Você está na página 1de 59

Aquisição e AprendizAgem

Brasília-DF.
Elaboração

Letícia da Cunha Silva

Produção

Equipe Técnica de Avaliação, Revisão Linguística e Editoração


Sumário

APRESENTAÇÃO................................................................................................................................. 4

ORGANIZAÇÃO DO CADERNO DE ESTUDOS E PESQUISA .................................................................... 5

INTRODUÇÃO.................................................................................................................................... 7

UNIDADE I
AQUISIÇÃO DE LINGUAGEM OU AQUISIÇÃO DE LÍNGUA? ...................................................................... 9

CAPÍTULO 1
LINGUAGEM E LÍNGUA ............................................................................................................. 9

CAPÍTULO 2
PROPRIEDADES DAS LÍNGUAS HUMANAS ................................................................................ 15

CAPÍTULO 3
FACULDADE HUMANA DE LINGUAGEM E AQUISIÇÃO DE LÍNGUA ............................................ 23

UNIDADE II
AQUISIÇÃO OU APRENDIZAGEM DE LÍNGUA? ....................................................................................... 26

CAPÍTULO 1
PERÍODO CRÍTICO ................................................................................................................. 26

CAPÍTULO 2
INPUT LINGUÍSTICO................................................................................................................. 32

CAPÍTULO 3
PROPRIEDADES DA AQUISIÇÃO DE LÍNGUA............................................................................. 39

UNIDADE III
COMO OCORRE A AQUISIÇÃO? ......................................................................................................... 44

CAPÍTULO 1
COMO NÃO OCORRE A AQUISIÇÃO ..................................................................................... 44

CAPÍTULO 2
HIPÓTESES SOBRE AQUISIÇÃO ................................................................................................ 46

CAPÍTULO 3
MÉTODOS E TÉCNICAS DA PESQUISA EM AQUISIÇÃO ............................................................. 52

PARA (NÃO) FINALIZAR ..................................................................................................................... 58

REFERÊNCIAS .................................................................................................................................. 59
Apresentação

Caro aluno

A proposta editorial deste Caderno de Estudos e Pesquisa reúne elementos que se


entendem necessários para o desenvolvimento do estudo com segurança e qualidade.
Caracteriza-se pela atualidade, dinâmica e pertinência de seu conteúdo, bem como pela
interatividade e modernidade de sua estrutura formal, adequadas à metodologia da
Educação a Distância – EaD.

Pretende-se, com este material, levá-lo à reflexão e à compreensão da pluralidade


dos conhecimentos a serem oferecidos, possibilitando-lhe ampliar conceitos
específicos da área e atuar de forma competente e conscienciosa, como convém
ao profissional que busca a formação continuada para vencer os desafios que a
evolução científico-tecnológica impõe ao mundo contemporâneo.

Elaborou-se a presente publicação com a intenção de torná-la subsídio valioso, de modo


a facilitar sua caminhada na trajetória a ser percorrida tanto na vida pessoal quanto na
profissional. Utilize-a como instrumento para seu sucesso na carreira.

Conselho Editorial

4
Organização do Caderno
de Estudos e Pesquisa

Para facilitar seu estudo, os conteúdos são organizados em unidades, subdivididas em


capítulos, de forma didática, objetiva e coerente. Eles serão abordados por meio de textos
básicos, com questões para reflexão, entre outros recursos editoriais que visam a tornar
sua leitura mais agradável. Ao final, serão indicadas, também, fontes de consulta, para
aprofundar os estudos com leituras e pesquisas complementares.

A seguir, uma breve descrição dos ícones utilizados na organização dos Cadernos de
Estudos e Pesquisa.

Provocação

Textos que buscam instigar o aluno a refletir sobre determinado assunto antes
mesmo de iniciar sua leitura ou após algum trecho pertinente para o autor
conteudista.

Para refletir

Questões inseridas no decorrer do estudo a fim de que o aluno faça uma pausa e reflita
sobre o conteúdo estudado ou temas que o ajudem em seu raciocínio. É importante
que ele verifique seus conhecimentos, suas experiências e seus sentimentos. As
reflexões são o ponto de partida para a construção de suas conclusões.

Sugestão de estudo complementar

Sugestões de leituras adicionais, filmes e sites para aprofundamento do estudo,


discussões em fóruns ou encontros presenciais quando for o caso.

Praticando

Sugestão de atividades, no decorrer das leituras, com o objetivo didático de fortalecer


o processo de aprendizagem do aluno.

5
Atenção

Chamadas para alertar detalhes/tópicos importantes que contribuam para a


síntese/conclusão do assunto abordado.

Saiba mais

Informações complementares para elucidar a construção das sínteses/conclusões


sobre o assunto abordado.

Sintetizando

Trecho que busca resumir informações relevantes do conteúdo, facilitando o


entendimento pelo aluno sobre trechos mais complexos.

Exercício de fixação

Atividades que buscam reforçar a assimilação e fixação dos períodos que o autor/
conteudista achar mais relevante em relação a aprendizagem de seu módulo (não
há registro de menção).

Avaliação Final

Questionário com 10 questões objetivas, baseadas nos objetivos do curso,


que visam verificar a aprendizagem do curso (há registro de menção). É a única
atividade do curso que vale nota, ou seja, é a atividade que o aluno fará para saber
se pode ou não receber a certificação.

Para (não) finalizar

Texto integrador, ao final do módulo, que motiva o aluno a continuar a aprendizagem


ou estimula ponderações complementares sobre o módulo estudado.

6
Introdução
Este Caderno de Estudos tem como principal objetivo apresentar um panorama geral
dos principais conceitos envolvidos na aquisição da língua, as principais discussões e
questões de pesquisa, as diversas abordagens sobre o tema e os métodos e técnicas
empregados nas pesquisas na área.

O material está dividido em três unidades, os quais foram intitulados em forma de


pergunta, pois constituem as questões fundamentais para entender a aquisição, a saber:
Aquisição de língua ou de linguagem? Aquisição ou aprendizagem de língua? Como
ocorre a aquisição?

Na primeira unidade, faz-se uma discussão sobre as diferenças entre língua e linguagem,
são enumeradas as propriedades das línguas humanas e a relação entre faculdade
humana de linguagem e aquisição de língua.

Na segunda unidade, as noções de período crítico e de input linguístico são apresentadas,


explicitando a sua importância para a aquisição. As propriedades gerais da aquisição
são finalmente introduzidas a fim de opor esse fenômeno ao da aprendizagem de língua.

Na terceira e última unidade, são apresentadas algumas hipóteses acerca de como se dá


o fenômeno da aquisição, desde a hipótese do senso comum, às hipóteses formuladas
dentro de teorias fundamentadas na psicologia e na biologia, como as hipóteses
comportamentalista, construtivista, sociointeracionista e da Gramática Universal. Em
seguida, relatamos alguns métodos e técnicas empregadas nas pesquisas de aquisição
no âmbito da psicolinguística.

Desejamos uma excelente leitura e reflexões relevantes para a compreensão desse


fenômeno tão intrigante, chamado “Aquisição de linguagem”!

Objetivos
» Apresentar os principais conceitos teóricos, hipóteses de pesquisa e a
metodologia de pesquisa pertinentes à área de investigação de aquisição
de língua, distinguindo esse fenômeno do processo de aprendizagem.

» Analisar as propriedades de língua e de linguagem conforme os dados


apresentados.

» Compreender como ocorre o fenômeno da aquisição de língua na espécie


humana, seus estágios e suas propriedades.

7
AQUISIÇÃO DE
LINGUAGEM OU UNIDADE I
AQUISIÇÃO DE
LÍNGUA?

CAPÍTULO 1
Linguagem e língua

Quando nos referimos à linguagem, um sinônimo bastante empregado é


“comunicação”. É comum usarmos o termo linguagem para nos referir a uma
suposta fala dos animais ou até mesmo a esquemas de comunicação que
dispensam palavras. Mas será que linguagem, comunicação e língua são a
mesma coisa? Haverá linguagem entre outras espécies?

Por que somos o único bicho com linguagem?

Os idiomas humanos deixam os pios, latidos e outras formas de comunicação animal


no chinelo em termos de complexidade. A razão desse exagero pode ser a capacidade
infinita de combinar informações por Giovana Girardi.

Porque só a gente é capaz de se expressar como em tantos poemas que conhecemos.


Bem... em termos. Na verdade, poesia assim é para poucos, como Carlos Drummond
de Andrade, mas os seres humanos se destacam entre outras espécies consideradas
inteligentes, como chimpanzés e golfinhos, porque, entre outras coisas, são capazes de
encaixar uma ideia na outra, formando frases quilométricas, sem fim. Esse componente,
presente apenas na linguagem da nossa espécie, é chamado de recursividade.

Anos de trabalho para ensinar outros animais (como os internacionalmente famosos


papagaio Alex e bonobo Kanzi) a se comunicarem com a linguagem humana serviram
para provar que, por mais que possam avançar, há um limite, bem distante do mínimo
que um ser humano pode fazer.

9
UNIDADE I │ AQUISIÇÃO DE LINGUAGEM OU AQUISIÇÃO DE LÍNGUA

Órgão especial

Para o linguista americano Noam Chomsky, que há mais de cinco décadas estuda esse
assunto, o que nos torna diferentes é que temos uma espécie de “órgão da linguagem”
no cérebro, que talvez nem tenha surgido com esse fim, mas para realizar cálculos
combinatórios. Daí a ideia de que a recursividade seja o fato que torna a linguagem
humana única, como propõem Chomsky e seus colegas Hauser e Fitch (2002).

No começo deste ano, durante a reunião anual da Associação Americana para o Avanço
da Ciência, Hauser (2002) comparou a comunicação humana com a dança das abelhas,
considerada uma forma de linguagem. Após acharem comida, esses animais voltam
para a colmeia e informam onde está o alimento por meio dessa dancinha. “É uma
linguagem simbólica e separada da ação no tempo e no espaço. O problema é que as
abelhas só conversam sobre comida”, afirma o pesquisador da Universidade Harvard. Já
a recursividade permite que nosso uso da linguagem seja praticamente infinito – basta
combinar unidades menores para formar frases nunca ouvidas antes. Esse potencial
inesgotável é ideal para comunicar todo tipo de informação e ideia, o que torna óbvia a
vantagem trazida por essa capacidade aos seres humanos.

Mas o que dizer das capacidades do papagaio cinza africano Alex, morto no ano passado
aos 31 anos? O trabalho feito pela psicóloga Irene Pepperberg ao longo de toda a vida
do animal mostrou que a ave era capaz de entender alguns conceitos. Ele aprendeu a
separar palavras por categorias, a contar pequenas quantidades e sabia até reconhecer
algumas cores e formas. E, apesar de haver relatos de que às vezes ele ajudava outros
papagaios do laboratório a falarem melhor e que de vez em quando ele se mostrava
aborrecido com exercícios repetitivos, ele não mostrava sinais de lógica ou capacidade
de generalização tal como nós.

Ainda, de acordo com Hauser (2002), estudos com outros animais “falantes”, por mais
que mostrem que eles têm capacidade de reagir emocionalmente e de discriminar
algumas percepções, acabam por comprovar que “essas habilidades não interagem no
cérebro como a cognição humana”. Ao juntar tudo isso, criamos a linguagem.

Disponível em: <http://super.abril.com.br/mundo-animal/>. Acesso em: 28 mar. 2015.


(adaptado)

Quadrilha

João amava Teresa que amava Raimundo

que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili

10
AQUISIÇÃO DE LINGUAGEM OU AQUISIÇÃO DE LÍNGUA │ UNIDADE I

que não amava ninguém.

João foi para o Estados Unidos, Teresa para o

convento,

Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,

Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto

Fernandes

que não tinha entrado na história.

Carlos Drummond de Andrade

Para início de conversa, é importante delimitar o objeto de estudo deste material.


No uso cotidiano, não raro os termos língua e linguagem são empregados como
sinônimos. Por vezes, até mesmo em trabalhos especializados tais termos são
empregados indistintamente. No entanto, o rigor terminológico, neste caso, esclarece
muitos equívocos.

Língua e linguagem são conceitos bastante precisos na linguística. As línguas, exclusivas


à espécie humana, são o objeto de estudo dessa ciência, já a linguagem está fora do
escopo da linguística, sendo estudada por outra área do saber, a semiologia. Assim,
os estudos da linguística concentram-se no signo linguístico ou linguagem verbal,
enquanto à semiologia cabe o estudo dos demais signos, naturais ou culturais1.

Ao nos referirmos à linguagem, em sentido amplo, estamos nos remetendo às várias


formas de comunicação e expressão criadas pelo homem para interagir. Podemos citar
a linguagem corporal, a linguagem musical, a linguagem visual, ou ainda, a linguagem
da dança, a linguagem cinematográfica, a linguagem teatral, entre outras, todas elas
identificadas com um modo particular de estabelecer comunicação. Nessa perspectiva,
uma distinção crucial entre língua e linguagem é que as línguas são sistemas naturais,
isto é, não são artefatos criados pelo homem em determinada situação, como a música,
o teatro, o cinema, a dança e outros tipos de linguagem2. Pinker (2008) argumenta a
favor de um instinto da linguagem, tamanha a naturalidade com que o homem adquire
e desenvolve a linguagem verbal (ou gestual, no caso das línguas de sinais), mesmo em
ambientes inóspito e com poucos estímulos.

Ademais, outras espécies também fazem uso de sistemas de comunicação bastante


sofisticados com propósitos específicos, grosso modo, os animais também possuem
linguagem, nos termos de Benveniste (2005), “um código de sinais”, algo muito aquém
1 Verifique a definição de Saussure sobre signo.
2 Existem línguas artificiais, planejadas e criadas com o intuito comercial ou cultural, como o caso do Esperanto. Contudo, as
línguas artificiais configuram uma tentativa de reprodução do funcionamento das línguas naturais.

11
UNIDADE I │ AQUISIÇÃO DE LINGUAGEM OU AQUISIÇÃO DE LÍNGUA

de uma língua. Ora, as línguas apresentam um conjunto de propriedades inerentes que


as distinguem dos outros sistemas de comunicação animal.

A comunicação entre os animais


Alexandre Vaz

Numa época em que somos quotidianamente surpreendidos por inovações na área


das comunicações, vale a pena olhar com atenção para as formas de comunicação dos
outros animais, tecnologicamente mais simples, mas nem sempre menos eficazes.

A comunicação pressupõe a existência de dois ou mais indivíduos, e acontece sempre


que há troca de informação entre eles. A grande supremacia tecnológica do homem face
aos outros seres vivos foi conquistada, em grande parte, através da sofisticação da sua
comunicação. Com o advento da escrita, a comunicação prolonga-se muito para além
do momento em que é proferida e a partir daí a acumulação e o desenvolvimento do
conhecimento são feitos com uma eficácia sem precedentes.

Não obstante não existir nenhum outro animal com uma comunicação tão complexa
quanto a nossa, há animais que possuem métodos de comunicação sofisticados e que
perduram no tempo. Não será muito arriscado dizer que, das cerca de um milhão de
espécies de animais descritas, quase todas, numa ou noutra fase da sua vida, necessitam
de comunicar.

Existem alguns processos de comunicação tão óbvios que por vezes nos esquecemos
deles, mas, tal como nós, também muitos animais os utilizam. A simples aparência de
um animal desempenha um importante papel na escolha de parceiro para acasalar ou no
estabelecimento de hierarquias, em insetos, aves, mamíferos, moluscos e muitos outros
animais. Apesar de este ser um assunto bastante estudado, ainda hoje permanecem por
explicar alguns dos processos que levam à seleção de um parceiro.

Em muitos animais são os machos que competem para conseguirem uma fêmea para
acasalar. Do seu poder de persuasão vai depender a capacidade de dissuadir outros
machos de lhe fazerem frente e de seduzir a fêmea pretendida. Neste caminho vai haver,
necessariamente, muita comunicação. A aparência de um animal, como o brilho das suas
penas, a cor do seu pelo ou a dimensão das suas hastes, provavelmente não vai ter uma
implicação direta na sua eficácia como progenitor, mas o seu aspecto físico é um reflexo
da sua condição fisiológica. Os outros machos evitarão combater um aparentemente
mais forte, poupando energias a ambos, e as fêmeas, sejam elas de uma pequena ave,
de um veado ou de um primata, estão interessadas em acasalar com o macho mais apto
que lhes for possível encontrar. Por isso, mesmo em muitas espécies em que os machos

12
AQUISIÇÃO DE LINGUAGEM OU AQUISIÇÃO DE LÍNGUA │ UNIDADE I

não lutam entre si, demonstrando a sua força, exibem perante as fêmeas a sua perícia
a construir ninhos, a conseguir alimentos ou noutra atividade fundamental no decurso
da reprodução. No fundo, o que eles de uma ou de outra forma estão a dizer é: “eu serei
um bom pai para os teus filhos”.

