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Todos os direitos desta edição reservados à Livraria e Editora Lumen Juris Ltda.
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
F139t Fachin, Zulmar
Teoria do Estado / Zulmar Fachin, Rene Sampar. – 6. ed. – Rio de Janeiro :
Lumen Juris, 2021.
Inclui bibliografia.
Epub 1225kb
ISBN 978-65-5510-835-4
1. Direito e política. 2. Democracia. 3. Direito constitucional. 4. Estado. 5.
Teoria do Estado. I. Sampar, Rene. II. Título. III. Série.
CDD 342
Ficha catalográfica elaborada por Ellen Tuzi CRB-7: 6927
“Ele não é território, nem população, nem
corpo de regras obrigatórias. É verdade
que todos esses dados sensíveis não
lhe são alheios, mas ele os transcende
. Sua existência não é pertencente à
fenomenologia tangível: é da
ordem do espírito. O Estado é, no sentido pleno
do termo, uma ideia. Não tendo outra
realidade além da conceptual, ele só
existe porque é pensado”.
Georges Burdeau. O Estado.
Sumário
Prefácio
Capítulo I - O Estado
1. Origem do Termo
2. Conceito
3. Elementos
3.1 Território
3.2 Povo
3.3 Soberania
3.4 Finalidade
Conclusões
Capítulo II - Origem, Formação e Extinção do Estado
1. Origem do Estado
1.1 Teoria da Origem Familiar
1.2 Teoria da Origem Patrimonial
1.3 Teoria da Força
1.4 Teoria da Origem Contratual
2. Formação e Extinção do Estado
Conclusões
Capítulo III - Afirmação Histórica do Estado
1. Estado Antigo
2. Estado Grego
3. Estado Romano
4. Estado Medieval
5. Estado Moderno
Conclusões
Capítulo IV - Modelos de Estado
1. Estado Absoluto
2. Estado Civil
3. Estado Liberal
4. Estado Social e de Bem-Estar
5. Estado Democrático de Direito
6. Estado Total
7. Estado Totalitário
Conclusões
Capítulo V - Formas de Estado, Formas de Governo e Sistemas de Governo
1. Formas de Estado
1.1 Estado Unitário
1.2 Estado Regional ou Autônomo
1.3 Estado Federal
2. Formas de Governo
2.1 Monarquia
2.2 República
2.3 Despotismo ou Tirania
2.4 Aristocracia
2.5 Oligarquia
3. Sistemas de Governo
3.1 Presidencialismo
3.2 Parlamentarismo
3.3 Diretorial
3.4 Conselhos
Conclusões
Capítulo VI - O Poder Constituinte
1. Poder Constituinte: Fazer e Alterar a Constituição
2. Poder Constituinte e Poderes Constituídos
3. Poder Constituinte Originário
3.1 Noção
3.2 Natureza
3.3 Titular
3.4 Agente
3.5 Formas de Manifestação
3.6 Características
4. Poder Reformador
4.1 Noção
4.2 Natureza
4.3 Titular
4.4 Agente
4.5 Formas de Manifestação
4.6 Características
5. Poder Constituinte Decorrente
6. Poder Constituinte e Poder Judiciário
7. Poder Constituinte Transnacional
Conclusões
Capítulo VII - Estado e Direito
1. Jusnaturalismo
2. Juspositivismo
2.1 Escolas Histórica e Exegética do Direito
2.2 O Estado e a Teoria Pura do Direito
2.3 Jurisprudência dos Conceitos, dos Interesses e dos Valores
3. Ascensão da Constituição Democrática
Conclusões
Capítulo VIII - A Separação dos Poderes
1. A Limitação do Poder Como Característica do Estado Moderno
2. Formulações Teóricas da Separação dos Poderes
2.1 A Contribuição de Aristóteles
2.2 A Contribuição de John Locke
2.3 A Contribuição de Montesquieu
2.4 A Contribuição dos Federalistas
Conclusões
Capítulo IX - Democracia
1. Origem e Conceitos
2. Democracia dos Antigos e dos Modernos
3. Democracia Direta, Semidireta e Representativa
4. Partidos Políticos
5. Sufrágio
6. Vantagens da Democracia e suas Promessas Não Cumpridas
Conclusões
Referências
Prefácio
O livro dos professores Zulmar Fachin e Rene Sampar, por sua temática,
mas, além disso, pela riqueza e precisão de informações sobre a caminhada da
humanidade até chegar ao conceito de Estado, fornece elementos para o
conhecimento preciso da motivação que gerou a necessidade de conceituar o
Estado. Sobre essa questão de fundamental importância, são aqui referidas as
principais colocações teóricas e as circunstâncias políticas e sociais que
levaram Maquiavel, em 1513, a colocar em sua obra máxima, “O Príncipe”,
esta conclusão clara e objetiva, aqui registrada: “Todos os Estados, os
domínios todos que já houve e que ainda há sobre os homens foram e são
repúblicas ou principados”.
A partir dessa conclusão de Maquiavel muitas produções teóricas
aprofundaram o tema, gerando um grande número de teorias, que, com
maior ou menor força, exerceram e continuam exercendo grande influência
nas reflexões sobre o Estado e em sua conceituação. Nesta obra está contido o
registro dessa evolução, com indicação precisa de autores e teorias, podendo-
se afirmar que aqui se encontra o essencial para o conhecimento do Estado e
das implicações das mais influentes conceituações. Assim é que no Capítulo
IV é feita a síntese das mais importantes e influentes concepções sobre os
modelos de Estado, analisando-se as concepções dos seguintes modelos
“Absoluto, Civil, Liberal, Social e de Bem-Estar, Democrático de Direito e
Totalitário”. Tudo isso tem base na evolução histórica e nesta obra estão feitos
os registros teóricos essenciais para a compreensão dessas diferentes
concepções.
A par disso, nesta obra é dedicado um capítulo especial ao exame do
conceito de Poder Constituinte, que é de fundamental importância para que
se chegue à moderna concepção de “Estado de Direito”. E sobre esse aspecto
do Estado existe também aqui uma análise rica e objetiva. Assim é que no
capítulo VII, no qual se estuda a ligação entre Estado e Direito, dedica-se
especial atenção à corrente teórica identificada como “Jusnaturalismo”, para
em seguida fazer-se o estudo do modelo teórico que o sucedeu, que foi o
“Juspositivismo”, culminando com o surgimento do “Estado Democrático”.
Mais adiante, já nas considerações sobre o Estado Democrático, são
registrados os avanços de fato e teóricos, que foram sintetizados na teoria da
“Separação dos Poderes”. Tratando desse tema, esta obra vai às origens
históricas, registrando as colocações de Aristóteles, Locke e Montesquieu.
Desse modo, o que se tem aqui, em relação a esse ponto, é um verdadeiro e
sintético caminhar pela história, enriquecendo os conhecimentos e
fornecendo elementos para reflexões teóricas.
Finalmente, mais um ponto altamente positivo desta obra, que merece ser
aqui destacado, é o relacionamento das noções de Estado e de suas variantes
com as modernas exigências de Democracia. Na realidade, essa temática
recebeu especial atenção nesta obra, que é mais do que uma síntese da “Teoria
do Estado”, pois todo o capítulo IX é dedicado ao estudo e à análise, com
citações oportunas e muito precisas dos mais importantes autores, do Estado
Democrático, indo às fontes históricas dessa concepção. Assim é que, depois
de se fazer o exame comparativo da “Democracia dos Antigos e dos
Modernos” é feita, também com muita precisão, a análise das diferentes
formas de Democracia hoje registradas pelos teóricos do Estado e do Direito,
assim como pelos teóricos políticos. Essas formas, como aqui exposto, são a
Democracia Direta, a Semi-Direta e a Representativa. E quanto a esse ponto é
feita ainda uma análise crítica da Democracia considerando suas vantagens e,
no plano dos fatos, ressaltando aquilo que aqui se denomina “suas promessas
não cumpridas”.
Por tudo o que foi exposto, pode-se afirmar que esta obra é um magnífico
e substancioso estudo do Estado, extremamente valioso para quem deseje não
só o conhecimento do Estado e de seus aspectos particulares, mas também
para que se possa avaliar, com fundamento em dados históricos e teóricos,
quais os desafios para a implantação efetiva do “Estado Democrático de
Direito”, qualificativo constitucional do Estado brasileiro.
1. Origem do Termo
Estado, do latim status, significa condição, posição, ordem. O emprego da
palavra Estado, como sinônimo de sociedade política, é recente. Data de 1513.
Quem se encarregou de lhe propagar foi Maquiavel6, ao iniciar a sua mais
notável obra, O Príncipe: “Todos os Estados, os domínios todos que já houve
e que ainda há sobre os homens, foram, e são, repúblicas ou principados”.
Estava consagrada a expressão. A partir daí, passou-se a falar em État francês,
State inglês, Stato italiano, Staat alemão, Estado português, entre outros.
Mas a ideia de Estado como forma de organização política é mais antiga. A
polis dos gregos e a civitas ou a res publica dos romanos já traduziam a
concepção essencial de Estado. Durante o Império Romano, em sua fase de
expansão, e mais tarde entre os germânicos invasores, os vocábulos imperium
e regnum também passaram a exprimir a noção de Estado, nomeadamente
como organização de domínio e poder.
Aqui se faz necessário um esclarecimento. Quando se fala em Estado,
tornou-se usual fazer remissão ao Estado nacional moderno. Alguns
estudiosos do tema, como Martin Van Creveld7, tendem a considerar que,
antes da Revolução Francesa de 1789 e da Revolução Americana de 1776,
podem ser identificados governos, mas não Estados. Sob esta perspectiva, não
houve, portanto, um Estado grego, mas um governo grego; não houve um
Estado romano, mas um governo romano. Ao longo deste livro, não
adotaremos esta diferenciação. Utilizaremos apenas o vocábulo Estado em
referência a todo tipo de organização político-governamental que disponha
de território, povo, soberania e finalidade.
2. Conceito
Há uma pluralidade de autores que procuraram conceituar o Estado. Em
razão disso e da complexidade do tema, a divergência é acentuada8. Após
constatar a diversidade de conceitos, Dalmo de Abreu Dallari9 observa duas
orientações fundamentais: uma baseada na noção de força e outra que toma
por base a natureza jurídica do Estado.
No conceito de Estado ligado à força não está ausente a preocupação
jurídica, mas o Estado é visto, antes de mais nada, “como força que se põe a si
próprio e que, por suas próprias virtudes, busca a disciplina jurídica”. Nesta
linha, o Estado pode ser conceituado como “força material invisível, mas
limitado e regulado pelo direito” (León Duguit); “unidade de dominação”
(Heller); “institucionalização do poder” (Burdeau); “monopólio do poder”
(Gurvitch) e “monopólio da força legítima” (Max Weber).
Outras teorias, porém, abordam o tema sob o ponto de vista da natureza
jurídica do Estado. Por esta noção, não se ignora a força, mas se dá primazia
ao elemento político: tenta-se mostrar que todos os demais fatores (elementos
materiais) têm existência independente fora do Estado e só se compreendem
como componentes do Estado após sua integração em certa ordem jurídica. O
Estado é tido como uma organização. E, como organização precipuamente de
pessoas, o Estado passou a ser uma corporação dotada de território e governo.
Após essas observações, Dallari10 conceitua o Estado como “ordem
jurídica soberana que tem por fim o bem comum de um povo situado em
determinado território”. Nota-se que o autor destaca a finalidade (ou seja, o
bem comum) que, para ele, constitui-se em elemento do Estado. Tal
concepção designada por Dalmo de Abreu Dallari não assume o modelo de
uma unidade política e soberana de Estado que foi designado no Tratado de
Vestfália de 1648, indo além ao dispor sobre um elemento teleológico
(finalístico) que constitui, na visão de Dalmo Dallari, a essência estatal.
Nos últimos quatro séculos, diversas concepções se desenvolveram para
identificar a natureza do Estado. Citem-se, a partir de Jorge Miranda11, as
correntes dos idealistas (o Estado como finalidade para algo) e dos realistas (o
Estado como mera existência temporal), dos objetivistas (o Estado como
realidade exterior humana) e dos subjetivistas (o Estado como parte das
relações humanas), dos atomistas (o Estado tido como conjunto de
indivíduos) e dos organicistas (o Estado é uma entidade específica ou com
vontade própria), dos contratualistas (o Estado como produto da vontade
humana) e dos institucionalistas (o Estado como sentido ou instituição), dos
monistas (o Estado como titular do poder político) e dos dualistas (o Estado
como instrumento dos verdadeiros donos do poder), dos normativistas (o
Estado como realidade normativa) e dos não normativistas (o Estado não
redutível às normas jurídicas, isto é, segundo uma visão sociológica).
3. Elementos
Tornou-se tradicional entre os pensadores afirmar que os elementos
constitutivos do Estado são três: território, povo e soberania. Têm sido
acrescentados outros atributos, e é neste sentido que variam as interpretações.
Assim, Anthony Giddens12 aduz que um Estado é possível onde há um
arquétipo político (instituições governamentais, administrativas e políticas),
que governa sobre um dado território, possuindo autoridade sustentada por
um sistema legal e dispõe de capacidade de usar a violência de modo a
implementar suas políticas.
Tal conceito é compartilhado por Norberto Bobbio13. Para este autor, “do
ponto de vista de uma definição formal e instrumental, condição necessária
para que exista um Estado é que sobre um determinado território se tenha
formado um poder em condição de tomar decisões e emanar os comandos
correspondentes, vinculatórios para todos aqueles que vivem naquele
território e efetivamente cumpridos pela grande maioria dos destinatários na
maior parte dos casos em que a obediência é requisitada”.
No âmbito deste estudo, aceitar-se-á a finalidade como o quarto elemento.
Isto significa que o Estado deve possuir diretrizes que condicionam o seu agir
e existir, variando tais linhas mestras segundo cada autor e ideologia
governamental. Se o Estado possui uma finalidade, que coloca todo o aparato
estatal nos trilhos de uma teleologia comum, o Direito é o seu meio, ou seja, a
construção do Estado e o desenvolvimento de suas competências somente
podem ocorrer mediante regras, aprovadas mediante um critério
preestabelecido e publicadas para o conhecimento de todos.
Em outra palavras, o Estado de Direito, em suas peculiaridades geográficas,
é a estrutura que legitimamos – e lhe justificamos a existência – por creditar
ser a mais adequada para enfrentar os dilemas dos últimos séculos. Ele, neste
sentido, é realidade e promessa: é artifício humano que pretende canalizar o
poder do agir humano, mas também artífice de uma condição social que
possibilite a convivência mútua e coletiva.
3.1 Território
O primeiro elemento constitutivo do Estado é o território. Trata-se do
espaço físico onde o Estado se ergue, ou seja, a área sobre a qual incide o
poder estatal. Em termos jurídicos, é o locus no qual o Estado exerce a sua
jurisdição. A organização judiciária no Estado respeita este critério territorial
para distribuir competências, estabelecendo tribunais (nacionais, regionais e
estaduais), circunscrições judiciárias e comarcas.
A ideia de território, todavia, é mais ampla do que parece num primeiro
momento. Graças ao princípio da extraterritorialidade, além do território
propriamente dito, as normas jurídicas estabelecem extensões geográficas
fictícias como as embaixadas, os navios e aeronaves militares, o mar territorial
e o espaço aéreo14.
Thomas Fleiner Gerster15 lembra que o território é elemento valioso para a
Teoria do Estado, quando se pretende analisar um determinado contexto.
Assim, é correto afirmar que um país montanhoso se organiza de modo
distinto de um país com território plano; um país marcado por desertos
precisa lidar com problemas distintos de outro com florestas em abundância;
ilhas possuem organização peculiar, e um país continental como o Brasil
precisa lidar com determinadas questões que não constituem problemas para
a Eslovênia16, por exemplo.
É preciso pontuar que a divisão territorial dos países está em constante
transformação. No século XX, muitos países nasceram e outros deixaram de
existir, especialmente na Europa, que ainda hoje possui muitas regiões que
lutam por sua independência, como é o caso da Catalunha, na Espanha. Tais
movimentos separatistas podem ser vistos até mesmo no Brasil, como aquele
que busca seccionar os Estados do Sul (Paraná, Santa Catarina e Rio Grande
do Sul) para a formação de um país independente. É necessário que se diga,
porém, que este tipo de manobra é vedada pela ordem jurídica estabelecida na
Constituição de 1988. O caput do artigo 1º do texto constitucional disciplina
que a República Federativa do Brasil é formada pela união indissolúvel dos
Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Em igual medida, o artigo 60,
parágrafo 1º, inciso I, proíbe a emenda constitucional tendente a abolir a
forma federativa de Estado. Portanto, seria necessário um novo pacto
constitucional para a separação do território brasileiro.
3.2 Povo
O segundo elemento constitutivo do Estado é o povo, isto é, o conjunto de
indivíduos natos ou naturalizados possuidores de vínculos com o Estado em
razão de sua comum nacionalidade. Sem o povo, o Estado não existe, embora
possa haver povo sem Estado, como é o caso dos palestinos, dos bascos, dos
ianomâmis, dos curdos. Neste caso, denominam-se apátridas todos os povos
que estão nesta condição.
O conceito de povo tem suscitado divergências. Não raro, confunde-se
povo com nação ou com população. A ideia de povo é eminentemente
jurídica, pois se refere àqueles que outorgaram o poder para a Assembleia
Nacional Constituinte criar a sua Constituição e para os representantes
atuarem em prol do que ela instituiu. Por isto o vocábulo povo tem natureza
jurídica, em razão de ser competência do Direito estabelecer o vínculo povo-
Estado. Por sua vez, nação é utilizado de modo geral pela sociologia e envolve
valores como cultura, usos, costumes, tradições e ideais. Já o termo população
é um conceito demográfico e estatístico, em que se incluem todos os
indivíduos (nacionais, estrangeiros ou até apátridas) que estejam em
determinado território.
Em sentido político, a noção de povo compõe etimologicamente termos
usados há milênios, como república (res publica, que significa coisa do povo)
ou ainda democracia (demos kratia, autoridade exercida pelo povo). Registre-
se que a Constituição brasileira, em seu preâmbulo, fala em “representantes
do povo”. O artigo 1º, parágrafo único, afirma que todo o poder emana do
povo, que poderá exercê-lo por seus representantes ou diretamente, nas
hipóteses respaldadas pela própria Constituição.
Friedrich Müller17 lembra que esse é um daqueles termos usualmente
empregados, mas de complexa conceituação. Por essa razão, o autor aborda a
ideia de povo sob quatro aspectos: a) como povo ativo, que é o conjunto de
cidadãos natos que podem exercer o sufrágio e eleger os representantes de seu
Estado; b) como instância global de atribuição de legitimidade, que é o
sentido de cidadão conferido desde a formação do Estado moderno liberal; c)
como ícone, cujo desiderato é utilizar o termo povo como justificação a
determinadas políticas e teorias de justiça em que se estabelece um conceito
standard de povo, sem levar em conta as inúmeras diferenças entre as pessoas
e os grupos; d) e como destinatário das pretensões civilizatórias do Estado,
cujo critério de aferição é a garantia dos direitos humanos.
As três primeiras espécies possuem sentidos excludentes, ao menos pelo
fator da nacionalidade. O quarto aspecto é o mais abrangente, pois seu
critério de aferição é a humanidade que existe em cada pessoa, seja nacional,
estrangeiro ou apátrida. Ao demonstrar quão ampla pode ser a noção de
povo, Müller conclui que deve ser buscada uma interpretação na qual tal
conceito abranja o maior número de pessoas. Isso é necessário para que os
direitos humanos sejam concretizados, condição imprescindível para a
legitimidade de qualquer democracia.
Vinculada ao referido tema, uma questão de repercussão global é a
apatridia, isto é, grupos ou etnias que não são reconhecidos como nacionais
por nenhum país. Hannah Arendt, importante pensadora política do século
passado, destacou que os apátridas despontaram no século XX como um
novo grupo humano, a despeito de sua existência ter sido ignorada até então.
Nas palavras de Arendt18: “Desprovidos de importância, aparentemente
apenas uma anomalia legal, o apátrida recebeu atenção e consideração tardias,
quando, após a Segunda Guerra Mundial, sua posição legal foi aplicada
também aos refugiados que, expulsos de seus países pela revolução social,
eram desnacionalizados pelos governos vitoriosos”.
Conforme apontou a pensadora, o tema adquiriu relevância apenas a partir
de 1951, quando foi adotada uma Convenção pela Conferência das Nações
Unidas de Plenipotenciários sobre o Estatuto dos Refugiados e Apátridas,
convocada pela Resolução n. 429 (V) da Assembleia Geral das Nações Unidas,
de 14 de dezembro de 1950. A apatridia constitui ainda hoje uma anomalia
legal, uma vez que é responsabilidade do Estado prover a garantia dos direitos
de seus cidadãos. Como os apátridas não possuem um Estado, estão lançados
no mundo à margem do reconhecimento jurídico de seus direitos e de
proteção adequada.
3.3 Soberania
O terceiro elemento integrante do Estado é a soberania, ou seja, o poder
estatal de mando de última instância. Poucos temas têm gerado tão profundas
disputas entre os estudiosos quanto tal conceito.
A formação do Estado, do ponto de vista do poder, exige o seu
reconhecimento como ordem jurídica. Conforme exposto por Dalmo
Dallari19, uma ordem jurídica não é a mera existência de um conjunto de leis,
mas se exige a sua disposição de modo sistêmico, no afã de regular os diversos
elementos que compõem a sociedade, e que tal arranjo tenha caráter
permanente. Tal organização recebe do direito a condição de pessoa jurídica,
assumindo, com efeito, a salvaguarda de direitos determinados e também a
possibilidade de exigir a observância de deveres aos cidadãos.
A partir de então surge o tema da soberania. A ordem jurídica constituída
busca o máximo de eficácia tanto dos cidadãos que a compõem (soberania
interna) como no que diz respeito em sua relação com outros Estados
independentes (soberania externa). É o que Luigi Ferrajoli20 aponta como
suprema potestas superiorem non recognoscens (poder superior que não
reconhece outro acima), ou seja, interpreta-se o poder soberano estatal com
base em sua formação de Estado nacional moderno do século XVI. Duas
noções, portanto, caracterizam-na: a supremacia interna e a independência
externa.
A ideia de soberania interna aduz para a faculdade de o poder constituinte
originário (o povo) estabelecer a organização de seu Estado segundo o seu
próprio alvedrio, desde que não viole os objetivos internacionais assumidos,
em especial aqueles que garantem a proteção dos direitos humanos. Essa
capacidade se materializa no monopólio de legislar o seu próprio Direito e
regular a coação física em seu território. A soberania no plano internacional,
por sua vez, reconhece os Estados como iguais e independentes, desde que,
novamente, não violem os objetivos globais.
Diversos autores pontuaram a respeito da soberania. Jean-Jacques
Rousseau21, a exemplo de Jean Bodin e Thomas Hobbes, foi um destes
teóricos. Como se sabe, fez derivar da vontade geral a lei e o poder. Para ele, a
soberania consiste no exercício da vontade geral, que não pode ser
transmitida. Daí por que afirmava ser a soberania inalienável e indivisível.
Georg Jellinek22, um dos maiores vultos do século XX, não fala em
soberania, mas em poder supremo de governo. Para ele, o Estado é uma
comunidade com território, povo e poder supremo de governo próprio. A
totalidade desses três elementos é necessária para a existência do Estado.
Quando falta algum deles, não há Estado, mas apenas formas subordinadas a
um Estado. Em suas palavras: “Un Estado es una comunidad com propio
territorio, propios súbditos y propio poder supremo de gobierno. La totalidad de
estos tres elementos es necesaria para la existencia del Estado; cuando falta
alguno de ellos, no hay Estado, sino tan sólo formas subordinadas a un
Estado”.
Já Luigi Ferrajoli23 lembra que, na atualidade, a soberania popular se
encontra limitada pela ordem constitucional democrática, cujo intento é
salvaguardar direitos. Ao olhar para seu país de origem, a Itália, o autor
adverte que “a bem da verdade, as constituições continuam falando em
‘soberania popular’; porém, isso não passa de uma simples homenagem verbal
ao caráter democrático-representativo dos atuais ordenamentos”.
E complementa: “La sovranità appartiene al popolo”, conforme está escrito
no primeiro artigo da Constituição italiana. Porém, logo em seguida está
escrito que essa mesma soberania é exercida “nelle forme e nei limiti della
Costituzione”, isto é, nem mesmo o povo é soberano no antigo sentido de
superiorem non recognoscens ou de legibus solutus, no qual tudo era
permitido. Ferrajoli comenta também que nem mesmo a maioria, que pode
ser determinante no processo legislativo de construção da norma jurídica,
pode ser detentora plena da soberania, pois a garantia dos direitos de todos,
incluindo-se aqui maiorias e minorias, tornou-se o traço mais característico
do Estado Democrático de Direito.
