação de
todos os cidadãos no governo; c) liberdade individual de todos os cidadãos
para decidir sobre questões religiosas e éticas.
Em qualquer caso, a jurisdição constitucional, que opera na relação entre
os aspectos jurídico e político da Constituição, é uma atividade de tensão.
Trata-se da velha discussão platônica entre conferir mais poder a politeia
(assembleia dos cidadãos) ou ao nomoi (juízes). Decisões sobre fornecimento
de medicamentos ou a determinação ao Poder Legislativo para editar uma
norma mostram claramente a tensão entre os domínios jurídico e político.
Entretanto, é necessário mencionar que a tensão é um elemento ínsito a
qualquer sistema político. O que diferencia os regimes políticos é o modo
como ela é administrada: enquanto nos regimes autoritários os conflitos são
tratados como subversão à ordem imposta, já que seu desiderato é a busca por
uma fictícia unidade, na democracia a tensão é cultivada como parte inerente
da participação plural, resguardando-se os direitos e garantias fundamentais
de todos.
Carl Schmitt115 tratou da questão acima em notável análise da relação
entre amigos e inimigos no bojo do Estado de Direito. Segundo ele, um
mundo sem a pluralidade, isto é, sem a possibilidade desse combate que
congrega diferentes pontos de vista resguardados pela autoridade da lei “seria
um mundo sem a distinção entre amigo e inimigo, por conseguinte, um
mundo sem política”. Tensão e pluralidade, portanto, caminham juntas.
Quanto maior o espaço de participação democrática, tanto maior será a
dificuldade em se atingir decisões coletivas. Tal relação antitética resume um
dos grandes dilemas inerentes ao regime democrático.

6. Estado Total
Para além dos modelos citados, indicamos ainda outras duas concepções.
A primeira é a do Estado total. Essa denominação é de autoria do jurista
alemão Carl Schmitt, notabilizado pelo debate com Hans Kelsen sobre o
guardião da Constituição116, no qual os autores defendiam posições distintas
entre si: enquanto Kelsen acreditava que tal função é jurisdicional, devendo
ser desempenhada por um Tribunal Constitucional, Schmitt defendia o status
político da função de guarda constitucional e, nesse sentido, o chefe de Estado
(Presidente do Reich alemão) deveria dispor dessa competência. Registre-se
que, apesar de o debate ter sido inicialmente “vencido” por Schmitt, com o
julgamento do caso Prússia versus Reich de 1925, a tese de Kelsen foi adotada
como paradigma no pós-guerra, prevalecendo, assim, o modelo da jurisdição
constitucional.
A posição de Schmitt se justifica em virtude do seu conceito de
Constituição, que deve ser distinto do conceito de lei constitucional. A
principal distinção entre lei constitucional e Constituição é que nesta subjaz o
poder constituinte que lhe confere força e essência. Em outras palavras, há
uma decisão ou vontade política que outorga legitimidade à Constituição.
Sem tal vontade política, estaremos falando de leis constitucionais, cujo
fundamento repousa na Constituição117. Assim, o chefe de Estado, que está
fora das questões governamentais e legislativas, seria um poder neutro apto a
impedir violações à Constituição e garantir a vontade política do povo.
A noção de Estado total é extraída desse contexto. Por qual razão o
Legislativo não poderia ser o guardião da Constituição? Obviamente, há um
consenso de seu impedimento: sendo os detentores do processo legislativo
ordinário, os parlamentares dispõem dos principais instrumentos para alterar
o texto constitucional segundo as suas próprias conveniências. Gilberto
Bercovici118 lembra que a divisão dualista entre governo e legislativo é um
legado liberal. Por outro lado, a democracia de massa atenuou a força do
Parlamento, pois dentro dele não há qualquer força política superior a todas
as demais que brigam entre si. Portanto, nas precisas palavras de Bercovici, “a
fé no parlamentarismo é fruto do liberalismo, não da democracia”.
O resultado desse processo, segundo Schmitt, é uma homogeneidade
indelével, responsável por destruir a dicotomia governo e povo ou sociedade e
Estado sobre a qual o liberalismo se apoiou para erigir suas instituições
políticas e jurídicas. Assim, não há mais esfera da vida reservada à
intervenção pública, constituindo um Estado total. O Parlamento, de acordo
com tal hipótese, não dispõe dos meios suficientes para resolver as questões
atinentes à pluralidade, em especial, aos problemas econômicos da sociedade.
A mudança em questão, afirma Schmitt119, é parte de um desenvolvimento
dialético composto de três fases: “do Estado absolutista dos séculos XVII e
XVIII, passando pelo Estado neutro, do liberal século XIX, para o Estado total
da identidade entre Estado e sociedade”. Para o autor, portanto, o Estado total
é fruto da assunção da democracia de massa em detrimento dos ideais
políticos liberais fundados na separação entre Estado e sociedade.

7. Estado Totalitário
O último modelo de Estado a ser analisado é o totalitário. Nessa seara,
destaca-se o pensamento da filósofa Hannah Arendt. Em Origens do
Totalitarismo, seu primeiro livro publicado, a autora aponta que esse regime
político se difere pelo domínio absoluto pautado no terror, “não como meio
de extermínio e amedrontamento dos oponentes, mas como instrumento
corriqueiro para governar as massas perfeitamente obedientes120”. Domínio
absoluto deve ser compreendido como aquele que elimina as esferas do
público e privado: o domínio se estende a todas as esferas da vida.
A diferença entre o totalitarismo e a ditadura, na visão de Arendt, é que na
última se verifica o déficit legislativo e o abuso do Poder Executivo. O Estado
totalitário, por sua vez, não se funda sob tal compreensão: o terror é o ponto
elementar do sistema. Em outras palavras, a principal distinção entre o
domínio totalitário, baseado no terror, e as tiranias e ditaduras, mantidas
pelos aparatos de violência, é que o primeiro se volta não apenas contra os
seus inimigos mas também contra os amigos, pois teme todo o poder, até
mesmo o poder dos amigos. Nos termos de Arendt121, o clímax do terror é
alcançado “quando o Estado policial começa a devorar os seus próprios filhos,
quando o carrasco de ontem torna-se a vítima de hoje”.
Portanto, é fácil perceber a distinção entre o Estado absoluto e o totalitário.
Em tal cenário, que tem o terror como método político, o campo de
concentração é o palco onde o regime totalitário encena sua nefasta
representação. O objetivo é estabelecer o domínio total, isto é, processo em
que se buscou interferir na natureza humana com base no terror absoluto.
Segundo doutrina de Hannah Arendt122, os passos para o domínio total
são: a) a morte da personalidade jurídica, isto é, a paulatina privação de
direitos dos grupos a serem exterminados; b) a morte da consciência ou
personalidade moral, realizada pela elevação da moralidade irracional ao
status de regra; c) a morte da personalidade humana, ou seja, da singularidade
de cada um sem lhe roubar a vida biológica. Nos campos de concentração, as
pessoas eram desprovidas dos elementos que lhe distinguiam como
indivíduos (nomes, roupas, cabelos) de modo a demonstrar a sua
superfluidade. O objetivo era destituir o ser humano de sua liberdade.
Por detrás do sofisticado sistema eugênico mencionado, Arendt
identificava um mal incompreensível. Em 1963, a filósofa foi convidada pela
revista The New Yorker para acompanhar o julgamento do general nazista
Adolf Eichmann, autoridade responsável pela logística dos campos de
concentração, ou seja, por sua decisão as pessoas eram enviadas aos campos
de concentração. O homem que encaminhara centenas de milhares de
pessoas à morte seria um monstro? Ao contrário, Arendt relata que tinha
diante de si um homem normal, um típico e zeloso funcionário público que
repetia sistematicamente que apenas havia cumprido as ordens de seus
superiores. E aí estava a sua maior preocupação: “Eles sabiam [os julgadores],
é claro, que teria sido realmente muito reconfortante acreditar que Eichmann
era um monstro (...). O problema com Eichmann era exatamente que muitos
eram como ele, e muitos não eram nem pervertidos, nem sádicos, mas eram e
ainda são terrível e assustadoramente normais”123.
Para Arendt, essa perturbadora face da realidade mostrava que o
holocausto foi conduzido por pessoas sãs, que aquele mal não fora perpetrado
por monstros mitológicos ou por pessoas com capacidades cognitivas
debilitadas. Com o livro Origens do Totalitarismo, escrito em 1951, a
pensadora buscava compreender um mal que se mostrava radical com base
no conceito forjado por Kant124. Ao publicar o livro Eichmann em Jerusalém,
em 1963, Arendt criou o termo banalidade o mal, caracterizado por ser vão,
insignificante, um mal que não tinha motivos “humanamente
compreensíveis”. Ou seja, no domínio totalitário, a vida não tem qualquer
valor.
O totalitarismo demandou uma renovação das tradicionais categorias
jurídicas, uma vez que seus crimes não estavam previstos em nenhum
ordenamento jurídico: tratava-se de uma nova espécie de crime (os massacres
administrativos) e de um novo tipo de criminoso: aquele que age contra a
humanidade.
Para Hannah Arendt, o holocausto levado a cabo pelo Estado totalitário
produziu um mal além da compreensão humana, o mal tornado banal,
cotidiano, trivial.

Conclusões
1. O Estado absoluto, sob o ponto de vista histórico-constitucional, é
aquele no qual o poder está concentrado em apenas uma autoridade, que o
utiliza com discricionariedade desde que limitado pelas próprias tradições e
costumes. Não se confunde com a tirania, que é a utilização do poder pelo
governante em seu autobenefício.
2. Estado civil é o que dispõe de um governo exercido pelos cidadãos como
oposição a um modelo absoluto. Teve como arauto diversos pensadores,
dentre os quais os contratualistas dos séculos XVII e XVIII.
3. Estado liberal é fruto de uma ideologia que alça a garantia da liberdade
individual como principal fundamento político, econômico, intelectual e
religioso do Estado. Para tanto, enuncia que o ente estatal deve intervir pouco
na dinâmica social. Defendia a propriedade privada como um de seus
principais fundamentos.
4. Estado social e de bem-estar surgiu no Ocidente, em especial na Europa,
como resposta ao avanço comunista no século XX. Trata-se de uma variação
do Estado liberal, em que se prevê maior intervenção estatal na sociedade em
busca de justiça social.
5. Estado democrático de Direito é resultado da combinação da
democracia (soberania popular) e Estado de Direito (limitação do poder pela
legalidade). A junção das duas ideologias encontrou no constitucionalismo
um terreno fértil para se desenvolver.
6. Estado total é uma hipótese concebida por Carl Schmitt, na qual se
verifica a liquefação das esferas do Estado e da sociedade por conta da
democracia de massa. O resultado, na visão de Schmitt, é a inexistência de um
espaço pessoal alheio à intervenção pública.
7. O Estado totalitário teve seu apogeu no século XX, sobretudo durante as
ditaduras nazista, de Adolf Hitler, e stalinista, de Josef Stalin. Trata-se de um
regime que se vale do terror como instrumento de domínio, tendo provocado
genocídios ao longo de sua existência. O Estado totalitário é um atentado
contra a dignidade humana por nele vicejar a banalidade do mal (Hannah
Arendt).

83 Este tema foi abordado no capítulo anterior.


84 Esta relação também foi abordada no capítulo anterior, ao tratar do Estado moderno.
85 SCHMITT, Carl. O Guardião da Constituição. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 111.
86 SCHIERA, Pierangelo. Absolutismo. In BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO,
Gianfranco. Dicionário de Política, p. 02-07.
87 MALUF, Sahid. Teoria do Estado, p. 120.
88 KANTOROWICZ, Ernst. Os Dois Corpos do Rei: um estudo sobre teologia política medieval. São
Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 51.
89 ELIAS, Norbert. A Sociedade de Corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da aristocracia de
corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 61-64.
90 SOMMERVILLE, Jóhann P. Filmer: Patriarcha and Other Writings. Cambridge, Cambridge
University Press, 1991.
91 HOBBES, Thomas. O Leviatã. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 133 (Os Pensadores).
92 A expressão Século das Luzes se refere ao período de apogeu do iluminismo (século XVIII), cujo
desiderato era estabelecer o racionalismo científico como instrumento de renovação do pensamento
humano, em especial para superar o legado da Idade Média, fundado em dogmas teológicos. Tal
temática foi objeto do capítulo que discorre sobre o Estado moderno.
93 KANTOROWICZ, Ernst. Os Dois Corpos do Rei, p. 17.
94 LOCKE, John. Dois Tratados Sobre o Governo, p. 502-528.
95 Aos ensinamentos de John Locke, especificamente sobre a doutrina da “separação” de poderes,
voltar-se-á mais adiante, em razão de sua enorme importância, especialmente no âmbito da Teoria
do Estado.
96 ROUSSEAU, Jean Jacques. O Contrato Social, p. 20-21.
97 Para aprofundar este tema, confira: FACHIN, Zulmar; SAMPAR, Rene. Construção Histórica dos
Direitos Fundamentais. In Novos Rumos dos Direitos Especiais da Personalidade e Seus Aspectos
Controvertidos. Curitiba: Juruá, 2013, p. 213-226.
98 BOBBIO, Norberto. Liberalismo e Democracia. São Paulo: Brasiliense, 2000, p. 14.
99 HENDERSON, James P. The State of The History of Economics: proceedings of the history of
economics society. London, New York: Routledge, 1997, p. 173-174.
100 BOBBIO, Norberto. Liberalismo e Democracia, p. 16.
101 Artigo 1º: “Os homens nascem e são livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem
fundamentar-se na utilidade comum”.
102 ARENDT, Hannah. Sobre a Revolução. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 150-151.
103 MILL, John Stuart. A Liberdade, p. 11.
104 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão, p. 792.
105 Cf: SAMPAR, Rene. Segurança Humana e Efetividade do Humanismo Jurídico. Disponível em:
<http://www.abdconst.com.br/revista3/renesampar.pdf>. Acesso em: 17/04/2021.
106 PANSIERI, Flávio. Direito e Economia: a crise paradigmática e a teoria constitucional brasileira. In
NUNES, Antônio José Avelãs; COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (Orgs.). Diálogos
Constitucionais: Brasil/Portugal. Rio de Janeiro: Renovar, p. 439-446, 2004, p. 443.
107 Dworkin pontua no início de seu livro Virtude Soberana: “suponhamos, por exemplo, que um
homem razoavelmente abastado tenha alguns filhos, um dos quais é cego, outro é um playboy com
preferências dispendiosas, um terceiro tem pretensões políticas com aspirações dispendiosas, outro é
um poeta com necessidades humildes, outro é um escultor que trabalha com material caro etc. Como
ele deve elaborar seu testamento?”. Esta provocação serve de mote apenas para exemplificar a
monumental diferença entre as pessoas e a dificuldade em se estabelecer um critério que satisfaça
igualmente aos seus desejos. Por isto, o autor não propõe uma igualdade de bem-estar, mas a
igualdade na distribuição dos recursos, permitindo que cada qual, a partir de então, seja livre nas
suas escolhas. Para aprofundar a discussão, confira: DWORKIN, Ronald. A Virtude Soberana: a
teoria e a prática da igualdade. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 05 e seguintes.
108 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 36ª. ed. rev. e atual. São Paulo:
Malheiros, 2013, p. 114.
109 RUFFÌA, Paolo Biscaretti di. Introduzione al Diritto Costituzionale Comparato. Milano, Dott. A.
Giuffrè Editore, 1988, p. 62-63.
110 KELSEN, Hans. Jurisdição Constitucional. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 130.
111 KELSEN, Hans. Jurisdição Constitucional, p. 123-124.
112 STRECK, Lenio. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: uma exploração hermenêutica da construção do
direito. 10 ed. rev. atual e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 19.
113 Cf.: FILHO, Willis Santiago Guerra. Autopoiesis na Sociedade Contemporânea. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 1997, p. 37.
114 DWORKIN, Ronald. A Justiça de Toga. São Paulo: Martins Fontes, 2016, p. 190.
115 SCHMITT, Carl. O Conceito de Político, p. 37.
116 O debate entre Carl Schmitt e Hans Kelsen pode ser melhor compreendido a partir da leitura dos
dois textos originais: O Guardião da Constituição, de Schmitt, e Quem deve ser o guardião da
Constituição, de Kelsen.
117 SCHMITT, Carl. Teoría de La Constitución. Madri: Alianza Editorial, 1996, p. 29-62.
118 BERCOVICI, Gilberto. Carl Schmitt, o Estado total e o Guardião da Constituição. Revista Brasileira
de Direito Constitucional, n. 1, jan./jun. – 2003, p. 196-197.
119 SCHMITT, Carl. O Guardião da Constituição, p. 117.
120 ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo: antissemitismo, imperialismo, totalitarismo. 9 reimp.
São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 26.
121 ARENDT, Hannah. On Violence. New York: Harcourt, Brace & World, 1969, p. 55.
122 ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo, p. 498-510.
123 ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. 14 reimp. São
Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 299.
124 Tal conceito aparece em Kant no texto A religião dentro dos limites da simples razão.
V
Formas de Estado, Formas de
Governo e Sistemas de Governo
1. Formas de Estado.1.1 Estado Unitário; 1.2 Estado Regional ou Autônomo; 1.3
Estado Federal. 2. Formas de Governo. 2.1 Monarquia; 2.2 República; 2.3
Despotismo ou Tirania; 2.4 Aristocracia; 2.5 Oligarquia. 3. Sistemas de Governo.
3.1 Presidencialismo; 3.2 Parlamentarismo; 3.3 Diretorial; 3.4 Conselhos.
Conclusões.

1. Formas de Estado
O Estado, do latim status, significa condição, ordem, posição. Trata-se de
uma realidade complexa, presente na vida de todas as pessoas, as quais, ao
nascerem, já assumem vínculos dos quais somente poderão se libertar em
situações específicas previstas na lei ou na Constituição. Conforme tratado no
início deste livro, foi Maquiavel quem utilizou pela primeira vez o termo
Estado.
No que tange à distribuição geográfica do poder, as formas de Estado mais
utilizadas são: a) Estado unitário; b) Estado regional ou autônomo; c) Estado
federal. Por ser a forma adotada pelo constituinte de 1988, será conferido
enfoque especial ao Estado federal, tratando também de algumas
características peculiares presentes na Constituição de 1988 e a divisão de
competências entre os entes federativos.

1.1 Estado Unitário


No Estado unitário, há um centro de poder detentor do monopólio das
competências relativas à elaboração da lei, ao exercício do governo e à
distribuição da Justiça. As funções Legislativa, Executiva e Judiciária estão
vinculadas a um núcleo de poder. Nesse sentido, afirma Gomes Canotilho125
que a “unidade do Estado significa República una, com uma única
Constituição e órgãos de soberania únicos para todo o território nacional”.
Trata-se da forma mais antiga de organização estatal de que se tem notícias
e ainda muito presente em países com extensão territorial pequena, onde não
há justificativa para a sua divisão (a principal exceção aqui é a China). Alguns
países unitários estabelecem subdivisões. É o caso da França, cuja divisão se
baseia em departamentos, que não se confundem com regiões autônomas por
essa possuírem rol maior de competências.
É importante pontuar que, embora não seja o modelo adotado no Brasil, a
forma unitária de Estado é predominante no mundo. Ela está presente em
grande parte dos países em todos os continentes. Um exemplo interessante é
o do Reino Unido, cujos países possuem autonomia relativa conferida ao
Legislativo local, havendo, todavia, o predomínio da legislação nacional. A
França126 também é um Estado unitário, tendo seu território dividido em
dezoito regiões administrativas subdividas em departamentos. A principal
diferença com o Estado federal é que a unidade político-administrativa
impede a autonomia das regiões, departamentos ou distritos.
O Brasil fora um Estado unitário no período imperial, delimitado
temporalmente entre a independência de Portugal (1822) e a Proclamação da
República (1889). A Constituição de 1824, em seu artigo 2º, dividia o
território brasileiro em províncias, que poderiam ainda ser subdividas de
acordo com o interesse do Estado.

1.2 Estado Regional ou Autônomo


No tipo de Estado em questão, ocorre a descentralização de competências
administrativas e legislativas ordinárias às regiões. Embora o governo
nacional mantenha o controle direto da administração pública e o Estado
possa ser constituído por uma república una e indivisível, as regiões dispõem
de autonomia para tomar decisões naquilo que lhes foi outorgado, podendo,
inclusive, ter uma administração própria, capital e Constituição. Esse modelo
se encontra em posição intermediária entre o Estado unitário descentralizado
e o Estado federal.
É o caso da Espanha, prevendo em sua Constituição (1978) a existência de
dezessete regiões autônomas. São elas: Andaluzia, Aragão, Astúrias, Baleares,
Cantábria, Castela-Mancha, Castela e Leão, Catalunha, Comunidade
Autónoma de Madrid, Comunidade Valenciana, Estremadura, Galiza, Ilhas
Canárias, La Rioja, Múrcia, Navarra e País Basco.
As regiões autônomas nascem pela iniciativa das províncias (são
cinquenta). Essas, reunidas em assembleia, elaboram um estatuto concedendo
autonomia à região, o qual deve ser submetido à apreciação do Parlamento
espanhol. Aprovado, transforma-se em lei especial, que não poderá ser
revogada ou alterada por lei ordinária do Parlamento, mas tão somente por
uma lei especial ou pela própria Constituição127.
A Constituição espanhola, em seu artigo 148, reconhece diversas
competências às comunidades autônomas, tais como: organização de suas
instituições; ordenação de seu território; realização de obras públicas de seu
interesse; gestão em matéria ambiental de seus territórios (incluindo a
exploração da energia hidráulica, águas minerais e termais, além de todas as
espécies de pesca); fomento à economia; gestão de museus, bibliotecas e
conservatórios de músicas; fomento à cultura e à pesquisa; turismo; esporte;
assistência social; saúde; segurança do patrimônio público, entre outros.

1.3 Estado Federal


O Estado federal é um pacto, um acordo, uma aliança ou uma associação
entre várias entidades estatais dotadas de autonomia. Em outras palavras, “é
composto de partes autônomas, de vontades parciais, que devem se relacionar
entre si e com a vontade central” 128. Trata-se de um arranjo interno com a
finalidade de distribuir as competências públicas.
O Estado federal é o inverso do Estado unitário. Pode-se dizer que foi
idealizado como forma de fazer frente ao poder concentrado, na medida em
que distribui determinadas competências ao seus entes federativos. Nasceu
em 1787, com a promulgação da Constituição dos Estados Unidos. Após a
sua independência do domínio britânico, as treze colônias (Connecticut,
Delaware, Georgia, Maryland, Massachussetts Bay, New Hampshire, New
Jersey, New York, North Carolina, Pennsylvania, Rhode Island, South
Carolina e Virginia) se uniram mediante uma confederação129. Essa união foi
selada pelo documento Articles of Confederation, que pode ser considerada a
primeira Constituição daquele país. Após uma década de debates e
congressos, ficou decidido pela alteração do modelo confederativo ao se criar
o sistema federal, capaz de manter equilibradas as competências regionais das
colônias e da União.
O Brasil é uma federação desde 1889. Após a Proclamação da República, o
Governo Provisório editou, na data de 15 de novembro de 1889, o Decreto
número 1, que dispunha sobre o modelo federal130. Atualmente, a
Constituição de 1988 estabelece um rol de prerrogativas distribuídas à União
(emissão de moeda, defesa nacional, declarar guerra, manter relações com
Estados estrangeiros, entre muitas outras), Estados e Distrito Federal
(explorar os serviços de gás canalizado, estabelecer regiões metropolitanas,
regular o transporte intermunicipal, entre outras) e Municípios (em geral,
cuidar de assuntos de interesse local, como transporte coletivo, instituir
guarda municipal para proteção do patrimônio público, oferecer serviços
públicos com a cooperação técnica e financeira dos outros entes, entre outras
competências).
São quatro as formas tradicionais de classificação das federações, que têm
relação com: a) à origem; b) às forças no arranjo federal; c) à divisão de
competências; d) à simetria e assimetria do federalismo.
Com relação à origem, o federalismo pode se dar de duas formas. O
federalismo por agregação ocorre da multiplicidade para a unidade. Em
outras palavras, verifica-se quando há a aliança de uma multiplicidade
independente de entes soberanos, na qual há renúncia de parte de sua
soberania no afã de se constituir uma esfera administrativa, jurídica e política
comum e hierarquicamente superior aos Estados. A característica mais
singular desse modo originário de federação é a existência de governos
autônomos com muitas competências a desempenhar. Os exemplos de
Estados formados sob essa ótica são Estados Unidos, Suíça e Alemanha.
A segunda espécie é o federalismo por segregação, formado da unidade
para a multiplicidade. Aqui ocorre o movimento oposto, ou seja, é o Estado
unitário que se descentraliza no sentido de formar outros Estados. O Brasil se
enquadra nessa hipótese, uma vez que nasceu unificado no Império e se
subdividiu quando foi proclamada a república, tendo recebido influência
direta dos Estados Unidos na adoção dessa forma de Estado.
A segunda classificação remete às forças no arranjo federal do Estado.
Nessa modalidade, verifica-se a existência do federalismo centrípeto, isto é, as
forças são atraídas para o centro, havendo predomínio da União Federal na
repartição de competências; do federalismo centrífugo, na hipótese de as
forças deixarem o centro conferindo maior autonomia aos governos locais; ou
ainda do federalismo de equilíbrio, quando há harmonia de forças.
A próxima classificação se volta à divisão de competências. Essa pode ser
dual, quando o modelo adotado estabelece competências exclusivas, sem
haver interferências de outros entes da federação, ou de cooperação, na
hipótese de os entes federativos compartilharem competências em nome do
bem-estar social e para facilitar a consecução dos objetivos constitucionais. O
Brasil adota os dois modelos, pois estabelece competências privativas, como
as do artigo 22 (que estabelece um rol de matérias que somente podem ser
reguladas pela União), e comuns, como as dos artigos 23 e 24 da Constituição
de 1988 (saúde; educação; proteção do patrimônio histórico, cultural e
artístico; combater a pobreza; preservar o meio ambiente, entre outras).
O último modo de classificar o federalismo é quanto à simetria e assimetria
do federalismo, metodologia que pode variar segundo o critério a ser adotado.
Para ficar mais claro, podemos afirmar que, a partir da divisão de
competências estabelecida na Constituição brasileira, o federalismo nacional é
simétrico quanto à divisão de poderes, uma vez que todos os entes (União,
Estados, Distrito Federal e Municípios) dispõem de competências asseguradas
no texto constitucional. No que tange à composição do Poder Legislativo, é
simétrica também a representação dos Estados no Senado Federal (três
senadores por Estado, segundo o artigo 46 da Constituição), porém
assimétrica na Câmara dos Deputados (variando de oito a setenta deputados
federais, conforme o artigo 45 da Constituição e Lei Complementar 78, de
1993).