Para além de depender de fatores como a idade ou a condição física, a aparência dos
animais varia muitas vezes com a sua vontade. Algumas das adaptações neste campo são
surpreendentes; veja-se a cauda de um pavão aberta em leque, o papo de uma fragata, a
tromba insuflável de uma foca-de-capuz, ou a velocidade com que uma lula pode fazer
variar a cor da sua pele. A própria máscara facial, assim como a postura, desempenham
em alguns animais um papel muito importante. Os lobos, por exemplo, que vivem em
sociedades hierarquizadas e complexas, exprimem desta forma ritualizada a sua atitude
dominadora ou submissa.

A linguagem gestual não está de forma alguma reservada aos animais superiores.
As abelhas, no interior das suas colmeias, executam movimentos complexos, que lhes
permitem comunicar pormenorizadamente, por exemplo, a localização de determinada
zona onde existe alimento.

A linguagem sonora, que usamos a toda a hora quando falamos, é igualmente utilizada por
muito animais. Também aqui a complexidade das mensagens vai variar entre espécies,
mas a eficácia da comunicação sonora deve-se, em grande parte, ao fato de permitir a
transmissão de uma mensagem a uma longa distância. Algumas baleias fazem-se ouvir
a 80 km de distância; muitas aves podem ser ouvidas pelas suas congéneres a vários
quilómetros e mesmo alguns insetos, como os grilos e as cigarras, fazem-se ouvir a
muitas centenas de metros.

A diversidade de mecanismos utilizados para produzir sons é imensa, desde insetos


que fazem vibrar as asas friccionando-as uma na outra, passando pelas cordas vocais
de muitos mamíferos, até ao complexo canto das aves ou à percussão de infinitos
materiais. Se existem alguns animais com uma comunicação sonora muito simples,
que praticamente se limita a assinalar a sua presença, há outros com um vocabulário
extensíssimo. Hoje sabemos que os golfinhos possuem uma linguagem extremamente
complexa, que lhes permite, por exemplo, chamar um indivíduo em particular. Também
alguns primatas e aves têm gritos de alarme que remetem para uma ameaça específica.
Para além disso, o canto de muitas aves tem, por exemplo, um “sotaque” da região
de onde provêm, e os progenitores sabem reconhecer mutuamente o chamamento dos
seus parceiros e o das suas crias.

Outra forma de comunicação, a que somos por ventura menos sensíveis, mas que para
muitos animais é extremamente importante é a comunicação química ou por odores.
Esta forma de comunicação pode não permitir a troca de uma mensagem a uma distância
tão grande quanto as mensagens sonoras, mas tem a vantagem acrescida de permitir que
13
UNIDADE I │ AQUISIÇÃO DE LINGUAGEM OU AQUISIÇÃO DE LÍNGUA

a mensagem se mantenha por um longo período de tempo. Alguns mamíferos possuem


territórios tão extensos que seria impossível defenderem as suas fronteiras vocalizando
a partir de centro. Neste caso, eles marcam o território recorrendo a substâncias de
odor intenso, que podem permanecer durante semanas. Por outro lado, da mesma
maneira que muitas aves podem distinguir os membros da sua família ou grupo pelas
características do canto, alguns mamíferos, como os texugos, fazem-no através do odor.

Para além de utilizarem o odor das suas fezes e urina para marcar o território, ou para
criar um odor corporal característico e diagnóstico de cada indivíduo, muitos animais,
incluindo diversas espécies de antílopes, estão dotados de glândulas produtoras
de substâncias de odor intenso. Sabe-se que é através do odor que muitos animais
reconhecem quando é que o parceiro está receptivo para acasalar e pensa-se que alguns
antílopes libertem determinados odores em situações de perigo, lançando um sutil alerta
que provavelmente só será entendido pelos seus pares. Alguns antílopes têm também
glândulas nas patas, que deixam no terreno o rasto da passagem de cada indivíduo.

Mais uma vez, não são só os animais superiores que recorrem a estas estratégias. As
formigas, em caso de ataque ao formigueiro, lançam feromonas como quem soa um
alarme, ao qual as demais acorrem imediatamente em socorro.

Curiosamente, apesar de não ostentar os seus odores corporais, como ainda os


dissimular, o Homem recorre a substâncias produzidas por outros animais para criar
perfumes.

Embora a maior parte das manifestações de comunicação animal ocorram entre indivíduos
da mesma espécie, elas também se podem dar entre espécies muito diferentes. Nestes
casos, aquilo que acontece frequentemente é que uma espécie em aparente desvantagem
tenta enganar outra que a ameaça. Exemplos deste caso acontecem com determinadas
espécies de aves, que simulam estar feridas para distrair uma potencial ameaça das suas
crias ou ovos. Também algumas aves imitam o canto de um predador para afastar intrusos
ou eriçam as penas para parecerem maiores do que na realidade são.

Se prestarmos atenção ao mundo que nos rodeia, ao canto das aves, ao coaxar das rãs,
ao odor dos mamíferos e ao zumbir dos insetos, mesmo que não saibamos o significado
das mensagens, poderíamos aperceber da quantidade de mensagens e da dimensão
da comunicação que permanentemente ocorre no mundo natural. Afinal, aquilo que
promove a comunicação entre os animais silvestres não é assim tão diferente do que
nos motiva a fazê-lo com os nossos pares. Como diz o ditado: “conversando é que a
gente se entende.”
Disponível em: <http://naturlink.sapo.pt/>. Acesso em 28 mar. 2015. (adaptado)

14
CAPÍTULO 2
Propriedades das línguas humanas

Mas se linguagem e língua são conceitos extremamente específicos, o que torna


a língua um tipo de linguagem tão complexa, tão relevante e tão distinta das
demais formas de linguagem?

Primeiramente, parece óbvio que as línguas expressem versatilidade quanto aos


seus objetivos, comparadas aos sistemas de comunicação animal, que são “ativados”
instintivamente apenas em situações de sobrevivência. As abelhas, por exemplo,
realizam uma sofisticada dança para comunicar a direção e a distância do alimento,
mas sua dança se restringe a esse fim. De igual modo, em seu sistema de comunicação,
os pássaros fazem distinção entre “chamamentos”, para indicar algum tipo de alerta, e
“cantos”, para rituais de acasalamento e demarcação territorial, porém, os chamamentos
e cantos limitam-se a tais propósitos. Deste modo, dizer que as línguas são versáteis
significa dizer que elas se prestam aos mais variados fins. Em outras palavras, podemos
afirmar que as línguas permitem que façamos várias coisas com elas, não somente
comunicar. Na verdade, a comunicação é somente uma das várias “utilidades” que nós,
seres humanos, damos às línguas.

De fato, usamos as línguas para transmitir mensagens essenciais a outras pessoas,


mas também para organizar e expressar nosso pensamento sem comunicá-lo a outrem
(num diário, por exemplo); para pedir algo, para reclamar de algo, para elogiar, para
fazer promessas, para chantagear, para impressionar, para mentir, para divertir etc.
Portanto, enquanto a linguagem animal é bastante limitada em seus propósitos, as
línguas são empregadas nas atividades humanas com os mais variados propósitos.

Além da versatilidade, as línguas naturais permitem que a mensagem possa ser


reproduzida posteriormente, nas mais diversas ocasiões, e transmitida para outros
humanos que não presenciaram o fato referido, passando de boca a boca, como na
brincadeira do telefone sem fio. Grosso modo, as línguas têm a capacidade de produzir
a fofoca, o que é uma limitação dos sistemas de comunicação animal, uma vez que as
mensagens só são transmitidas diretamente da fonte, não ocorrendo a transmissão
de um indivíduo para outro. Em suma, tal propriedade refere-se diretamente à nossa
capacidade de representação e de simbolismo, ao relatar seres e situações nunca
antes experienciados. Observe o relato de Benveniste sobre o comportamento das
abelhas (2005, p.65):

15
UNIDADE I │ AQUISIÇÃO DE LINGUAGEM OU AQUISIÇÃO DE LÍNGUA

A abelha não constrói uma mensagem a partir de outra mensagem. Cada


umas das que, alertadas pela dança da primeira, saem e vão alimentar-se
no ponto indicado, reproduz quando volta a mesma informação, não a
partir da primeira mensagem, mas a partir da realidade que acaba de
comprovar.

A essa restrição da linguagem animal em relação à reprodução na transmissão de


mensagens soma-se o fato de que a linguagem animal desconhece o diálogo, algo
comum para nós humanos. Não há intercâmbio entre os papeis de emissor e receptor
ou qualquer mudança de turno no sistema de comunicação animal. Nas palavras de
Benveniste (2005, p. 65): “a mensagem das abelhas não provoca nenhuma resposta do
ambiente mas apenas uma certa conduta, que não é uma resposta”. Tal observação se
aplica aos outros sistemas de comunicação animal, uma vez que eles desencadeiam um
comportamento, uma conduta do outro, e não uma resposta comunicativa.

Outra propriedade essencial das línguas humanas é a diversidade de motivação para


o uso. Se tomarmos como exemplo a dança das abelhas e os sons emitidos pelos
pássaros, dois sistemas de comunicação animal realmente impressionantes, fica nítido
que o movimento para a linguagem é disparado por um fator externo ao indivíduo,
geralmente ligado a funções básica de sobrevivência, como alimentação, perigo e
reprodução. Em resumo, a comunicação animal é condicionada pelo ambiente. Por
outro lado, os seres humanos podem iniciar uma conversa ou escrever uma carta por
razões estritamente pessoais, para desabafar ou para expressar suas emoções, por
exemplo. A possibilidade de transferência de meio das línguas é outro fator que as
distingue da linguagem animal, pois embora tenham um caráter essencialmente oral,
já que existem línguas exclusivamente ágrafas, podem ser gestuais e se manifestar
também na forma escrita.

Uma propriedade um tanto polêmica das línguas naturais é a chamada arbitrariedade


do signo, postulada por Saussure (1916). Em linhas gerais, a relação entre o significante
e o significado do signo linguístico não é motivada ou intrínseca, mas mera convenção
social. Grosso modo, a arbitrariedade assevera que a relação existente entre as coisas e
seus rótulos (nomes) não é motivada: entre a entidade cachorro, existente no mundo,
e os rótulos cachorro, que lhe foi dado em português, ou dog, em inglês, ou perro,
em espanhol, não há uma necessariedade. Não há nada na entidade cachorro que
determina que o seu rótulo seja cachorro ou dog ou perro. Da mesma forma que a o
termo cachorro foi atribuído a esse animal, em tese, ele poderia se chamar cadeira ou
Brasil ou fita, pois essa escolha é arbitrária.

A hipótese contrária à arbitrariedade argumenta a favor de uma relação icônica


entre significante e significado. Acredita-se que entre a entidade e seu rótulo há uma
16
AQUISIÇÃO DE LINGUAGEM OU AQUISIÇÃO DE LÍNGUA │ UNIDADE I

relação implícita, é como no caso das onomatopeias (auau, miau, cocoricó, tic-tac);
de topônimos (Belo Horizonte, São Paulo, Bonito); de vocábulos derivados (presídio,
jogador, ex-mulher) ou compostos (aguardente, girassol, pé de moleque). Contudo,
esses casos não configuram argumentos definitivos contra a arbitrariedade do signo,
tendo em vista que as onomatopeias também variam de idioma para idioma e que os
demais casos podem ser considerados como um emprego de um nome já existente, pois
a grande maioria dos vocábulos primitivos são nomeados arbitrariamente. Assim, não
há nenhuma relação inerente entre a entidade mulher e a cadeia de sons que formam o
nome mulher, em português; porém, uma vez convencionado o rótulo mulher para essa
entidade, os falantes passam a criar novas palavras relacionadas ao vocábulo mulher:
ex-mulher, mulherengo, mulherada etc.

Outra propriedade fundamental das línguas, que as distinguem da linguagem animal, é


o seu caráter discreto, que diz respeito à possibilidade de serem analisadas em unidades
menores. Nos diversos estudos sobre linguagem animal ainda não houve a detecção de
unidades discretas que compusessem unidades maiores. Todavia, as línguas humanas
servem-se de um conjunto limitado de unidade discretas que se combinam para formar
unidades maiores, cujas propriedades distinguem-se daquelas dos elementos que a
constituem. Deste modo, um grupo bastante restrito de fonemas pertencentes a uma
determinada língua se combina para formar morfemas, que por sua vez, dão origem aos
vocábulos, que finalmente constituem os enunciados, conferindo à língua alto poder de
produtividade.

O caráter discreto da língua abre espaço para mais duas propriedades cruciais: dupla
articulação e criatividade. A dupla articulação da linguagem refere-se justamente à
natureza das unidades discretas que organizam a língua. Basicamente, as línguas se
estruturam em dois níveis articulatórios. A primeira articulação, nível morfológico,
é formada por unidades significativas, os morfemas. Já a segunda articulação, nível
fonológico, é formada pelos fonemas, unidades desprovidas de significado. A título
de ilustração, se tomarmos os fonemas [a], [o], [m] e [r], produziremos um conjunto
razoável de vocábulos em português (amor, mora, ramo, Roma, Omar), que por sua vez,
são compostos por morfemas.

Quanto à criatividade, não se trata do sentido lúdico da palavra, mas sim do ineditismo
na produção e na compreensão de sentenças articuladas pelos falantes. A criatividade
linguística está presente não somente na formação de sentenças, mas também na
formação de unidades menores, como os morfemas, por exemplo, e na invenção de
palavras novas, nunca ouvidas antes, desde que esses novos vocábulos obedeçam às
regras gramaticais próprias da língua, de modo que a criatividade nutre-se do fato de a
língua ser um sistema combinatório discreto.

17
UNIDADE I │ AQUISIÇÃO DE LINGUAGEM OU AQUISIÇÃO DE LÍNGUA

Do mesmo modo, somos capazes de “processar” estruturas jamais ouvidas, contanto


que estas estejam de acordo com as regras gramaticais inerentes à língua em que foram
combinadas. Portanto, trata-se de uma criatividade regida por regras, já que as línguas
não variam aleatoriamente. Observe a sentença a seguir:

1. A estrumpfina estrumpfcovou os estrumpfelos estrumpfdosos3.

A sentença é considerada anômala simplesmente por não haver nenhum


referente no mundo para ela, mas sua formação obedece à risca as regras
do português, já que reconhecemos a ordem dos constituintes na sentença
e a flexão e a derivação dos elementos como típicas do português.

Tanto a formação de palavras como a de sentenças obedecem a regras


intrínsecas ao sistema linguístico, logo, a criatividade não é absoluta,
embora o número de sentenças produzidas em qualquer língua seja
potencialmente infinito, propriedade conhecida como infinitude discreta.

Comparando línguas humanas e linguagem animal, inúmeros


experimentos com papagaios e chimpanzés, por exemplo, foram feitos a
fim de ensinar esses animais a falar. No entanto, tudo o que se conseguiu foi
uma quantidade limitada de expressões, nada comparado à criatividade
com que o ser humano emprega a língua. Além disso, esses animais
demonstraram-se incapazes de iniciar uma conversa; suas “respostas”
advêm de um treino. São igualmente incapazes de fazer perguntas ou
criar novas expressões.

Por fim, outra propriedade muitíssimo importante para caracterizar as


línguas humanas é a chamada recursividade, que pode ser definida como
aplicação sucessiva de uma mesma regra ou procedimento. Esse termo,
oriundo da matemática e também da computação, foi reinterpretado na
teoria linguística, referindo-se mais precisamente ao encaixamento de
constituintes idênticos, como demonstrado de (2) a (4):

2. Encaixamento de sintagmas preposicionais:

O pai da cunhada do vizinho do meu tio estava no trem.

3. Encaixamento de sentenças relativas:

O cachorro que mordeu o gato que comeu o rato que foi envenenado
passa bem.
3 Dado retirado de DUARTE, I. “Uso da Língua e Criatividade”. In Fonseca, Duarte e Figueiredo (eds.): A linguística na
formação do professor de português. Porto: Centro de Linguística da Universidade do Porto, 2001.

