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Prefácio

Em meio ao isolamento social, que restringiu nossos espaços reais


e nos deixou com o mundo virtual para dar conta, recebo uma mensagem
do Jader me convidando para escrever o prefácio desse livro.
“Aí, minha nossa senhora, das professoras desesperadas, eu nunca
escrevi um prefácio...”, esse foi o meu primeiro pensamento e que depois
foi complementado pelo tormento da dúvida de o que escrever. Devo ser
a professora doutora da universidade e escrever um texto teórico? Devo
buscar a professora de Geografia da escola, que fui por muitos anos? ou
carregar o olhar sob o aspecto do concurso de mapas para crianças? Resolvi
que quem vai apresentar essa obra é alguém apaixonada pelo potencial da
cartografia em nos ajudar a mapear até o que não sabemos.
Essa paixão me levou a Comissão de Cartografia e Crianças da
Associação Cartográfica internacional e a organização do concurso de
mapas para crianças – Prêmio Lívia de Oliveira, etapa nacional da Barbara
Petchenik Competition. No concurso, crianças e jovens são convidados
a mapear, de forma criativa, a partir de um tema. Os desenhos são
organizados em categorias – menores de 6 anos, de 6 a 8 anos, de 9 a 12
anos e de 13 a 15 anos – e a cada dois anos, a competição internacional
acontece durante a conferência internacional de cartografia. A etapa
nacional do concurso é anual e homenageia a professora Lívia, pioneira
nas pesquisas de cartografia escolar no Brasil. A última edição do concurso
teve como tema “Mapeando o futuro” e contou com quase 400 desenhos
inscritos.
Ao acompanhar o concurso, selecionar desenhos e ajudar na
votação, muitas vezes me deparei com mapas que apresentavam muito
mais do que as linhas imaginárias ou os contornos dos continentes, os
mapas do concurso trazem os sentimentos, os medos e a esperança
dessas crianças e jovens e eu acredito que através desses mapas é
possível ensinar de forma muito mais significativa. Com essa reflexão,
mergulhei no livro e fui buscar os mapas dessas crianças e encontrei uma
obra que junta o olhar cuidadoso dos autores/pesquisadores aos mapas
encantadores das crianças, e que ainda vem com bônus de poesia e um
posfácio para “desachar” um monte de coisas.
O livro começa com a inspiração de Cora Coralina e o
“ajuntamento” de ideias para a sua concepção. Os autores nos colocam
a par de como a obra se originou, que esta é uma pequena parte de um
dos muitos projetos do Grupo de Pesquisas e Estudos em Geografia
da Infância – GRUPEGI/CNPq, que nos presenteiam com uma
abordagem fundamental para a compreensão do desenvolvimento da
espacialidade e de suas formas de representação pelas crianças. O texto
é complementado por mapas de localização, afinal de contas, somos
mapeadores por natureza e sempre que podemos, mapeamos. E são
esses mapas que nos apresentam o lugar, as crianças e nos ajudam a
imaginar como esse projeto se desenvolveu. Mais uma vez os mapas
ampliam os horizontes da leitura, nos levando junto com os autores para
a escola, de Juiz de Fora para o mundo.
Os autores nos avisam... “devemos olhar para as páginas que
seguem com cautela e cuidando que muitos dicionários possam estar
pendurados em nós”, pois os mapas das crianças apresentam o universo
delas e não o nosso e, com isso, o diálogo entre os pesquisadores e
os mapeadores do livro torna-se fundamental nessa jornada. Outra
recomendação importante: a leitura dos poemas, que não é obrigatória,
mas faz toda a diferença.
Mas e os mapas das crianças? Ah, eles vêm na sequência, começando
com o mapa da pegada rasgada, são 24 mapas que nos levam a rios, mares,
lagos, monstros, lobos, areia.... lugares perto, lugares longe. Os mapas não
representam apenas lugares, mas memórias, afetos, e cheiros – confesso
que senti o cheiro de coxinha no mapa do aniversário, da Júlia de 6 anos
– e os diálogos infantis que são criados a partir dos mapas nos mostram
como foi importante o aviso para despendurar os dicionários e surfar na
onda das crianças. O livro termina nos deixando com vontade de mais
mapas do não sei e nos leva a uma última reflexão, do brilhante César
Donizetti Pereira Leite em seu posfácio.
Parabenizo o Jader e a Sara pelo cuidado, carinho e dedicação a cada
mapa que representa cada criança do projeto e a leveza dos textos que
nos ajudam a compreender a trajetória. Espero que os leitores aproveitem
e se inspirem para que mais crianças tenham seus mapas e narrativas
publicadas.