3.4 Finalidade
Há, no entanto, autores que acrescentam outro elemento aos
anteriormente analisados: a finalidade. Entre eles, encontram-se Alexandre
Groppalli24, Dalmo de Abreu Dallari e Manuel García-Pelayo. Gropalli
inseriu no próprio conceito de Estado a finalidade ao defini-lo como “pessoa
jurídica soberana constituída de um povo organizado, sobre um território,
sob o comando de um poder supremo, para fins de defesa, ordem, bem-estar
e progresso social”.
Sustentando a mesma tese, Dalmo de Abreu Dallari25 entende que o
Estado, como sociedade política, tem um fim geral e constitui-se em meio
para que os indivíduos e as demais sociedades possam atingir os respectivos
fins particulares. O fim do Estado é a busca do bem comum de certo povo,
que vive em determinado território.
Manuel García-Pelayo26 também identifica a finalidade como elemento
constitutivo do Estado. Para ele, o Estado é uma organização que tem por
objeto assegurar a convivência pacífica e a vida histórica de um grupo
humano.
De modo geral, Thomas Fleiner-Gerster27 classifica os defensores da
vertente finalística em três grupos: tarefa de proteção externa do Estado
(defender a população contra ataques de países estrangeiros e estabelecer
relações internacionais), tarefa de proteção interna do Estado (garantir a
segurança das pessoas com o desenvolvimento das polícias) e Estado de bem-
estar social (que congrega objetivos que variam de acordo com cada
pensador, mas que visa, em linhas gerais, proporcionar os meios
fundamentais para a existência e desenvolvimento da sociedade).
É oportuno verificar que os autores citados identificam, portanto, objetivos
que serão buscados durante a afirmação da legitimidade do Estado e de suas
instituições. Na modernidade, a finalidade precípua atribuída ao ente estatal é
a de meio para a construção e desenvolvimento de sociedades, assegurando a
integridade física e patrimonial dos indivíduos, em uma visão mínima de
Estado, ou ainda buscando a justiça social, competência essa de um arcabouço
ideológico e político mais intervencionista, na qual não se estipula tão
somente as regras basilares de organização social e política, mas também se
busca garantir algum fragmento de igualdade entre os cidadãos.
Em ambos os casos, refratário de um modelo anárquico que nega a
autoridade como princípio balizador na construção social, subjaz o Direito
como alicerce para a construção do Estado e instrumento delimitador do
desenvolvimento das relações privadas, coletivas e políticas. Não é um
instrumento de emancipação, haja vista que também o Direito pode ser usado
como quimera para acobertar injustiças, como não garantir prerrogativas a
classes com menor poder de representação, ou até hecatombes, como ocorreu
no Holocausto dos judeus na Segunda Guerra Mundial.
Ao longo do século XX, o apogeu do constitucionalismo no Ocidente
fortaleceu o primado do Estado de Direito como o terreno mais seguro ao
florescer da vida em sociedade, e sua finalidade se voltou para a guarida de
direitos fundamentais dos cidadãos com base nos ideais democráticos que
vicejaram nas últimas décadas.
A Constituição brasileira de 1988 estabeleceu, em seu artigo 3º, as
finalidades ou objetivos fundamentais de nossa união republicana. São eles: a)
construir uma sociedade livre, justa e solidária; b) garantir o desenvolvimento
nacional; c) erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades
sociais e regionais; d) promover o bem de todos, sem preconceitos de origem,
raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
O desafio ao longo deste século é o de fortalecer essa estrutura
fundamental em busca de maior liberdade e igualdade aos cidadãos, além da
paz nas relações entre Estados.
Conclusões
1. O termo “Estado” foi empregado pela primeira vez por Nicolau
Maquiavel, em 1513, em seu livro O Príncipe.
2. O conceito de Estado tradicionalmente aceito é aquele oriundo da Paz
de Vestfália (1648), cuja noção geral é a de um poder unitário e soberano que
se irradia sobre um determinado território. Trata-se da estrutura fundamental
do Estado nacional moderno.
3. Adotam-se quatro elementos caracterizadores do Estado moderno:
a) Território: designa a área sobre a qual incide o poder do Estado. Pode
ser tanto uma área geográfica (território físico do Estado) como fictícia
(área determinada pelo Direito, como as embarcações e aeronaves).
b) Povo: conceito usualmente adotado nos ordenamentos jurídicos, remete
ao conjunto de pessoas natas ou naturalizadas que possui vínculos
jurídicos e políticos com o Estado.
c) Soberania: é o poder do Estado. Divide-se em soberania interna (que
garante o monopólio normativo e coativo nos limites do território
estatal) e externa (igualdade e independência entre todos os Estados no
plano internacional).
d) Finalidade: marca o propósito ou objetivo daquela sociedade política,
que pode ser o bem comum, a garantia da liberdade, a justiça social, a
salvaguarda de direitos fundamentais gerais, o desenvolvimento
econômico, dentre muitos outros.
1. Origem do Estado
1.1 Teoria da Origem Familiar
Para uma vertente da historiografia e teoria do Estado, a família é
considerada a cellula mater da sociedade. A partir dela, formaram-se
pequenos agrupamentos sociais que, ampliados e conjugados entre si, deram
azo a grandes sociedades como o Estado.
Aristóteles28 é um arauto dessa forma de conceber o surgimento da esfera
política. Em seu famoso livro A Política, o estagirita29 afirma que o Estado,
forma mais elevada de comunidade humana, teve seu surgimento da
conjugação de famílias: “Quando várias famílias se unem, constituem a
primeira sociedade, que é a aldeia. Quando várias aldeias se unem numa
única comunidade, grande o bastante para ser autossuficiente, configura-se a
cidade, ou Estado”. Para ele, a finalidade da fundação do Estado está em ser
capaz de “assegurar o viver bem”, ou seja, uma dimensão que ultrapassa a
mera existência biológica.
Assim, a cidade-Estado é uma forma natural de associação, assim como o
eram as associações primitivas das quais ela se originou”. A família para
Aristóteles é a fonte da qual se originou o Estado.
Afirma ainda Aristóteles30 que o Estado é uma criação da natureza e que o
homem é, por natureza, um animal político (zoon politikon). E aquele que não
tem cidade nem Estado, por natureza e não por mero acidente, ou é muito
mau ou muito bom, ou subumano ou super-humano. Aquele que for incapaz
de viver em sociedade, ou que não tiver necessidade disso por ser
autossuficiente, será uma besta ou um deus, não uma parte do Estado. E,
preocupado com a justiça, afirmava que o homem, quando perfeito, é o
melhor dos animais; quando apartado da lei e da justiça, porém, é o pior de
todos, pois a justiça é “o vínculo dos homens no Estado”.
Para Aristóteles, portanto, a dignidade humana somente se constituía na
polis, onde os homens eram verdadeiramente livres. É importante lembrar
que para o estagirita apenas os chefes de família deveriam participar das
atividades civis, mantendo-se todos os demais na privatividade do lar. Por
qual razão somente o homem e ninguém mais poderia integrar a ágora e
participar das discussões políticas? Porque somente aqueles que não se
preocupavam com o trabalho e a sobrevivência eram verdadeiramente livres,
e a polis era um locus para pessoas livres. Assim, o homem, animal político,
nasceu para viver em sociedade. E, de todas as formas de sociedade, a mais
importante é o Estado, à qual todos se acham vinculados.
Sobre o pensamento aristotélico, sustenta Sahid Maluf31 que, “em regra, o
Estado se forma pela reunião de várias famílias. Os primitivos Estados gregos
foram grupos de clãs. Estes grupos formavam as gens; um grupo de gens
formava a fratria; um grupo de fratrias formava a tribu, e esta se constituía
em Estado-cidade (polis). O Estado-cidade evoluiu para o Estado nacional ou
plurinacional”.
Em suma, sustentam os adeptos de tal teoria que o Estado é resultado da
ampliação da sociedade familiar. Há, nesse sentido, duas correntes
doutrinárias: a patriarcal afirma que o Estado nasceu do núcleo familiar,
submetido à autoridade do pai; enquanto a matriarcal defende que o Estado
nasceu de um núcleo familiar cuja autoridade era exercida pela mãe.
O pai, ao longo do tempo, foi considerado o chefe da sociedade conjugal.
E, com a ampliação da família, sua autoridade passou a ser exercida sobre
todo o agrupamento social. Remota no tempo, e hoje bastante criticada, a
teoria da origem patriarcal do Estado pode ser aceita não como critério
absoluto, mas como regra.
A teoria da origem familiar do Estado tem, porém, outra concepção. Forte
corrente doutrinária sustenta que a origem do Estado está na autoridade da
mãe e não na do pai. Os defensores da teoria matriarcal, ou matriarcalística,
afirmam que o primeiro núcleo familiar foi dominado pela mãe, e isto por
uma razão de natureza fisiológica: a maternidade, ao contrário da
paternidade, é sempre certa (mater semper certa).
A este respeito, vejamos a lição de Sahid Maluf32: “assim, como era
geralmente incerta a paternidade, teria sido a mãe a dirigente e autoridade
suprema das primitivas famílias, de maneira que o clã matronímico, sendo a
mais antiga forma de organização familiar, seria o fundamento da sociedade
civil”.
A referida tese também é contestada, pois, segundo Del Vecchio33, “ainda
que em tais casos a mãe tenha representado o centro da família, não há provas
de que ela haja exercido um poder igual ao do pater-familias”. Não se nega a
certeza da maternidade e que a mãe tenha representado o núcleo da unidade
familiar. Todavia, apesar disso, a mãe não exerceu poder sobre a família. Isso
foi feito, certamente, pelo pai.
A crítica que sofre a teoria da origem familiar do Estado, tanto no seu
desdobramento patriarcal quanto matriarcal, consiste em que se estaria
confundindo origem do Estado com origem da sociedade. A família seria uma
unidade social; o Estado, uma unidade política. Logo, a família teria dado
origem à sociedade e não ao Estado.
Tal crítica é bem sintetizada por Darcy Azambuja34: “que a sociedade em
geral, o gênero humano, deriva necessariamente da família, é fora de toda
dúvida e por isso se diz com razão que a família é a célula da sociedade. Não
se pode, porém, aplicar o mesmo raciocínio ao Estado. Não é de todo
improvável que em alguma região da terra o desenvolvimento de uma família
tenha dado origem a um Estado determinado. Esse processo, no entanto, não
foi geral”.
Nesse sentido, embora haja alguma divergência na tese que sustenta a
família como gênese fundamental do Estado, parece não haver dúvidas de que
a sociedade familiar deu origem à sociedade civil.
Conclusões
1. Quatro são as origens mais conhecidas do Estado:
a) Familiar: a sociedade surgira de famílias que se constituíram em tribos e
povoados.
b) Patrimonial: as pessoas se uniram com o propósito de aumentar as
especialidades laborais e facilitar a sobrevivência.
c) Pela força: o surgimento do Estado ocorreu para a salvaguarda da
integridade física de seu povo.
d) Contratual: o Estado é oriundo de um pacto entre todos os cidadãos.
2. Como na atualidade o território do planeta foi todo mapeado, a
formação de um novo Estado demanda a extinção de outro. Logo, nascimento
e morte de Estados são momentos de um mesmo ato.
3. As causas extintivas de Estado mais comuns são: a anexação forçada (a
exemplo dos países anexados pela aliança do eixo), a absorção voluntária
(como ocorreu com a Alemanha após a queda do muro de Berlim), a fusão (a
exemplo do Iêmen), a dissolução voluntária (a exemplo da Tchecoslováquia e
do Sudão) e a dissolução involuntária (como ocorreu com a Iugoslávia).
1. Estado Antigo
O Estado antigo é também chamado Estado arcaico, Estado oriental ou
Estado teocrático. Tinha cunho eminentemente religioso, místico. Remonta
há cerca de 3000 anos antes da Era Cristã e se formou na região da Baixa
Mesopotâmia, às margens dos rios Tigre e Eufrates, na extensão do Rio Nilo
na África oriental e na América do Norte e do Sul pré-colombianas. Em rigor,
existiram vários Estados na Antiguidade, todos com características
semelhantes.
Podem-se colher na doutrina as principais características que marcaram o
Estado Antigo: a) religiosidade: o governante exercia o poder em nome da
vontade de uma divindade; b) concentração de poderes: um mesmo
governante acumulava as funções militar, judicial, sacerdotal e de coleta de
impostos, denotando assim a natureza unitária do poder; c) heterogeneidade:
era formado e mantido pela força das armas; d) instabilidade territorial: a
base territorial do Estado não era definida – aumentava ou diminuía
conforme as conquistas ou as derrotas do governante; e) não eram Estados
nacionais, mas agrupamentos de pessoas que reuniam diferentes raças
conquistadas e escravizadas; f) diferenças de classe: os nobres, os chefes
militares e os sacerdotes de culto nacional gozavam de regalias, enquanto os
párias e os escravos viviam à margem da lei; g) confusão entre as ideias de
família, Estado, religião e organização industrial.
Dessas características, duas são destacadas por Dalmo de Abreu Dallari55: a
natureza unitária e a religiosidade. De um lado, “o Estado Antigo sempre
aparece como uma unidade geral e não admite qualquer divisão interior, nem
territorial nem de funções. A ideia da natureza unitária é permanente e
persiste durante toda a evolução política da Antiguidade”.
Dallari também constata a marcante influência religiosa, visto que a
autoridade dos governantes e as normas de comportamento individual e
coletivo eram tidas como expressão da vontade de um poder divino. Esse
cunho teocrático significa estreita relação entre o Estado e a divindade. Isto
pode ocorrer de duas formas diferentes: a) o governo é unipessoal, e o
governante é considerado um representante do poder divino, pois se
confundia, às vezes, com a própria divindade; b) o poder do governante é
limitado pela vontade da divindade cujo veículo é um órgão especial: a classe
sacerdotal. Seguindo essa mesma linha de raciocínio, Fustel de Coulanges56
arremata: “se nós nos transportarmos, em pensamento, para o seio dessas
antigas gerações de homens, encontraremos em cada casa um altar, e ao redor
deste altar, toda a família reunida”.
Por outro lado, Darcy Azambuja57 recorda que os agrupamentos viviam
em contínuo estado de guerra entre si, sobrevivendo aqueles que possuíam o
mínimo de organização política. Assim, “as sociedades primitivas, ainda mais
do que as modernas, viviam em estado permanente de luta, contra os grupos
vizinhos e contra a natureza para obtenção de alimentos. Nessa luta, só os
grupos organizados, isto é, os que possuíam uma autoridade que os orientasse
e dirigisse é que poderiam sobreviver; os outros sucumbiriam fatalmente”. A
falta de uma autoridade central, que dirigisse as forças sociais do grupo contra
o inimigo a vencer ou os objetos a conquistar, determinaria a derrota dessa
sociedade anárquica e inorgânica.
Assim, sob o ponto de vista político, a constituição de um governo, ou seja,
uma autoridade com poder e força suficiente para conduzir as ações de um
povo dentro de um território foi elemento preponderante na formação das
sociedades. Isso se justifica em virtude de não haver organização social sem
poder, e a distribuição, organização, legitimação e exercício desse poder é o
que diferencia as comunidades humanas. Firme em tal propósito, lembra
Eduardo Bittar58 que o poder necessita de algo mais além da própria força,
pois ele age de modo estratégico na relação entre os homens. Por conseguinte,
o poder é algo distinto da mera força ou emprego da violência.
Em uma análise mais detalhada do aspecto histórico da ação
governamental, Martin Van Creveld59 fragmenta o Estado Antigo em dois
grupos. O primeiro é o das tribos sem governantes (ou sociedades acéfalas),
cuja característica proeminente é o da incapacidade de amplas ações
coordenadas ante a falta de liderança governamental com autoridade sobre
todos. Por não haver um governo que estabelecesse conexão entre
agrupamentos, a família ou clã era a máxima extensão que essas tribos
atingiam, tendo o homem adulto como seu porta-voz. O embrião do Direito
já estava presente mesmo nessa forma primitiva de Estado: as leis eram
eminentemente consuetudinárias e todos os direitos e obrigações decorriam
das relações de parentesco. Na hipótese de violação das normas de
organização social, cabia ao homem o julgamento e aplicação da sanção que
era pautada somente na persuasão, haja vista inexistir uma instituição
policial. Em aldeias mais avançadas, o papel decisório era de competência de
uma assembleia constituída por anciãos.
Por sua vez, as tribos com governantes (também denominadas de chefias)
alcançaram maior complexidade em sua organização pela existência de
indivíduos que se autoproclamavam no direito de governar e exercer o papel
de sumo sacerdotes. Creveld comenta que o fragmento de governo surgiu
quando houve a adesão obediente dos indivíduos ao governante,
independente da relação de parentesco. Isso permitiu que as tribos se
tornassem numericamente maiores, o que significou maior especialização na
divisão do trabalho, permitindo a criação de exércitos, por exemplo. Outra
consequência da expansão da tribo foi a instituição de tributos sobre o
produto do trabalho ou sobre o uso de terras e equipamentos rudimentares.
Oportuno verificar ainda que a extensão da relação de mando e obediência
para além das relações de parentesco fortaleceu o aspecto impessoal do
governo, conduzindo a tribo a se dividir socialmente. Assim, abaixo dos
governantes, havia a classe dos privilegiados, formada basicamente por seus
parentes60. A terceira e última classe era a dos plebeus, constituída de
trabalhadores em geral.
Logo, se por um lado há um traço religioso flagrante nas ações que
moviam as sociedades antigas, é inolvidável lembrar o traço governamental
que se estabeleceu nessas comunidades, dada a necessidade de algum poder
organizar a vida coletiva.
2. Estado Grego
A cidade-Estado se distingue das formas de organização antigas devido a
seu caráter de durabilidade ou permanência. Pode-se encontrar até hoje os
edifícios construídos em muitas cidades-Estados espalhadas pelo mundo.
Nelas, havia ao menos um mercado, uma praça, um edifício de poder e
muitos habitantes que não trabalhavam no campo.
A Grécia foi o berço da filosofia, em que pontificaram Sócrates, Platão e
Aristóteles. Ali, as classes mais privilegiadas puderam viver a democracia. Em
Atenas, por exemplo, as pessoas se reuniam em praça pública (ágora) para
discutir questões da coletividade, mas em especial para contar seus feitos em
busca de notoriedade e imortalidade. Embora se saiba que apenas uma
parcela dos atenienses tivesse direito à voz, especificamente os chefes de
família, o debate existia e aquele tempo tem servido de inspiração para muitos
estudiosos.
Oportuno mencionar que o termo cidade-Estado tem uso semelhante a
Urbe61, isto é, a extensão urbana edificada. Já o termo polis, muito utilizado
para se referir a Atenas em seu período democrático, conferindo-se destaque
a Sócrates, Platão e Aristóteles, não era propriamente a cidade, “e sim os
atenienses”62, isto é, o termo remetia à organização da convivência de agentes
dialógicos, tendo seu verdadeiro espaço situado entre esses falantes que
conviviam segundo tal propósito. A principal função da polis era manter um
espaço público duradouro que sobrevivesse ao tempo e que registrasse as
histórias por meio de grandes poetas como Homero, Hesíodo, Heródoto,
Sófocles e outros.
A polis primitiva tem sua origem no período homérico, há quase três mil
A polis primitiva tem sua origem no período homérico, há quase três mil
anos, após o início da ocupação da península balcânica pelos povos Ageus,
Jônios e Fólios. A celebrada democracia grega surge apenas entre os séculos V
e IV a.C., e resulta diretamente do governo de Sólon, poeta e legislador grego,
que em 594 a.C. estabeleceu leis gerais de organização das diversas famílias
que constituíam a cidade. A Constituição de Sólon, como é conhecida,
mostrou-se inovadora por ter congregado a oligarquia (Conselho de
Aerópago, grupo que tomava as maiores decisões estatais), aristocracia (os
melhores que seriam os magistrados do poder executivo) e a democracia
(sistema judicial composto por cidadãos de Atenas, escolhidos mediante
sorteio. O número de cidadãos variava entre 501, 1001 e 1501, de acordo com
a gravidade do crime).
François Châtelet63 aponta a grande contribuição grega desse período: a
criação da lei, fator revolucionário do ponto de vista da organização social e
política. Se outrora as decisões coletivas brotavam de julgamentos secretos e
particulares, a legislação passou a ser concebida por um ou mais homens e
expressa em textos claros e públicos. Nas palavras do historiador francês, a lei
“é provavelmente a invenção política mais notória da Grécia clássica: é ela que
empresta sua alma à Cidade, quer essa seja democrática, oligárquica ou
monárquica”.
Já o sucessor de Sólon, Clístenes, criou instituições coletivas que
fomentaram a participação cidadã, além de retirar, em parte, o poder dos
chefes de família. A democracia na cidade-Estado ateniense era regida pela
isonomia (todos eram iguais perante a lei) e a isegoria (todos tinham o direito
de exprimir seu ponto de vista, que seria analisado antes de se tomar
decisões).
Châtelet64 lembra também que a democracia atingiu seu auge na segunda
metade do século IV a.C., quando se estabeleceram reformas para estender a
isonomia e a isegoria a todos os homens nascidos em Atenas. As
municipalidades agrupadas em tribos passaram a ser administradas pelo
Conselho, garantindo a participação de todos os cidadãos. E todas as tribos
reunidas se vinculavam ao poder central da Assembleia Geral dos Cidadãos,
que se reunia periodicamente e tomava decisões por maioria. A Assembleia
tinha a competência para resolver as questões gerais de maior importância,
como editar decretos, eleger os magistrados e designar membros para a
câmara de justiça.
As ideias políticas fervilhavam nesse período graças à Constituição de
Atenas, materialização da democracia grega. Relata Sahid Maluf que, ao
deixar de ser órgão principal do Estado, o Conselho passou a ser eletivo e
subordinado à Assembleia dos Cidadãos. As magistraturas tornaram-se
temporárias; os governantes eram escolhidos e nomeados pela Assembleia
Geral, para mandato de um ano. Os cidadãos investidos em funções públicas
eram obrigados a prestar contas periódicas, e, quando assim não
procedessem, eram citados diante da Assembleia popular65.
É célebre o discurso de Péricles, filho de Xântipos, imortalizado por
Tucídides66, na obra História da Guerra de Peloponeso. Em determinado
momento, Péricles trata dos diferenciais que constituíam a democracia
ateniense: “vivemos sob uma forma de governo que não se baseia nas
instituições de nossos vizinhos; ao contrário, servimos de modelo a alguns ao
invés de imitar outros. Seu nome, como tudo depende não de poucos mas da
maioria, é democracia. Nela, enquanto no tocante às leis todos são iguais para
a solução de suas divergências privadas, quando se trata de escolher (se é
preciso distinguir em qualquer setor), não é o fato de pertencer a uma classe,
mas o mérito, que dá acesso aos postos mais honrosos; inversamente, a
pobreza não é razão para que alguém, sendo capaz de prestar serviços à
cidade, seja impedido de fazê-lo pela obscuridade de sua condição”.
E prossegue: “conduzimo-nos liberalmente em nossa vida pública, e não
observamos com uma curiosidade suspicaz a vida privada de nossos
concidadãos, pois não nos ressentimos com nosso vizinho se ele age como lhe
apraz, nem o olhamos com ares de reprovação que, embora inócuos, lhe
causariam desgosto. Ao mesmo tempo que evitamos ofender os outros em
nosso convívio privado, em nossa vida pública nos afastamos da ilegalidade
principalmente por causa de um temor reverente, pois somos submissos às
autoridades e às leis, especialmente àquelas promulgadas para socorrer os
oprimidos e às que, embora não escritas, trazem aos transgressores uma
desonra visível a todos”.
O Estado grego era a cidade-Estado. Atenas se tornou a principal cidade-
Estado do mundo antigo entre os séculos V e IV a.C. Tal período é conhecido
como o Século de Péricles67. O apogeu grego tem início com a literatura de
Heródoto e se encerra com a Guerra do Peloponeso, ocorrida entre 431 e 404
a.C. Esse conflito foi imortalizado pelas palavras de Tucídides.
3. Estado Romano
Se a Grécia foi o berço da Filosofia, Roma foi o esplendor do Direito. As
instituições jurídicas nasceram às margens do Tevere e, petrificadas pelo
tempo, permanecem até hoje como rochedo a sustentar o ordenamento
jurídico de significativo número de países. Enumerar aqui os institutos
jurídicos que herdamos do Direito Romano seria temerário, dada a sua vasta
quantidade.