18
AQUISIÇÃO DE LINGUAGEM OU AQUISIÇÃO DE LÍNGUA │ UNIDADE I

4. Encaixamento de elementos coordenados:

Pedro, Maria, João e Cláudia estudaram para a prova.

Embora haja indícios de que a recursividade não seja exclusiva do


sistema linguístico, estando presente em outros domínios cognitivos,
notadamente nas expressões numéricas, corrobora a noção de infinitude
discreta, a qual é um fator distintivo determinante para as línguas4.

Para ilustrar o conceito de infinitude discreta, tomemos como exemplo as


sentenças encaixadas de (5) a (8) a seguir:

5. O menino que a Maria ama chegou.

6. A vizinha disse que o menino que a Maria ama chegou.

7. A Júlia disse que a vizinha disse que o menino que a Maria ama chegou.

8. O Pedro perguntou se a Júlia disse que a vizinha disse que o menino que
a Maria ama chegou.

Ao menos em tese, é sempre possível adicionar outra sentença na estrutura. Se não


fossem as limitações do nosso desempenho linguístico, tais como, a memória, a
dificuldade de pronunciar sentenças extremamente longas mantendo a prosódia
adequada e preservando o sentido, seria possível prolongar essa sentença ad eternum
(infinitude discreta). De fato, a língua permite tal operação, mas outras funções
cognitivas e articulatórias limitam que a recursividade seja, na prática, infinita. O
mecanismo da recursividade associado à infinitude discreta nos ajuda a compreender
porque não existe a maior sentença de uma dada língua, pois tal sentença sempre
poderá ser aumentada, bastando para isso encaixar mais um elemento.

Sendo assim, versatilidade, intercâmbio entre os papeis dos interlocutores, diversidade


de motivação para o uso, transferência de meio, arbitrariedade do signo linguístico,
caráter discreto, dupla articulação, criatividade regida por regras, recursividade e
infinitude discreta compõem o conjunto de propriedades inerentes às línguas humanas.
Mesmo que algumas dessas propriedades não sejam restritas ao sistema linguístico,
todas essas propriedades em conjunto evidenciam duas oposições significativas:

» entre linguagem e língua;

» entre o homem e os outros animais.

4 Ver Marcilese, Corrêa e Augusto (2014)

19
UNIDADE I │ AQUISIÇÃO DE LINGUAGEM OU AQUISIÇÃO DE LÍNGUA

Diante disso, admite-se que a espécie humana é portadora de uma faculdade de


linguagem (doravante FL), inata, exclusiva e geneticamente determinada. Graças a
essa capacidade natural, o indivíduo pode produzir e compreender as sentenças de uma
língua por meio de um dispositivo cerebral-biológico.

Descobrimos o gene da linguagem?


Maria Cláudia de Freitas

Mestre em Linguística pela PUC – Rio

Há pouco tempo, jornais andaram alardeando a descoberta do gene da linguagem.


Num trabalho em equipe, linguistas e geneticistas publicaram, na revista americana
Nature (respeitada publicação científica), a descoberta de um gene que estaria
diretamente relacionado à linguagem.

Para chegar a tal descoberta, pesquisadores sequenciaram o DNA de uma família que
apresentava diversos casos de um distúrbio que afeta apenas a linguagem, chamado
specific language impairment (SLI) - em português, déficit especificamente linguístico,
DEL. O DEL, na verdade, abrange diversos tipos de distúrbios de linguagem. O que
todos têm em comum é o fato de não estarem associados a nenhum outro problema
de “inteligência”. Para o diagnóstico do DEL, são descartados problemas neurológicos,
motores, auditivos. Apenas a linguagem parece estar afetada. Outra característica do
DEL é que os casos dificilmente ocorrem em indivíduos isolados. Eles se repetem numa
mesma família e são mais comuns em gêmeos idênticos (originados de um mesmo
embrião, se desenvolvem na mesma placenta) do que em gêmeos fraternos (originados
de embriões diferentes, se desenvolvem em placentas diferentes), sugerindo a atuação
de um componente hereditário.

Desde 1990, uma família que apresenta diversos casos de DEL vem sendo estudada. Em
1998, os mesmos pesquisadores do artigo da Nature já haviam relacionado o distúrbio
com um pequeno segmento do cromossomo 7. Mas somente agora, com a descoberta
de um indivíduo que não pertence à família, mas que apresenta exatamente as mesmas
dificuldades com a linguagem, a relação pôde ser confirmada, e mais: identificou-se o
gene envolvido no tal pedacinho do cromossomo 7. O “gene da linguagem” chama-se
FOXP2.

Mas será mesmo que apenas um gene, tão pequenininho, é capaz de ser responsável
pela linguagem? Seguindo este raciocínio, dá pra separar linguagem do resto da
inteligência? O que é a linguagem sozinha, só a forma, sem o conteúdo? Como falar de
linguagem sem falar do conteúdo que expressamos por meio dela? E como pode o gene
afetar só a linguagem sem afetar a inteligência?

20
AQUISIÇÃO DE LINGUAGEM OU AQUISIÇÃO DE LÍNGUA │ UNIDADE I

Se, de fato, o gene estiver relacionado à nossa faculdade da linguagem, seria mais uma
forte evidência para a especificidade dessa habilidade humana, ou seja, uma forte
evidência para uma independência entre linguagem e “inteligência”.

Para pensar se isto é possível ou não, é preciso esclarecer o que estamos chamando de
linguagem, pois este é um termo abrangente, que permite diferentes interpretações.

O que é linguagem, afinal?

Num sentido amplo, linguagem pode ser entendida como o conjunto de habilidades
que nos permite produzir e compreender enunciados.

Não é preciso ser nenhum especialista para perceber que a linguagem humana é
composta por pelo menos:

» significado (aspectos semânticos);

» som (aspectos fonéticos);

» estrutura interna (aspectos sintáticos).

Pois bem, para alguns pesquisadores, estes componentes são completamente


inseparáveis. Interagem o tempo inteiro, não sendo possível falar de um sem mencionar
o outro. Nem mesmo para fins descritivos é possível analisá-los separadamente.

Já outro grupo de pesquisadores acredita que os componentes anteriormente descritos


são isoláveis – não só para fins descritivos, mas porque esta é a forma de organização
da linguagem. Evidências para este ponto de vista vêm principalmente do estudo das
chamadas afasias.

Mas as diferenças entre estes dois grupos vão mais além. Para os pesquisadores
do primeiro grupo – o dos componentes inseparáveis – nasceríamos com um
mecanismo cognitivo geral, com um mecanismo geral de aprendizagem. A partir
do momento em que somos expostos aos dados (ou informações) do meio externo
– com características linguísticas, matemáticas, espaciais, visuais, musicais, por
exemplo – formamos diferentes “subsistemas” cognitivos, isto é, vamos separando
as diferentes partes da nossa “inteligência”. Mas, por trás destes sistemas, estaria
um mecanismo cognitivo geral – e por isso chamaremos este grupo de generalistas.
Este entendimento da cognição humana tem origens na teoria piagetiana de
desenvolvimento, segundo a qual todos os domínios da cognição estão intimamente
vinculados, e são dependentes de um mecanismo geral de aprendizagem, de natureza
provavelmente lógico-matemática.

21
UNIDADE I │ AQUISIÇÃO DE LINGUAGEM OU AQUISIÇÃO DE LÍNGUA

Por outro lado, para os pesquisadores do segundo grupo, não nasceríamos com um
mecanismo geral de inteligência. Ao menos no que se refere à linguagem. Todos os seres
humanos nasceriam com determinadas expectativas do que são e de como funcionam as
línguas humanas; nasceríamos com um mecanismo inato para adquirir linguagem, sem
qualquer esforço, sem que precisemos atuar cognitivamente sobre o objeto “língua”.
Esta posição, que ficou conhecida como hipótese inatista da linguagem, foi formulada
inicialmente em 1959 pelo linguista Noam Chomsky.

Segundo a hipótese inatista, portanto, já nasceríamos com uma predisposição – ou,


como preferem alguns, um instinto – para a linguagem. Como nossa linguagem é muito
diferente da linguagem de todos os outros animais, é bastante razoável supor que haja
uma relação direta entre linguagem e código genético.

A descoberta do gene FOXP2, que seria o “gene da linguagem”, coloca mais lenha na
fogueira da discussão: será que descobrimos a prova de que a linguagem é definida
geneticamente? E, assim, poderíamos falar em mecanismos inatos exclusivos para a
linguagem?

A linguagem vem dos genes?

A relação do gene FOXP2 – um pedacinho do cromossomo 7 – com a linguagem surge


para dar sustentação empírica a uma ideia que vinha sendo discutida há anos, mas que
carecia de evidências concretas: uma base biológica inata específica para a linguagem,
e não a linguagem pertencendo a um indiferenciado bloco inicial “inteligência”. Pois
existem pessoas que têm uma inteligência “normal” e dificuldades apenas com a
linguagem, e o que as faz diferente é justamente a alteração em um gene. Mas será que
o gene é responsável por todo o sistema da linguagem?

Ao que tudo indica os problemas que pessoas com DEL apresentam não abrangem
todos os aspectos da linguagem, apenas alguns. E, de fato, dificilmente o tal gene
envolvido na linguagem se refere a todos os seus aspectos. Isto porque esta é uma
função muito importante e complexa, e seria pouco lógico que um, e apenas um gene
fosse responsável por tudo. É mais provável que funções complexas como a linguagem
sejam consequência de complicadas interações genéticas.

De qualquer maneira, a descoberta dos pesquisadores só vem contribuir para abrir um


novo e gigantesco campo de discussão sobre um dos mais fantásticos dons da espécie
humana: a linguagem.

Disponível em: <http://www.educacaopublica.rj.gov.br/biblioteca/>. Acesso em 28 mar.


2015. (adaptado)

22
CAPÍTULO 3
Faculdade humana de linguagem e
aquisição de língua

Cabe ressaltar que o termo language em inglês, é ambíguo, referindo-se tanto à


linguagem, em sentido amplo, quanto à língua, com suas propriedades específicas.
Portanto, mesmo que a tradução para FL seja faculdade humana de linguagem, devemos
nos atentar para o fato de que esse termo se reporta à capacidade humana de adquirir
língua, por conseguinte, quando se fala em aquisição, seria mais preciso relacionar tal
fenômeno à língua. Logo, quando se fala da aptidão humana para adquirir uma língua,
estamos nos referindo, mais precisamente, à aquisição de língua, embora a expressão
aquisição de linguagem seja vastamente empregada como sinônimo da primeira.

Admitindo a existência da FL, o programa gerativo5 avança nos estudos referentes à


aquisição, tendo em vista que o dispositivo de linguagem já está pronto, à espera de
estímulos sonoros ou gestuais para acionar certos parâmetros da língua à qual o falante
esteja sendo exposto. Assim, a aquisição de uma língua deixa de ser encarada como uma
simples relação de estímulo-resposta ou mera repetição, como no modelo behaviorista,
passando a considerar fatores como a criatividade e a produtividade.

Há uma série de evidências a favor da existência de uma FL, dentre elas, a mais
abrangente é pensar que em todos os lugares e em todos os tempos, o ser humano
é capaz de adquirir uma língua (salvo os casos de patologias graves). Considerar que
o aparato mental da linguagem encontra-se pronto na mente do indivíduo à espera
de estímulos externos ajuda-nos a compreender como a criança domina em tão pouco
tempo e com tamanha naturalidade um sistema tão complexo como a língua. Além
disso, se a linguagem fosse um mero comportamento socialmente condicionado, como
se explicariam os casos de criação de neologismos ou sentenças nunca ouvidas antes
pela criança?

Em suma, a FL é o componente biológico que permite ao ser humano a aquisição de


língua, componente este ausente nas demais espécies. Portanto, FL e aquisição estão
intimamente relacionados, sem a primeira, a segunda seria impossível, ao menos da
perspectiva gerativista. Chomsky (1998, p.67) argumenta que se não pressupomos a
existência de estruturas inatas, então, só nos resta aceitar o misticismo como fundamento
para aquisição.

5 Programa de investigação científica postulado pelo renomado linguista norte-americano Avram Noam Chomsky desde o final
da década de 1950 e aperfeiçoado atualmente sob sua versão mais recente, denominada Programa Minimalista. A Faculdade
de linguagem é um dos alicerces de toda teoria chomskyana.

23
UNIDADE I │ AQUISIÇÃO DE LINGUAGEM OU AQUISIÇÃO DE LÍNGUA

De fato, a FL é concebida como um órgão físico do organismo humano tal qual a visão,
o coração, o pulmão e o rim. Sendo assim, o processo de aquisição de língua ocorre de
forma análoga ao crescimento desses órgãos, isto é, de maneira inevitável, espontânea e
uniforme: “é algo que acontece com a criança e não algo que a criança faz” (CHOMSKY,
1998, p.23). Contudo, tudo indica que não há uma localização precisa do órgão da
linguagem no cérebro, pois tal órgão teria suas funções “espalhadas” pela cognição.
A ocorrência das afasias, distúrbios caracterizados por afetar apenas a linguagem,
mantendo o restante da cognição ilesa, corrobora a concepção de FL como um órgão
que existe não só virtualmente, mas que encontra alguma correspondência cerebral.

Você já se deparou com alguma situação em que as palavras desapareceram


da sua mente? Você sente que a expressão está “na ponta da língua”, às vezes,
lembra até da primeira letra, mas não consegue pronunciá-la? Ainda mais
constrangedor, em alguma situação, você foi capaz de identificar o rosto de um
conhecido, mas não conseguiu recordar seu nome? Em caso positivo, você já se
sentiu como um afásico.

Considerações sobre o estudo da afasia


No final do século XIX e início do século XX, alguns estudiosos observaram pacientes
com lesão no lobo frontal e correspondente de dificuldades de linguagem. Paul Broca, um
desses estudiosos, analisando os cérebros de pacientes afásicos já mortos, que haviam
perdido por completo a capacidade de falar, concluiu, dentre outras coisas (como por
exemplo, que existem distinção entre compreensão e produção de fala), que a faculdade
de articulação da linguagem é localizada em uma região específica do lobo frontal
esquerdo – área que passará a ser conhecida como Área de Broca (ver figura 1), e o
distúrbio decorrente de uma lesão nessa área, como Afasia de Broca. Esse tipo de afasia
caracteriza-se por “um dano mais ou menos completo das capacidades de expressão oral
frequentemente acompanhado de incapacidade de repetir sequências orais e de dominar
objetos, mas com manutenção da compreensão” (AUROUX, 1998, p. 233)

Figura 1.

24
AQUISIÇÃO DE LINGUAGEM OU AQUISIÇÃO DE LÍNGUA │ UNIDADE I

Na mesma época, Karl Wernicke, a partir de observações de paciente com dificuldades de


compreensão da linguagem após lesão na região posterior do lobo temporal esquerdo –
região que passará a ser chamada de Área de Wernicke (ver figura 1) –, pôde estabelecer
correspondência entre a lesão nessa região e a capacidade de compreensão da linguagem
por parte do paciente. Esse tipo de desorganização da linguagem será chamado de
Afasia de Wernicke, em que a fluência verbal não é atingida, mas “a compreensão
apresenta um déficit muito marcado assim como, além disso, a capacidade de repetição
e nomeação” (AROUX, 1998, p. 233).

Essa percepção de correspondência entre a lesão de certas regiões do cérebro e certos


distúrbios de tipo afásico levou os estudiosos a postularem a localização cerebral do
domínio da linguagem, ou, em outras palavras, levou os estudiosos a reconhecerem que
a linguagem humana tem realidade biológica.

Mas os estudos não pararam por aí. Os estudiosos ainda descobriram que:

» as duas áreas anteriormente referidas e situadas no lobo temporal


esquerdo estão ligadas por uma conexão fibrosa, o feixe arqueado ou
feixe curvo (ver figura 1);

» a Área de Broca está próxima da área motriz do córtex, chamada de córtex


motor produtivo, responsável pelo controle da articulação, da expressão
facial e da fonação;

» a Área de Wernicke inclui a compreensão auditiva.