Carla Cristina Reinaldo Gimenes de Sena


Unesp – Campus de Ourinhos
Grupo cartografia escolar.
Comissão de Mapas e Crianças - ICA
Ajuntando....

Não te deixes destruir…


Ajuntando novas pedras e construindo novos poemas.
Recria tua vida, sempre, sempre.
Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça.
Faz de tua vida mesquinha
um poema.
E viverás no coração dos jovens
e na memória das gerações que hão de vir.
Esta fonte é para uso de todos os sedentos.
Toma a tua parte.
Vem a estas páginas e não entraves seu uso
aos que têm sede.

(Cora Coralina em “Aninha e suas pedras”, 1997, p.139)

Faz alguns anos que estamos pensando na escrita deste livro. Todos os
ingredientes estavam conosco,desde que nos encontramos com as crianças
e elas nos brindaram com suas linguagens tão profundas que desconcertam
qualquer mundo que teima ser certinho em suas latitudes e longitudes.
Conversávamos entre nós: vamos fazer? Mas o sabor do doce nem sempre
conta para a boca tudo aquilo que o corpo passou para que ele ficasse pronto.
Foram tantas outras coisas que se juntaram nesses tempos em nossas vidas,
sempre tão cheias de linhas, de riscos e fronteiras que aprisionam,que vezes
nos esquecemos de ser bocós, como bem ensinou Manoel de Barros (2018).
Desculpe-nos o poeta, às vezes, ser aprendiz não é nada fácil. Mas o vivido
rompe-se em instantes e esse ajuntamento permite o desvio ser a exceção
que vira fonte. Ah... deveríamos ser Cora(s) Coralina(s), tão sábia(s) em seus
olhares sobre as belezas dos musgos e as ranhuras das pedras. Nada que
é velho para elas está puído, o longevo é um ancião que ensina e cria. Ser
salvante. Retomamos aos escritos infantis. Tanta coisa contada. Fizemos.
Agora está aqui como fonte. É um livro em sua feitura com as crianças. É
um livro Bocó, sempre acrescentado de Criança (Manoel de Barros, ibidem).
Por essa natureza de exceção, não vamos nos dedicar a falar muito, vamos
deixar que a infância seja o chão de onde as coisas viram ramas e cada um
olha e as toca como estima. Mas é preciso dizer algumas poucas palavras,
o obstante é apenas um não obstante, é o fugidio que se torna fúlgido. Por
ter que dizer, falamos.
Começamos contando que tudo que vocês vão encontrar aqui,
nesta caminhada que escolheram para catar caracóis e pedrinhas na beira
dos rios, que são carregados de cartografias, surgiu a partir de um projeto
de pesquisa que tinha como nomenclatura mais ampla o título “Vivências
sócio-espaciais de crianças em instituições de Educação Infantil” e que, nesse
momento, estava em um de seus desdobramentos e recortes, nomeado por
“Cartografia com Crianças – A escala das Crianças”, financiado pelo Edital
Universal da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais
(Edital 01/2014 – Demanda Universal, processo n. CHE –APQ-402-
14), mas também recebeu apoio do edital de bolsas de iniciação científica
(FAPEMIG/CNPq/PROPESQ-UFJF). Então, devemos começar
agradecendo a esses órgãos oficiais de fomento, pela ajuda financeira que
possibilitou a pesquisa. Todos dividem conosco a autoria dessas páginas.
Esse projeto se estendeu por três anos! Pleno de encontros.
A outra coisa a contar refere-se ao próprio projeto. Ele surge como
fruto de outros, desenvolvido dentro de nosso grupo de pesquisa (o Grupo
