Você está na página 1de 10

Cardoso

ARTIGOHSP
de&revisão
Freitas PM

Aplicação do modelo da dupla


rota no diagnóstico da dislexia:
Revisão sistemática
Heloísa dos Santos Peres Cardoso; Patrícia Martins de Freitas

RESUMO - A dislexia é um transtorno de aprendizagem da leitura que


pode afetar a escrita, entretanto, a identificação desse transtorno ainda
é muito imprecisa. O objetivo desse estudo foi verificar a aplicação do
modelo neurocognitivo da dupla rota nos estudos sobre diagnóstico, através
de revisão sistemática da literatura. Os descritores utilizados: dislexia,
leitura, dupla rota; avaliação da dislexia; diagnóstico da dislexia, nas bases
de dados Medline, SciELO e Google Acadêmico (2013-2018). A amostra
foi constituída de 52 estudos e 40 aplicaram o modelo da dupla rota no
diagnóstico. Os resultados mostraram que os instrumentos mais utilizados
foram Tarefa da Consciência Fonológica (20%), Tarefa de Leitura de Palavras
e pseudopalavras (15%); as funções cognitivas mais investigadas foram
a leitura (30%), e consciência fonológica (25%). Os estudos mostraram
evidências empíricas do uso do modelo, demonstrando que déficits nos
componentes do processamento fonológico e lexical explicam a presença
da dislexia, contribuindo para o diagnóstico.

UNITERMOS: Diagnóstico. Dislexia. Modelo Neurocognitivo.

Heloísa dos Santos Peres Cardoso – Mestranda do Pro­ Correspondência


grama de Pós-Graduação em Ensino PPGEn, Uni­ Patrícia Martins de Freitas
versidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), Rua: Hormindo Barros, 58 – Quadra 17 – Lote 58
Vitória da Conquista, BA, Brasil.
Bairro Candeias-Vitória da Conquista-BA, Brasil
Patrícia Martins de Freitas – Doutora em Ciências da
Saúde pela Faculdade de Medicina da Universidade CEP 45.029-094 – E-mail: pmfrei@gmail.com
Federal de Minas Gerais(UFMG), Professora Associada
da Universidade Federal da Bahia, Campus Anísio
Teixeira, Vitória da Conquista, BA, Brasil.