A partir desses três elementos (as duas áreas e o feixe arqueado), compôs-se um modelo
com base no qual é possível prever a diferenciação de vários tipos de afasia, que,
conforme Aroux (p. 234), a “unidade com a qual a linguagem se nos apresenta em seu
funcionamento normal pode encontrar-se totalmente desorganizado pelos processos
afásicos”.

Fragmento retirado de: Mussalim, Fernanda. Linguística I. Curitiba: IEAD BRASIL


S.A., 2009. pp. 70-71.

Assista ao vídeo sobre Afasia de Broca, o caso de Sarah Scott, disponível em:
<https://www.youtube.com>

Assista também à palestra da Profa Dra Maria Irma Hadler Linguagem, afasia,
cérebro e mente, disponível em: <https://www.yutube.com>

25
AQUISIÇÃO OU
APRENDIZAGEM DE UNIDADE II
LÍNGUA?

CAPÍTULO 1
Período crítico

Você aprendeu uma língua estrangeira na infância e tentou aprender outra na


fase adulta? Você sentiu a mesma facilidade? Já tentou aprender a tocar um
instrumento musical depois da adolescência? A experiência com esses desafios
se torna mais dificultosa ou facilitadora, na sua opinião?

Independentemente da cultura e da época, qualquer criança sob condições normais é


capaz de adquirir a língua corrente em seu ambiente, tal língua é chamada de língua
materna ou L1, porque é a primeira língua que ela adquire.

Durante o chamado período sensível (ou período crítico) para a aquisição de língua,
a criança apresenta extrema facilidade para adquirir línguas. A hipótese do período
crítico ajuda a compreender por que a aprendizagem de uma segunda língua, L2, fica
mais dificultosa com o tempo.

Há evidências da existência de um período crítico não somente para a aquisição de


língua, como também para o desenvolvimento de outras competências como a visão
e a coordenação motora fina; tais competências, porém, precisam ser ativadas dentro
de determinado prazo, caso contrário, tendem a “atrofiar”. Não há um período crítico
geral, e sim, diferentes períodos críticos relacionados às distintas competências, cada
qual com uma duração estimada, não havendo necessariamente uma correspondência
ou linearidade entre eles.

Tradicionalmente associado a comportamentos animais, o fenômeno biológico conhecido


como período i adaptado à aquisição de língua, uma vez que originalmente,
esse fenômeno é marcado pela rigidez na duração do processo, não havendo aquisição
após o seu término. Todavia, na concepção chomskyana de aquisição, o período crítico
é caracterizado em função dos seguintes aspectos:

26
AQUISIÇÃO OU APRENDIZAGEM DE LÍNGUA │ UNIDADE II

» corresponde ao lapso temporal em que o cérebro apresenta plasticidade


para desenvolver diversas capacidades cognitivas;

» requer estímulo externo.

O período crítico para aquisição de língua distingue-se, portanto, da concepção


clássica da biologia para período crítico, devido a ser um lapso temporal favorável ao
desenvolvimento de uma capacidade, e não de comportamentos condicionados ou
atividades específicas.

Além disso, não há um consenso entre os estudiosos acerca da duração do período crítico
para aquisição de língua. Lenneberg (1967), precursor da hipótese do período crítico
para aquisição de línguas (HPC), defende que esse período se esgote até a puberdade
(por volta de 10-12 anos), idade correspondente à lateralização hemisférica cerebral; já
Penfil e Roberts (1959) defendem o limite de nove anos. Lenneberg (1967) também é
um dos poucos a estabelecer um período de início para o período crítico, por volta dos
dois anos. No entanto, as pesquisas mostram que o início do processo de aquisição com
o reconhecimento dos sons da língua materna ocorre mesmo antes do nascimento, na
vida intrauterina.

De qualquer forma, parece não haver uma idade limite precisa e uniforme entre
todas as pessoas para aquisição de língua. Por outro lado, a finalização de tal período
(seja ele qual for), diferentemente da abordagem biológica, não exclui totalmente a
possibilidade de desenvolvimento dessa capacidade, haja vista a aprendizagem de L2
na vida adulta. Nota-se que nesses casos, mesmo diante de altos níveis de proficiência
dos falantes de L2, o conhecimento da língua-alvo pelo aprendiz não se equipara ao de
um falante nativo, nos diversos domínios da língua: prosódia, sotaque, léxico, sintaxe
e pragmática. Esse aspecto antecipa a oposição que faremos entre aquisição de L1 e
aprendizagem de L2.

Retomando a concepção de período crítico aqui resenhado, a plasticidade cerebral


é o componente essencial para esse tipo de fenômeno e pode ser definida como a
alta capacidade adaptativa do nosso cérebro em função das experiências do sujeito,
a qual permite fazer novas conexões ou, até mesmo, remodular o funcionamento
de sua estrutura. Desse modo, o período crítico para aquisição de língua deve ser
entendido como o período em que o cérebro exibe maior plasticidade, configurando o
momento ideal para o despertar de uma série de capacidades cognitivas. O adiamento
desse despertar, excedendo tal período, comprometeria o desenvolvimento dessas
capacidades. Contudo, aqueles que não obtiveram os estímulos próprios durante o
período sensível não se tornam incapacitados para desenvolver suas capacidades.

27
UNIDADE II │ AQUISIÇÃO OU APRENDIZAGEM DE LÍNGUA

Ao contrário, a plasticidade cerebral atua também nesses casos, garantindo que


outras áreas do cérebro atuem em funcionalidades novas.

Em síntese, a mesma plasticidade cerebral que se exibe de forma excepcional na infância


do indivíduo, tornando a aquisição de diversas capacidades quase que espontânea
(isto é, sem esforço), também pode atuar tardiamente, “remediando” capacidades
estimuladas “fora do prazo”.

A fim de verificar algumas evidências a favor do período crítico, bem como o modo
como ele se desenrola, contrastaremos a seguir o fenômeno no âmbito da visão e da
aquisição de língua.

Assim como o órgão da visão necessita de estímulos externos, no caso a luz, para que
se desenvolva, o órgão de linguagem (FL, conforme a metáfora anatômica) precisa de
dados da língua para que possa desabrochar.

Tomando como exemplo a visão, a capacidade de enxergar perfeitamente pode decair


bruscamente se o indivíduo não receber estímulos visuais desde o nascimento – devido
a uma obstrução no eixo ocular causada por uma catarata congênita, por exemplo. Nesse
caso concreto, tanto o diagnóstico quanto a intervenção médica devem ser urgentes,
pois mesmo que haja uma intervenção após os seis meses de idade é provável que a falta
de estímulos resulte em cegueira, pois a plasticidade cerebral nesses casos (período
crítico) esgota-se ainda nos primeiros meses de vida.

Observa-se aí uma clara distinção entre a concepção oriunda da biologia acerca do


período crítico, cujo esgotamento implica ausência de aquisição, e o período crítico para
aquisição de língua, que significa um declínio da capacidade natural para a aquisição,
como se pôde verificar em crianças que sofreram isolamento linguístico e social.

Os casos de isolamento linguístico infantil estudados até então pela ciência são
raríssimos, pois não configuram o cenário corriqueiro de exposição à língua materna (o
comum é que a criança esteja inserida no convívio social, de onde recebe os estímulos
sonoros e visuais necessários para a aquisição desde a tenra idade), porém, fornecem
algumas considerações relevantes acerca do período crítico no âmbito da linguagem.

Observou-se alguns padrões em relação à idade em que as crianças foram expostas aos
dados de língua e o período em que permaneceram isoladas linguisticamente, sem a
presença de estímulos para aquisição:

» Indivíduos que tiveram estímulos linguísticos iniciais (até os dois primeiros


anos de vida), mas tiveram os estímulos interrompidos pelo isolamento
social, sendo expostos novamente aos dados após o período considerado

28
AQUISIÇÃO OU APRENDIZAGEM DE LÍNGUA │ UNIDADE II

crítico (tomando como limite a puberdade por volta de 12 anos) – quando


resgatados para o convívio social e novamente estimulados, obtiveram
algum progresso comunicativo, apresentando avanços na compreensão.
Por outro lado, sua produção revelou-se bastante limitada, contemplando
o aprendizado de poucas palavras, algumas vezes fora de contexto, e
uma sintaxe rudimentar, envolvendo desde problemas banais, como a
ordem dos constituintes, à elaboração de construções mais complexas,
como sentenças QU6 e encaixadas. Mesmo assim, esse tímido progresso
ocorreu mediante um treinamento específico, demorado e cansativo,
nada parecido com o processo de aquisição.

» Indivíduos que não tiveram estímulos linguísticos iniciais e tiveram


exposição tardia aos dados da língua, isto é, após o período considerado
crítico – não conseguiram adquirir língua satisfatoriamente, mesmo
diante de um treinamento contínuo, apresentando pronúncia e sintaxe
truncada.

» Indivíduos que não tiveram estímulos linguísticos iniciais, mas foram


expostos aos dados da língua ainda durante o período crítico – adquiriram
plenamente língua, com notável rapidez e desenvoltura nos vários
âmbitos da língua, desde a pronúncia até os aspectos mais complexos.
Um caso digno de nota é o da americana Hellen Keller, que cega e muda,
adquiriu a Língua de Sinais Americana, aprendeu a falar, a ler e escrever
em Braille e formou-se em Radcliffe College.

Sobre o isolamento linguístico de indivíduos e a exposição tardia aos dados, Lima Junior
(2013) destaca que “até hoje não foi registrado um caso sequer de um indivíduo que
não conseguisse adquirir nada de uma L1 ou L2 por ter começado em certa idade”.
Embora haja desenvolvimento de linguagem mesmo após o período crítico, é necessário
considerar que aprender parte de uma língua mediante instrução é totalmente diferente
do que se entende por aquisição de língua. Não existe aquisição parcial de L1, a criança vai
adquirindo a língua em sua totalidade, com exceção dos aspectos pragmáticos e lexicais
– se é que tais aspectos podem ser encarados como concernentes à aquisição. Segundo o
autor, a pragmática é adquirida principalmente durante a adolescência e o adulto “adquire
novas funções linguísticas de acordo com as necessidades sociais e profissionais, como
funções para entrevistar, vender, negociar, falar em público, supervisionar o trabalho de
outros, criticar, ensinar, aconselhar e instruir” (2013, p. 237). Além disso, o léxico é um
componente da língua é suscetível à expansão/aquisição em qualquer idade.

6 Sentenças QU são aquelas que possuem palavras como que, quem, qual, quando, onde, cujo. A expressão QU vem do inglês
WH, que designa pronomes como what, who, when, where, whose. Sentenças encaixadas são as chamadas, na gramática
normativa da língua portuguesa, orações subordinadas adjetivas ou orações relativas.

29
UNIDADE II │ AQUISIÇÃO OU APRENDIZAGEM DE LÍNGUA

Retomando a comparação com a visão, é notável o fato de que a capacidade de enxergar


não exige da criança nenhum esforço consciente, pois ela já nasce com o aparelho visual
pronto, que ao ser estimulado será desenvolvido espontaneamente. Isso nos lembra da
observação de Chomsky sobre aquisição “é algo que acontece com a criança e não algo
que a criança faz” (1998, p. 23). Do mesmo modo, durante a aquisição de L1, a criança
não realiza nenhum esforço consciente para desenvolver a língua. Não é necessário
repassar nenhuma instrução de como enxergar ou como falar à criança, pois estando
provida dos estímulos corretos, efetuará naturalmente os procedimentos inerentes a
cada ação, pois já estará devidamente equipada para tanto.

Nesse sentido, pode-se questionar se os avanços demonstrados pelos indivíduos


reinseridos no convívio social após o período crítico são fruto realmente de aquisição
ou de aprendizagem, haja vista que foi necessário um acompanhamento especializado
para o desenvolvimento das capacidades linguísticas, requerendo grande esforço do
indivíduo ao longo de um processo consciente.

Todavia, o período crítico para aquisição de língua deve ser analisado com ponderação,
uma vez que os casos empíricos, que servem de evidência para sua postulação, são
episódios extremos, em que variáveis sociais, emocionais e psicológicas concorrem
de modo a impedir conclusões categóricas sobre a origem das dificuldades de
aquisição após um período biologicamente definido, como alerta Lima Junior (2013,
p. 235): “Os dados ainda não são suficientemente numerosos e controlados para uma
generalização tão forte que determine a idade X ou Y como sendo o limite final para
aquisição de L1.”

Em última análise, não há ainda meios de determinar categoricamente se o que


compromete a aquisição tardia é necessariamente a existência de um período crítico
ou se tal comprometimento é acentuado pelos traumas psicológicos do isolamento ou
se há problemas cognitivos associados, como autismo, ou ainda, se a idade é um dos
elementos afetados pelo comprometimento do processo cognitivo geral.

Conquanto, é inegável a importância da exposição precoce e contínua aos dados para


uma aquisição satisfatória tanto de L1 quanto de L2. Buscando exemplos do nosso dia
a dia, assim como a habilidade de tocar um instrumento musical ou de escrever em
letra cursiva parece definhar com o tempo, é notável que a criança exposta desde cedo a
um idioma demonstrará vantagem perante aqueles que tiveram uma exposição tardia,
numa razão inversamente proporcional entre a idade do indivíduo e a capacidade de
aquisição.

30
AQUISIÇÃO OU APRENDIZAGEM DE LÍNGUA │ UNIDADE II

Filmes sobre período crítico e aquisição atípica:

O milagre de Anne Sullivan (1962), baseado na história real de Hellen Keller e sua
professora Anne Sullivan.

O garoto selvagem (1969), baseado nos relatórios do médico Jean-Marc Itard,


que cuidou do caso do menino Victor de Aveyron.

O Enigma de Kaspar Hauser (1974), um clássico do diretor alemão Werner Herzog.

Nell (1994), obra fictícia com a indicada ao Oscar, Jodie Foster.

31
CAPÍTULO 2
Input linguístico

Tão importante quanto o período em que ocorre a exposição do indivíduo à L1 é a


própria exposição aos dados de entrada, denominados input linguístico. Nesta seção,
iremos discutir a natureza dos dados de entrada e o seu papel na aquisição de língua.

A característica mais marcante do input e que deu origem ao principal argumento


da hipótese racionalista para a aquisição é a pobreza. Mas em que sentido o input é
pobre? Da perspectiva quantitativa, o input é rico, pois os dados a que a criança tem
acesso nos primeiros anos de vida são numerosos e abundantes. Porém, a qualidade
das informações fornecidas pelos dados é questionável sob diversas perspectivas.

Primeiramente, por mais variado que seja o input, jamais será suficientemente rico a
ponto de fornecer todas as possibilidades que o sistema linguístico apresenta frente
à capacidade de interpretar e produzir enunciados novos que o falante adquire. Nas
palavras de Chomsky (1998, p. 23): “A criança conhece imensamente mais do que a
experiência provê.”

Isso quer dizer que ao adquirir a língua materna, a criança ouve (ou visualiza, no caso
das línguas de sinais) muitos dados de língua, geralmente oriundos de fontes diversas,
mas não há garantias de que esses dados contenham todo tipo de estrutura presente na
língua. Observe o exemplo de GR e Silva (2014, p.73):

Será que nós ouvimos alguma vez na nossa infância uma sentença
relativa que tivesse a cabeça ocupando a posição de um complemento
preposicional (isto é, o objeto indireto) na frase matriz, mas fosse o
complemento de um nome na sentença encaixada? Seria alguma coisa
como “minha vizinha gostava da praça que eu tinha uma baita visão lá
da minha janela”. Será? Pode ser que sim, pode ser que não. Não há
como garantir.

Sendo assim, no caso de a criança não ter recebido input com esse tipo de estrutura, essa
ausência não configura impedimento para que tal tipo de sentença possa ser processada
e até mesmo produzida por um falante nativo. Na verdade, a criança tem acesso a uma
amostra de língua e não à sua totalidade. Por isso, o input também é caracterizado
como incompleto ou fragmentado.

Em segundo lugar, as regras de funcionamento da língua não estão explícitas no input,


ao contrário, a criança deve deduzi-las a partir dos dados a que tem acesso, que por

32
AQUISIÇÃO OU APRENDIZAGEM DE LÍNGUA │ UNIDADE II

sua vez, podem inclusive não conter a informação necessária para a dedução da regra
em questão. Apesar disso, a criança faz inferências das regras inerentes ao sistema
linguístico a partir desse corpus fragmentado e incompleto, aplicando-as e utilizando a
língua em sua plenitude.

