Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
(Milton entra, olha para o teclado e o suporte desmontados e faz uma cara de quem não aguenta mais)
Milton: Eu já pedi pra diretora um estagiário, mas nem isso essa escola consegue me dar. Milton Sales,
professor de música aqui da escola. Eu já fui diretor adjunto do Conservatório Federal em Recife. Um prédio
histórico suntuoso lá na praça 13 de Maio. Você já deve ter passado por lá com algum amigo turista:
(ironizando levemente) “Olha, aqui é um teatro histórico, um dos mais importantes do Brasil”. Porcaria de
informação. Primeiro porque não é teatro. Segundo porque você nunca entrou, então não sabe nem dizer
se é mesmo importante.
Milton: Enfim...7 anos no topo da cadeia musical. Mas eu tive que sair. Acho que no final as pessoas têm
algum problema com a minha sinceridade. Você deve tá achando que eu era chato, grosso, alguma coisa.
Não. Eu era educado, mas implacavelmente sincero. Todo mundo gosta de gente falsa. Vocês dizem não
gostar, mas todo mundo gosta. Aliás, todo mundo quer ter um mentiroso de estimação do lado. (Pergunta
pra alguém da plateia). Qual é o seu? É ela? (aponta para quem está do lado). Imaginei. Alguém que diga
que sua roupa tá boa. Não tá. Um amigo que diga que o culpado foi o outro mesmo sabendo que o babaca
é você? Por aí.
(Milton coloca o piano em cima do suporte e se senta na cadeira para limpá-lo com um paninho)
Milton: Bom, eu fui tirado do conservatório e aparentemente minha fama era tão ruim que a única coisa
que me restou foi essa escola. E eu que vivia entre os grandes agora vivo entre adolescentes que perguntam
se eu posso ensinar a tocar Coldplan...Cold...deixa pra lá. (olha a hora) Eu vou na cantina me atrasar um
pouco pra ver se eu passo menos tempo com eles hoje.
(Milton sai)
(Mágela, Rodrigo e Clarice entram. Mágela e Rodrigo estão sentados. Clarice em pé. Eles estão
preocupados porque chegou uma notícia sobre um possível acidente envolvendo os pais de Nik. Professor
Monteiro foi verificar.)
Mágela: E aí Monteiro?
Monteiro: São eles, gente. Eu confirmei. São os pais do Nikola naquele carro. Tão os dois mortos.
Rodrigo (ao mesmo tempo que Mágela): Ferrou.
Mágela (ao mesmo tempo que Rodrigo): Ai, meu Deus.
Monteiro: Tem alguém que possa vir aqui pegar ele?
Mágela: Não que eu saiba.
Monteiro: Ele é estrangeiro, né?
Mágela: Ele é brasileiro. Os pais são estrangeiros. Iuguslávia.
Rodrigo: Sei nem onde fica isso.
Mágela: O que é que eu faço?
Rodrigo: Liga pro Conselho Tutelar pra ver o que eles orientam.
Mágela: Num dá pra eu largar o menino assim na mão de órgão público. E se fosse meu filho?
Rodrigo: Justamente. Não é seu filho. Cê vai adotar?
Mágela: Num vou, Rodrigo, mas ele vai ficar destruído quando souber. Tem que ter pelo menos alguém do
lado dele pra dar apoio nesses primeiros momentos.
Rodrigo: Tá, eu entendo que cê tá com pena, mas o que é que a gente vai fazer? Não dá pra eu chegar com
um órfão em casa agora de noite do nada. Isso é um compromisso sério, Mágela, ninguém sabe por quanto
tempo.
Mágela: Eu vou levar ele lá pra casa, Rodrigo. Não precisa se preocupar. Meu filho é louco por ele, pelo
menos não vai reclamar se o Nik ficar lá por uns dias.
Rodrigo: Você é quem sabe.
Monteiro: Pessoal, se a gente quiser que ele receba a notícia de uma maneira menos traumática tem que
chamar logo. Daqui a pouco a polícia bate aqui pra tratar de reconhecimento de corpo, documentação, essas
coisas.
Mágela: Alguém pode pelo menos ir chamar o Nik enquanto eu me preparo?
Monteiro: Ele tá aonde?
Clarice: Tá no ensaio do Ministério de Louvor com o professor Milton.
Rodrigo: Tá. Eu vou lá.
CENA 3 – O ENSAIO
Nik: Cheguei.
Vanessa: Ninguém se importa.
Nik: Mentira que vocês tavam tudo na depressão sem mim.
Vanessa: Haha, até parece.
Nik: Rapaz, eu vim correndo achando que tava atrasado.
Vanessa: Atrasado você está, só que o professor consegue ser pior do que você.
Davi: O véi Milton odeia trabalhar aqui.
Vanessa: Ele nem se esforça pra disfarçar, véi.
Nik: Ei, diga isso não que eu gosto que só da aula dele. Ele é muito bom, véi.
Vanessa: Tá, mas o que tanto tu fazia nesse médico?
Nik: Foi uma ultrassonografia computadorizada, mas eu não tinha ideia do que era isso até chegar lá. Tipo,
eles colocam você deitado numa máquina lá, que parece um túnel, e você tem que ficar sem se mexer até
terminar o exame. Eu não calculei direito o tempo, mas foi quase uma hora.
Vanessa: Tu sozinho lá?
Nik: Eu e a enfermeira, eu acho.