2. Formas de Governo
Existem vários modos de classificar as formas de governo. Uma delas, feita
por Aristóteles, consiste em seis formas distintas: monarquia, aristocracia,
república, tirania, oligarquia e democracia. Outro critério é o estabelecido por
Maquiavel e desenvolvido posteriormente por Montesquieu, que, por sua vez,
classificou os governos em republicano, monárquico e despótico.
Convém refletir, separadamente, sobre cada uma das formas de governo.
Adotaremos o padrão estabelecido por Montesquieu (monarquia, república e
despotismo ou tirania) e incluiremos nesta análise a aristocracia e a
oligarquia, sugeridas por Aristóteles. A democracia será estudada no último
capítulo deste livro.
2.1 Monarquia
A monarquia é uma forma de governo bastante antiga. Dante Alighieri
(1265-1321), notabilizado pela Divina Comédia, realizou estudos específicos
sobre essa forma de governo, defendendo a necessidade de estabelecer a
separação entre o poder religioso (que legitimava a ascensão do rei como
representante de Deus perante todos os seus súditos) e o poder civil131. Para
Montesquieu132, o governo monárquico “é aquele onde um só governa, mas
através de leis fixas e estabelecidas”.
Nos regimes monárquicos, o monarca é vitalício no cargo e pode não
responder pelos atos praticados no exercício do poder, a depender do regime
jurídico de cada país. Outra característica é que a sucessão ocorre de modo
hereditário, ou seja, transmite-se a coroa apenas aos familiares do monarca.
Portanto, não há eleições para a escolha de um rei.
Historicamente, surgiram primeiro as monarquias absolutas, nas quais o
monarca detinha todo o poder, exercendo-o da maneira que desejasse.
Depois, no decorrer do século XVIII, verifica-se o apogeu das monarquias
constitucionais, em que o rei ainda detinha o poder, mas estava submetido às
limitações estabelecidas na Constituição.
O poder do monarca continuou sofrendo limitações, com a instauração
das monarquias parlamentaristas. No sistema parlamentarista de governo,
conforme será estudado adiante, existe a divisão entre a chefia de Estado (a
cargo do rei ou do Presidente) e a chefia de Governo (exercida pelo Gabinete
de Ministros, tendo à frente um primeiro ministro, o qual efetivamente
governa).
A monarquia inglesa é a mais tradicional em curso no Ocidente. Nasceu
absoluta e começou a se tornar constitucional ainda nos idos do século XIII,
quando se adotou a Magna Carta133 como forma de se conter o poder real.
No século XVII, outros três documentos fortaleceram o Parlamento bem
como ampliaram as garantias dos cidadãos ante o rei: a Petição de Direitos de
1628, a Lei do Habeas Corpus de 1679 e a Declaração de Direitos de 1689.

2.2 República
A república é uma forma de governo que se opõe à monarquia, em clássica
definição de Nicolau Maquiavel. Etimologicamente, deriva do latim res
publica: res (coisa) e publica (do povo, que pertence a todos). Significa, por
conseguinte, coisa comum, pertencente a todas as pessoas vinculadas a
determinado espaço territorial com um governo soberano. Está relacionada
com a satisfação dos interesses públicos e à realização do bem comum, tendo
sentido oposto à res privata (coisa particular). Por essa razão, Montesquieu134
aduz que “o governo republicano é aquele no qual o povo em seu conjunto,
ou apenas uma parte do povo, possui o poder soberano”.
Na república, os governantes são eleitos, representam o povo e devem agir
inspirados pelo princípio da igualdade, exercendo mandato com
responsabilidade e por tempo previamente determinado. Podem ser
extraídos, portanto, os requisitos indispensáveis para que se possa falar na
existência de um regime republicano: a) governantes que representam o povo;
b) mandato concedido pelo voto popular; c) exercício do mandato por tempo
determinado; d) regra geral de igualdade entre as pessoas, permitidas
distinções em função da natureza do cargo, desde que justificadas tendo em
vista o sistema constitucional em questão; e) responsabilidade dos
governantes e autoridades públicas pelos atos praticados em razão do cargo; f)
igual dever de responsabilidade de todo cidadão pelo bem comum135.
O princípio republicano está vinculado ao princípio da igualdade de todos
perante a lei. Observa Geraldo Ataliba136 que a igualdade é um corolário do
princípio republicano: “Princípio constitucional fundamental, imediatamente
decorrente do republicano, é o da isonomia ou igualdade diante da lei, diante
dos atos infralegais, diante de todas as manifestações do poder, quer
traduzidas em normas, quer expressas em atos concretos. Firmou-se a
isonomia, no direito constitucional moderno, como direito público subjetivo
a tratamento igual de todos os cidadãos pelo Estado”.
Dadas as suas peculiaridades históricas, o Brasil tem buscado tornar efetivo
o princípio republicano. O século XX foi marcado por suspensões de direitos
políticos dos cidadãos, mais precisamente durante o Estado Novo de Getúlio
Vargas (1937-1945) e o Estado de exceção instaurado pelos militares (1964-
1985). Além disso, é complexa a tarefa de efetivar a igualdade entre as pessoas
e responsabilizar os governantes pelos atos praticados em razão de sua
função, questões que estão sendo observadas apenas nas últimas duas
décadas.
Machado de Assis explorou com velada ironia o movimento republicano
no Brasil na obra Esaú e Jacó, publicada em 1904. Em uma passagem do livro,
Custódio, doceiro, dono de uma confeitaria no Rio de Janeiro chamada
“Confeitaria do Império”, solicitara a feitura de uma tabuleta nova, pintada à
mão. Não sabia, no entanto, que estavam às vésperas da Proclamação da
República. Ocorrido tal evento, não poderia mais manter o antigo nome, em
especial por seu comércio se localizar na Rua do Catete, próximo ao Palácio
do Governo. “Confeitaria da República” foi a indicação natural feita pelo
Conselheiro do império Aires, mas foi negada por Custódio já que em pouco
tempo a monarquia poderia ser restaurada. Aires, então, indicou o que lhe
parecia mais conveniente: “Confeitaria do Governo”137.
Recôndito em tal episódio está a mordaz crítica de Machado de Assis: a
passagem da monarquia para a república representou mera troca de tabuleta,
um engodo que apenas reformava a fachada do país sem ao menos tocar nas
solidificadas estruturas e encanamentos do período colonial e monárquico.
Ao povo alheio, a república se estabeleceu da mesma forma que a
independência: sem a participação popular. Marcus Vinícius Furtado Coêlho
conta uma passagem curiosa sobre a Proclamação da República: “no término
da parada, foi deixado um débito de vinte e nove mil réis para um taverneiro.
Esse comerciante tornou-se, sem querer, o melhor símbolo do papel do povo
no novo regime: aquele que paga a conta” 138.

2.3 Despotismo ou Tirania


O governo despótico ou tirânico é alicerçado na força, e seu princípio é o
temor. Nesse sentido, Montesquieu139 o conceitua como o governo de “um
só, sem lei e sem regra, impõe tudo por força de sua vontade e de seus
caprichos”. Como consequência, “o déspota não tem regras e seus caprichos
destroem todos os outros”.
Trata-se, portanto, de uma forma de governo exercida por autoridades
ilegítimas, as quais violam os direitos fundamentais e suprimem a liberdade
das pessoas pela inexistência de limites institucionais à concentração de
poderes. Assim, é o avesso do propugnado pela teoria constitucional no
sentido de que não é limitado pela lei. A despeito de até existirem
documentos normativos que reconheçam direitos, sua eficácia é duvidosa
uma vez que no despotismo não há garantias contra a sua não violação. Por
esta razão, tende a ser um governo que desrespeita direitos.
As revoluções do século XVII (Inglaterra) e XVIII (Estados Unidos e
França) tinham o escopo de romper com a imprevisibilidade e a pessoalidade
tirânica dos déspotas e forjar um governo que se fundasse sobre a lei, ou seja,
o Estado de Direito em seu conceito mais essencial. Por esta razão, todas as
liberdades encartadas nas primeiras Constituições tinham natureza negativa
para impossibilitar que o poder estatal interferisse de maneira demasiada na
esfera pessoal de poder pertencente a cada cidadão.
Eis a importância da lei e dos sistemas de controle para conter o poder. Em
sua antropologia negativa, Karl Loewenstein140 afirma que “o poder sem
controle é, por sua própria natureza, maléfico. O poder encerra em si mesmo
a semente de sua própria degeneração. Isto quer dizer que, quando não está
limitado, o poder se transforma em tirania e despotismo. Daí que o poder
sem controle adquire um acento moral negativo que revela o demoníaco no
elemento do poder e o patológico no processo do poder”.
Registre-se que o despotismo pode se infiltrar tanto na forma de governo
republicana quanto na monárquica. Quando tal ocorrer, não se pode falar que
existe, verdadeiramente, uma república ou uma monarquia, pois terá restado
apenas seus simulacros. O despotismo corrompe não apenas a forma de
governo, mas, inclusive, a forma de Estado, o regime de governo, o sistema
eleitoral, os próprios governantes e até mesmo o povo (no todo ou em parte).

2.4 Aristocracia
A forma aristocrática é definida como o governo dos melhores, com base
na etimologia da palavra grega áristoi. A compreensão de que um grupo de
pessoas seria o melhor na condução dos assuntos político-governamentais é
um dos temas mais tradicionais da filosofia política, variando segundo cada
concepção.
Para Platão, em sua cidade idílica, a Callipolis, descrita no livro A
República, o governo deveria ser confiado aos sábios ou filósofos como
conhecedores da verdade e da moral. Somente por esse critério se atingiria a
justiça e o bem na cidade, construída por um sistema de castas em que cada
um exerceria suas atividades de acordo com sua aptidão.
Já Aristóteles141 conjuga a virtude aristocrática ao bom cidadão,
conquistada entre os melhores pela melhor formação: “quando falamos de
um bom comandante, entendemos por isso um homem de juízo e de honra;
exigimos, sobretudo a prudência naquele que governa”. O autor não
acreditava que qualquer pessoa estaria apta a participar das discussões
políticas na ágora, mas somente aqueles que dispunham de uma casa para
lhes proporcionar o tempo necessário142.
Montesquieu143 não indica qual classe de cidadãos deveria pertencer ao
governo aristocrático. Para ele, o corpo aristocrático possui força para
reprimir o povo e conduzir a política. No entanto, é complexo a essa classe
reprimir a si mesma. Por isso, o autor identifica a virtude da moderação como
sendo a alma do governo aristocrático.

2.5 Oligarquia
A oligarquia, assim como a aristocracia, remete à noção de um governo
exercido por poucos. Entretanto, a oligarquia adquiriu um significado
negativo e, com o tempo, passou a significar o governo dos ricos
(plutocracia). Seu telos é o de fortalecer seus próprios governadores,
aumentando a desigualdade e impedindo a renovação política do Estado.
Assim, a oligarquia não é ruim por possibilitar a poucos governarem, mas por
seus objetivos serem úteis apenas aos próprios governantes e aos que lhes
rodeiam e lhes conferem suporte.
O sentido pejorativo dessa palavra certamente se deveu à influência da
filosofia grega. Aristóteles144, por exemplo, qualifica a oligarquia como a
forma degenerada da aristocracia e obtém o “segundo lugar entre os governos
depravados”, sendo apenas melhor que a tirania. Destarte, os aristocratas se
transformam em oligarcas quando perdem o bem comum de vista e passam a
lutar por seus interesses financeiros.
Sob esse ponto de vista, os cargos do governo seriam ocupados por aqueles
que possuem mais posses, não exatamente os mais virtuosos. O último estágio
da oligarquia se dá quando os mais ricos eliminam os seus adversários,
fundando monarquias denominadas dinastias.

3. Sistemas de Governo
Os principais sistemas de governo adotados, na atualidade, são o
presidencialista e o parlamentarista. A distinção estrutural entre os dois
modelos é o grau de participação do Legislativo nas tarefas do governo:
enquanto o primeiro lega mais competências ao Executivo, no
parlamentarismo há uma participação mais efetiva do Legislativo no governo.
Além dessas, indicamos os sistemas diretorial e de conselhos como modelos
distintos que também são apontados pela doutrina.

3.1 Presidencialismo
A principal influência ocidental para a adoção do presidencialismo como
sistema de governo advém dos Estados Unidos, uma vez que a Europa é
tradicionalmente formada por países que adotam o parlamentarismo.
O presidencialismo ocorre apenas em regimes republicanos e ganha
contornos peculiares em cada país. Contudo, pode-se indicar alguns atributos
gerais que lhe são característicos, como a concentração de poderes nas mãos
do Presidente (que assume, a um só tempo, a chefia de Estado e a chefia de
Governo), a escolha pelo voto popular para exercer mandato por prazo
determinado, e a prerrogativa total do partido ou coligação vencedora na
formação do governo, o que inclui a nomeação dos ministérios e cargos de
alta direção.
Outro ponto de relevo é o da relação entre o Presidente e o Legislativo,
marcada pela independência, uma vez que não há subordinação entre essas
esferas distintas. O chefe do Executivo de cada ente da federação (federal,
estadual e municipal) tem poder de vetar os projetos de lei aprovados pelo
Poder Legislativo, o que, em tese, não inviabiliza o nascimento da lei, pois o
veto pode ser superado (derrubado), como ocorre, por exemplo, em face da
Constituição brasileira. Por sua vez, as principais atribuições do Poder
Legislativo são o processo legislativo e a fiscalização dos atos governamentais.
O Presidente da República pode ser destituído do cargo pelo processo de
impeachment, julgamento político realizado no âmbito do Poder Legislativo.
Aléxis de Tocqueville145 definiu o julgamento político como “a sentença
pronunciada por um corpo político momentaneamente dotado do direito de
julgar”. No Brasil, a Constituição de 1988 estabelece dois critérios para o
julgamento do Presidente: por crime comum, será o Supremo Tribunal
Federal o órgão competente para o processamento e julgamento da denúncia;
por crime de responsabilidade, o processo correrá perante o Senado Federal,
após o exame de admissibilidade da Câmara dos Deputados. Em nossa
história recente, houve dois julgamentos de impeachment que destituíram os
chefes do Executivo federal: Fernando Collor de Mello (1992) e Dilma
Rousseff (2016)146.

3.2 Parlamentarismo
No sistema parlamentarista de governo, ao contrário do presidencialista, o
núcleo do poder estatal é bipartido: o monarca (como no Reino Unido e na
Espanha) ou Presidente (como na Itália e na Alemanha) exerce a chefia de
Estado, e o primeiro ministro147, escolhido pelo Parlamento, responde pela
chefia de governo.
Por conseguinte, o monarca ou Presidente, no exercício da chefia do
Estado, constitui-se em sua figura representativa na ordem internacional,
podendo não ser responsabilizado pelas atividades governamentais.
Outrossim, não exerce, internamente, atividades de governo. Daí se falar no
brocardo latino Rex regnat et non gubernat (o rei reina, mas não governa). Já
o primeiro ministro exerce o governo com responsabilidade política e, não
tendo mandato por prazo determinado, permanece no cargo enquanto tiver
apoio parlamentar. Ele terá que deixar o cargo, no entanto, em duas
hipóteses: quando perder a maioria no Parlamento ou mediante a moção de
desconfiança.
Essa divisão constitui uma necessária relação de dependência entre
governo e Legislativo, de modo oposto ao sistema presidencial, cuja regra é a
independência. Para Michel Temer148, “no parlamentarismo, verifica-se o
deslocamento de uma parcela da atividade executiva para o Legislativo. Nesse
particular fortaleceu-se a figura do Parlamento, que, além da atribuição de
inovar a ordem jurídica em nível imediatamente infraconstitucional, passa a
desempenhar, também, função executiva”. Assim, no sistema parlamentarista
há maior cooperação entre o Legislativo, que se vincula diretamente ao
governo, uma vez que o Gabinete é constituído pela maioria parlamentar que
mantém o Primeiro Ministro. Por tal razão, Philippe BRAUD149 o define
como o “regime político em que o governo que exerce o poder em nome de
um chefe de Estado irresponsável é politicamente responsável frente a uma
Assembleia Nacional sujeita à dissolução”.
Em resumo, portanto, identificam-se no parlamentarismo três
características peculiares: a) Executivo dualista (cujas competências se
fracionam em chefia do Estado e do governo); b) governo com
responsabilidade política (sistema fundado no consenso, não se mantendo
pela lógica majoritária. A demissão do governo pode ocorrer mediante moção
de desconfiança do Parlamento. Existe também a moção de censura, quando
o Legislativo indica que o governo deve alterar a sua política); c) Câmara
baixa ou Câmara dos Comuns sujeita a dissolução pelo Chefe de Estado
(passível no caso de a chefia de Estado considerar que esta Casa não mais
representa os interesses do povo. Ato contínuo, convocam-se eleições
legislativas)150.

3.3 Diretorial
No sistema diretorial, o governo é exercido por um diretório tendo como
base o Poder Legislativo. O exemplo a ser citado é a Suíça. O Poder
Legislativo é exercido pela Assembleia Federal, composta, em sistema
bicameral, pelo Conselho dos Estados (46 membros) e pelo Conselho
Nacional (200 membros). A Assembleia Federal escolhe sete de seus membros
para compor o Conselho Federal Suíço. E é esse Colegiado que exerce o
governo, embora a Assembleia Federal possa invalidar as decisões tomadas
por ele.
Consoante José Luiz Quadros de Magalhães151, as duas principais
características desse sistema são: a) a plena despersonificação do poder por
meio de “um governo coletivo subordinado a um coletivo ainda maior”, ou
seja, o Executivo (diretório) não tem independência, mas está organicamente
inserido no Legislativo. Não há lideranças: as matérias são decididas
coletivamente, cujos projetos possuem apenas coordenadores de trabalhos
escolhidos por revezamento periódico; b) inexiste dissolução do Parlamento
nem deposição governamental, porquanto o governo se submete amplamente
aos legisladores.

3.4 Conselhos
O sistema de conselhos não existe na atualidade. Na verdade, trata-se de
um modelo incomum, surgido em momentos de ebulição revolucionária e
com duração muito curta. É Hannah Arendt quem nos apresenta esse sistema
de governo. Segundo a filósofa, os conselhos surgiram de modo espontâneo
ao longo do século XIX, baseados primeiramente na luta dos trabalhadores.
No afã de conquistar seus direitos, entravam em choque com o poder político
existente e, por vezes, subjugavam-no. O traço que mais chama atenção da
filósofa era a espontaneidade com que os conselhos apareceram e a força que
tiveram alimentados pela intensa participação popular.
Eles surgiram de modo espontâneo uma vez que não eram intermediados
pelos partidos políticos. Como não tinham uma liderança intencionada a se
enquadrar na burocracia do Estado, acabaram sendo todos reprimidos pelas
forças estatais. Assim, nas palavras de Arendt152, “sob as circunstâncias mais
variadas, [o sistema de conselhos] surge de modo abrupto e inesperado, para
de novo desaparecer qual fogo-fátuo, sob diferentes condições misteriosas”.
A aparição desse sistema ocorreu em alguns momentos revolucionários –
na França, em 1870, quando o exército da Prússia marchava sobre Paris e a
população se organizou de modo espontâneo em pequenas repúblicas que
germinaram posteriormente na Comuna de Paris, no ano seguinte; na Rússia,
em 1905, quando uma intensa onda de greves liderada pelos operários
propiciou a formação dos colegiados dos sovietes, uma liderança política cuja
autogestão era alheia aos triviais partidos da época; na Rússia novamente com
os sovietes153, na Revolução de 1917; em 1918 e 1919 na Alemanha, entre o
fim da Primeira Guerra e a instauração da República de Weimar; e em 1956,
durante a Revolução Húngara, quando os estudantes derrubaram o governo,
que foi reestabelecido pelos soviéticos poucos dias depois154.

Conclusões
1. A forma de Estado designa a arquitetura ou divisão institucional do
território adotada. São quatro as formas de Estado mais conhecidas:
a) Estado unitário: não há divisão territorial. O poder é concentrado,
irradiando-se do centro para as extremidades de todo o território
nacional.
b) Estado regional ou autônomo: embora o Estado nacional detenha o
controle da administração pública, as regiões possuem autonomia em
determinadas matérias.
c) Estado federal: opõe-se ao Estado unitário, na medida em que há
descentralização do poder entre os estados-membros. As federações
podem ser classificadas de quatro formas: (I) Quanto à origem:
federalismo por agregação ocorre quando os estados fundam o governo
central, como ocorreu nos Estados Unidos e na Suíça; e por segregação,
quando o Estado unitário é dividido, como ocorreu com o Brasil.
(II) Quanto à força no arranjo federal: federalismo centrípeto é aquele em que há
mais força no centro; centrífugo é o seu oposto, quando a força política deixa o
centro para as extremidades; e federalismo de equilíbrio se verifica quando existe
balanceamento nas forças.
(III) Quanto à divisão de competências: federalismo dual, quando há exclusividade
nas competências de cada ente-federativo; e de cooperação, quando as esferas
atuam em conjunto na consecução de uma determinada tarefa.
(IV) Quanto à simetria ou assimetria: aqui, há variação segundo o critério em
análise. Por exemplo: é simétrica a composição do Senado brasileiro (3 senadores
por Estado), enquanto a Câmara dos Deputados é assimétrica (varia conforme a
proporção populacional).

2. As formas de governo remetem à fonte de poder do Estado. A


combinação entre as formas indicadas por Montesquieu e Aristóteles
possibilitam a classificação das formas de governo em seis espécies. São elas:
a) A monarquia é a forma de governo em que o rei detém alguma parcela do
poder estatal. O critério para a sucessão real é o hereditário. A obtenção da
coroa é adstrita aos familiares do monarca, não sendo um cargo passível de
ocupação por qualquer nacional.
b) A república possui arquitetura institucional cujo fim é a satisfação do
interesse comum de todos os cidadãos. A fonte do poder é o povo, e o
exercício de cargos políticos ocorre mediante a vitória nas eleições.
c) A forma de governo tirânica é aquela na qual não se verificam limites
para a utilização do poder, verificando-se, portanto, traços de crueldade
e injustiça em seu emprego. Oportuno salientar que qualquer governo
pode se tornar tirânico, se não houver regras que defendam os direitos
dos cidadãos e limitem o poder político do Estado.
d) Aristocracia é o governo dos melhores, dos mais hábeis ou preparados.
A compreensão sobre quem seriam os melhores cidadãos para comandar
o Estado varia segundo a visão dos inúmeros autores que transitaram
por este tema ao longo dos milênios.
e) A oligarquia tem como característica a manutenção do poder por apenas
poucas pessoas, que podem ser da mesma classe ou família. Assim,
difere-se da aristocracia no critério da renovação política, ao manter as
mesmas pessoas no comando do governo.
f) A democracia será abordada no último capítulo deste livro. Trata-se de
um modelo de tomada de decisões coletivas, que prevê ainda a garantia
dos direitos fundamentais.
3. Os sistemas de Governo são:
a) Presidencialismo é o sistema de governo no qual o chefe do Executivo
exerce um mandato por prazo determinado, assumindo a chefia do
Estado e do governo.
b) No parlamentarismo, a chefia do Estado e do governo são distintas. O
governo é comandado pelo primeiro ministro, que não possui mandato
com prazo determinado. Sua preservação no cargo depende da
manutenção da maioria no Parlamento e não receber voto de
desconfiança.
c) O sistema diretorial se distingue dos demais pelo governo ser
comandado por um grupo de pessoas.
d) O sistema de conselhos existiu em alguns momentos da história e se
destacou pela espontaneidade. Surgiu quando o povo se voltou contra
seus próprios governos, e, por não visarem o estabelecimento de uma
estrutura governamental, foram dispersos em poucas semanas.

