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© 1981 – LOU CARRIGAN

Publicado no Brasil pela Editora Monterrey Ltda.


Título original: “Juramento Anual Em Ponza”
Tradução de Luiz Osvaldo Cunha - Capa de Benicio
Colaboração de Sérgio Bellebone
® 531228
CAPÍTULO PRIMEIRO
O Bar Tritone

O Bar Tritone ficava numa ruela atrás do Castelo


Capuano e este, na Piazza de Nicola, em Nápoles. Era um
bar pequeno, modesto, situado num prédio banal. Um bar
insignificante, num lugar insignificante. No entanto, se as
informações recebidas estivessem certas, ali dentro
preparava-se algo importante. Muito importante.
O homem que parou na calçada em frente do bar o
observou durante mais alguns segundos como se
desconfiasse de que ali pudesse encontrar algo importante.
Em seguida, como se tomasse uma resolução, atravessou a
rua estreita e dirigiu-se, com passadas largas e lentas, à porta
do Bar Tritone.
Quando entrou, alguns olhares voltaram-se para ele com
indiferença. Tal indiferença, porém, desapareceu diante da
personalidade impressionante do recém-chegado. Media
mais de um metro e oitenta de estatura, era magro, mas de
ombros largos e tinha a boca de lábios finos. Vestia-se
esportivamente, com uma elegância natural e despreocupada.
Era um homem que dificilmente poderia passar
desapercebido.
Os olhares, entretanto, se desviaram, quando ele passeou
os olhos pelo local. Um olhar direto e frio em sua
inexpressividade. Um olhar que pousou, finalmente, na moça
sentada numa das mesinhas de canto e que parecia estar
distraída com a leitura de uma revista francesa de modas.
Aquela moça fora a única pessoa que não se molestara de
olhar para a porta.
O homem aproximou-se da mesa, contemplando a moça
com ar especulativo. Analisando-a. Era loura, muito bonita,
de pouco mais de vinte e cinco anos. Vestia-se com uma
elegância discreta. Evidentemente não sentia o menor
interesse pelo que acontecia à sua volta. Nem sequer ergueu
a cabeça quando o recém-chegado se deteve diante dela, do
outro lado da mesa. Só o fez, ao ouvir a voz dele dizendo:
— Desculpe... estaria interessada em falar comigo?
Ela olhou para o homem parado junto à mesa. Um brilho
de espanto iluminou suas pupilas. Entreabriu os lábios num
sorriso cortês e murmurou:
— Talvez. Se tiver algo interessante para me dizer,
senhor... senhor...
— North. Elvis North, americano.
— Fala muito bem o italiano, senhor North. De que
deseja falar comigo?
— Estou procurando trabalho. Ouvi, em certos
ambientes, que neste bar alguém estaria lendo uma revista
francesa. E que essa pessoa poderia conseguir-me alguma
coisa. É a senhorita?
— Tenha a bondade de sentar-se.
— Obrigado. Posso convidá-la para tomar qualquer
coisa?
— Eu o convidarei, se não se importar.
— Claro que não.
— Um uísque?
— Só tomo álcool quando estou descansando. Prefiro um
café.
A moça balançou a cabeça em sinal afirmativo. Olhou
para o balcão e fez um sinal ao garçom. Elvis North ofereceu
um cigarro e ela aceitou.
— Em que ambiente ouviu dizer que aqui conseguiria
trabalho, senhor North?
— Tenho amigos em Roma que sempre captam certo tipo
de ofertas. Pago bem para eles ficarem atentos a todas as
possibilidades. Também tenho amigos em Paris e em
Londres.
— Talvez um desses seus amigos já tenha sido contratado
por mim. Sem dúvida ele o preveniu de que também posso
fazer algo pelo senhor, não é assim?
— Não. Meus amigos trabalham exclusivamente para
mim. Eles veem e ouvem. Se o assunto vale a pena, me
avisam. São bons rapazes, mas não estão preparados, como
eu, para certa classe de trabalhos.
— Compreendo. São uma espécie de rastreadores de
oportunidades que lhe possam interessar, hem?
— É um modo inteligente de entender as coisas.
— Obrigada, senhor North. No momento, porém, não
estou contratando chefes de grupos e sim, homens soltos,
independentes.
— Não encontrará ninguém mais independente que eu. Se
o trabalho me interessar, contratará apenas a mim e não
meus amigos.
— Isso significa que o senhor lhes paga bem. Logo, os
trabalhos que aceita devem ser muito bem pagos.
— Naturalmente. Não sou um aventureiro barato,
senhorita... senhorita...
— Simonetta. Ah, o café.
O garçom pousou as duas xícaras na mesa e afastou-se. A
loura Simonetta depositou em sua xícara todo o açúcar do
pacotinho. Elvis North, porém, começou a tomar o dele, sem
açúcar.
— Qual seria sua tarifa mínima? — perguntou Simonetta,
mexendo o café.
— Depende do trabalho, do risco, dos dias de duração, de
ser na Itália ou não... Como ponto de partida, digamos que
não costumo mobilizar-me por menos de vinte e cinco mil
dólares.
— Por esse preço, podem exigir inclusive que o senhor
mate alguém — murmurou Simonetta, sorrindo.
— Sem dúvida.
— Não se importa de fazê-lo?
— Não.
— Além do inglês e do italiano, o senhor fala algum
outro idioma?
— Posso defender-me em vários.
— Por exemplo?
— Alemão, francês, russo, espanhol, português e um
pouco de sueco, de húngaro, de grego e algumas palavras em
chinês, japonês e árabe. Ah, também posso discutir um
pouco em esperanto.
— Aceitaria um contrato de quinze dias? — perguntou
Simonetta, sorrindo, depois de refletir um instante.
— Não por vinte e cinco mil dólares.
— Oh, é claro. A soma inicial foi fixada em cinquenta
mil.
— Na Itália ou fora da Itália?
— Não está sendo exigente demais?
— Vivo desse tipo de trabalho. E posso morrer num
deles. Por isso, pensei ao começar: se vou arriscar a vida,
devo saber vivê-la bem... enquanto for possível.
— Também é possível que apareça outro homem menos
exigente em busca desse trabalho.
— Sei disso. Existem pessoas de diversas qualidades.
— Conhece alguém capaz de avalizá-lo?
— Nunca me preocupei com isso. Meu aval sou eu
mesmo.
Simonetta pestanejou. Olhou para o balcão e arquejou as
sobrancelhas, numa interrogação muda. Apontou o peito
com o dedo e balançou a cabeça afirmativamente. Tornou a
encarar Elvis North e murmurou:
— Desculpe-me um momento. Parece que me chamam ao
telefone.
Levantou-se e foi até o balcão. O garçom segurava o fone
e ao vê-la aproximar-se disse com naturalidade:
— Procuram uma loura chamada Simonetta. Calculei que
fosse a senhorita.
— Sim, obrigada.
A conversa durou apenas um minuto. A loura voltou para
a mesa, mas não se sentou. Pegou a bolsa e a revista e disse
apenas:
— Preciso ir embora. Não há inconveniente em me
acompanhar, senhor North. Aproveitei o chamado e
perguntei se a tarifa pode aumentar para setenta e cinco mil
dólares, tratando-se de um homem, aparentemente
excepcional. Setenta e cinco mil está bem?
— Começa a melhorar. Devo acompanhá-la?
— Seria conveniente, para prosseguirmos com a
conversa. Preciso ir para meu apartamento aguardar um
telefonema de Paris. Como o senhor ainda não está
trabalhando, talvez aceite tomar um drinque em meu
apartamento, enquanto acertamos as bases do contrato.
— De acordo.
— Se estiver disposto a aceitar o serviço, hem? Caso
contrário não há necessidade de vir comigo.
— Aceito pelos setenta e cinco mil.
— Muito bem. Vou pagar a conta. O senhor tem carro?
— Em Nápoles, não.
— Não importa. O meu está aqui perto.
***
O apartamento de Simonetta ficava num edifício
moderno, na Via Cristoforo Colombo. Não parecia muito
grande. A saia era ampla e abria para um terraço florido.
Dali avistava-se a formosa baía.
— Se gosta da paisagem, podemos conversar no terraço
— disse a loura, sorrindo. — Ainda não faz frio e a vista é
belíssima. Conhece bem Nápoles?
— Conheço bem toda a Itália. Estou aqui há muitos anos.
Tempo suficiente para saber, também, que a senhorita não é
italiana. Nem francesa, é claro.
— Que sou então? — perguntou Simonetta, sempre
sorrindo.
— Alemã, talvez.
— Bom ouvido. Puro ou com água?
— Com gelo, se houver.
— Fique à vontade.
Elvis North passou para o terraço e sentou-se numa das
poltronas de vime. O barulho da rua chegava amortizado ao
sétimo andar em que se encontrava o apartamento. O homem
de ombros largos acendeu um cigarro. Viu Simonetta voltar
da cozinha trazendo dois copos com gelo. Parou junto ao bar,
apanhou a garrafa de uísque e saiu para o terraço.
Simonetta serviu a bebida e sentou-se ao lado de North.
Estranhando o sorrisinho enigmático da loura, Elvis North
voltou a cabeça para o interior do apartamento. Viu os dois
homens avançando. Não se mexeu. Não fez o menor
comentário. Tornou a encarar Simonetta enquanto os dois
homens, que haviam exibido as pistolas, trataram de
escondê-las antes de passar para o terraço. Tinham maneiras
muito distintas e delicadas.
— Um homem tão especial como o senhor merece uma
morte muito especial — disse Simonetta. — Pelo menos é
essa a opinião de Kobler. Conhece Kobler?
Ao fazer a pergunta, apontou um dos homens. Elvis
respondeu negativamente, balançando a cabeça.
— Pois ele o conhece. Inconvenientes de ser um homem
destacado e de personalidade, não acha, senhor North? Bem,
de acordo com as informações dadas por Kobler, o senhor
circula pela Europa com o nome de Angelo Tomasini.
Apesar disso, apresentou-se a mim dizendo chamar-se Elvis
North. Então? É ou não o famosíssimo Tomasini, o homem
sobre o qual ninguém sabe nada... exceto que ele sempre
consegue o que deseja?
— No momento, sou Elvis North da VU, ou seja, da
Vigilância Universal. Já usei esta personalidade outras vezes
e me agrada. Logo, se não se importa, prefiro continuar
sendo Elvis North.
— O senhor é surpreendente. Não quer tomar seu último
uísque?
— Sim, como muito prazer.
— O senhor é muito corajoso, hem? Bem, numa situação
como esta não há necessidade de se fazer perguntas, não
concorda? Devo imaginar que a VU inteirou-se de que
alguém estava contratando aventureiros no Bar Tritone, em
Nápoles, e o enviou para ver se descobria qual eram os
planos e quem dirigia o caso. Acertei?
— Em cheio.
— Hum, seremos obrigado a deixar Nápoles e procurar
outro lugar para continuarmos contratando pessoal. Não
importa. Se Kobler, que vigiava o Bar Tritone, não me
tivesse telefonado dando informações a seu respeito, eu
talvez tivesse falado demais. Enfim, isso também não teria
importância, pois o senhor não repetiria minhas palavras a
pessoa alguma. Pule, senhor North.
— Como?
— Kobler e Delnier estão apontando as pistolas na sua
direção. Preferimos, porém, não atirar, pois alguém poderia
ouvir o tiro do prédio em frente. Se o senhor se aproximar do
parapeito e pular, a coisa será aceita como um... acidente.
Um estranho acidente, pois quando subirem a este
apartamento vão encontrá-lo vazio. Não é meu, nem de meus
amigos. O proprietário está em Roma há alguns dias e nós o
estamos utilizando de um modo abusivo.
— Apesar de tudo, meus amigos encontrarão vocês.
— É possível. Mas o senhor nada verá. Pode acabar de
tomar o uísque, se quiser.
— Basta de tolices — grunhiu Kobler. — Pule, North.
— Sim, pule — repetiu Delnier, sorrindo. — São só sete
andares.
— Sempre ouvi dizer que as pessoas gritam, quando
saltam no vazio — disse Simonetta, sorrindo. — Mas não
creio que o senhor North grite. É orgulhoso demais.
— Quando chegar lá embaixo, não será mais — rosnou
Kobler. — Bem, deixemos de tolices. Pule, North. Não me
incomodo de atirar com a arma dentro do bolso, mas...
Kobler engasgou depois da palavra bolso, emitindo um
ronco abafado. Ao mesmo tempo, cambaleou para trás. Em
sua testa surgiu uma manchinha redonda e escura. A reação
de Delnier foi lógica, mas pouco prática. Olhou para o
companheiro, surpreso, sem entender o que se passava.
Kobler caiu em câmara lenta, de costas, e da manchinha
escura brotou um líquido vermelho. Algumas gotinhas,
apenas.
O olho escuro de Delnier arrebentou-se, transformando-se
numa mancha sangrenta. Ao mesmo tempo, sua cabeça girou
para o interior do apartamento. Kobler já tinha caído de
costas, quando Delnier desabou de bruços sobre ele.
Simonetta ficou de pé, de um salto, contemplando espantada
o que acabara de acontecer com os companheiros caídos
entre o terraço e a sala. Ambos mortos.
— Espero que o uísque seja bom — disse Elvis North,
erguendo o copo.