Pode-se, porém, afirmar que o Estado romano ergueu-se sobre os alicerces
da família, que se dividia em família propriamente dita e gens (gentes). A gens
teria sido o núcleo a partir do qual nasceu o Estado (civitas). “O primitivo
Estado-Cidade dos romanos, portanto, era uma reunião de gens. As gentes
reunidas formavam a Curia; várias Curias formavam a Tribu; e diversas
Tribus constituíam a Civitas. Essa possuía um Senado cujos membros eram os
pater-familias. Por isso mesmo, ainda no decorrer do Império, os senadores
conservavam o título tradicional de pater”68.
A história de Roma é comumente dividida em três períodos: período
monárquico, que vai da fundação em 753 a 509 a.C., cuja sociedade se dividia
entre patrícios, plebeus e escravos; período republicano, de 509 a 27 a.C., no
qual o poder era dividido entre os cônsules, o Senado, as Magistraturas, a
Assembleia Popular e o Conselho da Plebe; e, por fim, o período imperial, que
vai de 27 a.C. a 476 d.C., quando ocorreu a queda do Império Romano do
Ocidente. Nessa última fase, identifica-se o período do Alto Império e do
Baixo Império.
Os romanos eram marcados pelo desejo de expansão. No período imperial,
ápice de sua expansão, estima-se que o Império Romano possuiu de 50 a 80
milhões de habitantes. À medida que consolidavam a conquista de novos
espaços territoriais, materializavam a integração jurídica dos povos
dominados e ampliavam ilimitadamente a área de abrangência de seu Estado.
Em seguida, os romanos passavam a utilizar o Direito como instrumento para
tornar definitivas as vitórias dos seus exércitos.
As normas jurídicas protegiam o cidadão romano, de tal modo que as
pessoas que pertenciam ao território conquistado por Roma se sentiam
seguras não apenas porque vislumbravam a possibilidade de serem cidadãs
romanas, mas também porque passavam a ter a sua proteção. Roma foi quem
primeiro percebeu a importância do Direito para a convivência social. Ao lhe
instrumentalizar, estabeleceu o domínio sobre o mundo conhecido até então.
A base do Direito romano estava inscrito na Lei das Doze Tábuas (em
latim, Lex Duodecim Tabularum), gravadas em madeira e expostas no Fórum
para que todos tivessem conhecimento de suas prescrições. Cada uma delas
regulava um domínio jurídico distinto: as tábuas I e II remetiam à
organização e procedimentos sub judice; a tábua III trazia direitos de crédito e
como agir contra inadimplentes; a tábua IV tratava do pátrio poder e do
casamento; a tábua V regulava o direitos de sucessões e tutelas; a tábua VI
regulava o direito de posse e propriedade; a tábua VII fazia referência a
direitos prediais; a tábua VIII apresentava uma série de delitos; a tábua IX
enunciava normas de direito público; a tábua X regulava o direito sacro; e,
por fim, as tábuas XI e XII traziam normas gerais complementares69.
Em pelo menos dois pontos o Estado Romano lembrava o Estado Grego: a
participação de parte significativa do povo nas decisões de governo e a
separação entre Estado e Religião. O Estado e a religião passaram a ser duas
ordens distintas, e o poder divino deixou de ser invocado como fundamento
do poder terreno.
O povo participava diretamente do governo. Nos comícios, os cidadãos
decidiam sobre questões de importância para a coletividade. No entanto,
como se sabe, poucos eram os que tinham direito de participar e decidir:
somente os cidadãos romanos.
4. Estado Medieval
A derrocada do Império Romano do Ocidente conduziu ao
estabelecimento do medievo. Trata-se de um período de difícil compreensão
ante a sua instabilidade, heterogeneidade e falta de unidade política. Assim,
não é uma tarefa simples a busca das características de um Estado Medieval.
Os elementos mais importantes que marcaram o Estado Medieval foram o
cristianismo, as invasões bárbaras e o feudalismo.
O cristianismo buscava assegurar a igualdade entre os homens, de modo
que eles não podiam ser tratados como se uns valessem mais do que outros.
Feitos à imagem e semelhança de Deus, todos tinham o mesmo valor. Mas,
durante sua vigência passou-se a fazer outra espécie de distinção: a dos
homens tementes e não tementes a Deus. Neste sentido, “o cristianismo
substituiu a distinção entre nacionais e bárbaros, livres e escravos, pela
distinção entre crentes e incréus, a única que conta, definitivamente, para a
justiça divina”70. Tamanha era a influência da religião cristã que seus
preceitos determinavam crenças e costumes em praticamente todos os
domínios da existência humana.
A relação entre a Igreja cristã e os soberanos foi marcada pela tensão. Estes
dois polos de poder tinham a demarcação de sua atuação, ao menos, desde o
século V, com a conhecida doutrina das duas espadas, no qual uma mesma
mão não poderia empunhar as espadas da autoridade e do poder de maneira
simultânea. Com o passar dos séculos, houve a tentativa de submissão do
poder temporal ao poder espiritual, ou seja, a tentativa de a igreja cristã obter
o controle não apenas das questões de fé, mas também do aspecto político-
governamental dos reinos e territórios. O jurista italiano Gustavo
Zagrebelsky71 aponta que o apogeu deste movimento ocorreu com a Encíclica
Unam Sanctam Ecclesiam, promulgada pelo Papa Bonifácio VIII, no ano de
1302, que declara expressamente: Oportet autem gladium esse sub gladio, et
temporalem auctoritatem spirituali subiici potestati, ou seja, é necessário que
uma espada esteja sobre a outra e que a autoridade temporal esteja sujeita à
espiritual. Esta encíclica é mais um elemento que culminaria na reforma
protestante, ocorrida alguns séculos mais tarde.
Em nível político, o cerco e conquista de Roma por Alarico, no ano de 410
d.C., foi decisivo para a formação do Estado medieval pois prenunciava a
queda do Império no Ocidente, em 476. Na expressão de São Jerônimo72, “foi
conquistada a cidade que conquistou o universo”. Com efeito, a insegurança
gerada pelas invasões bárbaras, a debilidade econômica e ainda a perda de
expressividade das cidades pela baixa densidade populacional lançaram o
mundo europeu no feudalismo e no medievo. De modo geral, pode-se dividir
esse grande período da história em quatro momentos: da queda do Império
Romano até a consolidação do Sacro Império Romano Germânico (séculos V
a IX); o segundo período se caracteriza pelas reformas monásticas e políticas
na Igreja, Investiduras e Cruzadas (séculos X e XI); em seguida o período da
escolástica e o florescimento das universidades (século XIII); e por fim o
enfraquecimento do lastro entre fé e razão, o resgate do humanismo e o
renascimento urbano (séculos XIV e XV).
De um ponto de vista moderno, a desordem deste período era notável, pois
não havia unidade de comando. Os limites territoriais eram incertos e as
guerras, constantes. Para Dalmo de Abreu Dallari73, “se percebe que, no
Estado Medieval, a ordem era sempre bastante precária, pela improvisação
das chefias, pelo abandono ou pela transformação de padrões tradicionais,
pela presença de uma burocracia voraz e quase sempre todo-poderosa, pela
constante situação de guerra e, inevitavelmente, pela própria indefinição das
fronteiras políticas”.
Através destes legados e em meio à complexa história de conquistas e
invasões, o feudalismo é o sistema socioeconômico que se resume na relação
de outorga do feudo pela vassalagem, cujo vínculo contratual, por um lado,
engloba o nobre que concede, de modo revogável, uma extensão de terra e
oferece proteção militar, e de outro a obrigação do vassalo em lhe render
lealdade (homenagem) e serviços (trabalhar e lutar, caso necessário, para a
defesa dos interesses de seu senhor). Com efeito, era um sistema alicerçado na
propriedade da terra. Os senhores feudais detinham a posse de muitas
extensões de terras e cediam-nas para que outras pessoas as explorassem e,
como pagamento, dessem-lhes uma parte da produção. Caracterizou-se esse
sistema pela exploração do trabalho humano.
Martin Van Creveld74 aponta que o surgimento do feudalismo se confunde
com a dispersão do poder imperial, outrora muito concentrado na figura do
imperador. Segundo ele, a ideologia imperial ruiu quando os grupos
influentes na sociedade europeia (aristocracia e Igreja) buscaram emancipar
seus domínios. Com isso, o lugar do imperador “foi tomado por um sistema
que dava destaque bem maior aos direitos coletivos da aristocracia e da
religião estabelecida”, fragilizando a intensa concentração do poder nas mãos
do imperador.
5. Estado Moderno
O Estado moderno é resultado de profundas transformações na Europa
ocorridas especialmente entre os séculos XV a XVIII. Não se trata de um
arquétipo ideal ou estático: o Estado é fruto de seu tempo, isto é, foi gestado
em virtude de uma série de acontecimentos que motivaram o rompimento
com as estruturas antecedentes. Por isto ele nunca esteve concluído, mas vem
se transformando desde então de acordo com a peculiaridade de cada
contexto. Em síntese, sua realidade é dinâmica. Eis a razão de se compreender
alguns de seus pressupostos: a) Em nível filosófico, o humanismo, levado a
cabo por Francesco Petrarca, Dante Alighieri e Giovani Boccaccio,
bombardeou o teocentrismo e construiu sobre seus escombros o
antropocentrismo, isto é, a alocação do ser humano no centro do universo em
contrapartida ao teocentrismo medieval.
b) Em nível econômico, a necessidade de obter especiarias das Índias (cujo
monopólio era italiano) e conquistar novas terras serviu de inspiração
para a busca por rotas marítimas alternativas às já conhecidas à época. A
conquista do Império Romano do Oriente pelos turcos foi um momento
marcante rumo a esta iniciativa, por representar um obstáculo
intransponível por terra em direção à Ásia, fortalecendo o movimento
das grandes navegações e do mercantilismo, cujo ápice se deu com a
chegada dos europeus ao continente americano.
c) Em nível cultural, a ocupação turca, segundo Peter Burke75, forçou
artistas e pensadores reunidos em Constantinopla a migrarem para
outros lugares, em especial, a Itália. Quebrantando as clausuras impostas
durante o medievo, a concentração na península itálica (Firenze, Siena e
Venezia) de inquietos pensadores – como Michelangelo, Rafael Sanzio,
Leonardo da Vinci, Donato di Niccoló (conhecido como Donatello),
Filippo Brunelleschi, Sandro Botticelli e muitos outros –, permitiu o
reflorescimento empírico e científico em inúmeras vertentes, como
anatomia, arte, astronomia, arquitetura, música, ópera, teatro, entre
outras. A renascença marca o período de redescoberta da antiguidade
clássica esmaecida pelo ideal teológico, bem como pela efervescência
cultural que inaugurou as novas bases do pensamento moderno no
mundo artístico, econômico, político, filosófico e social.
d) Em nível científico, alguns dogmas milenares foram paulatinamente
sendo postos à prova graças às evidências científicas que alicerçaram o
pensamento moderno. Pontificaram nas diversas áreas científicas
grandes pensadores que, com suas teorias revolucionárias, refundaram a
interação entre as pessoas e o mundo à sua volta. Como exemplo, pode-
se indicar a teoria heliocêntrica de Nicolau Copérnico (do grego, helios
kentron, que significa sol no meio), que abriu caminho para Johannes
Kepler; os avanços da astronomia, mecânica, hidrostática e da hidráulica
de Galileu Galilei, Leonardo da Vinci e posteriormente Isaac Newton; o
abandono da alquimia e início da química moderna com Jan Baptist
Van Helmont, Robert Boyle, Joseph Priestley, Georg Ernst Stahl, e
finalmente John Dalton e Antoine Lavoisier; e as descobertas na
medicina realizadas desde Raimondo Dei Luzzi, até Paracelso, Andreas
Versalius, Miguel Servet, Gabriele Falloppio, Girolamo Fabrizio,William
Harvey e outros.
e) Em nível religioso, a reforma protestante colocou em xeque a hegemonia
católica e possibilitou o acesso aos textos sagrados e à relativização dos
dogmas teológicos. Foi Martinho Lutero o responsável pela primeira
tradução europeia da Bíblia cristã (do grego para o alemão). Com efeito,
secularização não é sinônimo de caça às religiões, mas sua contenção de
modo que não se espraie a todos os domínios da vida. Como um dique, a
esfera pública secular pretende alijar o discurso religioso para a esfera
privada, tornando autônomas as decisões políticas, sociais e culturais.
f) No que tange à organização social e política, o feudalismo perdia sua
vitalidade, embora seus espectros pudessem ser percebidos ainda no
século XIX. A reforma protestante e o renascimento fomentaram a
reorganização do poder, outrora mantido pela Igreja e pelos Impérios. O
aperfeiçoamento da metalurgia incorporou a pólvora na tecnologia
bélica, tendo como efeito a necessidade de fortalezas cada vez mais
inexpugnáveis: tal proteção somente poderia ser financiada pelos reis
apoiados pela burguesia em ascensão. O acordo selado entre realeza e
burguesia enfraqueceu a nobreza feudal e o papado, semeando o Estado
nacional. Mais tarde, tal acordo seria abalado pelo iluminismo,
movimento burguês que revolucionou a perspectiva centralizadora e
monopolizadora do conhecimento, mantido apenas entre o clero e os
monarcas, e instou o fim da monarquia absolutista como modelo
medieval que se arrastava modernidade adentro.
g) E quanto ao Direito, a doutrina do direito natural ou jusnaturalismo foi
um passo importante no reconhecimento de um catálogo de direitos
(liberdade, igualdade, propriedade, entre outros) que não poderiam ser
infringidos por veleidade soberana do monarca. Em igual medida,
fortaleceu-se, por influência do direito inglês, a Rule of Law ou o ideal de
que a legalidade deveria ser o arrimo sobre o qual se estabeleceria o
Estado liberal burguês. Com efeito, enfraqueceu-se a tomada de decisões
coletivas por arbítrio do chefe do Executivo, e se fortaleceu o ambiente
de segurança jurídica que é basilar para o desenvolvimento das relações
sociais, dos negócios e para a proteção dos direitos e garantias
fundamentais.
Toda essa miríade de acontecimentos possibilitou que o processo de
ascensão do paradigma estatal moderno se afirmasse desde o século XVII.
Tem sido aceito pela doutrina que o Estado Moderno nasceu a partir dos
tratados da Paz de Vestfália (ou Tratados de Münster e Osnabrück), assinado
em outubro de 1648, ao fortalecer o modelo de Estado soberano76. Segundo
Hildebrando Accioly e Geraldo Eulálio do Nascimento Silva77, “com a Paz de
Vestfália, que pôs termo à Guerra dos Trinta Anos, triunfava o princípio da
igualdade jurídica dos Estados, estabelecia-se em bases sólidas o princípio do
equilíbrio europeu, surgiam os primeiros ensaios de uma regulamentação
internacional positiva”. Com o reconhecimento da soberania estatal, pôs-se a
termo a relação entre Estado e Igreja, embora se garanta a liberdade de crença
dos cidadãos e de influência às religiões.
Com base nos pressupostos citados – humanismo, reforma protestante,
renascimento, iluminismo, enfraquecimento do feudalismo e ascensão real e
burguesa –, tem-se algumas características fundamentais do Estado moderno.
Em primeiro lugar, o poder que outrora pertencera aos reis foi incorporado
ao Estado. Em outras palavras, o Estado é o manancial do poder legítimo. O
sociólogo Max Weber78 aponta que essa é a principal característica do Estado
moderno, qual seja, a estrutura política que reivindica o monopólio do
constrangimento físico legítimo. Com efeito, verificam-se outros traços que
são consequência a ele: racionalização do Direito e especialização das funções
legislativa e judicante; fortalecimento do poder policial para possibilitar a
segurança dos indivíduos e manter assegurada a ordem pública;
estabelecimento de uma administração que se ramifica em diversos domínios,
como economia, saúde e educação; e manutenção permanente de um
exército.
Assim, concentrado o poder na mesma instituição, buscou-se a sua
separação79 e despersonalização. Isto foi possibilitado pela autonomia sempre
crescente da administração pública que se tornou cada vez mais burocrática.
A França foi o país que melhor aprimorou esse sistema ao longo do século
XVII (e por tal razão o termo burocracia deriva da palavra bureau, que em
francês significa escritório ou gabinete). Van Creveld80 destaca que o modelo
francês, cuja administração detinha funcionários públicos de carreira, ou seja,
sua função não era adquirida de forma hereditária, foi copiado para a Prússia,
Espanha e Suécia naquele mesmo século. A administração burocrática tem
como função permanecer para além dos governos e se fortaleceu na medida
em que a tipografia de Johann Gutemberg se popularizou e possibilitou que
as informações pudessem ser produzidas em larga escala e armazenadas em
diferentes locais.
Outra característica do poder se relaciona quanto ao seu exercício. No
Estado moderno, a fonte do poder legítimo tem origem no povo, mas seu
exercício ocorre mediante representação. Para tanto, garante-se a realização
de eleições periódicas para o preenchimento dos cargos do Legislativo e do
Executivo em todas as suas esferas (no caso de Estados federais, o exercício do
poder é descentralizado. No Brasil, país que adota o federalismo como forma
de Estado, há legisladores e administradores eleitos mediante processo
eleitoral quatrienal para as esferas municipal, estadual e federal. No que toca
ao tempo de mandato, a exceção brasileira é o Senado Federal, cujos
membros têm mandato de oito anos).
Com relação ao Direito, o Estado moderno é fruto de uma doutrina liberal.
Seu pressuposto filosófico remete a uma concepção particular de Estado que
se opõe tanto a formas absolutas de poder como a modelos sociais de
organização da política. Em termos políticos e jurídicos, o liberalismo perfaz
um Estado limitado, ou seja, delimita-se com precisão um espaço em que os
tentáculos estatais podem adentrar de modo legítimo, garantindo-se um
amplo espaço de liberdade aos cidadãos. Logo, não está a se falar de uma
liberdade interior ou livre-arbítrio, tema muito caro aos teólogos do período
medieval, mas da liberdade na relação do Estado com os indivíduos entre si,
ou seja, volta-se para uma discussão política.
Ao longo das correntes de pensamento político e filosófico, a consciência
da liberdade tomou rumos variados. Com Thomas Hobbes, Baruch Spinoza e
Jean-Jacques Rousseau, ela só poderia existir através do Estado. Por sua vez,
Karl Marx e Auguste Comte identificavam o agir livre somente quando os
indivíduos tomassem consciência dos caminhos históricos cujo beneplácito
de dominação (Max Weber) construiu uma sociedade dividida em classes e
hierarquizada pela força do capital desigual. Trilhando caminhos distintos,
outros autores – como Benjamin Constant, John Stuart Mill, Alexis de
Tocqueville e Isaiah Berlin –, legitimavam e, ao mesmo tempo, desconfiavam
do Estado, propondo uma precisa demarcação entre o público e o privado.
Cite-se como exemplo John Stuart Mill, para o qual todo e qualquer Estado
que propugna um modo de viver livre deveria garantir ao menos a liberdade
em três domínios: irrestrita liberdade de consciência, crença e opinião
(expressar opiniões ou lhes publicar); resguardar a liberdade de cada um
dispor da sua vida da maneira como lhe melhor aprouver, independente dos
resultados que possam advir; por fim, a liberdade de associação para qualquer
propósito, salvo se resultar em dano a outras pessoas. Mill81 aduzia que “a
única liberdade que merece o nome, é a de procurar o próprio bem pelo
método próprio, enquanto não tentamos desapossar os outros do que é seu,
ou impedir seus esforços para obtê-lo. Cada qual é o guardião conveniente da
própria saúde, quer corporal, quer mental e espiritual. Os homens têm mais a
ganhar suportando que os outros vivam como bem lhes parece do que os
obrigando a viver como bem parece ao resto”.
Por fim, especialmente influenciados pelos Estados Unidos da América os
Estados ocidentais têm adotado uma Constituição como fundamento de sua
ordem jurídica, no que tange a organização social, do poder político e para
garantia dos direitos individuais. Conforme Dalmo de Abreu Dallari82 nos
aponta: “a consciência da existência de uma Constituição, como expressão da
individualidade e da história de um povo, surgiu e se desenvolveu no quadro
das lutas contra o Absolutismo, tendo papel de extrema relevância na busca
de redução ou eliminação de fatores de dominação e na luta pela abolição de
privilégios”.
Assim, imbuídos desses pressupostos e objetivos, a teoria e a prática se
conjugaram ao longo de mais de três séculos para formar o Estado com suas
características contemporâneas. Embora com nuances próprias, as principais
fundações estatais continuam se mantendo: é no Estado que se encontra o
locus do qual emana o poder legítimo, despersonalizado, separado em funções
(Legislativa, Executiva e Judiciária) e exercido mediante representação, além
de ainda ser o principal protagonista em nível internacional e esfera de
realização da vida em sociedade em âmbito interno.
Conclusões
1. O Estado antigo era marcado pela constante luta entre os grupos
humanos, que se caracterizavam, em especial, pelo caráter religioso do
comando político e pela concentração de poderes do líder. Nesse período
primitivo já se observam os embriões das regras jurídicas e do governo.
2. O Estado grego era a cidade-Estado, organizações políticas e jurídicas
com maior durabilidade em relação ao Estado arcaico. Nela se verificou o
apogeu do pensamento filosófico e da democracia.
3. A marca do Estado romano é a especialização de seu sistema jurídico,
um legado herdado por praticamente todo o Ocidente.
4. No Estado medieval europeu se tem o apogeu do modo de vida cristão,
principal emblema desse período. A organização social e política era
predominantemente feudal, com o poder político fragmentado entre o rei e os
suseranos.
5. O Estado moderno é fruto de profundas alterações na Europa.
Caracteriza-se, de modo geral: 1) pela soberania do Estado; 2) pela fonte do
poder político ser o povo, que o exerce por meio dos representantes; 3) pelo
reconhecimento de que o poder estatal é uno, porém seu exercício se divide
em funções distintas (regra geral os Estados aplicam a teoria tripartite do
poder, que o fraciona em função legislativa, executiva e judiciária); e pelo
reconhecimento de direitos fundamentais.
O Estado pode intervir na esfera privada dos indivíduos, bem como nas
mais diversas espécies de relações sociais. A intervenção pode ter maior ou
menor intensidade. Sob esse enfoque, podemos identificar alguns modelos de
Estado: absoluto, civil, liberal, social e de bem-estar, Democrático de Direito,
total e totalitário.
1. Estado Absoluto
O Estado absoluto, tido como aquele em que há concentração de poderes
no Executivo, sempre esteve presente nas comunidades humanas.
Modernamente, surge como um legado do feudalismo, cujo apogeu é o fim
do Império Carolíngio, em meados do século IX. Humanismo, renascimento
e reforma protestante foram os principais fatores responsáveis pelo
quebrantamento da unidade medieval e, ao mesmo tempo, base para o Estado
moderno, que viria a se estabelecer83.
Corolário das transformações ocorridas na Europa a partir do século XV,
que estremeceram as já fatigadas estruturas medievais, o Estado absoluto se
caracteriza pela concentração da totalidade do poder de governar, seja na
figura de uma autoridade, de um grupo ou de um partido. Fortalecido pelo
elo entre nobreza e burguesia em ascensão, tal modelo se tornou
predominante no ambiente europeu pós-medievo por três séculos84. Carl
Schmitt85, jurista alemão do século XX, comenta que o Estado absolutista
formado a partir do século XVI, “originou-se precisamente do colapso e da
dissolução do Estado de Direito medieval, pluralista, feudal-estamentário e de
jurisdição, apoiando-se no exército e no funcionalismo. Por conseguinte, ele é
um Estado do Poder Executivo e do governo”.
O absolutismo, que unificava o poder monárquico e que propiciou a
formação do Estado nacional, teve grandes vultos do pensamento ocidental a
lhe inspirar. Pontificaram nele Nicolau Maquiavel, Jean Bodin, Robert Filmer
e Thomas Hobbes.
Com efeito, Pierangelo Schiera86 admite três perspectivas distintas para
analisar o tema do absolutismo: sob o olhar da soberania, do aspecto jurídico-
institucional e do político-racional. O absolutismo sob o olhar da soberania é
aquele que concebe o poder concentrado nas mãos de um soberano. Essa
forma de organização do poder não se confunde com a tirania: sob o ponto de
vista da gestão do poder, o tirano é aquele que dispõe do poder em suas mãos
e não conhece limites em sua utilização, enquanto o monarca absoluto, por
sua vez, estaria limitado pelos costumes e tradições herdadas de seus
antepassados como também pela autoridade religiosa, que detinha hegemonia
sobre o poder governamental mesmo no período que marca o fim do
medievo e ascensão do iluminismo.
O absolutismo sob o aspecto jurídico-institucional é aquele que, mediado
pela influência do cristianismo, conferiu a legitimidade suficiente ao monarca
para se estabelecer juridicamente como o representante de Deus. Lembra
Sahid Maluf87 que “assim como a propriedade é direito exclusivo do dono
sobre a coisa, o poder de imperium é direito absoluto do Rei sobre o Estado”.