de Pesquisas e Estudos em Geografia da Infância – GRUPEGI/CNPq),
que tem se dedicado a estudar a Geografia da Infância como campo de
conhecimentos e pesquisas. Nesses treze anos de trabalho, acumulamos
um extenso material de campo (desenhos, registros, notas e observações
de campo, gravações audiovisuais e outras) que fazem parte de um acervo,
o que nos permitiu reconhecer alguns princípios presentes na vivência
espacial das crianças, já citados em muitas de nossas publicações e que
temos apontado como documentos geográficos de bebês e crianças, no
reconhecimento que nas infâncias vividas muitas geografias se fazem e
podem, devem ser documentadas como patrimônios.
Buscando dar continuidade aos nossos estudos, elegemos a
vivência cartográfica das crianças como tema de nossas pesquisas nesse
projeto específico, sem abandonar todas as nossas escolhas anteriormente
traçadas. A sua sistematização teve como tópico compreender como as
crianças pequenas se envolvem com os elementos da cultura cartográfica
e como esses se expressam com suas vivências sócio espaciais. O foco
continuava o mesmo de trabalhos anteriores, mas com o olhar para os
mapas e tudo aquilo que se envolve nesse vocábulo. Interessava-nos
compreender as formas geneticamente embrionárias dos processos de
vivência dos elementos cartográficos, a gênese da criação e da atividade
cartográfica autoral, que, a nosso ver, explica a formação das estruturas
superiores de criação e autoria. Nossa hipótese era, como já expresso
em outros momentos, de que as crianças mobilizam essas funções em
condições de coemergência no social, em grupos que funcionam como
proto-nós, em vivências nas situações que se tornam as bases internalizadas
das capacidades mais tarde individualizadas. Nosso desejo era olhar para
as situações sociais – no nosso caso, também, as situações escolares – das
crianças e como, em suas vivências coletivas, os elementos cartográficos
circulavam e eram tomados.
Contada essa segunda parte, faz-se necessário chegar à terceira: o
local onde nos encontramos com as crianças. Fizemos a escolha de ir para
uma escola presente no município de Juiz de Fora, estado de Minas Gerais,
aqui no Sudeste do Brasil. A Escola Municipal Calil José Ahouagi nos
aceitou e acolheu de forma carinhosa nossa pesquisa. Aqui precisamos fazer
outros agradecimentos para a direção da escola, para toda a comunidade
escolar, professores, coordenadores, para a Secretaria de Educação do
Município que autorizou, em primeira instância, o desenvolvimento de
nossas atividades e, claro, para as crianças que participaram conosco.
Fizemos até alguns mapas para mostrar onde esse local existe.
Mapa 01:
Juiz de Fora

Mapa 02:
A escola que nos acolheu
Agradecemos o tempo que passamos com as crianças, com a
professora Virgínia Moreira Braga e com a Coordenadora Pedagógica
Gizela Marques, as profissionais da instituição com que trabalhamos mais
de perto no início da pesquisa. Neste momento, é importante destacar e
agradecer também à Brenda Martoni Mansur Corrêa da Costa que, estando
conosco, permitiu a criação de muitas coisas. Trazemos para vocês dois
mapas conjuntamente construídos nesses primeiros fazeres:

Mapa 03:
“Das coisas das crianças”