Rev. Psicopedagogia 2019; 36(111): 368-77

368
Dupla rota no diagnóstico da dislexia

INTRODUÇÃO elas as mais frequentemente citadas são: área


A dislexia é definida como uma disfunção de Wernicke, giro angular, giro fusiforme1.
neu­rocognitiva, que ocorre em crianças com A dislexia possui uma prevalência entre 5%
capacidade intelectual típica, sem deficiência a 10%7. No Brasil, Lima e Silva8 realizou uma
sensorial e com suporte educacional adequado, pesquisa com alunos do 3º ano de escolas par-
mas que não conseguem alcançar ou realizar ticulares e constatou prevalência de 12,1%. Na
adequadamente a habilidade para ler e escrever1. Índia, um estudo realizado com crianças entre
As consequências da dislexia para o desen- 7 e 12 anos constatou a prevalência de 13,67%9.
volvimento escolar ocasionam lacunas no pro- Em relação à prevalência do sexo, os resultados
cesso de aprendizagem, com maiores chances de quatro estudos epidemiológicos mostraram
para repetência ou mesmo abandono precoce que dificuldades de leitura estão presentes
dos estudos. A dislexia afeta as habilidades de mais em meninos que em meninas10. No estudo
leitura interferindo em diferentes componen- realizado na Índia citado acima, em relação ao
tes da leitura como a fluência ou velocidade, sexo, a prevalência da dislexia foi de 19% no sexo
as trocas fonológicas, falhas na compreensão, masculino e 8,5% no sexo feminino9.
erros lexicais, que podem ser apresentados na O diagnóstico da dislexia é complexo e de­
leitura e em muitos casos na escrita2. Na escrita pende da avaliação de diversas funções cogni­
os erros podem ser ortográficos, como omissões, tivas, além da leitura e escrita. Para realizar
adições, ou troca de vocábulos, e ainda confusão o diagnóstico da dislexia, é necessário que a
na sequência dos sons3. Ao avaliar os aspectos criança seja exposta à aprendizagem da leitura
das funções executivas em crianças com disle- de forma adequada. Portanto, o diagnóstico pre-
xia, os resultados mostraram que estas crianças coce geralmente ocorrerá após o primeiro ano da
possuíam habilidades inferiores em tarefas de alfabetização3. Como sua principal característica
memória de trabalho4. é a dificuldade de leitura, é necessário aguardar
Um estudo investigou a relação de déficits a finalização da etapa de alfabetização para rea-
cognitivos de dislexia em famílias com e sem lizar a avaliação e possível diagnóstico3.
his­tórico de dislexia e os resultados mostraram Segundo a Associação Brasileira de Disle-
uma forte associação entre consciência fonêmica xia (ABD)11, na realização do diagnóstico duas
e repetição de pseudopalavras com dificuldade etapas devem ser analisadas: a de exclusão de
de alfabetização e histórico familiar de dislexia5. outras dificuldades (deficiências visuais e audi-
A evidência sobre a natureza neurobiológica tivas) e a do diagnóstico diferencial da dislexia,
da dislexia tem sido produzida por estudos de alguns sintomas relevantes importados do Ma-
genética e neuroimagem funcional que iden- nual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos
tificam o contraste entre as áreas ativadas em Mentais (DSM-5)12. A dislexia possui comor-
pessoas com habilidade de leitura desenvolvida bidades com outras desordens com alto grau de
e a hipoativação dessas áreas em pessoas com a sobreposição. O transtorno de Déficit de Atenção
dislexia1. As áreas identificadas com hipoativa- e Hiperatividade e a Discalculia são alterações
ção foram áreas temporais basais bilaterais, giro do neurodesenvolvimento que também têm
angular, giros temporais médio e superior para alterações no processamento fonológico e com
integração intermodal e processamento fonoló- manifestações equivalentes à dislexia13.
gico, situadas no hemisfério esquerdo6. Foram O modelo dimensional baseado em sinais e
identificadas hipoativação na área de linguagem sintomas não analisa os componentes cognitivos
perisilviana diminuídas ou simétricas6. Por meio que compõem o modelo de desenvolvimento da
de estudos de neuroimagem funcional têm sido leitura. A análise modular oferecida pelo modelo
identificadas falhas de ativação em áreas que são cognitivo neuropsicológico da leitura pode ser
tipicamente ativadas durante a leitura, dentre uma alternativa para o diagnóstico do transtorno

Rev. Psicopedagogia 2019; 36(111): 368-77

369
Cardoso HSP & Freitas PM

da leitura e da escrita. A aplicação do modelo a leitura é consideravelmente influenciada pela


cognitivo conhecido como dupla rota utiliza um quantidade de letras que a palavra possui, isso
mapa da arquitetura funcional da leitura, de- é conhecido como efeito de extensão. As pa-
monstrando quais são os componentes e sua ope- lavras em que as transformações de grafemas
racionalização durante a leitura de palavras14. em fonemas não seguem as regras (grafia-som)
Com base no modelo teórico de processa- dificultam a sua leitura precisa, isso recebe o
mento da leitura, podemos dizer que o pro- nome de efeito de regularidade. Isso explica a
cessamento da leitura é traduzido como um transformação de grafema em fonemas em pa-
modelo constituído de componentes que forma lavras regulares, que seguem regras, o mesmo
duas estratégias: a fonológica (rota fonológica), não acontece com palavras irregulares16.
desenvolvida na fase alfabética; e a lexical (rota Para Frith18, analisar os tipos de erros basea-
lexical), desenvolvida na fase ortográfica15. dos no modelo cognitivo de dupla rota possibilita
A rota lexical é necessária para realizar lei- investigar os vários tipos de dificuldades na
tura de vocábulos conhecidos que já estavam leitura. Alguns sinais precisam ser considerados
armazenados na memória ortográfica, em função na realização do diagnóstico da dislexia: histó-
de práticas repetidas de leitura. Esse movimento ria familiar; atrasos na fala; atraso na aquisição
é chamado de sistema de reconhecimento visual da leitura e escrita; sintomas de ansiedade na
das palavras ou léxico de input visual. Na rota realização de testes ou provas; problemas na so-
lexical, palavras que ocorrem com frequência são letração; capacidade cognitiva elevada que não
reconhecidas automaticamente, diferentemente justifica o problema na leitura e escrita; entende
de palavras que ocorrem com menor frequência; a informação principal do texto, mas não lembra
esse fenômeno recebe o nome de efeito de fre- das particularidades; confusões de letras com
quência. As pseudopalavras, por sua vez, não diferente orientação espacial (b/d); alteração
são reconhecidas facilmente como as palavras de fonemas surdos por sonoros, ou o contrário;
reais, esta é uma característica presente na rota dificuldades com rimas; transposição e/ou adi-
lexical e recebe o nome de efeito de lexicalidade. ção de fonemas; substituições de vocábulos com
Isso explica o fato de palavras conhecidas arranjos semelhantes; segmentação incorreta em
possuírem unidades de reconhecimento no lé- frases; problemas para compreender o texto lido,
xico de entrada visual, e o mesmo não acontece além de leitura lenta e silabada19.
com pseudopalavras16. Oliveira et al.17 realiza- Salles & Parente20 realizaram uma pesquisa
ram pesquisa com crianças do segundo ao quinto com crianças de segundo e terceiro ano, com
ano. Esse estudo mostrou que a rota lexical foi objetivo de investigar qual rota era mais utilizada.
mais utilizada por crianças do quarto e quinto Os resultados mostraram que, nestas séries, a
ano independentemente da criança estudar rota fonológica está mais avançada e, portanto,
em escola pública ou particular. Segundo estas mais empregada; crianças que empregavam a
autoras, a partir do 4o ano a criança já adquiriu rota lexical apresentaram rendimento inferior
um maior conhecimento da ortografia, dando-lhe na leitura. As autoras sugerem que este modelo
condições de retomada espontânea das palavras, cognitivo de leitura permite investigar e dife-
recorrendo menos à rota fonológica17. renciar a capacidade de leitura de crianças com
Para a leitura de novos vocábulos, usa-se a desempenho padrão daquelas com problemas na
rota fonológica. Após a exposição da palavra, é leitura e estas informações poderão ser usadas
feita a verificação dos grafemas, fragmentando em programas que beneficiem crianças com difi-
em microunidades (grafemas e morfemas), unin- culdades na leitura20. Quando existe dificuldade
do-os aos seus sons correspondentes. Nessa rota, em ler palavras conhecidas ou não, ou em ler
grafemas transformam-se em fonemas permi­ palavras que não seguem regras grafia-som, isso
tindo um output fonológico16. Na rota fonológica, pode indicar em qual das rotas a dificuldade está