125 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 358.
126 Em 2016 foi realizada uma reforma administrativa na França, que redistribuiu em 18 as regiões
administrativas, contra 27 que eram adotadas desde 1982.
127 MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Pacto Federativo. Belo Horizonte. Mandamentos: 2000, p.
137.
128 ARAUJO, Luiz Alberto David. Características Comuns do Federalismo. Por Uma Nova Federação.
Celso Bastos (Org.). São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 40.
129 A confederação é usualmente utilizada como forma de aliança entre Estados soberanos. Visa a
obtenção de um objetivo comum (como comércio ou defesa). Os Estados confederados não perdem
sua soberania, enquanto na federação o ente soberano é o Estado nacional e os entes federativos
dispõem de prerrogativas e autonomias, mas não de soberania.
130 Assim dispõem os dois primeiros artigos do Decreto 1 de 1889: Artigo 1º. Fica proclamada
provisoriamente e decretada como a forma de governo da nação brasileira - a República Federativa.
Artigo 2º. As Províncias do Brasil, reunidas pelo laço da federação, ficam constituindo os Estados
Unidos do Brasil.
131 ALIGHIERI, Dante. Monarquia. São Paulo: Escala, s.d., p. 38.
132 MONTESQUIEU. O Espírito das Leis. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p.19.
133 Para aprofundar a pesquisa nesta temática, confira: FACHIN, Zulmar; SAMPAR, Rene. Oitocentos
Anos da Magna Carta de 1215 e a Luta pelo Estado de Direito. In FACHIN, Zulmar; LIMA, Jairo
Néia; PONA, Éverton Willian (Orgs.). Magna Carta: 800 anos de influência no constitucionalismo e
nos direitos fundamentais. Curitiba: Juruá, 2016, p.35-44.
134 MONTESQUIEU. O Espírito das Leis, p.19.
135 A respeito deste último ponto, Karl Doehring lembra que na república o poder se transfere ao povo.
Logo, há responsabilidades republicanas aos cidadãos, como serviço militar obrigatório, atuação
como jurado, mesário nas eleições, entre outras. Cf: DOEHRING, Karl. Teoria do Estado. Belo
Horizonte: Del Rey, 2008, p. 239-240.
136 ATALIBA, Geraldo. República e Constituição. 2 ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 158.
137 A ironia de Machado neste discurso é muito clara. No entanto, não ficou por aí. Custódio alegou
que todo governo tem oposição, e a sua confeitaria poderia ser alvo de críticas. Sugeriram
“Confeitaria do Catete”, em homenagem ao seu local. Por fim, para evitar problemas, Aires indicou
“Confeitaria do Custódio”, pois assim não haveria problemas com a política. Sua justificativa foi:
“Um nome, o próprio nome do dono, não tinha significação política ou figuração história, ódio nem
amor, nada que chamasse a atenção dos dois regimes, e conseguintemente que pusesse em perigo os
seus pastéis de Santa Clara, menos ainda a vida do proprietário e dos empregados” [...]. Disse
Custódio: “Sim, vou pensar, Excelentíssimo. Talvez convenha esperar um ou dois dias, a ver em que
param as modas”. ASSIS, Machado. Esaú e Jacó. São Paulo: FTD, 2002, p. 140-142.
138 COÊLHO, Marcus Vinícius Furtado. Direito Eleitoral e Processo Eleitoral. 3 ed. rev. atual e ampl.
Rio de Janeiro, 2012, p. 03.
139 MONTESQUIEU. O Espírito das Leis, p. 19 e 37.
140 LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la Constitución. Barcelona: Editorial Ariel, 1983, p. 28.
141 ARISTÓTELES. A Política, p. 49.
142 Na visão de Aristóteles, o melhor Estado não fará do trabalhador um cidadão. Com isso, o polímata
grego queria dizer que as questões públicas eram de importância primordial. Todos aqueles que
consumiam grande parte de seu tempo com o trabalho para garantir sua sobrevivência não
conseguiriam assumir tais atividades.
143 MONTESQUIEU. O Espírito das Leis, p. 34.
144 ARISTÓTELES. A Política, p. 118-119.
145 TOCQUEVILLE, Alexis. A Democracia na América: Leis e Costumes. São Paulo: Martins Fontes,
1998, p.121.
146 O Ministro Luiz Edson Fachin, no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental n. 378, fixou a natureza jurídica do processo de impeachment em face de Presidente da
República: a) Decorre do regime republicano e democrático a possibilidade de responsabilização do
mandatário máximo da nação; b) É no preceito fundamental da relação entre os poderes que se deve
buscar a natureza jurídica do impeachment, definido como um modo de se exercer o controle
republicano do Poder Executivo; c) A exigência de lei específica, de um lado, e as garantias
processuais, de outro, permitem configurá-lo como modalidade limitada de controle, na medida em
que, sendo a República um fim comum, ambos os poderes devem a ele dirigir-se; d) O limite, por sua
vez, decorre do fato de que não se pode, sob o pretexto de controle, desnaturar a separação de
poderes; e) Não se pode identificar o instituto do impeachment, próprio dos regimes
presidencialistas, com a moção de desconfiança, própria dos regimes parlamentaristas; f) O regime
presidencialista, mais rígido do que o parlamentarista sobre as causas de responsabilização do Chefe
do Poder Executivo, adota tipificação jurídico-política dos crimes de responsabilidade; g) Ainda
assim, é de natureza jurídico-política o julgamento constitucionalmente atribuído ao Parlamento; h)
A opção constitucional por um sistema de governo presidencialista impõe que se interprete o
instituto do impeachment tanto sob o prisma dos direitos e garantias individuais do ocupante de
cargo público, quanto pela reserva de estrita legalidade, corolário para a harmoniosa relação entre os
poderes. Ao Judiciário, na figura do Supremo Tribunal Federal”, compete “o controle da estrita
legalidade procedimental do processo de impeachment, assegurando que o juízo jurídico-político de
alçada do Parlamento, passível de controle judicial apenas e tão somente para amparar as garantias
judiciais do contraditório e ampla defesa, se desenvolva dentro dos estritos limites do devido
processo legal.
147 Esse vocábulo varia segundo o idioma oficial de cada país. Assim, na Alemanha tal função é
designada por Chanceler, na França por Premier Ministre, na Itália por Primo Ministro e no Reino
Unido por Prime Minister.
148 TEMER, Michel. Elementos de Direito Constitucional. 22 ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 160.
149 BRAUD, Philippe. Sociologie Politique. 3 ed. Paris: L.G.D.J., 1996, p. 171.
150 GROFF, Paulo Vargas. Modelos de parlamentarismo: inglês, alemão e francês. In Revista de
Informação Legislativa, Brasília, n. 160, out-dez. 2003, p. 139-140.
151 MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. O Sistema Diretorial. Disponível em: <
http://joseluizquadrosdemagalhaes.blogspot.com.br/2010/08/teoria-do-estado-26.html>. Acesso em:
17/04/2021.
152 ARENDT, Hannah. Sobre a Revolução, p. 30-31.
153 Embora Hannah Arendt reconheça a importância dos sovietes no início da revolução na Rússia, a
filósofa em nenhum momento concordou com a posterior ditadura engendrada pelo partido.
Lembre-se que Arendt foi duramente criticada quando classificou como totalitários (e equivalentes)
os regimes nazista e socialista, fato que veio à tona ao longo do governo de Josef Stalin. Para
aprofundar essa questão, sugerimos a leitura da magnífica obra Origens do Totalitarismo:
antissemitismo, imperialismo, totalitarismo.
154 Hannah Arendt trabalha o sistema de conselhos no livro Sobre a Revolução, cuja leitura se
recomenda pela riqueza de suas análises políticas.
VI
O Poder Constituinte
1. Poder Constituinte: Fazer e Alterar a Constituição; 2. Poder Constituinte e
Poderes Constituídos; 3. Poder Constituinte Originário. 3.1 Noção; 3.2 Natureza;
3.3 Titular; 3.4 Agente; 3.5 Formas de Manifestação; 3.6 Características. 4. Poder
Reformador. 4.1 Noção; 4.2 Natureza; 4.3 Titular; 4.4 Agente; 4.5 Formas de
Manifestação; 4.6 características. 5. Poder Constituinte Decorrente. 6. Poder
Constituinte e Poder Judiciário. 7. Poder Constituinte Transnacional. Conclusões.

1. Poder Constituinte: Fazer e Alterar a Constituição


As normas constitucionais são obra do poder constituinte. Tanto o poder
constituinte originário quanto o poder constituinte reformador detêm a
legitimidade para elaborá-las. Aquele está localizado fora do âmbito jurídico;
este, o reformador, encontra sua legitimidade no Direito, especificamente na
Constituição Federal. Porém, entre ambos há distinções que precisam ser
clareadas.
A esse respeito, Paulo Bonavides155 estabelece limites entre o poder
reformador e o poder constituinte originário: “O primeiro, como poder
jurídico, é o poder constituinte do direito constitucional; o segundo, como
poder extrajurídico, é o poder constituinte da Ciência Política. Um se
manifesta em ocasiões de relativa normalidade e paz, sempre abraçado aos
preceitos jurídicos vigentes; o outro, ao contrário, chega na crise das
revoluções e Golpes de Estado e se exercita quase sempre sobre as ruínas de
uma ordem jurídica esmagada”.
Insiste-se na necessidade da distinção entre poder constituinte originário e
poder reformador, embora tanto um quanto outro produzam normas
jurídicas de natureza constitucional: a) o primeiro tem legitimidade para fazer
uma nova Constituição; o segundo não pode elaborar uma nova Constituição,
mas apenas alterá-la; b) o primeiro não está submetido a vínculos jurídicos; o
segundo está vinculado às normas constitucionais; c) o primeiro é livre para
tratar de qualquer matéria, inclusive revogar, sem limites, a ordem jurídico-
constitucional em vigor; o segundo está impedido de abolir certas matérias
(cláusulas pétreas constitucionais) explícitas ou implícitas.

2. Poder Constituinte e Poderes Constituídos


Coube ao abade Emmanuel Sieyés fazer a distinção entre poder
constituinte e poder constituído. Confundi-los seria grave erro. Um elabora
normas constitucionais; outro, submetido à Constituição, produz o direito
infraconstitucional. Desse modo, assevera o autor156 que “a Constituição não
é obra do poder constituído, mas do poder constituinte. Nenhuma espécie de
poder delegado pode mudar nada nas condições de sua delegação. É neste
sentido que as leis constitucionais são fundamentais”. E se as normas
constitucionais são fundamentais, as normas infraconstitucionais devem estar
em consonância com elas.
As normas constitucionais não se confundem com as normas
infraconstitucionais. Esclarece Carré de Malberg157 que “o princípio consiste
em distinguir logicamente e separar organicamente, por uma parte, o poder
que faz a Constituição, e por outra parte os poderes criados pela Constituição.
Aos poderes ordinários, Legislativo, Executivo e Judiciário, pois, se opõe e se
superpõe um poder supremo e extraordinário, o qual, tendo por objeto
instituir todos os demais, domina-os e deve, diz-se, ser distinto deles”.
É necessário distinguir as normas de procedimento de elaboração das leis
ordinárias das normas de procedimento para a elaboração de normas
constitucionais originárias. As normas infraconstitucionais não se
confundem com poder constituinte. Segundo Antônio Negri158, elas “seguem
as regras da forma jurídica e o poder constituinte não tem nada a ver com
esse processo formal de reprodução das normas”.
Em síntese, os poderes constituídos não podem contrariar o poder
constituinte. A norma infraconstitucional não pode afrontar a norma
constitucional elaborada pelo poder constituinte (originário ou reformador).
Tem sido comum, entre os estudiosos do tema, afirmar que a criatura não
pode se voltar contra o criador, o que significa dizer que o legislador
infraconstitucional não pode contrariar o legislador constituinte, sob pena de
esta norma ser declarada inconstitucional pela Suprema Corte.

3. Poder Constituinte Originário


3.1 Noção
A primeira espécie de poder constituinte, portanto, é a originária. O poder
constituinte inaugura a ordem jurídica do Estado. Pode fazer isso com base
no nada jurídico, quando cria o Estado e lhe dá a primeira Constituição, ou de
uma ruptura da ordem jurídica existente, quando estabelece um novo tipo de
Estado e lhe dá uma nova Constituição, substituindo a anterior.
Nesse sentido, o poder constituinte originário cria o Estado, dando a ele
sua primeira forma, partejando o que não existia. Contudo, ele pode também
recriar o Estado, dando-lhe uma nova forma. Nas palavras de André Ramos
Tavares159, “o poder constituinte originário corresponde a possibilidade de
elaborar e colocar em vigência uma Constituição em sua globalidade”.
Se o poder constituinte tem o condão de criar o Estado, ele o faz quando
estabelece uma Constituição. A manifestação constituinte, ao produzir uma
nova Constituição, faz nascer um novo tipo de Estado. Segundo Michel
Temer160, “antes dessa manifestação, o Estado, tal como veio positivado, não
existia. Existe, é, a partir da Constituição [...]. Historicamente é o mesmo.
Geograficamente pode ser o mesmo. Não o é, porém, juridicamente”.
Tem-se entendido, também, o poder constituinte como competência,
capacidade ou energia para cumprir um fim. Sob essa ótica, leciona Bidart
Campos161 que, “se por ‘poder’ entendemos uma competência, capacidade ou
energia para cumprir um fim, e por ‘constituinte’ o poder que constitui ou dá
Constituição ao Estado, alcançamos com bastante precisão o conceito global:
poder constituinte é a competência, capacidade ou energia para constituir ou
dar Constituição ao Estado, é dizer, para organizá-lo”.
Note-se, então, que o poder constituinte originário está localizado fora do
Direito e precede o Estado e a Constituição: como um artífice, tanto o Direito
como a Constituição são suas criações.

3.2 Natureza
É bastante controvertida a natureza do poder constituinte. Para alguns, de
formação jusnaturalista, é poder de direito. Para outros, em regra positivistas,
trata-se de um poder de fato.
De acordo com a primeira tese, o poder constituinte originário é um poder
de direito, tendo por fundamento o direito natural, que é anterior e superior
ao direito do Estado. Para Ferreira Filho162, “deste direito natural decorre a
liberdade de o homem estabelecer as instituições por que há de ser
governado. Destarte, o poder que organiza o Estado, estabelecendo a
Constituição, é um poder de direito”.
O poder constituinte originário é compreendido também como um poder
de fato. Para os que assim o entendem, ele se encontra vinculado à realidade
concreta da vida social em determinado espaço territorial. Sob esse enfoque,
dizer que é um poder de fato equivale a dizer que é um poder político.
Esclarece Carlos Ayres Britto163 que “estamos a falar de um poder
exclusivamente político, porque originariamente imbricado em toda a polis,
naqueles raros instantes em que a polis se sobrepõe ao Estado para dizer, por
ela mesma, sob que tipo de Direito-Constituição quer viver”.

3.3 Titular
A titularidade do poder constituinte tem mudado de acordo com as
circunstâncias históricas. Primeiro, pertenceu a Deus; depois, ao monarca;
mais tarde, à nação; atualmente, ao povo.
Deus. Na tradição judaico-cristã, Deus é a única fonte de todo o poder que
já existiu. Assim, toda autoridade provém de Deus. É ao Seu poder (supremo
no Universo) que os homens devem estar submetidos. Tal fundamento pode
ser encontrado na Epístola de São Paulo aos Romanos164: “cada qual seja
submisso às autoridades constituídas, porque não há autoridade que não
venha de Deus; as que existem foram instituídas por Deus”. Se todo o poder
advém de Deus, a titularidade do poder constituinte a Ele pertence.
Monarca. O monarca, concentrando em suas mãos todo o poder terreno,
colocava-se como intermediário entre o povo e a divindade. Lembra Badie
Bertrand165 que “o príncipe é admitido como soberano legítimo porque
sendo à imagem de Deus, ele não pode por definição contrariar a vontade
divina”. Mas a luta travada contra o absolutismo “deslocou a soberania do
príncipe para a comunidade política a fim de romper com a divinização da
autoridade real”.
Os monarcas exerciam o poder de modo absoluto. Foi o caso, por exemplo,
de Luís XIV na França pré-revolucionária. Quando o Rei Sol dizia L’État C’est
moi (o Estado sou eu), estava, em verdade, afirmando que o poder
constituinte originário lhe pertencia, pois ele detinha em suas mãos todo o
poder terreno.
Os revolucionários franceses substituíram o titular da soberania. Essa
passou a residir essencialmente na Nação, ficando proibido a qualquer órgão
ou indivíduo, especialmente ao monarca, exercer sem responsabilidade algum
tipo de autoridade que não tivesse sua origem na Nação.
Nação. Na concepção de Emmanuel Sieyès, conforme citado
anteriormente, a titularidade do poder constituinte pertencia à Nação, única
fonte legítima capaz de fazer uma Constituição. Quando se desejar construir
os fundamentos da ordem jurídica, deve-se recorrer a ela, pois “em toda
nação livre – e toda nação deve ser livre – só há uma forma de acabar com as
diferenças, que se produzem com respeito à Constituição. Não é aos notáveis
que se deve recorrer, é à própria nação. Se precisamos de Constituição,
devemos fazê-la. Só a nação tem direito de fazê-la”166.
Povo. Nos tempos atuais, tem-se entendido que o titular do poder
constituinte originário é o povo167, um dos elementos constitutivos do
Estado. Nesse sentido, afirma Carré de Malberg168 que “a soberania primária,
o poder constituinte, reside essencialmente no povo, na totalidade e em cada
um dos seus membros”.
Há pouco mais de uma década, em face da elaboração da Constituição para
a União Europeia, que enfrenta resistências, a titularidade do poder
constituinte originário vem enfrentando um processo de transformação. Não
obstante haver divergências quanto à titularidade do poder constituinte
europeu, pode-se afirmar que, nesse específico contexto, ela já não pertence
tão somente ao povo. Os cidadãos europeus e os Estados membros da União
Europeia devem ser considerados nessa mutação de titularidade, que parece
atingir o poder constituinte.

3.4 Agente
O agente do poder constituinte originário é aquele que elabora a
Constituição. O agente não é órgão do Estado ou da Constituição; é órgão da
sociedade, imbuído da tarefa de fazer uma Constituição e (re)criar o Estado.
Esse órgão costuma ser a Assembleia Nacional Constituinte ou a Convenção
Constituinte.
Não se pode confundir o titular com o agente do poder constituinte
originário. O titular jamais deixa de existir, apenas se retira de cena. Seu berço
está fora do âmbito da obra que edita. Ao contrário de seu agente, ele, o
titular, não morre. Assevera Carlos Ayres Britto169 que “esse poder não se
exaure jamais na obra que edita. Sobrevive ao seu próprio labor (mas sempre
do lado de fora) e é assim que pode gestar quantas Constituições quiser. A
qualquer tempo”.
O agente, assim que é constituído, começa a caminhada lenta para sua
própria extinção. Elaborada a Constituição, ele desaparece, morre, deixa de
existir. Em 05 de outubro de 1988, por volta das dezessete horas, promulgada
a Constituição brasileira, a Assembleia Nacional Constituinte extinguiu-se.
Para sempre.

3.5 Formas de Manifestação


Há várias formas de manifestação do poder constituinte originário: a
outorga, o bonapartista e a democrática. As duas primeiras não têm
compromisso com a legitimidade democrática do poder e do ordenamento
jurídico. Prescindem da participação popular. Consistem, sob essa ótica, em
verdadeira negação do poder constituinte do povo.
José Afonso da Silva170 classificou em quatro modos a forma democrática
de exercício do poder constituinte: a) Exercício direto do poder constituinte –
um grupo de pessoas que assumiu o poder para governar transitoriamente
elabora um projeto de Constituição e submete-o, diretamente, à apreciação
popular. O projeto pode ser aprovado por referendo ou, pelo menos em tese,
por aclamação. Após tal aprovação, a Constituição é promulgada sem que
tenha existido uma Assembleia Nacional Constituinte.
b) Exercício indireto do poder constituinte – o poder constituinte é exercido
por um órgão cujos membros são eleitos pelo povo. Esse órgão –
Assembleia Constituinte ou Convenção Constituinte – elabora a
Constituição e a promulga. Exemplo: Assembleia Nacional Constituinte
de 1988.
c) Forma mista de exercício do poder constituinte – o poder constituinte é
exercido por um órgão – Assembleia Constituinte ou Convenção
Constituinte. Elaborada a Constituição, esta é submetida à aprovação
popular.

d) Exercício pactuado do poder constituinte – o poder constituinte é


d) Exercício pactuado do poder constituinte – o poder constituinte é
exercido de forma consensual. O pacto celebrado entre forças
antagônicas faz nascer, de forma consensual, a Constituição. O
equilíbrio de forças, embora precário, gera a Constituição pactuada.

3.6 Características
Podem ser apontadas várias características para identificar o poder
constituinte originário. No âmbito desse estudo, entende-se o poder
constituinte como sendo inicial, incondicionado e ilimitado.
Inicial. O poder constituinte originário inicia, instaura, inaugura uma
nova ordem jurídica. Como já afirmado, ele pode fazer isso com base no nada
ou em uma ruptura. Na primeira hipótese, ele cria o fundamento de validade
do ordenamento jurídico. Na segunda, ele substitui esse fundamento.
Pode-se afirmar, com inspiração em Carlos Ayres Britto171, que com a
obra do poder constituinte, algo nasce e algo morre, visto que, a um só tempo,
o poder constituinte parteja e sepulta. No instante, em que o velho e o novo se
encontram mortalmente, o poder constituinte marca o féretro de uma
Constituição para, ato contínuo, partejar outra. Nesse sentido, a um só tempo
ele é poder constituinte e poder desconstituinte.
Sob tal perspectiva, reconhece J. J. Gomes Canotilho172 que, “no fundo, o
poder constituinte se revela sempre como uma questão de “poder”, de “força”
ou de “autoridade política” que está “em condições de”, numa determinada
situação concreta, criar, garantir ou eliminar uma Constituição entendida
como lei fundamental da comunidade política”.
O momento de ruptura – em que o velho morre e, em seu lugar, nasce o
novo – representa um ponto alto do constitucionalismo. A nova Constituição,
fundamento de validade da ordem jurídica, substitui um Estado por outro. Na
lição de Carlos Ayres Britto173, “só uma Constituição pode trocar o Estado
por outro. Não um Estado a trocar sua Constituição por outra. E mais: o
Direito feito para o Estado tem de permanecer o referencial do Direito feito
pelo Estado, durante todo o tempo de vigência da obra que uma dada
Assembleia Constituinte vier a promulgar”.
Por conseguinte, em 1988, no Brasil, não houve apenas a substituição de
uma Constituição por outra. O que ocorreu, na verdade, foi a substituição do
fundamento de validade do ordenamento jurídico. A nova Constituição, fruto
do poder constituinte originário, criou um novo tipo de Estado, passou a ser o
núcleo irradiador de legitimidade para todo o ordenamento jurídico.
Incondicionado. A incondicionalidade refere-se ao procedimento. O
poder constituinte cria as regras de acordo com as quais, em seguida,
trabalhará. Ele não está condicionado a nenhuma regra jurídica pré-existente,
podendo expressar-se por meio da forma que escolher. Cria suas próprias
regras (regimento interno), as quais observará a fim de elaborar a
Constituição (a primeira ou uma nova). Criadas as regras, ele passa a atuar
balizado por elas para elaborar a Constituição. É incondicionado, assim,
porque não precisa observar as regras jurídicas que existem e regulam o
nascimento de normas infraconstitucionais ou de normas constitucionais de
reforma.
Isso foi constatado por Emmanuel Sieyés174, teórico do poder constituinte:
“Qualquer que seja a forma que a nação quiser, basta que ela queira; todas as
formas são boas, e sua vontade é sempre a lei suprema”.
Pode-se mencionar o exemplo de 1987, quando, ao dar início aos trabalhos
de elaboração da Constituição, a Assembleia Nacional Constituinte aprovou
seu Regimento Interno, com base no qual passou a trabalhar, conforme
registro nos respectivos Anais175.
Ilimitado. O poder constituinte originário não conhece limites para atuar.
É livre para escolher os valores que pretende assegurar na Constituição. Por
exemplo, pode estabelecer o Estado federal ou o unitário, instituir ou proibir
a pena de morte, restringir o direito adquirido, entre outros.
O poder constituinte originário, por ser ilimitado, não fica submetido à
Constituição que edita. Ao contrário, poderá substituí-la, quando entender
necessário. Conforme lição de Emmanuel Sieyès176, “não só a nação não está
submetida à Constituição, como ela não pode estar, ela não deve estar, o que
equivale a dizer que ela não está”.
Entretanto, a referida afirmação precisa de maior explicação, uma vez que
vem sendo rechaçada pela doutrina. Para evitar anacronismo, é preciso
compreender por qual razão Sieyès via na nação uma potência absoluta. Na
época da Revolução Francesa, lutava-se contra um poder absoluto. Logo, era
necessário outro poder absoluto para fazer frente àquele. Com o passar do
tempo, percebeu-se que o Direito não dispõe de tal poder criador. Por tal
razão Norberto Bobbio177 aduz que “quando falamos de poder originário,
entendemos originário juridicamente, não historicamente”.
Considerando, portanto, que não mais se admite tal argumento, quais
seriam os limites ao poder constituinte originário? André Ramos Tavares178
aduz que são “implicações circunstanciais impositivas. São as pressões e
coações sociais, econômicas, de grupos particulares, tradições,
precondicionamentos ou predeterminações, preconceitos e toda a sorte de
fatores, que atuam direta ou indiretamente, de forma consciente ou não, na
elaboração do estatuto supremo de convivência humana dentro de
determinado território”.
Fala-se, por conseguinte, em uma ‘vontade de constituição’ capaz de
condicionar a vontade do criador. Indo um pouco além de André Ramos
Tavares, Gomes Canotilho179 mostra que existem alguns condicionantes ao
poder constituinte originário, os quais podem ser assim resumidos: a) Se a
Constituição a ser elaborada deve ter por escopo organizar e limitar o poder,
então o poder constituinte, ao fazer sua obra, estará condicionado por esta
“vontade de constituição”. Deseja-se o poder organizado e limitado e essa
circunstância condiciona a vontade do criador.
b) O poder constituinte é “estruturado e obedece a padrões e modelos de
condutas espirituais, culturais, éticos e sociais radicados na consciência
jurídica geral da comunidade”. Tais valores condicionam sua atuação.
c) Certos princípios de justiça, impregnados na consciência de homens e
mulheres, são condicionantes incontornáveis da liberdade e onipotência
do poder constituinte. Se pode tudo, já não lhe é permitido contrariar os
princípios de justiça, como, por exemplo, o de que não se deve lesar a
outrem.
d) O poder constituinte, embora seja a expressão máxima da soberania
popular no âmbito do Estado-nação, não pode simplesmente ignorar
princípios de direito internacional. Ao contrário, deve estar vinculado a
alguns desses princípios, tais como o princípio da independência, o
princípio da autodeterminação dos povos, o princípio da prevalência dos
direitos humanos, o princípio da igualdade entre os Estados, o princípio
da defesa da paz e o princípio da solução pacífica dos conflitos.
Oportuno lembrar também que é vedado qualquer retrocesso em
normas internacionais de proteção aos direitos humanos quando o
Estado, em algum momento, já as tenha reconhecido180.
4. Poder Reformador
4.1 Noção
O poder reformador tem vários nomes: poder constituinte reformador,
poder de reforma constitucional, poder constituinte de segundo grau, poder
constituinte secundário, poder constituído, poder instituído, poder de
emenda constitucional, poder de emendabilidade, poder constituinte
derivado, competência reformadora e competência constituinte derivada.
Para Michel Temer181, tal poder não constitui, pois é derivativo do originário.
Por isso ele o denomina de competência de reforma.
Utilizar-se-á a terminologia poder reformador. Trata-se do poder que,
previsto na própria Constituição, é encarregado de fazer suas alterações. Tal
competência, via de regra, é atribuída ao próprio Poder Legislativo, e visa
atualizar o texto constitucional de modo a adaptá-lo a novas necessidades,
impulsos e forças sociais. Tal plasticidade possibilita modificar a Constituição
dentro da própria ordem jurídica estabelecida, isto é, sem a necessidade de se
agir por meio do poder constituinte originário, dilatando a atualidade de seu
texto e a duração de sua ordem jurídica. O exemplo mais claro disso é a
Constituição dos Estados Unidos da América. Embora promulgada em 1787,
seu texto ainda permanece vigente, pois novas questões adquiriram status
constitucional por meio de emendas.
O poder reformador, na tarefa de alterar a Constituição, atua de duas
formas: emenda ou revisão. A emenda deve ser utilizada quando se pretende
fazer mudanças específicas, pontuais, localizadas (artigo 60). A revisão,
quando o objetivo for realizar alterações gerais na Constituição. Frise-se que,
no Brasil, já se fez uma revisão constitucional, não mais sendo possível
utilizar esse mecanismo para alterar a Constituição182.

4.2 Natureza
O poder reformador é um poder de Direito. Tem, portanto, natureza
jurídica, estando submetido às regras estabelecidas na Constituição Federal.

4.3 Titular
Pode-se identificar diferentes titularidades do poder de reforma: sob a
perspectiva a) de um órgão estatal, em regra o Parlamento é o seu titular,
sendo que, no caso brasileiro, seria o Congresso Nacional; b) do próprio
titular do poder constituinte originário, que é o povo. Se esse detém a
titularidade do poder de fazer a Constituição, nada impediria que a detivesse
para reformá-la, ou seja, em tese, ter-se-ia que admitir a iniciativa popular de
emenda constitucional, possibilidade não contemplada no Brasil.