Davi: Opaaaa....aaah meu filho, tu vacilou como sempre.
Nik: Lá vem.
Davi: Pedia pra enfermeira deitar na máquina lá contigo e passava o vapo nela. Dizia: “doutora, venha cá
que eu tô com medo”.
Nik: Tu num tem ideia do quanto tu é ridículo, né véi?
Davi: Pergunta pra tua namorada se eu sou ridículo.
Vanessa: Tipo agora.
Nik: Né? Enfim...a bronca foi que eu já cheguei atrasado, aí quando eu entro na escola quem tava lá?
Vanessa: Gabriel.
Nik: Exatamente.
Davi: O retardado?
Vanessa: Tu sabe que ele é retardado, pergunta não sei pra que? Parece que gosta de repetir que ele é
retardado.
Nik: Véi...eu não sei o que eu fiz praquele menino gostar tanto de mim. Eu me sinto mal porque eu não tenho
paciência com ele, mas ele é muito chato.
Vanessa: É porque tipo...todo mundo trata ele mal, tá ligado? E tu não. Mesmo que tu não trate ele “bem,
bem”, mas pelo menos não é que nem Davi que fica fazendo ele de palhaço na frente de todo mundo.
Davi: É. Tu ri das coisas que eu faço.
Vanessa: De algumas. Tem vezes que você exagera, eu fico com pena.
Nik: Eu fico com pena também, mas eu não sei o que fazer, tá entendendo? Tipo: vai ter o concurso de
música no final do semestre e ele implicou que quer cantar comigo. Ele queria me mostrar uma música que
ele compôs hoje pro concurso.
Davi (gargalhando): Eu queria ter visto isso. Tô pensando em me inscrever pra esse concurso só pra cantar
com ele.
Nik: Não, aí eu falei: “Gabriel, eu já escrevi uma música”. Aí ele: “Massa, então me ensina que eu canto
contigo”. Aí eu falei que tava atrasado e talz e despistei, mas se eu conheço Gabriel, ele vai vim atrás de mim
e eu não sei o que dizer.
Vanessa: Fala com Mágela. Quando ele vem me encher o saco eu falo logo com ela.
(O professor Milton entra)
(O professor dá a nota e os alunos cantam uma música que só Deus sabe qual é)
Nik: Professor, é que eu compus uma música pro concurso e eu queria que o senhor desse uma olhada pro
senhor me dizer se tá boa, o que precisa melhorar e talz.
Milton: Tá bom, vamo ver.
(Nik canta sua música para o professor Milton. Uma música bem medíocre, como a maioria das músicas.)
(Rodrigo chega)
Mágela: Eu liguei pra alguns dos meninos com quem ele mais anda por aqui, mas ninguém sabe de nada.
Clarice: Eu também não achei nada nas redes sociais dele.
Monteiro: O Rodrigo tá chegando com ele. Cê tá bem pra dar a notícia?
Mágela: Tô.
(Rodrigo e Nik chegam. Mágela pede que Nik se sente na cadeira em frente a ela e ela se aproxima dele
para dar a notícia)
Mágela: O que eu vou te dizer agora vai ser muito difícil, mas a gente vai passar por isso junto com você.
(pausa) Tem coisa de uma hora, um acidente de carro aconteceu na BR 232. A polícia encontrou no banco
de trás do carro um folder da nossa escola e ligou pra cá. Era o carro dos seus pais, Nikola.
Nik: Eles tão bem? Onde é que eles tão agora?
Mágela: Infelizmente o acidente foi fatal, Nikola. Seus pais morreram nele.
Nik (meio atordoado): Isso é confirmado já? Levaram eles pro hospital?
Monteiro: Eu acabei de voltar de lá, Nikola. Eles faleceram ainda no local do acidente. Uma ambulância foi
chamada, mas os médicos constataram a morte lá mesmo.
Nik (atordoado): Tá.
Nik: Não.
Mágela: Do que é que você precisa agora, Nik? A gente tá aqui com você.
Nik (em choque): Eu posso falar com eles?
Mágela (segurando a mão de Nik, quase chorando): Você não pode, meu lindo. Eu sinto muito. Você não
pode mais.
Nik: É. Eu me confundi. Desculpa. (pausa) O que eu faço agora? Pra onde eu vou?
Mágela: Tem algum parente ou amigo da família com quem você possa contar?
Nik: Não. Era só a gente.
Mágela: Então você vai lá pra casa. Vai ficar o tempo que precisar lá.
Monteiro: Eu preciso te levar pra reconhecer os corpos dos seus pais agora. E a gente precisa ver como você
vai querer o funeral. Você tá em condições de resolver isso agora?
Nik (em choque): Tô.
Monteiro: Vem comigo então.