Rev. Psicopedagogia 2019; 36(111): 368-77

370
Dupla rota no diagnóstico da dislexia

presente. E qualquer disfunção em uma rota, ou Conclui-se que não é apenas a decodificação da
em ambas, poderá impossibilitar o desenvolvi- letra, mas também o reconhecimento e interpre-
mento da leitura. tação do som.
Segundo Ellis16, o modelo da dupla rota, ba­ A estrutura de dupla rota não é um modelo
seado na teoria do processamento da informação, de aprendizagem da leitura, mas é um algorit-
busca compreender o desempenho das funções mo que demonstra os módulos que compõem
humanas específicas, como os processos da leitu- a arquitetura funcional da leitura e a operacio-
ra e escrita. Esta abordagem destaca os processos nalização desse modelo é uma estratégia para
mentais envolvidos em cada função, procurando diferenciar uma criança com desenvolvimento
assim disponibilizar uma descrição precisa e típico de crianças com dislexia15.
compreensível dos processos cognitivos. Dehaene1 explica que para ler qualquer pa-
A teoria de processamento de informação lavra em voz alta é necessário analisar o item
permite compreender o processamento da lin- (palavra real ou não palavra) no conjunto de aná-
guagem e seus diferentes componentes nos pro- lise visual. Para ler palavras reais, inicialmente
cessos cognitivos como pensamento, percepção, são identificadas no léxico visual de entrada,
memória, linguagem (falada e escrita), dispo- a pronúncia é retomada do léxico fonêmico de
nibilizando descrição minuciosa dos processos saída (o que constitui a rota léxico-fonêmica).
mentais21. Segundo esta autora, o benefício da Essa retomada pode acontecer simultaneamente
teoria de processamento de informação é a rea-
com o processo semântico ou simultaneamen-
lização de uma avaliação cognitiva permitindo
te com a transformação grafema-fonema. Em
detectar a dificuldade de leitura em uma das
relação à leitura de não palavras, o reconheci-
rotas, lexical e fonológica (ou em ambas as par-
mento dos grafemas é enviado do conjunto de
tes), oferecendo resultados práticos na detecção
análise visual para o sistema de transformação
de déficits específicos.
grafema-fonema, de modo que os elementos
De acordo com modelo da dupla rota (fo-
fonêmicos podem ser retomados e reduzidos (ou
nológica e lexical), quando uma palavra é
sumarizados) para executar a pronúncia (rota
apresentada, primeiramente são assimilados os
fonológica). Desse modo, a leitura de palavras
traços que compõem suas letras, na sequência
passa por um exame da rota lexical e a de não
as letras são decodificadas. Após isso, duas
rotas podem ser utilizadas. A rota fonológica, palavras, por um exame do processo fonológico.
na qual são modificados grafemas em fonemas, Conforme as evidências apresentadas em
permitindo um output fonológico, por meio de di­ferentes estudos, a aplicação do modelo da
um sistema de transformação grafema-fonema dupla rota possui uma aceitabilidade para os
regular. A outra é a rota lexical, formada por duas estudos que investigam as especificidades da
sub-rotas: rota lexical semântica ou indireta, que dislexia22-24. Para verificar o quanto o modelo tem
trabalha com o acesso ao sistema semântico: o sido utilizado como parâmetro para a definição
reconhecimento de um item no léxico ortográfico diagnóstica da dislexia na prática profissional,
permite o reconhecimento do seu significado no realizamos um estudo de revisão sistemática.
sistema semântico que, por sua vez, impulsiona O objetivo desta investigação foi verificar a
o léxico fonológico para a produção do output; aplicação do modelo neurocognitivo da dupla
rota lexical não semântica ou direta, atua por rota nos estudos sobre o diagnóstico da dislexia.
meio do reconhecimento no léxico do indivíduo A complexidade do diagnóstico da dislexia, sua
da representação ortográfica de uma palavra. importância para o desenvolvimento escolar de
O léxico ortográfico é unido com o léxico fono- inúmeras crianças e a necessidade de difusão do
lógico, e a partir da representação fonológica modelo cognitivo da leitura foram os aspectos
o sistema fonêmico pode produzir um output15. que motivaram esse estudo.