Mapa 04:
Entornos – Vivências das crianças
Mas, aqui, não vamos nos dedicar a esses mapas e a outros embrenhos
a que ficamos acometidos nesses tempos. A pesquisa continuou nos anos
seguintes. Novos meses de trabalho nos levaram a sentar em muitos locais
para fazer outras conversas, outrosdesenhos, novos registros, com crianças
de diferentes idades. Movemo-nos pelo chão da varanda, das salas de aulas,
da horta, que eram nossas alvoradas. A direção da escola, Rachel Gomes
Lau e Gustamara Freitas Vieira, nos cedeu muitos espaços da escola para
os encontros. E cá vamos trazer as linguagens dessas crianças, nossas
conversas, suas palavras, algumas confabulações de nossos proseamentos
cartográficos, coisas para quem se deseja como bocó. Mas precisamos fazer
um alerta: lembremos a todos e todas que as crianças (na verdade, isso é
coisa do humano, mas muitos adultos são levados a esquecer isso) têm
múltiplas linguagens, contam o mundo em tatibitati e gestos (Manuel de
Barros, 2001). Por isso, devemos olhar para as páginas que seguem com
cautela e cuidando que muitos dicionários possam estar pendurados em
nós. Andemos por espaços desacostumados (Lopes, 2018). É bom dar uma
espiada na conversa abaixo, que mostra um pouco como tudo aconteceu:
“Jader: então, é o mapa do não sei mais
o não sei. Esse aqui oh, é o mapa que a
Dhominick fez do não sei. Diz ela que mora
no mapa do não sei..
Juan: mapa do não sei? Igual ao meu?
Jader: não... é o animal que mora no mapa
do não sei. Esse animal também é o animal
do não sei?
Dhominick: eu tentei desenhar o lobo...
Jader: é o lobo?
Dgiovanna: mas o lobo não vive no mapa!
Jader: hein?!
Dgiovanna: mas o lobo não vive no mapa!
Jader: o lobo vive aonde?
Dgiovanna: o lobo vive na noite... ele faz
uuuuuu
Jader: ele vive na noite?
Dgiovanna: vive”
(maio de 2017)
Foi assim, as palavras se misturavam e eram misturadas. Eram
mexidas como os doces em tachos de cobre, que vão mudando na medida
que nossas intimidades se aproximam. São esses falares que estarão nas
páginas que seguem. Tentem sentir, é isso que as crianças nos dizem.
Já falamos muito, mas queremos trazer uma última coisa, que, para
nós, tem grande importância, é um arbítrio intenso, mas deixa de ser
considerado por muitas pessoas, mas fazemos questão de deixar lavrado.
Em nossos trabalhos, Lev SemionovichVigotski tem uma importância
fundamental. Nós nos debruçamos no seu conceito de vivência para olhar
os abismos do mundo. Nesse encurvar-se para ver a vida, ele nos diz:
“Na verdade, a imaginação, base de toda atividade criadora, manifesta-se,
sem dúvida, em todos os campos da vida cultural, tornando-se também
possível a criação artística, a científica e a técnica” (Vigotski, 2009, p. 14).
A gente poderia parar aqui, já está tudo dito, mas vamos ver mais um
pouco o que ele nos fala: “Nesse sentido, necessariamente, tudo o que
nos cerca e foi feito pelas mãos do homem, todo o mundo da cultura,
diferentemente do mundo da natureza, tudo isso é produto da imaginação
e da criação humana que nela se baseia” (ibidem). É isso, a imaginação é a
criação em que tudo se baseia, esse é nosso pêndulo. Às vezes, temos pena
das palavras, já nascem tão culpabilizadas pelos outros, que nos fazem
esquecer muitas coisas, mas a vantagem de suas existências é que elas
podem renascer. Por isso, há duas escolhas que podem ser feitas agora:
você pode ir direto para as narrativas infantis sobre os mapas, sobre as
cartografias, mas, se tiver muito em forma de tanque, longe de ser enxame,
selecionamos três poemas que aconselhamos ler antes.
Pode ficar aqui... ou ir
adiante
Aula
Nosso Profe. de latim, Mestre Aristeu, era magro e do Piauí.
Falou que estava cansado de genitivos dativos, ablativos e de outras
desinências. Gostaria agora de escrever um livro. Usaria um idioma de
larvas incendiadas! Mestre Aristeu continuou: quisera uma linguagem
que obedecesse à desordem das falas infantis do que das ordens gramaticais.
Desfazer o normal há de ser uma norma. Pois eu quisera modificar
nosso idioma com as minhas particularidades. Eu queria só descobrir
e não descrever. O imprevisto fosse mais atrente do que o dejá visto.
O desespero fosse mais atraente do que a esperança. Epa! O prof.
desalterou de novo –outro colega nosso denunciou. Porque o desespero
é sempre o que não se espera. Verbi gratia: um tropicão na pedra ou
uma sintaxe insólita. O que eu não gosto é de uma palavra de tanque.
Porque as palavras do tanque são estagnadas, estanques, acostumadas.
E podem até pegar mofo. Quisera um idioma de larvas incendiadas.
Palavras que fossem de fontes e não de tanques. E um pouco exaltado o
nosso profe. Disse: Falo de poesia, meus queridos alunos. Poesia é o mel
das palavras! Eu sou um enxame! Epa!... Nisso entra o diretor do Colégio
que assistira à aula de fora. Falou: Seo Enxame, espere-me no meu
gabinete. O senhor está ensinando bobagens aos nossos alunos. O
nosso mestre foi saindo da sala, meio rindo a chorar.