E, nessa dinâmica, seus poderes não encontrariam limites. Segundo Schiera, o
rei “não é mais súdito de ninguém e reduziu a súditos todos aqueles que estão
debaixo de suas ordens”.
Ernst Kantorowicz88 mostra em seu livro Os Dois Corpos do Rei que a
legitimação do poder absoluto no monarca ocorreu em consonância à
teologia cristã, por volta do século XII. O referido historiador aponta um
conhecido tratado anônimo desse período, chamado De consecratione
pontificum et regum, no qual defendia a consagração e deificação real no
momento de sua coroação, tornando-o christomimétés (personificação de
Cristo) e verdadeiro sucessor das ações de Jesus Cristo na Terra. Com efeito,
o rei adquiria seu poder e sua autoridade. Assim, se a Igreja, corpo místico
divino, possuía Cristo como cabeça, o rei assumia essa mesma autoridade no
vértice do Estado; e a iconografia desde a Idade Média até o início da Idade
Moderna é rica em associar a figura do monarca como um Deus com poderes
políticos e sobrenaturais absolutos.
A concentração de poderes na figura real fazia com que ele fosse, de fato, a
centralidade do reino em todos os aspectos. Com efeito, sendo a sua casa o
epicentro da organização social e política, era inevitável que os assuntos
domésticos da realeza fossem, de fato, a principal questão do reino. De
maneira impreterível, o rei estava no centro das questões: tudo o que
transcendia à Corte era secundário. Assim, Corte real e Estado se
confundiam. Norbert Elias89, um dos principais estudiosos do tema, lembra
que a pompa e a fortaleza da morada real, como se observa no Palácio de
Versailles, representavam a pujança do próprio Estado. Somente ao captar
esta imprecisão entre o público e o privado, regra jurídica tão apregoada no
século XVIII e seguintes, é que se compreende o significado da afirmação de
Luís XIV, L’État C’est moi, que significa “O Estado sou eu”, emblema mais
tradicional na expressão do poder monárquico.
Nessa dinâmica que conecta política e religião, Robert Filmer90, teórico
inglês que se notabilizou menos por sua obra e mais por ser alvo de John
Locke no livro Primeiro Tratado sobre o Governo, defendia em seu livro
Patriarcha, or the Natural Power of the Kings um poder patriarcal e absoluto
do rei, cuja fonte de legitimidade emanava do próprio Adão. Assim,
fundamentando as prerrogativas do rei nas escrituras e na tradição, Filmer
tinha como enfoque a doutrina dos direitos naturais que se tornava
perigosamente atrativa: não é necessário muito esforço hermenêutico para
notar que o jusnaturalismo, ao enunciar que todos são naturalmente livres ou
iguais, contrapunha-se à divisão social nobiliárquica e à legitimidade do
governo real monopolizador do poder, essências do Estado absoluto.
Por fim, a terceira e última perspectiva apontada por Schiera é a do
absolutismo sob o aspecto político-racional, isto é, aquele que marca o limiar
da separação entre política e teologia, distinção essa notavelmente presente na
obra de Nicolau Maquiavel e Thomas Hobbes.
Vivendo sob a efígie do Estado absoluto, ainda no século XVI, Nicolau
Maquiavel propugna a necessária secção entre política e teologia perante uma
sociedade italiana de forte apego à cristandade. Para ele, o governo ideal é
aquele cuja direção seja entregue nas mãos de um príncipe soberano. Para
tanto, deve se valer de sua virtù, isto é, a capacidade astuta do governante de
intervir nas situações e alterar o rumo da história em detrimento do homem
medieval temerário da providência divina, e ainda contar com a sua fortuna,
ou seja, possuir a sagacidade de agir na ocasião oportuna.
Já Thomas Hobbes, imortalizado pelo livro O Leviatã, também imaginava
ser possível a construção do Estado apenas quando todo o poder estivesse
depositado em um soberano. O contexto de insegurança geral era atributo da
luta existente entre os próprios homens (o que Hobbes denomina de luta de
todos contra todos), havendo a necessidade da existência de um governo forte
o bastante para conter “o lobo”, metáfora utilizada para designar a natureza
competitiva e voraz do homem em seu estado de natureza (o homem é o lobo
do próprio homem). Esse governo forte pode ser resumido na expressão
hobbesiana Auctoritas, non veritas facit legem, ou seja, não é a verdade e sim o
poder que decide o certo e o justo.
Para contornar tal situação, a sociedade deveria estabelecer um pacto
irrevogável, um contrato social que possibilitaria ao monarca absoluto a força
e o poder ilimitado, instrumentos necessários ao controle da nação. Uma das
noções que diferenciam a doutrina hobbesiana dos imperadores medievais é:
a legitimidade do soberano advém da sociedade e não se relaciona com
manifestações divinas. Sobre isso, Hobbes91 afirma que a “pretensão de um
pacto com Deus é uma mentira tão evidente, até perante a própria
consciência de quem o faz, que não constitui apenas um ato injusto, mas
também um ato próprio de um caráter vil e inumano”.
2. Estado Civil
No Século das Luzes92, a concepção do Estado absolutista no qual o rei
possuía dois corpos (um material e um místico, manancial de sua divina
legitimidade para governar) se tornou insustentável. Nas palavras de
Kantorowicz93, “o misticismo, quando transposto do cálido crepúsculo do
mito e da ficção para o frio foco da luz da razão e do fato, geralmente deixa
pouca coisa que o recomende”. Isto aconteceu com o mito dos dois corpos do
rei, sepultado pelo racionalismo em ascensão, ceifando um dos principais
alicerces de seu poder absoluto.
O Estado civil é o arquétipo desenvolvido pelos autores contratualistas
como um meio de oposição ao absolutismo que literalmente reinava em sua
época. É aquele no qual o governo é exercido pelos cidadãos, ideia expressa na
obra de alguns autores, como John Locke e Jean Jacques-Rousseau.
Ao se oporem ao poder absoluto, os mencionados pensadores
identificaram o estado de natureza em oposição ao estado civil. Cada qual,
segundo conveniências peculiares, concebia uma razão específica para a
transição entre os dois domínios, oferecendo assim diferentes fatores de
origem e legitimidade do governo civil. A fundação da soberania civil se daria
no contrato social, um instrumento hipotético que legitimaria tal renovação
política e jurídica na sociedade uma vez que todos consentiriam para esta
nova realidade.
Nesse sentido, John Locke94 é o pensador que melhor soube esboçar uma
reação contra o absolutismo, o que se justifica pela compreensão do autor no
que tange à concentração de poderes no Estado pós-contratual, ao prever que
o poder estatal deveria ser distribuído entre vários órgãos, cada qual
encarregado de uma tarefa específica. Com efeito, um órgão deveria legislar e
o outro solucionar os litígios. Assim, o monarca deixara de enfeixar em suas
mãos todo o poder estatal, e Locke constituiu-se um dos notáveis ideólogos
da doutrina da “separação” de poderes95.
Em seu famoso livro Dois Tratados Sobre o Governo, Locke comenta que
“sempre que qualquer número de homens estiver unido numa sociedade de
modo que cada um renuncie ao Poder Executivo da lei da natureza e o
coloque nas mãos do público, então, e somente e então, haverá uma sociedade
política ou civil. E tal ocorre sempre que qualquer número de homens no
estado de natureza entra em sociedade para formar um povo, um corpo
político sob um único governo supremo, ou então quando qualquer um se
junta e se incorpora a qualquer governo já formado. Pois com isso, essa
pessoa autoriza a sociedade ou, o que vem a ser o mesmo, o Legislativo desta a
elaborar leis em seu nome segundo o exija o bem público, a cuja exceção a sua
própria assistência é devida. E isso retira os homens do estado de natureza e
os coloca no de uma sociedade política, estabelecendo um juiz na Terra,
investido de autoridade para resolver todas as controvérsias e reparar os
danos que possam advir a qualquer membro da sociedade”.
Vê-se, portanto, o especial enfoque que esse autor confere às funções
legiferante e judicante: sua criação, autonomia e independência eram o
diferencial entre o estado de natureza e o estado civil. Ao contrário de
Thomas Hobbes, Locke não teorizava o estado pré-civil como uma guerra
declarada, mas um conflito em potencial: o problema se estabelece quando
cada um resolve julgar as questões segundo seu alvedrio e aplicar penalidades,
motivos que implicam o desejo de formar um governo com a mesma lei e
jurisdição autônoma. Assim, acima de todos os fatores, o autor consigna um
governo pautado na legalidade que proteja a propriedade e a liberdade, traços
de um governo civil.
Jean-Jacques Rousseau é outro autor que via a necessidade de se buscar o
governo civil. Rousseau nutria profundo pessimismo com a sociedade de sua
época, razão por que enaltecia o homem em seu estado de natureza, o
denominado “bom selvagem”. Pela sua inerente perfectibilidade e o desejo de
consumo nascido na revolução industrial, os indivíduos buscariam apenas
posses, esquecendo-se do presente para viver o futuro. Seu pacto social visava
defender “cada associado com toda a força comum, e pela qual cada um,
unindo-se a todos, só obedece contudo a si mesmo, permanecendo assim tão
livre quanto antes”96. Para tanto, estabeleceu a vontade geral, segundo a qual
cada membro adulto deveria participar da elaboração das leis. O
consentimento geral garantiria a isonomia, pois seria como se cada um
legislasse para si.
Somado ao pensamento de John Locke, Jean-Jacques Rousseau e também
Montesquieu, as revoluções liberais (Revolução Inglesa iniciada em 1640,
Revolução Americana de 1776 e a Revolução Francesa de 1789) foram
eventos referenciais na história ocidental por fortalecerem o Estado liberal-
burguês ao se buscar a proteção jurídica aos direitos fundamentais de
primeira dimensão97.
3. Estado Liberal
Enquanto o Estado civil concebia a necessidade de se estabelecer um
governo em que o cidadão teria participação nas decisões coletivas, o Estado
liberal também surgiu como uma resposta ao absolutismo, mas ia além da
ideia de governo civil, na medida em que os liberais buscavam um arquétipo
estatal limitado, com (poucas) competências bem definidas, além de direitos
reconhecidos. Norberto Bobbio98 situa muito bem o nascimento do Estado
liberal: ele nasce de uma “contínua erosão do poder absoluto do rei”.
Seus principais alicerces são a liberdade e a propriedade privada. Inspirado
pela máxima de Gournay, lembrada por James Henderson99, laissez-faire,
laissez-passer lê monde va de lui-même (“deixai fazer, deixai passar, o mundo
caminha por si só”), ele não interfere na esfera privada e nas relações entre
particulares, sendo, por conseguinte, um Estado absenteísta. Sua atuação
cinge-se à proteção dos direitos individuais e à limitação do poder estatal.
Assim, colocou-se o indivíduo no centro da questão política, motivo pelo qual
Norberto Bobbio100 afirma que “sem individualismo não há liberalismo”.
O liberalismo tem seu apogeu com o surgimento dos ideais iluministas,
movimento racionalista cujo intuito era romper com os alicerces medievais.
Em nível político, as teses iluministas de Francis Bacon e John Locke
bombardeavam a justificação divina para a autoridade dos reis. O pressuposto
filosófico do Estado liberal é o jusnaturalismo, no qual se reconhece que todos
os homens indiscriminadamente dispõem de um catálogo de direitos
fundamentais irrenunciáveis, tais como os direitos à vida e à liberdade.
O grande emblema do Estado liberal é a Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão de 1789, aprovada no ímpeto da revolução. Seu texto
com dezessete dispositivos carrega o furor por libertação do Ancien Régime,
absoluto e arbitrário, que tomou conta da França. Inspirados pela
Constituição dos Estados Unidos de 1787, os constituintes franceses
proclamaram os direitos “naturais, inalienáveis e sagrados” dos homens,
tendo a liberdade como maior apanágio da nova estrutura política e jurídica
que seria constituída no país. Ela é apontada na Declaração em suas diferentes
concepções: liberdade política (art. 1º), liberdade perante a lei (art. 4º),
liberdade pessoal pela garantia contra qualquer prisão, detenção ou pena
arbitrária que não seja estipulada pela lei (artigos 7º e 8º); presunção de
inocência (artigo 9º); liberdade de opinião e de livre expressão (artigos 10 e
11); e liberdade de culto (artigo 10).
Ao lado da liberdade, a igualdade consta logo do artigo primeiro101; seu
objetivo era bombardear a enraizada sociedade de classes francesa e enaltecer
a soberania popular. A maior demonstração do espírito revolucionário e do
anseio por libertação durante a Revolução Francesa advém desse dispositivo
primeiro, um “preâmbulo” que abalava a estrutura feudal e nobiliárquica
profundamente enraizada em toda a Europa e de modo especial na França.
Assim, o documento proclama que a finalidade do Estado é a garantia dos
direitos naturais (liberdade, a propriedade a segurança e resistência à
opressão) e salvaguarda à lei como expressão da vontade geral. Para Hannah
Arendt102, a Declaração de Direitos francesa não pretendia anunciar apenas
uma nova fonte de legitimidade do poder ao substituir a monarquia pelo
regime republicano pautado na soberania popular, mas se apresentar como a
pedra fundamental de um novo corpo político erigido sobre a liberdade,
substrato e finalidade do governo e do poder.
A figura que pode representar esse Estado é a de um policial que resguarda
as liberdades dos cidadãos para o melhor desenrolar de seus negócios
privados. O principal interesse dos cidadãos, por sua vez, era o de garantir um
locus de suas vidas distante da intervenção do poder público. É o significado
da primeira dimensão de direitos fundamentais.
Historicamente, o Estado liberal foi uma conquista do pensamento que se
impôs no século XVIII. Desejando assegurar um ambiente de ordem jurídica
e política para possibilitar seus negócios, a burguesia ascendente defendia o
estabelecimento de limites ao despotismo político e à garantia de liberdade
nos negócios privados. O ideário burguês foi interpretado por John Stuart
Mill103 nos seguintes termos: “há um limite para a interferência legítima da
opinião coletiva sobre a independência individual, e encontrar esse limite,
guardando-o de invasões, é tão indispensável à boa condição dos negócios
humanos como a proteção contra o despotismo político”.
A supremacia do liberalismo econômico em conjunto com as revoluções
industriais ocorridas na Europa e nos Estados Unidos gerou um processo de
muita desigualdade entre as pessoas. Foi o mote que teóricos sociais, como
Karl Marx e Friedrich Engels, encontraram para criticar tal modelo que
beneficiava diretamente a burguesia. Desde então, para restabelecer o
equilíbrio das relações entre os particulares e entre esses e o Estado, tornou-se
necessária alguma intervenção estatal, que varia de acordo com cada país.
É importante ressaltar que os princípios liberais retornaram ao contexto
político nas últimas décadas do século XX. Em boa parte do mundo, a
começar dos governos de Margareth Thatcher na Inglaterra e Ronald Reagan
nos Estados Unidos, os países adotaram políticas neoliberais: privatizações de
empresas estatais, benefícios ao capital privado, ajuste fiscal, redução de
direitos sociais, entre outras medidas. Vários setores da atividade estatal
foram transferidos para a iniciativa privada como forma de reduzir a
participação do Estado e diminuir a estagflação oriunda da política
keynesiana.
Os principais economistas dessa corrente foram Ludwig Von Mises e
Friedrich Hayek, ambos da escola austríaca. Sob tal ideologia, diversos países,
como o Brasil, privatizaram alguns serviços públicos antes ofertados pela
Administração Pública, tais como telefonia, energia elétrica e conservação de
estradas de rodagem.
4. Estado Social e de Bem-Estar
O Estado social e de bem-estar surgiu no Ocidente como resposta ao
avanço do pensamento comunista no século XX, tendo como escopo a
relativização do liberalismo clássico para tornar o Estado mais atuante na
sociedade em prol de justiça social.
O Estado liberal se tornou fatigado devido aos movimentos operários que
denunciavam a contradição entre a lei, que proclamava a igualdade de todos,
e a dura realidade experimentada pelos proletários. Ao fazer valer a liberdade
e a propriedade, direitos que mais interessavam à classe burguesa, a igualdade
era apenas formal. Em outras palavras, embora os documentos proclamassem
a igualdade de todos, a realidade era de imensa desigualdade econômica e
política na sociedade europeia dos séculos XVIII e XIX.
Assim, Luigi Ferrajoli104 pontua que “o núcleo essencial das primeiras
cartas fundamentais [...] é formado por regras sobre o limite dos poderes e
não sobre a fonte ou as suas formas de exercício”. Não obstante, o enfoque
dos textos liberais eram os limites de atuação do poder do Estado e não
essencialmente a promoção de maior igualdade entre as classes.
A progressiva exploração dos trabalhadores gerou ao menos duas
consequências. A primeira delas se relaciona às lutas sindicais ao longo do
século XIX. A segunda consequência é a de ter estabelecido o terreno fértil
para que as ideias de Karl Marx, Friedrich Engels e outros pensadores
comunistas pudessem germinar, fator que determinou a história política de
todo o século XX.
Enquanto o liberalismo visava a intervenção pontual do Estado de modo a
permitir a ampla liberdade individual, os entusiastas sociais consignavam a
presença maciça do Estado para equilibrar as relações entre os particulares e
promover justiça social. Um detalhe importante é o de que o postulado
marxista visava o fim do Estado: o Estado, a economia capitalista, a ideologia,
o Direito e a cultura são todos elementos constituintes de uma superestrutura
mantenedora da exploração entre as classes. Para Marx, ao ter germinado
neste solo de desigualdade e luta de classes, as instituições políticas e jurídicas
emanadas da burguesia liberal não poderiam ser transformadas ou corrigidas.
O fim da exploração demandava o fim do Estado e de suas instituições.
A crítica do comunismo ao longo do século XIX se tornou audível demais
para não ser percebida. Seu ponto mais alto foi a criação da URSS - União das
Repúblicas Socialistas Soviéticas, país que encampou oficialmente o
comunismo como modelo de Estado. Para evitar o desmoronamento do
liberalismo, a concepção do Estado no Ocidente (em especial dos países
europeus) sofreu reformas em sua concepção original105. Assim, concebeu-se
o Estado de bem-estar social (Welfare State), com a finalidade de recompor a
igualdade social, econômica e cultural.
O Estado de bem-estar teve início no século XIX, porém foi no século XX
que atingiu seu ponto mais elevado. A Constituição do México (1917), a
Declaração de Direitos do Povo Trabalhador e Explorado da União Soviética
(1918) e a Constituição alemã de Weimar (1919) foram os primeiros
documentos normativos que asseguraram direitos próprios do Estado social.
Na segunda metade do século XX, o Estado de bem-estar social vigorou em
grande quantidade de países, tanto naqueles governados por comunistas
quanto nos administrados por governos liberais. Na Europa ocidental foi
adotado, sobretudo, para conter o avanço do comunismo. Já na América
Latina, a estratégia para conter o avanço comunista na região foi a adoção de
regimes militares, apoiados e financiados pelos Estados Unidos.
No Brasil, observa-se uma primeira fase de avanço de políticas sociais na
“era Vargas”, quando Getúlio Vargas aprovou uma legislação benéfica aos
trabalhadores. Desde 1995, com a consolidação do Plano Real e as políticas
sociais dos governos de Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da
Silva e primeiro mandato de Dilma Rousseff, milhões de pessoas saíram da
linha da pobreza e experimentaram uma condição de vida melhor. Contudo,
a crise econômica que atingiu o país a partir de 2015 inverteu a curva
descendente da miséria, lançando milhões de pessoas à extrema pobreza.
Flávio Pansieri106lembra que, apesar de ter implantado diversas políticas
de atendimento aos necessitados, o Brasil ainda “não alcançou seu estado de
bem-estar social e, atualmente, mesmo com possibilidades de manobras
econômicas para seu desenvolvimento, permanece limitado a fatores
econômicos internacionais, que condicionam as ações governamentais à
sobrevivência do capital”. Nesse sentido, a efetivação de políticas sociais tem
esbarrado no dever de honrar compromissos assumidos no campo
econômico, seja na ordem internacional, como o pagamento de juros da
dívida, seja pelos déficits orçamentários que assolam o país.
É preciso pontuar, por fim, a complexidade em se estabelecer o que seja
bem-estar. Se o Estado desenvolver uma política de alocação de recursos em
determinadas áreas, a fim de aprimorar a qualidade de vida das pessoas (em
tese, de todas as pessoas), qual critério deve ser utilizado para a tomada dessa
decisão? Sendo os recursos escassos, é justo, razoável e seguro aumentar o
bem-estar de algumas pessoas em detrimento de tantas outras? Ronald
Dworkin, notável jurista norte-americano, foi quem melhor demonstrou tal
dificuldade, haja vista a ideia de realização do bem-estar variar segundo o
desejo de cada indivíduo107. Como não há um parâmetro para igualar a todos
e descobrir qual seria a noção razoável de bem-estar, o autor rejeita tal
concepção como critério para a definição de como será feita a divisão de
recursos em uma sociedade.
Por conseguinte, embora o Estado de bem-estar social tenha existido por
certo tempo, diminuindo a desigualdade social e melhorando a qualidade de
vida da população, é preciso discutir seriamente a sua viabilidade, em razão
de os desejos serem infinitos e as possibilidades escassas. Todavia, tal
dificuldade não pode ser utilizada como pretexto para a omissão das políticas
públicas, em especial no combate à pobreza, à marginalização e à baixa
escolaridade da população.
6. Estado Total
Para além dos modelos citados, indicamos ainda outras duas concepções.
A primeira é a do Estado total. Essa denominação é de autoria do jurista
alemão Carl Schmitt, notabilizado pelo debate com Hans Kelsen sobre o
guardião da Constituição116, no qual os autores defendiam posições distintas
entre si: enquanto Kelsen acreditava que tal função é jurisdicional, devendo
ser desempenhada por um Tribunal Constitucional, Schmitt defendia o status
político da função de guarda constitucional e, nesse sentido, o chefe de Estado
(Presidente do Reich alemão) deveria dispor dessa competência. Registre-se
que, apesar de o debate ter sido inicialmente “vencido” por Schmitt, com o
julgamento do caso Prússia versus Reich de 1925, a tese de Kelsen foi adotada
como paradigma no pós-guerra, prevalecendo, assim, o modelo da jurisdição
constitucional.
A posição de Schmitt se justifica em virtude do seu conceito de
Constituição, que deve ser distinto do conceito de lei constitucional. A
principal distinção entre lei constitucional e Constituição é que nesta subjaz o
poder constituinte que lhe confere força e essência. Em outras palavras, há
uma decisão ou vontade política que outorga legitimidade à Constituição.
Sem tal vontade política, estaremos falando de leis constitucionais, cujo
fundamento repousa na Constituição117. Assim, o chefe de Estado, que está
fora das questões governamentais e legislativas, seria um poder neutro apto a
impedir violações à Constituição e garantir a vontade política do povo.
A noção de Estado total é extraída desse contexto. Por qual razão o
Legislativo não poderia ser o guardião da Constituição? Obviamente, há um
consenso de seu impedimento: sendo os detentores do processo legislativo
ordinário, os parlamentares dispõem dos principais instrumentos para alterar
o texto constitucional segundo as suas próprias conveniências. Gilberto
Bercovici118 lembra que a divisão dualista entre governo e legislativo é um
legado liberal. Por outro lado, a democracia de massa atenuou a força do
Parlamento, pois dentro dele não há qualquer força política superior a todas
as demais que brigam entre si. Portanto, nas precisas palavras de Bercovici, “a
fé no parlamentarismo é fruto do liberalismo, não da democracia”.
O resultado desse processo, segundo Schmitt, é uma homogeneidade
indelével, responsável por destruir a dicotomia governo e povo ou sociedade e
Estado sobre a qual o liberalismo se apoiou para erigir suas instituições
políticas e jurídicas. Assim, não há mais esfera da vida reservada à
intervenção pública, constituindo um Estado total. O Parlamento, de acordo
com tal hipótese, não dispõe dos meios suficientes para resolver as questões
atinentes à pluralidade, em especial, aos problemas econômicos da sociedade.
A mudança em questão, afirma Schmitt119, é parte de um desenvolvimento
dialético composto de três fases: “do Estado absolutista dos séculos XVII e
XVIII, passando pelo Estado neutro, do liberal século XIX, para o Estado total
da identidade entre Estado e sociedade”. Para o autor, portanto, o Estado total
é fruto da assunção da democracia de massa em detrimento dos ideais
políticos liberais fundados na separação entre Estado e sociedade.