(Monteiro leva Nik amparando-o. Rodrigo sai de cena também. Clarice abraça Mágela para que ela possa
chorar. Depois as duas saem de cena)
ATO II - SOBREVIVENTES
Gabriel: Esse chão aqui sempre tá sujo. Eu limpo todo dia e ele sempre volta a ficar sujo. Deve ser da natureza
dos chãos ficarem sujos. Acho que pra ser chão você tem que tá disposto a ficar sujo. Principalmente se você
é um chão daqui. A galera daqui é muito sem noção. Parece quem não tem mãe. Eu não tenho pai, mas
tenho mãe, então tá tudo bem. Minha mãe é coordenadora aqui na escola, por isso ela me conseguiu esse
emprego. Eu estudo de tarde e limpo o chão de manhã. Fui eu que pedi pra trabalhar porque eu tô numa
idade que eu já tô me interessando por garotas. E nenhuma garota vai querer sair comigo se eu não tiver
dinheiro pra pagar o rolê. Agora que eu tenho dinheiro, só falta uma garota querer sair comigo. Mas vai
aparecer, tem doida pra tudo. Eu já me interessava por garotas antes. Minha mãe diz que eu sou meio
precoce. Mas antes era difícil eu namorar, quase impossível. É que eu era muito doente. Eu ainda sou, mas
agora eu tô melhor. Tem um troço chamado tumor, um monte deles que brotam dentro de mim. Eu ia muito
pro hospital. Eu já cheguei a morar lá por uns três meses. Todo mundo achava que eu ia morrer, mas eu
tenho sangue ruim. O médico disse que eu matei vários dos tumores dentro de mim, mas ainda tenho que
matar vários outros, se não eles me matam. Eu tenho uma cicatriz enorme aqui na barriga de uma das
cirurgias que eu fiz. Eu mostraria a vocês, mas eu tenho muita vergonha. Ela é muito feia, sério. Os pais do
Nik morreram tem uma semana, mas não foi um tumor que matou eles, foi um acidente. O Nik tá malzão,
mas eu tô ajudando ele. Ele tá morando comigo agora. Antes ele já era meu melhor amigo, mas agora ele é
meu irmão. Dorme no mesmo quarto que eu. Eu deixei ele ficar na parte de cima do beliche que é a minha
parte preferida, mas acho que ele tá precisando mais dela do que eu agora. Hoje é a primeira vez que ele
vem pra aula desde que os pais dele morreram. Eu quero que o chão esteja bem limpo quando ele chegar.
Um chão sujo deixa a gente mais triste.
(Davi entra, dá um tapa no pescoço de Gabriel, depois atravessa o braço por cima de seu ombro.)
Davi (largando o pescoço de Gabriel): Meu uniforme, idiota! Tu vai ter que limpar esse chão com a língua
agora.
(Davi pega o pescoço de Gabriel, força o menino a ficar de joelhos e coloca o rosto dele perto do chão)
Davi (ao mesmo tempo que Gabriel): Lambe aí, pra ficar limpo. Bora, bota essa língua pra fora, bota essa
lingua pra fora e lambe o chão. Tu num quer que fique limpo? Num é isso que tu quer?
Gabriel (ao mesmo tempo que Davi): Meu pescoço, Davi. Tá doendo, tá doendo. (gritando) Minha cirurgia,
caramba.
(Gabriel se vê obrigado a lamber o chão no exato momento em que chegam Vanessa e Érica)
Davi: É porque tu não viu o que ele fez com a minha calça.
Érica (ironicamente): Ah, o bad boy sujou as calças novas.
Vanessa (pra Gabriel): Tá doendo a cirurgia, Gabriel?
Gabriel: Tá não. Eu só falei aquilo pra ele parar.
Davi (tentando levantar a camisa de Gabriel): A cirurgia desse viadinho já tá cicatrizada. Quer ver?
Gabriel (com raiva, e tirando a mão de Davi de sua camisa): Sai!
Érica (oferecendo a mão pra Gabriel): Vem, Gabriel, sai desse chão sujo.
Gabriel: Tá sujo agora que vocês chegaram, porque antes tava limpo.
Vanessa: Ér...e tu queria que a gente entrasse na escola como? Voando?
Gabriel (afrontoso): É.
Vanessa: Ér...é por isso que apanha.
(Nik entra)
(Davi vai até Nik e abraça o amigo. Nik corresponde ao abraço. Todos seguem em direção a Nik, mas
Gabriel é deixado meio de escanteio)
Davi: Ô, véi. Cê tá bem? Cê num sabe como eu tô feliz de te ver aqui de novo.
Nik: Tô ficando bem sim, maninho. Valeu. (vendo Érica) Melhor agora, inclusive.
(Todos riem)
Davi: Tá. A gente vai deixar vocês conversarem aí. Guardo teu lugar lá na sala, maninho.
Nik: Valeu.
(Davi e Vanessa vão se retirando. Gabriel vai andando pra conversar com Nik e Érica, mas é arrastado por
Vanessa e Davi pra fora do cenário. Érica e Nik ficam sozinhos.)
(Nik olha pra Érica com cara de “Onde você acha que vai chegar com essa conversa, moça?”)
Érica: Tá bom. Eu vou aguentar até onde eu conseguir. Mas é bom que valha a pena, viu, porque tá sendo
bem difícil.
Nik: Eu prometo que vai valer a pena.
Érica: Eu caso até na igreja se isso fizer esse dia chegar mais rápido.
(Nik sorri)
(Nik sai de cena. Érica vai saindo, mas é interceptada por Gabriel)
(Dra. Camila Jordão entra olhando uma pasta. São exames de seus pacientes. Ela vai arrumando seu
consultório enquanto fala com o público.)
Camila: Droga. Eu já pedi pra ela não colocar retorno com notícia ruim pro fim do expediente. Só Deus sabe
como é que eu vou chegar em casa hoje. Pouca gente tem conhecimento, mas existe um protocolo pra dar
notícias ruins pros pacientes. A gente é treinado pra isso. Tem colegas que falam de uma doença grave como
quem fala do clima, mas eu nunca me acostumo. Às vezes eu confesso que dá muita vontade de mentir. Pra
aliviar a barra da notícia. Dizer que não é tão grave, que as chances são boas...mas eu não posso. O paciente
tem direito de saber a verdade. Eu só nunca sei dizer essa verdade da maneira certa.