CAPÍTULO SEGUNDO
Morte em Nápoles

— Sente-se, Simonetta — disse o americano, pousando o


copo na mesinha, depois de ter tomado um gole. — Ainda
não acabamos nossa conversa.
Simonetta obedeceu. Não estava entendendo nada. Não
havia armas nas mão de Elvis North e, no entanto, Kobler e
Delnier foram mortos com tiros certeiros na cabeça.
— Kobler não sabia o suficiente a meu respeito, é claro
— disse North. — Ele não lhe falou de Alice?
Simonetta negou com um movimento de cabeça. Seus
olhos estavam arregalados. Parecia alucinada.
— Alice é minha amiga, companheira e amante —
explicou North. — Trabalhamos juntos. Quase sempre.
Quando nos metemos em certos tipos de casos, nos
chamamos de Elvis e Alice e dizemos pertencer à Vigilância
Universal. Às vezes, apenas. Em outras, aparecemos como
Angelo Tomasini e Maria Piamonte, por exemplo. Depende
das circunstâncias. No momento, somos Elvis e Alice. Isso é
tudo. Não vai tomar seu uísque, Simonetta?
A loura compreendeu, finalmente. Com um movimento
lento, olhou para as casas em frente. No terraço de uma delas
estava uma mulher de cabelos compridos e também louros.
A mulher, sentindo-se observada, acenou com a mão
esquerda. Na direita segurava alguma coisa.
— Alice e eu estamos tão entrosados que nem sequer
precisamos nos falar para nos entender. Quando ela aparece,
eu trabalho na sombra e vice-versa. E sempre nos
protegemos mutuamente, é claro. Como não nos agradou um
convite tão prematuro para vir a seu apartamento, Simonetta,
Alice tomou as providências que julgou necessárias. Você
não é a única pessoa capaz de saber ou de poder entrar onde
quer. Alice é técnica nessas coisas. E tem muitas outras
qualidades. Por exemplo: sabe ler nos lábios o que as
pessoas estão dizendo. Logo, leu nos lábios de seus amigos
quando me mandaram pular do terraço. Outra qualidade de
Alice é a firmeza na mão. De uma distância de trinta e cinco
metros é capaz de acertar, no primeiro tiro, numa bolinha de
ping-pong. Deste terraço àquele ali em frente há vinte e
cinco metros, mais ou menos. E as cabeças de Kobler e de
Delnier são maiores que uma bola de ping-pong. Bem, agora
sente-se e continuemos a conversar, Simonetta.
— Nada mais temos a dizer — balbuciou ela.
— Perfeitamente. Pule.
— Como?
— Pule. São sete andares. E, por favor, não grite.
— Não pretendo pular — respondeu a loura.
— Isso é injusto, Simonetta.
— Não vou pular!
— Calma. Nada de histerismo. Por mim, não vejo
inconveniente em ser gentil com você. Desde que seja
correspondido, é lógico. Vamos ver... para quem trabalha e
que história é essa de contratar mercenários e aventureiros de
primeira categoria?
— Não pretendo responder.
— Não seja boba — disse North, secamente. — Talvez
pense que não sou capaz de jogá-la embaixo hem? Pois está
enganada. Vamos, não banque a idiota. Você vai ficar fora
do jogo, de qualquer modo. Não acha preferível ser retirada
da ação delicadamente a ser jogada daqui de cima?
Simonetta encarou Elvis North. O que viu nos olhos dele
a fez estremecer. Respirou fundo e murmurou:
— Trabalho para dois homens.
— Quem são e onde estão?
— Chamam-se Jacob Effel e Ludwig Werthe.
— Alemães como você. Onde estão?
— Em Ponza. Na ilha de Ponza.
— Que fazem lá?
— Não sei. Kobler, Delnier e eu devíamos ir ao encontro
deles, depois de ter contratado pessoal suficiente.
— O que chama de pessoal suficiente?
— Cinquenta homens.
— Cinquenta... Estão dispostos, então, a investir no
mínimo dois milhões e meio de dólares na operação?
— Sim.
— Que operação?
— Não sei... Falaram num juramento.
— Quando esperam vocês três em Ponza?
— Não sei. Quem sabia era Kobler. Quando tivéssemos o
pessoal suficiente, Kobler devia telefonar para um número
de Ponza. Não sei o número. Só quem sabia eram Kobler e
Delnier. Estou com eles há duas semanas, apenas. Sou
novata nessas coisas.
— Compreendo. Os dois sujeitos de Ponza não a
conhecem, hem?
— Pessoalmente, não. Kobler falou a meu respeito.
— Por que Kobler meteu você nessa história?
— Bem... somos... éramos amigos.
— Ilha de Ponza, hem?... Em que lugar da ilha? Numa
casa particular, num hotel, num iate, talvez?
— Não sei.
— Também não conhece Effel e Werthe, naturalmente.
— Exato.
— Logo, se eu a levasse comigo para Ponza, de nada
adiantaria, pois eles não a conhecem e você não os conhece.
Em resumo: você não tem utilidade nenhuma para mim,
Simonetta.
— Que quer dizer com isso? — exclamou a loura,
assustando-se.
— Calma. Não sou um matador que vai deixando
cadáveres pelo caminho, sem necessidade. Seremos
obrigados a retirá-la de circulação, e nada mais. Gentilmente.
Até o caso se solucionar. Sabe mais alguma coisa?
— Falaram num juramento, mas não sei de que se trata.
— Perfeito. Vamos sair daqui. Deixaremos você bem
guardada. Trate de ser boazinha e não complique mais a
vida, ouviu?
Elvis North levantou-se e foi até a amurada do terraço,
ficando de frente para a loura que se encontrava no terraço
da outra casa. Movimentando os lábios, mas sem emitir som
algum, Elvis North disse:
— Vou descer com Simonetta. Adiante-se e traga o carro.
Devemos levá-la.
Viu o gesto de Alice, do outro lado da rua. Ouviu a
respiração arquejante de Simonetta às suas costas e
adivinhou o que ela estava fazendo. Voltou-se com a rapidez
de um raio, esgueirando-se para a esquerda. Simonetta, de
braços estendidos, passou por ele. Um grito de pavor brotou
dos lábios dela ao perceber que o caminho estava livre. As
pernas de Simonetta bateram de encontro ao parapeito do
terraço. O corpo desequilibrou-se para frente, As mãos de
Simonetta debateram-se no vazio e não encontrando apoio
crisparam-se de repente. O grito tremeu em sua garganta
quando o corpo se projetou no espaço, iniciando a queda.
A um metro e meio da amurada, Elvis North continuava
imóvel. Não tivera tempo de fazer o menor gesto para
segurar Simonetta. Quando olhou para baixo, o corpo da
loura jazia na calçada. North recuou, para não ser visto da
rua. Olhou para Alice, que lhe fez sinal para descer. Elvis
North puxou para a sala do apartamento os cadáveres de
Kobler e de Delnier. Examinou- lhes os bolsos, rapidamente,
apoderando-se de tudo que encontrou, menos as pistolas.
Um minuto mais tarde, Elvis North chegou à rua, onde
um grupo de curiosos cercava o corpo de Simonetta. O
homem de ombros largos afastou-se com passos naturais,
cruzando com outras pessoas que corriam para junto do
grupo de curiosos. Viu Alice, na calçada em frente. Andando
paralelamente a ele, sem pressa, com passos normais.
Pouco depois ouviu a freada suave de um carro à
esquerda. Abriu a portinhola da direita e entrou no veículo.
Ao volante encontrava-se a loura e belíssima Alice
Westmoreland, que logo reiniciou a marcha, comentando:
— Que moça idiota.
— Seu segundo tiro não foi tão bom como o primeiro.
Acertou o olho do sujeito.
— Porque ele mexeu com a cabeça. Descobriu alguma
coisa?
— Não. Mas tenho uma pista. Ludwig Werthe e Jacob
Effel, na ilha de Ponza.
— Só isso?
— Também trouxe os pertences dos camaradas do
terraço. Talvez sejam de alguma utilidade. Ah, existe
também um juramento. Ignoro em que consiste. Simonetta
disse que os amiguinhos dela mencionaram um juramento. É
tudo quanto sei.
— Podemos ir à ilha de Ponza perguntar a Werthe e a
Effel — murmurou Alice, sorridente. — Se a pobre louca
não se divertiu à sua custa.
— Não creio. Compreendeu que não tenho um gênio
muito bom. Deve ter dito a verdade. Ou parte dela.
Realmente não era esperta.
— Nada perdemos indo a Ponza. Não é um lugar muito
conhecido.
— Trata-se de uma ilha pouco explorada pelo turismo.
Por enquanto. Mas já estão começando a fazer propaganda.
Não se compara a Capri ou a Ischia, é claro.
— Mas deve ser um lugar sossegado.
— Até agora, pelos menos. Está com fome?
— Um pouco. Por que não estaria?
— Liquidamos três pessoas.
— Ora, meu amor, o desaparecimento desse tipo de gente
não me tira o apetite. Talvez o aumente. Eram dois
assassinos. Ela também. Tentou empurrar você, quando se
viu perdida. Mas o feitiço virou contra o feiticeiro. Quem
pulou e caiu foi ela.
— Tem razão — murmurou North. — Não vale a pena
perder o apetite por causa de gente dessa espécie. Onde
gostaria de jantar?
***
Alice e Elvis voltaram para o hotel, ás dez e pouco da
noite. Não era um estabelecimento de superluxo, mas ficava
na Via Caraccirjo, perto do Aquário dos Jardins Comunales.
Uma boa localização. Das janelas da suíte podiam
contemplar o mar azul de Nápoles.
Elvis North sentou-se junto à mesinha e nela foi
depositando o que tirara dos bolsos de Kobler e de Delnier.
Alice sentou se diante dele. Cada um encarregou-se de uma
carteira. O dinheiro foi posto de lado e o restante separado
em dois montes, para não se misturar. Os olhos do casal
fixaram-se ao mesmo tempo nas passagens para o vaporetio
da linha Gaetamare. Três passagens.
— São para depois de amanhã — informou Alice, depois
de examinar os bilhetes.
— Iam para Gaeta e de lá, sem dúvida, seguiriam para,
Ponza. Talvez isso signifique que já tinham os cinquenta
homens ou contavam ter, depois de amanhã. Se nos
descuidássemos um pouco, não teríamos chegado a tempo.
Simonetta devia estar, hoje, no Bar Tritone, esperando pelos
últimos. Que é isso?
Elvis desdobrou o papel encontrado no fundo falso da
carteira de Kobler. Os dois ficaram imóveis, examinando a
lista de nomes. Elvis contou-os rapidamente e ergueu o rosto
para Alice, murmurando:
— Quarenta e seis. Faltavam quatro. Bem, se reuniram
quarenta e seis homens de boa categoria, a coisa não vai ser
fácil de controlar, seja lá o que for.
— Terão concentrado todos em Ponza?
— Não creio. Quarenta e seis homens como os desta lista,
embora cheguem separados e não se relacionem, dariam na
vista. Ponza é um lugar pequeno, com pouca população. Na
certa esperam em lugares diferentes e serão avisados quando
chegar o momento de iniciar a ação. Isso, sem dúvida, só
aconteceria depois que Kobler e Delnier tivessem falado com
Werthe e Effel, em Ponza.
— Vamos examinar a lista para ver se conhecemos
alguns desses homens. Aí, poderíamos visitá-los...
amistosamente. Se não conhecermos, encarregaremos seus
amigos ou os meus Johnnies de procurá-los, enquanto
seguimos a pista em Ponza. Kobler terá ligado para Ponza,
avisando que chegariam depois de amanhã?
— Não faço a menor ideia. Se comprou as passagens,
deve ter avisado da chegada. Seria o lógico. Mas não
chegarão.
— Mas Simonetta pode chegar.
— Esqueça isso.
— Você disse que eles não a conhecem.
— Esqueça, já disse. É perigoso demais.
— Eu sou loura como Simonetta — murmurou Alice,
sorrindo. — Gostei do nome, sabe? Simonetta é bonitinho. E
sou loura... neste momento, é claro. Ou não sou?
— Sei muito bem que é loura — rosnou Elvis North. —
E daqui a meia hora pode ser morena, ou ruiva, ou uma anciã
simpática. Sei com quem estou lidando. O que não sabemos
com certeza é se Simonetta mentiu em algum ponto. Se
mentiu e Werthe e Effel a conheciam... veriam que você não
é Simonetta. Não, não me agrada a ideia de você tomar o
lugar dela. Já usamos esse truque de tomar o lugar de outra
pessoa... muitas vezes, bem sei. Mas um dia pode não dar
certo. Encontraremos outro modo de localizar Werthe e
Effel, em Ponza.
— Como quiser — concordou Alice, pendurando-se no
pescoço de Elvis. — Temos um dia e meio para encontrar
um jeito de agir. Surgirá alguma ideia, como sempre.
Enquanto isso.
Alice beijou Elvis na boca. Ele a enlaçou com seus braços
musculosos e correspondeu ao beijo. Esqueceram-se que
eram, naquele instante, Elvis e Alice. Só existiam os dois...
“Baby” e Número Um. Mas os nomes não tinham a menor
importância para eles.
— Qualquer dia você me asfixia — balbuciou Alice,
descolando os lábios dos dele.
— É melhor morrer assim do que com uma bala na nuca.
Quando estamos abraçados, porém, eu acho que o melhor
seria não morrer... nunca.
— Não devíamos nos amar tanto — suspirou ela,
aconchegando se mais nos braços dele.
— Não nos amemos.
Entreolharam-se. Alice sorriu suavemente e em resposta
tornou a procurar a boca de North, com seus lábios
vermelhos e transbordantes de amor e de desejo.
CAPÍTULO TERCEIRO
Uma ilha paradisíaca