Em terceiro lugar, a despeito do input linguístico (dados de entrada) estar repleto de


sentenças truncadas e incompletas, a criança em fase de aquisição é capaz não só de
selecionar dentre os estímulos sonoros aqueles que são linguísticos, como também de
selecionar dentre esses, aqueles pertencentes à sua língua e daí extrair as informações
subjacentes aos dados, transformando-as em output (dados de saída). Assim, o input
é tomado como degradado porque, baseando-se na oralidade, contém as imperfeições
típicas dessa modalidade, como gaguejos, interrupções, forte dependência do contexto,
truncamentos sintáticos etc.

Por fim, o input se caracteriza por ser desorganizado, no sentido em que os dados
são disponibilizados sem nenhum cuidado ou tratamento prévio que possa facilitar a
aquisição, como ocorre no aprendizado formal de L2, por exemplo. Quando aprendemos
uma língua estrangeira num curso de idiomas, geralmente o material didático e a
metodologia empregada são pensados de modo a apresentar os dados de maneira
organizada, numa escala crescente de complexidade. Porém, na aquisição de L1 ocorre
o processo inverso.

Por vezes, alega-se que a linguagem dirigida à criança (doravante LDC) ou o “maternês”,
como é conhecido popularmente, é uma tentativa de organizar o input linguístico. Essa
forma de interação entre o adulto (em especial a mãe, daí a origem do nome) e a criança
apresenta uma série de particularidades, algumas delas são:

» articulação clara ao se dirigir à criança;

» uso de um tom de voz mais agudo;

» enunciados breves com sintaxe simplificada;

» predomínio de sentenças imperativas e perguntas;

» emprego da 3a pessoa para se referir à criança;

» uso excessivo de reduplicações, como mamá, dudu, dedera, naná, papá


etc;

» Discurso essencialmente dêitico (ênfase no aqui e agora) e com vocabulário


limitado ao universo infantil.

33
UNIDADE II │ AQUISIÇÃO OU APRENDIZAGEM DE LÍNGUA

À priori, pode parecer que o “maternês” realmente configure um esforço consciente


dos pais no intuito de auxiliar/facilitar a aquisição, devido ao seu caráter
simplificado. No entanto, essa primeira impressão pode ser refutada. O maternês
não é um fenômeno universal, presente em todas as culturas, pois há sociedades
não ocidentais em que a interação com as crianças não são práticas tão estimuladas
como na nossa. Logo, “Se a LDC pode ter um papel facilitador que convém avaliar
atentamente, em contrapartida, ela não constituiria uma condição necessária para
aquisição de linguagem.” (KAIL, p. 47).

Adicionalmente, uma contradição em relação à LDC é que ao invés de facilitar a aquisição,


tal input, na verdade, pode fornecer dados ainda mais degradados à aquisição, uma vez
que não corresponde à realidade da fala nas situações do cotidiano. Em nosso dia a
dia, não nos comunicamos predominantemente por meio de perguntas ou imperativos.
Tampouco a criança adquire somente tais estruturas, ao contrário, diante desse input
limitado e infiel, ela produz sentenças declarativas. Do mesmo modo, o maternês pode
levar a criança em fase de aquisição a fazer generalizações equivocadas a respeito da
língua, como utilizar a reduplicação, um processo pouco produtivo no português, de
forma abundante.

Um último fator a considerar sobre a forma particular empregada pelos adultos para
se comunicar com a criança é a correção. Em geral, quando a fala da criança apresenta
algum impropério, o adulto a repreende, induzindo a repetição do enunciado de forma
correta. Acontece que essa correção tem pouca influência sobre a aquisição, pois a
criança é indiferente à correção. Além disso, os pais concentram sua atenção muito mais
no conteúdo do que na forma; quando muito, fazem correções esporádicas, relativas à
norma culta. Para ilustrar o que estamos dizendo, iremos relatar uma anedota sobre a
reação da criança diante da correção no período de aquisição de L1:

» Criança: - Mamãe, eu fazeu xixi.

» Adulto: - Você fez xixi na roupa?

» Criança: - Fazeu.

» Adulto: - Não. Diga fiz!

» Criança: - Fiz.

» Adulto: - Você fez xixi na roupa?

» Criança: - Fazeu, mamãe.

34
AQUISIÇÃO OU APRENDIZAGEM DE LÍNGUA │ UNIDADE II

Em última instância, pode-se constatar que a aquisição não é uma atitude consciente
da criança, mas uma “fatalidade”, ou seja, algo inevitável. Assim, mesmo a ausência de
uma linguagem especial para se comunicar com a criança – LDC – ou ainda, a total falta
de interação direta com ela, não impediriam o processo de aquisição. Somente algum
distúrbio cerebral muito grave ou a privação do convívio em sociedade e o consequente
isolamento linguístico durante o período crítico impedirão o curso natural da aquisição,
ainda assim, como vimos na seção anterior, é possível que o indivíduo supere o trauma
neste último caso e consiga desenvolver suas capacidades linguísticas.

Contudo, o fator decisivo que permite a identificação do input como pobre, mais do que
a degradação, a desorganização e a fragmentação, é a ausência de evidência negativa.
De fato, o falante nativo que se encontra num estágio estabilizado do conhecimento
linguístico não produz estruturas agramaticais, isto é, má formadas. Dito de outra
forma, um adulto, que já passou da fase de aquisição de língua, não gera sentenças não
previstas pelas regras da L1. Lembre-se de que para todos os efeitos, o tipo de regra a que
estamos nos referindo são regras inerentes à própria língua e não regras normativas;
tampouco, regras ortográficas. Regras do primeiro tipo podem ser comparadas às leis
da física, as quais são leis impostas pela própria natureza, como a lei da gravidade;
não são artifícios estipulados pelo homem para regular o que é certo ou errado na
natureza; enquanto as regras normativas assemelham-se a um manual de etiqueta, pois
estabelecem o que é adequado ou não, dependendo de com quem, onde, como e quando
se fala. Já as regras ortográficas são ainda menos permissivas que as normativas, pois
têm caráter imanentemente arbitrário, isto é, obedecem à convenção.

Sendo assim, a ausência de evidência negativa é concebida pelo fato de que o falante
nativo sabe intuitivamente o que é possível ou não em sua língua materna. Ele sabe
intuitivamente porque as estruturas impossíveis não são produzidas pelos falantes e
porque essa informação não lhe é dada via instrução. Um exemplo trivial para explicitar
esse conhecimento intuitivo do falante nativo em relação à sua língua, também
conhecido como competência linguística, é a ordem dos constituintes no interior do
sintagma nominal. O artigo ocupa uma posição fixa em relação ao substantivo. Essa é
uma regra imanente da língua, pois é assim que a língua é, é assim que a língua funciona.
Não recebemos instrução formal sobre essa regra até o início do ensino fundamental, o
que ocorre por volta dos 7 anos; no entanto, qualquer criança desde muito cedo, com 2
ou 3 anos, é perfeitamente capaz de produzir os sintagmas “a boneca” ou “o carrinho”
sem hesitação com relação à posição do artigo. E mais, diante das estruturas hipotéticas
“boneca a” e “carrinho o”, qualquer falante reagirá com estranhamento, pois são
estruturas impossíveis, inexistentes na língua, ou simplesmente, agramaticais. Observe
o esquema a seguir, em que o símbolo * indica as estruturas agramaticais:

35
UNIDADE II │ AQUISIÇÃO OU APRENDIZAGEM DE LÍNGUA

1. a boneca

2. o carrinho

“1” e “2” possíveis na língua = gramaticais

3. *boneca a

4. *carrinho o

“3” e “4” impossíveis na língua = agramaticais

Um exemplo mais refinado de como nossa competência linguística nos


guia na língua sem uma orientação explícita, evitando as evidências
negativas é a distribuição entre pronomes pessoais e expressões
referenciais7, ilustrada em (5a) e (6a): (GROLLA; SILVA, 2014, p. 75)

5. O João disse que ele viajou no feriado.

6. Ele disse que o João viajou no feriado.

Sabemos intuitivamente que “João” (expressão referencial) e “ele”


(pronome) em (5) podem ser a mesma pessoa ou pessoas diferentes, com
interpretação equivalente às sentenças em (7) ou (8). Por sua vez, (6)
só permite que o pronome “ele” seja diferente da expressão referencial
“João”, analogamente a (8). De modo que nenhum falante do português
fará a interpretação contrária, que seria agramatical. Observe:

7. O João disse que ele mesmo viajou no feriado.

8. O João disse que o Pedro viajou no feriado.

Contudo, essa restrição na interpretação entre o pronome e a expressão referencial não


nos é ensinada formalmente e também não é facilmente dedutível dos dados, pois ela só
pode ser explicada por meio de uma formulação formal sofisticada sobre a língua, à qual
não nos deteremos aqui. Portanto, a evidência negativa em (5) e (6), definitivamente,
não está disponível nos dados.

Portanto, diante da natureza pobre, incompleta, fragmentada, degradada e


desorganizada do Input, temos de reconhecer que o papel dos dados de entrada não
são determinantes para aquisição de língua. Para ilustrar o quão complexa é a tarefa
de aquisição de L1 a partir de dados tão problemáticos, Chomsky compara a criança
a alguém que quer aprender xadrez apenas observando o jogo: os jogadores não
7 Exemplos retirados de Grolla; Silva (2014, p.75)

36
AQUISIÇÃO OU APRENDIZAGEM DE LÍNGUA │ UNIDADE II

explicam nada ao observador e quando erram um movimento não lhe avisam ou se


desculpam com o parceiro, que já sabe que o parceiro cometeu um equívoco e deixa
passar. Analogamente, quando o adulto apresenta alguma falha no seu desempenho,
interrompendo o fluxo da fala, realizando truncamentos ou gaguejando, por exemplo,
geralmente não se desculpa ou avisa aos interlocutores que cometeu algum desvio.
Podemos pensar que sob essas condições, seria praticamente impossível aprender
a jogar xadrez, um jogo tão complexo e repleto de regras. Contudo, é sob condições
análogas a essas que a criança adquire língua materna.

O paradoxo entre a qualidade do input e o extraordinário desempenho da criança na


aquisição constitui o problema lógico da aquisição, que pode ser formulado da seguinte
maneira: “como a criança sabe princípios que regem a sua língua se eles não lhe foram
ensinados formalmente e se não estão à disposição nos dados aos quais ela tem acesso?”
(GROLLA; SILVA, 2014, p. 70). Tal paradoxo foi inspirado no conhecido problema de
Platão e adaptado à teoria linguística: “Como é que o ser humano pode saber tanto
diante de evidências tão passageiras, enganosas e fragmentáveis?”.

Dizer que o input é qualitativamente pobre é um argumento cabal a favor da existência


de um dispositivo genético pré-determinado relacionado à faculdade humana de
linguagem. O argumento da pobreza de estímulo somado ao problema lógico da
aquisição evidencia o surpreendente conhecimento linguístico da criança diante de
dados de entrada tão adversos, o que nos leva a limitar o papel do input. Em outras
palavras, sem dúvidas, é importante a exposição aos dados desde o mais cedo possível,
mas não são os dados em si que determinam a aquisição; seu papel é meramente
disparador. Não estamos afirmando que o input não é importante ou que o ambiente
social não influencia a aquisição.

O que estamos defendendo é que o fator realmente indispensável à aquisição de língua é


a existência do dispositivo genético de aquisição, as estruturas das línguas já estão todas
previstas nesse dispositivo, assim, à criança cabe apenas seguir “o mapa da mina”, uma
vez que seus “passos” já estão traçados, basta que ela tenha um “empurrãozinho” para
começar a jornada da aquisição. Neste sentido, a complexidade do processo de aquisição
é apenas aparente: se dependesse necessariamente do input, de fato, seria complexa,
ou mesmo, impossível (lembre-se da metáfora do jogo de xadrez), mas admitindo a
existência de um aparato mental pré-definido, torna-se relativamente simples.

O raciocínio é mais ou menos assim: se a criança não desenvolvesse a faculdade de


linguagem, considerando a exposição aos dados de língua, se ela não tivesse um
dispositivo inato que permitisse a aquisição, tampouco ela poderia adquirir uma língua,
já que os dados são caóticos.

37
UNIDADE II │ AQUISIÇÃO OU APRENDIZAGEM DE LÍNGUA

Finalizaremos esta sessão nos valendo mais uma vez de uma metáfora proposta por
Chomsky, nas palavras de Grolla e Silva (2014, p. 82), a fim de explicar o papel do input
e a evidência de um dispositivo genético de linguagem inato ao ser humano:

Se você plantar uma margarida, é preciso que ela receba água e sol e
que a terra tenha nutrientes suficientes para que ela se desenvolva; mas
o que vai nascer ali, de acordo com o código genérico da semente que
você plantou, é uma margarida, não uma rosa. [...] sem as condições
mínimas, não vai nascer nada ali; mas se nascer, pode apostar que é
margarida! Ou seja, não e porque a linguagem é inata que ela vai se
desenvolver automaticamente. Da mesma forma que a semente da
margarida precisa de terra, água e sol para se desenvolver e se tornar
uma margarida, assim também a linguagem precisa de um input para
se desenvolver na criança. Apenas a parte inata não é suficiente. Ela é
condição necessária, mas não suficiente para que a aquisição ocorra.

Uma excelente metáfora para entender a interação entre linguagem e mente


é compará-los a um computador, mais especificamente, entre software e
hardware, respectivamente. Se a nossa mente é o hardware capaz de processar
centenas de milhares de informações, e os dados da língua funcionam como
a fonte de alimentação para o sistema, por que o Input é tão indispensável à
aparelhagem?

38
CAPÍTULO 3
Propriedades da aquisição de língua

Nesta sessão, iremos tratar das propriedades gerais que definem o processo de aquisição
de língua, oferecendo especial enfoque aos aspectos distintivos entre aquisição e
aprendizagem de língua.

O fato, já mencionado neste material, de que qualquer criança da espécie humana


em condições mentais e sociais normais é capaz de adquirir ao menos uma língua em
qualquer cultura e em qualquer época constitui a primeira propriedade da aquisição:
universalidade. Em todo lugar e em toda época da história da humanidade, toda
criança normal adquire língua, pois isso não é algo que se possa controlar ou evitar,
mas uma consequência natural do instinto humano da linguagem ou faculdade de
linguagem (FL).

Ainda que a aquisição seja universal, sabemos que esse processo é desencadeado
pelo input, como vimos na sessão anterior. Ora, tomando a diversidade do input,
quanto à qualidade e à frequência dos estímulos a que as crianças são expostas nas
distintas culturas, a aquisição revela uma faceta uniforme. Enquanto algumas culturas
superestimam a interação com a criança, outras, não dão tamanho destaque a tal
interação; em outras culturas ainda, o adulto sequer fala diretamente com as crianças.

Podemos observar a diversidade de input não só translinguisticamente (entre línguas


distintas), mas também no interior de uma mesma cultura ou comunidade, a depender
do ambiente doméstico em que vive a criança, por exemplo. Supomos duas famílias:
a primeira composta por pai, mãe, um filho adulto, dois filhos adolescentes e uma
criança recém-nascida e a segunda constituída por apenas dois membros, a mãe e seu
filho recém-nascido. A princípio, poderíamos julgar que a criança da primeira família
teria vantagem em relação à da segunda, mas o que as pesquisas constatam é que
em ambos os casos, as crianças, independentemente do tipo de input ou da utilização
de LDC, adquirem a mesma língua. Claro que a aquisição lexical depende da riqueza
do input, pois a expansão do vocabulário ocorre à medida que ouvimos as palavras.
Nesse sentido, a aquisição lexical é bastante diferente da aquisição de gramática, pois
o léxico é um repositório aberto, que está suscetível à expansão até o fim da vida, ao
contrário da sintaxe, que é determinada por um período sensível. Em última análise,
podemos dizer que a aquisição de língua são duas: aquisição de léxico e aquisição
de sintaxe (entendida como componente da FL responsável por gerais as expressões
linguísticas).

39
UNIDADE II │ AQUISIÇÃO OU APRENDIZAGEM DE LÍNGUA

Além da universalidade e uniformidade, é notável o fato de que as crianças adquirem


qualquer língua a que estejam expostas. Assim, o fator determinante para aquisição
da língua X, e não da língua Y ou Z, é a língua falada ao redor da criança e não
necessariamente a língua materna dos pais da criança. Observe o exemplo dado pelo
linguista norte-americano Noam Chomsky:

[...] se meus filhos tivessem sido criados em Tokyo, eles falariam


japonês, tal como todas as crianças de lá. Isto significa que evidências da
língua japonesa têm aporte direto sobre assunções feitas com respeito
ao estado inicial para o inglês (1997).