(Nik chega)
Nik: Dra. Camila?
Camila: Pois não?
Nik: Nikola, o paciente das 3 horas.
Camila: Ah sim.
Nik: Não tinha ninguém na recepção...então...
Camila: Não tem problema. Eu dispensei a secretária mais cedo. Você é o último paciente. Pode se sentar.
(Dra. Camila abre o envelope com o resultado da tomografia, pega o exame e começa a explicar a Nik o
que está acontecendo com ele)
Camila: O que você está vendo aqui são os seus dois pulmões. E aqui quase escondido entre eles o seu
coração. Nós encontramos um tumor aqui no pulmão direito, perto do coração.
Nik: Um tumor? É um câncer?
Camila: É sim, Nikola. O que me preocupa não é o câncer em si, é que ele já se expandiu por metástase pro
seu coração. Isso é raro, Nikola. 1 ou 2 por cento da totalidade de casos de câncer. Eu sei que essas palavras
te assustam, mas eu mostrei isso pra alguns amigos médicos e é um consenso entre nós que você tem boas
chances de recuperação. Mas as circunstâncias de tratamento não são fáceis.
Nik: O que eu tenho que fazer?
Camila: Há dois caminhos aqui que nós podemos tentar. O primeiro envolve o transplante de uma parte do
pulmão. Pra substituir a parte que está atingida pelo tumor. Esse transplante pode ser feito com o doador
em vida, sem prejuízo pra saúde dele. Você tem algum parente que aceitaria fazer esse tipo de doação pra
você?
Nik: Ninguém. Éramos só eu e meus pais. Eu não tenho mais ninguém.
Camila: Isso nos leva à outra opção de tratamento. Nós vamos atacar o tumor com sessões de quimioterapia,
radioterapia e com mais um coquetel de outras drogas. Nós esperamos que ele diminua de tamanho e, se
isso acontecer a gente pode tentar extraí-lo cirurgicamente sem prejudicar seu pulmão ou seu coração. O
problema aqui é a natureza específica das drogas que nós teremos que usar. Elas vão comprometer
permanentemente uma parte muito importante da sua vida.
Nik: Como assim?
Camila: Vou tentar não ser tão técnico. Primeiro seu organismo não será mais capaz de produzir
espermatozoides suficientes para que você se torne pai. Mas ainda existe uma alternativa, Nikola. Nós
podemos coletar e congelar espermatozoides antes do tratamento começar e quando você quiser ser pai,
pode recorrer à fertilização in vitro. Não é um processo barato, mas é um investimento muito importante.
Nik: Eu não tenho dinheiro. Eu não tenho nada. Eu tô morando de favor na casa da coordenadora da minha
escola.
Camila: Existe uma possibilidade de que o governo pague pelo procedimento, mas você com certeza teria
que contratar um advogado, e um dos bons. O problema é o tempo. Nós temos uma janela de no máximo
10 dias antes de começar o tratamento. É muito perigoso esperar mais do que isso.
Nik: Isso é tudo? Isso é tudo o que eu tenho que saber?
Camila: Há uma outra questão além da fertilidade.
Camila: Nikola a gente não terminou ainda de falar dos detalhes do tratamento...(Camila desiste de insistir
com Nik)...Droga.
Gabriel: Mãe!
Mágela: Gabriel, pelo amor de Deus, vai dormir.
Gabriel: Mas o Nik ainda não chegou.
Mágela: Você não dorme com os olhos do Nik.
Gabriel: Eu sei, mas a senhora num tá preocupada não? Eu tô.
Mágela (cansada de tentar fazer o filho ficar na cama): Vem cá, me ajuda com isso aqui.
Mágela: Você tem que dar mais espaço pro Nik. Ele precisa de tranquilidade e não dá pra ter tranquilidade
com você no pé dele o tempo todo.
Gabriel: Eu tô tentando ficar mais na minha.
Mágela: Não é o que parece.
Gabriel: É que ele nunca chegou tão tarde como hoje. Na verdade ele ainda não chegou. A senhora devia
dar uma bronca nele.
Mágela (passando a mão carinhosamente no cabelo de Gabriel): Eu bem que queria. Mas o Nik não é meu
filho. Eu tenho que respeitar o espaço dele. E você também. Vai dormir. E não se atreva a levantar de novo,
viu?
Gabriel: Tá bom. Desculpa.
(Gabriel ganha um beijo da mãe e sai de cena. Mágela fica meio pensativa)
Mágela (falando consigo mesma): Ai, Nikola, onde é que você se meteu?
(Mágela sai de cena. Nik entra, faz algum barulho e chama atenção de Mágela. Ela volta.)
Mágela: Nikola?
Mágela: Onde era que você tava, garoto?. (Outra pausa, Nik não responde). Olha, Nik, eu não quero te
sufocar. Só queria te pedir pra avisar alguma coisa quando for chegar tarde assim, tá bom? A gente fica
preocupado.
(Nik faz sinal com a mão pedindo que Mágela espere ele se recompor. A respiração dele está ofegante.
Mágela começa a desconfiar do motivo do vômito. Nikola vomita de novo. Mágela agora tem certeza.)