4.4 Agente
O agente do poder reformador é um órgão estatal, indicado pelo poder
constituinte originário, devendo estar previsto na própria Constituição. No
caso brasileiro, é o Congresso Nacional que detém a competência para a
emenda à Constituição (artigo 60, parágrafo 2º). Mas não se deve olvidar que
o agente do poder de reforma constitucional será aquele que o poder
constituinte originário disser que é. Por exemplo, a Constituição francesa de
1958 atribuiu ao Presidente da República a competência para reformar a
Constituição.

4.5 Formas de Manifestação


O poder reformador, ao alterar a Constituição, pode atuar de duas formas:
a) aprova a emenda à Constituição e a promulga; b) aprova a emenda à
Constituição e, em seguida, submete à votação popular, para ser referendada.
Fala-se, nesse caso, em referendo constitucional.

4.6 Características
O poder reformador é derivado, condicionado e limitado. Trata-se,
portanto, de um poder localizado no campo do Direito que o Estado produz,
não existente por si, visto ter sido criado pelo poder constituinte originário.
Em outras palavras, ele está localizado dentro da ordem jurídica estabelecida
pelo poder constituinte originário, sendo seu contraponto.
Derivado. O poder de reforma do texto constitucional deriva do poder
constituinte originário, que o inseriu na Constituição. Ao contrário do seu
criador, ele não inaugura, não instaura, não implanta uma nova ordem
jurídica. Apenas atua no sentido de modificá-la.
Condicionado. O exercício do poder de reforma constitucional deve
observar os critérios estabelecidos na própria Constituição (artigo 60 da
Constituição e artigo 3º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias -
ADCT). O processo de iniciativa, elaboração, discussão, votação e
promulgação da emenda à Constituição será aquele estabelecido pelo poder
constituinte originário, completado, quando for o caso, por normas
regimentais.
Limitado. Há limites ao poder de reforma constitucional. Ele não é livre
para agir. As limitações a ele impostas são de várias espécies: processuais,
circunstanciais, temporais e materiais: As Limitações processuais são formais.
Em outras palavras, limitam o procedimento ou o modo de fazer. O poder
reformador, ao produzir normas constitucionais, terá que observar o
procedimento estabelecido na Constituição. Assim: 1) o projeto de emenda
constitucional deve ser subscrito pelo Presidente da República; por um terço,
no mínimo, de Deputados Federais ou Senadores; ou por mais da metade das
Assembleias Legislativas das unidades da Federação (artigo 60, incisos I, II e
III); 2) a aprovação da emenda constitucional deve obter, por duas vezes, os
votos favoráveis de três quintos dos parlamentares, em cada uma das Casas
do Congresso Nacional, ou seja, são necessários três quintos dos votos, duas
vezes na Câmara dos Deputados, e três quintos dos votos, duas vezes no
Senado (artigo 60, parágrafo 2º).
As Limitações circunstanciais são particularidades que impedem a reforma
constitucional. Quando estiver presente uma das circunstâncias previstas na
Constituição (artigo 60, parágrafo 1º), ela não poderá ser emendada. Desse
modo, o poder reformador está impedido de atuar quando estiver em
vigência o estado de sítio, o estado de defesa ou a intervenção federal.
Presente uma das circunstâncias, não pode ser protocolado novo projeto de
emenda constitucional, e as que estiverem tramitando têm seu curso
paralisado. Superada a circunstância, no entanto, o poder de emendabilidade
pode retomar seu curso natural.
As Limitações temporais: O poder de reforma constitucional permanece
imobilizado por certo lapso de tempo. Em dois momentos, o poder
constituinte originário criou tais limitações na Constituição de 1988: 1)
proibiu que a Constituição fosse alterada nos primeiros cinco anos, contados
da data de sua promulgação pela Assembleia Nacional Constituinte (artigo 3º
do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias - ADCT); 2) proibiu que
a matéria constante de proposta de emenda constitucional rejeitada ou havida
por prejudicada seja objeto de nova proposta na mesma sessão legislativa, ou
seja, no mesmo ano em que foi rejeitada ou tida por prejudicada (artigo 60,
parágrafo 5º).
Frise-se que a Constituição imperial de 1824, por exemplo, também
estabeleceu uma limitação temporal ao poder reformador, impedindo que a
Constituição pudesse ser alterada nos quatro primeiros anos de vigência
(artigo 174).
As Limitações materiais são impostas ao poder reformador que dizem
respeito a certas matérias. Há determinadas matérias sobre as quais não pode
haver emenda constitucional com o escopo de suprimir ou restringir. Essas
limitações materiais podem ser explícitas ou implícitas.
As limitações materiais explícitas são as do artigo 60, parágrafo 4º. Não
pode haver emenda constitucional tendente a abolir (total ou parcialmente)
qualquer das matérias ali referidas: a forma federativa de Estado; o voto
direto, secreto, universal e periódico; a separação de poderes e os direitos e
garantias individuais. No entanto, é possível uma emenda que amplie tal
dispositivo, pois impede-se somente a sua abolição.
Todavia, há outras limitações que, embora não estejam expressas na
Constituição (daí serem chamadas de implícitas), incidem sobre o poder de
reforma constitucional. Podem ser relacionadas as seguintes limitações
materiais implícitas ao poder reformador: 1) não se pode mudar o titular do
poder constituinte originário; 2) não se pode substituir o titular do próprio
poder reformador, ou seja, substituir-se a si mesmo por outro; 3) não se pode
alterar o processo de elaboração da emenda constitucional, quando o objetivo
for facilitar alterações constitucionais; 4) não se pode alterar a cláusula que
instituiu as cláusulas pétreas, ou seja, não pode alterar (revogar total ou
parcialmente) o artigo 60, 4º da Constituição Federal; 5) não se pode
extinguir o próprio Estado.

5. Poder Constituinte Decorrente


Entende-se por decorrente o poder que, no Estado federal, é concedido aos
seus membros de elaborarem suas próprias constituições. Torna-se
importante estudá-lo, na medida em que o Brasil é um Estado federal.
O poder constituinte originário assegurou a cada Estado, como unidade da
Federação, o poder de se organizar e de se reger pela Constituição e pelas leis
que adotar, dentro dos limites da Constituição vigente (artigo 25). Ao prever
o poder de o Estado-membro organizar-se, concedeu-lhe o poder de criar sua
própria Constituição, ou seja, criar normas constitucionais estaduais.
Por outro lado, no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, o
constituinte originário fixou prazo para a elaboração das constituições
estaduais: “Cada Assembleia Legislativa, com poderes constituintes, elaborará
a Constituição do Estado, no prazo de um ano, contado da promulgação da
Constituição Federal, obedecidos os princípios desta” (artigo 11).
Mas, considerando que o município é ente da federação, disporiam eles de
poder constituinte derivado decorrente? Qual a natureza da lei orgânica
municipal? Antes da Constituição de 1988, era competência do Estado
elaborar as leis orgânicas dos municípios. Prevaleceu o entendimento de que
lei orgânica municipal não possui status de norma constitucional. Isso posto,
a inobservância da lei municipal gera ilegalidade, jamais
inconstitucionalidade. É por tal razão que a lei ou ato normativo municipal
que viole a Constituição Federal pode ser questionada no Supremo Tribunal
Federal por meio de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental
(ADPF) e não Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI).
E o Distrito Federal? Em primeiro lugar, não há municípios no Distrito
Federal mas cidades satélites. Tal constatação gera um efeito importante: não
há eleições para prefeituras, mas sim administradores nomeados pelo
governador e chancelados pela câmara administrativa. A lei orgânica do
Distrito Federal é um documento híbrido, por possuir competências que
seriam estaduais e municipais. Portanto, a doutrina entende que esse
documento possui parcial natureza de norma constitucional e parcial
natureza de norma infraconstitucional. Assim, o poder que elaborou a lei
orgânica do Distrito Federal era parcialmente derivado decorrente.

6. Poder Constituinte e Poder Judiciário


Os juízes e os tribunais exercem, com frequência, poderes constituintes, na
medida em que podem criar normas jurídicas que acabam tendo status
constitucional. A norma que instituiu o bem de família constitucional (artigo
5º, inciso XXVI), antes de ser constitucionalizada pelo poder constituinte
originário de 1988, foi obra da atuação de magistrados progressistas,
especialmente no Rio Grande do Sul. O mesmo se pode afirmar em relação à
união estável, norma constitucional criada pela jurisprudência e pela doutrina
e que passou a ter assento constitucional em 1988, e mais recentemente da
união estável de casais homossexuais (ADPF 132).
Não se ignora que os juízes e os tribunais, no exercício da função
jurisdicional, podem criar normas constitucionais, quando decidem ou
sentenciam. Portanto, produzir normas constitucionais não é exclusividade
do poder constituinte originário ou reformador, devendo-se reconhecer ao
magistrado legitimidade para criá-las.
Por outro lado, deve-se esperar e, mais do que isso, exigir-se dos juízes e
dos tribunais a concretização dos valores inseridos na Constituição da
República. Esse deve ser o paradigma na busca incessante de realização da
Justiça. O magistrado deve aplicar prioritariamente a Constituição,
fundamento de validade de todas as normas jurídicas que, expressa ou
implicitamente, compõem o ordenamento jurídico nacional.

7. Poder Constituinte Transnacional


Há um núcleo de poder capaz de produzir normas jurídicas que, não raro,
se sobrepõem às normas da Constituição do Estado-nação. Em razão do
nascimento de blocos regionais, cujo exemplo principal é a União Europeia,
normas jurídicas são produzidas no âmbito da comunidade regional,
sobrepondo-se às normas das Constituições dos Estados-membros daquela
comunidade. Em outras palavras, as normas jurídicas produzidas por
organismos que transcendem os limites territoriais de um Estado acabam se
impondo sobre as normas constitucionais elaboradas pelo poder constituinte
nacional. Poder-se-ia, então, falar na existência de um poder constituinte
transnacional ou supranacional.
O fenômeno é visível no campo dos direitos humanos, tendo-se discutido a
possibilidade da supremacia de normas jurídicas que se sobrepõem a
dispositivos da Constituição nacional. Após a Segunda Guerra Mundial, cujo
marco foi a criação da ONU, esses direitos foram sendo estudados em sua
dimensão internacional. Passou-se a falar, por exemplo, em
internacionalização dos direitos humanos.
Conclusões
1. O poder constituinte originário é aquele que cria uma Constituição,
documento normativo fundamental do Estado. Historicamente, teve como
titulares a figura divina, o rei, a nação e o povo. O povo cria uma Constituição
mediante seus representantes reunidos em uma Assembleia Nacional
Constituinte especialmente criada para tal fim. O poder constituinte
originário se caracteriza por ser inicial, incondicionado e ilimitado.
2. Já o poder constituinte reformador é encarregado de alterar a
Constituição, haja vista ser a plasticidade de seu texto um critério para a sua
permanência no tempo. Em outras palavras, a competência de reforma
conferida, normalmente ao Poder Legislativo, garante que não seja necessária
a adoção de nova Constituição para adequar seu texto às mudanças sociais.
Caracteriza-se, em oposição ao originário, por ser derivado, condicionado e
limitado.
3. O poder constituinte decorrente é um atributo do federalismo. É a
competência atribuída aos estados-membros da federação em elaborar a sua
própria Constituição.
4. A interpretação das normas realizada pelos magistrados, no exercício de
suas funções jurisdicionais, guarda em si uma relação com o poder
constituinte. Não raro, o Judiciário profere decisões que não foram adotadas
no texto da Constituição em sua literalidade, mas o faz ao analisar o sistema
constitucional em toda a sua extensão.
5. Poder constituinte transnacional é resultado da união de países em
blocos ou comunidades. Em nível mais avançado de integração, como
ocorreu com a União Europeia, pode-se propor um tratado de natureza
constitucional para regular algumas matérias de seus Estados-membros.

155 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 5 ed. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 128-129.
156 SIEYÈS, Emmanuel Joseph. O Que é o Terceiro Estado? 4 ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2001, p.
94.
157 MALBERG, R. Carré de. Teoría General del Estado. México: Fondo de Cultura Económica, 2001, p.
1184-1185
158 NEGRI, Antônio. O Poder Constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade. Rio de
Janeiro: DP&A, 2002, p. 13.
159 TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 29.
160 TEMER, Michel. Elementos de Direito Constitucional, p. 33.
161 BIDART CAMPOS, German J. Filosofía Del Derecho Constitucional. Buenos Aires: Sociedad
Anônima Editora, 1969, p. 161-162.
162 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 31 ed. São Paulo: Saraiva,
2005, P. 23.
163 BRITTO, Carlos Ayres. Teoria da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 31.
164 APÓSTOLO PAULO. Romanos 13:1. Bíblia Sagrada.107 ed. São Paulo: Ave-Maria, 1997, p. 1.462.
165 BERTRAND, Badie. Um Mundo Sem Soberania. Lisboa: Instituto Piaget, 2000, p. 24.
166 SIEYÈS, Emmanuel. O Que é o Terceiro Estado?, p. 91 e 94.
167 Sobre esta temática, confira: MÜLLER, Friedrich. Quem é o Povo? São Paulo: Max Limonad, 2003.
168 MALBERG, R. Carré de. Teoría General del Estado, p. 1163.
169 BRITTO, Carlos Ayres. Teoria da Constituição, p. 45.
170 SILVA, José Afonso da. Poder Constituinte e Poder Popular. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 70-72.
171 BRITTO, Carlos Ayres. Teoria da Constituição, p. 25.
172 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 65.
173 BRITTO, Carlos Ayres. Teoria da Constituição, p. 48.
174 SIEYÈS, Emmanuel. O Que é o Terceiro Estado?, p. 96.
175 Os registros completos da Assembleia Constituinte podem ser acessados no site do Senado Federal.
Disponível em: <http://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/asp/CT_Abertura.asp>. Acesso em
17/04/2021.
176 SIEYÈS, Emmanuel Joseph. O Que é o Terceiro Estado?, p. 95.
177 BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. 6 ed. Brasília: UNB. 1995, p. 42.
178 TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional, p. 41.
179 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 81.
180 Este é o chamado “Efeito Cliquet”, em referência a uma modalidade no alpinismo que não permite
aos praticantes retroceder, apenas avançar.
181 TEMER, Michel. Elementos de Direito Constitucional, p. 36.
182 Atos das Disposições Constitucionais Transitórias, artigo 3º: “A revisão constitucional será
realizada após cinco anos, contados da promulgação da Constituição, pelo voto da maioria absoluta
dos membros do Congresso Nacional, em sessão unicameral”.
VII
Estado e Direito
1. Jusnaturalismo. 2. Juspositivismo. 2.1 Escolas Histórica e Exegética do Direito;
2.2 O Estado e a Teoria Pura do Direito; 2.3 Jurisprudência dos Conceitos, dos
Interesses e dos Valores; 2.4 Ascensão da Constituição Democrática. Conclusões.

Estado e Direito comungam do fato de que dependem da vida em


sociedade, razão pela qual parte de seu telos é organizar e tornar possível a
existência da coletividade. Todavia, o Estado não é a única fonte do Direito.
Ele elabora, ou admite, normas jurídicas, que são fontes do Direito. Porém,
como se sabe, há uma diversidade de fontes normativas, entre as quais podem
ser mencionadas, a lei, os costumes, a jurisprudência, a equidade e a analogia.
Embora longe de alcançarem unanimidade, são mananciais produtores de
normas que estabelecerão vínculos entre pessoas e regularão a vida em
sociedade.
Contudo, inegavelmente, o Estado tem sido a grande fonte produtora do
Direito. Então, é de se perguntar qual a relação existente entre esses dois
notáveis fenômenos da vida humana. A corroborar o exposto, Paulo Nader183
expõe três teorias que procuram explicar a relação entre Estado e Direito.
A primeira é a teoria dualista. Mostra que, entre Direito e Estado,
nenhuma relação existe. Seriam duas ordens absolutamente estanques,
hermeticamente postas, de modo que nenhuma dependeria da outra.
A segunda teoria, chamada monística e que teve em Hans Kelsen seu
principal defensor, sustenta que Estado e Direito consistem em uma só
entidade. Não seria possível separar um do outro. Assim, diz Kelsen184: “a
relação entre Direito e Estado como sendo análoga à que existe entre o
Direito e o indivíduo. Pressupõe-se que o Direito – apesar de criado pelo
Estado – regula a conduta do Estado, concebido como um tipo de homem ou
supra-homem, exatamente como o Direito regula a conduta dos homens”.
A terceira é a teoria do paralelismo, a qual sustenta que o Estado e o
Direito são duas entidades distintas, porém interligadas. Uma depende da
outra e esse regime de mútua dependência faz o Estado participar não apenas
da elaboração do Direito, mas também de sua aplicação, quer pela
administração, quer pelo julgador.
Essa, a mais aceita, mostra que Estado e Direito vivem em regime de
mútua dependência. Tal reciprocidade é facilmente detectável. Diz Gustav
Radbruch185 que, “se a lei pressupõe o Estado como legislador, temos que
observá-lo, antes de tudo, como fonte de praticamente todo o Direito. O
Estado, porém, não é apenas fonte do Direito, pois, ao mesmo tempo, é
produto do Direito: deriva sua Constituição e com isso sua existência jurídica,
que advém do Direito público”.
A relação que se faz entre Estado e as normas jurídicas ou os direitos
fundamentais varia segundo a escola doutrinária adotada. No transcorrer dos
séculos, muitos pontos de vistas distintos emergiram no afã de se regular
condutas e garantir prerrogativas. Três deles se tornaram tradicionais na
análise dos últimos quatrocentos anos no Ocidente186: o jusnaturalismo, o
juspositivismo e mais recentemente (a partir do século XX) a ascensão dos
ideais constitucionais e democráticos.

1. Jusnaturalismo
A doutrina do jusnaturalismo é aquela na qual se reconhece a existência de
direitos e deveres naturais aos indivíduos, distintos daqueles positivados pelo
Estado. A diferença fundamental entre as normas emanadas do Estado e os
direitos naturais diz respeito à sua validade: enquanto as primeiras são válidas
segundo o Estado, os direitos naturais têm validade em si, devendo prevalecer
sobre as demais normas. Isso significa que um conflito normativo ou
oposição de uma autoridade a um direito natural legitima o ofendido a
desobedecer ao mandamento estatal.
O jusnaturalismo é uma forma de pensar presente em toda a história. No
período grego, por exemplo, a história de Antígona, contada por Sófocles, é
um cristalino exemplo da oposição entre direitos naturais que têm validade
em si e as normas emanadas de uma autoridade. Na peça, Creonte, rei de
Tebas, proibiu o sepultamento do cadáver de Polineices, irmão de Antígona.
Desafiando o edito real, a norma válida e vinculante naquele momento, ela
realiza o funeral do irmão. Ao ser levada à presença de Creonte e questionada
das razões que a levaram a violar a lei, Antígona responde: “Mas Zeus não foi
o arauto delas [das leis] para mim, nem essas leis são as ditadas entre os
homens pela Justiça, companheira de morada dos deuses infernais; e não me
pareceu que tuas determinações tivessem força para impor aos mortais até a
obrigação de transgredir normas divinas, não escritas, inevitáveis; não é de
hoje, não é de ontem, é desde os tempos mais remotos que elas vigem, sem
que ninguém possa dizer quando surgiram”187.
O pensamento jusnatural europeu dos séculos XVII e XVIII, por sua vez,
marca a tentativa de secularização e oposição a todo tipo de visão
sobrenatural, ou seja, pretendeu extrair os elementos teológicos e místicos
para justificar o Direito com base na razão. Guido Fasso188 comenta que
Hugo Grócio, pensador renomado pela sua doutrina internacional, foi o
primeiro autor a buscar elementos subjetivos (autonomia da vontade
humana) para o jusnaturalismo, em contraposição aos pressupostos objetivos
(dogmas) da religião.
Outra característica do jusnaturalismo moderno é a forte defesa do aspecto
subjetivo dos direitos, que, por via de consequência, serviu de arrimo às
concepções individualistas e liberais naquele período, ainda que em
detrimento de normas positivadas, mas que contrariavam os direitos naturais.
A esse respeito, comenta Luigi Ferrajoli189 que “na falta de um sistema
formalizado de fontes positivas, a fonte de legitimação do Direito e o objeto
da ciência jurídica não era o Direito positum de uma qualquer auctoritas, mas
precisamente a sua veritas ou natura”.
O aspecto subjetivo dos direitos naturais contribuiu na própria
legitimidade do Estado. Enquanto na antiguidade e no medievo se pensava na
ordem política como algo necessário – a exemplo de Aristóteles, cuja
antropologia consignava o homem como um animal social –, os mais
conhecidos jusnaturalistas modernos (Grócio, Hobbes, Locke, Milton,
Pufendorf, Tomás, Barbeyrac, Wolff, Burlamaqui, Vattel, Rousseau e Kant)
vislumbram o Estado como obra voluntária, erigida pelo abandono do estado
de natureza. Nesse processo, a voluntariedade humana se perfaz de modo
claro a partir do contrato social: trata-se de uma justificação hipotética do
Estado na visão de cada autor contratualista190.
Assim, para Guido Fasso191, direitos inatos, estado de natureza e contrato
social, a despeito de terem os contornos de cada pensador, são conceitos
característicos do jusnaturalismo moderno, estando presentes em todas as
doutrinas desenvolvidas entre os séculos XVII e XVIII.
2. Juspositivismo
O juspositivismo ou positivismo jurídico é uma forma de pensar oposta ao
jusnaturalismo: ambas as nomenclaturas derivam da oposição conceitual
entre direito natural e direito positivo. A divisão entre direito natural e direito
positivo é conhecida, pelo menos, desde Aristóteles192, quando afirmou que
“da justiça política, uma parte é natural e outra parte é legal”. O mais
importante é perceber que tais correntes são antitéticas entre si, possuindo
formulação em contextos históricos distintos: o jusnaturalismo floresceu na
luta contra o monarca absoluto, e o juspositivismo tem seu apogeu na
construção do Estado secular.
Dessa noção primeva, salientamos que o conceito de juspositivismo é
tradicionalmente abordado sob quatro aspectos distintos193.
a) Quanto à fonte: enquanto o jusnaturalismo é dado pela natureza, o
direito positivo parte de normas criadas por uma autoridade do Estado.
Esta é a clássica dicotomia apresentada por Hugo Grócio entre natura
potestas e potestas populus.
b) Quanto à validade de suas normas: conforme já tratado, a fonte de
validade do direito positivo advém do Estado e da relação hierárquica
entre as normas; o direito natural tem validade em si, ou seja, trata-se de
um sistema normativo autossuficiente.
c) Quanto ao modo de acesso às suas prescrições: os jusnaturalistas partem
do pressuposto de que estas normas são acessíveis a todos os seres
racionais. Logo, a razão é o seu meio de acesso. As normas positivas, por
sua vez, são manifestações legislativas, fruto de procedimentos
específicos para a sua criação.
d) Quanto à sua variação no tempo: o direito natural é imutável, enquanto
o direito positivo é efêmero e pode ser alterado segundo o alvedrio das
novas gerações.

2.1 Escolas Histórica e Exegética do Direito


O juspositivismo se tornou o modo de pensar dominante com o
arrefecimento do jusnaturalismo, processo que ganhou força com a crítica
feita pelos historicistas. De um modo geral, pode-se afirmar que os
historicistas eram críticos do racionalismo, não chancelando a noção
existencial de um Homem racional capaz de libertar a sociedade. Logo, o
homem não é um arquétipo com características universais e comuns a todo
ser vivo, sendo capaz de reconhecer o justo e o injusto por sua própria
natureza: o que existe é uma imensurável abstração de seres humanos
distintos que, na maior parte de suas vidas, movem-se por sentimentos
contrários à razão.
Valendo-se dessa noção, o historicismo quebranta o principal alicerce
jusnatural: não há um homem racional e sagaz dentro de cada pessoa que
aceitou ceder parte de sua liberdade para a formação da ordem jurídica, em
virtude de o Direito ser fruto de um processo histórico formativo. Logo, não
há também uma unidade e coesão entre as pessoas, mas multiplicidade,
pluralidade. O racionalismo foi posto à prova em diferentes campos do
conhecimento, como o político-social (Karl Marx), o psicológico (Sigmund
Freud) e o filosófico (Friedrich Nietzsche). Ruída a esperança da libertação
humana pela via da razão, restou a modernidade líquida de Zigmunt
Baumann, ou seja, o fim das principais certezas sobre as quais nosso mundo e
instituições (incluindo o Estado, igrejas e a própria família) se erigiram.
É preciso pontuar, todavia, que a Escola Histórica desenvolvida na
Alemanha se afasta da Escola Exegética francesa. O positivismo exegético
desenvolvido na França logo após o Golpe de 18 de Brumário (ascensão de
Napoleão Bonaparte ao poder) marca o ponto alto do movimento codicista,
na medida em que só era possível dizer o Direito a partir da leitura dos
códigos. Em outras palavras, o elemento que caracterizava o Direito era a
legislação aprovada pelos corpos legislativos. Essa interpretação legalista criou
a figura do chamado juiz autômato, um mero instrumento de adequação
entre fato e norma.
No caso da Escola Histórica, Savigny é apontado como o seu fundador.
Um fato importante, lembrado por Karl Larenz194, é o de que o autor utiliza
como sinônimos os termos Direito Positivo e Direito Legislado, inflexão
imprescindível ao desenvolvimento do positivismo normativista (de Hans
Kelsen). Entretanto, não significa que Savigny chancelasse uma visão
exegética do Direito, em razão de o autor considerar fundamental o elemento
histórico que move o Direito, tendo no povo a centralidade de tal movimento.
Isto significa que, sob estes dois pontos de vistas, na França a lei era soberana
em qualquer hipótese e o legislador racional, seu artífice; na Alemanha, o
povo era soberano e o Parlamento era o porta-voz da legislação.