7. Estado Totalitário
O último modelo de Estado a ser analisado é o totalitário. Nessa seara,
destaca-se o pensamento da filósofa Hannah Arendt. Em Origens do
Totalitarismo, seu primeiro livro publicado, a autora aponta que esse regime
político se difere pelo domínio absoluto pautado no terror, “não como meio
de extermínio e amedrontamento dos oponentes, mas como instrumento
corriqueiro para governar as massas perfeitamente obedientes120”. Domínio
absoluto deve ser compreendido como aquele que elimina as esferas do
público e privado: o domínio se estende a todas as esferas da vida.
A diferença entre o totalitarismo e a ditadura, na visão de Arendt, é que na
última se verifica o déficit legislativo e o abuso do Poder Executivo. O Estado
totalitário, por sua vez, não se funda sob tal compreensão: o terror é o ponto
elementar do sistema. Em outras palavras, a principal distinção entre o
domínio totalitário, baseado no terror, e as tiranias e ditaduras, mantidas
pelos aparatos de violência, é que o primeiro se volta não apenas contra os
seus inimigos mas também contra os amigos, pois teme todo o poder, até
mesmo o poder dos amigos. Nos termos de Arendt121, o clímax do terror é
alcançado “quando o Estado policial começa a devorar os seus próprios filhos,
quando o carrasco de ontem torna-se a vítima de hoje”.
Portanto, é fácil perceber a distinção entre o Estado absoluto e o totalitário.
Em tal cenário, que tem o terror como método político, o campo de
concentração é o palco onde o regime totalitário encena sua nefasta
representação. O objetivo é estabelecer o domínio total, isto é, processo em
que se buscou interferir na natureza humana com base no terror absoluto.
Segundo doutrina de Hannah Arendt122, os passos para o domínio total
são: a) a morte da personalidade jurídica, isto é, a paulatina privação de
direitos dos grupos a serem exterminados; b) a morte da consciência ou
personalidade moral, realizada pela elevação da moralidade irracional ao
status de regra; c) a morte da personalidade humana, ou seja, da singularidade
de cada um sem lhe roubar a vida biológica. Nos campos de concentração, as
pessoas eram desprovidas dos elementos que lhe distinguiam como
indivíduos (nomes, roupas, cabelos) de modo a demonstrar a sua
superfluidade. O objetivo era destituir o ser humano de sua liberdade.
Por detrás do sofisticado sistema eugênico mencionado, Arendt
identificava um mal incompreensível. Em 1963, a filósofa foi convidada pela
revista The New Yorker para acompanhar o julgamento do general nazista
Adolf Eichmann, autoridade responsável pela logística dos campos de
concentração, ou seja, por sua decisão as pessoas eram enviadas aos campos
de concentração. O homem que encaminhara centenas de milhares de
pessoas à morte seria um monstro? Ao contrário, Arendt relata que tinha
diante de si um homem normal, um típico e zeloso funcionário público que
repetia sistematicamente que apenas havia cumprido as ordens de seus
superiores. E aí estava a sua maior preocupação: “Eles sabiam [os julgadores],
é claro, que teria sido realmente muito reconfortante acreditar que Eichmann
era um monstro (...). O problema com Eichmann era exatamente que muitos
eram como ele, e muitos não eram nem pervertidos, nem sádicos, mas eram e
ainda são terrível e assustadoramente normais”123.
Para Arendt, essa perturbadora face da realidade mostrava que o
holocausto foi conduzido por pessoas sãs, que aquele mal não fora perpetrado
por monstros mitológicos ou por pessoas com capacidades cognitivas
debilitadas. Com o livro Origens do Totalitarismo, escrito em 1951, a
pensadora buscava compreender um mal que se mostrava radical com base
no conceito forjado por Kant124. Ao publicar o livro Eichmann em Jerusalém,
em 1963, Arendt criou o termo banalidade o mal, caracterizado por ser vão,
insignificante, um mal que não tinha motivos “humanamente
compreensíveis”. Ou seja, no domínio totalitário, a vida não tem qualquer
valor.
O totalitarismo demandou uma renovação das tradicionais categorias
jurídicas, uma vez que seus crimes não estavam previstos em nenhum
ordenamento jurídico: tratava-se de uma nova espécie de crime (os massacres
administrativos) e de um novo tipo de criminoso: aquele que age contra a
humanidade.
Para Hannah Arendt, o holocausto levado a cabo pelo Estado totalitário
produziu um mal além da compreensão humana, o mal tornado banal,
cotidiano, trivial.
Conclusões
1. O Estado absoluto, sob o ponto de vista histórico-constitucional, é
aquele no qual o poder está concentrado em apenas uma autoridade, que o
utiliza com discricionariedade desde que limitado pelas próprias tradições e
costumes. Não se confunde com a tirania, que é a utilização do poder pelo
governante em seu autobenefício.
2. Estado civil é o que dispõe de um governo exercido pelos cidadãos como
oposição a um modelo absoluto. Teve como arauto diversos pensadores,
dentre os quais os contratualistas dos séculos XVII e XVIII.
3. Estado liberal é fruto de uma ideologia que alça a garantia da liberdade
individual como principal fundamento político, econômico, intelectual e
religioso do Estado. Para tanto, enuncia que o ente estatal deve intervir pouco
na dinâmica social. Defendia a propriedade privada como um de seus
principais fundamentos.
4. Estado social e de bem-estar surgiu no Ocidente, em especial na Europa,
como resposta ao avanço comunista no século XX. Trata-se de uma variação
do Estado liberal, em que se prevê maior intervenção estatal na sociedade em
busca de justiça social.
5. Estado democrático de Direito é resultado da combinação da
democracia (soberania popular) e Estado de Direito (limitação do poder pela
legalidade). A junção das duas ideologias encontrou no constitucionalismo
um terreno fértil para se desenvolver.
6. Estado total é uma hipótese concebida por Carl Schmitt, na qual se
verifica a liquefação das esferas do Estado e da sociedade por conta da
democracia de massa. O resultado, na visão de Schmitt, é a inexistência de um
espaço pessoal alheio à intervenção pública.
7. O Estado totalitário teve seu apogeu no século XX, sobretudo durante as
ditaduras nazista, de Adolf Hitler, e stalinista, de Josef Stalin. Trata-se de um
regime que se vale do terror como instrumento de domínio, tendo provocado
genocídios ao longo de sua existência. O Estado totalitário é um atentado
contra a dignidade humana por nele vicejar a banalidade do mal (Hannah
Arendt).
1. Formas de Estado
O Estado, do latim status, significa condição, ordem, posição. Trata-se de
uma realidade complexa, presente na vida de todas as pessoas, as quais, ao
nascerem, já assumem vínculos dos quais somente poderão se libertar em
situações específicas previstas na lei ou na Constituição. Conforme tratado no
início deste livro, foi Maquiavel quem utilizou pela primeira vez o termo
Estado.
No que tange à distribuição geográfica do poder, as formas de Estado mais
utilizadas são: a) Estado unitário; b) Estado regional ou autônomo; c) Estado
federal. Por ser a forma adotada pelo constituinte de 1988, será conferido
enfoque especial ao Estado federal, tratando também de algumas
características peculiares presentes na Constituição de 1988 e a divisão de
competências entre os entes federativos.
2. Formas de Governo
Existem vários modos de classificar as formas de governo. Uma delas, feita
por Aristóteles, consiste em seis formas distintas: monarquia, aristocracia,
república, tirania, oligarquia e democracia. Outro critério é o estabelecido por
Maquiavel e desenvolvido posteriormente por Montesquieu, que, por sua vez,
classificou os governos em republicano, monárquico e despótico.
Convém refletir, separadamente, sobre cada uma das formas de governo.
Adotaremos o padrão estabelecido por Montesquieu (monarquia, república e
despotismo ou tirania) e incluiremos nesta análise a aristocracia e a
oligarquia, sugeridas por Aristóteles. A democracia será estudada no último
capítulo deste livro.
2.1 Monarquia
A monarquia é uma forma de governo bastante antiga. Dante Alighieri
(1265-1321), notabilizado pela Divina Comédia, realizou estudos específicos
sobre essa forma de governo, defendendo a necessidade de estabelecer a
separação entre o poder religioso (que legitimava a ascensão do rei como
representante de Deus perante todos os seus súditos) e o poder civil131. Para
Montesquieu132, o governo monárquico “é aquele onde um só governa, mas
através de leis fixas e estabelecidas”.
Nos regimes monárquicos, o monarca é vitalício no cargo e pode não
responder pelos atos praticados no exercício do poder, a depender do regime
jurídico de cada país. Outra característica é que a sucessão ocorre de modo
hereditário, ou seja, transmite-se a coroa apenas aos familiares do monarca.
Portanto, não há eleições para a escolha de um rei.
Historicamente, surgiram primeiro as monarquias absolutas, nas quais o
monarca detinha todo o poder, exercendo-o da maneira que desejasse.
Depois, no decorrer do século XVIII, verifica-se o apogeu das monarquias
constitucionais, em que o rei ainda detinha o poder, mas estava submetido às
limitações estabelecidas na Constituição.
O poder do monarca continuou sofrendo limitações, com a instauração
das monarquias parlamentaristas. No sistema parlamentarista de governo,
conforme será estudado adiante, existe a divisão entre a chefia de Estado (a
cargo do rei ou do Presidente) e a chefia de Governo (exercida pelo Gabinete
de Ministros, tendo à frente um primeiro ministro, o qual efetivamente
governa).
A monarquia inglesa é a mais tradicional em curso no Ocidente. Nasceu
absoluta e começou a se tornar constitucional ainda nos idos do século XIII,
quando se adotou a Magna Carta133 como forma de se conter o poder real.
No século XVII, outros três documentos fortaleceram o Parlamento bem
como ampliaram as garantias dos cidadãos ante o rei: a Petição de Direitos de
1628, a Lei do Habeas Corpus de 1679 e a Declaração de Direitos de 1689.
2.2 República
A república é uma forma de governo que se opõe à monarquia, em clássica
definição de Nicolau Maquiavel. Etimologicamente, deriva do latim res
publica: res (coisa) e publica (do povo, que pertence a todos). Significa, por
conseguinte, coisa comum, pertencente a todas as pessoas vinculadas a
determinado espaço territorial com um governo soberano. Está relacionada
com a satisfação dos interesses públicos e à realização do bem comum, tendo
sentido oposto à res privata (coisa particular). Por essa razão, Montesquieu134
aduz que “o governo republicano é aquele no qual o povo em seu conjunto,
ou apenas uma parte do povo, possui o poder soberano”.
Na república, os governantes são eleitos, representam o povo e devem agir
inspirados pelo princípio da igualdade, exercendo mandato com
responsabilidade e por tempo previamente determinado. Podem ser
extraídos, portanto, os requisitos indispensáveis para que se possa falar na
existência de um regime republicano: a) governantes que representam o povo;
b) mandato concedido pelo voto popular; c) exercício do mandato por tempo
determinado; d) regra geral de igualdade entre as pessoas, permitidas
distinções em função da natureza do cargo, desde que justificadas tendo em
vista o sistema constitucional em questão; e) responsabilidade dos
governantes e autoridades públicas pelos atos praticados em razão do cargo; f)
igual dever de responsabilidade de todo cidadão pelo bem comum135.
O princípio republicano está vinculado ao princípio da igualdade de todos
perante a lei. Observa Geraldo Ataliba136 que a igualdade é um corolário do
princípio republicano: “Princípio constitucional fundamental, imediatamente
decorrente do republicano, é o da isonomia ou igualdade diante da lei, diante
dos atos infralegais, diante de todas as manifestações do poder, quer
traduzidas em normas, quer expressas em atos concretos. Firmou-se a
isonomia, no direito constitucional moderno, como direito público subjetivo
a tratamento igual de todos os cidadãos pelo Estado”.
Dadas as suas peculiaridades históricas, o Brasil tem buscado tornar efetivo
o princípio republicano. O século XX foi marcado por suspensões de direitos
políticos dos cidadãos, mais precisamente durante o Estado Novo de Getúlio
Vargas (1937-1945) e o Estado de exceção instaurado pelos militares (1964-
1985). Além disso, é complexa a tarefa de efetivar a igualdade entre as pessoas
e responsabilizar os governantes pelos atos praticados em razão de sua
função, questões que estão sendo observadas apenas nas últimas duas
décadas.
Machado de Assis explorou com velada ironia o movimento republicano
no Brasil na obra Esaú e Jacó, publicada em 1904. Em uma passagem do livro,
Custódio, doceiro, dono de uma confeitaria no Rio de Janeiro chamada
“Confeitaria do Império”, solicitara a feitura de uma tabuleta nova, pintada à
mão. Não sabia, no entanto, que estavam às vésperas da Proclamação da
República. Ocorrido tal evento, não poderia mais manter o antigo nome, em
especial por seu comércio se localizar na Rua do Catete, próximo ao Palácio
do Governo. “Confeitaria da República” foi a indicação natural feita pelo
Conselheiro do império Aires, mas foi negada por Custódio já que em pouco
tempo a monarquia poderia ser restaurada. Aires, então, indicou o que lhe
parecia mais conveniente: “Confeitaria do Governo”137.
Recôndito em tal episódio está a mordaz crítica de Machado de Assis: a
passagem da monarquia para a república representou mera troca de tabuleta,
um engodo que apenas reformava a fachada do país sem ao menos tocar nas
solidificadas estruturas e encanamentos do período colonial e monárquico.
Ao povo alheio, a república se estabeleceu da mesma forma que a
independência: sem a participação popular. Marcus Vinícius Furtado Coêlho
conta uma passagem curiosa sobre a Proclamação da República: “no término
da parada, foi deixado um débito de vinte e nove mil réis para um taverneiro.
Esse comerciante tornou-se, sem querer, o melhor símbolo do papel do povo
no novo regime: aquele que paga a conta” 138.
2.4 Aristocracia
A forma aristocrática é definida como o governo dos melhores, com base
na etimologia da palavra grega áristoi. A compreensão de que um grupo de
pessoas seria o melhor na condução dos assuntos político-governamentais é
um dos temas mais tradicionais da filosofia política, variando segundo cada
concepção.
Para Platão, em sua cidade idílica, a Callipolis, descrita no livro A
República, o governo deveria ser confiado aos sábios ou filósofos como
conhecedores da verdade e da moral. Somente por esse critério se atingiria a
justiça e o bem na cidade, construída por um sistema de castas em que cada
um exerceria suas atividades de acordo com sua aptidão.
Já Aristóteles141 conjuga a virtude aristocrática ao bom cidadão,
conquistada entre os melhores pela melhor formação: “quando falamos de
um bom comandante, entendemos por isso um homem de juízo e de honra;
exigimos, sobretudo a prudência naquele que governa”. O autor não
acreditava que qualquer pessoa estaria apta a participar das discussões
políticas na ágora, mas somente aqueles que dispunham de uma casa para
lhes proporcionar o tempo necessário142.
Montesquieu143 não indica qual classe de cidadãos deveria pertencer ao
governo aristocrático. Para ele, o corpo aristocrático possui força para
reprimir o povo e conduzir a política. No entanto, é complexo a essa classe
reprimir a si mesma. Por isso, o autor identifica a virtude da moderação como
sendo a alma do governo aristocrático.
2.5 Oligarquia
A oligarquia, assim como a aristocracia, remete à noção de um governo
exercido por poucos. Entretanto, a oligarquia adquiriu um significado
negativo e, com o tempo, passou a significar o governo dos ricos
(plutocracia). Seu telos é o de fortalecer seus próprios governadores,
aumentando a desigualdade e impedindo a renovação política do Estado.
Assim, a oligarquia não é ruim por possibilitar a poucos governarem, mas por
seus objetivos serem úteis apenas aos próprios governantes e aos que lhes
rodeiam e lhes conferem suporte.
O sentido pejorativo dessa palavra certamente se deveu à influência da
filosofia grega. Aristóteles144, por exemplo, qualifica a oligarquia como a
forma degenerada da aristocracia e obtém o “segundo lugar entre os governos
depravados”, sendo apenas melhor que a tirania. Destarte, os aristocratas se
transformam em oligarcas quando perdem o bem comum de vista e passam a
lutar por seus interesses financeiros.
Sob esse ponto de vista, os cargos do governo seriam ocupados por aqueles
que possuem mais posses, não exatamente os mais virtuosos. O último estágio
da oligarquia se dá quando os mais ricos eliminam os seus adversários,
fundando monarquias denominadas dinastias.
3. Sistemas de Governo
Os principais sistemas de governo adotados, na atualidade, são o
presidencialista e o parlamentarista. A distinção estrutural entre os dois
modelos é o grau de participação do Legislativo nas tarefas do governo:
enquanto o primeiro lega mais competências ao Executivo, no
parlamentarismo há uma participação mais efetiva do Legislativo no governo.
Além dessas, indicamos os sistemas diretorial e de conselhos como modelos
distintos que também são apontados pela doutrina.
3.1 Presidencialismo
A principal influência ocidental para a adoção do presidencialismo como
sistema de governo advém dos Estados Unidos, uma vez que a Europa é
tradicionalmente formada por países que adotam o parlamentarismo.
O presidencialismo ocorre apenas em regimes republicanos e ganha
contornos peculiares em cada país. Contudo, pode-se indicar alguns atributos
gerais que lhe são característicos, como a concentração de poderes nas mãos
do Presidente (que assume, a um só tempo, a chefia de Estado e a chefia de
Governo), a escolha pelo voto popular para exercer mandato por prazo
determinado, e a prerrogativa total do partido ou coligação vencedora na
formação do governo, o que inclui a nomeação dos ministérios e cargos de
alta direção.
Outro ponto de relevo é o da relação entre o Presidente e o Legislativo,
marcada pela independência, uma vez que não há subordinação entre essas
esferas distintas. O chefe do Executivo de cada ente da federação (federal,
estadual e municipal) tem poder de vetar os projetos de lei aprovados pelo
Poder Legislativo, o que, em tese, não inviabiliza o nascimento da lei, pois o
veto pode ser superado (derrubado), como ocorre, por exemplo, em face da
Constituição brasileira. Por sua vez, as principais atribuições do Poder
Legislativo são o processo legislativo e a fiscalização dos atos governamentais.
O Presidente da República pode ser destituído do cargo pelo processo de
impeachment, julgamento político realizado no âmbito do Poder Legislativo.
Aléxis de Tocqueville145 definiu o julgamento político como “a sentença
pronunciada por um corpo político momentaneamente dotado do direito de
julgar”. No Brasil, a Constituição de 1988 estabelece dois critérios para o
julgamento do Presidente: por crime comum, será o Supremo Tribunal
Federal o órgão competente para o processamento e julgamento da denúncia;
por crime de responsabilidade, o processo correrá perante o Senado Federal,
após o exame de admissibilidade da Câmara dos Deputados. Em nossa
história recente, houve dois julgamentos de impeachment que destituíram os
chefes do Executivo federal: Fernando Collor de Mello (1992) e Dilma
Rousseff (2016)146.
3.2 Parlamentarismo
No sistema parlamentarista de governo, ao contrário do presidencialista, o
núcleo do poder estatal é bipartido: o monarca (como no Reino Unido e na
Espanha) ou Presidente (como na Itália e na Alemanha) exerce a chefia de
Estado, e o primeiro ministro147, escolhido pelo Parlamento, responde pela
chefia de governo.
Por conseguinte, o monarca ou Presidente, no exercício da chefia do
Estado, constitui-se em sua figura representativa na ordem internacional,
podendo não ser responsabilizado pelas atividades governamentais.
Outrossim, não exerce, internamente, atividades de governo. Daí se falar no
brocardo latino Rex regnat et non gubernat (o rei reina, mas não governa). Já
o primeiro ministro exerce o governo com responsabilidade política e, não
tendo mandato por prazo determinado, permanece no cargo enquanto tiver
apoio parlamentar. Ele terá que deixar o cargo, no entanto, em duas
hipóteses: quando perder a maioria no Parlamento ou mediante a moção de
desconfiança.
Essa divisão constitui uma necessária relação de dependência entre
governo e Legislativo, de modo oposto ao sistema presidencial, cuja regra é a
independência. Para Michel Temer148, “no parlamentarismo, verifica-se o
deslocamento de uma parcela da atividade executiva para o Legislativo. Nesse
particular fortaleceu-se a figura do Parlamento, que, além da atribuição de
inovar a ordem jurídica em nível imediatamente infraconstitucional, passa a
desempenhar, também, função executiva”. Assim, no sistema parlamentarista
há maior cooperação entre o Legislativo, que se vincula diretamente ao
governo, uma vez que o Gabinete é constituído pela maioria parlamentar que
mantém o Primeiro Ministro. Por tal razão, Philippe BRAUD149 o define
como o “regime político em que o governo que exerce o poder em nome de
um chefe de Estado irresponsável é politicamente responsável frente a uma
Assembleia Nacional sujeita à dissolução”.
Em resumo, portanto, identificam-se no parlamentarismo três
características peculiares: a) Executivo dualista (cujas competências se
fracionam em chefia do Estado e do governo); b) governo com
responsabilidade política (sistema fundado no consenso, não se mantendo
pela lógica majoritária. A demissão do governo pode ocorrer mediante moção
de desconfiança do Parlamento. Existe também a moção de censura, quando
o Legislativo indica que o governo deve alterar a sua política); c) Câmara
baixa ou Câmara dos Comuns sujeita a dissolução pelo Chefe de Estado
(passível no caso de a chefia de Estado considerar que esta Casa não mais
representa os interesses do povo. Ato contínuo, convocam-se eleições
legislativas)150.
3.3 Diretorial
No sistema diretorial, o governo é exercido por um diretório tendo como
base o Poder Legislativo. O exemplo a ser citado é a Suíça. O Poder
Legislativo é exercido pela Assembleia Federal, composta, em sistema
bicameral, pelo Conselho dos Estados (46 membros) e pelo Conselho
Nacional (200 membros). A Assembleia Federal escolhe sete de seus membros
para compor o Conselho Federal Suíço. E é esse Colegiado que exerce o
governo, embora a Assembleia Federal possa invalidar as decisões tomadas
por ele.
Consoante José Luiz Quadros de Magalhães151, as duas principais
características desse sistema são: a) a plena despersonificação do poder por
meio de “um governo coletivo subordinado a um coletivo ainda maior”, ou
seja, o Executivo (diretório) não tem independência, mas está organicamente
inserido no Legislativo. Não há lideranças: as matérias são decididas
coletivamente, cujos projetos possuem apenas coordenadores de trabalhos
escolhidos por revezamento periódico; b) inexiste dissolução do Parlamento
nem deposição governamental, porquanto o governo se submete amplamente
aos legisladores.
3.4 Conselhos
O sistema de conselhos não existe na atualidade. Na verdade, trata-se de
um modelo incomum, surgido em momentos de ebulição revolucionária e
com duração muito curta. É Hannah Arendt quem nos apresenta esse sistema
de governo. Segundo a filósofa, os conselhos surgiram de modo espontâneo
ao longo do século XIX, baseados primeiramente na luta dos trabalhadores.
No afã de conquistar seus direitos, entravam em choque com o poder político
existente e, por vezes, subjugavam-no. O traço que mais chama atenção da
filósofa era a espontaneidade com que os conselhos apareceram e a força que
tiveram alimentados pela intensa participação popular.
Eles surgiram de modo espontâneo uma vez que não eram intermediados
pelos partidos políticos. Como não tinham uma liderança intencionada a se
enquadrar na burocracia do Estado, acabaram sendo todos reprimidos pelas
forças estatais. Assim, nas palavras de Arendt152, “sob as circunstâncias mais
variadas, [o sistema de conselhos] surge de modo abrupto e inesperado, para
de novo desaparecer qual fogo-fátuo, sob diferentes condições misteriosas”.
A aparição desse sistema ocorreu em alguns momentos revolucionários –
na França, em 1870, quando o exército da Prússia marchava sobre Paris e a
população se organizou de modo espontâneo em pequenas repúblicas que
germinaram posteriormente na Comuna de Paris, no ano seguinte; na Rússia,
em 1905, quando uma intensa onda de greves liderada pelos operários
propiciou a formação dos colegiados dos sovietes, uma liderança política cuja
autogestão era alheia aos triviais partidos da época; na Rússia novamente com
os sovietes153, na Revolução de 1917; em 1918 e 1919 na Alemanha, entre o
fim da Primeira Guerra e a instauração da República de Weimar; e em 1956,
durante a Revolução Húngara, quando os estudantes derrubaram o governo,
que foi reestabelecido pelos soviéticos poucos dias depois154.
Conclusões
1. A forma de Estado designa a arquitetura ou divisão institucional do
território adotada. São quatro as formas de Estado mais conhecidas:
a) Estado unitário: não há divisão territorial. O poder é concentrado,
irradiando-se do centro para as extremidades de todo o território
nacional.
b) Estado regional ou autônomo: embora o Estado nacional detenha o
controle da administração pública, as regiões possuem autonomia em
determinadas matérias.
c) Estado federal: opõe-se ao Estado unitário, na medida em que há
descentralização do poder entre os estados-membros. As federações
podem ser classificadas de quatro formas: (I) Quanto à origem:
federalismo por agregação ocorre quando os estados fundam o governo
central, como ocorreu nos Estados Unidos e na Suíça; e por segregação,
quando o Estado unitário é dividido, como ocorreu com o Brasil.