Mágela: Você andou bebendo, Nikola? Você...você tava bebendo antes de vir pra cá?
(Mágela tenta amparar Nikola, mas ele afasta as mãos dela com certa agressividade. Mesmo assim ela
não desiste)
(Ela coloca uma almofada nas costas dele. Ele aos poucos vai se acalmando)
Mágela: Escuta. Eu já tive 17 anos e já recorri ao álcool quando eu não consegui lidar com minha vida. Então
eu não vou te dar lição de moral. Mas Nik, quer você goste quer não, eu sou a única adulta com quem você
pode contar agora. Me deixa te ajudar. Me dá uma chance.
Nik (ainda no processo de se acalmar): Ele me traiu.
Mágela: Quem te traiu?
Nik: Deus. Ele me abandonou. Ele disse que estaria sempre comigo mas Ele não está.
Mágela: Ele não te traiu.
Nik (rindo): Você não vai defender ele agora, né? Por favor...eu tenho certeza Mágela, certeza, que ele tá lá
no céu agora, sentado num trono, sendo servido por anjos enquanto observa a nossa conversa. Será que ele
tá rindo agora, Mágela? Ou será que ele nem tá prestando atenção no que eu tô dizendo?
Mágela: Eu vou respeitar esse seu momento. Mas quando você estiver sóbrio, eu vou te falar sobre Deus.
Existe sim (uma explicação pro que ele está fazendo).
Nik (interrompendo Mágela): Para. Para, por favor. O que você vai me dizer sobre isso que não seja barato?
Deus nem sequer precisa das suas palavras, tá entendendo? Por que Deus pediria que você fosse advogada
dele, Mágela? Ele é o Deus onipotente. Você não acha que ele poderia descer aqui e me explicar se ele
quisesse? O que o impediria de vir? E ao invés de vir, ele manda você no lugar dele pra me dizer alguma
coisa? O que há pra dizer? Hein? (fala com um choro angustiado e cheio de raiva) Como ele conseguiria me
explicar que ele permitiu que as únicas pessoas que eu tenho no mundo fossem tomadas de mim num
acidente estúpido. Que lição tem aqui, pra eu aprender, que eu não pudesse aprender de outro jeito? Hein,
Mágela?
(Mágela fica calada, abaixa a cabeça. Ela não tem respostas. Ela acha mais honesto ficar calada. E assim
eles ficam por algum tempo até que Nik quebra o silêncio)
Nik: Me conta. Por que foi que você foi procurar resposta no álcool quando tinha a minha idade?
Mágela: Eu não tinha exatamente a sua idade. Eu tinha 21. Foi três anos depois que o Gabriel nasceu. Os
tumores começaram a aparecer e a vida da gente se tornou um entra e sai interminável de hospitais. Ele
tinha crises horríveis de dor a qualquer hora e a gente tinha que largar tudo e correr pra emergência. Eu era
tão jovem e tava tão cansada. Mas o pai dele era quem tava mais devastado. O Felipe chorava o tempo todo.
Na época eu achava que era pelo Gabriel, mas não. Era por si mesmo. Numa noite em que o Gabriel piorou
e foi pra UTI, o Felipe foi embora. Me deixou um bilhete pedindo desculpas e simplesmente sumiu. Disse
que não aguentava mais, que não era pra eu procurar por ele. Eu saí do hospital pra ir pra casa dos meus
pais, mas quando eu tava esperando um taxi, eu olhei pra o outro lado da rua e tinha um bar. Eu não sei o
que me deu. Eu não pensei em nada. Simplesmente atravessei e me sentei. Eu não lembro de mais nada
depois disso. Só sei que eu acordei na enfermaria do hospital com a cabeça girando.
Nik: De onde foi que você tirou força pra continuar?
Mágela: Do Gabriel. Não importa o quão mal eu estivesse, ele tava sofrendo mais do que eu. Mas ele se
agarrava a vida de um jeito que nenhum tumor conseguiria vencê-lo. Não até agora. Ele foi a mensagem de
Deus pra mim: “Continue lutando. Vai ficar tudo bem.”
Nik (se segurando muito para não chorar): Eu fui no médico hoje. Eu tenho um tumor raro no coração.
(pausa) Por causa dele eu não vou poder ser pai. (pausa) Eu nunca vou poder ter minha própria família.
(pausa) Eu nem sequer vou conseguir dar prazer pra uma mulher. Eu só tenho 17 anos, Mágela...e a minha
vida acabou.
(Nik desaba no choro. Mágela está profundamente tocada. Ela recebe Nik em seus braços e chora com ele.
Depois, ambos saem de cena.)
(Érica entra mandando mensagem no celular. Depois desliga o aparelho chateada e coloca no bolso. Nik
simplesmente não responde. Vanessa entra e percebe o estado da amiga.)
Vanessa: Eu não gosto de flores artificiais, Gabriel. E a gente não tem chance nenhuma de namorar. Vai
devolver essas flores pra sala dos professores antes que briguem com você.
Gabriel (triste): Sério que cê não quer namorar comigo?
Vanessa: Ai meu Deus, eu vou te matar, Érica. Vai trabalhar, Gabriel, que você é pago pra limpar chão.
(Érica pega suas coisas e sai. Nik fica mal. Gabriel entra.)
Mágela: Vem cá, Gabriel. Desculpa, Nik. Eu vou falar com ele. Ele não vai mais te perturbar
(Mágela sai com Gabriel e Nik fica com a consciência pesada. Depois Nik sai)
(Nik canta uma versão ligeiramente diferente da música que ele compôs, que ninguém sabe qual vai ser)
Nik: E aí?
