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Faz alguns anos que estamos pensando na escrita deste livro. Todos os
ingredientes estavam conosco,desde que nos encontramos com as crianças
e elas nos brindaram com suas linguagens tão profundas que desconcertam
qualquer mundo que teima ser certinho em suas latitudes e longitudes.
Conversávamos entre nós: vamos fazer? Mas o sabor do doce nem sempre
conta para a boca tudo aquilo que o corpo passou para que ele ficasse pronto.
Foram tantas outras coisas que se juntaram nesses tempos em nossas vidas,
sempre tão cheias de linhas, de riscos e fronteiras que aprisionam,que vezes
nos esquecemos de ser bocós, como bem ensinou Manoel de Barros (2018).
Desculpe-nos o poeta, às vezes, ser aprendiz não é nada fácil. Mas o vivido
rompe-se em instantes e esse ajuntamento permite o desvio ser a exceção
que vira fonte. Ah... deveríamos ser Cora(s) Coralina(s), tão sábia(s) em seus
olhares sobre as belezas dos musgos e as ranhuras das pedras. Nada que
é velho para elas está puído, o longevo é um ancião que ensina e cria. Ser
salvante. Retomamos aos escritos infantis. Tanta coisa contada. Fizemos.
Agora está aqui como fonte. É um livro em sua feitura com as crianças. É
um livro Bocó, sempre acrescentado de Criança (Manoel de Barros, ibidem).
Por essa natureza de exceção, não vamos nos dedicar a falar muito, vamos
deixar que a infância seja o chão de onde as coisas viram ramas e cada um
olha e as toca como estima. Mas é preciso dizer algumas poucas palavras,
o obstante é apenas um não obstante, é o fugidio que se torna fúlgido. Por
ter que dizer, falamos.
Começamos contando que tudo que vocês vão encontrar aqui,
nesta caminhada que escolheram para catar caracóis e pedrinhas na beira
dos rios, que são carregados de cartografias, surgiu a partir de um projeto
de pesquisa que tinha como nomenclatura mais ampla o título “Vivências
sócio-espaciais de crianças em instituições de Educação Infantil” e que, nesse
momento, estava em um de seus desdobramentos e recortes, nomeado por
“Cartografia com Crianças – A escala das Crianças”, financiado pelo Edital
Universal da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais
(Edital 01/2014 – Demanda Universal, processo n. CHE –APQ-402-
14), mas também recebeu apoio do edital de bolsas de iniciação científica
(FAPEMIG/CNPq/PROPESQ-UFJF). Então, devemos começar
agradecendo a esses órgãos oficiais de fomento, pela ajuda financeira que
possibilitou a pesquisa. Todos dividem conosco a autoria dessas páginas.
Esse projeto se estendeu por três anos! Pleno de encontros.
A outra coisa a contar refere-se ao próprio projeto. Ele surge como
fruto de outros, desenvolvido dentro de nosso grupo de pesquisa (o Grupo
de Pesquisas e Estudos em Geografia da Infância – GRUPEGI/CNPq),
que tem se dedicado a estudar a Geografia da Infância como campo de
conhecimentos e pesquisas. Nesses treze anos de trabalho, acumulamos
um extenso material de campo (desenhos, registros, notas e observações
de campo, gravações audiovisuais e outras) que fazem parte de um acervo,
o que nos permitiu reconhecer alguns princípios presentes na vivência
espacial das crianças, já citados em muitas de nossas publicações e que
temos apontado como documentos geográficos de bebês e crianças, no
reconhecimento que nas infâncias vividas muitas geografias se fazem e
podem, devem ser documentadas como patrimônios.
Buscando dar continuidade aos nossos estudos, elegemos a
vivência cartográfica das crianças como tema de nossas pesquisas nesse
projeto específico, sem abandonar todas as nossas escolhas anteriormente
traçadas. A sua sistematização teve como tópico compreender como as
crianças pequenas se envolvem com os elementos da cultura cartográfica
e como esses se expressam com suas vivências sócio espaciais. O foco
continuava o mesmo de trabalhos anteriores, mas com o olhar para os
mapas e tudo aquilo que se envolve nesse vocábulo. Interessava-nos
compreender as formas geneticamente embrionárias dos processos de
vivência dos elementos cartográficos, a gênese da criação e da atividade
cartográfica autoral, que, a nosso ver, explica a formação das estruturas
superiores de criação e autoria. Nossa hipótese era, como já expresso
em outros momentos, de que as crianças mobilizam essas funções em
condições de coemergência no social, em grupos que funcionam como
proto-nós, em vivências nas situações que se tornam as bases internalizadas
das capacidades mais tarde individualizadas. Nosso desejo era olhar para
as situações sociais – no nosso caso, também, as situações escolares – das
crianças e como, em suas vivências coletivas, os elementos cartográficos
circulavam e eram tomados.