Manuel de Barros (2006)


Desexplicação
Língua de criança é a imagem da língua primitiva.

Na criança fala o índio, a árvore, o vento.

Na criança fala o passarinho

O riacho por cima das pedras soletra os meninos.

Na criança os musgos desfalam, desfazem-se.

Os nomes são desnomes.

Os sapos andam na rua de chapéu.

Os homens se vestem de folhas no mato

A língua das crianças contam a infância em tatibitati e gestos.

Manuel de Barros (2001)


Bocó
Quando o moço estava a catar caracóis e pedrinhas na beira do rio até duas
horas da tarde, ali também Nhá Velina Cuê estava. A velha paraguaia de
ver aquele moço a catar caracóis na beira do rio até duas horas da tarde,
balançou a cabeça de um lado para o outro ao gesto de quem estivesse com
pena do moço, e disse a palavra bocó. O moço ouviu a palavra bocó e foi
para casa correndo a ver nos seus trinta e dois dicionários que coisa era
ser bocó. Achou cerca de nove expressões que sugeriam símiles a tonto.
E se riu de gostar. E separou para ele os nove símiles. Tais: Bocó é sempre
alguém acrescentado de criança. Bocó é uma exceção de árvore. Bocó é um
que gosta de conversar bobagens profundas com as águas. Bocó é aquele
que fala sempre com sotaque das suas origens. É sempre alguém obscuro
de mosca. É alguém que constrói sua casa com pouco cisco. É um que
descobriu que as tardes fazem parte de haver beleza nos pássaros. Bocó é
aquele que olhando para o chão enxerga um verme sendo-o. Bocó é uma
espécie de sânie com alvoradas. Foi o que o moço colheu em seus trinta e
dois dicionários. E ele se estimou

Manuel de Barros (2018)