(II) Quanto à força no arranjo federal: federalismo centrípeto é aquele em que há
mais força no centro; centrífugo é o seu oposto, quando a força política deixa o
centro para as extremidades; e federalismo de equilíbrio se verifica quando existe
balanceamento nas forças.
(III) Quanto à divisão de competências: federalismo dual, quando há exclusividade
nas competências de cada ente-federativo; e de cooperação, quando as esferas
atuam em conjunto na consecução de uma determinada tarefa.
(IV) Quanto à simetria ou assimetria: aqui, há variação segundo o critério em
análise. Por exemplo: é simétrica a composição do Senado brasileiro (3 senadores
por Estado), enquanto a Câmara dos Deputados é assimétrica (varia conforme a
proporção populacional).
125 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 358.
126 Em 2016 foi realizada uma reforma administrativa na França, que redistribuiu em 18 as regiões
administrativas, contra 27 que eram adotadas desde 1982.
127 MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Pacto Federativo. Belo Horizonte. Mandamentos: 2000, p.
137.
128 ARAUJO, Luiz Alberto David. Características Comuns do Federalismo. Por Uma Nova Federação.
Celso Bastos (Org.). São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 40.
129 A confederação é usualmente utilizada como forma de aliança entre Estados soberanos. Visa a
obtenção de um objetivo comum (como comércio ou defesa). Os Estados confederados não perdem
sua soberania, enquanto na federação o ente soberano é o Estado nacional e os entes federativos
dispõem de prerrogativas e autonomias, mas não de soberania.
130 Assim dispõem os dois primeiros artigos do Decreto 1 de 1889: Artigo 1º. Fica proclamada
provisoriamente e decretada como a forma de governo da nação brasileira - a República Federativa.
Artigo 2º. As Províncias do Brasil, reunidas pelo laço da federação, ficam constituindo os Estados
Unidos do Brasil.
131 ALIGHIERI, Dante. Monarquia. São Paulo: Escala, s.d., p. 38.
132 MONTESQUIEU. O Espírito das Leis. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p.19.
133 Para aprofundar a pesquisa nesta temática, confira: FACHIN, Zulmar; SAMPAR, Rene. Oitocentos
Anos da Magna Carta de 1215 e a Luta pelo Estado de Direito. In FACHIN, Zulmar; LIMA, Jairo
Néia; PONA, Éverton Willian (Orgs.). Magna Carta: 800 anos de influência no constitucionalismo e
nos direitos fundamentais. Curitiba: Juruá, 2016, p.35-44.
134 MONTESQUIEU. O Espírito das Leis, p.19.
135 A respeito deste último ponto, Karl Doehring lembra que na república o poder se transfere ao povo.
Logo, há responsabilidades republicanas aos cidadãos, como serviço militar obrigatório, atuação
como jurado, mesário nas eleições, entre outras. Cf: DOEHRING, Karl. Teoria do Estado. Belo
Horizonte: Del Rey, 2008, p. 239-240.
136 ATALIBA, Geraldo. República e Constituição. 2 ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 158.
137 A ironia de Machado neste discurso é muito clara. No entanto, não ficou por aí. Custódio alegou
que todo governo tem oposição, e a sua confeitaria poderia ser alvo de críticas. Sugeriram
“Confeitaria do Catete”, em homenagem ao seu local. Por fim, para evitar problemas, Aires indicou
“Confeitaria do Custódio”, pois assim não haveria problemas com a política. Sua justificativa foi:
“Um nome, o próprio nome do dono, não tinha significação política ou figuração história, ódio nem
amor, nada que chamasse a atenção dos dois regimes, e conseguintemente que pusesse em perigo os
seus pastéis de Santa Clara, menos ainda a vida do proprietário e dos empregados” [...]. Disse
Custódio: “Sim, vou pensar, Excelentíssimo. Talvez convenha esperar um ou dois dias, a ver em que
param as modas”. ASSIS, Machado. Esaú e Jacó. São Paulo: FTD, 2002, p. 140-142.
138 COÊLHO, Marcus Vinícius Furtado. Direito Eleitoral e Processo Eleitoral. 3 ed. rev. atual e ampl.
Rio de Janeiro, 2012, p. 03.
139 MONTESQUIEU. O Espírito das Leis, p. 19 e 37.
140 LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la Constitución. Barcelona: Editorial Ariel, 1983, p. 28.
141 ARISTÓTELES. A Política, p. 49.
142 Na visão de Aristóteles, o melhor Estado não fará do trabalhador um cidadão. Com isso, o polímata
grego queria dizer que as questões públicas eram de importância primordial. Todos aqueles que
consumiam grande parte de seu tempo com o trabalho para garantir sua sobrevivência não
conseguiriam assumir tais atividades.
143 MONTESQUIEU. O Espírito das Leis, p. 34.
144 ARISTÓTELES. A Política, p. 118-119.
145 TOCQUEVILLE, Alexis. A Democracia na América: Leis e Costumes. São Paulo: Martins Fontes,
1998, p.121.
146 O Ministro Luiz Edson Fachin, no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental n. 378, fixou a natureza jurídica do processo de impeachment em face de Presidente da
República: a) Decorre do regime republicano e democrático a possibilidade de responsabilização do
mandatário máximo da nação; b) É no preceito fundamental da relação entre os poderes que se deve
buscar a natureza jurídica do impeachment, definido como um modo de se exercer o controle
republicano do Poder Executivo; c) A exigência de lei específica, de um lado, e as garantias
processuais, de outro, permitem configurá-lo como modalidade limitada de controle, na medida em
que, sendo a República um fim comum, ambos os poderes devem a ele dirigir-se; d) O limite, por sua
vez, decorre do fato de que não se pode, sob o pretexto de controle, desnaturar a separação de
poderes; e) Não se pode identificar o instituto do impeachment, próprio dos regimes
presidencialistas, com a moção de desconfiança, própria dos regimes parlamentaristas; f) O regime
presidencialista, mais rígido do que o parlamentarista sobre as causas de responsabilização do Chefe
do Poder Executivo, adota tipificação jurídico-política dos crimes de responsabilidade; g) Ainda
assim, é de natureza jurídico-política o julgamento constitucionalmente atribuído ao Parlamento; h)
A opção constitucional por um sistema de governo presidencialista impõe que se interprete o
instituto do impeachment tanto sob o prisma dos direitos e garantias individuais do ocupante de
cargo público, quanto pela reserva de estrita legalidade, corolário para a harmoniosa relação entre os
poderes. Ao Judiciário, na figura do Supremo Tribunal Federal”, compete “o controle da estrita
legalidade procedimental do processo de impeachment, assegurando que o juízo jurídico-político de
alçada do Parlamento, passível de controle judicial apenas e tão somente para amparar as garantias
judiciais do contraditório e ampla defesa, se desenvolva dentro dos estritos limites do devido
processo legal.
147 Esse vocábulo varia segundo o idioma oficial de cada país. Assim, na Alemanha tal função é
designada por Chanceler, na França por Premier Ministre, na Itália por Primo Ministro e no Reino
Unido por Prime Minister.
148 TEMER, Michel. Elementos de Direito Constitucional. 22 ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 160.
149 BRAUD, Philippe. Sociologie Politique. 3 ed. Paris: L.G.D.J., 1996, p. 171.
150 GROFF, Paulo Vargas. Modelos de parlamentarismo: inglês, alemão e francês. In Revista de
Informação Legislativa, Brasília, n. 160, out-dez. 2003, p. 139-140.
151 MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. O Sistema Diretorial. Disponível em: <
http://joseluizquadrosdemagalhaes.blogspot.com.br/2010/08/teoria-do-estado-26.html>. Acesso em:
17/04/2021.
152 ARENDT, Hannah. Sobre a Revolução, p. 30-31.
153 Embora Hannah Arendt reconheça a importância dos sovietes no início da revolução na Rússia, a
filósofa em nenhum momento concordou com a posterior ditadura engendrada pelo partido.
Lembre-se que Arendt foi duramente criticada quando classificou como totalitários (e equivalentes)
os regimes nazista e socialista, fato que veio à tona ao longo do governo de Josef Stalin. Para
aprofundar essa questão, sugerimos a leitura da magnífica obra Origens do Totalitarismo:
antissemitismo, imperialismo, totalitarismo.
154 Hannah Arendt trabalha o sistema de conselhos no livro Sobre a Revolução, cuja leitura se
recomenda pela riqueza de suas análises políticas.
VI
O Poder Constituinte
1. Poder Constituinte: Fazer e Alterar a Constituição; 2. Poder Constituinte e
Poderes Constituídos; 3. Poder Constituinte Originário. 3.1 Noção; 3.2 Natureza;
3.3 Titular; 3.4 Agente; 3.5 Formas de Manifestação; 3.6 Características. 4. Poder
Reformador. 4.1 Noção; 4.2 Natureza; 4.3 Titular; 4.4 Agente; 4.5 Formas de
Manifestação; 4.6 características. 5. Poder Constituinte Decorrente. 6. Poder
Constituinte e Poder Judiciário. 7. Poder Constituinte Transnacional. Conclusões.
3.2 Natureza
É bastante controvertida a natureza do poder constituinte. Para alguns, de
formação jusnaturalista, é poder de direito. Para outros, em regra positivistas,
trata-se de um poder de fato.
De acordo com a primeira tese, o poder constituinte originário é um poder
de direito, tendo por fundamento o direito natural, que é anterior e superior
ao direito do Estado. Para Ferreira Filho162, “deste direito natural decorre a
liberdade de o homem estabelecer as instituições por que há de ser
governado. Destarte, o poder que organiza o Estado, estabelecendo a
Constituição, é um poder de direito”.
O poder constituinte originário é compreendido também como um poder
de fato. Para os que assim o entendem, ele se encontra vinculado à realidade
concreta da vida social em determinado espaço territorial. Sob esse enfoque,
dizer que é um poder de fato equivale a dizer que é um poder político.
Esclarece Carlos Ayres Britto163 que “estamos a falar de um poder
exclusivamente político, porque originariamente imbricado em toda a polis,
naqueles raros instantes em que a polis se sobrepõe ao Estado para dizer, por
ela mesma, sob que tipo de Direito-Constituição quer viver”.
3.3 Titular
A titularidade do poder constituinte tem mudado de acordo com as
circunstâncias históricas. Primeiro, pertenceu a Deus; depois, ao monarca;
mais tarde, à nação; atualmente, ao povo.
Deus. Na tradição judaico-cristã, Deus é a única fonte de todo o poder que
já existiu. Assim, toda autoridade provém de Deus. É ao Seu poder (supremo
no Universo) que os homens devem estar submetidos. Tal fundamento pode
ser encontrado na Epístola de São Paulo aos Romanos164: “cada qual seja
submisso às autoridades constituídas, porque não há autoridade que não
venha de Deus; as que existem foram instituídas por Deus”. Se todo o poder
advém de Deus, a titularidade do poder constituinte a Ele pertence.
Monarca. O monarca, concentrando em suas mãos todo o poder terreno,
colocava-se como intermediário entre o povo e a divindade. Lembra Badie
Bertrand165 que “o príncipe é admitido como soberano legítimo porque
sendo à imagem de Deus, ele não pode por definição contrariar a vontade
divina”. Mas a luta travada contra o absolutismo “deslocou a soberania do
príncipe para a comunidade política a fim de romper com a divinização da
autoridade real”.
Os monarcas exerciam o poder de modo absoluto. Foi o caso, por exemplo,
de Luís XIV na França pré-revolucionária. Quando o Rei Sol dizia L’État C’est
moi (o Estado sou eu), estava, em verdade, afirmando que o poder
constituinte originário lhe pertencia, pois ele detinha em suas mãos todo o
poder terreno.
Os revolucionários franceses substituíram o titular da soberania. Essa
passou a residir essencialmente na Nação, ficando proibido a qualquer órgão
ou indivíduo, especialmente ao monarca, exercer sem responsabilidade algum
tipo de autoridade que não tivesse sua origem na Nação.
Nação. Na concepção de Emmanuel Sieyès, conforme citado
anteriormente, a titularidade do poder constituinte pertencia à Nação, única
fonte legítima capaz de fazer uma Constituição. Quando se desejar construir
os fundamentos da ordem jurídica, deve-se recorrer a ela, pois “em toda
nação livre – e toda nação deve ser livre – só há uma forma de acabar com as
diferenças, que se produzem com respeito à Constituição. Não é aos notáveis
que se deve recorrer, é à própria nação. Se precisamos de Constituição,
devemos fazê-la. Só a nação tem direito de fazê-la”166.
Povo. Nos tempos atuais, tem-se entendido que o titular do poder
constituinte originário é o povo167, um dos elementos constitutivos do
Estado. Nesse sentido, afirma Carré de Malberg168 que “a soberania primária,
o poder constituinte, reside essencialmente no povo, na totalidade e em cada
um dos seus membros”.
Há pouco mais de uma década, em face da elaboração da Constituição para
a União Europeia, que enfrenta resistências, a titularidade do poder
constituinte originário vem enfrentando um processo de transformação. Não
obstante haver divergências quanto à titularidade do poder constituinte
europeu, pode-se afirmar que, nesse específico contexto, ela já não pertence
tão somente ao povo. Os cidadãos europeus e os Estados membros da União
Europeia devem ser considerados nessa mutação de titularidade, que parece
atingir o poder constituinte.
3.4 Agente
O agente do poder constituinte originário é aquele que elabora a
Constituição. O agente não é órgão do Estado ou da Constituição; é órgão da
sociedade, imbuído da tarefa de fazer uma Constituição e (re)criar o Estado.
Esse órgão costuma ser a Assembleia Nacional Constituinte ou a Convenção
Constituinte.
Não se pode confundir o titular com o agente do poder constituinte
originário. O titular jamais deixa de existir, apenas se retira de cena. Seu berço
está fora do âmbito da obra que edita. Ao contrário de seu agente, ele, o
titular, não morre. Assevera Carlos Ayres Britto169 que “esse poder não se
exaure jamais na obra que edita. Sobrevive ao seu próprio labor (mas sempre
do lado de fora) e é assim que pode gestar quantas Constituições quiser. A
qualquer tempo”.
O agente, assim que é constituído, começa a caminhada lenta para sua
própria extinção. Elaborada a Constituição, ele desaparece, morre, deixa de
existir. Em 05 de outubro de 1988, por volta das dezessete horas, promulgada
a Constituição brasileira, a Assembleia Nacional Constituinte extinguiu-se.
Para sempre.
3.6 Características
Podem ser apontadas várias características para identificar o poder
constituinte originário. No âmbito desse estudo, entende-se o poder
constituinte como sendo inicial, incondicionado e ilimitado.
Inicial. O poder constituinte originário inicia, instaura, inaugura uma
nova ordem jurídica. Como já afirmado, ele pode fazer isso com base no nada
ou em uma ruptura. Na primeira hipótese, ele cria o fundamento de validade
do ordenamento jurídico. Na segunda, ele substitui esse fundamento.
Pode-se afirmar, com inspiração em Carlos Ayres Britto171, que com a
obra do poder constituinte, algo nasce e algo morre, visto que, a um só tempo,
o poder constituinte parteja e sepulta. No instante, em que o velho e o novo se
encontram mortalmente, o poder constituinte marca o féretro de uma
Constituição para, ato contínuo, partejar outra. Nesse sentido, a um só tempo
ele é poder constituinte e poder desconstituinte.
Sob tal perspectiva, reconhece J. J. Gomes Canotilho172 que, “no fundo, o
poder constituinte se revela sempre como uma questão de “poder”, de “força”
ou de “autoridade política” que está “em condições de”, numa determinada
situação concreta, criar, garantir ou eliminar uma Constituição entendida
como lei fundamental da comunidade política”.
O momento de ruptura – em que o velho morre e, em seu lugar, nasce o
novo – representa um ponto alto do constitucionalismo. A nova Constituição,
fundamento de validade da ordem jurídica, substitui um Estado por outro. Na
lição de Carlos Ayres Britto173, “só uma Constituição pode trocar o Estado
por outro. Não um Estado a trocar sua Constituição por outra. E mais: o
Direito feito para o Estado tem de permanecer o referencial do Direito feito
pelo Estado, durante todo o tempo de vigência da obra que uma dada
Assembleia Constituinte vier a promulgar”.
Por conseguinte, em 1988, no Brasil, não houve apenas a substituição de
uma Constituição por outra. O que ocorreu, na verdade, foi a substituição do
fundamento de validade do ordenamento jurídico. A nova Constituição, fruto
do poder constituinte originário, criou um novo tipo de Estado, passou a ser o
núcleo irradiador de legitimidade para todo o ordenamento jurídico.
Incondicionado. A incondicionalidade refere-se ao procedimento. O
poder constituinte cria as regras de acordo com as quais, em seguida,
trabalhará. Ele não está condicionado a nenhuma regra jurídica pré-existente,
podendo expressar-se por meio da forma que escolher. Cria suas próprias
regras (regimento interno), as quais observará a fim de elaborar a
Constituição (a primeira ou uma nova). Criadas as regras, ele passa a atuar
balizado por elas para elaborar a Constituição. É incondicionado, assim,
porque não precisa observar as regras jurídicas que existem e regulam o
nascimento de normas infraconstitucionais ou de normas constitucionais de
reforma.
Isso foi constatado por Emmanuel Sieyés174, teórico do poder constituinte:
“Qualquer que seja a forma que a nação quiser, basta que ela queira; todas as
formas são boas, e sua vontade é sempre a lei suprema”.
Pode-se mencionar o exemplo de 1987, quando, ao dar início aos trabalhos
de elaboração da Constituição, a Assembleia Nacional Constituinte aprovou
seu Regimento Interno, com base no qual passou a trabalhar, conforme
registro nos respectivos Anais175.
Ilimitado. O poder constituinte originário não conhece limites para atuar.
É livre para escolher os valores que pretende assegurar na Constituição. Por
exemplo, pode estabelecer o Estado federal ou o unitário, instituir ou proibir
a pena de morte, restringir o direito adquirido, entre outros.
O poder constituinte originário, por ser ilimitado, não fica submetido à
Constituição que edita. Ao contrário, poderá substituí-la, quando entender
necessário. Conforme lição de Emmanuel Sieyès176, “não só a nação não está
submetida à Constituição, como ela não pode estar, ela não deve estar, o que
equivale a dizer que ela não está”.
Entretanto, a referida afirmação precisa de maior explicação, uma vez que
vem sendo rechaçada pela doutrina. Para evitar anacronismo, é preciso
compreender por qual razão Sieyès via na nação uma potência absoluta. Na
época da Revolução Francesa, lutava-se contra um poder absoluto. Logo, era
necessário outro poder absoluto para fazer frente àquele. Com o passar do
tempo, percebeu-se que o Direito não dispõe de tal poder criador. Por tal
razão Norberto Bobbio177 aduz que “quando falamos de poder originário,
entendemos originário juridicamente, não historicamente”.
Considerando, portanto, que não mais se admite tal argumento, quais
seriam os limites ao poder constituinte originário? André Ramos Tavares178
aduz que são “implicações circunstanciais impositivas. São as pressões e
coações sociais, econômicas, de grupos particulares, tradições,
precondicionamentos ou predeterminações, preconceitos e toda a sorte de
fatores, que atuam direta ou indiretamente, de forma consciente ou não, na
elaboração do estatuto supremo de convivência humana dentro de
determinado território”.
Fala-se, por conseguinte, em uma ‘vontade de constituição’ capaz de
condicionar a vontade do criador. Indo um pouco além de André Ramos
Tavares, Gomes Canotilho179 mostra que existem alguns condicionantes ao
poder constituinte originário, os quais podem ser assim resumidos: a) Se a
Constituição a ser elaborada deve ter por escopo organizar e limitar o poder,
então o poder constituinte, ao fazer sua obra, estará condicionado por esta
“vontade de constituição”. Deseja-se o poder organizado e limitado e essa
circunstância condiciona a vontade do criador.
b) O poder constituinte é “estruturado e obedece a padrões e modelos de
condutas espirituais, culturais, éticos e sociais radicados na consciência
jurídica geral da comunidade”. Tais valores condicionam sua atuação.
c) Certos princípios de justiça, impregnados na consciência de homens e
mulheres, são condicionantes incontornáveis da liberdade e onipotência
do poder constituinte. Se pode tudo, já não lhe é permitido contrariar os
princípios de justiça, como, por exemplo, o de que não se deve lesar a
outrem.
d) O poder constituinte, embora seja a expressão máxima da soberania
popular no âmbito do Estado-nação, não pode simplesmente ignorar
princípios de direito internacional. Ao contrário, deve estar vinculado a
alguns desses princípios, tais como o princípio da independência, o
princípio da autodeterminação dos povos, o princípio da prevalência dos
direitos humanos, o princípio da igualdade entre os Estados, o princípio
da defesa da paz e o princípio da solução pacífica dos conflitos.
Oportuno lembrar também que é vedado qualquer retrocesso em
normas internacionais de proteção aos direitos humanos quando o
Estado, em algum momento, já as tenha reconhecido180.
4. Poder Reformador
4.1 Noção
O poder reformador tem vários nomes: poder constituinte reformador,
poder de reforma constitucional, poder constituinte de segundo grau, poder
constituinte secundário, poder constituído, poder instituído, poder de
emenda constitucional, poder de emendabilidade, poder constituinte
derivado, competência reformadora e competência constituinte derivada.
Para Michel Temer181, tal poder não constitui, pois é derivativo do originário.
Por isso ele o denomina de competência de reforma.
Utilizar-se-á a terminologia poder reformador. Trata-se do poder que,
previsto na própria Constituição, é encarregado de fazer suas alterações. Tal
competência, via de regra, é atribuída ao próprio Poder Legislativo, e visa
atualizar o texto constitucional de modo a adaptá-lo a novas necessidades,
impulsos e forças sociais. Tal plasticidade possibilita modificar a Constituição
dentro da própria ordem jurídica estabelecida, isto é, sem a necessidade de se
agir por meio do poder constituinte originário, dilatando a atualidade de seu
texto e a duração de sua ordem jurídica. O exemplo mais claro disso é a
Constituição dos Estados Unidos da América. Embora promulgada em 1787,
seu texto ainda permanece vigente, pois novas questões adquiriram status
constitucional por meio de emendas.
O poder reformador, na tarefa de alterar a Constituição, atua de duas
formas: emenda ou revisão. A emenda deve ser utilizada quando se pretende
fazer mudanças específicas, pontuais, localizadas (artigo 60). A revisão,
quando o objetivo for realizar alterações gerais na Constituição. Frise-se que,
no Brasil, já se fez uma revisão constitucional, não mais sendo possível
utilizar esse mecanismo para alterar a Constituição182.
4.2 Natureza
O poder reformador é um poder de Direito. Tem, portanto, natureza
jurídica, estando submetido às regras estabelecidas na Constituição Federal.
4.3 Titular
Pode-se identificar diferentes titularidades do poder de reforma: sob a
perspectiva a) de um órgão estatal, em regra o Parlamento é o seu titular,
sendo que, no caso brasileiro, seria o Congresso Nacional; b) do próprio
titular do poder constituinte originário, que é o povo. Se esse detém a
titularidade do poder de fazer a Constituição, nada impediria que a detivesse
para reformá-la, ou seja, em tese, ter-se-ia que admitir a iniciativa popular de
emenda constitucional, possibilidade não contemplada no Brasil.
4.4 Agente
O agente do poder reformador é um órgão estatal, indicado pelo poder
constituinte originário, devendo estar previsto na própria Constituição. No
caso brasileiro, é o Congresso Nacional que detém a competência para a
emenda à Constituição (artigo 60, parágrafo 2º). Mas não se deve olvidar que
o agente do poder de reforma constitucional será aquele que o poder
constituinte originário disser que é. Por exemplo, a Constituição francesa de
1958 atribuiu ao Presidente da República a competência para reformar a
Constituição.
4.6 Características
O poder reformador é derivado, condicionado e limitado. Trata-se,
portanto, de um poder localizado no campo do Direito que o Estado produz,
não existente por si, visto ter sido criado pelo poder constituinte originário.
Em outras palavras, ele está localizado dentro da ordem jurídica estabelecida
pelo poder constituinte originário, sendo seu contraponto.
Derivado. O poder de reforma do texto constitucional deriva do poder
constituinte originário, que o inseriu na Constituição. Ao contrário do seu
criador, ele não inaugura, não instaura, não implanta uma nova ordem
jurídica. Apenas atua no sentido de modificá-la.