O vaporetto vermelho e branco da modestíssima linha


Gaetamare ancorou finalmente no cais de Ponza. A passarela
foi colocada. As quarenta e tantas milhas marítimas tinham
sido atravessadas, desde Gaeta, sem novidades e sob o sol
agradável e brilhante da manhã.
A loura sorriu, contemplando a ilha formada por três
localidades: Santa Maria, Conti e Le Forna, do outro lado, na
parte norte. Ponza era um lugar com enormes possibilidades
turísticas, ainda não exploradas até aquele momento.
Como costumava fazer quando ia a um lugar
desconhecido, Alice Westmoreland tomara informações
sobre a ilha de Ponza. Assim não chegava às cegas. O que
mais a encantou foi o mar muito azul. Achou o lugar
verdadeiramente paradisíaco. As gaivotas voavam
alegremente, dando um ar de despreocupação total.
Decididamente, a ilha de Ponza era um local excelente para
umas férias.
Enquanto Alice observava a paisagem, preparando-se
para desembarcar, do cais, dois homens a estavam
observando.
— Tem uma revista na mão — disse um deles.
— Mas não sabemos se é uma revista francesa —
retrucou o outro. — Além disso, não vejo Kobler e Delnier
com ela. Pode ser uma casualidade, Jacob.
— Sim, pode ser. Também não vejo Kobler e Delnier.
— Logo aparecerão.
Mas Jacob Effel e Ludwig Werthe não viram Kobler e
Delnier. Esperaram até todos os passageiros do vaporetto
terem desembarcado. Mas ali estava a loura, com a maleta ao
lado e a revista na mão esquerda. Werthe e Effel trocaram
um olhar, balançaram a cabeça afirmativamente e avançara
em direção à loura. Com um olhar rápido, verificaram que a
revista era francesa. Notaram, também, que ela olhava para
eles com ar curioso. Talvez com certa desconfiança.
— Deve ser a pequena de Kobler — murmurou Werthe.
Alice Westmoreland ouviu-o falar em alemão. Pelo
movimento dos lábios, entendeu o que Werthe acabara de
dizer. A partir daquele momento, Alice deveria ter
prosseguido o plano combinado com Elvis North. Isto é:
devia ter-se desinteressado do assunto. Haviam combinado
que ela se deixaria ver e ser confundida com Simonetta.
Quando perguntassem se era ela, porém, negaria, afastando-
se em busca de um hotel ou de uma pensão. O resto ficaria
por conta de Elvis, que não perderia de vista a pessoa ou as
pessoas que tivessem perguntado a Alice se ela se chamava
Simonetta.
Fora este o plano combinado.
Mas...
Alice viu os dois homens se aproximarem, dirigindo-se a
ela. Aparentavam um pouco mais de trinta anos, eram altos,
de aspecto agradável e feições inteligentes. Quando se
plantaram diante dela, sorrindo cortesmente, ela também
sorriu.
— Desculpe — murmurou Werthe. — A senhorita é
Simonetta Vanini?
Alice sabia que Elvis lhe passaria um sermão em regra,
como de outras vezes, mas disse:
— Sou. O senhor é Effel?
— Não. Eu sou Werthe. Effel é ele.
— Ah, sim. Encantada.
— Veio sozinha?
— Vim.
— Que aconteceu com Kobler e com Delnier?
— Ficaram em Nápoles. Acharam que já tínhamos
pessoal suficiente, mas à última hora, disseram que ainda
tinham algo a fazer em Nápoles. Mandaram-me na frente
achando conveniente eu vir o mais depressa possível, depois
de ter contratado as pessoas.
— Compreendo — murmurou Werthe. — O que não
compreendo é o que podiam ter para fazer em Nápoles. Não
disseram?
— Não.
— Talvez Schotz já tenha chegado a Nápoles — sugeriu
Effel, coçando o queixo e encarando o companheiro. — Com
certeza ligou para eles.
— Ah, sim — exclamou Alice. — Agora me lembro!
Mencionaram esse nome. Sim, Schotz. Isso mesmo. Tenho
certeza. Ouvi o nome, mas não o que diziam a respeito.
— Ótimo — balbuciou Effel, sorrindo. — Vai tudo bem.
Senhorita Vanini, temos...
— Simonetta, apenas — cortou Alice. — E é necessário
falarmos em italiano. Podemos falar em alemão, se
preferirem.
— Por enquanto, não é conveniente. Quando estivermos
na lancha, não haverá problemas. Ela está aqui perto.
Permita-me que leve sua mala.
— Obrigada.
Effel tomou a mala de Alice e os três seguiram na direção
indicada pelo alemão. Alice Westmoreland traçou um plano
de ação. Chegariam à lancha e se afastariam do cais, com
toda a certeza. Aí ela sacaria sua pistolinha e obrigaria os
dois a deter a embarcação. Quando Elvis os alcançasse na
lancha dele, ela já teria dominado a situação. E evitaria
riscos inúteis para o homem a quem amava.
Precisou fazer um esforço para conter o sorriso de
satisfação ao avistar Elvis North numa das lanchas ancoradas
no embarcadouro. Captou o olhar de espanto dele e achou
natural, uma vez que ela não agira de acordo com a
combinação que haviam feito.
— Ali está — disse Werthe, apontando uma embarcação.
— Como foi a viagem, de Gaeta para cá?
— Oh, muito boa. Adoro navegar. Jamais enjoo!
— É uma criatura feliz — murmurou Effel, sorrindo. —
E Kobler também. Se é que entendi bem o que ele me disse
sobre vocês...
— Entendeu, sim — respondeu Simonetta, rindo.
Pularam para a lancha e Werthe foi para a cabine de
comandos. O amável Effel tomou Alice pelo braço, dizendo
num tom gentil:
— É melhor descermos. Ficaremos mais confortáveis.
— Vamos para longe?
— Não.
Desceram para a cabine, no momento exato em que
Werthe ligou o motor. Jacob Effel deixou a porta bater,
depois que passaram. Pousou a mala no chão e, sem
transição, assestou um murro no estômago de Alice
Westmoreland. Um murro brutal, espantoso. Simonetta
soltou a revista e encolheu-se, com o rosto desfigurado.
Teria caído como um novelo de lã aos pés de Effel se ele não
a tivesse amparado com a mesma mão usada para esmurra-
la. Empurrou-a para o beliche e sacou a pistola da axila
esquerda.
Deitada no beliche, Alice reabriu os olhos. O golpe fora
tão inesperado que ela não tivera tempo para retesar os
músculos abdominais. A dor era terrível. Mal podia respirar.
Um bofetão dado por Effel com a esquerda jogou-a do
beliche no chão. Novamente foi amparada por Effel. Desta
vez, por uma joelhada que a fez voltar para o beliche.
— Preste atenção — rosnou o alemão, com um tom de
voz agressivo. — É melhor não se mexer, mesmo que esteja
em condições de fazê-lo. Caso contrário meto-lhe uma bala
nos miolos.
A recomendação era desnecessária. Alice Westmoreland
recebera muitos golpes em toda a sua vida. Mas nenhum
como aqueles, tão de surpresa e tão violentos. Afinal ela,
apesar de tudo, era uma mulher. Mulher que sentiu em seu
corpo a mão de Jacob Effel. O alemão tateou-lhe as pernas.
A pistolinha estava colada à coxa esquerda, com duas tiras
de esparadrapo. Fazendo um movimento decidido, Effel
arrancou-a do esconderijo.
— Muito bem, menina esperta — exclamou satisfeito. —
Que tal batermos um papinho?
Alice firmou a vista. A figura de Effel ficou mais nítida.
O motor da lancha chegou aos ouvidos dela. Para a loura e
bela Alice, aquela cabine parecia uma gruta escura e
sombria. Sua resistência, extraordinária, permitiu que logo se
refizesse. O suficiente, ao menos, para avaliar a situação
numa perspectiva real e definida.
Jacob Effel, sentado no outro beliche, a contemplava com
ar irônico e preocupado, ao mesmo tempo. Mantendo a
pistola apontada para Alice.
— Sente-se melhor, Simonetta? Ou não é Simonetta? Se
não é, bancou a idiota. Sabe por que? Porque o tal de Schotz
não existe. Logo, não pode ter ouvido Kobler falar nele. Foi
uma ideia repentina que tive, quando fiquei desconfiado. Agi
bem, hem? Assim ou você não é Simonetta ou é uma débil
mental. Qual das duas hipóteses?
— Acho... que sou... idiota — balbuciou Alice,
arquejante.
— Ah, isso é mau! Se fosse outra pessoa as coisas ainda
poderiam se arranjar. Mas se é idiota, continuará sendo para
o resto da vida. Muito bem, idiota: por que aceitou a
existência de Schotz, se Kobler nunca falou nele?
— Tive a impressão de que vocês não confiavam em mim
e como queria que confiassem... que se convencessem de que
sou amiga de Kobler, falei em Schotz...
— Muito bem... como Schotz não existe no grupo e
Kobler e Delnier não podiam te falado nele, por que os dois
ficaram em Nápoles?
— Não sei.
— Está mentindo e se tornando ainda mais idiota. Kobler
não é imbecil. Logo, ele não a mandaria sozinha para cá. Por
que iria fazer isso, se nós não a conhecíamos? Se Kobler
ficasse em Nápoles, você também ficaria. Ou ele nos teria