2.2 O Estado e a Teoria Pura do Direito


Embora o juspositivismo englobe três séculos de distintas formas de pensar
o Direito e estruturar suas normas, uma coisa é certa: Hans Kelsen é um dos
seus mais conhecidos interlocutores, e a teoria pura do Direito é o seu grande
emblema. Kelsen, que abandonou a Europa ante a ascensão do nazismo,
vislumbrou o que seria a ciência do Direito. Por ciência, deve-se compreender
a separação do Direito de outros ramos no afã de se encontrar um método de
estudo para as normas jurídicas em si, separando-as de fatos e valores que não
lhes pertenceriam. Assim, o autor reforça sua preferência pelo juspositivismo,
deixando de lado as teses jusnaturalistas.
A busca pela pureza do Direito não está no estudo das leis, mas na
metodologia empregada de modo a se encontrar os vetores comuns a todos os
sistemas jurídicos (validade, vigência, eficácia, sanção, entre outros). Kelsen,
portanto, estudou a estrutura da norma, não seu resultado. Sobre esta busca
de Kelsen, Karl Larenz195 comenta que “só se garante o seu caráter científico
quando se restringe rigorosamente à sua função e o seu método se conserva
puro de toda a mescla de elementos estranhos à sua essência, isto é, não só de
todo e qualquer apoio numa ciência de fatos (como a sociologia e a
psicologia), como de todo e qualquer influxo de proposições de fé, sejam de
natureza ética ou de natureza religiosa”.
E por qual razão Kelsen afastava elementos axiológicos, fáticos, religiosos e
finalísticos de sua análise? Em virtude de tais elementos serem variáveis. O
rigor científico demanda precisão, controle de etapas, exatidão nos elementos
e no resultado. O que significa que o autor não se preocupava se a norma era
justa, mas se era válida, ou seja, se foi produzida de acordo com o
procedimento prescrito para a sua edição. Neste sentido, a norma ser justa ou
não varia segundo uma miríade de pontos de vista distintos; no entanto, a
validade da norma pode ser declarada com exatidão ao se investigar seu
processo construtivo.
De que modo se afere a validade de uma norma? Kelsen se vale do olhar
juspositivista e pensa num edifício de normas jurídicas, semelhante a uma
pirâmide. As normas inferiores têm seu fundamento de validade lastreado às
normas imediatamente superiores. Por serem dispostas de modo hierárquico,
se uma norma é considerada inválida (por exemplo, uma norma que legitima
a escravidão), todas as inferiores também o serão (por exemplo, as normas
que disciplinem a escravidão).
Para tanto, desenvolveram-se os critérios de solução de conflitos
normativos, uma vez que não é possível, nesse sistema, a existência de regras
que se contradizem. Conforme lembra Norberto Bobbio196, o ordenamento
jurídico demanda coerência, pois o Direito não tolera antinomias. Com
efeito, a coesão exige que as regras que não dialoguem entre si sejam
extirpadas do sistema, o que ocorre a partir de três critérios tradicionais: a)
critério cronológico ou lex posterior derogat priori (a lei posteriormente
editada revoga a lei pretérita);
b) critério hierárquico ou lex superior derogat inferiori (havendo
incompatibilidade entre regras, sempre prevalecerá a que estiver situada
acima na hierarquia normativa); c) critério de especialidade ou lex
specialis derogat generali (a lei especial, que aborda uma matéria com
maiores minúcias ou confere tratamento diferenciado a determinadas
categorias, revoga a lei geral).
Outro aspecto importante: se se está a falar de uma pirâmide cujas normas
inferiores encontram respaldo nas superiores, qual deverá ser a norma
fundamental? Seria a Constituição? Kelsen chama essa de Grundnorm, a qual
não se confunde com a Constituição de um país. Para ele, trata-se de um
pressuposto lógico, não necessariamente existente. Segundo o autor197, “a
norma fundamental é a fonte comum da validade de todas as normas
pertencentes a uma e mesma ordem normativa, o seu fundamento de validade
comum. [...] É a norma fundamental que constitui a unidade de uma
pluralidade de normas enquanto representa o fundamento da validade de
todas as normas pertencentes a essa ordem normativa”.
Visto sobre tal perspectiva, é possível afirmar que o funcionamento de
grande parte de nosso ordenamento jurídico ocorre nos moldes positivistas.
A despeito da crítica operada no pós-guerra, quando vários temas de cunho
moral retornaram à discussão política em virtude das hecatombes perpetradas
pelos governos ditatoriais na Europa, o sistema normativo dos países é
estruturado sob uma vertente hierárquica de normas. E embora alguns
críticos considerem que a teoria pura não visa combater injustiças sociais,
Hans Kelsen continua atual e necessário ao Direito.
2.3 Jurisprudência dos Conceitos, dos Interesses e dos
Valores
Parte da tradição jurídica legada ao Brasil é formada por diferentes
matrizes positivistas desenvolvidas na Europa. Para compreender a
construção de nossas instituições e nossa forma de pensar o Direito, é
importante conhecer a origem dos institutos e o modo pelo qual eles foram
incorporados à nossa realidade. Por conseguinte, na virada do jusnaturalismo
para o juspositivismo, algumas tradições de pensamento adquiriram
destaque, como a exegética e a histórica, tratadas há pouco. Neste momento,
chamamos atenção a três subcategorias no interior do juspositivismo: a
jurisprudência dos conceitos, a jurisprudência dos interesses e a
jurisprudência dos valores.
A jurisprudência dos conceitos, de modo geral, incorpora à tradição alemã a
Escola Exegética de matriz francesa. Assim, a busca pela sistematização
hierárquica das normas, que permite uma dedução ascendente para a
afirmação de sua validade, e o apego à letra da lei são as características
comuns entre os autores agrupados nessa corrente de pensamento.
Entretanto, há uma diferença importante entre as duas escolas: a
jurisprudência dos conceitos legava um papel central aos doutrinadores198,
enquanto a Escola Exegética francesa mirava a figura do legislador.
A jurisprudência dos interesses, por sua vez, introduz um olhar de matriz
sociológica e crítica à noção exegética. Compartilham desta visão Philipp
Heck e Rudolf Ihering (em seu segundo momento199). Como nos ensina Karl
Larenz, a jurisprudência dos interesses considera o Direito como tutelas de
interesses. Em outras palavras, a legislação, que representa o alfa e ômega do
Direito aos exegetas, resulta dos mais variados interesses (éticos, religiosos,
políticos, pessoais e coletivos, entre outros) na luta por seu reconhecimento.
Ou seja: há um deslocamento da vontade pessoal do legislador para os
interesses causais que motivaram a edição de determinada norma.
Destarte, para os teóricos da jurisprudência dos interesses, a figura do juiz
aplicador da norma é alterada: seu campo de visão passa a ser mais amplo,
transformando-o em intérprete da lei. Segundo Karl Larenz200, “ao exortar o
juiz a aplicar os juízos de valor contidos na lei com vista ao caso judicando, a
jurisprudência dos interesses – embora não quebrasse verdadeiramente os
limites do positivismo – teve uma atuação libertadora e fecunda sobre uma
geração de juristas educada num pensamento formalista e no estrito
positivismo legalista. E isto em medida tanto maior quanto aconselhou
idêntico processo para o preenchimento das lacunas das leis, abrindo desta
sorte ao juiz a possibilidade de desenvolver o Direito não apenas ‘na fidelidade
à lei’, mas de harmonia com as exigências da vida”.
O problema apontado na jurisprudência dos valores está relacionado à
interpretação das normas a cargo dos magistrados: sua pretensão é a de
identificar os valores que permeiam o conflito de direitos do caso concreto
levados ao crivo do julgador201. Por essa razão, sua principal aliada dialógica é
a filosofia, distanciando-se o caráter sociológico da jurisprudência dos
interesses. A expansão judicial ocorrida no pós-guerra se deve, em larga
medida, ao reconhecimento da força normativa da Constituição somado ao
avanço dos valores democráticos. Com isso, as normas constitucionais se
tornaram abertas, não subsumíveis, o que demanda um papel ativo na sua
interpretação para a resolução de casos concretos.
Contudo, a busca pela cientificidade no positivismo esbarra frontalmente
com a interpretação da norma conferida pelo julgador, pois, segundo
Larenz202, “não se pode fechar completamente a porta a ingredientes
subjetivos”. Em outras palavras, não há meios de se padronizar as
interpretações realizadas pelos juízes mediante critérios dados a priori. Ainda
para o autor, “não é de todo possível ao juiz, na maioria dos casos, chegar à
decisão estritamente com base na lei, e, porque esta carece de interpretação e a
interpretação é mais ou menos discricionária ou requer dele a emissão de um
juízo de valor, subsiste a questão de se saber o que é que realmente motivou o
juiz na sua decisão - no lugar da ciência normativa do Direito, que comprove
como deva ele decidir, subentra uma ciência factual, uma psicologia ou uma
sociologia judiciárias”.

3. Ascensão da Constituição Democrática


O ideal constitucional, em sentido amplo, denota a demarcação de limites
para o agir de um governante e a supremacia da legalidade. O
constitucionalismo pode ser interpretado segundo três enfoques.
a) Em sentido teórico, é uma teoria normativa da política, cujo desiderato é
limitar o poder soberano203.
b) Ao mesmo tempo, pode ser lido como parte do movimento iluminista
europeu dos séculos XVII e XVIII. Na sua vertente jurídica, os
iluministas (como Benjamin Constant, Montesquieu e John Locke)
lutavam contra o absolutismo, proclamando que os Estados deveriam
possuir uma Constituição escrita com eficácia superior à da legislação
ordinária.
c) O terceiro enfoque é a junção dos dois anteriores (poder
constitucionalmente limitado) somado à noção de democracia. Nessa
perspectiva, o constitucionalismo democrático se desenvolveu no século
XX, ao enunciar que os Estados deveriam ter uma Constituição escrita
para dar guarida a direitos fundamentais, além de estabelecer processos
político-decisórios com a participação plural dos cidadãos.
A importância do constitucionalismo na atualidade é testemunhada por
Gomes Canotilho204, ao aduzir que “qualquer que seja o conceito e a
justificação do Estado, o Estado só se concebe hoje como Estado
constitucional”.
O apogeu do movimento constitucionalista se deu a partir das revoluções
liberais do século XVIII, ocorridas nos Estados Unidos, em 1776, e na França,
em 1789. Contudo, embora não possua uma Constituição escrita, é oportuno
lembrar que a Inglaterra vivenciou esse movimento de controle do
absolutismo alguns séculos antes, ao editar diversos documentos que
serviram como paradigma aos demais países. Podemos citar como exemplos:
a Magna Carta205 de 1215, a Petição de Direitos de 1628, a Lei do Habeas
Corpus de 1679 e a Declaração de Direitos de 1689.
Nessa medida, Luigi Ferrajoli206 pontua que, no afã de se tentar conter o
poder absoluto dos monarcas, “o Estado moderno nasceu historicamente
como Estado de Direito, bem antes que como Estado democrático; como
monarquia constitucional e não como democracia representativa. Mais
exatamente, nasceu como Estado de Direito limitado por vedações (ou
deveres negativos de não fazer) e não ainda vinculado a obrigações (ou
deveres positivos de fazer)”.
A luta contra o poder absoluto fomentou o estabelecimento de três
condições precípuas para a formação do Estado de Direito: a) a supremacia da
legislação207, tida como expressão da vontade geral; b) a limitação do poder;
c) a proteção e salvaguarda dos direitos fundamentais, com destacada
preponderância para as liberdades208.
Restavam ainda os direitos sociais, que surgiram no momento em que o
Estado passou a ser demandado pela população mais fragilizada
economicamente. O século XIX é marcado por inúmeros movimentos
operários, que lutavam em prol dos trabalhadores, cujos direitos eram
praticamente inexistentes ante a força do capitalismo industrial. Por
conseguinte, ao constitucionalismo se incorporou uma concepção de justiça
democrática na garantia de direitos aos cidadãos. Com isso, o Estado adquiriu
uma postura ativa no que tange à promoção de direitos.
A ratificar tal tese, Luís Roberto Barroso209 comenta que o núcleo essencial
das primeiras Constituições escritas (liberais) é composto por normas de
repartição e limitação do poder, incluída a proteção aos direitos individuais
em face do Estado. A concepção moderna de democracia começou a se
formular no século XIX, quando “se incorporam à discussão ideias como
fonte legítima do poder e representação política”. Apenas no século XX é que
se chegou a complexa discussão sobre o qual se erigiu o Estado democrático
de Direito: “quem decide (fonte do poder), como decide (procedimento
adequado) e o que pode e não pode ser decidido (conteúdo das obrigações
negativas e positivas dos órgãos de poder)”.
A partir de então, não basta uma norma ter sido produzida em seu aspecto
formal de acordo com os ditames legais. A sua materialidade deve estar em
diálogo com a Constituição. Há, consoante Luigi Ferrajoli210, uma mudança
interpretativa na relação entre vigência e validade das normas jurídicas:
“enquanto a existência (vigência) da norma depende de sua forma de
produção, agora, sua validade depende de sua substância ou conteúdo, que
deverá estar de acordo com os princípios e direitos constitucionalmente
reconhecidos”.
As Constituições promulgadas no transcorrer do século XX estabeleceram
amplo catálogo de direitos sociais e coletivos aos seus cidadãos, sem
necessariamente vislumbrar mecanismos para a sua garantia. Para este século
XXI, o desafio do constitucionalismo democrático continuará sendo o de
buscar a concretização das prerrogativas reconhecidas nos ordenamentos.
Valendo-se da conhecida lição de Norberto Bobbio211, “o problema
fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não é tanto o de
justificá-los, mas o de protegê-los. Trata-se de um problema não filosófico,
mas jurídico, e num sentido mais amplo, político”.

Conclusões
1. O jusnaturalismo é uma teoria jurídica que reconhece que alguns
direitos são inatos às pessoas, independentemente de estarem positivados. O
pensamento jusnatural europeu do século XVII foi uma tentativa de
secularização e oposição a todo tipo de visão sobrenatural ou mística da
política. Os direitos reconhecidos como naturais variam de acordo com o
pensador, tendo como exemplo a liberdade, a igualdade, a propriedade
privada, entre outros.
2. O positivismo é uma ideologia que ganhou relevo com o iluminismo,
embora já reconhecido desde a antiguidade. No Estado moderno, caracteriza-
se por reconhecer a validade das normas quando: a) emanadas de uma
autoridade estatal; b) criadas de acordo com o procedimento prévio indicado.
3. O século XX marca o período de ascensão da Constituição democrática.
A junção dos dois conceitos permitiu que o debate jurídico se estabelecesse
sobre as vertentes de “quem decide (fonte do poder), como se decide
(procedimento adequado) e o que pode e não pode ser decidido212. Em outras
palavras, o constitucionalismo deixa de teorizar apenas a limitação do poder
político para albergar direitos fundamentais e procedimentos de tomadas de
decisões coletivas.

183 NADER, Paulo. Introdução ao Estudo do Direito. 8 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1993. p. 150.
184 KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 263.
185 RADBRUCH, Gustav. Introdução à Ciência do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 37.
186 Não pretendemos aqui afirmar que tais doutrinas influenciaram de modo semelhante a todos os
países do Ocidente. Apresentamos neste tópico as noções mais tradicionais expostas pela doutrina,
que tem uma influência significativa da história da Europa e dos Estados Unidos.
187 SÓFOCLES. A Trilogia Tebana: 8 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 214.
188 FASSO, Guido. Historia de la Filosofia del Derecho. Madrid: Piramide, 1966, p. 79 (Volume 2, la
edad moderna).
189 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão, p. 801.
190 Os autores contratualistas mais conhecidos são Thomas Hobbes, John Locke, Jean-Jacques
Rousseau e Immanuel Kant. O pensamento de alguns desses pensadores foi trabalhado nos capítulos
anteriores deste livro.
191 FASSO, Guido In BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário
de Política, p. 658.
192 Fazemos referência ao livro V, capítulo VII de Ética a Nicômaco. In Aristóteles. Metafísica, Poética
e Ética a Nicômaco. São Paulo: Abril, 1984, p. 131. (Os Pensadores)
193 Para aprofundar esta discussão, recomendamos o livro O Positivismo Jurídico, do italiano Norberto
Bobbio.
194 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. 3 ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1997, p. 10 e
seguintes.
195 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito, p. 93.
196 BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico, p. 81-99.
197 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 7 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 217.
198 É importante lembrar que, até hoje, a doutrina conserva um papel de destaque no Direito alemão.
Os Tribunais não citam autores como forma de angariar autoridade aos seus argumentos (vide
RODRIGUEZ, José Rodrigo. Como Decidem as Cortes. São Paulo: FGV, 2013), mas de modo a
estabelecer uma coesão em todo o sistema jurídico. Uma crítica doutrinária massiva a
posicionamentos jurisprudenciais é algo que desqualifica as Cortes, incluindo o próprio Tribunal
Constitucional (o Bundesverfassungsgericht).
199 A obra de Ihering é dividida em duas fases. Na primeira o autor ainda se filiava a uma leitura
sistemática e formal do ordenamento. No segundo momento o autor introduz um olhar sociológico
no Direito.
200 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito, p. 69-70.
201 ABBOUD, Georges; CARNIO, Henrique Garbellini; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Introdução à
Teoria e à Filosofia do Direito, p.375-376.
202 LARENZ, Karl, Metodologia da Ciência do Direito, p. 165-166.
203 Para aprofundar esta questão, Cf.: CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e
Teoria da Constituição. 6 ed. Coimbra: Almedina, 2002.
204 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 92
205 Para aprofundar a pesquisa nessa temática, confira: FACHIN, Zulmar; SAMPAR, Rene. Oitocentos
Anos da Magna Carta de 1215 e a Luta pelo Estado de Direito. In FACHIN, Zulmar; LIMA, Jairo
Néia; PONA, Éverton Willian (Orgs.). Magna Carta: 800 anos de influência no constitucionalismo e
nos direitos fundamentais. Curitiba: Juruá, 2016, p.35-44.
206 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão, p. 792.
207 Também denominada de Rule of Law.
208 Esses ideais influenciaram sobremaneira os revolucionários franceses. Tal afirmação se confirma
pela leitura do artigo 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão: “a sociedade em que
não esteja assegurada a garantia dos direitos nem estabelecida a separação dos poderes não tem
Constituição”.
209 BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. 5 ed. São Paulo: Saraiva,
2016, p. 65.

210 FERRAJOLI, Luigi. A Democracia Através dos Direitos: o constitucionalismo garantista como
210 FERRAJOLI, Luigi. A Democracia Através dos Direitos: o constitucionalismo garantista como
modelo teórico e como projeto político. São Paulo: RT, 2015, p. 20.
211 BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 24.
212 Esta noção foi extraída de BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional
Contemporâneo, p. 65.
VIII
A Separação dos Poderes
1. A Limitação do Poder como Característica do Estado Moderno. 2. Formulações
Teóricas da Separação dos Poderes. 2.1 A Contribuição de Aristóteles; 2.2 A
Contribuição de John Locke; 2.3 A Contribuição de Montesquieu; 2.4 A
Contribuição dos Federalistas. Conclusões.

1. A Limitação do Poder Como Característica do Estado


Moderno
Platão213 conta no livro II de A República, uma de suas obras mais
conhecidas, o mito do anel de Giges. Essa personagem de Platão era um pastor
de ovelhas. Certa volta ocorreu uma grande tempestade e, próximo ao local
em que Giges estava, houve um tremor de terra que rasgou o solo e desvelou
um tesouro fantástico: um cavalo de bronze oco dentro do qual jazia um
esqueleto (maior que o de uma pessoa) com um anel em sua falange.
Apanhou-o e foi ter com os outros pastores. Ali, percebeu que o uso do anel
lhe conferia o poder da invisibilidade. Tal incomensurável poder, entretanto,
provocou-lhe um completo desvirtuamento moral: Giges arquitetou uma
forma de seduzir a esposa do soberano e, com o auxílio dela, matou-o para
assumir o poder.
O interesse do filósofo grego nesta passagem é discutir questões de justiça.
A pergunta que subjaz a esta história é uma provocação de Platão aos seus
opositores: é mais vantajoso ser justo ou aparentar ser justo? Pois se Giges
agisse com verdadeira justiça, não teria feito o que fez. É possível, todavia,
analisar o mito do anel de Giges apoiado em perspectiva distinta: a do poder.
Será verdadeira a máxima de que o poder necessariamente corrompe as
pessoas?
Em muitos momentos da história, mesmo na atualidade, e em várias partes
do mundo, o (mau uso do) poder tem sido um peso injustamente suportado
pela sociedade. Daí a necessidade imprescindível de se estabelecerem regras
para disciplinar sua distribuição e seu uso.
A tradição política que nos foi legada proclama que a concentração do
poder nas mãos de uma só pessoa ou de apenas um órgão se revelou quase
sempre contrária aos interesses da maioria. Em outras palavras, diz-se que o
poder tende a corromper, e o poder absoluto tende a corromper
absolutamente. O poder tornado absoluto, nessa linha de pensamento, ao
invés de servir aos governados, passa a se constituir em ameaça que pende
sobre seus direitos e liberdades.
Com efeito, torna-se imperioso que o poder seja disseminado e repouse
sobre a maior quantidade de pessoas, a fim de que seja exercido de modo
menos arbitrário possível. Assim, Georges Burdeau expõe que os homens
inventaram o Estado para não obedecer aos próprios homens. E, deste modo,
“ou o poder é ligado a uma função em que encontre ao mesmo tempo seu
título e seus fins, ou é uma propriedade de certos indivíduos e, por
conseguinte, o instrumento de suas vontades ou de suas fantasias”. O Estado
surge, portanto, como um instrumento de disciplina e controle do uso das
prerrogativas de governo, “a focinheira cujo objetivo é deixar inofensivo esse
bicho carnívoro, o homem”, nas palavras de Arthur Schopenhauer214.
Seguindo esta tendência antropológica negativa que tem como inevitável a
corrupção pelo detentor do poder, Karl Loewenstein215 observa que o poder
político precisa ser limitado e restringido para não se tornar ambivalente.
Segundo seu entendimento, foram raras as vezes, para não se dizer nunca, que
se exerceu um poder ilimitado com moderação e comedimento, pois “o poder
carrega consigo mesmo um estigma, e somente os santos entre os detentores
do poder – e onde se pode encontrá-los? – seriam capazes de resistir à
tentação de abusar do poder”. Na mesma linha, Manoel de Oliveira Franco
Sobrinho216 lembra que “há uma máxima pertinente à ciência política que
urge ser lembrada: um poder sem controle tende sempre a se tornar um poder
sem medida. Sejam quais forem as escolas, ou as tendências do pensamento
histórico, todo esforço se concentra na limitação das franquias humanas”.
Por conta disso, muitos foram os autores que pontuaram a respeito de
mecanismos capazes de estabelecer condições mínimas de exercício de um
poder menos despersonalizado. Após longo caminho trilhado, idealizou-se
uma forma de distribuição das funções do Estado que colocava em diferentes
mãos as suas principais tarefas, quais sejam a de elaborar a lei, a de exercer o
governo e a de decidir os casos litigiosos. Assim, buscou-se evitar a tirania,
resultado da concentração de competências. Com efeito, Paulo Bonavides217
arremata: o constitucionalismo democrático tem pela separação de poderes “a
mais justa e irresgatável dívida de gratidão”, em virtude de criar as condições
para que os direitos possam ser reconhecidos e garantidos.
Tal critério tem sido observado, desde a Revolução Francesa, pela maioria
dos Estados, atendendo ao princípio consagrado pela Declaração Universal
dos Direitos do Homem e do Cidadão que, em seu artigo 16, estabelece: “toda
sociedade na qual não se assegura a garantia dos direitos, nem se determina a
separação dos poderes, considera-se desprovida de Constituição”. Em nosso
ordenamento constitucional, a separação de poderes é resguardada sob o
pálio de cláusula pétrea (artigo 60, parágrafo 4º, inciso III), ou seja, de
impossível alteração enquanto viger a Constituição de 1988.
Todavia, até que se fixasse um modo equilibrado de exercer o poder
estatal, houve um longo caminho. É lugar-comum na doutrina afirmar-se que
Montesquieu foi o grande ideólogo desse sistema. O mestre da Revolução
Francesa e fonte de inspiração para a Constituição dos Estados Unidos,
analisando o quadro político da Inglaterra, teria sido o primeiro a arquitetar
um modo de funcionamento tripartite do poder. Entretanto, é necessário
reconhecer a contribuição dos estudos elaborados por outros autores que
procuraram estabelecer um critério para distribuir o poder e regrar seu
exercício. Quando se fala em separação de poderes do Estado, é preciso
lembrar desses grandes vultos do pensamento ocidental.
Nessa medida, apresentaremos a discussão da separação dos poderes,
apontando a evolução teórica do tema, a partir das obras de Aristóteles, John
Locke, Montesquieu e dos federalistas218.

2. Formulações Teóricas da Separação dos Poderes


2.1 A Contribuição de Aristóteles
Aristóteles (385-322 a.C.) nasceu em Estagira, cidade da Calcídica, em
território da Macedônia. Foi talvez o primeiro a cogitar a hipótese de
separação de poderes governamentais.
Em sua obra A Política, Aristóteles219 idealizou um sistema de modo a
harmonizar as funções essenciais do Estado. “Em todo governo, existem três
poderes essenciais, cada um dos quais o legislador prudente deve acomodar
da maneira mais conveniente. Quando estas três partes estão acomodadas,
necessariamente o governo vai bem, e é das diferenças entre estas partes que
provêm as suas.”
Em seguida, o pensador grego explicitou quais deveriam ser esses três
poderes essenciais: a) um poder que fosse capaz de deliberar sobre os
negócios do Estado; b) um poder que compreendesse todas as magistraturas
ou poderes constituídos; c) um poder que abrangesse os cargos de jurisdição.
O primeiro poder era o que se relacionava com os negócios do Estado. Por
isso, chamou-o de “poder deliberativo”, cujas funções consistiam em decidir
sobre a paz e a guerra, contrair alianças ou rompê-las, fazer as leis e suprimi-
las, decretar algumas penas existentes à época, como a pena de morte, de
banimento e de confisco. Era o Poder Legislativo, ao qual cabia ainda prestar
contas aos magistrados (governantes).
O segundo era o que compreendia todas as magistraturas ou poderes
constituídos. Era um poder do qual o Estado necessitava para agir de acordo
com as deliberações da Assembleia. A ele refere-se Aristóteles como “as
magistraturas governamentais”, o governo propriamente dito. Era o Poder
Executivo.
Ainda na concepção aristotélica, o terceiro desses poderes essenciais
abrangia os cargos da jurisdição. Falava Aristóteles220 na necessidade de
várias espécies de juízes e do modo como eles deveriam ser escolhidos para o
exercício da função. Tratava-se da função judicante, embrião do atual Poder
Judiciário.
Analisando a contribuição de Aristóteles, afirma Celso Ribeiro Bastos221
que o valor de sua descoberta é muito relativo, pois não exerceu influência
sobre a vida política durante mais de mil anos que se seguiram à sua vida.
Lembra ainda que, ao longo de todo o referido período, prevaleceu sem
contestação a vontade do monarca, que reunia em si mesmo as três funções
estatais, embora, por razões de ordem pública, elas pudessem vir a ser
delegadas a prepostos, segundo o seu arbítrio.
A observação é correta. Aristóteles viveu no século IV a. C. e, após tal
período, o absolutismo continuou intocável. O monarca enfeixava todo o
poder estatal em suas mãos e governava impondo a própria vontade, de modo
que o exercício do poder não era partilhado.
Mas também é verdade que foi com a descoberta de Aristóteles que, pela
primeira vez, no campo teórico, falou-se na necessidade de distribuir a tarefa
de exercer o poder político. Bem mais tarde, já no século XVII, o tema
voltaria a ser debatido por John Locke.