Contada essa segunda parte, faz-se necessário chegar à terceira: o
local onde nos encontramos com as crianças. Fizemos a escolha de ir para
uma escola presente no município de Juiz de Fora, estado de Minas Gerais,
aqui no Sudeste do Brasil. A Escola Municipal Calil José Ahouagi nos
aceitou e acolheu de forma carinhosa nossa pesquisa. Aqui precisamos fazer
outros agradecimentos para a direção da escola, para toda a comunidade
escolar, professores, coordenadores, para a Secretaria de Educação do
Município que autorizou, em primeira instância, o desenvolvimento de
nossas atividades e, claro, para as crianças que participaram conosco.
Fizemos até alguns mapas para mostrar onde esse local existe.
Mapa 01:
Juiz de Fora
Mapa 02:
A escola que nos acolheu
Agradecemos o tempo que passamos com as crianças, com a
professora Virgínia Moreira Braga e com a Coordenadora Pedagógica
Gizela Marques, as profissionais da instituição com que trabalhamos mais
de perto no início da pesquisa. Neste momento, é importante destacar e
agradecer também à Brenda Martoni Mansur Corrêa da Costa que, estando
conosco, permitiu a criação de muitas coisas. Trazemos para vocês dois
mapas conjuntamente construídos nesses primeiros fazeres:
Mapa 03:
“Das coisas das crianças”
Mapa 04:
Entornos – Vivências das crianças
Mas, aqui, não vamos nos dedicar a esses mapas e a outros embrenhos
a que ficamos acometidos nesses tempos. A pesquisa continuou nos anos
seguintes. Novos meses de trabalho nos levaram a sentar em muitos locais
para fazer outras conversas, outrosdesenhos, novos registros, com crianças
de diferentes idades. Movemo-nos pelo chão da varanda, das salas de aulas,
da horta, que eram nossas alvoradas. A direção da escola, Rachel Gomes
Lau e Gustamara Freitas Vieira, nos cedeu muitos espaços da escola para
os encontros. E cá vamos trazer as linguagens dessas crianças, nossas
conversas, suas palavras, algumas confabulações de nossos proseamentos
cartográficos, coisas para quem se deseja como bocó. Mas precisamos fazer
um alerta: lembremos a todos e todas que as crianças (na verdade, isso é
coisa do humano, mas muitos adultos são levados a esquecer isso) têm
múltiplas linguagens, contam o mundo em tatibitati e gestos (Manuel de
Barros, 2001). Por isso, devemos olhar para as páginas que seguem com
cautela e cuidando que muitos dicionários possam estar pendurados em
nós. Andemos por espaços desacostumados (Lopes, 2018). É bom dar uma
espiada na conversa abaixo, que mostra um pouco como tudo aconteceu:
“Jader: então, é o mapa do não sei mais
o não sei. Esse aqui oh, é o mapa que a
Dhominick fez do não sei. Diz ela que mora
no mapa do não sei..
Juan: mapa do não sei? Igual ao meu?
Jader: não... é o animal que mora no mapa
do não sei. Esse animal também é o animal
do não sei?
Dhominick: eu tentei desenhar o lobo...
Jader: é o lobo?
Dgiovanna: mas o lobo não vive no mapa!
Jader: hein?!
Dgiovanna: mas o lobo não vive no mapa!
Jader: o lobo vive aonde?
Dgiovanna: o lobo vive na noite... ele faz
uuuuuu
Jader: ele vive na noite?
Dgiovanna: vive”
(maio de 2017)
Foi assim, as palavras se misturavam e eram misturadas. Eram
mexidas como os doces em tachos de cobre, que vão mudando na medida
que nossas intimidades se aproximam. São esses falares que estarão nas
páginas que seguem. Tentem sentir, é isso que as crianças nos dizem.
Já falamos muito, mas queremos trazer uma última coisa, que, para
nós, tem grande importância, é um arbítrio intenso, mas deixa de ser
considerado por muitas pessoas, mas fazemos questão de deixar lavrado.
Em nossos trabalhos, Lev SemionovichVigotski tem uma importância
fundamental. Nós nos debruçamos no seu conceito de vivência para olhar
os abismos do mundo. Nesse encurvar-se para ver a vida, ele nos diz:
“Na verdade, a imaginação, base de toda atividade criadora, manifesta-se,
sem dúvida, em todos os campos da vida cultural, tornando-se também
possível a criação artística, a científica e a técnica” (Vigotski, 2009, p. 14).