De modo que a possibilidade de aquisição simultânea de duas ou mais línguas é


totalmente compatível com a faculdade de linguagem e seus pressupostos, contanto
que haja input no período crítico. Por isso, há crianças bilíngues e multilíngues, que
vivem em ambientes onde se falam várias línguas, como regiões fronteiriças, países
oficialmente bilíngues ou nos casos de casamentos interculturais, por exemplo. Alguns
teóricos apontam que a figura do bilíngue perfeito, isto é, o indivíduo que adquire as
duas línguas com perfeição, não existe, pois, mesmo que a criança seja exposta desde
muito cedo a várias línguas, uma delas, provavelmente a falada em casa, se sobreporá
as demais, desempenhando o papel de língua materna. Embora a criança demonstre
proficiência nas outras línguas, ela terá preferência e intuição de falante nativo somente
em uma língua, que será considerada materna.

Notável também é a rapidez com que as crianças adquirem língua. Se considerarmos


as outras circunstâncias de aquisição, seja por imersão ou por instrução formal,
concluiremos que aprender um idioma demanda bastante tempo. Comparada ao adulto,
que já possui um sistema cognitivo e corpo maduros, pensamento abstrato desenvolvido
e tem ampla experiência social, a criança encontra-se numa fase de desenvolvimento de
todo seu sistema cognitivo e de transformações físicas, tem pouco repertório no que se
refere ao conhecimento de mundo e sua capacidade de abstração ainda tem um longo
caminho a ser trabalhado. Apesar dessa aparente “desvantagem”, é a criança quem
adquire língua com espantosa velocidade! Antes de frequentar a escola, por volta dos
quatro anos, a criança apresenta um conhecimento complexo e intuitivo da língua, sem
que esforço algum tenha sido empreendido.

A essa altura da discussão, a pergunta que não quer calar é: “por que então, a aquisição
não é espontânea?”, ou mais especificamente, “por que ainda leva cerca de 4 anos
para que a aquisição se conclua, se a trilha para aquisição já está pré-programada
no indivíduo?” Primeiramente, por questões óbvias, que envolvem a anatomia do
sistema articulatório, a aquisição não poderia ser espontânea. Adicionalmente, como
já vimos, a aquisição depende de input como mecanismo disparador. Grolla e Silva
40
AQUISIÇÃO OU APRENDIZAGEM DE LÍNGUA │ UNIDADE II

(2014) apontam as duas propostas para responder a essas perguntas. Grosso modo, a
visão maturacionista defende que o conhecimento linguístico forma-se com o tempo.
Obedecendo a uma espécie de cronograma de maturação, uma regra seria pré-requisito
para a maturação de outra. Enquanto a visão continuísta defende que o conhecimento
linguístico já está totalmente pronto na mente do indivíduo desde o nascimento à espera
da aquisição dos itens lexicais e do desenvolvimento cognitivo.

Há ainda uma sequência determinada de estágios de aquisição observada


translinguisticamente. Isso quer dizer que todas as crianças, adquirindo qualquer
língua, passam pelos mesmos estágios, a saber: no primeiro ano, a criança pronuncia
palavras simples do seu cotidiano (papai, mamãe etc.) e fórmulas feitas (olá); em torno
dos dois anos, o vocabulário cresce significativamente e a criança forma frases curtas;
entre dois e cinco anos, já adquiriu todo o repertório de sons, a morfologia flexional e
construções sintáticas complexas da língua. Não há permuta nessa sequência, o que
caracteriza a aquisição como linear. Todavia, o parâmetro considerado na aquisição
não deve ser a idade, mas antes, o estágio em que a criança se encontra, já que o ritmo
de aquisição apresenta nuances individuais, influenciadas por fatores extralinguísticos.

Enfim, há nítidas diferenças entre os processos de aquisição e aprendizagem, embora,


não raro, sejam tomados como sinônimos. Muitas vezes, nos perguntamos: “como as
crianças aprendem a falar?”, quando na verdade, a pergunta apropriada seria: “como as
crianças adquirem língua?”

Kato (2005) delimita o termo aquisição para L1 e aprendizagem para L2. Ao analisarmos
as características específicas desses dois processos, elencadas pela autora, constatamos
que se trata de ações quase opostas.

A aquisição de L1 é:

» biologicamente determinada;

» desenvolvida durante o período crítico;

» um processo inconsciente e espontâneo;

» estimulada apenas por evidências positivas.

Por seu turno, a aprendizagem de L2 caracteriza-se por ser:

» socialmente motivada;

» desenvolvida após o período crítico, em geral;

41
UNIDADE II │ AQUISIÇÃO OU APRENDIZAGEM DE LÍNGUA

» um processo consciente e vagaroso;

» estimulada por evidências positivas e negativas.

Passemos à análise minuciosa de cada uma das características citadas anteriormente.


Como vimos, a aquisição ocorre graças à presença de uma faculdade de linguagem, que
faz parte do código genético humano e não pode ser evitada, portanto, é biologicamente
determinada. Já a aprendizagem ocorre por uma motivação social, seja por razões
profissionais, acadêmicas, em virtude de uma viagem a lazer ou a negócios, ou mesmo
por uma razão estritamente pessoal. Podemos mesmo chegar ao fim da vida dominando
apenas nossa língua materna, pois a aprendizagem de uma língua estrangeira é uma
escolha individual.

Já vimos também que a aquisição é favorecida por um período crítico, que se inicia
desde o nascimento e continua até a puberdade. Existem várias evidências a favor do
período crítico, pois após esse período, embora ainda haja possibilidade de desenvolver
linguagem, geralmente essa linguagem se encontra extremamente comprometida,
levando-nos a cogitar se nesses casos chamados de “aquisição tardia”, há realmente
aquisição, ou se há uma espécie de treinamento ou condicionamento, talvez nem
mesmo aprendizagem. Uma vez motivada socialmente, a aprendizagem de uma língua
estrangeira costuma ocorrer fora do período crítico, assim, não basta apenas input para
“ativar” o processo de aquisição, mas o emprego de uma metodologia e de uma seleção
de input para propiciar a fluência.

A aquisição de L1 ocorre de modo inconsciente e espontâneo no sentido em que a criança


não precisa de orientações explícitas acerca da língua para que a desenvolva em uma
velocidade surpreendente. Como vimos, o input é fragmentado e incompleto, mesmo
assim, a criança realiza as inferências corretas, depreendendo o funcionamento da
língua, embora não tenha conhecimento teórico sobre o assunto. A criança reconhece
estruturas gramaticais e agramaticais conforme a sua intuição de falante nativo, apesar
de não saber explicar o porquê do estranhamento.

Por sua vez, a aprendizagem é consciente, pois a atenção do indivíduo a cada detalhe é
importante para sua proficiência na pronúncia, na sintaxe e na pragmática do idioma.
O falante na posição de aprendiz de segunda língua é capaz de regular seu aprendizado
por meio do tipo de input a que tem acesso, aumentando não só a quantidade quanto
a qualidade do input, por meio de recursos adicionais. O aprendiz pode, por exemplo,
mudar o idioma do laptop ou do celular para a língua-alvo a fim de se habituar à língua,
contratar aulas particulares, frequentar um curso intensivo, assistir a filmes estrangeiros
sem legenda, interagir em um chat com pessoas de diversas naturalidades etc. Tudo isso
é possível porque há clareza do aprendiz quanto aos seus objetivos e ao seu grau de
conhecimento do idioma. Portanto, em se tratando de L2, quanto mais input, melhor.

42
AQUISIÇÃO OU APRENDIZAGEM DE LÍNGUA │ UNIDADE II

Além disso, a qualidade desse input, sem dúvida, importa. Para se tornar proficiente
em inglês, por exemplo, não basta se contentar com o input do dia a dia, presente nos
aparelhos digitais, nos jogos on-line ou em filmes legendados. A quantidade, aliada à
frequência, a atenção e ao empenho do indivíduo acelerarão o processo, mas mesmo
assim, promessas de fluência em poucos meses não passam de ilusão. Lembremo-nos
de que a qualidade ou quantidade de input tem relevância mínima na aquisição, já
que este tem um papel disparador nesse processo, pois a aquisição é um fenômeno
uniforme.

O último ponto de contraste elencado pela autora refere-se ao tipo de evidência presente
em cada um dos processos. Enquanto na aquisição não há evidência negativa e nem
poderia haver, uma vez que os falantes nativos adultos que fornecem o input à criança
produzem apenas estruturas gramaticais; na aprendizagem de língua estrangeira, além
da evidência positiva, por vezes, o professor encarregado produz estruturas agramaticais
propositalmente com objeto pedagógico, ou mesmo em exercícios de fixação, é comum
a presença de evidência negativa.

Para finalizar esta sessão, adotaremos a tese de Kato (2005) de que a aquisição da escrita
é como a aquisição de segunda língua, já que ambas são caracterizadas pelos mesmos
fatores: socialmente motivadas e, por conseguinte, processos conscientes; aprendizagem
iniciada após o período crítico; presença de evidência negativa e vagarosidade.

43
COMO OCORRE A UNIDADE III
AQUISIÇÃO?

CAPÍTULO 1
Como não ocorre a aquisição

É espantoso ver a velocidade e a desenvoltura com que os bebês começam


a falar. Pais, avós, tios, quem de nós, nunca se pegou babando diante de um
bebê falante? Todos nós, em algum momento, nos sentimos intrigados e
fizemos (nem que fosse só em pensamento) aquela pergunta: como as crianças
aprendem a falar?

Neste capítulo apresentaremos várias respostas para essa pergunta, baseando-nos


em algumas das diferentes hipóteses formuladas acerca da aquisição de língua.
Abordaremos também neste capítulo as principais técnicas empregadas na pesquisa
de aquisição sob o enfoque da psicolinguística. Tais técnicas visam compreender
melhor como a aquisição é processada na mente do indivíduo em cada estágio de
aquisição.

Basicamente, há duas teorias gerais que explicam a aquisição de modo antagônico.


A visão empirista engloba as hipóteses que sustentam que o conhecimento linguístico
faz parte da cognição em geral, como as capacidades de fazer analogias, associações
e inferências. Já a abordagem racionalista defende que o conhecimento linguístico
é específico e, embora esteja interligado à cognição (como todos os órgãos do nosso
organismo são integrados, aliás), existe autonomamente e tem funções específicas.
A perspectiva racionalista também é conhecida como inatismo ou hipótese inatista,
porém, Grolla e Silva (2014) chamam a atenção para o fato de que tanto as abordagens
empiristas quanto a racionalista são inatistas em alguma medida. Na verdade, a
distinção dá-se no que é considerado inato: para as primeiras, são as capacidades
cognitivas em geral que são inatas ao ser humano e que vão se desenvolvendo de acordo
com a experiência de vida; para a segunda abordagem, o que é inato é a capacidade
de linguagem e, o papel da experiência, apesar de importante, não é determinante,
conforme abordamos no capítulo anterior.

44
COMO OCORRE A AQUISIÇÃO? │ UNIDADE III

Todavia, no senso comum, a visão mais difundida de como a criança aprende a falar alega
que a aquisição ocorre por imitação. Porém, basear todo o conhecimento linguístico
na imitação é uma explicação simplista – que exclui essa hipótese das plausíveis para
explicar esse processo tão complexo. Primeiramente por que a aquisição de língua pelo
ser humano é muitíssimo diferente do treinamento de um animal ao tentar falar. Um
chimpanzé ou um papagaio podem imitar a fala do humano; mas uma criança não imita
a fala do adulto, ela se baseia nessa fala e amplia infinitamente seu repertório linguístico.
Em segundo lugar, conjecturar que a aquisição ocorre por imitação é reduzir a noção do
que entendemos por língua, uma vez que a língua envolve muito mais do que léxico, é
um sistema integrado composto por operações gramaticais e um léxico. Dito de outra
forma, aquisição de língua não se restringe à repetição de palavras, ou seja, à aquisição
de léxico, já que, para este, realmente o falante é dependente da experiência para poder
ampliar seu vocabulário.

Em linhas gerais, a hipótese da imitação não se sustenta porque além de ser simplória,
é reducionista porque ignora os seguintes aspectos da linguagem da criança:

» a criança cria palavras que nunca ouviu ao fazer sobregeneralizações8, a


exemplo de “eu ouvo” e “eu trazi”;

» a criança amplia sua produção, indo além da LDC;

» no estágio de estabilização do conhecimento linguístico, em que a


criança já domina as estruturas mais complexas da língua, ela é capaz
de reconhecer o que é gramatical e agramatical; embora ela não tenha
sido submetida a evidência negativa, isto é, ela consegue julgar estruturas
agramaticais, que nunca ouviu antes, logo, não há repetição.

Descartando a imitação como uma hipótese plausível para a aquisição, passemos agora
a outras hipóteses sobre o fenômeno em questão.

8 Sobregeneralização ocorre quando se aplica abusivamente uma regra, acreditando que a generalização é licenciada para todos
os casos, inclusive para as exceções. Nesse caso, não se considera erro do falante, mas apenas uma interpretação equivocada do
fenômeno com base nas regras que ele já assimilou.

45
CAPÍTULO 2
Hipóteses sobre aquisição

Hipótese behaviorista ou comportamentalista

Esta teoria, cujo principal expoente foi o psicólogo estadunidense B. F. Skinner


(1904-1990), defende que a aquisição, como os comportamentos em geral, é uma
espécie de condicionamento, baseada no esquema estímulo – resposta – reforço. Em
linhas gerais, essa abordagem pressupõe um monitoramento constante do adulto em
relação à fala da criança. Adicionalmente, o adulto proveria o estímulo que induziria
um determinando comportamento linguístico da criança, que se certa, obteria um
reforço positivo, como elogio ou premiação; e se incorreta, obteria um reforço
negativo, como a correção.

Esta hipótese apresenta várias falhas no que tange a aquisição de língua. Primeiramente,
a aquisição não é um condicionamento que se possa controlar; mais do que um
comportamento, a faculdade de linguagem (como vimos no capítulo 1) é um instinto.
Em segundo lugar, os adultos não estão monitorando a fala da criança dia e noite, 24
horas por dia, corrigindo cada “imperfeição”, elogiando cada palavra. Em terceiro lugar,
quando ocorre monitoramento, o adulto detém-se muito mais no conteúdo do que na
forma. Em quarto, felizmente, a criança não depende de correção para adquirir língua,
pois se dependesse do aval dos adultos para cada sentença que produzisse, a aquisição
seria muito mais lenta do que realmente é. Por fim, a hipótese comportamentalista
pressupõe que aprendemos a estruturar as sentenças, ouvindo e fixando a ordem dos
constituintes na oração. Assim, a sentença é vista como uma estrutura linear. Contudo,
sabemos que as relações entre os constituintes da sentença não são explicadas
linearmente, são antes de natureza hierárquica. Por exemplo, observe a sentença a
seguir:

a. Não só o João leu o artigo, como o comentou brilhantemente

Considerar que a formação da sentença é um fenômeno linear, aprendido pela frequência


de input a que temos acesso e que sabemos a ordem dos constituintes pelo reforço, não
explica como o falante nativo: a) associa as expressões correlativas “não só” e “como”
(que não estão vizinhas na cadeia da fala); b) infere que “João” está implícito na segunda
oração; c) infere que o clítico “o” refere-se ao termo “artigo”.

46
COMO OCORRE A AQUISIÇÃO? │ UNIDADE III

Hipótese construtivista

Essa abordagem, postulada pelo estudioso suíço da psicologia e da educação, Jean Piaget
(1896-1980), defende que a capacidade de linguagem está inserida dentre os domínios
cognitivos em geral. Assim, a linguagem aparece quando a criança supera o “estágio
sensório-motor”, por volta dos 18 meses, passando a outro estágio cognitivo, em que
sua mente já se encontra suficientemente desenvolvida para a capacidade simbólica de
representação. Deste modo, a língua seria o resultado da interação entre o ambiente e
o organismo: quando a criança atinge um estágio cognitivo em que percebe a distinção
entre o “eu” e o “outro”, começa a nomear e a interagir.