Rev. Psicopedagogia 2019; 36(111): 368-77

371
Cardoso HSP & Freitas PM

MÉTODO RESULTADOS
O método utilizado foi revisão sistemática da De acordo com os critérios de inclusão, foram
literatura. Foram selecionados estudos nacionais analisados 52 estudos incluindo artigos, teses e
e internacionais publicados nos últimos cinco dissertações. As variáveis analisadas foram: ano
anos (2013 a 2018), indexados nas bases de da publicação, tipo de estudo, o país em que foi
dados Medline, SciELO e Google Acadêmico. realizado o estudo, a amostra, média e desvio
Os descritores utilizados para a realização da padrão, distribuição por sexo, funções cogniti-
busca foram:1- dislexia, leitura e dupla rota; vas investigadas e instrumentos utilizados para
2- dislexia, leitura e dupla via; 3- avaliação da coleta de dados e, por fim, se o estudo aplica o
dislexia; 4- diagnóstico da dislexia. As buscas modelo neurocognitivo.
dos descritores foram feitas em português e em A maioria dos estudos - 40 (76,92%) - utili-
inglês. zou o modelo da dupla rota como fundamento
para a pesquisa. Analisando a distribuição do
Os trabalhos identificados pela estratégia
delineamento, foi possível identificar maior uso
de busca inicial foram avaliados segundo os se-
de estudos que comparam grupos: 32 (61,53%),
guintes critérios de inclusão: estudos empíricos,
com objetivo de comparar grupos de leitores
baseados no modelo neurocognitivo da dislexia,
com e sem dificuldades de leitura; seguido de
publicados no período de 2013 a 2018. O total de
estudos descritivos: sete (13,46%); estudos de
estudos, que foram listados a partir dos descrito-
caso: cinco (9,61%); estudo experimental: três
res utilizados, foi de 80 artigos. Dessa amostra, (5,76%); estudos pré e pós-teste e retrospectivo:
28 foram excluídos por se tratar de estudos de dois (3,84%); estudo longitudinal: um (1,92%).
revisão, estudos publicados há mais de cinco Os países com maior número de estudos fo-
anos, e que não tratavam do tema proposto. ram Estados Unidos, Itália e Reino Unido, com
A amostra final foi constituída de 52 estudos. 12 (30%) estudos; seguidos de Israel, Espanha
O processo de busca e seleção dos estudos está e Portugal, com 9 (22,5%) estudos. Observou-se
representado pela Figura 1. que diferentes nacionalidades (Austrália, Áus-
tria, Brasil, Canadá, China, Espanha, Estados
Unidos, França, Holanda, Israel, Itália, Nova
Zelândia, Noruega, Portugal, Reino Unido)
in­vestigaram a dislexia, com base no modelo
neuropsicológico da dupla rota, demonstrando
que o modelo é consistente tanto em línguas
opacas quanto transparentes. São consideradas
línguas transparentes aquelas em que existe
uma similaridade entre letra e som, por exemplo,
a língua italiana. Em línguas opacas existe um
grau de complexidade maior, em que a aquisição
da leitura será mais lenta, por necessitar de uma
maior manipulação com as irregularidades da
língua, um exemplo é a língua inglesa1.
Em relação à variável participantes da pes-
quisa, a média de participantes foi de 89,4. A mé-
dia da idade dos participantes da pesquisa foi de
9,74 anos. Embora houvesse uma predominância
de estudos com crianças, as pesquisas que in-
Figura 1 - Processo de busca e seleção de artigos. vestigaram dislexia em adultos estão de acordo