avisado pelo telefone. Por que Kobler não nos preveniu?
— Não sei.
— Escute, aqui, idiota, você tem uma carinha linda e um
corpo alucinante. Em circunstâncias normais, eu a convidaria
para fazermos amor. Talvez mesmo a violasse. Mas no
momento não posso perder tempo com essas tolices. Algo
imprevisto aconteceu em Nápoles. Diga logo o que foi. Que
se passou com Kobler e com Delnier?
— Eles ficaram lá.
— Ludwig — gritou Effel.
— Um momento — respondeu Werthe. — Vou travar o
comando e já desço.
A lancha diminuiu a velocidade. O motor adquiriu um
ritmo mais suave e monótono. Ludwig Werthe entrou na
cabine. Ao ver Alice no beliche, enrugou a testa, explicando
em seguida:
— Estamos em mar aberto, mas não posso demorar aqui
muito tempo, Jacob. Que aconteceu? Que explicação ela deu
quanto a Schotz?
— É uma idiota — rosnou Effel. — Está querendo bancar
a heroína, insistindo em não falar. Contou uma porção de
besteiras. Tratemos de convencê-la a mudar de atitude. Que
decide, idiota?
— Não sei de nada...
— Pegue aquela corda e amarre as mãos e os pés dela —
ordenou Effel, cortando a frase de Alice pela metade. — Se
fizer um movimento, considere-se morta. Deite-se de bruços
e ponha as mãos nesse traseiro gostoso.
Alice Westmoreland passou a língua pelos lábios,
mantendo o olhar fixo em Effel. Já estivera em situações
muito piores. Mas não queria arriscar-se a receber um
balaço, conforme a expressão de Effel deixava transparecer.
Obedeceu e ficou imóvel, enquanto Werthe lhe amarrou os
pés e as mãos.
— Muito bem — rosnou Effel. — Sabe o que vamos
fazer? Ou você nos diz a verdade a respeito do que
aconteceu em Nápoles ou vamos suspendê-la, amarrada,
sobre a hélice da lancha. Iremos abaixando lentamente, até a
hélice cortar seus pés. Depois, as pernas... Entendeu?
— Já disse várias vezes que...
— Leve-a, Ludwig — tornou a cortar Effel. — Quando a
colocarmos sobre a hélice começará a gritar como uma louca
e dirá a verdade. Ou prefere falar agora, Simonetta?
— Não sei de coisa alguma.
— Pode levá-la, Ludwig.
Ludwig Werthe carregou Alice nos ombros. Saiu da
cabine seguido por Effel. A ancha continuava navegando em
meia marcha, rumo ao mar alto. De repente, porém, Effel
deu um pulo grotesco para a esquerda, rodopiando e soltando
um grito. A pistola escapuliu de seus dedos e caiu no mar.
Ao chegar à amurada, sempre rodopiando, o alemão
cambaleou e projetou-se nas ondas.
Werthe ficou apatetado com os olhos fixos na espuma à
retaguarda da embarcação. Esperando, sem dúvida, ver a
companheiro reaparecer. Reagindo bruscamente, girou a
cabeça para a direita e viu outra lancha, navegando paralela à
deles e na mesma velocidade. Da amurada da outra
embarcação, um homem o contemplava friamente, com um
rifle nas mãos. Numa fração de segundo, Werthe
compreendeu tudo. A outra lancha os seguira a distância. Só
se aproximara quando ele ligara o piloto automático na deles.
Aquele sujeito que o contemplava, de rifle em punho, matara
Jacob.
Ludwig Werthe soltou uma exclamação de raiva. Sacudiu
os ombros para a direita e Alice Westmoreland foi jogada no
mar. No mesmo instante, o alemão sacou a pistola. Mas não
chegou a usar a arma. A bala disparada pelo rifle de Elvis
North, de menos de quarenta metros de distância, acertou-o
na cabeça, empurrando-o com violência para o lado oposto.
Mas Werthe não chegou a cair no mar. Bateu de encontro à
amurada e desabou no convés. E a lancha continuou
navegando suavemente sobre o mar azul, sob o céu azul.
Elvis North jogou o rifle no chão, destravou o comando e
manobrou a lancha, virando-a para o ponto onde Alice havia
caído. A loura apareceu à superfície, agitando as pernas
amarradas pelos tornozelos. Poderia manter-se à tona durante
algum tempo, até as forças a abandonarem. Elvis deteve o
motor da lancha e mergulhou. Ao passar por Alice, segurou-
a com mão firme e perguntou:
— Você está bem?
— Sim... mas a água está muito fria.
North virou de barriga para cima, colocou Alice sobre seu
ventre e nadou de costas em direção à lancha. Minutos mais
tarde os dois se encontravam a salvo, no convés. Elvis
retomou os comandos e deu a partida, seguindo atrás da
embarcação de Werthe e de Effel. Um dos alemães estava
caído no convés da lancha, morto. O outro jazia no fundo do
mar.
— Não vai desamarrar-me? — pediu Alice.
Elvis não respondeu. Estava zangado com a mulher a
quem amava. Zangadíssimo. Ela entendeu e não insistiu. A
outra lancha foi alcançada com facilidade. Só então Elvis
desamarrou Alice. Ela assumiu o comando da embarcação.
Elvis pulou para a dos alemães e assumiu a direção. Parou o
motor. Segundos mais tarde, Alice colocou a lancha de Elvis
encostada à outra.
— Haverá algo interessante lá embaixo? — perguntou
ele.
— Não creio. Verifique.
Nada encontrando, Elvis revistou as roupas de Werthe.
Não conteve uma expressão de desagrado, pois o alemão
ficara com a cabeça arrebentada como se uma bomba a
tivesse explodido. Alice ficou vigilante, para o caso de outra
embarcação aparecer. Apesar disso, viu quando Elvis
guardou qualquer coisa. Terminada a revista do cadáver, o
homem de ombros largos desceu até a cabine da lancha.
Examinou os armários, os beliches, a cozinha... e desistiu de
continuar procurando indefinidamente. Dois minutos depois
reapareceu no convés, pulou para a lancha onde Alice se
encontrava e rosnou:
— Vamos embora.
— Achei que seria fácil — foi o comentário de Alice.
— É melhor descer e mudar de roupa.
— Você também está molhado.
— Oh, adoro tomar um banho, de vez em quando. Não se
preocupe.
Alice desceu para a cabine. Despiu-se, enrolou-se num
cobertor e acendeu um cigarro do maço que encontrou na
mesinha. Quando a lancha se deteve, havia terminado o
cigarro. Ouviu o barulho da âncora ao ser lançada na água.
Um segundo mais tarde, Elvis entrou na cabine e sentou-se
diante da companheira, dizendo:
— Ainda não sei o que farei em Ponza. Você, porém, não
deve voltar para lá. Alguém pode tê-la visto com esses dois
sujeitos.
— A lancha deles afundou?
— Claro. Fiz um furo no casco. Se os encontrarem, só
daqui a muito tempo. Espero. Esse ponto está solucionado.
Você, repito, não deve voltar para Ponza. Podem relacioná-la
com Werthe e com Effel. Num lugar tão pequeno sempre
existe alguém que se distrai observando os outros.
Principalmente tratando-se de uma mulher como você. Se a
viram com os alemães, não se esquecerão, garanto. Ficarão
intrigados, imaginando como conseguiu voltar sozinha. Hão
de querer saber que fim levaram os dois sujeitos... e a lancha.
— Tudo se pode arranjar — disse Alice, com uma calma
impressionante.
Elvis encarou-a fixamente. Inclinou-se, segurou o
cobertor e puxou-o. Ficou imóvel ao ver o hematoma que
começava a se formar no ventre de Alice.
— Foi um murro só, querido — balbuciou ela, tornando a
cobrir-se.
— Muita gente morreu por causa de um golpe desses.
— Não será o meu caso. Sei de gente que morreu por não
trocar a roupa molhada. De um resfriado, sim, podem surgir
problemas imprevisíveis.
Elvis começou a despir-se e enrolou-se como pôde em
outro cobertor. Com o braço livre, enlaçou Alice pela cintura
e obrigou-a a sentar-se a seu lado, perguntando num
sussurro:
— Está bem, mesmo? De verdade?
— Sou capaz de apostar como sua zanga já passou —
disse ela, esboçando um sorriso.
— Pois devia estar muito zangado — rosnou Elvis. —
Mas seria tolice.
Alice observou os lábios dele. E ele observou os dela. Em
seguida, lentamente, uma boca se aproximou da outra.
***
Meia hora mais tarde, Alice perguntou:
— Que foi que você meteu no bolso, quando revistou
Werthe?
— A chave do quarto número 4 do hotel Cielo. Deve
ficar em Ponza, sem dúvida.
— Ah, então os dois estavam hospedados lá, hem?
— Com toda a certeza você não concordaria em ir
embora de Ponza, deixando que eu terminasse o que for
necessário fazer por aqui, não é mesmo? — disse Elvis,
acariciando o seio direito de Alice.
— Se eu for embora de Ponza e derem por falta de
Werthe e de Effel, se lembrarão de mim. Aposto como os
carabineiros irão à minha procura.
— Já esperava por essa resposta. Bem, precisamos dar
um jeito nisso. De qualquer maneira.