Note que essa hipótese concebe que a linguagem simplesmente aparece num
determinado estágio de desenvolvimento cognitivo da criança, mas as pesquisas
mostram que a capacidade de linguagem está presente desde a vida intrauterina. Além
disso, essa teoria parece não dar conta de dados específicos de aquisição de língua, uma
vez que, mesmo com menos interação com o ambiente, a aquisição “aflorará”.

Em síntese, há bons argumentos para supor que a capacidade de linguagem encontra-se


na carga genética do indivíduo. Sua manifestação ocorre posteriormente por conta de
limitações anatômicas (dos sistemas articulatório e auditivo) e cognitivas9.

Hipótese sociointeracionista
Enquanto a hipótese construtivista de Piaget considera a aquisição um processo
resultante da interação entre o meio e o indivíduo, a proposta do psicólogo soviético
Vygotsky (1896-1934), denominada sociointeracionista ou interacionismo social,
compreende a aquisição de língua como resultado da interação entre os indivíduos.

Martelotta (2010) relata em linhas gerais as ideias do teórico: para Vygotsky, linguagem
e pensamento têm origens genéticas distintas e esses dois extremos começam a se unir
por volta dos dois anos, antes disso, existem as fases pré-verbal relativa à linguagem e
a frase pré-intelectual relativa à inteligência prática. Ainda segundo o autor, por volta
dos dois anos, a fala da criança é egocêntrica, pois é a forma encontrada por ela de
racionalizar problemas. Com o tempo, a criança vai interagindo com outras crianças e
outros adultos e a fala egocêntrica vai se internalizando totalmente.

Nessa perspectiva, a interação com o outro é fundamental superar o estágio de fala


egocêntrica, mas já sabemos que a interação, ou melhor, a frequência do input, não
é condição necessária para a aquisição de língua. Lembre-se dos casos excepcionais
de aquisição tardia, quando a criança começa a manifestar linguagem bem depois
9 Reveja os argumentos a favor da capacidade humana inata para a linguagem na sessão Faculdade Humana de linguagem e
Aquisição de língua, na unidade 1.

47
UNIDADE III │ COMO OCORRE A AQUISIÇÃO?

dos dois anos. Nesses casos, seria imperativo prever que a criança que foi privada do
convívio social, ao receber input linguístico aos seis anos, por exemplo, desenvolveria
inicialmente fala egocêntrica, o que não foi constatado nas pesquisas. Além disso, a fala
egocêntrica também é bastante comum no adulto. Postular uma fase pré-intelectual
implica um raciocínio pouco desenvolvido até os dois anos; bem como a fase pré-verbal
implica que antes dela a capacidade linguística é extremamente limitada na criança.
Várias pesquisas da neurociência e da psicolinguística, desenvolvidas com metodologia
adequada e com aporte da tecnologia, demonstram que antes de falar, os bebês
apresentam capacidades cognitivas elevadas, como cálculo10.

Assim como a hipótese de Piaget, essa teoria pressupõe o “aparecimento” da linguagem


a partir de uma determinada idade, o que já é, por si só, um argumento bastante
problemático.

Hipótese da Gramática Universal

Essa teoria, formulada pelo linguista estadunidense Noam Chomsky desde meados da
década de 1950 e até hoje constantemente revista, fundamenta-se na ideia de que o ser
humano possui uma faculdade inata de linguagem (FL) e um dispositivo de aquisição
de linguagem, também inato. Ao longo deste material, muito se tem falado sobre
“dispositivo de aquisição de linguagem” ou “estruturas genéticas pré-determinadas”.
Pois bem, o tal dispositivo de aquisição de linguagem, geneticamente determinado, é
denominado Gramática Universal (doravante GU).

A GU é concebida como o estado inicial (Sº), comum a todas as línguas e a todos os


indivíduos. Segundo essa teoria, qualquer criança, independentemente da língua
dos pais ou do lugar em que nasce, já nasce com a gramática universal, pois é assim
denominada por ser a mesma para todos os indivíduos da espécie humana. Isso implica
afirmar que todo indivíduo nasce potencialmente capaz de adquirir qualquer língua.

A experiência age sobre o estado inicial (Sº) resultando na gramática de uma língua
particular, como o português, o francês, o alemão, o tupi etc. Conforme a criança
recebe o input de uma ou mais línguas, certos “mecanismos” da GU vão sendo ativados,
formando o conhecimento da língua. A esses mecanismos chamamos de Parâmetros.

Sendo assim, na Gramática Universal encontram-se disponíveis todas as possibilidades


de combinação de padrões de todas as línguas. À medida que determinados padrões
são ativados conforme o input fornecido, um parâmetro é estabelecido. Enquanto o
conjunto de Parâmetros forma a gramática de uma língua particular; os princípios
constituem as propriedades comuns a todas as línguas, de maneira que a GU dá conta
10 O tema Conhecimento e Biologia de Miriam Lemle será visto no próximo capítulo.

48
COMO OCORRE A AQUISIÇÃO? │ UNIDADE III

tanto da universalidade entre as línguas, por meio de Princípios, quanto da variação


entre elas, por meio dos Parâmetros. Devido à existência de Princípios universais e
Parâmetros particulares na GU, essa hipóteses também é conhecida como modelo de
Princípios e Parâmetros.

As línguas diferem apenas superficialmente, pois, em um nível mais profundo, possuem


o mesmo “molde”, as mesmas propriedades e mecanismos básicos, porém utilizando
estratégias distintas para expressá-los. Desse modo, essa concepção mentalista de
língua toma a aquisição como um processo de seleção de Parâmetros, ao mesmo tempo
em que aqueles Parâmetros não selecionados são deixados de lado. A aquisição de L1
seria então uma vida de mão dupla: marcação de parâmetros próprios da língua que se
adquire e “esquecimento” dos parâmetros alheios a essa língua. A aquisição de L2 seria
o “redescobrimento” dos parâmetros “esquecidos” na aquisição de L1.

Contudo, as línguas não variam indiscriminadamente. As possibilidades de variação


linguística são limitadas pela GU, pois o falante seleciona uma marcação dos Parâmetros
disponíveis, mas um Princípio nunca é violado. Ademais, pequenas alterações no
arranjo dos Parâmetros de uma língua podem afetar outros Parâmetros, “já que os
efeitos proliferam através do sistema” (op.cit., p. 25). O fato de que o falante não viola
Princípios e usa o sistema com destreza revela muito sobre o tipo de conhecimento que
ele possui da própria língua.

Como a criança reconhecer o valor de


determinado Parâmetro em sua língua?

Para abordar essa questão, vamos usar aqui uma metáfora, de autoria da professora
Dra Ruth E. Vasconcellos Lopes. O problema com que a criança se defronta para frisar
o valor de um parâmetro é similar ao que nós temos quando compramos um aparelho
eletrônico (um secador de cabelo ou um micro-ondas) e vamos ligá-lo na tomada.
Normalmente tem uma chavinha no aparelho: de um lado dela está escrito “220V”,
do outro está escrito “110V”. Pode ser que a chavinha venha posicionada no meio, isto
é, nenhum dos dois valores está acionado, mas daí se a gente ligar não acontece nada,
o aparelho não funciona. Temos então que escolher uma das duas opções para poder
usar o aparelho. Qual é a voltagem na sua região? Alguém que mora na região é que
deve informar isso a você, porque só olhando pra tomada você não vai saber. Se na sua
região a voltagem é 220V, escolhendo a posição 110V seguramente você vai queimar
o aparelho (o casos contrário, isto e, ligar o aparelho 220V na tomada 110V talvez não
estrague o aparelho, mas é provável que ele simplesmente não funcione).

49
UNIDADE III │ COMO OCORRE A AQUISIÇÃO?

Vejamos como essa metáfora nos ajuda a entender o problema da criança frente à
fixação de parâmetros. Não sabemos bem como estão os parâmetros logo no início
da aquisição, mas uma coisa é certa: se estão na posição neutra, nada vai funcionar!
A criança vai precisar escolher um valor para os parâmetros e isso vai depender de
qual é o input que ela tem. Em princípio, os dados que vão servir para a fixação do
parâmetro devem ser abundantes, isto é, alguém estará dizendo ao lado dela qual é a
voltagem da tomada das mais variadas formas. Um mesmo parâmetro é responsável
por diferentes propriedades, por isso, a rigor a crianças têm informações vindas de
diferentes fontes, todas convergindo com o mesmo valor. Não é muito claro se a criança
presta atenção a todas ou se existe uma delas (que chamamos de dado desencadeador
ou “trigger”) que vai ser responsável pela fixação daquele parâmetro. Uma coisa, no
entanto, é certa: essa informação tem que estar acessível bem facilmente nos dados.
Curiosamente, as crianças parecem todas prestar atenção aos dados relevantes para a
fixação do parâmetro mais ou menos na mesma época.

Fragmento extraído de: GROLLA, E.; SILVA, M.C.F. Para conhecer: aquisição de
linguagem. São Paulo: Contexto, 2014. pp. 87-88. (com adaptações)

Da perspectiva internalista, interessa entender a faculdade de linguagem, mais


especificamente, investigar como se dá a passagem do estado inicial para o estado
atingido (ou estado estável, aquele em que o falante já domina com destreza a sua
língua), o que não é diretamente passível de observação. Porém, podem-se investigar
os dados, que fornecem evidências sobre os mecanismos internos da mente e o modo
como operam. Entretanto, tais mecanismos e as propriedades mais elementares das
línguas são “inconscientemente pressupostas por toda parte” (CHOMSKY, 1998, p.22)
(inclusive nos estudos da linguagem), graças ao conhecimento instintivo do qual o falante
dispõe, denominado competência, conceito de extrema importância para esta pesquisa
e que será explorado mais detalhadamente na próxima seção. Esse conhecimento é de
tal modo intuitivo e natural que parece óbvio ao falante dispensar explicações sobre
por que determinada língua é como é e funciona de determinada maneira, mas, para o
especialista, é fundamental “estranhar” os dados e investigá-los de um ponto de vista
externo – do ponto de vista de um marciano, nas palavras de Chomsky (op.cit., p.23).

Estudo de caso: aquisição do sujeito nulo

O parâmetro do sujeito nulo é, sem dúvida, um dos mais pesquisados e difundidos. Em


linhas gerais, há línguas que marcam positivamente o parâmetro do sujeito nulo, isto é,
a posição de sujeito pode não ser preenchida (ex.: inglês e francês); e outras em que tal
parâmetro pode ser marcado negativamente, ou seja, o sujeito não pode ser nulo, deve
ser obrigatoriamente preenchido (ex.: italiano e português brasileiro, PB).

50
COMO OCORRE A AQUISIÇÃO? │ UNIDADE III

Crianças de dois a três anos e meio de idade começam a produzir sujeitos nulos
(SN’s), mesmo em línguas que marcam esse parâmetro negativamente, como o inglês,
o francês e o alemão. (ORFITELLI; HYAMS, 2012). Em línguas não pro-drop (cujo
sujeito tem que ser necessariamente preenchido) como estas, há contextos específicos
que permitem o uso do nulo, como o imperativo no inglês, por exemplo, mas os sujeitos
nulos produzidos pelas crianças da faixa etária em questão ocorrem em contextos em
que essa estrutura não é marcada positivamente na língua. Conforme vimos no subitem
anterior, uma explicação para este fenômeno seria a fixação de parâmetros por trigger:
até os três anos e meio de idade, em média, o parâmetro do sujeito nulo ainda não
estaria marcado, por isso o uso dessa estrutura em línguas não pro-drop; a partir da
fase em que esse parâmetro é marcado, então a criança começa a produzir nulos apenas
nos contextos em que eles são licenciados na língua em questão, se for o caso.

No PB, é unânime entre os pesquisadores do SN que o preenchimento do sujeito é cada


vez maior, fazendo com que essa língua não seja mais considerada pro-drop (língua em
que o sujeito pode ser nulo). A criança brasileira em idade escolar possui, portanto, o
parâmetro do SN marcado negativamente para muitos contextos. Segundo Magalhães
(2000), entretanto, a escrita não acompanhou tal inovação da fala, o que provoca uma
inadequação no início do processo de escrita de textos: o aluno usa o sujeito nulo/
preenchido característico da fala também na escrita; como os contextos de ocorrência
dessa estrutura são diferentes nos dois ambientes, esse uso é inadequado. Ainda
segundo a autora, o uso adequado do sujeito nulo/ preenchido na escrita só é atingido
nos dois últimos anos do Ensino Fundamental.

Fragmento extraído de: SANTOS, Edite Consuêlo da Silva. O papel do input no


aprendizado do uso do sujeito nulo na escrita por alunos da educação básica. 2013.
Dissertação (mestrado) – Universidade de Brasília, Instituto de Letras, Departamento
de Linguística, Português e Línguas Clássicas, Programa de Pós-Graduação em
Linguística. pp. 48-49. (com adaptações)

51
CAPÍTULO 3
Métodos e técnicas da pesquisa em
aquisição

Os métodos empregados nos estudos de aquisição de língua são bem variados,


contemplando desde métodos clássicos como a sucção não nutritiva (chupeta) e a
fixação do olhar do bebê aos modernos equipamentos de ressonância magnética.
A escolha da metodologia adequada adapta-se à dimensão da linguagem que será
investigada – entendimento ou produção – e envolve, não raro, o empenho de uma
equipe multidisciplinar composta por linguistas, psicólogos e neurologistas.

Cabe ressaltar que a capacidade humana da linguagem está presente antes mesmo do
nascimento. Pesquisas nessa área comprovam que já no último trimestre da gestação, o
feto demonstra habilidades de percepção dos contornos prosódicos, graças à maturidade
do sistema auditivo, outrora incapaz de captar certos sons por conta do barulho no
meio intrauterino; a essa altura, encontra-se suficientemente preparado para distinguir
os estímulos linguísticos dos demais estímulos sonoros. Tais pesquisas utilizam como
metodologia o monitoramento da reatividade cardíaca do feto à mudança de sons por
meio de um alto-falante colocado na barriga da mãe.

Do nascimento até os quatro meses, pesquisas empregando o método da sucção não


nutritiva revelam que esses bebês percebem contrastes fonéticos. Outro método de
percepção precoce constatou, por meio do movimento de rotação de cabeça, que após
os quatro meses, esses bebês percebem contrastes entre sílabas. Note-se que essa
“consciência” linguística precoce é aqui tomada como percepção, não se fala ainda
em entendimento, uma vez que na tenra idade é muito complicado estabelecer uma
metodologia adequada à situação de fragilidade dos bebês, que possa atestar algum
grau de entendimento. No entanto, é claramente visível uma capacidade de percepção
como os primeiros indícios de uma predisposição para a aquisição de língua desde a
mais tenra idade.

O entendimento de fato é pesquisado em crianças de quatro a trinta meses, em média,


e pode ser investigado tanto do ponto de vista do resultado do processamento
(off-line), quanto do processamento em curso (on-line). Como exemplos de técnicas
off-line, podemos citar a mímica das ações e o apontamento de imagens. A primeira
consiste em solicitar à criança que reproduza com brinquedos a ação apresentada na
frase do pesquisador. A segunda, como o próprio nome sugere, exige que a criança
aponte, entre um conjunto de imagens, aquela que corresponde à frase pronunciada

52
COMO OCORRE A AQUISIÇÃO? │ UNIDADE III

pelo pesquisador. Ao cumprir corretamente a tarefa, infere-se que houve sucesso


no entendimento da mensagem. Todavia, uma limitação das técnicas off-line reside
no fato de que nem sempre a ausência de ação implica a ausência de entendimento.
Além disso, a maior desvantagem desse método está nas exigências metalinguísticas
demandas das crianças, pois é necessário que ela cumpra uma tarefa que extrapola a
capacidade de entendimento em si. Em outras palavras, mesmo que o entendimento
tenha sido efetivado, é exigido que a criança realize uma outra atividade que não
depende diretamente do seu entendimento sobre a mensagem.

Nesse aspecto, as técnicas on-line apresentam uma ampla vantagem em relação


aos métodos off-line, já que, ao analisar o entendimento enquanto ele acontece,
aquelas técnicas são mais confiáveis. As técnicas on-line recorrem a equipamentos
automatizados e têm o benefício de não demandarem uma ação específica por parte do
bebê. Uma dessas técnicas, por exemplo, consiste na medição do tempo de fixação do
olhar do bebê na tela com a imagem corresponde à mensagem transmitida. Nesse caso,
a reação do bebê ao estímulo da imagem é um comportamento automatizado, ou seja,
olhar fixamente por mais tempo a uma imagem compatível com o enunciado é uma
reação natural do bebê que compreende dado enunciado. O mesmo raciocínio se aplica
aos movimentos oculares dos bebês em relação a enunciados e estímulos visuais.