Rev. Psicopedagogia 2019; 36(111): 368-77

372
Dupla rota no diagnóstico da dislexia

com a literatura, que mostra que a dificuldade DISCUSSÃO


de leitura persiste ainda na vida adulta1. Nos O modelo neurocognitivo (dupla rota) contri-
estudos analisados, o gênero mais pesquisado bui com a explicação do processamento da lei-
foi o masculino, presente em 33 (63,46%) dos tura fluente, mas também explica características
estudos; esta prevalência também é apontada dos transtornos da leitura, tanto os adquiridos
na literatura9. quanto os do desenvolvimento. Esse modelo
As análises dos estudos foram conduzidas por per­mite descrever os componentes específicos
meio de instrumentos de avaliação que estão da leitura e através de instrumentos adequados
associados com as funções cognitivas que se de medida é possível obtermos um mapa sobre
pretendia avaliar (Tabela 1). Estes instrumentos o desempenho leitor da criança identificando
foram aplicados com o objetivo de avaliar tanto os déficits nas funções cognitivas específicas24.
a rota fonológica como a lexical, ambos proces- O objetivo do estudo foi identificar por meio de
sos envolvidos no modelo teórico de dupla rota. publicações científicas a aplicação do modelo da
A inteligência foi avaliada em todos os estudos dupla rota no diagnóstico da dislexia e, conse-
e os instrumentos mais utilizados foram: Escala quentemente, verificar quais são os instrumentos
de Inteligência Wechsler para crianças (WISC utilizados para a avaliação dos sinais.
III) e Matrizes Progressivas Coloridas de Raven, Os resultados encontrados demonstram que
presentes em 10% dos estudos. a aplicação do modelo é consistente para inves-
As análises mostraram que, além das funções tigação e diagnóstico da dislexia. Esse resultado
relacionadas ao processamento léxico-fonológico, converge com estudo de Sela et al.22, que mos-
também foram avaliadas outras funções que tram as implicações da aplicação do modelo da
contribuem para a leitura (Tabela 2). dupla rota na aquisição da leitura precoce.

Tabela 1 - Instrumentos de avaliação mais utilizados no diagnóstico da dislexia,


considerando a amostra analisada.
Instrumento Percentual
Tarefa de consciência fonológica 20%
Tarefa de leitura de palavras e pseudopalavras 15%
Tarefas de leitura, ortografia e vocabulário 15%
Tarefas de leituras de palavras 10%
Matrizes progressivas coloridas de Raven 10%
Escala de inteligência Wechsler para crianças 10%
Compreensão de leitura textual 7,5%
Consciência Fonológica: instrumento de avaliação sequencial – CONFIAS 7,5%
Provas de avaliação dos processos de leitura 5%
Subteste de letras e números dos testes RAN – RAS 5%
Provas de avaliação dos processos de leitura – PROLEC (subteste de leitura 5%
de palavras e pseudopalavras)
Avaliação do processamento auditivo central - PAC 5%
Teste de desempenho escolar – TDE 5%
Tarefa de leitura oral de números arábicos com dígitos múltiplos 5%
Tarefa de compreensão semântica 5%
Escala de reconhecimento de palavras (EREP) 5%