2.2 A Contribuição de John Locke


John Locke (1632-1704) nasceu em Wrington, na Inglaterra. Com os olhos
voltados para a Inglaterra parlamentarista, teorizou uma forma de evitar que
todo o poder estatal repousasse nas mesmas mãos. Falava em poderes
Legislativo, Executivo e Federativo, mas advertia que a denominação lhe era
indiferente.
Cumpre observar que, embora tenha concebido a existência de vários
poderes estatais como forma de evitar o absolutismo, Locke222 sustentava a
supremacia do Poder Legislativo: não podia “haver mais de um poder
supremo, que é o Legislativo, ao qual todos os demais são e devem ser
subordinados”.
Tal perspectiva se justifica na medida em que Locke223 enaltecia o
fundamento do Estado na rule of law, ou seja, a legislação como guia estatal.
Em suas palavras: “seja qual for a forma de governo sob a qual se acha a
comunidade, o poder que tem o mando deve governar mediante leis
declaradas”. Sendo a lei seu estandarte, o Legislativo era o verdadeiro poder
da sociedade política e, portanto, deveria desfrutar de supremacia em relação
aos demais. “Em todos os casos, enquanto subsistir o governo, o Legislativo é
o poder supremo (...) e todos os demais poderes depositados em quaisquer
membros ou partes da sociedade devem derivar dele ou ser-lhe
subordinados”.
Dessa supremacia resulta que o Poder Legislativo pode dispor de tarefas
pertencentes aos demais poderes. Assim, quando o Legislativo, após elaborar
a lei, confia sua execução a outras mãos, não transfere – ao contrário mantém
– o poder de retirá-lo dessas mãos se encontrar motivo para fazê-lo. O mesmo
se diga em relação ao poder federativo: ambos os poderes – Executivo e
Federativo – são ministeriais e subordinados ao Poder Legislativo224.
É nítido que John Locke não concebeu os poderes convivendo de modo
independente e harmônico. Ao contrário, o que os sustentava era a
supremacia do Poder Legislativo sobre os demais, na figura do Parlamento225.
O mérito do estudo de John Locke é reconhecido por inúmeros
doutrinadores, como é o caso do jurista alemão Karl Loewenstein226. Esse
constitucionalista, sem desmerecer a Montesquieu, observa que,
interpretando retrospectivamente o resultado da Revolução Gloriosa, Locke a
projetara como conjunto de regras válidas para o futuro. Realizando
gigantesca operação, fracionou o todopoderoso Leviatã hobbesiano do poder
estatal em diferentes segmentos de funções, quebrando, assim, de uma vez
por todas, seu poder.
Nota-se que, havendo supremacia de um sobre os demais poderes, não se
poderia falar em independência e harmonia. Tal aspecto veio a ser melhor
desenvolvido com Montesquieu, que idealizou o sistema de freios e
contrapesos, em que um poder serve de limite a outro, não sendo possível
falar-se em superposição de um em relação aos demais.

2.3 A Contribuição de Montesquieu


Montesquieu (1689-1755), um dos grandes nomes que antecederam a
Revolução Francesa de 1789, preocupou-se fundamentalmente com a
liberdade. Tratava da liberdade do indivíduo em face do arbítrio do poder do
governante. Mas a liberdade a que se referia era aquela assegurada pela lei. Ser
livre era, portanto, agir nos limites legais.
A preocupação com a liberdade foi manifestada por Montesquieu em
diversos momentos de sua obra mais conhecida, O Espírito das Leis. Em uma
dessas passagens, deixa claro o que entende por liberdade e como devem os
cidadãos se comportar diante dela, para usufruí-la e preservá-la.
Assim, segundo Montesquieu227: “é verdade que nas democracias o povo
parece fazer o que quer; mas a liberdade política não consiste em se fazer o
que se quer. Em um Estado, isto é, numa sociedade onde existem leis, a
liberdade só pode consistir em poder fazer o que se deve querer e em não ser
forçado a fazer o que não se tem o direito de querer. Deve-se ter em mente o
que é a independência e o que é a liberdade. A liberdade é o direito de fazer
tudo o que as leis permitem; e se um cidadão pudesse fazer o que elas
proíbem, ele já não teria liberdade, porque os outros também teriam este
poder”.
Para garantir certo grau de liberdade à sociedade, tornava-se imperioso
regular o poder do Estado. Foi, então, que Montesquieu concebeu a
distribuição dos poderes. Antes de qualquer fracionamento administrativo
em funções, o essencial da teoria exposta é expresso em apenas uma frase:
“para que não se possa abusar do poder é preciso que, pela disposição das
coisas, o poder freie o poder”. A inovação desse raciocínio está no fato de
extrair o elemento de violência como limitador do poder do governante. A
restrição ao poder pelo domínio tem como resultado a impotência. Para gerar
mais poder, na visão de Montesquieu, o poder deve ser detido somente pelo
próprio poder.
Logo, o autor consignava que a arquitetura estatal precisava ser disposta de
modo que as funções simultaneamente se limitassem, o que seria essencial
para a sua sobrevivência. A partir dessa noção fundamental é que ele concebe
o fracionamento das funções estatais. Nos precisos termos do autor228:
“existem em cada Estado três tipos de poder: o Poder Legislativo, o Poder
Executivo das coisas que dependem do direito das gentes e o Poder Executivo
daqueles que dependem do direito civil”.
Mais adiante, Montesquieu229especificou qual deveria ser a função de cada
um deles: “com o primeiro, o príncipe ou o magistrado cria leis por um
tempo ou para sempre e corrige ou anula aquelas que foram feitas. Com o
segundo, ele faz a paz ou a guerra, envia ou recebe embaixadas, instaura a
segurança, previne invasões. Com o terceiro, ele castiga os crimes, ou julga as
querelas entre os particulares. Chamaremos a este último poder de julgar e ao
outro simplesmente Poder Executivo do Estado”.
Sem ignorar as lições de Aristóteles e Locke, o pensador francês advertiu
para o risco de na mesma pessoa concentrar-se todo o poder estatal. Isso
levaria inevitavelmente ao arbítrio e precisava ser evitado. Eis a preocupação
de Montesquieu230: “quando, na mesma pessoa ou no mesmo corpo de
magistratura, o Poder Legislativo está reunido ao Poder Executivo, não existe
liberdade; porque se pode temer que o mesmo monarca ou o mesmo Senado
crie leis tirânicas para executá-las tiranicamente. Tampouco existe liberdade
se o poder de julgar não for separado do Poder Legislativo e do Executivo. Se
estivesse unido ao Poder Legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos
cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria legislador. Se estivesse unido ao
Poder Executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor”.
E concluiu o autor de O Espírito das Leis: “Tudo estaria perdido se o
mesmo homem, ou o mesmo corpo dos principais, ou dos nobres, ou do povo
exercesse os três poderes: o de fazer as leis, o de executar as resoluções
públicas e o de julgar os crimes ou as querelas entre os particulares”.
Certamente essa é uma das passagens mais lembradas da obra desse notável
pensador político, tendo influenciado diretamente as decisões que
conduziram à distribuição das funções do Estado que dispomos na
atualidade.
Não obstante, duas advertências são necessárias. A primeira é que
Montesquieu não falou em divisão de poderes, o que pode ser constatado em
suas palavras. Aliás, tal conceito não ocorre em nenhum momento de sua
obra. Infere-se, então, que ele não pretendeu dividir os poderes do Estado. E a
razão é singela: o poder estatal é indivisível. Não há como dividi-lo. A
segunda advertência é que esse pensador não pretendeu que os três poderes
tivessem a mesma força. No que tange ao Poder Judiciário, é conhecida a
concepção montesquiana: é um poder nulo, que deve se limitar a reproduzir
nos casos concretos a norma expressa pelo legislador. Por isso, reduzia o
Poder Judiciário a um único instrumento: a boca que pronuncia a norma
estabelecida pelo legislador231. Daí nasceu a alcunha “juiz boca da lei”, que
resigna a função judicial a uma atividade autômata.
Nota-se que Montesquieu não foi o primeiro a falar sobre a necessidade de
distribuição das funções do Estado. Como vimos, antes dele, Aristóteles e
John Locke, cada qual a seu modo e em seu tempo, procuraram demonstrar
que o poder estatal não podia repousar nas mãos de uma só pessoa ou de um
órgão apenas. O que Montesquieu fez foi arquitetar uma fórmula mais
aperfeiçoada. Poder-se-ia afirmar que Aristóteles e John Locke teorizaram a
separação de poderes, e Montesquieu a sistematizou.
Destarte, Aristóteles, Locke e Montesquieu contribuíram para que os
limites ao exercício do poder estatal fossem demarcados. Embora não sejam
traçados com rigidez, tais limites garantem a existência e o funcionamento de
todas as funções do Estado.

2.4 A Contribuição dos Federalistas


Consolidada a Independência das Treze Colônias, os congressistas norte-
americanos se concentraram na elaboração da lei geral pelo qual seriam
regidos. No princípio, as Treze Colônias se uniram mediante uma
Confederação. O primeiro documento constitucional dos Estados Unidos foi
o Articles of Confederation, de 1777. Entretanto, a organização política criada
era fraca, uma vez que o governo central quase não possuía competências. Em
busca de uma nova dinâmica institucional entre as colônias, foi convocada
uma Convenção Constituinte, cujos trabalhos ocorreram na Filadélfia. Desta
Convenção, surgiu o texto da Constituição dos Estados Unidos, de 1787.
A forma do Estado seria baseada no federalismo, conferindo
independência aos Estados signatários e ainda estabelecendo um governo
central fortalecido, sistema que destoava de todos os outros existentes.
Benjamin Fletcher Wright232, comentando o texto de O Federalista, expõe
que “o ponto de maior distinção entre o novo sistema [federalista] para os
Estados Unidos e o existente na Grécia, na Itália medieval, na Suíça, na
Alemanha ou na Holanda, é que, antes de 1787, o governo central nas
federações ou, mais propriamente, confederações, não passava de um agente
dos Estados. Em nenhum caso ele teve uma existência própria independente,
nem o poder para regulamentar os negócios dos cidadãos, criar e arrecadar
impostos dos indivíduos. Não há exemplo de existência de um sistema
independente de cortes de justiça ou uma assembleia legislativa eleita pelo
povo de toda a confederação”.
Ademais, o presidencialismo foi escolhido como o sistema de governo, em
combate ao poder hegemônico atribuído ao Legislativo nas monarquias
europeias. A respeito do federalismo e presidencialismo, assevera Paul
Carrese233 que “a análise da separação de poderes nos capítulos 47 a 51
silenciosamente remete a concepção mais positiva do princípio da separação
dos poderes nos ensaios dos poderes do Senado [Legislativo], Executivo e
Judiciário, amplamente teorizados por Hamilton. A concepção positiva se
refere ao princípio em que os poderes atuarão de forma mais ordenada em
suas funções se separados. Este constitucionalismo complexo também inclui a
concepção negativa de separação normalmente denominada freios e
contrapesos”.
Em consequência, o federalismo como critério de distribuição territorial
do poder e o presidencialismo forjaram um modelo peculiar, que remodelou
a separação dos poderes praticada na Europa com preponderância do Poder
Legislativo sobre o Executivo. Nessa medida, os Founding Fathers dos Estados
Unidos deixam claro que Montesquieu foi sua maior influência teórica. Eles
reconhecem enfaticamente que “a acumulação dos poderes Legislativo,
Executivo e Judiciário nas mãos de um só indivíduo, onde uma só
corporação, seja por efeito de conquista ou de eleição, constitui
necessariamente a tirania”234. Entretanto, as funções do Estado não devem ser
separadas absolutamente, sob pena de restarem engessadas. Esta
compreensão deu azo ao sistema de freios e contrapesos235, na medida em
que os contrapesos limitam os excessos governamentais em sentido
equivalente ao da limitação recíproca que a tripartição francesa oferece.
Outra característica do sistema estatuído nos Estados Unidos é a do
controle judicial de constitucionalidade. Em tal caso, o julgamento do caso
Marbury v. Madison pela Suprema Corte norte-americana tradicionalmente
se afigura como o primeiro precedente na história. A esse respeito, insta
salientar as lições de Luís Roberto Barroso236 nas quais elucida ser possível
identificar resquícios do controle de constitucionalidade desde a Antiguidade
clássica ateniense, inclusive sendo citada por Alexander Hamilton, no
capitulo 78 de O Federalista.
Independentemente dos marcos temporais, importa mencionar que a
decisão proferida pelo Juiz Marshall, no ano de 1803, inaugurou o Judicial
Review, ou seja, atribuiu ao Poder Judiciário a função de salvaguardar a
Constituição e ainda vincular a ela a legislação infraconstitucional,
enunciando os três fundamentos superiores do controle judicial de
constitucionalidade: a) a supremacia constitucional; b) a subordinação das
funções estatais à Constituição; c) a atribuição de competência ao Judiciário
no que se refere à exegese e à hermenêutica constitucionais.
Ainda que recaiam dúvidas a respeito da origem dos sistemas aludidos, a
combinação de tais premissas com base no complexo sistema constitucional
norte-americano delineou e se manifestou como epicentro de um grande
movimento na teoria da separação dos poderes237.

Conclusões
1. A contenção do poder político é uma ideologia que existe desde os
gregos. No Estado moderno, foi um dos principais postulados liberais na luta
contra a monarquia absoluta, manifestando-se não apenas como contenção,
mas como separação dos poderes institucionais do Estado. Muitas foram as
contribuições a essa ideia ao longo dos séculos.
2. Aristóteles, ainda nos idos do século IV a.C., já discorria sobre a
necessidade de se fragmentar os poderes políticos da polis. Para o polímata,
três funções seriam essenciais: a deliberativa, as magistraturas
governamentais e a judicante.
3. John Locke, pensador do século XVII, pensava a distribuição do poder
segundo as estruturas do Estado moderno. Falava em poder Legislativo,
Executivo e Federativo, embora seu foco investigativo estivesse na
necessidade de se fracionar tais funções, sendo indiferente a sua divisão.
Tendo em vista a sua formação inglesa, o Legislativo seria o poder estatal mais
importante, estando os demais poderes sempre subordinados ao Parlamento.
4. O período no qual Montesquieu viveu foi de intensidade ímpar. O
Estado francês se aproximava da falência econômica em uma estrutura social
e política que ainda tinha seus alicerces fixos no medievo. A preocupação
desse pensador é com a garantia da liberdade. Para tanto, teorizou ser
necessária uma precisa divisão tripartite do poder estatal, a fim de evitar o
arbítrio em sua utilização. Montesquieu é o arauto da tripartição do poder em
Legislativo, Executivo e Judiciário, presente ainda hoje no Estado.
5. No sistema dos Estados Unidos, amplamente discutido pelos
denominados pais fundadores, a tripartição de poderes conferiu maior
prerrogativa ao Judiciário, que não detinha espaço na visão dos demais
pensadores citados. Somado ao sistema presidencialista e federal, forjou-se a
arquitetura que influencia o Brasil desde a Proclamação da República, em
1889.

213 PLATÃO. A República. 13 ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2012, p. 54-57.


214 SCHOPENHAUER apud BURDEAU, Georges. O Estado. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 23-
24.
215 LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la Constitución, p. 28.
216 SOBRINHO, Manoel de Oliveira Franco. O Princípio Constitucional da Moralidade Administrativa.
Curitiba: Gênesis, 1993, p. 27.
217 BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 8 ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 64.
218 Os federalistas ou Founding Fathers (Pais Fundadores) são os congressistas que contribuíram para
materializar o que hoje é o sistema político e jurídico enunciado pela Constituição dos Estados
Unidos de 1787. Dentre eles se destacam George Washington, Alexander Hamilton, Thomas
Jefferson, James Madison e John Jay. Suas análises deram azo ao livro O Federalista (Federalist Papers
é o título original em inglês).
219 ARISTÓTELES. A Política, p. 127.
220 ARISTÓTELES, A Política, 127-143.
221 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 21 ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 342.
222 LOCKE, John. Dois Tratados Sobre o Governo, p. 519.
223 LOCKE, John. Dois Tratados Sobre o Governo, p. 94.
224 Cf.: LOCKE, John. Dois Tratados Sobre o Governo, p. 521-522.
225 Conforme Locke: “o Poder Executivo, quando não estiver depositado numa pessoa que também
participe do Legislativo, estará visivelmente subordinado a este e a ele responde, podendo ser trocado
e deslocado à vontade”. In LOCKE, John. Dois Tratados Sobre o Governo, p. 521.
226 LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la Constitución, p. 60-61. Segundo o autor: “El onor corresponde
John Locke: interpretando retrospectivamente el resultado da la Glorious Revolution, lo proyectó como
conjunto de reglas válidas para el futuro; en una operación gigantesca, seccionó el todopoderoso
Leviatán del poder estatal en diferentes funcionales, quebrando así de una vez para siempre su poder.
Un mérito no menos importante corresponde a Montesquieu, que añadió a la separación técnica de las
funciones estatales y a su atribución a diferentes detentadores del poder, el valor ideológico que
corresponde a esta teoría como salvaguardia de la libertad de los súbditos”.
227 MONTESQUIEU. O Espírito das Leis, p. 166.
228 MONTESQUIEU. O Espírito das Leis, p. 166-167.
229 MONTESQUIEU. O Espírito das Leis, p. 167-168.
230 MONTESQUIEU. O Espírito das Leis, p. 168.
231 MONTESQUIEU. O Espírito das Leis, p. 175. Proclama o autor: “Mas os juízes da nação são apenas,
como já dissemos, a boca que pronuncia as palavras da lei; são seres inanimados que não podem
moderar nem sua força, nem seu rigor”.
232 WRIGHT, Benjamin Fletcher In HAMILTON, Alexander; MADISON, James; JAY, John. O
Federalista. Brasília: UNB, 1984, p. 49.
233 CARRESE, Paul O. The cloaking of Power: Montesquieu, Blackstone, and the rise of judicial
activism. Chicago: The University of Chicago Press, 2003, p. 201.
234 HAMILTON, Alexander; MADISON, James; JAY, John. O Federalista. São Paulo: Abril Cultural,
1973, p. 130 (Os Pensadores).
235 Importante ressalvar que o sistema de freios e contrapesos não é criação exclusiva do direito norte-
americano, conforme salienta Maurílio Maldonado: “John H. Garvey e T. Alexander Aleintkoff
ensinam que o balance (contrapesos, equilíbrio) surge na Inglaterra, a partir da ação da Câmara dos
Lordes (nobreza e clero) equilibrando (balanceando) os projetos de leis oriundos da Câmara dos
Comuns (originados do povo), a fim de evitar que leis demagogas, ou formuladas pelo impulso
momentâneo de pressões populares, fossem aprovadas. O check[...], surgiu quando o Justice Marshal
declarou sua opinion, lançada no famoso caso Marbury x Madison, em 1803, que o Poder Judiciário
tinha a missão constitucional de declarar a inconstitucionalidade – e, portanto tornar nulos – dos
atos do Congresso, quando, a seu exclusivo juízo, tais leis não guardassem harmonia com a Carta
Política”. MALDONADO, Maurílio. Separação dos poderes e sistema de freios e contrapesos:
desenvolvimento no Estado brasileiro. Disponível em:
<https://www.al.sp.gov.br/StaticFile/ilp/separacao_de_poderes.pdf>. Acesso em 17/04/2021.
236 BARROSO, Luís Roberto. O Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro. 3 ed. rev. e atual.
São Paulo: Saraiva, 2008, p. 5-6.
237 CARRESE, Paul. The Cloaking of Power, p. 197.
IX
Democracia
1. Origem e Conceitos. 2. Democracia dos Antigos e dos Modernos. 3. Democracia
Direta, Semidireta e Representativa. 4. Partidos Políticos; 5. Sufrágio. 6. Vantagens
da democracia e Suas Promessas Não Cumpridas. Conclusões.

A democracia se tornou o grande acontecimento político do século XX no


mundo ocidental. Concebido originalmente na Grécia clássica como um
instrumento de decisões coletivas, a esse regime político foi agregada
conotação protetiva de direitos, principal tema da agenda dos países nas
últimas décadas. Pontue-se, todavia, que a democracia em nossos tempos,
para além do mesmo vocábulo, não guarda semelhanças com o que ocorria
em Atenas.
Ao longo do século XX, Jacques Chevalier238 identifica a existência de dois
momentos distintos no que se refere ao desenvolvimento democrático: a)
impulso à democratização, ocorrido do século XIX até 1945, no qual se
verifica a extensão da cidadania com a generalização do sufrágio. Ao mesmo
tempo, a elegibilidade se tornou mais popular em virtude dos partidos
políticos de massa; b) impulso do liberalismo, ocorrido a partir de 1980,
valorizando-se a salvaguarda de direitos fundamentais, a adesão dos valores
de igualdade e liberdade e a aceitação do pluralismo de valores.
Por sua vez, Samuel Hungtington239 estabelece uma análise histórica dos
avanços e retrocessos do regime democrático ao longo dos últimos dois
séculos, fragmentando o período em três “ondas de democratização”. A
primeira onda de democratização compreende os anos de 1828 a 1926. No
século XIX, dois eram os critérios que definiam as instituições democráticas
mínimas: ser metade da população masculina votante e a existência de
eleições populares periódicas para os cargos eletivos. Huntington estima que
até 1926, trinta países preenchiam tais fatores. Entretanto, de 1922 a 1942,
verificou-se uma onda reversa, na qual algumas democracias consideradas
frágeis sofreram um intenso processo de erosão e foram depostas por
governos absolutistas. Foi o caso de Alemanha, Argentina, Áustria, Brasil
(Estado Novo), Grécia, Espanha, Itália, Lituânia, Letônia, Polônia, Portugal e
Tchecoslováquia.
Entre os anos de 1943 a 1962, verificou-se a segunda onda de
democratização. Fomentada pelo fim da Segunda Guerra, surgiram
instituições democráticas em diversos países como Alemanha Ocidental,
Áustria, Argentina, Colômbia, Coréia, Costa Rica, Grécia, Itália, Peru,
Turquia e Venezuela. Novamente, entretanto, observou-se a segunda onda
democrática reversa (décadas de 1960 e 1970), tendo acertado em cheio a
América Latina e a África, além de países da Ásia (Filipinas e Indonésia) e da
Europa (como a Grécia). Por fim, Huntington reconhece a terceira onda de
democratização, com início em 1974. Cite-se o especial caso da América
Latina, cujas ditaduras militares foram substituídas por governos
democráticos até meados dos anos 2000, embora alguns países não possuam
uma esfera pública absolutamente democrática, como é o caso da Venezuela.
Não obstante o impulso democrático ocorrido no Ocidente, os países, em
especial os de desenvolvimento tardio, precisam lidar com contextos que se
opõem ao que se entende por parâmetro democrático fundamental, como
garantia de liberdades e controle de grupos de influência que possam
contrariar a ordem legal e jurídica válida no Estado de Direito.
Logo, a noção de democracia, aliada ao conceito de Estado atuante na
sociedade, demanda a diferenciação entre regimes políticos e instituições
políticas. A democracia lato sensu é um regime político. Os regimes políticos
denotam o conjunto de instituições por meio das quais o Estado se organiza
para exercer poder sobre a sociedade. Eles constituem a estrutura
fundamental da formação da sociedade, que é anterior às formas de Estado
(unitário, federal) e ao sistema de governo (parlamentar ou presidencial). Em
outras palavras, é provável que um regime político (democrático, por
exemplo) sobreviva mesmo com alterações na forma de Estado e no sistema
de governo. Embora se amolde com precisão ao regime republicano, a
democracia pode existir em uma monarquia constitucional, mas não
sobrevive em monarquias absolutas.
Por sua vez, o Estado democrático atua na sociedade por meio de
instituições políticas. Dito de outro modo, as instituições políticas são
organismos do Estado a serviço da mediação de conflitos. A sociedade é
pautada por conflitos e disputas na medida em que cada pessoa tem um
interesse próprio e deseja que ele seja levado em conta nas decisões. As
instituições buscam coordenar politicamente essa miríade de interesses. Sua
atividade, então, sempre está ancorada na tensão entre diferentes pontos de
vista. A ideia de democracia substancial (regime político), ou seja de um
poder público mais atuante, perfaz-se a partir da atuação positiva do Estado
por meio de suas instituições políticas.
Nessa perspectiva, o foco deste capítulo é estabelecer a noção mínima de
democracia, ressaltando as limitações teóricas em conceituá-la de modo
preciso. Buscar-se-á também distinguir as formas de manifestação da
democracia (direta, semidireta e representativa). Conferindo especial atenção
ao sistema representativo, modelo adotado no Brasil, serão abordadas as
questões atinentes ao sufrágio e aos partidos políticos, os quais adquirem
destaque por serem instrumentos essenciais ao sistema representativo. Por
fim, trataremos das vantagens da democracia em relação a outros regimes e às
promessas enunciadas por seus arautos que ainda não foram cumpridas, o
que constitui o maior desafio aos países neste século.
Por honestidade intelectual com o leitor, os autores esclarecem que o
conteúdo deste capítulo é constituído segundo três premissas elementares: A
primeira é que a democracia é o melhor regime a ser adotado pelo Brasil,
quiçá por todos os países. Em outras palavras, é o instrumento que melhor
congrega a tomada de decisões coletivas e, ao mesmo tempo, de salvaguarda
de direitos fundamentais.
Sendo a democracia o regime que mais se adapta aos préstimos do
constitucionalismo democrático, sua execução depende da representação
política (segunda premissa)240. Embora se pondere acerca da democracia
direta ou até mesmo dos instrumentos de democracia direta no bojo da
Constituição (os do artigo 14, incisos I, II e III, que tratam do plebiscito, do
referendo e da iniciativa popular), a representação é o meio factível para a
escolha dos agentes políticos.
A terceira premissa é a de que a democracia não é apenas um meio pelo
qual se toma decisões em nível coletivo. Mais do que isso, aliada ao
constitucionalismo, o regime democrático é aquele que dá guarida aos
direitos fundamentais.