Condicionado. O exercício do poder de reforma constitucional deve
observar os critérios estabelecidos na própria Constituição (artigo 60 da
Constituição e artigo 3º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias -
ADCT). O processo de iniciativa, elaboração, discussão, votação e
promulgação da emenda à Constituição será aquele estabelecido pelo poder
constituinte originário, completado, quando for o caso, por normas
regimentais.
Limitado. Há limites ao poder de reforma constitucional. Ele não é livre
para agir. As limitações a ele impostas são de várias espécies: processuais,
circunstanciais, temporais e materiais: As Limitações processuais são formais.
Em outras palavras, limitam o procedimento ou o modo de fazer. O poder
reformador, ao produzir normas constitucionais, terá que observar o
procedimento estabelecido na Constituição. Assim: 1) o projeto de emenda
constitucional deve ser subscrito pelo Presidente da República; por um terço,
no mínimo, de Deputados Federais ou Senadores; ou por mais da metade das
Assembleias Legislativas das unidades da Federação (artigo 60, incisos I, II e
III); 2) a aprovação da emenda constitucional deve obter, por duas vezes, os
votos favoráveis de três quintos dos parlamentares, em cada uma das Casas
do Congresso Nacional, ou seja, são necessários três quintos dos votos, duas
vezes na Câmara dos Deputados, e três quintos dos votos, duas vezes no
Senado (artigo 60, parágrafo 2º).
As Limitações circunstanciais são particularidades que impedem a reforma
constitucional. Quando estiver presente uma das circunstâncias previstas na
Constituição (artigo 60, parágrafo 1º), ela não poderá ser emendada. Desse
modo, o poder reformador está impedido de atuar quando estiver em
vigência o estado de sítio, o estado de defesa ou a intervenção federal.
Presente uma das circunstâncias, não pode ser protocolado novo projeto de
emenda constitucional, e as que estiverem tramitando têm seu curso
paralisado. Superada a circunstância, no entanto, o poder de emendabilidade
pode retomar seu curso natural.
As Limitações temporais: O poder de reforma constitucional permanece
imobilizado por certo lapso de tempo. Em dois momentos, o poder
constituinte originário criou tais limitações na Constituição de 1988: 1)
proibiu que a Constituição fosse alterada nos primeiros cinco anos, contados
da data de sua promulgação pela Assembleia Nacional Constituinte (artigo 3º
do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias - ADCT); 2) proibiu que
a matéria constante de proposta de emenda constitucional rejeitada ou havida
por prejudicada seja objeto de nova proposta na mesma sessão legislativa, ou
seja, no mesmo ano em que foi rejeitada ou tida por prejudicada (artigo 60,
parágrafo 5º).
Frise-se que a Constituição imperial de 1824, por exemplo, também
estabeleceu uma limitação temporal ao poder reformador, impedindo que a
Constituição pudesse ser alterada nos quatro primeiros anos de vigência
(artigo 174).
As Limitações materiais são impostas ao poder reformador que dizem
respeito a certas matérias. Há determinadas matérias sobre as quais não pode
haver emenda constitucional com o escopo de suprimir ou restringir. Essas
limitações materiais podem ser explícitas ou implícitas.
As limitações materiais explícitas são as do artigo 60, parágrafo 4º. Não
pode haver emenda constitucional tendente a abolir (total ou parcialmente)
qualquer das matérias ali referidas: a forma federativa de Estado; o voto
direto, secreto, universal e periódico; a separação de poderes e os direitos e
garantias individuais. No entanto, é possível uma emenda que amplie tal
dispositivo, pois impede-se somente a sua abolição.
Todavia, há outras limitações que, embora não estejam expressas na
Constituição (daí serem chamadas de implícitas), incidem sobre o poder de
reforma constitucional. Podem ser relacionadas as seguintes limitações
materiais implícitas ao poder reformador: 1) não se pode mudar o titular do
poder constituinte originário; 2) não se pode substituir o titular do próprio
poder reformador, ou seja, substituir-se a si mesmo por outro; 3) não se pode
alterar o processo de elaboração da emenda constitucional, quando o objetivo
for facilitar alterações constitucionais; 4) não se pode alterar a cláusula que
instituiu as cláusulas pétreas, ou seja, não pode alterar (revogar total ou
parcialmente) o artigo 60, 4º da Constituição Federal; 5) não se pode
extinguir o próprio Estado.
155 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 5 ed. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 128-129.
156 SIEYÈS, Emmanuel Joseph. O Que é o Terceiro Estado? 4 ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2001, p.
94.
157 MALBERG, R. Carré de. Teoría General del Estado. México: Fondo de Cultura Económica, 2001, p.
1184-1185
158 NEGRI, Antônio. O Poder Constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade. Rio de
Janeiro: DP&A, 2002, p. 13.
159 TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 29.
160 TEMER, Michel. Elementos de Direito Constitucional, p. 33.
161 BIDART CAMPOS, German J. Filosofía Del Derecho Constitucional. Buenos Aires: Sociedad
Anônima Editora, 1969, p. 161-162.
162 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 31 ed. São Paulo: Saraiva,
2005, P. 23.
163 BRITTO, Carlos Ayres. Teoria da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 31.
164 APÓSTOLO PAULO. Romanos 13:1. Bíblia Sagrada.107 ed. São Paulo: Ave-Maria, 1997, p. 1.462.
165 BERTRAND, Badie. Um Mundo Sem Soberania. Lisboa: Instituto Piaget, 2000, p. 24.
166 SIEYÈS, Emmanuel. O Que é o Terceiro Estado?, p. 91 e 94.
167 Sobre esta temática, confira: MÜLLER, Friedrich. Quem é o Povo? São Paulo: Max Limonad, 2003.
168 MALBERG, R. Carré de. Teoría General del Estado, p. 1163.
169 BRITTO, Carlos Ayres. Teoria da Constituição, p. 45.
170 SILVA, José Afonso da. Poder Constituinte e Poder Popular. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 70-72.
171 BRITTO, Carlos Ayres. Teoria da Constituição, p. 25.
172 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 65.
173 BRITTO, Carlos Ayres. Teoria da Constituição, p. 48.
174 SIEYÈS, Emmanuel. O Que é o Terceiro Estado?, p. 96.
175 Os registros completos da Assembleia Constituinte podem ser acessados no site do Senado Federal.
Disponível em: <http://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/asp/CT_Abertura.asp>. Acesso em
17/04/2021.
176 SIEYÈS, Emmanuel Joseph. O Que é o Terceiro Estado?, p. 95.
177 BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. 6 ed. Brasília: UNB. 1995, p. 42.
178 TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional, p. 41.
179 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 81.
180 Este é o chamado “Efeito Cliquet”, em referência a uma modalidade no alpinismo que não permite
aos praticantes retroceder, apenas avançar.
181 TEMER, Michel. Elementos de Direito Constitucional, p. 36.
182 Atos das Disposições Constitucionais Transitórias, artigo 3º: “A revisão constitucional será
realizada após cinco anos, contados da promulgação da Constituição, pelo voto da maioria absoluta
dos membros do Congresso Nacional, em sessão unicameral”.
VII
Estado e Direito
1. Jusnaturalismo. 2. Juspositivismo. 2.1 Escolas Histórica e Exegética do Direito;
2.2 O Estado e a Teoria Pura do Direito; 2.3 Jurisprudência dos Conceitos, dos
Interesses e dos Valores; 2.4 Ascensão da Constituição Democrática. Conclusões.
1. Jusnaturalismo
A doutrina do jusnaturalismo é aquela na qual se reconhece a existência de
direitos e deveres naturais aos indivíduos, distintos daqueles positivados pelo
Estado. A diferença fundamental entre as normas emanadas do Estado e os
direitos naturais diz respeito à sua validade: enquanto as primeiras são válidas
segundo o Estado, os direitos naturais têm validade em si, devendo prevalecer
sobre as demais normas. Isso significa que um conflito normativo ou
oposição de uma autoridade a um direito natural legitima o ofendido a
desobedecer ao mandamento estatal.
O jusnaturalismo é uma forma de pensar presente em toda a história. No
período grego, por exemplo, a história de Antígona, contada por Sófocles, é
um cristalino exemplo da oposição entre direitos naturais que têm validade
em si e as normas emanadas de uma autoridade. Na peça, Creonte, rei de
Tebas, proibiu o sepultamento do cadáver de Polineices, irmão de Antígona.
Desafiando o edito real, a norma válida e vinculante naquele momento, ela
realiza o funeral do irmão. Ao ser levada à presença de Creonte e questionada
das razões que a levaram a violar a lei, Antígona responde: “Mas Zeus não foi
o arauto delas [das leis] para mim, nem essas leis são as ditadas entre os
homens pela Justiça, companheira de morada dos deuses infernais; e não me
pareceu que tuas determinações tivessem força para impor aos mortais até a
obrigação de transgredir normas divinas, não escritas, inevitáveis; não é de
hoje, não é de ontem, é desde os tempos mais remotos que elas vigem, sem
que ninguém possa dizer quando surgiram”187.
O pensamento jusnatural europeu dos séculos XVII e XVIII, por sua vez,
marca a tentativa de secularização e oposição a todo tipo de visão
sobrenatural, ou seja, pretendeu extrair os elementos teológicos e místicos
para justificar o Direito com base na razão. Guido Fasso188 comenta que
Hugo Grócio, pensador renomado pela sua doutrina internacional, foi o
primeiro autor a buscar elementos subjetivos (autonomia da vontade
humana) para o jusnaturalismo, em contraposição aos pressupostos objetivos
(dogmas) da religião.
Outra característica do jusnaturalismo moderno é a forte defesa do aspecto
subjetivo dos direitos, que, por via de consequência, serviu de arrimo às
concepções individualistas e liberais naquele período, ainda que em
detrimento de normas positivadas, mas que contrariavam os direitos naturais.
A esse respeito, comenta Luigi Ferrajoli189 que “na falta de um sistema
formalizado de fontes positivas, a fonte de legitimação do Direito e o objeto
da ciência jurídica não era o Direito positum de uma qualquer auctoritas, mas
precisamente a sua veritas ou natura”.
O aspecto subjetivo dos direitos naturais contribuiu na própria
legitimidade do Estado. Enquanto na antiguidade e no medievo se pensava na
ordem política como algo necessário – a exemplo de Aristóteles, cuja
antropologia consignava o homem como um animal social –, os mais
conhecidos jusnaturalistas modernos (Grócio, Hobbes, Locke, Milton,
Pufendorf, Tomás, Barbeyrac, Wolff, Burlamaqui, Vattel, Rousseau e Kant)
vislumbram o Estado como obra voluntária, erigida pelo abandono do estado
de natureza. Nesse processo, a voluntariedade humana se perfaz de modo
claro a partir do contrato social: trata-se de uma justificação hipotética do
Estado na visão de cada autor contratualista190.
Assim, para Guido Fasso191, direitos inatos, estado de natureza e contrato
social, a despeito de terem os contornos de cada pensador, são conceitos
característicos do jusnaturalismo moderno, estando presentes em todas as
doutrinas desenvolvidas entre os séculos XVII e XVIII.
2. Juspositivismo
O juspositivismo ou positivismo jurídico é uma forma de pensar oposta ao
jusnaturalismo: ambas as nomenclaturas derivam da oposição conceitual
entre direito natural e direito positivo. A divisão entre direito natural e direito
positivo é conhecida, pelo menos, desde Aristóteles192, quando afirmou que
“da justiça política, uma parte é natural e outra parte é legal”. O mais
importante é perceber que tais correntes são antitéticas entre si, possuindo
formulação em contextos históricos distintos: o jusnaturalismo floresceu na
luta contra o monarca absoluto, e o juspositivismo tem seu apogeu na
construção do Estado secular.
Dessa noção primeva, salientamos que o conceito de juspositivismo é
tradicionalmente abordado sob quatro aspectos distintos193.
a) Quanto à fonte: enquanto o jusnaturalismo é dado pela natureza, o
direito positivo parte de normas criadas por uma autoridade do Estado.
Esta é a clássica dicotomia apresentada por Hugo Grócio entre natura
potestas e potestas populus.
b) Quanto à validade de suas normas: conforme já tratado, a fonte de
validade do direito positivo advém do Estado e da relação hierárquica
entre as normas; o direito natural tem validade em si, ou seja, trata-se de
um sistema normativo autossuficiente.
c) Quanto ao modo de acesso às suas prescrições: os jusnaturalistas partem
do pressuposto de que estas normas são acessíveis a todos os seres
racionais. Logo, a razão é o seu meio de acesso. As normas positivas, por
sua vez, são manifestações legislativas, fruto de procedimentos
específicos para a sua criação.
d) Quanto à sua variação no tempo: o direito natural é imutável, enquanto
o direito positivo é efêmero e pode ser alterado segundo o alvedrio das
novas gerações.
Conclusões
1. O jusnaturalismo é uma teoria jurídica que reconhece que alguns
direitos são inatos às pessoas, independentemente de estarem positivados. O
pensamento jusnatural europeu do século XVII foi uma tentativa de
secularização e oposição a todo tipo de visão sobrenatural ou mística da
política. Os direitos reconhecidos como naturais variam de acordo com o
pensador, tendo como exemplo a liberdade, a igualdade, a propriedade
privada, entre outros.
2. O positivismo é uma ideologia que ganhou relevo com o iluminismo,
embora já reconhecido desde a antiguidade. No Estado moderno, caracteriza-
se por reconhecer a validade das normas quando: a) emanadas de uma
autoridade estatal; b) criadas de acordo com o procedimento prévio indicado.
3. O século XX marca o período de ascensão da Constituição democrática.
A junção dos dois conceitos permitiu que o debate jurídico se estabelecesse
sobre as vertentes de “quem decide (fonte do poder), como se decide
(procedimento adequado) e o que pode e não pode ser decidido212. Em outras
palavras, o constitucionalismo deixa de teorizar apenas a limitação do poder
político para albergar direitos fundamentais e procedimentos de tomadas de
decisões coletivas.
183 NADER, Paulo. Introdução ao Estudo do Direito. 8 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1993. p. 150.
184 KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 263.
185 RADBRUCH, Gustav. Introdução à Ciência do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 37.
186 Não pretendemos aqui afirmar que tais doutrinas influenciaram de modo semelhante a todos os
países do Ocidente. Apresentamos neste tópico as noções mais tradicionais expostas pela doutrina,
que tem uma influência significativa da história da Europa e dos Estados Unidos.
187 SÓFOCLES. A Trilogia Tebana: 8 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 214.
188 FASSO, Guido. Historia de la Filosofia del Derecho. Madrid: Piramide, 1966, p. 79 (Volume 2, la
edad moderna).
189 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão, p. 801.
190 Os autores contratualistas mais conhecidos são Thomas Hobbes, John Locke, Jean-Jacques
Rousseau e Immanuel Kant. O pensamento de alguns desses pensadores foi trabalhado nos capítulos
anteriores deste livro.
191 FASSO, Guido In BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário
de Política, p. 658.
192 Fazemos referência ao livro V, capítulo VII de Ética a Nicômaco. In Aristóteles. Metafísica, Poética
e Ética a Nicômaco. São Paulo: Abril, 1984, p. 131. (Os Pensadores)
193 Para aprofundar esta discussão, recomendamos o livro O Positivismo Jurídico, do italiano Norberto
Bobbio.
194 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. 3 ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1997, p. 10 e
seguintes.
195 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito, p. 93.
196 BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico, p. 81-99.
197 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 7 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 217.
198 É importante lembrar que, até hoje, a doutrina conserva um papel de destaque no Direito alemão.
Os Tribunais não citam autores como forma de angariar autoridade aos seus argumentos (vide
RODRIGUEZ, José Rodrigo. Como Decidem as Cortes. São Paulo: FGV, 2013), mas de modo a
estabelecer uma coesão em todo o sistema jurídico. Uma crítica doutrinária massiva a
posicionamentos jurisprudenciais é algo que desqualifica as Cortes, incluindo o próprio Tribunal
Constitucional (o Bundesverfassungsgericht).
199 A obra de Ihering é dividida em duas fases. Na primeira o autor ainda se filiava a uma leitura
sistemática e formal do ordenamento. No segundo momento o autor introduz um olhar sociológico
no Direito.
200 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito, p. 69-70.
201 ABBOUD, Georges; CARNIO, Henrique Garbellini; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Introdução à
Teoria e à Filosofia do Direito, p.375-376.
202 LARENZ, Karl, Metodologia da Ciência do Direito, p. 165-166.
203 Para aprofundar esta questão, Cf.: CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e
Teoria da Constituição. 6 ed. Coimbra: Almedina, 2002.
204 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 92
205 Para aprofundar a pesquisa nessa temática, confira: FACHIN, Zulmar; SAMPAR, Rene. Oitocentos
Anos da Magna Carta de 1215 e a Luta pelo Estado de Direito. In FACHIN, Zulmar; LIMA, Jairo
Néia; PONA, Éverton Willian (Orgs.). Magna Carta: 800 anos de influência no constitucionalismo e
nos direitos fundamentais. Curitiba: Juruá, 2016, p.35-44.
206 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão, p. 792.
207 Também denominada de Rule of Law.
208 Esses ideais influenciaram sobremaneira os revolucionários franceses. Tal afirmação se confirma
pela leitura do artigo 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão: “a sociedade em que
não esteja assegurada a garantia dos direitos nem estabelecida a separação dos poderes não tem
Constituição”.
209 BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. 5 ed. São Paulo: Saraiva,
2016, p. 65.
210 FERRAJOLI, Luigi. A Democracia Através dos Direitos: o constitucionalismo garantista como
210 FERRAJOLI, Luigi. A Democracia Através dos Direitos: o constitucionalismo garantista como
modelo teórico e como projeto político. São Paulo: RT, 2015, p. 20.
211 BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 24.
212 Esta noção foi extraída de BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional
Contemporâneo, p. 65.
VIII
A Separação dos Poderes
1. A Limitação do Poder como Característica do Estado Moderno. 2. Formulações
Teóricas da Separação dos Poderes. 2.1 A Contribuição de Aristóteles; 2.2 A
Contribuição de John Locke; 2.3 A Contribuição de Montesquieu; 2.4 A
Contribuição dos Federalistas. Conclusões.
Conclusões
1. A contenção do poder político é uma ideologia que existe desde os
gregos. No Estado moderno, foi um dos principais postulados liberais na luta
contra a monarquia absoluta, manifestando-se não apenas como contenção,
mas como separação dos poderes institucionais do Estado. Muitas foram as
contribuições a essa ideia ao longo dos séculos.
2. Aristóteles, ainda nos idos do século IV a.C., já discorria sobre a
necessidade de se fragmentar os poderes políticos da polis. Para o polímata,
três funções seriam essenciais: a deliberativa, as magistraturas
governamentais e a judicante.
3. John Locke, pensador do século XVII, pensava a distribuição do poder
segundo as estruturas do Estado moderno. Falava em poder Legislativo,
Executivo e Federativo, embora seu foco investigativo estivesse na
necessidade de se fracionar tais funções, sendo indiferente a sua divisão.
Tendo em vista a sua formação inglesa, o Legislativo seria o poder estatal mais
importante, estando os demais poderes sempre subordinados ao Parlamento.
4. O período no qual Montesquieu viveu foi de intensidade ímpar. O
Estado francês se aproximava da falência econômica em uma estrutura social
e política que ainda tinha seus alicerces fixos no medievo. A preocupação
desse pensador é com a garantia da liberdade. Para tanto, teorizou ser
necessária uma precisa divisão tripartite do poder estatal, a fim de evitar o
arbítrio em sua utilização. Montesquieu é o arauto da tripartição do poder em
Legislativo, Executivo e Judiciário, presente ainda hoje no Estado.
5. No sistema dos Estados Unidos, amplamente discutido pelos
denominados pais fundadores, a tripartição de poderes conferiu maior
prerrogativa ao Judiciário, que não detinha espaço na visão dos demais
pensadores citados. Somado ao sistema presidencialista e federal, forjou-se a
arquitetura que influencia o Brasil desde a Proclamação da República, em
1889.
1. Origem e Conceitos
O regime democrático tem local e data de nascimento: a Grécia no período
clássico do helenismo, entre os séculos VI e IV a.C. Ao menos, nossa tradição
de pensamento político convencionou que ali surgira a democracia como um
regime político, mais por força da prática do que por desenvolvimento
teórico. Sua etimologia (demos kratos) designa o poder do povo em oposição
ao poder de poucos ou de apenas um indivíduo. Ainda ecoa de modo audível
a divisão que Aristóteles241 nos legou, há mais de dois milênios, acerca dos
regimes políticos: governo monárquico, aristocrático e republicano (e suas
respectivas formas degeneradas: a tirania, a oligarquia e a democracia).
Embora faça parte da linguagem política cotidiana, não é tarefa simples
estabelecer o que é a democracia. Simone Goyard-Fabre242 lembra as
dificuldades inerentes à compreensão do tema, em especial pelo fato de,
etimologicamente, tal vocábulo “não pertencer a nenhum registro unitário e
homogêneo, pois oscila entre o registro constitucional da política e o registro
psicossocial das mentalidades, fazendo pesar sobre os dilemas dilacerantes
que impedem responder de modo uniforme à pergunta o que é a
democracia?”. É a mesma dificuldade encontrada quando se procura
conceituar outros termos que se tornaram plurissignificativos, como política,
liberdade e justiça.
A despeito de sua polissemia, Simone Goyard-Fabre identifica duas noções
comuns às concepções democráticas: a) A democracia garante a participação
dos governados no exercício do poder, independente do número e do modo
de seu engajamento, uma vez que se funda na autoridade popular. Logo, ela se
confunde e se desenvolve pari passu ao regime republicano.
b) A democracia leva para a ordem política o “caráter conflituoso das
paixões humanas”, suscitando a esperança por direitos e o descrédito
ante a desrazão das paixões.
Não há nessa perspectiva, portanto, uma resposta precisa que identifique
um conceito categórico. É certo, no entanto, como já afirmado, que a
democracia é o fenômeno político mais importante do século XX. Sua
influência tem se espraiado para quase todos os cantos do planeta. Na
atualidade, ela atinge lugares que sempre tiveram uma história muito
contígua a regimes absolutistas e fundamentalistas, como o norte da África e
o Oriente Médio.
Aliada ao conceito de Constituição como norma fundamental do Estado e
ainda alicerçada sob a noção do governo para o povo, a democracia adquire
duas noções muito basilares: a) a de um método para a tomada de decisões
coletivas; b) e de salvaguarda de direitos fundamentais. Luigi Ferrajoli243 nos
lembra que a primeira se pauta em uma matriz procedimental-formalista que
se aproxima de uma visão liberal de Estado não interventor, enquanto a
segunda adquire status substancial-constitucionalista ao repensar o conceito
de soberania.
É preciso pontuar, entretanto, que a construção de uma Constituição
democrática é uma tarefa árdua e conflitiva. José Afonso da Silva244, que
vivenciou a Assembleia Nacional Constituinte responsável pela elaboração da
Carta de 1988, pondera que a tensão é constante, sempre há riscos de
retrocessos e raramente se elabora o texto final sem alguma transação política.
Não obstante, é legítima a Constituição que expressa a soberania popular,
mas somente será democrática na hipótese de instrumentalizar
transformações em busca de justiça social.
E arremata o célebre jurista: “a democracia é processo de luta, de
conquistas. Pressupõe luta incessante pela justiça social. Não pressupõe que
todos sejam instruídos, cultos, educados, perfeitos, mas há de ser um processo
que busque distribuir a todos instrução, cultura, educação, aperfeiçoamento,
vida digna”.
4. Partidos Políticos
Os partidos políticos são o ponto de apoio das democracias representativas
na atualidade. Historicamente, a afirmação do partido político foi condição
sine qua non para a democratização do poder ao canalizar a participação de
setores da sociedade civil e, assim, conquistar maior legitimidade nas questões
político-eleitorais. Tal fator levou Hans Kelsen253 a afirmar que “só a ilusão
ou a hipocrisia pode acreditar que a democracia seja possível sem partidos
políticos”.
Ainda que se reconheça as especiais circunstâncias pelas quais têm passado
o sistema partidário em todo o mundo, a afirmação de Kelsen encontra
respaldo no complexo fator de se conceber uma via alternativa para a
formação da vontade geral. Com efeito, a imprescindibilidade dos partidos à
democracia, nos termos de Anna Oppo254, deve-se ao problema da
participação. Em suas palavras: “em termos gerais, pode portanto se dizer que
o nascimento e o desenvolvimento dos partidos está ligado ao problema da
participação, ou seja, ao progressivo aumento da demanda de participação no
processo de formação das decisões políticas, por parte de classes e estratos
diversos da sociedade”.