Milton: Tá boa. Gostei das alterações.
Nik: O senhor acha que ficou melhor do que a outra versão?
Milton: Todas as duas estão boas. Veja a que você mais gosta e cante.
Nik: Tá bom.
Milton: Vem, vou fechar a sala de música pra ir embora
(Vanessa entra com um papel na mão. Ela está ensaiando para um seminário da escola)
Vanessa: Então, pessoal, eu fiquei pra falar de Zygmunt Bauman. O sociólogo polonês, falecido em 2017.
Segundo Bauman, a tecnologia nos lançou num mundo de relacionamentos superficiais, onde nada é sólido,
tudo é passageiro, sem consistência, como água escorrendo entre nossos dedos...
Vanessa: Eu particularmente discordo de que isso seja algo ruim. Aprofundar-se em alguma coisa é que é
ruim. Não importa no que seja – relacionamento, religião, conhecimento - aprofundar-se significa aprisionar-
se, firmar um compromisso que, pra dar certo, vai exigir que você rejeite todas as outras possibilidades, e
isso é muito...muito....
(Vanessa tira o papel do bolso de novo para olhar e quando levanta os olhos vê Nik entrando. Ele está
meio assustado, meio preocupado, meio com raiva)
Vanessa: Nik?!
Nik: O quê que é, Vanessa? O que é que tá acontecendo?
Vanessa: Acontecendo o que?
Nik: Por quê que tá todo mundo olhando assim pra mim? Eu chego e as pessoas ficam sem graça, eu saio e
elas começam a comentar.
Vanessa: Não sei, Nik. Num vi ninguém te olhando assim hoje.
Nik: Num sabe o quê, Vanessa, que tu tá me olhando igual a eles. Bora. Desembucha logo.
Vanessa: A Érica...
Nik: O que tem a Érica?
Vanessa: Ela me contou...a conversa que vocês tiveram, e...
Nik (transtornado): Eu não acredito que ela fez isso comigo. Ela não pode ter feito isso...
Vanessa: Ela tava preocupada com você, Nik. Tava chorando e a gente foi lá falar com ela.
Nik: A gente? Foi mais de uma pessoa?
Vanessa: Foi.
Nik: O que é que eu faço agora?
Vanessa: É a sua vida, Nik.
Nik (quase que interrompendo Vanessa): É a minha vida, Vanessa, e agora todo mundo sabe uma coisa que
é íntima minha. Vão ficar fazendo piada de mim enquanto eu tô vivendo esse inferno.
Vanessa: Olha, amigo. Num pensa no pior. Pensa que vai dar tudo certo. Deus deve ter algum plano.
Nik: Como é que você sabe, Vanessa? Ele falou isso pra ti? Você teve algum sonho ou uma visão onde Deus
te contou que tem um plano pra mim?
Vanessa: É na Bíblia que diz...
Nik: Onde? Você leu isso aonde? Cê consegue me mostrar pra ver se isso me acalma?
Vanessa: Eu não sei qual é a passagem, mas isso é o tipo de coisa que todo mundo sabe que a Bíblia diz.
Nik: Isso é tudo o que você tem pra mim? Nada melhor? Alguma experiência pessoal com Deus que possa
me inspirar? Algum conhecimento relevante dele que possa dar sentido a essa loucura? Algum tempo pra
orar comigo ou pelo menos pra chorar comigo? Porque se tudo o que você tiver for uma maldita frase clichê,
eu já tô cheio delas. Não tem plano nenhum, Vanessa. Não pra mim. Não agora. Deus tá calado. (tentando
se acalmar). Eu tenho que ir embora dessa escola.
(Nik tenta sair, mas esbarra em Davi, Pedro, Ric e Breno, que estão perseguindo Gabriel com seu esfregão
e seu balde)
CENA 11 – A CICATRIZ
Gabriel (muito nervoso): Parem de me seguir que vocês tão atrapalhando meu trabalho.
Davi: Deixa a gente ver a cicatriz que a gente vai embora.
Gabriel: Não. Eu já disse que não vou mostrar.
Davi: Deixa de besteira, Gabriel. Num tem nada demais.
Gabriel: É minha besteira. Sai, Davi.
Ricardo (dando um tapa no rosto de Gabriel): Então a gente vai te bater.
Gabriel: Não, sai.
(Ricardo, e Davi seguram Gabriel. Ele esperneia e grita. Nik e Vanessa não fazem nada. Gabriel se debate
tentando se livrar sem sucesso. No meio da confusão, os amigos de Davi rasgam a camisa dele e a cicatriz
aparece. É uma cicatriz muito feia. Meio assustados, os meninos soltam Gabriel no chão. Ele chora de
vergonha, mas não é um choro escandaloso. Todo mundo fica meio paralisado em silêncio. O balde de
Gabriel virou derramando todo o detergente. O esfregão está no chão. Gabriel vai se acalmando. Ele
esconde a cicatriz com a camisa rasgada. Em seguida, pega o balde, desvira, pega o esfregão, coloca
dentro do balde e sai em silêncio. Uma a uma as pessoas vão deixando o local. Nik intercepta Davi antes
que ele saia.)
CENA 12 – VOCÊ É IGUAL A MIM
Nik: Por que você faz essas coisas com as pessoas, Davi?