CAPÍTULO QUARTO
Um lindo bebê

— Sim, temos um quarto, senhorita — disse o


recepcionista do hotel Cielo, maravilhado com a loura
parada à sua frente.
— Felizmente — exclamou ela. — Assim poderei ficar
perto dos meus amigos. Refiro-me aos cavalheiros alemães
chamados Ludwig Werthe e Jacob Effel. Lembra- se deles,
não é?
— Oh, sim. Ocupam um quarto duplo. O número 4.
— Eu sei. Oh, como sou tola! Quase ia esquecendo.
Ludwig me deu a chave do quarto dele. Pediu-me para
deixá-la aqui. Levou-a por distração. Como precisou ir a
Nápoles fazer uns negócios, encarregou-me de entregá-la ao
senhor.
— Viajou? — perguntou o recepcionista, surpreso.
— Sim, na lancha. Ficarão fora dois ou três dias, apenas.
Problemas de negócios... e a culpada fui eu. Quando eu disse
a eles que surgira uma complicaçãozinha na fábrica de
Nápoles... Oh, coisas de rotina. Eu vim para cá com
intenções de descansar.
— Escolheu bem — murmurou o recepcionista, sorrindo.
— Em novembro esta ilha é muito sossegada. Embora o
turismo no inverno tenha aumentado sensivelmente.
— É uma ilha muito bonita. Muito breve estará tão
famosa como Capri.
— Tomara! Nessa época não teremos tanto sossego.
— Tratemos de aproveitar enquanto é possível.
— Claro. Oh, a senhorita deve estar cansada. Mandarei
subir sua mala. Ficará no quarto número 7. Tem janelas para
o mar.
O recepcionista acompanhou-a ao primeiro andar, onde
ficavam os quartos de um a dez. Só havia mais outro
pavimento, com os quartos de onze a vinte. Era um hotel
agradável, com o corredor amplo e cheio de plantas. O
quarto tinha um balcão abrindo para o mar, embora entre o
hotel e ele houvesse outros prédios que desciam, uns ao lado
dos outros, pela rua enladeirada.
— A paisagem é maravilhosa — exclamou Simonetta.
— Alegro-me que tenha gostado. Se precisar de alguma
coisa, é só dizer.
— Obrigada — murmurou Simonetta abrindo a bolsa, da
qual retirou um maço de notas. Separou uma de cinco mil
liras e estendeu-a ao empregado do hotel, acrescentando: —
O senhor é muito gentil.
— A senhorita, também. Oh, seus documentos, sim?
— Dou agora mesmo, Um minutinho.
Meteu a mão na bolsa e arregalou os olhos, espantada.
Remexeu no interior da bolsa e exclamou:
— Santíssima Madona!
— Aconteceu alguma coisa, senhorita Vanini?
Simonetta não respondeu. Abriu a mala e começou a tirar
o que havia nela. Quando a mala ficou vazia, a loura
murmurou:
— Aconteceu de novo! Esqueci-me de todos os
documentos! Que amolação! Oh, mas não faz mal. Ludwig e
Jacob telefonarão amanhã cedo. Ou depois de amanhã.
Pedirei a eles para passar em meu apartamento, a fim de
apanhá-los. Oh, mas não têm a chave. Ah, o porteiro abrirá a
porta. Já os conhece bem. Sabe que são meus amigos.
Telefonarei para Mário. Isso mesmo! Está bem assim,
senhor...
— Paolo — apresentou se o recepcionista. — Não se
preocupe. Não é um problema complicado, afinal de contas.
— Fico-lhe muito grata, Paolo.
— Que todos os problemas da vida fossem iguais a esse!
Deseja que chame o porteiro de sua casa?
— Oh, agradecida. Vou escrever o número do telefone de
Nápoles. Céus! Esqueci-me de tudo! Nem a caneta eu
trouxe!
— Também não é problema — disse Paolo, rindo e
oferecendo-lhe a caneta.
Alice Westmoreland, ou melhor, Simonetta Vanini
anotou um número de telefone de Nápoles numa das folhas
do bloquinho de notas que estava na mesinha de cabeceira.
Dobrou-a e entregou a ao porteiro. Paolo retirou-se,
sorridente. Simonetta também esboçou um sorriso. De
qualquer modo, uma situação assim não poderá prolongar-se
demais — pensou, ao ficar sozinha. — Dois ou três dias, no
máximo.
Dez minutos mais tarde o telefone tocou.
— Pronto? — disse ela, atendendo. — Ah, Paolo? Muito
obrigada. Pode ligar com Mário, sim. Mário? Aqui fala
Simonetta Vanini. Estou telefonando de Ponza. Ei, está
ouvindo bem?
—...
— Ótimo! Escute, um de meus amigos alemães vai passar
por meu apartamento para apanhar umas coisinhas. Quer
fazer a gentileza de abrir a porta para ele, sim?
—...?
— Oh, não sei. Os dois saíram de Ponza. Não sei qual dos
dois passará por aí. Tanto faz o senhor Werthe ou o senhor
Effel. Você os conhece. Lembrará deles, quando os vir.
Obrigada, Mário.
—...
— Um recado para mim? Oh, chegou logo agora, que eu
saí de Nápoles? Quer ler, por favor?
—...
— Um dos clientes que eu procurava foi localizado. Bem,
obrigadinha, Mário. Normalmente eu seria obrigada a
regressar a toda a pressa mas, como os senhores Werthe e
Effel foram para aí, eles se encarregarão do caso. Mandarei
um postal para você. Vai receber amanhã mesmo, garanto.
Adeus, Mário.
Desligou um pouco aborrecida por ter sido obrigada a
chamar de Mário o homem a quem, geralmente, chamava de
Johnny. Nome pelo qual chamava todos os companheiros da
CIA. Enfim, se ela e Número Um tinham resolvido ser Elvis
e Alice, da VU, era necessário prosseguir com a brincadeira.
Embora só um recepcionista de hotel de uma ilha de turismo
pudesse ouvir a conversa. De qualquer modo, não ouviria a
conversa que ela teria com Número Um usando o radinho
camuflado num maço de cigarros. Por isso, Brigitte “Baby”
Montfort se deu ao luxo de dizer:
— Número Um? Sou eu, “Baby”.
— Está enganada. Meu nome...
— Oh, está bem — cortou ela, rindo. — Quis dizer: aqui
fala Alice Westmoreland, meu amor. E você é Elvis North,
naturalmente.
— Assim está melhor. Que aconteceu?
— Tudo bem. Chamei Johnny, em Nápoles. Pelo
telefone. Ele entendeu logo. Fingiu ser um tal Mário,
porteiro de certo edifício. Por enquanto, ficarei no hotel, mas
há novidades. Meus Johnnies encontraram um dos sujeitos.
Disse a Johnny-Mário que vou mandar um postal e que ele
receberá amanhã
— Isso significa que ele está esperando instruções nossas,
hem? Eu cuido de tudo. Continue com a sua parte. E não
complique as coisas. Nada de se arriscar sem necessidade,
ouviu?
— Ciao, amore.
Simonetta Vanini cortou a ligação e guardou o maço de
cigarros na mala. Olhou, em seguida, para a maletinha
forrada de veludo negro, mas balançou a cabeça
negativamente. A mala grande era melhor.
Saiu do hotel por volta de uma hora, usando calças
brancas e uma blusa de malha azul-celeste que combinava
muito bem com os olhos e os cabelos da loura. Pouco depois,
numa trattoria1 da praia, saboreava um almoço à base de
peixe fresquíssimo e contemplava o mar e o movimento dos
barcos, dos iates e das lanchas. O dia estava maravilhoso,
embora já fosse novembro.
Os outros personagens da brincadeira poderiam estar num
daqueles iates? Não havia muitos. Três ou quatro de bandeira
italiana, dois franceses, um espanhol, dois ingleses, um
alemão... Um alemão. O fato de contratarem pessoal alemão
significava forçosamente que a direção do caso devia estar
nas mãos de outro alemão.
O juramento... Que seria o tal juramento? Que tipo de
juramento? Teria algo a ver com o caso, realmente?
Às duas e meia da tarde chegou de volta ao hotel. O
vestíbulo estava deserto. Nem o recepcionista se encontrava
no balcão. Simonetta pegou a chave no quadro e subiu ao
primeiro andar. Entrou em seu quarto e fixou os olhos na
chave. Serviria para abrir a porta do quarto número 4?
1
cantina italiana
Preferiu não perder tempo e apanhou o jogo de gazuas no
fundo falso da maletinha. Saiu para o corredor. Silêncio e
solidão.
Gastou cinco segundos, apenas, para abrir a porta do
quarto de Werthe e Effel. Fechou-a cuidadosamente, depois
de entrar, e olhou ao redor. Seria absurdo encontrar algo
importante num quarto de hotel. Enfim, nunca se sabe.
Examinou o conteúdo do armário. Descobriu, somente, que
Effel e Werthe haviam comprado aquelas roupas em
Dusseldorf, conforme indicavam as etiquetas de certo
alfaiate. Os sapatos, porém, eram italianos, de excelente
qualidade. Nada mais encontrou.
Decepcionada, voltou para seu quarto, disposta a dormir a
sesta. Nada mais tinha a fazer até alguém se interessar por
Werthe e por Effel.
Às cinco e meia estava na escada, contemplando o mar e
fumando, quando o telefone tocou.
— Pronto? — disse ela, atendendo a ligação.
— Sim... Compreendo. Diga ao cavalheiro que descerei
agora mesmo. Obrigada, Paolo.
Desligou. Refletiu um instante e recorreu ao radinho
camuflado no maço de cigarros.
— Fale — respondeu a voz de Elvis.
— Contato.
— Sim?
— Claro. Werthe e Effel esperavam Kobler e Delnier.
Sem dúvida alguém esperava que Werthe e Effel dessem