A Cartografia em
Tatibitates e Gestos

[...] mas afinal de contas, isso


que vocês fizeram...é mapa ou
não é mapa?
Dgiovanna: [...]é mapa.
(maio de 2017)
“É o pé... são os dedos..”.
David, 24 de maio de 2017, 6 anos
Mapa da pegada rasgada
“Minha meia rasgada...”
Dhominick, 6 anos, 24 de maio de 2017
Mapa da meia rasgada
“Do não sei...”
Juan, 8 anos, 24 de maio de 2017
Mapa do não sei
“Uma pegada rasgada”
Alexandra, 7 anos, 24 de maio de 2017
Mais um mapa da pegada rasgada
“Eu tô desenhando um mapa... um
mapa perdido...o mapa furado!”.
Dgiovanna, 7 anos, 24 de maio de 2017
Um mapa perdido e furado
“Aqui, eles enterrou o tesouro. Aí você tem que vir
pra cá. [?] primeiro pelo vento, depois pelo lado
do jacaré. E depois pela cobra. E depois é só você
chegar na árvore que tem maçã. Vai ter um x
e você vai cavar.
[...] mas tem uma cobra perigosa [...] mas
ela vai tá dormindo. Mas e o jacaré? Você vai
passar nessas pedrinhas. Esse mapa ajuda...
ajuda a... pegar o tesouro!”
Ana Lara, 6 anos, 24 de maio de 2017
Mapa do tesouro
“Eu tô desenhando sei lá o que o mapa
também...eu sei lá...aqui é a água, aqui
é a mata, a terra...sei lá a última...
falta fogo... sei lá”.
Mickael, 7 anos, 24 de maio de 2017

Mapa do sei lá o quê


“Eu tentei desenhar o lobo...”.
Dhominick, 6 anos, 24 de maio de 2017

Mapa do lobo
“Eu vou desenhar o São Paulo
alargado”.
Rafael Lopes, 7 anos, 09 de junho de 2017

Mapa de São Paulo alargado


“Eu tô desenhando um foguete[...]aqui é
um foguete que tá saindo da Terra e
tá indo pra esse planeta aqui. Eu só não
sei o nome...eu não sei o tempo porque eu
nunca fui”.
Rafael Vitor, 7 anos, 09 de junho de 2017

Mapa do foguete e do planeta sem nome


“Aparecida do Norte... a minha mãe já
viajou para lá...longe..
demora. O relógio dá volta só uma vez.
E depois quando chegar dá outra vez”.
Gabriel Lima, 8 anos, 09 de junho de 2017

Mapa longe
“Eu tô fazendo um campo. Uma menina
no campo. Ela tá aqui e a árvore tá
lá do outro lado”.
Anna Moura, 8 anos, 09 de junho de 2017

Mapa do campo
“Aqui é a praia, eu e o sol...já fui na
praia [...]mas nesse desenho [...] tô longe
da praia...eu já fui na praia um diaaaa!
Demorou um dia... demorou a noite toda,
mas eu fiquei com o olho aberto a noite
toda. E aí, todo mundo quase dormiu, já
ficou de dia”.
João Victor, 7 anos, 09 de junho de 2017
Mapa da praia, do eu e do sol
“Eu tô desenhando a praia...esse não sou
eu, é meu irmão...e essa sou eu [...] que
praia é essa aí? Você já foi nela? Não.
Eu ainda vou ir”.
Júlia, 6 anos, 09 de junho de 2017

Mapa da praiaque eu ainda vou ir


“Uma praia... uma cadeira de sol”.
Clarice, 7 anos, 09 de junho de 2017
Mapa de uma praia e uma cadeira de sol
“Vou fazer minha casa, onde vai ter meu
aniversário. Já terminei. Esse sou eu.. Uma
amiga minha caindo.. essa sou eu, essas são
os balões, esse é o negócio onde que solta
fumaça, aqui é porta, aqui é a escada,
aqui é um bolinho, bife, coxinha e batata
frita. E a mesa e os balões”.
Júlia, 6 anos, 09 de junho de 2017
Mapa do aniversário
“O meu eu fiz um mapa.. eu fiz o monstro
do lago ness, a janela mortal, os pânicos
de assalto.. porque aí quando que cai uma
árvore e não tem saída.. aqui é uma lama.
Mas é cinza. E aqui é um dinossauro. Aqui
é o baú, mas aí aqui sai. Depois dá uma
volta e acha a chave para abrir o baú. É
mapa do tesouro”.
João Victor,7 anos, 09 de junho de 2017
Mapa do tesouro
“Você vai reto, vai pra cá, segue reto
e vai pra cá e já chega... eu só não
sei isso...eu fiz ao contrário”.
Rafael Vitor, 7 anos, 09 de junho de 2017