Rev. Psicopedagogia 2019; 36(111): 368-77

373
Cardoso HSP & Freitas PM

Tabela 2 - Funções cognitivas mais avaliadas melhorar suas habilidades através de programas
no diagnóstico da dislexia, considerando de remediação que visam fortalecer processos
a amostra investigada. audiovisuais e fonológicos, juntamente com
Funções Investigadas Percentual sua capacidade de memória de trabalho. Esse
Leitura 30% resultado está de acordo com os pressupostos
Consciência fonológica 25%
do modelo neurocognitivo, que afirma que o
modelo é consistente para investigar e diag-
Compreensão de leitura 17,5%
nosticar pacientes com dislexia, pois oferece
Decisão lexical 17,5
respostas consistente sobre déficits específicos,
Memória verbal de curto prazo 15%
potencializando a elaboração de programas de
Ortografia 10%
estimulação cognitiva.
Escrita 10% Outros instrumentos foram apresentados e
Memória visuoespacial 10% outras funções cognitivas como memória de
Nomeação automatizada rápida 7,5% trabalho também foram avaliadas, mas com per-
Gramática 5% centual abaixo de 5%, por isso, não foram inclu-
Vocabulário 5% ídos nas tabelas. Em relação à função cognitiva
Consciência fonêmica 5% memória de trabalho, o estudo atual também está
Reconhecimento de palavras 5% de acordo com os achados de Chan27 e Knoop-van
Fluência na leitura 5% Campen et al.4, no que se refere à correlação
entre comprometimento na memória de traba-
lho em crianças com dislexia. As alterações da
leitura são medidas por déficits de consciência
Considerando o modelo teórico da dupla rota fonológica, memória de trabalho verbal e inte-
ligência, demonstrando que para o diagnóstico
(fonológica e lexical) para explicar a aquisição
das crianças o perfil cognitivo também deve ser
da leitura, os dados mostraram que o diferencial
considerado.
desse modelo é a possibilidade de identificação
Outro dado relevante é que as pesquisas ana­
de déficits específicos, diferenciando disfunções
lisadas foram realizadas com participantes de
para a rota lexical e para a rota fonológica. Esses
diferentes línguas, demonstrando a consistência
resultados vão ao encontro de estudos que afir-
do modelo teórico tanto para ortografias opacas
mam que o modelo neurocognitivo (dupla rota)
quanto ortografias transparentes. Esse resultado
permite uma compreensão do desempenho satis-
está de acordo com o estudo de Diamanti et al.28,
fatório, mas também dos déficits nas funções cog- que mostra que crianças inglesas apresentaram
nitivas específicas, possibilitando compreender maior dificuldade na precisão da leitura e sub-
se a dificuldade está na rota fonológica, lexical tração fonêmica quando comparadas às crianças
ou em ambas as rotas14,24,25. Esses resultados po- gregas. Verhoeven & Keuning29 também afirmam
dem contribuir com o melhor direcionamento das que em ortografias transparentes leitores com
pesquisas voltadas para o diagnóstico da dislexia, dislexia são mais sensíveis à extensão da pa-
assim como para a atuação clínica. lavra no momento da leitura. O modelo teórico
Em relação às funções cognitivas investiga- consegue explicar as rotas usadas pelos leitores,
das, os resultados mostraram várias funções independentemente de o idioma possuir orto­
específicas que devem ser investigadas para o grafia mais opaca ou transparente.
diagnóstico da dislexia, com objetivo de não ter As pesquisas demonstraram a relevância
apenas o diagnóstico, mas saber qual função do modelo da dupla rota para investigação e
específica precisa ser estimulada. Tal resultado diagnóstico do transtorno da leitura, em dife-
está de acordo com o estudo de Zygouris et al.26, rentes idades, desde crianças muito novas até
que evidencia que crianças com dislexia podem adultos. Sela et al.22 também corroboram com os