A gente poderia parar aqui, já está tudo dito, mas vamos ver mais um
pouco o que ele nos fala: “Nesse sentido, necessariamente, tudo o que
nos cerca e foi feito pelas mãos do homem, todo o mundo da cultura,
diferentemente do mundo da natureza, tudo isso é produto da imaginação
e da criação humana que nela se baseia” (ibidem). É isso, a imaginação é a
criação em que tudo se baseia, esse é nosso pêndulo. Às vezes, temos pena
das palavras, já nascem tão culpabilizadas pelos outros, que nos fazem
esquecer muitas coisas, mas a vantagem de suas existências é que elas
podem renascer. Por isso, há duas escolhas que podem ser feitas agora:
você pode ir direto para as narrativas infantis sobre os mapas, sobre as
cartografias, mas, se tiver muito em forma de tanque, longe de ser enxame,
selecionamos três poemas que aconselhamos ler antes.
Pode ficar aqui... ou ir
adiante
Aula
Nosso Profe. de latim, Mestre Aristeu, era magro e do Piauí.
Falou que estava cansado de genitivos dativos, ablativos e de outras
desinências. Gostaria agora de escrever um livro. Usaria um idioma de
larvas incendiadas! Mestre Aristeu continuou: quisera uma linguagem
que obedecesse à desordem das falas infantis do que das ordens gramaticais.
Desfazer o normal há de ser uma norma. Pois eu quisera modificar
nosso idioma com as minhas particularidades. Eu queria só descobrir
e não descrever. O imprevisto fosse mais atrente do que o dejá visto.
O desespero fosse mais atraente do que a esperança. Epa! O prof.
desalterou de novo –outro colega nosso denunciou. Porque o desespero
é sempre o que não se espera. Verbi gratia: um tropicão na pedra ou
uma sintaxe insólita. O que eu não gosto é de uma palavra de tanque.
Porque as palavras do tanque são estagnadas, estanques, acostumadas.
E podem até pegar mofo. Quisera um idioma de larvas incendiadas.
Palavras que fossem de fontes e não de tanques. E um pouco exaltado o
nosso profe. Disse: Falo de poesia, meus queridos alunos. Poesia é o mel
das palavras! Eu sou um enxame! Epa!... Nisso entra o diretor do Colégio
que assistira à aula de fora. Falou: Seo Enxame, espere-me no meu
gabinete. O senhor está ensinando bobagens aos nossos alunos. O
nosso mestre foi saindo da sala, meio rindo a chorar.
Mapa do lobo
“Eu vou desenhar o São Paulo
alargado”.
Rafael Lopes, 7 anos, 09 de junho de 2017
Mapa longe
“Eu tô fazendo um campo. Uma menina
no campo. Ela tá aqui e a árvore tá
lá do outro lado”.
Anna Moura, 8 anos, 09 de junho de 2017
Mapa do campo
“Aqui é a praia, eu e o sol...já fui na
praia [...]mas nesse desenho [...] tô longe
da praia...eu já fui na praia um diaaaa!
Demorou um dia... demorou a noite toda,
mas eu fiquei com o olho aberto a noite
toda. E aí, todo mundo quase dormiu, já
ficou de dia”.
João Victor, 7 anos, 09 de junho de 2017
Mapa da praia, do eu e do sol
“Eu tô desenhando a praia...esse não sou
eu, é meu irmão...e essa sou eu [...] que
praia é essa aí? Você já foi nela? Não.
Eu ainda vou ir”.
Júlia, 6 anos, 09 de junho de 2017
Mapa do contrário
“Eu venho aqui, venho aqui, venho aqui, venho
aqui, venho aqui, venho aqui, venho aqui,
venho aqui, venho aqui, venho aqui, venho aqui,
venho aqui, venho aqui.. lá tem um montão de
areia. E ninguém mexe naquela areia. Aí vou
enterrar lá minha coisa escondida”.
Jhenifer Vitória, 7 anos, 21 de junho de 2017
Mapa do venho aqui
“Quem quer ver o meu tesouro? fiz um
mapa.. vai até lá no ouro.. aqui vai até lá
no ouro.. aqui é a casa do.. do.. homemaham..
olha o meu, tio.. eu fiz o homem indo
aqui na casa e ainda tem que fazer o
homem aqui.. a casa do homem.. pro ouro.. tá
escondido”.
Fernanda, 8 anos, 21 de junho de 2017
Mapa do ouro escondido
“Eu tô fazendo um mapa para encontrar
um baú de chocolate...meu vizinho tá cheio
de chocolate. Ele não me dá nenhum...
escondeu! Ele não quer me dar.Vizinho
malcriado”.
Gabriel Lopes, 8 anos, 21 de junho de 2017
Mapa do chocolate ou do vizinho
“Minha casa, e cheguei no oceano,
depois fui pra ilha, depois fui para
Antártica, depois cheguei nos Estados
Unidos...”.
Daniel, 9 anos, 21 de junho de 2017
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