Mapa do contrário
“Eu venho aqui, venho aqui, venho aqui, venho
aqui, venho aqui, venho aqui, venho aqui,
venho aqui, venho aqui, venho aqui, venho aqui,
venho aqui, venho aqui.. lá tem um montão de
areia. E ninguém mexe naquela areia. Aí vou
enterrar lá minha coisa escondida”.
Jhenifer Vitória, 7 anos, 21 de junho de 2017
Mapa do venho aqui
“Quem quer ver o meu tesouro? fiz um
mapa.. vai até lá no ouro.. aqui vai até lá
no ouro.. aqui é a casa do.. do.. homemaham..
olha o meu, tio.. eu fiz o homem indo
aqui na casa e ainda tem que fazer o
homem aqui.. a casa do homem.. pro ouro.. tá
escondido”.
Fernanda, 8 anos, 21 de junho de 2017
Mapa do ouro escondido
“Eu tô fazendo um mapa para encontrar
um baú de chocolate...meu vizinho tá cheio
de chocolate. Ele não me dá nenhum...
escondeu! Ele não quer me dar.Vizinho
malcriado”.
Gabriel Lopes, 8 anos, 21 de junho de 2017
Mapa do chocolate ou do vizinho
“Minha casa, e cheguei no oceano,
depois fui pra ilha, depois fui para
Antártica, depois cheguei nos Estados
Unidos...”.
Daniel, 9 anos, 21 de junho de 2017

Mapa de chegar nos Estados Unidos


“Esse daqui eu fiz... eu tava saindo
da minha casa...na praia, aí eu nadei
e encontrei um baú do tesouro...ele tá
enterrado...Eu fui de carro...de carro.
Aí eu cheguei lá... aí eu e meu pai
encontrou”.
João Pedro, 7 anos, 21 de junho de 2017
Mapa do baú enterrado
“Um dia, nós foi lá no córrego. Aí, minha amiga foi...
eu e ela... foi... aí minha tia foi.
aí a tia vai... todo mundo da minha sala foi... aí
quando a nós chegou aqui, minha amiga achou uma
pratinha, ela me mostrou, aí quando eu cheguei de
volta, ela me deu... a pratinha... tá lá em casa.Eu
vou enterrar um negócio também vou enterrar... uma
nota e mil reais... lá em casa tem...”;
Arthur
Arthur falou que tem 8 anos, mas o João Pedro disse que
é mentira, que, na verdade, o Arthur também teria 7 anos.
A Jhenifer Vitória também falou que ele tem 7 anos. Mas o
Arthur se defende e diz que tem 8, sim, 21 de junho de 2017.
Mapa do córrego
As nossas referências:
Escola Calil Ahouagi;
As crianças;
Muitos outros bebês e crianças;
A professora;
A coordenadora pedagógica;
Todos os chãos que nos acolheram;
CORALINA, Cora. Vintém de cobre: meias confissões de Aninha. 6 ed.,
São Paulo: Global Editora, 1997.
BARROS, Manoel de. Poeminhas Pescados numa fala de João. Rio de
Janeiro: Record. 2001.
BARROS, Manoel de. Memórias inventadas: a segunda infância. São
Paulo: Planeta, 2006.
BARROS, Manoel de. Memórias inventadas. Rio de Janeiro: Alfaguara,
2018.
LOPES, Jader Janer M. Geografia e Educação Infantil. Espaços e Tempos
Desacostumados. Porto Alegre: Editora Mediação. 2018.
VIGOTSKI, LevS. Imaginação e Criação na Infância. São Paulo: Ática,
2009.
Posfácio
Mapas para desachar: Trilhas e percursos através de olhares infantis

Essa palavras, carte [carteira, carta], cai


bem, pois vem de charta: “papel”. Pode
ser um “pequeno cartão retangular que
traz uma figura num dos seus lado”,
uma “representação em escala reduzida
da superfície total ou parcial do globo
terrestre” ou um “documento que confere
certos direitos à pessoa dele munida”.
(Fernand Deligny, O Aracniano e outros
textos, p. 151).