Dentre as técnicas on-line, aquelas que envolvem imageamento cerebral recebem


maior destaque por serem confiáveis, de fácil aplicação, seja no entendimento, seja na
produção linguística, e não invasivas. Aplicadas em sujeitos adultos, a tomografia e
a ressonância são empregadas nos estudos da cognição em geral e no tratamento de
patologias. Nas pesquisas em aquisição de língua, a atividade elétrica cerebral relaciona
os diferentes níveis de processamento linguístico – fonológico, lexical, sintático e
semântico – aos componentes dos potenciais evocados, os quais são medidos pela
amplitude, polaridade, regiões do crânio afetadas e latência (medição de tempo).

Finalmente, a produção é investigada basicamente pelos métodos de coleta de corpus


ou pela produção induzida em situação experimental. O corpus pode ser extraído
dos dados de uma única criança gravados por um longo período de tempo, corpus
longitudinal, ou por dados de várias crianças coletados por um período determinado
do desenvolvimento, corpus transversal.

A pesquisa de corpus apresenta a vantagem de fornecer dados contextualizados,


contemplando situações reais de produção, o que favorece uma análise ampla e
minuciosa dos fenômenos. Por outro lado, apresentam restrições de custo e tempo: as
horas de gravação multiplicam-se na transcrição. Mesmo assim, é possível que horas
e horas de gravação de fala espontânea forneça poucos dados referentes ao objeto de
estudo em questão.

53
UNIDADE III │ COMO OCORRE A AQUISIÇÃO?

A inclusão dos dados obtidos em pesquisas de corpus em bancos de dados automatizados


é fundamental para o registro, a circulação e o compartilhamento de dados, que
podem ser aproveitados em outras pesquisas, além da comodidade e facilidade da
automatização da própria análise por programas específicos. Esse tipo de pesquisa, por
ser compartilhada pela comunidade científica, obedece a uma série de procedimentos
de padronização de coleta e transcrição de dados.

Complementar à análise de corpus, geralmente se recorre a questionários submetidos


aos pais sobre o comportamento linguístico das crianças. São listas que contam com
a percepção dos pais sobre o entendimento dos filhos sobre vários itens lexicais de
diversas categorias gramaticais.

Outro método de investigação da produção linguística é a chamada produção induzida


em situação experimental. Ao contrário da coleta de corpus, que se dá em situações de
fala espontânea, esse tipo de técnica cria uma situação monitorada, que leva a criança
a produzir a estrutura investigada. Obviamente, essa técnica é mais adequada quando
o objetivo da pesquisa é encontrar um fenômeno específico, que em um corpus pode
rarear ou nem mesmo aparecer. Um exemplo desse tipo de técnica acontece nos testes
com pseudopalavras11 (que obedecem às propriedades fonológicas da língua) associadas
a imagens. A criança é induzida a empregar a pseudopalavra em diversos contextos,
obedecendo às propriedades da categoria que essa palavra se encaixaria. Deste modo,
é possível testar em crianças a partir dos três anos a aquisição da concordância e das
marcas temporais, por exemplo.

Para ilustrar, apresenta-se a pseudopalavra do português maco como sendo o nome de


um animal, por exemplo, de um gato. Em seguida, apresenta-se a figura de dois gatos.
A depender da resposta da criança com ou sem a flexão de número dessa língua na
pseudopalavra, infere-se se a aquisição dessa estrutura já ocorreu.

Conhecimento e biologia
Miriam Lemle

Departamento de Linguística, Universidade Federal do Rio de Janeiro

Como uma primeira informação sobre o tema a ser tratado, cabe dizer que nem tudo
aquilo que sabemos é aprendido — se entendermos ‘aprender’ na acepção de “tomar
conhecimento”, ou “reter na memória, mediante o estudo ou a observação”, como
consta do Dicionário Aurélio.

11 Veja também o exemplo do dado (1) no primeiro capítulo, que contém apenas pseudopalavras: “A estrumpfina estrumpfcovou
os estrumpfelos estrumpfdosos.”

54
COMO OCORRE A AQUISIÇÃO? │ UNIDADE III

Um exemplo disso é a descoberta de que os bebês nascem sabendo contar até três e
somar um e subtrair um, desde que a quantidade envolvida na operação não ultrapasse
três. Esses estudos basearam-se na medição do nível de atenção que o bebê manifesta
na observação visual. Os pesquisadores usaram dois instrumentos: uma filmadora, para
medir o tempo de fixação do olhar, e uma chupeta ligada por um fio a um aparelho que
registra velocidade e intensidade dos movimentos da boca — os bebês sugam a chupeta
depressa e com força se estão interessados, e devagar e fracamente se entediados.

No estudo, um bebê de dois meses fica diante de uma mesa onde há um pequeno palco.
Dois bonecos são postos no palco e, em seguida, ocultos por uma tela. Observado pelo
bebê, um pesquisador põe a mão atrás da tela e retira um dos bonecos. Sai a tela, e o
bebê vê que sobrou apenas um. Como dois menos um é igual a um, o bebê identifica a
operação como “óbvia e pouco interessante”, e suga a chupeta de modo lento e fraco. Em
outra sessão, o pesquisador tira um boneco de trás da tela, mas, quando esta é afastada,
veem-se dois bonecos no palco, e a chupeta move-se de maneira afobada e forte. É
como se o bebê pensasse: “Dois menos um dá dois? Muito estranho…” As pesquisas
revelaram que os bebês de um a três meses sabem a tabuada de somar e a de diminuir.
Ficam frios se o resultado esperado é confirmado e agitados quando isso não acontece.

A que conclusão isso conduz? Há conhecimento aritmético inato, sem ensinamento e


sem experiência, pré-embutido na mente. Tais pesquisas são descritas no livro Ce que
savent les enfants (O que sabem as crianças?), do espanhol Jacques Mehler e do francês
Emmanuel Dupoux, ambos psicólogos. O livro também relata estudos semelhantes
segundo os quais os bebês nascem sabendo fonética, constatação feita usando-se o
mesmo método da chupeta.

Acontece que os bebês adoram ouvir vozes humanas, mas seu interesse é maior por
sons variados. Sons repetidos logo se tornam entediantes. No estudo, uma voz, saída
de um gravador colocado próximo ao bebê, diz a sílaba [ba], e o bebê suga fortemente
a chupeta, como se dissesse: “Interessante!” Se a sílaba é repetida, o bebê mostra tédio:
“Isso perdeu a graça”. Dada outra sílaba, [pa], a chupeta é reanimada. “Isso é novidade”.
Depois ele ouve: [fa]. Chupeta ativada de novo. Muitos testes desse tipo evidenciam que
a repetição de sons provoca sucção fraca (tédio) e sons diferentes levam a sucção forte
(interesse), e que os resultados não são afetados pela origem étnica ou a raça do bebê.
Todos os bebês de até três meses revelaram-se foneticistas exímios, interessando-se
por sons com um possível valor fonológico distintivo em qualquer língua do mundo.

Entre três e quatro meses de idade, porém, há uma mudança notável: a acuidade auditiva
se estreita e os bebês só continuam a notar os contrastes entre sons que sejam funcionais
na língua falada pelos que os cercam. Perdem a capacidade de reconhecer contrastes

55
UNIDADE III │ COMO OCORRE A AQUISIÇÃO?

fonéticos distintivos de outras línguas. Esse mecanismo de restrição das capacidades


de percepção é chamado de “aprendizado pelo desaprendizado” (learning through
unlearning) — algo bem diferente do que em geral entendemos como “aprender”.

Módulos pré-programados

Outro campo de pesquisa sofisticado, que usa bebês e crianças bem pequenas como
cobaias, é a análise do estímulo visual. De que aspecto da percepção visual, por exemplo,
um bebê extrai a noção de “objeto”? De uma silhueta, da homogeneidade na cor e
textura ou do movimento conjugado das partes? A busca das respostas é baseada, mais
uma vez, na medição do interesse. Uma percepção já esperada, portanto óbvia, provoca
tédio, enquanto uma visão inesperada atrai a atenção.

Pesquisadores norte-americanos, em 1997, usaram uma tela da qual surgiam duas


pontas de varas, uma de cada lado. A questão era saber se um bebê concebia as duas
pontas como partes de uma só vara parcialmente escondida ou como pontas de varas
diferentes. Se as pontas se moviam juntas por trás da tela, o bebê revelava tédio quando,
retirado o obstáculo, surgia apenas uma vara, mas ficava surpreso se visse duas varas.
Já se as pontas não eram movidas antes, o bebê esperava encontrar duas varas atrás da
tela, espantando-se quando via apenas uma. Experiências assim permitiram concluir
que os bebês identificam um objeto único pelo movimento conjunto de suas partes.

Outra noção de física que os bebês já trazem ao nascer é a de que os objetos não podem
interpenetrar-se: um painel que cai sobre um cubo não pode atravessá-lo, objetos não
passam através de paredes, nem por orifícios pequenos demais, e um objeto move-se em
uma trajetória contínua, não podendo sumir em um ponto e reaparecer em outro. Isso
fica claro em estudos que usam duas cortinas dispostas lado a lado, com uma brecha
entre elas: se um objeto inicia uma trajetória à esquerda das telas e some atrás delas,
e um objeto idêntico sai à direita das telas, sem ter sido visto passando pela brecha, o
bebê assumirá que existem dois objetos, e ficará surpreso se, retiradas as cortinas, só
achar um. Se, ao contrário, o objeto for visto passando pela brecha, o bebê acreditará
que há apenas um, e ficará surpreso se, levantadas as telas, aparecerem dois.

Outros preconceitos que o módulo-visão da mente humana já traz embutidos são o


princípio da coesão (um objeto é um todo coeso: é absurdo ver uma mão pegar um objeto
aparentemente único e carregar só uma parte) e o princípio do movimento por contato
(os objetos movem um ao outro apenas por contato: não pode haver ação à distância).
Outro módulo cognitivo, distinto do módulo da visão de objetos físicos, é dedicado à
compreensão de agentes animados: testes com objetos que se movem mostram que
crianças bem pequenas os concebem como bichos e não como coisas.

56
COMO OCORRE A AQUISIÇÃO? │ UNIDADE III

As experiências com crianças demonstram a existência de um setting default (um


sistema especializado em lidar com certas informações) nas capacidades cognitivas,
anterior à experiência. Baseada nisso, a teoria psicológica moderna assume que a mente
não é uma tabula rasa, e procura descobrir que princípios cognitivos estão instalados
a priori em cada espécie animal. Essa vertente também é chamada de “psicologia
vertical”, por oposição a uma “psicologia horizontal”, segundo a qual a capacidade
intelectual seria indivisa, ou seja, a mente se dedicaria ora a uma, ora a outra tarefa.
A teoria do psicólogo suíço Jean Piaget (1896-1980), por exemplo, não é modular. Ele
propõe uma autoconstrução do conhecimento pela criança. Segundo ele, haveria uma
capacidade cognitiva genérica, e sua aplicação aos diferentes tipos de percepções seria
autoinstaurada por etapas, da percepção sensório-motora para a espacial, para a verbal
concreta, para as abstrações da linguagem e para operações matemáticas. A criança de
Piaget depende em grau muito maior do recebimento de informações do meio ambiente.

As ciências da cognição, ao contrário, vêm descobrindo uma criança com módulos


especializados geneticamente programados. Os módulos guiam-se por princípios
inatos que computam a seu modo os dados captados pelos órgãos sensoriais, e cada
módulo dá atenção a um tipo de dados, faz com eles operações específicas e entrega os
resultados a outro módulo. Há interfaces entre módulos, como, por exemplo, entre o
módulo visual e o de percepção do corpo (“Vou escorrer o macarrão com cuidado para
não me queimar”), o visual e o social (“Aquela pessoa deve ser uma autoridade”) e assim
por diante. É evidente que a maior parte dessa computação não emerge à consciência.
Certas patologias podem afetar seletivamente algumas operações da mente e levar
a disfunções estranhas: afasias (limitações no entendimento e uso da linguagem),
agnosias (limitações na compreensão de estímulos recebidos) e casos de genialidades
peculiares conhecidas como idiots savants. O psiquiatra-escritor inglês Oliver Sachs
tem livros fascinantes sobre os esquisitos sintomas decorrentes de disfunções pontuais
nos módulos cognitivos.

Fragmento extraído de:

LEMLE, Miriam. Conhecimento e biologia. In: Ciência Hoje. Vol. 31. Fascículo 182. SBPC,
2002.

Disponível também em: <http://cienciahoje.uol.com.br>. Acesso em 28 mar. 2015.

Assista ao vídeo de Patrícia Kuhl: a genialidade linguística dos bebês, disponível


em: <http://www.ted.com/talks/patricia_kuhl_the_linguistic_genius_of_
babies?language=pt-br>

57
Para (não) Finalizar

Chegamos ao fim do nosso breve incurso nos fenômenos de aquisição e aprendizagem.


Nosso intuito primordial foi propiciar uma visão ampla e algumas respostas (provisórias,
como quase tudo em ciência) para as questões mais proeminentes quando se trata de
aquisição.

Obviamente, devido ao caráter panorâmico deste material, muitas outras temáticas


pertinentes ficaram de fora, como as teorias sobre a “aquisição” de L2 e a aquisição
atípica por crianças com algum distúrbio, que afeta a capacidade de linguagem, como a
Síndrome de Down e a Síndrome de Savant. Há também inúmeros estudos de caso, que
explicam como determinado aspecto da gramática é adquirido.

Vale a pena buscar mais fontes sobre o assunto, pois este foi apenas o primeiro passo.
De maneira alguma, pretendemos esgotar o tema. Igualmente, esperamos ter fornecido
as ferramentas indispensáveis para que você possa mergulhar mais profundamente
nesta vasta área, em franca expansão!

58
Referências

BENVENISTE, E. Problemas de linguística geral I. 5. ed. São Paulo: Pontes, 2005.

CHOMSKY, N. Linguagem e mente: pensamentos atuais sobre antigos problemas.


Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998.

_____________ Novos horizontes no estudo da linguagem. In: Delta, São Paulo:


PUC-SP, vol.13, Special Issue, 1997. Disponível em: <http://www.scielo.br> Acesso
em: 26 mar. 2015.

DUARTE, I. Uso da Língua e Criatividade. In: Fonseca, Duarte e Figueiredo


(eds.): A linguística na formação do professor de português. Porto: Centro de
Linguística da Universidade do Porto, 2001. Disponível em: <http://ler.letras.up.pt>
Acesso em: 26 mar. 2015.

GROLLA, E.; SILVA, M. C. F. Para conhecer: aquisição de linguagem. São Paulo:


Contexto, 2014.

HAUSER, M.D.; CHOMKY, N.; FITCH, W. T. The Faculty of language: what is it, who
has it, and how did envolve? Science, v. 298, nov. 2002.

KAIL, M. Aquisição de linguagem. São Paulo: Parábola, 2013.

KATO, M. A. A gramática do letrado: questões para a teoria gramatical. In: MARQUES,


M. A. et al. (Orgs.). Ciências da linguagem: trinta anos de investigação e ensino.
Braga: CEHUM, 2005.

LIMA JUNIOR, R. M. A hipótese do período crítico na aquisição de língua materna. In


Revista (con)textos linguístico, Vitória, vol. 7, no 9, 2013. Disponível em: <http://
periodicos.ufes.br/contextoslinguisticos>. Acesso em: 26 de março de 2015.

MARCILESE, M.; CORRÊA, L. M. S.; AUGUSTO, M. R. A. Recursividade na sintaxe da


língua e na aritmética: interdependência ou independência entre domínios? Um estudo
experimental. In Letrônica, Rio de Janeiro, vol. 7, pp. 250-277, 2014. Disponível em:
<http://www.ufjf.br/nealp/publicacoes> Acesso em: 26 mar. 2015.

MARTELOTTA, M. E. (org). Manual de linguística. São Paulo: Contexto, 2010.

PINKER, Steven. O instinto da linguagem: como a mente cria a linguagem. São


Paulo: Martins Fontes, 2002.

59

Você também pode gostar