informações a respeito do que Kobler e Delnier haviam feito
em Nápoles. A pessoa em questão devia saber que Kobler e
Delnier chegariam a Ponza esta manhã. Não recebendo
notícias de Werthe e Effel nesse sentido, ligou para o hotel,
procurando Werthe. O porteiro informou à tal pessoa que
Werthe e Effel precisaram ir a Nápoles inesperadamente...
mas que no hotel estava uma amiga deles. Resultado: o
cavalheiro quer subir para falar comigo. Preferi encontrar-me
com ele no vestíbulo, para você poder vê-lo em minha
companhia.
— Dê-me cinco minutos.
— Feito.
— O cavalheiro disse o nome?
— Não.
— Está bem. Cinco minutos.
Alice Westmoreland cortou a ligação, guardou o radinho
e esperou seis minutos. Gastou esse tempo vestindo um lindo
traje de noite. Quando apareceu no vestíbulo, olhou para
Paolo. O recepcionista apontou com o queixo em direção à
mesinha cercada de poltronas. Numa delas estava sentado
um homem que se levantou quando a loura avançou ao
encontro dele.
Alice classificou-o como alemão. Alto, magro, cabelos
grisalhos, bem vestido, embora de um modo meio informal.
Os cabelos estavam cortados curtos e eram lisos. Teutônico
cem por cento. Usava óculos de lentes grossas que lhe
diminuíam os olhos. Cinzentos e penetrantes. Apresentava
cinquenta e cinco anos, mas estava bem conservado. O sol de
novembro dera-lhe à pele um tom avermelhado. Com certeza
estava em Ponza há vários dias.
— Senhorita Vanini? — murmurou o homem.
— Sim — respondeu a loura. — O senhor é o cavalheiro
que procura Ludwig e Jacob.
— Sim. O porteiro informou-me que eles foram a
Nápoles, de lancha.
— Exato. Tinham algo para resolver por lá, com outros
amigos a quem o senhor deve conhecer. Kobler e Delnier.
— Não. Não conheço esses senhores. Werthe e Effel
deixaram algum recado para mim?
— Nem sequer sei quem é o senhor — respondeu
Simonetta, sorrindo.
— Oh, perdoe... Eu me chamo Thomas Scheuner.
— Fala muito bem o italiano, senhor Scheuner. Mas não
há necessidade de nos cansarmos. Também sou alemã.
— Alemã? O porteiro me disse...
— Sim, eu sei. Disse que me chamo Simonetta Vanini.
Mas não é verdade. Meu verdadeiro nome é Ingeborg
Katzenberger.
— Ah, bem... Então, senhorita Katzenberger, se tem
algum recado para mim...
— Não, não tenho. Que tal nos sentarmos?
Simonetta sentou-se. Thomas Scheuner a imitou, sem
cessar de observá-la.
— Não sei se captou meu espanto, senhorita
Katzenberger.
— Não, não notei nada. Talvez porque eu também esteja
um pouco surpresa. Andei fazendo um trabalho em Nápoles.
Quando acabei e tudo parecia estar bem, Kobler mandou-me
vir para Ponza. Sozinha. Ele e Delnier ficaram de vir mais
tarde. Mandou-me que dissesse isso a Werthe e a Effel. Foi o
que fiz. Mal me ouviram, os dois resolveram ir a Nápoles.
Tão precipitadamente, que me deixaram fora da cidade, com
minha mala. Fui obrigada a carregá-la até o hotel. Calculei
que eles não queriam ser vistos no embarcadouro, embora
não compreenda o motivo...
— Não estou entendendo coisa alguma Aconteceu
alguma coisa ruim, em Nápoles?
— Que eu saiba, não. Contratamos o pessoal necessário
sem a menor dificuldade.
— Ah! Isso foi feito?
— Não sabia?
— Werthe e Effel ficaram encarregados de todos os
contatos com as pessoas da contratação. Eu não conhecia as
outras pessoas.
— Pois agora já sabe quem são: eu, Kobler e Delnier.
Conseguimos os cinquenta homens... Alguns são especiais.
— Muito bem.
— Não parece satisfeito com a informação.
— Não, não está tudo bem. Não entendo por que Effel e
Werthe viajaram sem me comunicar.
— Sinto muito, mas não me deram explicação alguma.
Pareceram preocupados com o fato de Kobler e Delnier me
terem enviado sozinha com a revista francesa que serviria de
reconhecimento. Nada mais sei exceto que tiveram uma
pressa enorme de ir para Nápoles. O senhor não saberá por
que fizeram isso?
— Não faço a menor ideia.
— Então empatamos — exclamou Simonetta Vanini,
sorrindo. — Bem, o senhor deve ser o chefe de Werthe e de
Effel. Pergunto, porque não gostaria de ter falado além da
conta com uma pessoa não qualificada para me ouvir. É o
chefe deles?
— Sim... Bem, pelo jeito só nos resta aguardar notícias de
Nápoles.
— Se quiser, posso telefonar para Kobler, apesar de me
parecer que já não estarão onde estavam antes, durante o
período da contratação. É curioso... Eu disse isso mesmo a
Werthe e a Effel. Foi aí que eles resolveram partir
imediatamente para Nápoles. Isso poderá ter algum
significado?
— Não sei.
— Devo tentar a ligação?
— Não é necessário. Esperaremos... embora não
possamos perder muito tempo, é claro. Segundo a
informação do porteiro, Werthe e Effel devem ficar dois ou
três dias em Nápoles. Foi o que eles lhe disseram?
— Não exatamente. Dei essa explicação ao porteiro para
evitar maiores complicações. Effel me disse que não ficasse
preocupada se eles demorassem dois ou três dias.
— Dois ou três dias? Está certo.
— O senhor está num iate?
— Não.
— Vi um com bandeira alemã.
— Não é meu.
— Se me disser onde está hospedado, eu o avisarei
quando tiver notícias de Werthe e de Effel. Ou de Kobler.
— Não é necessário. Telefonarei para cá.
Alice desviou o olhar para a porta ao captar um
movimento. Um jovem casal acabava de entrar. A mulher
carregava um bebê nos braços. Era bonita, de cabelos
arruivados e pele muito branca. Devia ter vinte e dois, vinte
e três anos. Ao lado dela, um rapagão atlético, um pouco
mais velho, ajudava-a a carregar a bolsa. Os dois vestiam-se
como Thomas Scheuner. Roupas informais, de quem está em
férias.
— Papai — disse o rapagão. — Precisamos voltar para
casa. Este diabinho fez das suas e não temos mais fraldas.
Ficou todo sujo.
— Sim, não se preocupem comigo. Darei uma volta, não
importa — respondeu Scheuner.
— Papagaio — exclamou o rapagão, sorrindo. — Está
bem acompanhado, hem?
— A senhorita é uma conhecida de Dusseldorf —
explicou Thomas Scheuner. — Uma casualidade.
— Olá — exclamou Alice, sorrindo. — Meu nome é
Ingeborg Katzenberger. Como vai?
— Bem — respondeu o rapagão. — Eu sou Wilfried e ela
é Kitty, minha mulher. Este porquinho chama-se Albert.
Thomas Scheuner ficou de pé. Alice também se levantou,
estendendo a mão para Wilfried e para Kitty. Contemplou o
bebê e acariciou-lhe o queixinho.
— Oh, está rindo — exclamou, divertida.
— É muito sociável — explicou Wilfried.
— E tem só oito meses — disse Kitty, também rindo.
— É um lindo menino — acrescentou Alice.
— Está meio resfriado. Por isso, quando papai disse que
ele e vovô vinham para cá, nós nos juntamos a eles. Com
este clima o bebê ficará logo bom. Para dizer a verdade, já
está bom. Ficamos preocupados, sabe?
— É natural. Pois agora parece estar com excelente
aspecto. E tem uma carinha esperta... como o pai!
— Não percam mais tempo, Wilfried — resmungou
Thomas Scheuner. — Se precisam mudar a roupa de
Albert...
— Bem, estando em companhia da senhorita
Katzenberger, não se sentirá sozinho, hem, papai? Até logo.
Por que não convida a senhorita para ir tomar um drinque lá
em casa, depois do passeio?
— Não sei...
— Não sabe? — perguntou Wilfried, surpreso. — Ora,
papai, você encontra uma amiga alemã, por acaso... uma
amiga simpática, acima de tudo, e não sabe se deve convidá-
la?
— Ora essa — gaguejou Scheuner. — Talvez ela tenha
outros planos...
— Não tenho — respondeu Alice prontamente. — Ficarei
encantada com o convite, senhor Scheuner.
— Sendo assim, está ótimo.
— Ei, não parece muito animado — exclamou Wilfried.
— Isso é espantoso. Você não é assim...
— Vamos, querido — cortou Kitty. — Precisamos mudar
a roupa do bebê.
Os dois riram. Thomas Scheuner estava meio atordoado.
Não sabia se ficava de pé ou se tornava a sentar. Uma
situação como raras vezes Alice Westmoreland havia
presenciado.
— Seu pai e eu falávamos sobre coisas sem importância
— disse ela. — A conversa pode esperar. O passeio também.
Para ser sincera, eu gostaria de ver... isso.
— Isso o que? — perguntou Kitty, rindo.
— Isso... como se lava um bebê, como se muda a
fraldinha... Será uma experiência nova para mim.
— É mesmo? — exclamou Kitty. — Então venha
conosco. Vai ver como é divertido!
— Por que não — apoiou Wilfried. Temos tempo de
sobra para dar passeios. Você vem conosco, papai?
— Bem... sim, é claro — respondeu Thomas Scheuner,
gaguejando. — Na verdade, temos muito tempo para passear
depois...
CAPÍTULO QUINTO
Os velhinhos