1. Origem e Conceitos
O regime democrático tem local e data de nascimento: a Grécia no período
clássico do helenismo, entre os séculos VI e IV a.C. Ao menos, nossa tradição
de pensamento político convencionou que ali surgira a democracia como um
regime político, mais por força da prática do que por desenvolvimento
teórico. Sua etimologia (demos kratos) designa o poder do povo em oposição
ao poder de poucos ou de apenas um indivíduo. Ainda ecoa de modo audível
a divisão que Aristóteles241 nos legou, há mais de dois milênios, acerca dos
regimes políticos: governo monárquico, aristocrático e republicano (e suas
respectivas formas degeneradas: a tirania, a oligarquia e a democracia).
Embora faça parte da linguagem política cotidiana, não é tarefa simples
estabelecer o que é a democracia. Simone Goyard-Fabre242 lembra as
dificuldades inerentes à compreensão do tema, em especial pelo fato de,
etimologicamente, tal vocábulo “não pertencer a nenhum registro unitário e
homogêneo, pois oscila entre o registro constitucional da política e o registro
psicossocial das mentalidades, fazendo pesar sobre os dilemas dilacerantes
que impedem responder de modo uniforme à pergunta o que é a
democracia?”. É a mesma dificuldade encontrada quando se procura
conceituar outros termos que se tornaram plurissignificativos, como política,
liberdade e justiça.
A despeito de sua polissemia, Simone Goyard-Fabre identifica duas noções
comuns às concepções democráticas: a) A democracia garante a participação
dos governados no exercício do poder, independente do número e do modo
de seu engajamento, uma vez que se funda na autoridade popular. Logo, ela se
confunde e se desenvolve pari passu ao regime republicano.
b) A democracia leva para a ordem política o “caráter conflituoso das
paixões humanas”, suscitando a esperança por direitos e o descrédito
ante a desrazão das paixões.
Não há nessa perspectiva, portanto, uma resposta precisa que identifique
um conceito categórico. É certo, no entanto, como já afirmado, que a
democracia é o fenômeno político mais importante do século XX. Sua
influência tem se espraiado para quase todos os cantos do planeta. Na
atualidade, ela atinge lugares que sempre tiveram uma história muito
contígua a regimes absolutistas e fundamentalistas, como o norte da África e
o Oriente Médio.
Aliada ao conceito de Constituição como norma fundamental do Estado e
ainda alicerçada sob a noção do governo para o povo, a democracia adquire
duas noções muito basilares: a) a de um método para a tomada de decisões
coletivas; b) e de salvaguarda de direitos fundamentais. Luigi Ferrajoli243 nos
lembra que a primeira se pauta em uma matriz procedimental-formalista que
se aproxima de uma visão liberal de Estado não interventor, enquanto a
segunda adquire status substancial-constitucionalista ao repensar o conceito
de soberania.
É preciso pontuar, entretanto, que a construção de uma Constituição
democrática é uma tarefa árdua e conflitiva. José Afonso da Silva244, que
vivenciou a Assembleia Nacional Constituinte responsável pela elaboração da
Carta de 1988, pondera que a tensão é constante, sempre há riscos de
retrocessos e raramente se elabora o texto final sem alguma transação política.
Não obstante, é legítima a Constituição que expressa a soberania popular,
mas somente será democrática na hipótese de instrumentalizar
transformações em busca de justiça social.
E arremata o célebre jurista: “a democracia é processo de luta, de
conquistas. Pressupõe luta incessante pela justiça social. Não pressupõe que
todos sejam instruídos, cultos, educados, perfeitos, mas há de ser um processo
que busque distribuir a todos instrução, cultura, educação, aperfeiçoamento,
vida digna”.

2. Democracia dos Antigos e dos Modernos


Sob uma vertente histórica, Benjamin Constant estabeleceu uma dicotomia
na análise da democracia que se tornou muito conhecida. Em sua conferência
Da liberdade dos antigos comparada à dos modernos, este pensador liberal
traça um paralelo entre a política realizada na Grécia e a democracia do
Estado moderno, com o propósito de justificar o liberalismo e a representação
em nível político. Em outras palavras, haveria um hiato existente entre a
interpretação da liberdade nestes dois períodos históricos. Constant não
olvida em consagrar a esfera privada como locus da liberdade entre os
modernos, ao exclamar que “a liberdade individual é a verdadeira liberdade
moderna” 245; em outro momento, desta vez na obra Escritos de Política, ele
vai ainda além e enuncia que “essa liberdade (individual), de fato, é o objetivo
de toda associação humana”246.
No caso dos antigos, o autor aponta três razões pelas quais os gregos
participavam diretamente da política e assim definiam a democracia: a) a
constância das guerras; b) o tamanho diminuto das cidades-Estado se
comparado ao Estado moderno, o que permitia ao cidadão ter maior
influência nas decisões; c) em razão de a escravidão da época possibilitar a
liberação dos cidadãos do trabalho.
Essas noções da democracia grega, segundo Constant, não se coadunavam
mais à realidade europeia do século XVIII, pois os Estados eram maiores, a
escravidão estava abolida e o sistema representativo retirou o peso da
necessidade da participação cívica. Além disso, os modernos foram capazes
de desenvolver o comércio que inspira os homens a um “forte amor pela
independência individual”, além de terem criado o sistema representativo,
propiciador de “liberdade e tranquilidade”247.
Com base nesse arquétipo político, Constant248 conclui: “que o poder se
resigne, pois, a isso; precisamos da liberdade e a teremos; mas, como a
liberdade que precisamos é diferente da dos antigos, essa liberdade necessita
uma organização diferente da que poderia convir à liberdade antiga. Nesta,
quanto mais tempo e forças o homem consagrava ao exercício de seus direitos
políticos, mais ele se considerava livre; na espécie de liberdade a qual somos
suscetíveis, quanto mais o exercício de nossos direitos políticos nos deixar
tempo para nossos interesses privados, mais a liberdade nos será preciosa”.
Logo, para Constant, embora a análise da democracia direta ateniense sirva
de parâmetro histórico, tal modelo não se coaduna aos grandes Estados
nacionais, que dispõem de maior complexidade institucional.

3. Democracia Direta, Semidireta e Representativa


Essa passagem de Benjamin Constant demonstra que é possível notar
diferenças substanciais entre o modus operandi democrático dos gregos e no
Estado moderno. E, em nosso tempo, como se opera/instrumentaliza a
democracia no interior dos países? Podemos identificar três modalidades do
acontecimento democrático: pelas vias direta, semidireta e indireta.
Na democracia direta não há mediação durante o processo de tomada de
decisões coletivas: todos os cidadãos capazes participam, não havendo
delegação de poder a representantes. Quando se fala em democracia direta, a
história nos conduz de modo imediato a pensar no período da Grécia clássica,
no qual os poucos considerados cidadãos (chefes de família) participavam da
política da polis na ágora. Por sua vez, na modernidade, que é o período de
formação do Estado nacional, Jean-Jacques Rousseau é o pensador lembrado
como o arauto da democracia direta no Estado moderno.
Rousseau falava na vontade geral como o meio para a tomada de decisões
coletivas. Seguindo a dinâmica do contrato social, o Estado surgiria pela
alienação de todos os direitos para a construção de uma ordem política e
jurídica fundadas na absoluta isonomia. Afirma Rousseau249 que “cada um
dando-se a todos, não se dá a ninguém”. Subjaz a esta afirmativa o caráter de
igualdade presente na arquitetura política de sua sociedade.
Por esse princípio, para o autor, não bastaria a vontade de todos, em que o
Estado busca o bem comum: é preciso uma vontade geral, uma espécie de
razão deliberativa forjada pela soma de todas as vontades particulares. Assim,
todos participariam da formação das leis abstratas, ficando a cargo do
governo o poder regulamentar. Somente por esse artifício as escolhas seriam
isonômicas, pois contemplariam o querer de todos e de cada um250.
Em nossa atualidade, segundo essa perspectiva, a Suíça seria apontada
como o principal país que se organiza mediante a forma democrática direta.
Esta afirmativa, no entanto, é suscetível de críticas. Basta observar que, se ela
fosse verdadeira, não deveriam ocorrer eleições parlamentares. O que se
sucede na Suíça é a existência de um sistema semidireto, em que a população é
chamada com assiduidade (em média quatro vezes por ano) para confirmar
as alterações na legislação ou propor novas leis (por meio do referendo e da
iniciativa popular).
Na democracia semidireta, observa-se algum instrumento que permite aos
cidadãos proporem ou referendarem uma legislação, como o referendum, no
caso dos Estados Unidos. No Brasil, o artigo 14 da Constituição de 1988 prevê
três instrumentos de “democracia direta”: o plebiscito, o referendo e a
iniciativa popular251. Com exceção da iniciativa popular, o plebiscito e o
referendo partem do próprio governo, distinguindo-se por serem consultas
anteriores à criação da norma (referendo) e posterior (plebiscito), isto é,
quando a norma já está criada e a população precisa ratificá-la. A iniciativa
popular é um modo de que dispõe a população para provocar a elaboração de
um projeto de lei ordinária ou complementar.
Na democracia indireta ou representativa, o poder pertence ao povo que o
exerce por meio de representantes eleitos. Não se exige, portanto, a sua
participação direta em todas as decisões coletivas. Neste sentido, a
Constituição brasileira de 1988 prevê, ao lado da participação direta, que o
poder será exercido por meio de representantes (artigo 1º, parágrafo único),
eleitos nos termos estabelecidos por ela. É preciso pontuar que ínsito a esse
sistema está o poder de controle sobre os mandatários do povo, uma vez que
eles não são possuidores de seus cargos, na forma do brocardo latino quod
omnes tangit ab omnibus probari debet (em uma tradução livre, aquele que a
todos toca deve por todos ser aprovado).
Oportuno ainda registrar três afirmativas. Em primeiro lugar, que a
democracia indireta, ou representativa, foi a tese vitoriosa pelos norte-
americanos, quando transformaram as Treze Colônias nos Estados Unidos da
América. Além disso, com respaldo em Norberto Bobbio252, há duas
características essenciais a tal modelo: o alargamento do direito de voto até o
sufrágio universal e as associações políticas que deram azo à formação dos
partidos. Por fim, a democracia indireta pode conviver com a democracia
semidireta, como ocorre no Brasil e em inúmeros países, no qual há a
combinação de representantes eleitos e instrumentos de “democracia direta”.

4. Partidos Políticos
Os partidos políticos são o ponto de apoio das democracias representativas
na atualidade. Historicamente, a afirmação do partido político foi condição
sine qua non para a democratização do poder ao canalizar a participação de
setores da sociedade civil e, assim, conquistar maior legitimidade nas questões
político-eleitorais. Tal fator levou Hans Kelsen253 a afirmar que “só a ilusão
ou a hipocrisia pode acreditar que a democracia seja possível sem partidos
políticos”.
Ainda que se reconheça as especiais circunstâncias pelas quais têm passado
o sistema partidário em todo o mundo, a afirmação de Kelsen encontra
respaldo no complexo fator de se conceber uma via alternativa para a
formação da vontade geral. Com efeito, a imprescindibilidade dos partidos à
democracia, nos termos de Anna Oppo254, deve-se ao problema da
participação. Em suas palavras: “em termos gerais, pode portanto se dizer que
o nascimento e o desenvolvimento dos partidos está ligado ao problema da
participação, ou seja, ao progressivo aumento da demanda de participação no
processo de formação das decisões políticas, por parte de classes e estratos
diversos da sociedade”.
Assim, partindo-se do pressuposto de que os partidos políticos são
essenciais, é preciso caracterizá-lo. A esse respeito, tornou-se notável a
definição de Max Weber255: os partidos políticos são “organizações
voluntariamente criadas e baseadas no livre recrutamento, necessariamente
sempre renovado, em oposição a todas as corporações fixamente delimitadas
pela lei ou por contrato”. É preciso pontuar que os partidos políticos,
tradicionalmente, relacionam-se a uma ideologia, embora tal atributo não
possa ser considerado um de seus requisitos em nossos tempos atuais.
Weber apontou também, no começo do século XX, que o objetivo de
qualquer partido é a obtenção de votos para cargos políticos, e que a definição
dos candidatos, do programa partidário, do financiamento e de seu modo de
agir é determinado por um núcleo reunido sob um líder ou grupo de notáveis
apoiado por seus interessados e financiadores. Tudo isso para a consecução
de sua principal finalidade: adquirir poder perante a sociedade. Em outras
palavras, as práticas partidárias são orientadas no afã de se obter influência
sobre a ação comunitária e, portanto, “variam segundo a estrutura de
domínio dentro da comunidade” 256.
No Brasil, a Constituição de 1988 enuncia a filiação partidária como um
requisito para a elegibilidade (artigo 14, parágrafo 3º, inciso V). Embora parte
da crise de representatividade atual seja atribuída aos próprios partidos,
expressada na progressiva perda de filiados, eles continuam sendo
indispensáveis à realização da política e preparo de candidatos para concorrer
aos cargos eletivos, destinando-se a assegurar a autenticidade do sistema
representativo e a defender os direitos fundamentais expressos na
Constituição (artigo 1º da Lei 9.096/95).
Nossa arquitetura constitucional reserva aos partidos políticos o
monopólio para apresentação de candidatos e, desde 1988, optou-se por
abandonar o sistema bipartidário existente no período da ditadura militar257 e
instaurar o pluripartidarismo. Assim, longe de devaneios romanescos, é
preciso lembrar que os partidos políticos possuem natureza de pessoas
jurídicas de direito privado, logo: a) Dispõem de objetivos, isto é, eleger seus
membros para cargos eletivos e ampliar sua influência.
b) Valem-se das estratégias disponíveis para alcançar seus objetivos.
c) Possuem capital (receitas próprias, fundo partidário e doações) para
custear suas atividades.
d) Estruturam-se internamente de modo hierárquico.

5. Sufrágio
O sufrágio é o instrumento pelo qual se preenchem os cargos eletivos
mediante processo de escolha pautado em regras determinadas. O Estado
moderno foi provido desse sistema em razão de ser um ponto muito
defendido pelos autores liberais, como Alexis de Tocqueville e John Stuart
Mill. Ambos os autores compartilhavam o grande receio de uma tirania da
maioria, violando-se direitos individuais da minoria. Mill, em Sobre a
Liberdade, busca estabelecer limites à intervenção na esfera privada dos
indivíduos em pleno Estado pós-monarquias absolutas. Em sua visão, a
participação cívica é o melhor caminho para pavimentar a liberdade como
um atributo geral.
Tal pensamento conduziu Stuart Mill a defender, em 1869, a extensão do
voto às mulheres, por uma questão de coerência: a incorporação de todos os
segmentos não elitistas (classes populares, incluindo as mulheres) na vida
política seria o meio mais seguro de se conservar a liberdade de todos, de
sorte a não enclausurar toda a sociedade no modo de vida burguês258. A
questão do voto feminino somente se concluiu na Inglaterra com o
Representation of The People Act, em 1918. No Brasil, este direito foi
garantido em 1932, por meio do Decreto 21.076, que instituiu o Código
Eleitoral de 1932.
Destarte, ao longo do século XX, o principal eixo analítico do sufrágio foi a
extensão do direito de voto. Em outras palavras, quem vota. A Constituição
imperial brasileira de 1824 (artigos 92 a 94) apresentava diversas classes de
pessoas que estariam excluídas do processo eleitoral, como os menores de
vinte e cinco anos (salvo se casados), os clérigos de ordens sacras e os
religiosos de modo geral, os libertos, os criminosos pronunciados em querela
ou devassa, entre outros. Além disso, estabelecia o voto censitário. A
Constituição de 1988 (artigo 14) estabelece ser obrigatório o voto para
maiores de dezoito anos e facultativo para os analfabetos, os maiores de
setenta anos e os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos, vedando a
participação dos estrangeiros e dos conscritos, estes durante o período do
serviço militar obrigatório.
Atualmente, os países ocidentais possuem, em sua maioria, grandes
democracias de massa. No Brasil, a inclusão de eleitores no processo eleitoral
tem sido progressiva. Estima-se que durante a República Velha e até o final da
Segunda Guerra (1945), o eleitorado brasileiro não tenha atingido 5% da
população. Já nas eleições de 2014, este percentual atingiu 70%259. O
incremento no número de eleitores é importante para estabelecer a
continuidade do debate político, em especial em países com menor tradição
republicana e democrática, como é o caso do Brasil.
Garantida alguma participação político-eleitoral, o desafio é ampliar os
espaços em que os princípios democráticos se fazem presentes, em especial o
da publicidade e o da participação popular. Assim, entramos em um novo
momento, não mais marcado pelo fator de quem vota, mas onde se vota260.
Em outras palavras, não se trata somente do incremento do eleitorado como
também os espaços nos quais se podem exercer o direito de voto e
participação.
Corolário do Estado democrático, oportuno reafirmar o papel essencial
que possui uma imprensa livre como vetor informativo e auxiliar do controle
dos atos governamentais. A vida privada pode ser envolta pelo segredo; a vida
pública, ao contrário, deve ser diáfana. Não é preciso dizer que onde não há
publicidade se pode criar condições para o estabelecimento de conluios,
dissimulados pela “cultura do biombo” 261 em oposição à cultura da
transparência que deve viger em nossa ordem constitucional. Nesse sentido, é
atribuída a Louis Brandeis262, Justice da Suprema Corte dos Estados Unidos,
uma frase que sintetiza com precisão o papel da publicidade: Sunlight is said
to be the best of disinfectants263, o que significa, em uma tradução livre, que a
luz do sol é o melhor desinfetante.
Aqui é necessário fazer justiça a Norberto Bobbio, pensador italiano que
respaldou inúmeras análises ao longo deste livro e que foi responsável pela
notória afirmação de que a democracia é “o governo do poder público em
público”. Para ele, a grande diferença entre o regime democrático para com
qualquer ditadura é de que nela o poder não pode estar mergulhado na
escuridão do segredo, pois “a opacidade do poder é a negação da
democracia”264.
6. Vantagens da Democracia e suas Promessas Não
Cumpridas
Embora alguns filósofos gregos, como Platão e Aristóteles, não
legitimassem a democracia como o regime político mais adequado, muitos
autores têm se dedicado a lhe compreender melhor e enunciar suas virtudes.
É o caso de Robert Dahl e Norberto Bobbio.
Para Norberto Bobbio265, a democracia reuniu três momentos de um
mesmo movimento histórico: direitos do homem, democracia e paz.
Portanto, ele aduz que “sem direitos do homem reconhecidos e protegidos,
não há democracia; sem democracia, não existem as condições mínimas para
a solução pacífica dos conflitos”, o que leva o autor a concluir que a
democracia é o melhor regime para a solução pacífica de conflitos entre
Estados.
É bastante conhecido o estudo de Robert Dahl266, acerca das vantagens que
a democracia oferece, em relação aos regimes não democráticos. Segundo ele,
o regime democrático dispõe de melhores condições para: a) evitar a tirania;
b) garantir direitos fundamentais aos cidadãos; c) garantir liberdades; d)
salvaguardar a autodeterminação dos povos; e) proporcionar a autonomia
moral, o desenvolvimento humano e a igualdade política; f) proteger os
interesses pessoais essenciais; g) garantir a prosperidade e a paz pelos Estados
democráticos adotarem instrumentos conciliatórios entre si antes de se
lançarem em conflitos bélicos.
Isso não significa que o desafio democrático esteja consolidado. A despeito
de não ser possível afirmar com exatidão o que é a democracia, temos uma
noção muito clara daquilo que definitivamente não pertence a esse regime
político.
Nessa linha, Norberto Bobbio267, fala nas promessas (ainda) não
cumpridas pelos regimes democráticos. São elas: a) De que os cidadãos teriam
maior poder de influência na democracia. Na verdade, foram os grupos
políticos, e não os indivíduos, que se tornaram os protagonistas da vida
política.
b) A vedação aos mandatos imperativos. Mandato imperativo ocorre na
hipótese em que os eleitores exercem império sobre os eleitos. O eleito
não celebra um contrato com seu eleitor (mandato imperativo) e sim
com o país e com a legislação (mandato representativo). Ou seja,
representa a todos, não sendo um procurador de determinadas classes
ou indivíduos.
c) A anulação das elites oligárquicas. Bobbio cita Schumpeter ao lembrar
que uma democracia não se opõe às elites, mas fomenta a existência de
elites que concorrem entre si.
d) A quarta promessa não cumprida se vincula com a anterior. O
monopólio do poder por um grupo estabelece um poder paralelo ao da
lei que brota do Estado, condição que mina a força vinculante da
democracia.
e) A quinta promessa não cumprida é a eliminação dos poderes ocultos no
Estado. Bobbio denomina de poderes invisíveis, típica de governos
autoritários que fogem à publicidade e à censura pública.
f) A última promessa não cumprida é a da educação cívica. Segundo
Bobbio, a incompreensão para o exercício dos direitos na esfera política
conduz à apatia e ao sentimento de impotência.
Embora tais questões sejam estruturais na sociedade e que quaisquer
mudanças demandam investimento de esforço e de tempo, o autor italiano
não perde sua esperança na democracia: “as promessas não cumpridas e os
obstáculos não-previstos de que me ocupei não foram suficientes para
‘transformar’ os regimes democráticos em regimes autocráticos”.
E arremata Norberto Bobbio268: “existem democracias mais sólidas e
menos sólidas, mais invulneráveis e mais vulneráveis; existem diversos graus
de aproximação com o modelo ideal, mas mesmo a democracia mais distante
do modelo não pode ser de modo algum confundida com um Estado
autocrático e menos ainda com um totalitário”.
Ao lado destas observações de Dahl e Bobbio, o jurista italiano Gustavo
Zagrebelsky, em seu livro Imparare Democrazia, apresenta dez pontos que ele
considera como conteúdos mínimos necessários para se localizar o ethos
democrático. São eles: a) La fede in qualcosa (a fé em qualquer coisa): a
democracia se opera na ótica do relativismo, não do absolutismo. Há
incompatibilidade profunda entre democracia e a enunciação de verdades
inquestionáveis, finalidades absolutas ou dogmas. As únicas defesas
incontestáveis admitidas na democracia é a manutenção de seus
procedimentos para o atingimento da decisão coletiva, com o igual respeito à
participação política, e o reconhecimento da dignidade de todos os seres
humanos.
b) La cura delle personalità individuali (o cuidado com as personalidades
individuais): tal regime se funda em indivíduos personalizados e não em
uma massa disforme, como Tocqueville já havia sinalizado em A
Democracia na América. O dilema da massificação para a democracia é
de uma minoria se impor sobre a maioria passiva e inerte, colocando em
risco os direitos de minorias e podendo converter o regime em
demagogia, como ocorreu com o totalitarismo no século passado.
Contra a estratificação, a democracia se funda na originalidade de cada
indivíduo.
c) Lo spirito del dialogo (o espírito do diálogo): tendo por base a
inexistência de verdades absolutas, ela parte do confronto socrático de
ideias. Alicerça-se, portanto, no espírito filológico269, jamais em
qualquer tipo de misologia270: seu instrumento fundamental é o apreço
pelo diálogo. No que toca ao debate público, o cidadão de uma
democracia precisa ter o espírito livre para aceitar posições distintas e
construir formas de pensar, não adentrando em discussões com o anseio
de impor dogmas pessoais. Os fatos sobre os quais as ideias se baseiam
precisam também ser honestamente difundidos para a formação das
discussões, evitando-se embustes. Assim, apraz à democracia indivíduos
que pensam de modo distinto e livre.
d) Lo spirito dell’ugualianza (o espírito de igualdade): a democracia deve
opor-se ferozmente aos privilégios em âmbito público. Sem uma lei igual
para todos, a sociedade se divide em castas hierarquizadas. Em uma
sociedade de privilégios, não há espírito público.
e) L’apertura verso chi porta identità diverse (pluralismo identitário): exige-
se, no regime democrático, que as identidades particulares não tenham
influência direta na vida social. Zagrebelsky, neste ponto, interessa-se
pela ideia da tolerância. No Tratado de Augsburg (1555), a Igreja
reconheceu o princípio cuius regio eius et religio (de quem é o reino, dele
se siga a religião, isto é, o credo do governante condicionava o crer do
restante do Estado). Contudo, a tolerância (abstenção unilateral de um
grupo majoritário), segundo o autor, ainda é pouco a um ambiente
verdadeiramente democrático: busca-se o gozo dos direitos de cidadania
(reconhecimento e proteção das diversas culturas). O jurista lembra
ainda que os espaços de atuação do Estado e da religião, bem
demarcados por força do pensamento liberal, estão com suas fronteiras
cada vez mais liquefeitas em virtude do renascer da política populista. Os
resultados da “política em nome de Deus” são a intolerância e os
discursos de violência, algo oposto ao que se busca na democracia.
f) La diffidenza verso le decisioni irremediabili (reversibilidade decisória): o
regime democrático implica na reversão de qualquer decisão, em razão
de as soluções definitivas serem próprias de regimes pouco
democráticos, nos quais se acreditam em valores absolutos. A
democracia, por sua vez, é relativa, perene, dialógica e aberta271. Deste
modo, a porta que conduz ao reconhecimento do erro por determinado
caminhado político ou jurídico trilhado deve estar sempre aberta.
g) L’atteggiamento sperimentale (postura experimental): democracia e
responsabilidade caminham pari passu: é cotidiano o aprendizado acerca
das consequências de nossos atos pessoais no contexto público (e vice-
versa). Sendo um projeto de construção coletiva, os indivíduos devem
estar atentos a diversas situações em que esta relação pode sair
fortalecida ou enfraquecida, quando, por exemplo, da colisão de direitos,
da formação de uma vontade comum, da ocupação de cargos públicos
baseada na competência e na impessoalidade, entre outros casos comuns
ao cotidiano social e político.
h) Coscienza di maggioranza e coscienza di minoranza (consciência de
maioria e minoria): as maiorias eventuais não possuem o poder irrestrito
em um regime democrático. O brocardo vox populi, vox dei, segundo
Zagrebelsky, carrega em si a semente do absolutismo, por não
resguardar o ideal da liberdade de todos. Embora a maioria possa tomar
decisões contrárias aos interesses de minorias, que mantêm a sua crença
na coerência política, uma votação jamais pode encerrar em definitivo
uma questão: elas devem sempre ter a oportunidade de buscar novos
argumentos para se alterar o que foi decidido.

i) L’atteggiamento altruístico (postura altruística): a democracia deve se


i) L’atteggiamento altruístico (postura altruística): a democracia deve se
pautar na solidariedade mútua, expressão mais próxima à ideia de
virtude republicana (tudo pertence a todos) de Montesquieu, em
oposição à res particular (que é o desfrute da maioria dos bens por
poucos), cujo princípio motor se pauta numa espécie de darwinismo
social (domínio do mais forte). Com isto, a marginalização social deve
ser reconhecida como antidemocrática: tal regime não se baseia no
domínio dos mais fortes e abandono dos mais fracos, mas na busca pela
liberdade de todos, incluindo sua participação e reconhecimento de sua
dignidade.
j) La cura delle parole (o cuidado com as palavras): a democracia se funda
no diálogo. Portanto, deve-se haver um cuidado especial com a palavra,
seja em quantidade ou em qualidade. Assim, o número de palavras
usadas na política demonstra o grau de desenvolvimento democrático de
um povo: poucas palavras são resultado de poucas ideias, poucas
discussões, pouca pluralidade, poucas possibilidades, logo, quase
nenhuma democracia. Zagrebelsky, neste sentido, critica o plebiscito,
fundado apenas em dois caminhos para grandes definições: “sim” ou
“não”. Não obstante, acerca da qualidade das palavras, em um diálogo
honesto, as palavras não podem desinformar, convertendo-se em uma
espécie de novilíngua orwelliana. Ao contrário, o debate político não
pode ser tendencioso, mas claro e honesto para que dele a maioria possa
participar.
Valendo-se de Dahl, Bobbio e Zagrebelsky, pensadores que nos ofereceram
questões fundamentais, vantagens e desvantagens do regime democrático,
remete-se, em conclusão, a um aspecto fundamental da democracia: a
capacidade de estabelecer as regras para o jogo, tanto nas dimensões do
Estado-nação quanto em âmbito internacional. Registre-se, ainda, que no
regime democrático, preservam-se, com mais probabilidade, os direitos
fundamentais, a resolução de conflitos de modo pacífico e a pluralidade,
elementos essenciais à construção de uma sociedade livre, justa e fraterna.