Davi (sem entender a postura de Nik): Com as pessoas? É Gabriel, Nik. Ele é retardado.
Nik: E por isso ele merece apanhar?
Davi: A gente não bateu nele.
Nik: Eu vi, Davi.
Davi: Aquilo era só de brincadeira.
Nik: Ele tava gritando, Davi.
Davi: Claro que tava! É isso o que as pessoas fazem...o que as pessoas fracas fazem...toda vez que alguém
provoca elas.
Nik: E seu papel na terra é testar essas pessoas então? Deus te escolheu pra isso?
Davi: É. Talvez tenha sido. Qual é o teu problema, Nik? Cê nunca defendeu o Gabriel. Cê viu a gente
brincando com ele e ficou calado. Agora vem dar uma de moralzão pra cima de mim?
Nik: Quando é que vai ser minha vez, Davi?
Davi: Vez do que, Nik?
Nik: Não se faz de idiota, Davi. Você sabe o que tá acontecendo comigo, não sabe?
Davi: Todo mundo sabe, Nik. A vagabunda da Érica contou pra todo mundo.
Nik: Então, quais são as piadas que você já tá criando sobre mim?
Davi: Quer saber, Nik? Talvez eu tenha umas piadas boas sobre você. Talvez eu devesse fazer mesmo. Pra
ver se você para de se sentir especial. Tá pensando que só você sofre, é Nik? Que Deus deveria te carregar
no colo? (chegando perto do rosto de Nik) Besteira! Fica aqui bancando o filhinho preferido de Papai do Céu!
Hipócrita é o que você é. Legal que essas merdas que tão acontecendo com você tão servindo pra mostrar
isso. Se você fosse tão crente assim, Deus num tinha deixado isso te acontecer. Olha pra mim, Nik. O falso
crente. A ovelha negra da igreja. Eu tenho pai, tenho mãe, eu posso transar com quem eu quero e a única
doença que eu tenho é não gostar de gente fingida. Eu queria ficar aqui perdendo meu tempo com você,
mas eu vou pra igreja cantar. Fica com Deus, Nik.
(Nik fica tentando se recuperar do que acabou de ouvir. Depois percebe que quer falar com Gabriel e sai)
(Gabriel está limpando o chão e Nikola chega. Gabriel demonstra medo da presença de Nik. Está meio
traumatizado com o que acabou de acontecer.)
Nik: Gabriel.
Gabriel: Oi.
Nik: Por que você faz isso?
Gabriel: Isso o que?
Nik: Você fala quando todo mundo quer que você fique calado. Tenta participar das coisas que ninguém
quer que você participe. Às vezes parece que você faz de propósito. Você sabe que se você parasse com isso
você apanhava menos.
(Pausa)
Gabriel: Eu tenho dois tumores dentro da minha cabeça que os médicos não sabem como tirar, Nik. Eu acho
tão engraçado vocês agradecerem a Deus pela vida toda manhã. Porque é um troço tão besta vocês
amanhecerem vivos. Mas pra mim não é. É um milagre. Meus médicos já mudaram minha estimativa de vida
umas 3 vezes, eu superei as 3. Mas eu sei que um dia esses tumores vão me vencer. Então desculpa se eu
incomodo vocês mas eu não posso esperar. Eu tenho que dizer o que eu quero dizer agora e eu tenho que
viver o que eu quero viver agora. Deu pra entender?
(Gabriel vira de costas para ir embora, mas é interrompido por Nik de novo)
(Gabriel se vira)
Nik: Quando as pessoas começarem a me tratar do jeito que tratam você, como é que eu faço?
Gabriel: Algumas vezes você grita com eles, outras você fica calado e aguenta, outras vezes você chora,
depende. Mas uma coisa você tem que fazer todo dia. Você tem que levantar e enfrentar eles de novo.
Nik: Você acha que algum dia eles vão cansar e vão parar?
Gabriel: Não. Porque é assim que eles são. Então você também não pode parar.
(O professor Milton passa rapidamente em direção a Deus sabe onde. Nik o intercepta.)
(Pausa)
Milton: Nikola, não é difícil fazer uma música...é sério...você pega uns poucos acordes, monta uma melodia,
depois enfia nela uma dúzia de frases clichês e pronto. As pessoas vão gostar, principalmente se elas
gostarem de quem canta. Mas às vezes...bem às vezes, alguém rasga o coração dizendo coisas que são tão
honestas que parecem um soco na cara. E essas coisas são colocadas em melodias que acariciam a alma.
Lindas melodias dizendo coisas terríveis. Isso não é apenas extraordinário, é raro, e não é o que temos aqui.
Felizmente não é disso o que você precisa. Você escreveu uma boa canção, Nikola, pro nível desse concurso.
Você tem boas chances com ela. E é só isso que eu terei pra te dizer não importa quantas alterações você
faça.
(Milton sai. Nik se senta e tenta tocar sua música, mas desiste. Tão sozinho, triste e sem ânimo se sente,
que deixa o violão de lado e se deita para dormir.)
ATO IV - O ESPETÁCULO DA FÉ
Deus: Tudo aqui de baixo parece menos caótico do que realmente é lá de cima. Ainda assim não deve ser
fácil sentir todas essas coisas. Esse lugar fede.
(Nik acorda)
Deus: Ah....acordei você. Eu te pediria desculpas, mas eu não erro, então não vai fazer muito sentido.
Nik: Quem é você?