A casa onde estavam hospedados os Scheuner era


simplesmente encantadora. Ficava numa ruazinha retorcida.
O jardim tinha um muro branco com portão de madeira. Ao
fundo, entre flores, laranjeiras e oliveiras, surgia a casa.
— É maior do que parece — disse Kitty.
— Por isso podemos receber alguns hóspedes do avô. O
jardim, embora não sendo muito grande, permite a todos nós
uma certa independência. Eu adoro as laranjeiras!
— Eu também — apoiou Alice. — Espero que minha
presença não seja inoportuna, Kitty. Se o avô tem hóspedes...
— Oh, não se preocupe. São uns velhotes, iguais a ele, e
passam o tempo quase todo metidos no salão, conversando.
Mas são muito simpáticos. A começar pelo vovô Hermann.
Não é, papai?
— Sim — murmurou Thomas Scheuner. — São todos
muito simpáticos.
— Talvez tenhamos oportunidade de apresentá-los —
disse Wilfried. — Rio um bocado com eles! Vieram num
iate, dispostos a passar bem de verdade.
— Ah, talvez tenham vindo no iate com bandeira alemã,
que vi no embarcadouro.
— Deve ser — respondeu Wilfried. — E espere, que
ainda vão chegar mais velhotes. Se não fosse pela idade, eu
diria que preparam uma orgia.
— Chega, Wilfried — murmurou Thomas Scheuner.
— É brincadeira, papai — exclamou o rapagão, rindo. —
Mas está bem. Não critiquemos mais esses venerandos
senhores. Vamos preparar qualquer coisa para se beber,
enquanto Kitty e a senhorita Katzenberger mudam a
roupinha de Albert.
— Simplificaríamos muito as coisas se me chamasse
apenas de Inge — sugeriu Alice, rindo.
— Combinado. Agora não teremos remédio senão
apresentá-la ao vovô e aos amigos dele. Para tomar um
drinque, devemos ir para a sala.
— Eu irei apanhar as bebidas — disse Thomas Scheuner,
rapidamente.
— Não se incomode — cortou o filho, surpreso. — Além
disso, por que privar o vovô do prazer de contemplar Inge?
Ele já se cansou de contemplar Kitty.
— Não posso esperar mais — disse Kitty. — Vem
comigo, Inge?
A meia hora seguinte foi inédita para Alice
Westmoreland. Sob o olhar atento e vigilante de Kitty, Alice
deu banho no bebê, enxugou-o, passou-lhe creme e enrolou-
o na fraldinha limpa. Tudo isso, rindo e brincando com
Albert, cujos olhos enormes pareciam entender o que se
passava à sua volta.
— Estamos com vontade de ter outro filho — disse Kitty.
— Queremos tentar uma menina. É agradável ter um casal
de filhos. Muitos casais, hoje em dia, evitam as crianças, não
é mesmo? Não gostaria de ter um bebê, Inge?
— Não sei... Receio que a maldição da bruxa velha se
cumpra.
— Que maldição? — perguntou Kitty, arregalando os
olhos.
— Bem, realmente não se pode considerar uma maldição.
Certa vez uma bruxa predisse que eu teria quatro filhos no
meu primeiro parto2. Depois de ouvir isso, meu entusiasmo
diminuiu bastante.
— Santo Deus — exclamou Kitty. — Quatro filhos de
uma vez?!
Ainda estavam rindo, quando Wilfried apareceu no
quarto, perguntando:
— Então? Descem ou não?
— Tivemos que dar banho em quatro bebês — disse
Kitty, rindo.
— Como? Quatro?
— Depois eu explico, querido. Podemos entrar na sala?
— Claro. Venham. Dê-me esse safadinho. Ei, levantou os
braços! Cuidado, garotão. Nada de sujar minhas calças,
hem?
Ingeborg Katzenberger, ou melhor, Simonetta Vanini, ou
Alice Westmoreland, ou ainda, “Baby”, tentava imaginar
onde se metera. Devia haver um equívoco em tudo aquilo.
Algo não funcionava direito naquele caso. Passara da tarefa
de matar homens à de dar banho num bebê. Não fazia
sentido. Não tinha a menor lógica. Algo estava desarranjado
na investigação que ela e Elvis faziam naquela ilha.
Mal entrou na sala e viu os anciãos sentados em diversas
poltronas, teve o pressentimento de que se encontrava a
caminho de uma das mais inquietantes surpresas de sua vida
repleta de aventuras.
— Muito bem, vovô — disse Wilfried. — Aqui tem a
senhorita Katzenberger. Inge, apresento-lhe meu avô, o
grande Hermann Scheuner.
Com um sorriso estereotipado nos lábios, Alice observou
o homem que se aproximou, puxando da perna direita. O