Conclusões
1. Nascida na Grécia no período clássico do helenismo, a democracia
atinge seu apogeu no Estado moderno a partir do século XX. Em seu sentido
tradicional, é um modo de exercício da soberania popular, isto é, um meio de
tomada de decisões coletivas. Aliada ao constitucionalismo, a democracia
passou a designar também a proteção aos direitos fundamentais.
2. As espécies de democracia são:
a) Democracia direta: é o exercício da prerrogativa de tomada de decisões
sem representantes, isto é, pelo próprio cidadão habilitado para tal. É a
espécie que inaugurou o regime democrático em virtude de as
sociedades da antiguidade histórica serem bem menos numerosas do
que as atuais.
b) Democracia semidireta: é aquela na qual os cidadãos são chamados a
proporem alguma lei ou referendarem alguma decisão por meio dos
instrumentos postos para este fim. No Brasil, são três: o plebiscito, o
referendo e a iniciativa popular.
c) Democracia indireta ou representativa: a espécie predominante nos
Estados, em que o poder de tomada de decisões é dos representantes que
foram eleitos.
3. A democracia indireta ou representativa possui dois elementos que lhe
são condição sine qua non272: a) Os partidos políticos são organizações
lastreadas ou não sob uma ideologia, que buscam o voto popular para
conseguir eleger seus representantes. No Brasil, a filiação partidária é um
requisito para que se possa concorrer a um cargo político, o que não ocorre,
por exemplo, nos Estados Unidos.
b) O sufrágio é o processo de escolha mediante votação para o
preenchimento dos cargos eletivos do Estado. Até o século XX, o
principal eixo de discussões era o da sua legitimidade, isto é, quem
poderia votar. A partir de então, busca-se a ampliação dos espaços em
que se pode votar, ou seja, onde se vota. Em outras palavras, o desafio
atual está em diagnosticar os lócus em que os princípios democráticos se
fazem presentes.
4. As vantagens do regime democrático são sintetizadas pelo jurista Robert
Dahl, em seus estudos sobre as formas de governo. Para ele, a democracia tem
melhores condições de: a) Evitar a tirania.
b) Garantir direitos fundamentais aos cidadãos.
c) Garantir liberdades.
d) Salvaguardar a autodeterminação dos povos.
e) Proporcionar a autonomia moral, o desenvolvimento humano e a
igualdade política.
f) Proteger os interesses pessoais essenciais.
g) Garantir a prosperidade e a paz pelos Estados democráticos adotarem
instrumentos conciliatórios entre si antes de se lançarem em conflitos
bélicos.
5. Segundo Norberto Bobbio, embora a democracia seja apontada como a
melhor forma de governo, há seis promessas que ainda não foram
plenamente cumpridas e que demandarão maiores esforços de todos ao longo
deste século XXI.
a) Os cidadãos teriam maior poder de influência na democracia.
b) Vedação aos mandatos imperativos.
c) Anulação das elites oligárquicas.
d) Anulação dos poderes paralelos ao estatal.
e) Eliminação dos poderes ocultos no Estado.
f) Educação para a vida cívica.
6. Gustavo Zagrebelsky delineia dez pontos considerados fundamentais ao
desenvolvimento democrático.
a) A democracia não encampa valores absolutos particulares em nível
público.
b) Busca a originalidade de cada indivíduo para se afastar da massificação
social.
c) Cultiva o diálogo e a oposição de ideias.
d) Encarna o espírito da igualdade entre todos.
e) Funda-se na tolerância.
f) Não deve admitir decisões definitivas em face de minorias.
g) É parte do espírito democrático a consciência de maioria, mas também
de minorias, devendo o maior número possível fazer parte do diálogo
político.
h) Pauta-se na solidariedade.
i) Tem no respeito à palavra e no cultivo de espaços dialógicos bons
instrumentos de mensuração da qualidade democrática de determinada
sociedade.

238 CHEVALLIER, Jacques. O Estado Pós-Moderno. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 187.
239 HUNTINGTON, Samuel. A Terceira Onda: democratização no final do século XX. Editora Ática,
1994, p. 26-29.
240 Nadia Urbinati, valendo-se de Hanna Pitkin e Bernard Manin, procura redefinir a lógica que
estabelece a democracia direta como sendo o modelo mais desejável possível, e a representação
apenas o second best. Sob esta ótica, afirma a autora que a representação democrática “estimula um
ganho de política em relação ao ato sancionador pelo qual os cidadãos soberanos ratificam e
recapitulam, com regularidade cíclica, as ações e promessas de candidatos e representantes”. Mais do
que isso, “é a instituição que possibilita à sociedade civil (em todos os seus componentes) identificar-
se politicamente e influenciar a direção política do país”. Cf.: URBINATI, Nadia. O que torna a
representação democrática? Lua Nova, São Paulo, 67: 191-228, 2006.
241 ARISTÓTELES. A Política, p. 105-106.
242 GOYARD-FABRE, Simone. O que é Democracia? São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 03-13.
243 FERRAJOLI, Luigi. Principia Iuris: teoria del diritto e della democrazia. Roma: Laterza, 2009, p. 10
(Volume 02: Teoria Della Democrazia). No mesmo sentido confira: BOBBIO, Norberto. Liberalismo
e Democracia. 6 ed. Brasília: Editora Brasiliense, 1994.
244 SILVA, José Afonso da. Poder Constituinte e Poder Popular, p. 42-45.
245 CONSTANT, Benjamin. Da Liberdade dos Antigos Comparada à dos Modernos. Revista de Filosofia
Política da Unisinos, Porto Alegre, n. 02, p. 01-07, 1985.
246 CONSTANT, Benjamin. Escritos de Política. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 153.
247 CONSTANT, Benjamin. Da Liberdade dos Antigos Comparada à dos Modernos, p. 01-03.
248 CONSTANT, Benjamin. Da Liberdade dos Antigos Comparada à dos Modernos, p. 06.
249 ROUSSEAU. O Contrato Social, p. 21.
250 É necessário pontuar que o próprio Rousseau não era inocente a ponto de acreditar que um país,
como a França, pudesse ter suas leis nacionais aprovadas tendo a ratificação direta de todos. Dizia o
autor que o modelo de participação direta é possível em Estados bem pequenos nos quais os cidadãos
gozem de liberdade e igualdade. Quão maior a extensão do Estado, maior sua complexidade,
diferentes culturas e tradições, maior a distância para construir a administração pública e tanto mais
distante estará o povo do centro de poder.
251 Estes instrumentos têm assento constitucional e são disciplinados pela Lei 9.079/1998.
252 BOBBIO, Norberto, Estado, Governo, Sociedade, p. 153.
253 KELSEN, Hans. A Democracia. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 40-41.
254 OPPO, Ana. Partidos políticos. In BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO,
Gianfranco. Dicionário de Política, p. 899.
255 WEBER, Max. Economia e Sociedade: fundamentos de sociologia compreensiva. Brasília: UNB, 2004,
p. 544. (Volume 2)
256 WEBER, Max. Ensaios de Sociologia. 5 ed. Brasília: Rio de Janeiro: LTC, 1982, p. 227-228.
257 Oportuna a crítica feita por Lenio Streck e José Luiz Bolzan. Considerando alguns contextos, como
o da ditadura militar no Brasil, o sistema bipartidário pode ter existência garantida apenas no
diploma constitucional, enquanto a realidade é a de um monopartidarismo. Em suas palavras:
“muitas vezes, um bipartidarismo formal pode encobrir um monopartidarismo de fato, como
ocorrido no Brasil pós-64, onde os partidos criados pelo golpe militar – ARENA E MDB – não
possuíam maior representatividade social, sendo no mais das vezes apenas uma referência formal de
uma pseudodemocracia no interior de um regime burocrático-autoritário”. In STRECK, Lenio Luiz;
MORAIS, José Luiz Bolzan de. Ciência política e Teoria Geral do Estado. 3 ed. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2003, p. 176.
258 Para aprofundar as pesquisas acerca desta temática, confira: MILL, John Stuart. A Sujeição das
Mulheres. São Paulo: Escala, 2006.
259 Para mais informações, consulte as informações no site do Tribunal Superior Eleitoral – TSE.
260 Esta é uma referência ao pensamento de Norberto Bobbio, que será tratado adiante.
261 Expressão do Ministro do Supremo Tribunal Federal Carlos Ayres Britto, utilizada no julgamento
da Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade 4638. Proposta pela Associação dos
Magistrados Brasileiros, a ação visava limitar o poder investigativo do Conselho Nacional de Justiça
em relação aos juízes.
262 Louis Brandeis foi Justice da Suprema Corte dos Estados Unidos entre 1916 e 1939. É apontado
como um dos maiores juízes deste país, ao lado de Oliver Wendell Holmes e Benjamin Cardozo.
263 A este respeito, confira: BRANDEIS, Louis D. What Publicity Can Do. Disponível em:
<http://louisville.edu/law/library/special-collections/the-louis-d.-brandeis-collection/other-peoples-
money-chapter-v>. Acesso em: 17/04/2021.
264 BOBBIO, Norberto. Democracia e Segredo. São Paulo: UNESP, 2015, p. 35.
265 BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos, p. 01 e seguintes.
266 DAHL, Robert. Sobre a Democracia. Brasília: UNB, 2001, p. 58-74.
267 BOBBIO, Norberto. O Futuro da Democracia. 10 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2006, p. 37-50.
268 BOBBIO, Norberto. O Futuro da Democracia, p. 49-50.
269 Filologia é o estudo da língua com base em textos escritos, abrangendo, ainda, a cultura, a literatura
e as ideias de um povo.
270 Misologia é a aversão ao raciocínio.
271 Zagrebelsky usa o exemplo das discussões relacionadas ao campo da bioética, que encontram
dificuldade para se afirmar. Contudo, é temerário afirmar que não haja um catálogo (pequeno, que
seja) irretroativo (non cliquet). Seria possível retornar à escravidão, ou retomar pena de morte em
países que a aboliram?
272 Expressão latina que denota uma condição indispensável, inescusável.
Referências

ABBOUD, Georges; CARNIO, Henrique Garbellini; OLIVEIRA, Rafael


Tomaz de. Introdução à Teoria e à Filosofia do Direito. 2 ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2014.
ACCIOLY, Hildebrando; SILVA, G. E. do Nascimento; CASELLA, Paulo
Borba. Manual de Direito Internacional Público. 20 ed. São Paulo: Saraiva,
2012.
ALIGHIERI, Dante. Monarquia. São Paulo: Escala, s.d.
APÓSTOLO PAULO. Romanos 13:1. Bíblia Sagrada. 107 ed. São Paulo: Ave-
Maria, 1997.
ARAUJO, Luiz Alberto David. Características Comuns do Federalismo. Por
Uma Nova Federação. Celso Bastos (Orgs). São Paulo: Revista dos Tribunais,
1995.
ARAÚJO CINTRA, Antonio Carlos de; GRINOVER, Ada Pellegrini;
DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 7 ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1990.
ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 11 ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2010.
____. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. 14
reimp. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
____. On Violence. New York: Harcourt, Brace & World, 1969.
____. Origens do Totalitarismo: antissemitismo, imperialismo, totalitarismo. 9
reimp. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
____. Sobre a Revolução. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
ARISTÓTELES. A Política. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
____. Metafísica, Poética e Ética a Nicômaco. São Paulo: Abril, 1984. (Os
Pensadores) ASSIS, Machado. Esaú e Jacó. São Paulo: FTD, 2002.
ATALIBA, Geraldo. República e Constituição. 2. ed. São Paulo: Malheiros,
1998.
AZAMBUJA, Darcy. Teoria geral do Estado. 35 ed. São Paulo: Globo, 1996.
BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. 5
ed. São Paulo: Saraiva, 2016.
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 21 ed. São Paulo:
Saraiva, 2000.
BERCOVICI, Gilberto. Carl Schmitt, o Estado total e o Guardião da
Constituição. Revista Brasileira de Direito Constitucional, n. 1, jan./jun. 2003.
BERTRAND, Badie. Um Mundo Sem Soberania. Lisboa: Instituto Piaget,
2000.
BIDART CAMPOS, German J. Filosofía Del Derecho Constitucional. Buenos
Aires: Sociedad Anônima Editora, 1969.
BITTAR, Eduardo C. B. Curso de Filosofia Política. 3 ed. – São Paulo: Atlas,
2007.
BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 10 ed. São Paulo: Malheiros, 1999.
____. Curso de Direito Constitucional. 5 ed. São Paulo: Malheiros, 1996.
____. Do Estado Liberal ao Estado Social. 8 ed. São Paulo: Malheiros, 2007.
BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992.
______. Democracia e Segredo. São Paulo: UNESP, 2015.
____; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política.
11 ed. Brasília: UNB, 1998.
____. Estado, Governo, Sociedade: por uma teoria geral da política. 11 ed. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 2004.
____. Liberalismo e Democracia. São Paulo: Brasiliense, 2000.
____. O Futuro da Democracia. 10 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2006.
____. Teoria do Ordenamento Jurídico. 6 ed. Brasília: UNB, 1995.
BRANDEIS, Louis D. What Publicity Can Do. Disponível em:
<http://louisville.edu/law/library/special-collections/the-louis-d.-brandeis-
collection/other-peoples-money-chapter-v>. Acesso em: 17/04/2021.
BRAUD, Philippe. Sociologie Politique. 3 ed. Paris: L.G.D.J., 1996.
BRITTO, Carlos Ayres. Teoria da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2003.
BURDEAU, Georges. O Estado. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
BURKE, Peter. O Renascimento Italiano: cultura e sociedade na Itália. São
Paulo: Nova Alexandria, 1999.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da
Constituição. 6 ed. Coimbra: Almedina, 2002.
CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 19
ed. São Paulo: Malheiros, 2003.
CARRESE, Paul O. The Cloaking of Power: Montesquieu, Blackstone, and the
rise of judicial activism. Chicago: The University of Chicago Press, 2003.
CHÂTELET, François; DUHAMEL, Olivier; PISIER-KPUCHNER, Evelyne.
História das Ideias Políticas. 2 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.
CHEVALLIER, Jacques. O Estado Pós-Moderno. Belo Horizonte: Fórum,
2009.
CONSTANT, Benjamin. Da Liberdade dos Antigos Comparada à dos
Modernos. Revista de Filosofia Política da Unisinos, Porto Alegre, n. 02, p. 01-
07, 1985.
_____. Escritos de Política. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
COULANGES, Fustel de. A Cidade Antiga. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
CREVELD, Martin Van. Ascensão e Declínio do Estado. São Paulo: Martins
Fontes, 2004.
DAHL, Robert. Sobre a Democracia. Brasília: UNB, 2001.
DALLARI, Dalmo de Abreu. A Constituição na Vida dos Povos: da Idade
Média ao século XXI. São Paulo: Saraiva, 2010.
______Elementos de Teoria Geral do Estado. 21 ed. São Paulo: Saraiva, 2000.
______. O futuro do Estado. 2 ed. Sâo Paulo: Saraiva, 2007.
DEL VECCHIO, Giorgio. Teoria do Estado. São Paulo: Saraiva, 1957.
DOEHRING, Karl. Teoria do Estado. Belo Horizonte: Del Rey, 2008.
DWORKIN, Ronald. A Justiça de Toga. São Paulo: Martins Fontes, 2016.
_____. A Virtude Soberana: a teoria e a prática da igualdade. São Paulo:
Martins Fontes, 2005.
ELIAS, Norbert. A Sociedade de Corte: investigação sobre a sociologia da
realeza e da aristocracia de corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
ENGELS, Friedrich. A Origem da Família, da Propriedade Privada e do
Estado. 14 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.

FACHIN, Zulmar. Curso de Direito Constitucional. 8 ed. São Paulo: Verbatim,


FACHIN, Zulmar. Curso de Direito Constitucional. 8 ed. São Paulo: Verbatim,
2019.
_____; SAMPAR, Rene. Soberania e ordenamento jurídico: um diálogo
contemporâneo. In PAGLIARINI, Alexandre; DIMOULIS, Dimitri (orgs).
Direito Constitucional e Internacional dos Direitos Humanos. Belo Horizonte:
Fórum, 2012.
____; SAMPAR, Rene. Oitocentos Anos da Magna Carta de 1215 e a Luta
pelo Estado de Direito. In FACHIN, Zulmar; LIMA, Jairo Néia; PONA,
Éverton Willian (orgs.). Magna Carta: 800 Anos de Influência no
Constitucionalismo e nos Direitos Fundamentais. Curitiba: Juruá, 2016.
_____; SAMPAR, Rene. Construção Histórica dos Direitos Fundamentais. In
Novos Rumos dos Direitos Especiais da Personalidade e Seus Aspectos
Controvertidos. Curitiba: Juruá, 2013.
FASSO, Guido. Historia de la Filosofia del Derecho. Madrid: Piramide, 1966.
(Volume 2, la edad moderna) FERRAJOLI, Luigi. A Democracia Através dos
Direitos: o constitucionalismo garantista como modelo teórico e como projeto
político. São Paulo: RT, 2015.
______. A Soberania no Mundo Moderno. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes,
2007.
______. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. 3 ed. rev. São Paulo: RT,
2010.
____. Principia Iuris: teoria del diritto e della democrazia. Roma: Laterza,
2009. (Volume 02: Teoria Della Democrazia).
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 31
ed. São Paulo: Saraiva, 2005.
FILHO, Willis Santiago Guerra. Autopoiesis na Sociedade Contemporânea.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997.
FLEINER-GERSTER, Thomas. Teoria Geral do Estado. São Paulo: Martins
Fontes, 2006.
FREUND, Julien. Sociologia de Max Weber. 5 ed. Rio de Janeiro: Forense,
2003.
GARAPON, Antoine. O Juiz e a Democracia: o guardião de promessas. 2 ed.
Rio de Janeiro: Revan, 2001.
GARCÍA-PELAYO, Manuel. Direito Constitucional Comparado. Madrid:
Alianza Editorial, 1999.
GIDDENS, Anthony. Sociology. 2 ed. Cambridge: Polity Press, 1994.
GOYARD-FABRE, Simone. O Que é Democracia? São Paulo: Martins Fontes,
2003.
GROFF, Paulo Vargas. Modelos de parlamentarismo: inglês, alemão e
francês. In Revista de Informação Legislativa, Brasília, n. 160, out-dez. 2003, p.
137-146.
GROPPALLI, Alexandre. Doutrina do Estado. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 1968.
GUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução ao Estudo do Direito. 16 ed. Rio de
Janeiro: Forense, 1993.
HAMILTON, Alexander; MADISON, James; JAY, John. O Federalista.
Brasília: UNB, 1984.
____. O Federalista. São Paulo: Abril Cultural, 1973 (Os Pensadores).
HENDERSON, James P. The State of the History of Economics: proceedings of
the history of economics society. London, New York: Routledge, 1997.
HOBBES, Thomas. Do Cidadão. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
____. O Leviatã. São Paulo: Nova Cultural, 1996 (Os Pensadores).
HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. 2 ed. Rio de Janeiro:
Forense, 1959. (volume IX).
HUNTINGTON, Samuel. A Terceira Onda: democratização no final do
século XX. Editora Ática, 1994.
HUSEK, Carlos Roberto. Curso de Direito Internacional Público. 3 ed. São
Paulo: LTr, 2000.
KANTOROWICZ, Ernst. Os Dois Corpos do Rei: um estudo sobre teologia
política medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
KELSEN, Hans. A Democracia. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
____. Jurisdição Constitucional. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
____. Teoria Geral do Direito e do Estado. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
____. Teoria Pura do Direito. 7 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
JELLINEK, Georg. Fragmentos de Estado. Madrid: Civitas, 1981.

LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. 3 ed. Lisboa: Calouste


LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. 3 ed. Lisboa: Calouste
Gulbenkian, 1997.
LE GOFF, Jacques. A Civilização do Ocidente Medieval. 2 ed. Lisboa:
Estampa, 2005 (volume I) LOCKE, John. Dois Tratados Sobre o Governo. São
Paulo: Martins Fontes, 1998.
LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la Constitución. Barcelona: Editorial Ariel,
1983.
MALBERG, R. Carré de. Teoría General del Estado. México: Fondo de
Cultura Económica, 2001.
MALDONADO, Maurílio. Separação dos poderes e sistema de freios e
contrapesos: desenvolvimento no Estado brasileiro. Disponível em:
<https://www.al.sp.gov.br/StaticFile/ilp/separacao_de_poderes.pdf>. Acesso
em 17/04/2021.
MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Pacto Federativo. Belo Horizonte.
Mandamentos, 2000.
____. O Sistema Diretorial. Disponível em: <http://joseluizquadros
demagalhaes.blogspot.com.br/2010/08/teoria-do-estado-26.html>. Acesso
em: 17/04/2021.
MALUF, Sahid. Teoria Geral do Estado. 24 ed. São Paulo: Saraiva, 1998.
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de
Direito Constitucional. 8 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2013.
MILL, John Stuart. A Liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
____. A Sujeição das Mulheres. São Paulo: Escala, 2006.
MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Coimbra: Almedina,
2002.
MONTESQUIEU, Charles de Secondat. O Espírito das Leis. São Paulo:
Martins Fontes, 1996.
MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo? 2. ed. São Paulo: Max Limonad, 2000.
NEGRI, Antônio. O Poder Constituinte: ensaio sobre as alternativas da
modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.
NADER, Paulo. Introdução ao Estudo do Direito. 8 ed. Rio de Janeiro:
Forense, 1993.
PANSIERI, Flávio. Direito e Economia: a crise paradigmática e a teoria
constitucional brasileira. In NUNES, Antônio José Avelãs Nunes;
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (orgs.). Diálogos Constitucionais:
Brasil/Portugal. Rio de Janeiro, 2004.
______. A Liberdade no Pensamento Ocidental. Belo Horizonte: Fórum, 2018
(IV Tomos).
PERELMAN, Chaïm. Ética e Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
PLATÃO. A República. 13 ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2012.
OLIVA, Éric. Droit Constitutionnel. 3 ed. Paris: Dalloz, 2002.
RADBRUCH, Gustav. Introdução à Ciência do Direito. São Paulo: Martins
Fontes, 1999.
RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
REALE, Miguel. O contratualismo – posição de Rousseau e Kant. Revista da
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, v. 37, p. 118-
150, 1942.
RODRIGUEZ, José Rodrigo. Como Decidem as Cortes. São Paulo: FGV, 2013.
ROMANO, Santi. Princípios de Direito Constitucional Geral. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1977.
ROUSSEAU, Jean Jacques. O Contrato Social. 3 ed. São Paulo: Martins
Fontes, 1996.
RUFFÌA, Paolo Biscaretti di. Introduzione al Diritto Costituzionale
Comparato. Milano, Dott. A. Giuffrè Editore, 1988.
SAMPAR, Rene. O papel das Medidas Provisórias no Presidencialismo de
Coalizão Brasileiro. In Constituição, Economia e Desenvolvimento: Revista da
Academia Brasileira de Direito Constitucional. Curitiba, 2012, n. 6, Jan.-Jun.
p. 32-49.
SAMPAR, Rene. Segurança Humana e Efetividade do Humanismo Jurídico.
Disponível em: <http://www.abdconst.com.br/revista3/renesampar.pdf>.
Acesso em: 17/04/2021.
SCHMITT, Carl. O Conceito de Político. Belo Horizonte: Del Rey, 2009.
____. O Guardião da Constituição. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.
____. Teoría de La Constitución. Madri: Alianza Editorial, 1996.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 36ª. ed. rev.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 36ª. ed. rev.
e atual., São Paulo: Malheiros, 2013.
____. Poder Constituinte e Poder Popular. São Paulo: Malheiros, 2000.
SIEYÈS, Emmanuel. O Que é o Terceiro Estado? 4 ed. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2001.
SOBRINHO, Manoel de Oliveira Franco. O Princípio Constitucional da
Moralidade Administrativa. Curitiba: Gênesis, 1993.
SÓFOCLES. A Trilogia Tebana: 8 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 214.
SOMMERVILLE, Jóhann P. Filmer: patriarcha and other writings.
Cambridge, Cambridge University Press, 1991.
STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luiz Bolzan de. Ciência Política e Teoria
Geral do Estado. 3 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.
____. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: uma exploração hermenêutica da
construção do direito. 10 ed. rev. atual e ampl. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2011.
TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 6 ed. São Paulo:
Saraiva, 2000.
TEMER, Michel. Elementos de Direito Constitucional. 22. ed. São Paulo:
Malheiros, 2008.
TOCQUEVILLE, Alexis. A Democracia na América: leis e costumes. São
Paulo: Martins Fontes, 1998.
TUCÍDIDES. História da Guerra do Peloponeso. 4 ed. Brasília: UNB; São
Paulo: Imprensa Oficial. 2001. (Clássicos IPRI).
URBINATI, Nadia. O que torna a representação democrática? Lua Nova, São
Paulo, 67: 191-228, 2006.
WEBER, Max. Ciência e Política: duas vocações. São Paulo: Cultrix, 1968.
____. Economia e Sociedade: fundamentos de sociologia compreensiva.
Brasília: UNB, 2004. (volume 2) ____. Ensaios de Sociologia. 5 ed. Brasília:
Rio de Janeiro: LTC, 1982.
YALE LAW SCHOOL. The Avalon Project. Disponível em:
<http://avalon.law.yale.edu/ancient/twelve_tables.asp>. Acesso em:
17/04/2021.

ZAGREBELSKY, Gustavo. Scambiare la Veste: stato e chiesa al governo


ZAGREBELSKY, Gustavo. Scambiare la Veste: stato e chiesa al governo
dell’uomo. Roma: Laterza, 2010.

Você também pode gostar