Tenho, nos últimos anos, estado um pouco mais perto dos


começos, dos inícios, das infâncias das coisas, tenho nutrido certa paixão
por aquilo que as aberturas infantis nos apresentam, sobretudo quando
podemos compreender o infantil fora de certas ‘categorias’ identitárias.
Penso aqui na infância como certa espacialidade atemporal, a infância não
como lugar específico ou fase de uma vida ou uma história, mas a infância
como começos, como travessia, percurso, a infância como aquilo que fora
dos bordejamentos limitados se coloque como uma extensão para fora. O
fora não é por onde a infância se expressa, mas sim os poros por onde ela
aspira, transpira, respira, o fora e no fora a infância toma forma no corpo
da criança que escuta, degusta, cheira, sente, vê, trans-vê o mundo. É no
fora que a criança, na sua infância, produz suas cartas, seus cartões, seus
cartoons, suas cartografias.
Tomar contato com o trabalho “Mapa do Não Sei: Narrativas das
crianças sobre os mapas. Um livro para os que desejam ser bocós” de Jader Janer
Moreira Lopes e Sara Rodrigues Vieira de Paula escrito a partir de muitas
experiências com crianças, mas sobretudo de desdobramentos e recortes,
do projeto “Cartografia com Crianças – A escala das Crianças”, financiado
pelo Edital Universal da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de
Minas Gerais (Edital 01/2014 – Demanda Universal, processo n. CHE
–APQ-402-14), e de bolsa de Iniciação Científica (FAPEMIG/CNPq/
PROPESQ-UFJF) nos coloca diante de uma inusitada situação. O curioso,
que torna inusitado, pode ser visto, sentido, pensado em várias frentes,
entre elas destaco aqui, o jogo compositivo do texto, o movimento que
o texto cria nos colocando no próprio movimento de leitura também
em movimento, nas perspectivas conceituais que vai assumindo formas
imagéticas, poéticas, gráficas, textuais. Vamos a elas:
Longe de pretender falar, analisar, interpretar o que dizem e pensam
as crianças o texto assumi uma perspectiva de apresentar, dar visibilidade os
universos e mundos infantis que as crianças habitam, o formato compositivo
que oscila entre textos, citações, poesias, imagens, fala de crianças, vão
colocando o texto dentro de um jogo compositivo muito próprio e
parecido com os das crianças, o movimento de bricolagem, diferente do
que usualmente vemos nos textos interpretativos, aqui a composição nos
aproxima das crianças, criar certo estado de ‘comum’, faz com que nós,
nos coloquemos nos próprios percursos. Sair dos macro mapas e chegar às
pegadas rasgadas, meias rasgadas, mapas do não sei, desenhos de mapas, de mapas
perdidos, mapas furados, são os mundos das crianças, mundo crianças que
sorrateiramente resistentes aos processos colonizadores das educação.
A composição dessas manifestações apresentadas juntamente com
as perspectivas conceituais, poesias, fala das crianças vão também nos
colocando em percursos, travessias, vão permitindo que cada um a sua
própria forma crie também seus próprios mapas. Aqui, o que podemos,
de alguma forma (cada um a sua própria maneira) é entender o que com
muita clareza nos ensinou Guimarães Rosa em Grande Sertão: Veredas, “o
real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no
meio da travessia”. Fica aqui o convite para um exercício de olhar, para
uma experiência de pensamento, para um passeio pelo “Mapa do Não Sei:
Narrativas das crianças sobre os mapas. Um livro para os que desejam ser bocós” de
Jader Janer Moreira Lopes e Sara Rodrigues Vieira de Paula.

César Donizetti Pereira Leite


UNESP Rio Claro/ IMAGO Grupo
Agosto de 2020 – entre meios de uma quarentena.
ISBN 978-65-003-1826-5

9 786500 318265

Edições GRUPEGI
Juiz de Fora
2021

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