Rev. Psicopedagogia 2019; 36(111): 368-77

374
Dupla rota no diagnóstico da dislexia

resultados desse estudo, tendo observado que o CONSIDERAÇÕES FINAIS


modelo é útil para avaliar tarefas de decisão lexi- O estudo apresentou a relação entre o modelo
cal tanto em crianças quanto em jovens com e sem funcional da leitura conhecido como modelo da
dislexia. No entanto, como existe uma urgência dupla rota e o diagnóstico da dislexia. Por ser
em solucionar dificuldades de aprendizagem logo um estudo de revisão sistemática, os resultados
nos primeiros anos de escolarização, houve um
encontrados podem contribuir para compreensão
número maior de pesquisas envolvendo crianças.
do estado da arte sobre a difusão do modelo em
Os estudos analisados para esse trabalho
estudos que tenham como objetivo o diagnóstico
trouxeram comparações entre sujeitos com e sem
dificuldade de leitura. Esse dado é importante, da dislexia.
uma vez que o modelo neurocognitivo oferece Um dos impactos sociais da dislexia é o au-
parâmetros para diferenciar uma simples dificul- mento de maus leitores ou leitores disfuncionais,
dade de aprendizagem de um transtorno. Essa comprometendo as chances de que esses indiví-
informação pode contribuir para a identificação duos tenham oportunidades de inserção social.
de alunos com atraso na leitura, diferenciando Para minimizar tais efeitos, são necessários
aqueles que possuem uma dificuldade de um procedimentos de diagnóstico com protocolos
transtorno de aprendizagem, possibilitando uma de avaliação que sejam fundamentados em um
melhor intervenção. modelo neurocognitivo bem definido. Outra
Os resultados encontrados por este estudo de- contribuição apresentada é a aplicabilidade do
vem ser analisados com cautela, considerando a
modelo da dupla rota como uma ferramenta
presença de viés de amostra, pois os estudos que
capaz de detectar déficits específicos nos com-
fizeram parte da revisão são resultados de pes-
ponentes do processamento fonológico e lexical.
quisas na área da dislexia e da aprendizagem da
leitura e, portanto, elaborados por pesquisadores A dislexia é um transtorno que chama a
familiarizados com o modelo da dupla-rota. O atenção tanto para áreas da educação quanto
resultado reflete que o diagnóstico realizado no da saúde. Portanto, o modelo teórico da dupla
âmbito das pesquisas aplica o modelo da dupla rota deve ser mais aprofundado e sua operacio-
rota, entretanto, ainda não temos a dimensão se nalização deve fazer parte dos procedimentos de
isso também corresponde à prática profissional. avaliação das alterações específicas da leitura.

Rev. Psicopedagogia 2019; 36(111): 368-77

375
Cardoso HSP & Freitas PM

SUMMARY
Application of the double-route model in the diagnosis
of dyslexia systematic review

Dyslexia is a learning disorder of reading that can affect writing, however,


the identification of this disorder is still very imprecise. The objective of this
study was to verify the application of the neurocognitive double-route model
in the diagnostic studies, through a systematic review of the literature. The
descriptors used: dyslexia, reading, double-route; evaluation of dyslexia;
diagnosis of dyslexia, in the Medline, SciELO and Google Academic
databases (2013-2018). The sample consisted of 52 studies and 40 applied
the double-route model in the diagnosis. The results showed that the most
used instruments were Phonological Awareness Task (20%), Word Reading
Task and pseudowords (15%); the most investigated cognitive functions
were reading (30%) and phonological awareness (25%). The studies showed
empirical evidence of the use of the model, demonstrating that deficits in
the components of phonological and lexical processing explain the presence
of dyslexia, contributing to the diagnosis.

KEYWORDS: Diagnosis. Dyslexia. Neurocognitive Model.

REFERÊNCIAS 7. Elliott GJ, Grigorenko LE. The dyslexia


1. Dehaene S. Os neurônios da leitura: como de­bate. New York: Cambridge University
a ciência explica a nossa capacidade de ler. Press; 2014.
Porto Alegre: Penso Editora; 2012. 8. Lima e Silva NML. A prevalência da dislexia
2. Piasta SB, Wagner RK. Learning letter names em alunos do ensino fundamental de escolas
and sounds: effects of instruction, letter type, particulares [dissertação]. Santa Maria: Uni­
and phonological processing skill. J Exp versidade Federal de Santa Maria; 2004.
Child Psychol. 2010;105(4):324-44. 9. Rao S, Raj SA, Ramanathan V, Sharma A,
3. Catts HW. Identificação Precoce da Dislexia. Dhar M, Thatkar PV, et al. Prevalence of
dyslexia among school children in Mysore. Int
In: Alves LM, Mousinho R, Capellini SA, orgs.
J Med Sci Public Health. 2017;6(1):159-64.
Dislexia Novos Temas, Novas Perspectivas.
10. Rutter M, Caspi A, Fergusson D, Horwood LJ,
Rio de Janeiro: Walk; 2011. p. 55-70.
Goodman R, Maughan B, et al. Sex differences
4. Knoop-van Campen CAN, Segers E, Verhoeven
in developmental reading disability: new
L. How phonological awareness mediates findings from 4 epidemiological studies.
the relation between working memory and JAMA. 2004;291(16):2007-12.
word reading efficiency in children with 11. Associação Brasileira de Dislexia (ABD)
dyslexia. Dyslexia. 2018;24(2):156-69. [Internet]. São Paulo: ABD; 2018 [acesso
5. Moll K, Loff A, Snowling MJ. Cognitive 2018 Nov 6]. Disponível em: http://www.
endo­phenotypes of dyslexia. Sci Stud Read. dislexia.org.br/
2013;17(6):385-97. 12. Associação Psiquiátrica Americana (APA).
6. Pennington BF, McGrath LM, Rosenberg Manual Estatístico e Diagnóstico dos Trans­
J, Barnard H, Smith SD, Willcutt EG, et al. tornos Mentais, 5a edição - DSM-5. Porto
Gene × environment interactions in reading Alegre: Artmed; 2014.
disability and attention-deficit/hyperactivity 13. Daucourt MC, Erbeli F, Little CW, Haugh­
disorder. Dev Psychol. 2009;45(1):77-89. brook R, Hart SA. A Meta-Analytical Review of