Deus (achando graça): Quem sou eu? Haha. Essa é a pergunta que eu mais respondi em toda a eternidade,
e mesmo que queiram saber, vocês não prestam atenção. Eu receio que eu não seja o que você estava
esperando que eu fosse, mas no final das contas eu sou tudo o que existe, então você vai ter que se contentar
com o que eu sou. Mas a questão que realmente importa aqui, Nik, é quem você é. Quem você é pra
requisitar a presença do Deus de Abraão aqui na sua vidinha bagunçada como se eu não tivesse nada mais
a fazer no universo a não ser atender suas queixas.
Nik: Eu nunca exigiria que o Senhor deixasse qualquer coisa de lado pra vir me atender, até porque o Senhor
não precisa. É onipotente. Um estalar dos seus dedos e todos os problemas do universo estariam resolvidos,
incluindo os meus.
Deus: Ah, então você entende de onipotência. Talvez eu devesse entregar meus poderes a você e ver como
você resolveria tudo. Se eu te desse, Nik, meus poderes, você curaria a si mesmo?
Nik: A mim e a todos os outros que merecessem.
Deus: E qual o critério de escolha?
Nik: Aqueles que fossem bons.
Deus: E quem não fosse?
Nik: Eu deixaria morrer.
Deus: Podemos começar pelos seus dois amigos idiotas? Ótimo (pegando a mão de Nik e ajeitando os dedos).
Estale os dedos: o Davi e a Vanessa vão sumir. E depois disso, você conta, Nik, ou eu conto, pro irmão mais
novo do Davi, que você deixou o primogênito da família morrer aos 17 anos porque ele não tinha um bom
coração? É melhor você ser convincente porque ele vai entrar num processo depressivo e muita gente ligada
a ele vai ser afetada...Mas e quanto a você? Eu poderia chamar o Gabriel como testemunha pro seu caso. O
que você acha dele contar a cena em que ele estava sendo humilhado pela milésima vez na sua frente e
você, como sempre, não fez nada pra impedir? Seu coração é bom o suficiente pra sobreviver ao estalar dos
seus dedos?
Nik: Eu vou precisar de mais do que seus poderes.
Deus: É claro que vai. Você vai precisar da minha onisciência. (Deus se levanta) Vem cá. Fica aqui do meu
lado.
INTERLÚDIO
Érica (para o público): Se você é Deus, então por que você não salva a si mesmo e a nós também?
Milton (para o público): Belas melodias dizendo coisas terríveis. Nós recebemos o bem de Deus. Por que
não haveríamos de receber o mal também?
Mágela (para o público): Ainda que eu esteja no pó do meu túmulo, e depois que todo o meu corpo estiver
consumido pela terra, sem carne, então contemplarei a face de Deus.
Mágela: Anteontem meu filho veio até mim dizendo que queria doar parte do pulmão dele pra você. Ele leu
em algum lugar que é possível doar um pedaço do órgão ainda em vida e me disse que isso foi a melhor
notícia que ele recebeu esse ano.
Nik: Eu não posso aceitar, Mágela. Gabriel não sabe as consequências disso pra ele.
Mágela: Foi isso o que eu disse a ele, mas ele disse que só acreditaria nisso se ouvisse de um médico. Então
eu o levei ao médico na certeza de que ele diria não e, advinha...ele disse que o organismo do Nik tem
condições de aguentar uma cirurgia como essa sem risco pra ele.
Nik: A gente não pode deixar ele fazer isso, Mágela. Você tem que explicar pra ele...
Mágela (interrompendo Nik): Eu tentei. Sabe o que ele me disse? “Mãe. Nós dois sabemos que eu vou
acabar morrendo um dia ou outro. A última lembrança que eu quero pensar antes de morrer, é a de que eu
fiz alguma coisa boa pra alguém. Minha vida tem que ter um significado maior do que simplesmente lutar
pra ficar vivo.” E pra isso, Nik...eu não consegui dizer “não”.
Nik (chorando discretamente): Eu não tenho o direito de aceitar isso.
Mágela: A vida negou muitas coisas ao meu filho, Nik. Não tire isso dele. (pausa) Venha. Temos que conseguir
uma autorização do juiz pra isso acontecer. Temos que correr.
CENA 17 – SILÊNCIO
(Música toca. É o concurso de música da escola. Milton entra para anunciar o próximo concorrente)
Milton: Esse foi um ano e tanto para essa escola. Eu acompanhei, não com muita disposição, todas as
canções que os alunos compuseram para este concurso. O próximo candidato é o único cuja composição me
desperta alguma curiosidade. Ele teve um ano difícil, mas recuperou-se a tempo de estar aqui. Vamos ver
como ele transformou em música as experiências que teve. Com vocês, Nikola Duric.
Nik (para o público): Boa noite. Eu estava trabalhando em outra canção pra esse concurso. Mas daí tudo
aquilo aconteceu e aquelas palavras simplesmente não fizeram mais sentido pra mim. Eu sinceramente
quase desisti do concurso. Mas eu sentia que precisava dizer alguma coisa sobre o que eu tava passando.
Alguma coisa que só poderia ser dita pela música. E um dia desses, depois de um tempo complicado de
oração, eu levantei minha cabeça pro céu e perguntei a Deus: o que um adolescente de 17 anos pode te
dizer que não soe como uma completa mentira? Isso foi o que o meu coração me deu como resposta.
SILÊNCIO
FIM