Assim, partindo-se do pressuposto de que os partidos políticos são
essenciais, é preciso caracterizá-lo. A esse respeito, tornou-se notável a
definição de Max Weber255: os partidos políticos são “organizações
voluntariamente criadas e baseadas no livre recrutamento, necessariamente
sempre renovado, em oposição a todas as corporações fixamente delimitadas
pela lei ou por contrato”. É preciso pontuar que os partidos políticos,
tradicionalmente, relacionam-se a uma ideologia, embora tal atributo não
possa ser considerado um de seus requisitos em nossos tempos atuais.
Weber apontou também, no começo do século XX, que o objetivo de
qualquer partido é a obtenção de votos para cargos políticos, e que a definição
dos candidatos, do programa partidário, do financiamento e de seu modo de
agir é determinado por um núcleo reunido sob um líder ou grupo de notáveis
apoiado por seus interessados e financiadores. Tudo isso para a consecução
de sua principal finalidade: adquirir poder perante a sociedade. Em outras
palavras, as práticas partidárias são orientadas no afã de se obter influência
sobre a ação comunitária e, portanto, “variam segundo a estrutura de
domínio dentro da comunidade” 256.
No Brasil, a Constituição de 1988 enuncia a filiação partidária como um
requisito para a elegibilidade (artigo 14, parágrafo 3º, inciso V). Embora parte
da crise de representatividade atual seja atribuída aos próprios partidos,
expressada na progressiva perda de filiados, eles continuam sendo
indispensáveis à realização da política e preparo de candidatos para concorrer
aos cargos eletivos, destinando-se a assegurar a autenticidade do sistema
representativo e a defender os direitos fundamentais expressos na
Constituição (artigo 1º da Lei 9.096/95).
Nossa arquitetura constitucional reserva aos partidos políticos o
monopólio para apresentação de candidatos e, desde 1988, optou-se por
abandonar o sistema bipartidário existente no período da ditadura militar257 e
instaurar o pluripartidarismo. Assim, longe de devaneios romanescos, é
preciso lembrar que os partidos políticos possuem natureza de pessoas
jurídicas de direito privado, logo: a) Dispõem de objetivos, isto é, eleger seus
membros para cargos eletivos e ampliar sua influência.
b) Valem-se das estratégias disponíveis para alcançar seus objetivos.
c) Possuem capital (receitas próprias, fundo partidário e doações) para
custear suas atividades.
d) Estruturam-se internamente de modo hierárquico.
5. Sufrágio
O sufrágio é o instrumento pelo qual se preenchem os cargos eletivos
mediante processo de escolha pautado em regras determinadas. O Estado
moderno foi provido desse sistema em razão de ser um ponto muito
defendido pelos autores liberais, como Alexis de Tocqueville e John Stuart
Mill. Ambos os autores compartilhavam o grande receio de uma tirania da
maioria, violando-se direitos individuais da minoria. Mill, em Sobre a
Liberdade, busca estabelecer limites à intervenção na esfera privada dos
indivíduos em pleno Estado pós-monarquias absolutas. Em sua visão, a
participação cívica é o melhor caminho para pavimentar a liberdade como
um atributo geral.
Tal pensamento conduziu Stuart Mill a defender, em 1869, a extensão do
voto às mulheres, por uma questão de coerência: a incorporação de todos os
segmentos não elitistas (classes populares, incluindo as mulheres) na vida
política seria o meio mais seguro de se conservar a liberdade de todos, de
sorte a não enclausurar toda a sociedade no modo de vida burguês258. A
questão do voto feminino somente se concluiu na Inglaterra com o
Representation of The People Act, em 1918. No Brasil, este direito foi
garantido em 1932, por meio do Decreto 21.076, que instituiu o Código
Eleitoral de 1932.
Destarte, ao longo do século XX, o principal eixo analítico do sufrágio foi a
extensão do direito de voto. Em outras palavras, quem vota. A Constituição
imperial brasileira de 1824 (artigos 92 a 94) apresentava diversas classes de
pessoas que estariam excluídas do processo eleitoral, como os menores de
vinte e cinco anos (salvo se casados), os clérigos de ordens sacras e os
religiosos de modo geral, os libertos, os criminosos pronunciados em querela
ou devassa, entre outros. Além disso, estabelecia o voto censitário. A
Constituição de 1988 (artigo 14) estabelece ser obrigatório o voto para
maiores de dezoito anos e facultativo para os analfabetos, os maiores de
setenta anos e os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos, vedando a
participação dos estrangeiros e dos conscritos, estes durante o período do
serviço militar obrigatório.
Atualmente, os países ocidentais possuem, em sua maioria, grandes
democracias de massa. No Brasil, a inclusão de eleitores no processo eleitoral
tem sido progressiva. Estima-se que durante a República Velha e até o final da
Segunda Guerra (1945), o eleitorado brasileiro não tenha atingido 5% da
população. Já nas eleições de 2014, este percentual atingiu 70%259. O
incremento no número de eleitores é importante para estabelecer a
continuidade do debate político, em especial em países com menor tradição
republicana e democrática, como é o caso do Brasil.
Garantida alguma participação político-eleitoral, o desafio é ampliar os
espaços em que os princípios democráticos se fazem presentes, em especial o
da publicidade e o da participação popular. Assim, entramos em um novo
momento, não mais marcado pelo fator de quem vota, mas onde se vota260.
Em outras palavras, não se trata somente do incremento do eleitorado como
também os espaços nos quais se podem exercer o direito de voto e
participação.
Corolário do Estado democrático, oportuno reafirmar o papel essencial
que possui uma imprensa livre como vetor informativo e auxiliar do controle
dos atos governamentais. A vida privada pode ser envolta pelo segredo; a vida
pública, ao contrário, deve ser diáfana. Não é preciso dizer que onde não há
publicidade se pode criar condições para o estabelecimento de conluios,
dissimulados pela “cultura do biombo” 261 em oposição à cultura da
transparência que deve viger em nossa ordem constitucional. Nesse sentido, é
atribuída a Louis Brandeis262, Justice da Suprema Corte dos Estados Unidos,
uma frase que sintetiza com precisão o papel da publicidade: Sunlight is said
to be the best of disinfectants263, o que significa, em uma tradução livre, que a
luz do sol é o melhor desinfetante.
Aqui é necessário fazer justiça a Norberto Bobbio, pensador italiano que
respaldou inúmeras análises ao longo deste livro e que foi responsável pela
notória afirmação de que a democracia é “o governo do poder público em
público”. Para ele, a grande diferença entre o regime democrático para com
qualquer ditadura é de que nela o poder não pode estar mergulhado na
escuridão do segredo, pois “a opacidade do poder é a negação da
democracia”264.
6. Vantagens da Democracia e suas Promessas Não
Cumpridas
Embora alguns filósofos gregos, como Platão e Aristóteles, não
legitimassem a democracia como o regime político mais adequado, muitos
autores têm se dedicado a lhe compreender melhor e enunciar suas virtudes.
É o caso de Robert Dahl e Norberto Bobbio.
Para Norberto Bobbio265, a democracia reuniu três momentos de um
mesmo movimento histórico: direitos do homem, democracia e paz.
Portanto, ele aduz que “sem direitos do homem reconhecidos e protegidos,
não há democracia; sem democracia, não existem as condições mínimas para
a solução pacífica dos conflitos”, o que leva o autor a concluir que a
democracia é o melhor regime para a solução pacífica de conflitos entre
Estados.
É bastante conhecido o estudo de Robert Dahl266, acerca das vantagens que
a democracia oferece, em relação aos regimes não democráticos. Segundo ele,
o regime democrático dispõe de melhores condições para: a) evitar a tirania;
b) garantir direitos fundamentais aos cidadãos; c) garantir liberdades; d)
salvaguardar a autodeterminação dos povos; e) proporcionar a autonomia
moral, o desenvolvimento humano e a igualdade política; f) proteger os
interesses pessoais essenciais; g) garantir a prosperidade e a paz pelos Estados
democráticos adotarem instrumentos conciliatórios entre si antes de se
lançarem em conflitos bélicos.
Isso não significa que o desafio democrático esteja consolidado. A despeito
de não ser possível afirmar com exatidão o que é a democracia, temos uma
noção muito clara daquilo que definitivamente não pertence a esse regime
político.
Nessa linha, Norberto Bobbio267, fala nas promessas (ainda) não
cumpridas pelos regimes democráticos. São elas: a) De que os cidadãos teriam
maior poder de influência na democracia. Na verdade, foram os grupos
políticos, e não os indivíduos, que se tornaram os protagonistas da vida
política.
b) A vedação aos mandatos imperativos. Mandato imperativo ocorre na
hipótese em que os eleitores exercem império sobre os eleitos. O eleito
não celebra um contrato com seu eleitor (mandato imperativo) e sim
com o país e com a legislação (mandato representativo). Ou seja,
representa a todos, não sendo um procurador de determinadas classes
ou indivíduos.
c) A anulação das elites oligárquicas. Bobbio cita Schumpeter ao lembrar
que uma democracia não se opõe às elites, mas fomenta a existência de
elites que concorrem entre si.
d) A quarta promessa não cumprida se vincula com a anterior. O
monopólio do poder por um grupo estabelece um poder paralelo ao da
lei que brota do Estado, condição que mina a força vinculante da
democracia.
e) A quinta promessa não cumprida é a eliminação dos poderes ocultos no
Estado. Bobbio denomina de poderes invisíveis, típica de governos
autoritários que fogem à publicidade e à censura pública.
f) A última promessa não cumprida é a da educação cívica. Segundo
Bobbio, a incompreensão para o exercício dos direitos na esfera política
conduz à apatia e ao sentimento de impotência.
Embora tais questões sejam estruturais na sociedade e que quaisquer
mudanças demandam investimento de esforço e de tempo, o autor italiano
não perde sua esperança na democracia: “as promessas não cumpridas e os
obstáculos não-previstos de que me ocupei não foram suficientes para
‘transformar’ os regimes democráticos em regimes autocráticos”.
E arremata Norberto Bobbio268: “existem democracias mais sólidas e
menos sólidas, mais invulneráveis e mais vulneráveis; existem diversos graus
de aproximação com o modelo ideal, mas mesmo a democracia mais distante
do modelo não pode ser de modo algum confundida com um Estado
autocrático e menos ainda com um totalitário”.
Ao lado destas observações de Dahl e Bobbio, o jurista italiano Gustavo
Zagrebelsky, em seu livro Imparare Democrazia, apresenta dez pontos que ele
considera como conteúdos mínimos necessários para se localizar o ethos
democrático. São eles: a) La fede in qualcosa (a fé em qualquer coisa): a
democracia se opera na ótica do relativismo, não do absolutismo. Há
incompatibilidade profunda entre democracia e a enunciação de verdades
inquestionáveis, finalidades absolutas ou dogmas. As únicas defesas
incontestáveis admitidas na democracia é a manutenção de seus
procedimentos para o atingimento da decisão coletiva, com o igual respeito à
participação política, e o reconhecimento da dignidade de todos os seres
humanos.
b) La cura delle personalità individuali (o cuidado com as personalidades
individuais): tal regime se funda em indivíduos personalizados e não em
uma massa disforme, como Tocqueville já havia sinalizado em A
Democracia na América. O dilema da massificação para a democracia é
de uma minoria se impor sobre a maioria passiva e inerte, colocando em
risco os direitos de minorias e podendo converter o regime em
demagogia, como ocorreu com o totalitarismo no século passado.
Contra a estratificação, a democracia se funda na originalidade de cada
indivíduo.
c) Lo spirito del dialogo (o espírito do diálogo): tendo por base a
inexistência de verdades absolutas, ela parte do confronto socrático de
ideias. Alicerça-se, portanto, no espírito filológico269, jamais em
qualquer tipo de misologia270: seu instrumento fundamental é o apreço
pelo diálogo. No que toca ao debate público, o cidadão de uma
democracia precisa ter o espírito livre para aceitar posições distintas e
construir formas de pensar, não adentrando em discussões com o anseio
de impor dogmas pessoais. Os fatos sobre os quais as ideias se baseiam
precisam também ser honestamente difundidos para a formação das
discussões, evitando-se embustes. Assim, apraz à democracia indivíduos
que pensam de modo distinto e livre.
d) Lo spirito dell’ugualianza (o espírito de igualdade): a democracia deve
opor-se ferozmente aos privilégios em âmbito público. Sem uma lei igual
para todos, a sociedade se divide em castas hierarquizadas. Em uma
sociedade de privilégios, não há espírito público.
e) L’apertura verso chi porta identità diverse (pluralismo identitário): exige-
se, no regime democrático, que as identidades particulares não tenham
influência direta na vida social. Zagrebelsky, neste ponto, interessa-se
pela ideia da tolerância. No Tratado de Augsburg (1555), a Igreja
reconheceu o princípio cuius regio eius et religio (de quem é o reino, dele
se siga a religião, isto é, o credo do governante condicionava o crer do
restante do Estado). Contudo, a tolerância (abstenção unilateral de um
grupo majoritário), segundo o autor, ainda é pouco a um ambiente
verdadeiramente democrático: busca-se o gozo dos direitos de cidadania
(reconhecimento e proteção das diversas culturas). O jurista lembra
ainda que os espaços de atuação do Estado e da religião, bem
demarcados por força do pensamento liberal, estão com suas fronteiras
cada vez mais liquefeitas em virtude do renascer da política populista. Os
resultados da “política em nome de Deus” são a intolerância e os
discursos de violência, algo oposto ao que se busca na democracia.
f) La diffidenza verso le decisioni irremediabili (reversibilidade decisória): o
regime democrático implica na reversão de qualquer decisão, em razão
de as soluções definitivas serem próprias de regimes pouco
democráticos, nos quais se acreditam em valores absolutos. A
democracia, por sua vez, é relativa, perene, dialógica e aberta271. Deste
modo, a porta que conduz ao reconhecimento do erro por determinado
caminhado político ou jurídico trilhado deve estar sempre aberta.
g) L’atteggiamento sperimentale (postura experimental): democracia e
responsabilidade caminham pari passu: é cotidiano o aprendizado acerca
das consequências de nossos atos pessoais no contexto público (e vice-
versa). Sendo um projeto de construção coletiva, os indivíduos devem
estar atentos a diversas situações em que esta relação pode sair
fortalecida ou enfraquecida, quando, por exemplo, da colisão de direitos,
da formação de uma vontade comum, da ocupação de cargos públicos
baseada na competência e na impessoalidade, entre outros casos comuns
ao cotidiano social e político.
h) Coscienza di maggioranza e coscienza di minoranza (consciência de
maioria e minoria): as maiorias eventuais não possuem o poder irrestrito
em um regime democrático. O brocardo vox populi, vox dei, segundo
Zagrebelsky, carrega em si a semente do absolutismo, por não
resguardar o ideal da liberdade de todos. Embora a maioria possa tomar
decisões contrárias aos interesses de minorias, que mantêm a sua crença
na coerência política, uma votação jamais pode encerrar em definitivo
uma questão: elas devem sempre ter a oportunidade de buscar novos
argumentos para se alterar o que foi decidido.
Conclusões
1. Nascida na Grécia no período clássico do helenismo, a democracia
atinge seu apogeu no Estado moderno a partir do século XX. Em seu sentido
tradicional, é um modo de exercício da soberania popular, isto é, um meio de
tomada de decisões coletivas. Aliada ao constitucionalismo, a democracia
passou a designar também a proteção aos direitos fundamentais.
2. As espécies de democracia são:
a) Democracia direta: é o exercício da prerrogativa de tomada de decisões
sem representantes, isto é, pelo próprio cidadão habilitado para tal. É a
espécie que inaugurou o regime democrático em virtude de as
sociedades da antiguidade histórica serem bem menos numerosas do
que as atuais.
b) Democracia semidireta: é aquela na qual os cidadãos são chamados a
proporem alguma lei ou referendarem alguma decisão por meio dos
instrumentos postos para este fim. No Brasil, são três: o plebiscito, o
referendo e a iniciativa popular.
c) Democracia indireta ou representativa: a espécie predominante nos
Estados, em que o poder de tomada de decisões é dos representantes que
foram eleitos.
3. A democracia indireta ou representativa possui dois elementos que lhe
são condição sine qua non272: a) Os partidos políticos são organizações
lastreadas ou não sob uma ideologia, que buscam o voto popular para
conseguir eleger seus representantes. No Brasil, a filiação partidária é um
requisito para que se possa concorrer a um cargo político, o que não ocorre,
por exemplo, nos Estados Unidos.
b) O sufrágio é o processo de escolha mediante votação para o
preenchimento dos cargos eletivos do Estado. Até o século XX, o
principal eixo de discussões era o da sua legitimidade, isto é, quem
poderia votar. A partir de então, busca-se a ampliação dos espaços em
que se pode votar, ou seja, onde se vota. Em outras palavras, o desafio
atual está em diagnosticar os lócus em que os princípios democráticos se
fazem presentes.
4. As vantagens do regime democrático são sintetizadas pelo jurista Robert
Dahl, em seus estudos sobre as formas de governo. Para ele, a democracia tem
melhores condições de: a) Evitar a tirania.
b) Garantir direitos fundamentais aos cidadãos.
c) Garantir liberdades.
d) Salvaguardar a autodeterminação dos povos.
e) Proporcionar a autonomia moral, o desenvolvimento humano e a
igualdade política.
f) Proteger os interesses pessoais essenciais.
g) Garantir a prosperidade e a paz pelos Estados democráticos adotarem
instrumentos conciliatórios entre si antes de se lançarem em conflitos
bélicos.
5. Segundo Norberto Bobbio, embora a democracia seja apontada como a
melhor forma de governo, há seis promessas que ainda não foram
plenamente cumpridas e que demandarão maiores esforços de todos ao longo
deste século XXI.
a) Os cidadãos teriam maior poder de influência na democracia.
b) Vedação aos mandatos imperativos.
c) Anulação das elites oligárquicas.
d) Anulação dos poderes paralelos ao estatal.
e) Eliminação dos poderes ocultos no Estado.
f) Educação para a vida cívica.
6. Gustavo Zagrebelsky delineia dez pontos considerados fundamentais ao
desenvolvimento democrático.
a) A democracia não encampa valores absolutos particulares em nível
público.
b) Busca a originalidade de cada indivíduo para se afastar da massificação
social.
c) Cultiva o diálogo e a oposição de ideias.
d) Encarna o espírito da igualdade entre todos.
e) Funda-se na tolerância.
f) Não deve admitir decisões definitivas em face de minorias.
g) É parte do espírito democrático a consciência de maioria, mas também
de minorias, devendo o maior número possível fazer parte do diálogo
político.
h) Pauta-se na solidariedade.
i) Tem no respeito à palavra e no cultivo de espaços dialógicos bons
instrumentos de mensuração da qualidade democrática de determinada
sociedade.
238 CHEVALLIER, Jacques. O Estado Pós-Moderno. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 187.
239 HUNTINGTON, Samuel. A Terceira Onda: democratização no final do século XX. Editora Ática,
1994, p. 26-29.
240 Nadia Urbinati, valendo-se de Hanna Pitkin e Bernard Manin, procura redefinir a lógica que
estabelece a democracia direta como sendo o modelo mais desejável possível, e a representação
apenas o second best. Sob esta ótica, afirma a autora que a representação democrática “estimula um
ganho de política em relação ao ato sancionador pelo qual os cidadãos soberanos ratificam e
recapitulam, com regularidade cíclica, as ações e promessas de candidatos e representantes”. Mais do
que isso, “é a instituição que possibilita à sociedade civil (em todos os seus componentes) identificar-
se politicamente e influenciar a direção política do país”. Cf.: URBINATI, Nadia. O que torna a
representação democrática? Lua Nova, São Paulo, 67: 191-228, 2006.
241 ARISTÓTELES. A Política, p. 105-106.
242 GOYARD-FABRE, Simone. O que é Democracia? São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 03-13.
243 FERRAJOLI, Luigi. Principia Iuris: teoria del diritto e della democrazia. Roma: Laterza, 2009, p. 10
(Volume 02: Teoria Della Democrazia). No mesmo sentido confira: BOBBIO, Norberto. Liberalismo
e Democracia. 6 ed. Brasília: Editora Brasiliense, 1994.
244 SILVA, José Afonso da. Poder Constituinte e Poder Popular, p. 42-45.
245 CONSTANT, Benjamin. Da Liberdade dos Antigos Comparada à dos Modernos. Revista de Filosofia
Política da Unisinos, Porto Alegre, n. 02, p. 01-07, 1985.
246 CONSTANT, Benjamin. Escritos de Política. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 153.
247 CONSTANT, Benjamin. Da Liberdade dos Antigos Comparada à dos Modernos, p. 01-03.
248 CONSTANT, Benjamin. Da Liberdade dos Antigos Comparada à dos Modernos, p. 06.
249 ROUSSEAU. O Contrato Social, p. 21.
250 É necessário pontuar que o próprio Rousseau não era inocente a ponto de acreditar que um país,
como a França, pudesse ter suas leis nacionais aprovadas tendo a ratificação direta de todos. Dizia o
autor que o modelo de participação direta é possível em Estados bem pequenos nos quais os cidadãos
gozem de liberdade e igualdade. Quão maior a extensão do Estado, maior sua complexidade,
diferentes culturas e tradições, maior a distância para construir a administração pública e tanto mais
distante estará o povo do centro de poder.
251 Estes instrumentos têm assento constitucional e são disciplinados pela Lei 9.079/1998.
252 BOBBIO, Norberto, Estado, Governo, Sociedade, p. 153.
253 KELSEN, Hans. A Democracia. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 40-41.
254 OPPO, Ana. Partidos políticos. In BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO,
Gianfranco. Dicionário de Política, p. 899.
255 WEBER, Max. Economia e Sociedade: fundamentos de sociologia compreensiva. Brasília: UNB, 2004,
p. 544. (Volume 2)
256 WEBER, Max. Ensaios de Sociologia. 5 ed. Brasília: Rio de Janeiro: LTC, 1982, p. 227-228.
257 Oportuna a crítica feita por Lenio Streck e José Luiz Bolzan. Considerando alguns contextos, como
o da ditadura militar no Brasil, o sistema bipartidário pode ter existência garantida apenas no
diploma constitucional, enquanto a realidade é a de um monopartidarismo. Em suas palavras:
“muitas vezes, um bipartidarismo formal pode encobrir um monopartidarismo de fato, como
ocorrido no Brasil pós-64, onde os partidos criados pelo golpe militar – ARENA E MDB – não
possuíam maior representatividade social, sendo no mais das vezes apenas uma referência formal de
uma pseudodemocracia no interior de um regime burocrático-autoritário”. In STRECK, Lenio Luiz;
MORAIS, José Luiz Bolzan de. Ciência política e Teoria Geral do Estado. 3 ed. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2003, p. 176.
258 Para aprofundar as pesquisas acerca desta temática, confira: MILL, John Stuart. A Sujeição das
Mulheres. São Paulo: Escala, 2006.
259 Para mais informações, consulte as informações no site do Tribunal Superior Eleitoral – TSE.
260 Esta é uma referência ao pensamento de Norberto Bobbio, que será tratado adiante.
261 Expressão do Ministro do Supremo Tribunal Federal Carlos Ayres Britto, utilizada no julgamento
da Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade 4638. Proposta pela Associação dos
Magistrados Brasileiros, a ação visava limitar o poder investigativo do Conselho Nacional de Justiça
em relação aos juízes.
262 Louis Brandeis foi Justice da Suprema Corte dos Estados Unidos entre 1916 e 1939. É apontado
como um dos maiores juízes deste país, ao lado de Oliver Wendell Holmes e Benjamin Cardozo.
263 A este respeito, confira: BRANDEIS, Louis D. What Publicity Can Do. Disponível em:
<http://louisville.edu/law/library/special-collections/the-louis-d.-brandeis-collection/other-peoples-
money-chapter-v>. Acesso em: 17/04/2021.
264 BOBBIO, Norberto. Democracia e Segredo. São Paulo: UNESP, 2015, p. 35.
265 BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos, p. 01 e seguintes.
266 DAHL, Robert. Sobre a Democracia. Brasília: UNB, 2001, p. 58-74.
267 BOBBIO, Norberto. O Futuro da Democracia. 10 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2006, p. 37-50.
268 BOBBIO, Norberto. O Futuro da Democracia, p. 49-50.
269 Filologia é o estudo da língua com base em textos escritos, abrangendo, ainda, a cultura, a literatura
e as ideias de um povo.
270 Misologia é a aversão ao raciocínio.
271 Zagrebelsky usa o exemplo das discussões relacionadas ao campo da bioética, que encontram
dificuldade para se afirmar. Contudo, é temerário afirmar que não haja um catálogo (pequeno, que
seja) irretroativo (non cliquet). Seria possível retornar à escravidão, ou retomar pena de morte em
países que a aboliram?
272 Expressão latina que denota uma condição indispensável, inescusável.
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