Rev. Psicopedagogia 2019; 36(111): 368-77

376
Dupla rota no diagnóstico da dislexia

the Genetic and Environmental Correlations 22. Sela I, Izzetoglu M, Izzetoglu K, Onaral B. A
between Reading and Atten­ tion-Deficit/Hy­ Functional near-infrared spectroscopy study
peractivity Disorder Sym­ptoms and Reading of lexical decision task supports the dual
and Math. Sci Stud Read. 2019;1-34. route model and the phonological deficit
14. Gvion A, Friedmann N. A Principled Re­ theory of dyslexia. J Learn Disabil. 2014;
lation between Reading and Naming in 47(3):279-88.
Acquired and Developmental Anomia: Sur­ 23. Ripamonti E, Aggujaro S, Molteni F, Zonca
face Dyslexia Following Impairment in the G, Frustaci M, Luzzatti C. The anatomical
Phonological Output Lexicon. Front Psychol.
foundations of acquired reading disorders:
2016;7:340.
a neuropsychological verification of the
15. Coltheart M, Rastle K, Perry C, Langdon R,
dual-route model of reading. Brain Lang.
Ziegler J. DRC: A dual route cascaded model
of visual word recognition and reading 2014;134:44-67.
aloud. Psychol Rev. 2001;108(1):204-56. 24. Coltheart M. Dual route and connectionist
16. Ellis AW. Leitura, Escrita e Dislexia: Uma aná­ models of reading: an overview. London Rev
lise cognitiva. Porto Alegre: Artmed; 1995. Educ. 2006;4(1):5-17.
17. Oliveira AM, Germano GD, Capellini SA. 25. Nobre AP, Salles JF. O papel do processamento
Desempenho de escolares em provas de léxico-semântico em modelos de leitura. Arq
processo de identificação de letras e do pro­ Bras Psicol. 2014;66(2):128-42.
cesso léxico. Rev CEFAC. 2016;18(5):1121-32. 26. Zygouris NC, Avramidis E, Karapetsas AV,
18. Frith U. Dyslexia as a developmental disorder Stamoulis GI. Differences in dyslexic stu­
of language. London: MRC, Cognitive dents before and after a remediation pro­
Developmental Unit; 1990. gram: A clinical neuropsychological and
19. Rotta NT, Pedroso FS. Transtorno da Lin­ event related potential study. Appl Neu­ro­
guagem Escrita: dislexia. In: Rotta NT, psychol Child. 2018;7(3):235-44.
Ohlweiler L, Riesgo RS, orgs. Transtornos da 27. Chan CYH. Verbal Working Deficits in Chil­
Aprendizagem - Abordagem Neurobiológica
dren with Chinese Developmental Dyslexia.
e Multidisciplinar. Porto Alegre: Artmed;
Int J Educ Psychol Res. 2018;7(2):24-8.
2016. p. 133-47.
28. Diamanti V, Goulandris N, Campbell R,
20. Salles JF, Parente MAMP. Processos Cog­
nitivos na Leitura de Palavras em Crian­ças: Protopapas A. Dyslexia Profiles Across Or­
Re­lações com Compreensão e Tempo de tho­graphies Differing in Transparency: An
Leitura. Psicol Reflex Crit. 2002;15(2):321-31. Evaluation of Theoretical Predictions Con­
21. Pinheiro AMV. Dificuldades Específicas de trasting English and Greek. Sci Stud Read.
Leitura: A Identificação de Déficits Cogni­ 2017;22(1):55-69.
tivos e a Abordagem do Processamento de 29. Verhoeven L, Keuning J. The Nature of De­
Informação. Psicol Teor Pesqui. 1995;11(2): velopmental Dyslexia in a Transparent Or­
107-15. thography. Sci Stud Read. 2017;22(1):7-23.

Trabalho realizado na Universidade Federal da Bahia, Artigo recebido: 23/7/2019


Campus Anísio Teixeira, Vitória da Conquista, BA, Brasil. Aprovado: 25/9/2019
Conflito de interesses: As autoras declaram não haver.

Rev. Psicopedagogia 2019; 36(111): 368-77

377

Você também pode gostar