2
Brigitte se refere a bruxa Mogamba, que conheceu na aventura 71, intitulada
Feitiço. (Nota do Revisor)
impressionante, porém, não era isso. O impressionante era
todo o homem. Especialmente os olhos. Pareciam-se com os
do filho. Pequenos, por trás das lentes grossas. Pequenos e
frios, embora no rosto enrugado houvesse uma expressão
capaz de ser definida como sorridente. Alto, magro,
encurvado, com os cabelos quase raspados, a boca sumida
entre as rugas, Hermann Scheuner parecia uma... barra, de
ferro velho, retorcida a mais não poder.
— Como está, Fraulein Katzenberger? — perguntou ele,
estendendo a mão.
— Muito bem, obrigada, Herr Scheuner. Encantada por
conhecê-lo.
— A senhorita é muito amável. Eu digo o mesmo,
naturalmente. Bem, não dê muita importância a Wilfried.
Apesar de se terem conhecido esta tarde, deve ter notado que
ele é um pouco brincalhão.
— Brincalhão? — perguntou Alice, sorrindo. — Por que
diz isso?
— Pelo grande Hermann. Sou apenas um pobre velho que
quer apanhar sol e descansar. A senhorita é muito bonita.
Encantadora, mesmo.
— E o senhor é muito gentil — murmurou Alice,
tornando a sorrir.
— Permita-me apresentá-la a meus amigos, os senhores
Helmutt Kleist, Johannes Loos e Robert Schallenberg, que
tiveram a boa ideia de passar por aqui para me fazer uma
visitinha.
Os três homens, que se tinham levantado, aproximaram-
se de Alice Westmoreland, sorridentes, estendendo a mão à
medida que iam sendo apresentados. Alice manteve o
sorriso, como uma máscara, ocultando sua impressão diante
de cada um daqueles anciãos. O mais jovem deles já deve ter
ultrapassado os setenta anos.
Helmutt Kleist também era coxo, como Hermann
Scheuner. Caminhava com evidente dificuldade. Johannes
Loos não tinha o braço esquerdo. Robert Schallenberg
parecia não ter defeito algum. Ao apertar-lhe a mão, porém,
Alice notou que o olho direito era de vidro. Ali, naquela sala,
havia dois coxos, um maneta e um caolho. Nenhum deles
com menos de setenta anos. Os quatro magros, de rostos
angulosos e enrugados como pergaminho.
Isso causou tamanha impressão em Alice que ela não
prestou grande atenção nas frases amáveis que lhe dirigiram.
Quanto às respostas dela, foram absolutamente protocolares.
Embora fingisse muito bem, não conseguia evitar aquela
profunda impressão.
— Se não me engano, disseram-me que é amiga de meu
filho, Fraulein Katzenberger — disse Hermann Scheuner.
— Sim. Nós nos encontramos algumas vezes em
Dusseldorf por motivos de trabalho. Foi uma surpresa mútua
nos encontrarmos aqui.
— Uma surpresa agradável — acrescentou Hermann
Scheuner, sorrindo.
— Naturalmente.
— Thomas está viúvo há muito tempo. É natural que ele
goste desse tipo de surpresas. Mas sente-se, por favor...
Wilfried convidou-a para tomar um drinque?
— Sim. Sim, foram muito gentis.
— A gentileza é uma das coisas que tornam a vida
suportável, não concorda?
— Sem dúvida — respondeu Alice, sentando-se. — Mas
existem muitas outras coisas que tornam a vida suportável.
Muito agradável, até, Herr Scheuner.
— Por exemplo? — perguntou o ancião, curioso.
— Por exemplo... dar banho em bebês.
Hermann Scheuner encarou-a, surpreso.
Wilfried não conteve uma gargalhada. Kitty sorriu. O
espanto de Hermann Scheuner durou pouco. Pigarreou e
disse com naturalidade:
— Sim, concordo com a sua opinião. Embora não esteja
em condições de desfrutar dessa atividade. Meu netinho não
estaria seguro em minhas mãos. É um menino precioso, não
concorda?
— Oh, vamos, vovô — exclamou Kitty, rindo.
— Não é? Que diz, Fraulein Katzenberger?
— Acho-o encantador.
— Na realidade, todos os bebês são encantadores.
Preciosos, realmente. Depois a vida os vai marcando, nem
sempre de um modo agradável. Estou querendo dizer,
simplesmente, que meus amigos e eu também fomos bebês.
— Não lhe falei? — exclamou Wilfried, rindo e
entregando um copo de uísque a Alice. — Vovô é um sujeito
simpático. Já pensou nele como um bebê?
—Por que não? — respondeu Alice, arqueando as
sobrancelhas. — Todos nós conservamos certas
características... infantis.
— Acha? — exclamou Helmutt Kleist. — É uma ideia
engraçada. Que vê de infantil em nós?
— Sim — apoiou Schallenberg, com seu olho de vidro
brilhando. — Gostaria de ouvir sua opinião, Fraulein
Katzenberger.
— Para pensar isso de nós, deve ter uma imaginação
fabulosa — acrescentou Johannes Loos. — Gostaria de saber
o que vê de bebês em quatro velhos maltratados.
— Não me referia ao aspecto físico, é claro — respondeu
Alice. — E, sim, a manifestações de caráter, de mentalidade.
Posso admitir que os senhores sejam diferentes de mim,
naturalmente, mas me surpreendo às vezes, pensando como
se fosse uma menina, recordando mais coisas de minha
infância que coisas recentes.
— Muito interessante — murmurou Scheuner. —
Conversar com a senhorita, além de interessante, há de ser
estimulante. Para fazermos uma ideia do que pode pensar e
sentir na atualidade, diga-nos a que se dedica, Fraulein
Katzenberger.
— Trabalho como secretária de idiomas numa empresa
dedicada à exportação de produtos fotográficos.
— Ah... secretária de idiomas... Sendo assim, fala várias
línguas, hem?
— Algumas.
— Deve ter viajado muito...? — perguntou Johannes
Loos.
— Bastante. Quase sempre a serviço. Agora, porém,
estou de férias.
— Não insista muito nisso — balbuciou Wilfried,
inclinando-se para Alice. — O velho está convencido de que
você é amante de meu pai.
— Que está cochichando aí? — atalhou Hermann
Scheuner.
— Nada, vovô — respondeu o rapagão, rindo. — Estava
dizendo a Inge que posso servir-lhe outro uísque, se ela
quiser.
— Ah, Fraulein Katzenberger bebe muito?
— Não — respondeu ela, divertida.
— Que lugares deste mundo nojento a senhorita conhece?
— perguntou Schallenberg.
***
— Que impressão tirou de tudo isso e dessa gente? —
perguntou Elvis North, quando Alice terminou a narrativa.
— Estou atordoada. De verdade. Não sei... Apesar de
tudo, há algo meio... sinistro em tudo isso...
Elvis ficou pensativo. Tinha seguido Alice até à casa dos
Scheuner e tornou a segui-la, quando ela se retirou. Não
precisaram entrar em contato para saber o que deviam fazer.
Alice foi para o interior da ilha, passeando, aproveitando o
começo da noite de lua. Num ponto adequado, juntaram-se,
afastados de qualquer olhar curioso. Sentados no chão, à
sombra de uma oliveira, analisavam a situação.
— Pode ser uma casualidade — disse Elvis, de repente.
— O fato dos quatro velhos terem uma mutilação? Não
creio. As mutilações foram produzidas casualmente, é claro.
Mas em minha opinião não estão juntos por casualidade.
— Explique.
— Estou atordoada, já disse. Eles esperam mais dois
amigos de Hermann Scheuner. Mais dois anciãos, sem
dúvida.
— Está imaginando se também terão algum defeito
físico?
— Sim. Breve ficarei sabendo. Devem chegar amanhã ou
depois. Estou ansiosa para vê-los. Enquanto isso, Wilfried,
Kitty e eu estaremos juntos. Simpatizamos muito uns com os
outros. E o bebê é um anjinho!
— Se você liberar seu instinto maternal, nos meteremos
em apuros. Tratemos de esclarecer uma coisa: Thomas
Scheuner admitiu claramente ser o chefe desse caso?
— Sim, admitiu claramente... embora eu tenha notado
nele uma certa hesitação.
— A que a atribuiria?
— Tive a impressão de que Thomas Scheuner e o filho
pouco podem fazer, num lugar onde se encontrar o velho
Hermann Scheuner. É um ancião, mas com uma aparência de
ferro.
— O verdadeiro chefe pode ser ele?
— Pode.
— Não entendi o casal com o bebê. Que diabos farão em
tudo isso?
— Também pensei nesse detalhe e talvez tenha
encontrado uma explicação aceitável. Em minha opinião,
Hermann Scheuner resolveu vir a Ponza com o filho Thomas
mas não pensou, por um minuto, sequer, em Wilfried e Kitty
com o bebê. Mas o bebê se resfriou e Wilfried achou bom
trazê-lo para um lugar quente e ensolarado. Quando falou
com o pai e com o avô sobre isso, os dois não puderam opor-
se, é lógico.
— E se o bebê não fosse deles e sim um bebê... comprado
por aí para dar um aspecto mais respeitável a tudo isso?
— Santo Deus! Você é maquiavélico, meu amor!
— Você disse que de todas as pessoas daquela casa a que
lhe pareceu mais inteligente foi Wilfried Scheuner. É jovem,
forte, está em pleno vigor físico. Quanto à mulherzinha
dele... poderia ser outra Simonetta, por exemplo.
— Você fala pouco, mas quando abre a boca, é
demolidor, querido. Está arrasando com a minha simpatia
pelo jovem casal e pelo bebê.
— Então mudemos de assunto. Quem mais há naquela
casa?
— Uma cozinheira e um criado para todo o serviço.
— Viu os dois?
— O criado, apenas.
— Sabe se são alemães?
— O criado é — respondeu Alice, suspirando. — Sou
obrigada a calcular que também trouxeram a cozinheira da
Alemanha.
— De qual dos outros três velhos é o iate e quantas
pessoas ficaram na embarcação?
— É de Robert Schallenberg. Não sei quantas pessoas
ficaram a bordo. Não creio que haja mais de quatro
tripulantes. Não há mulher alguma no iate. Disso eu sei.
Olhe, querido, não se arrisque indo fuçar nesse iate. Duvido
que haja algo interessante.
— Fala assim por que se chegar algo interessante será no
iate que eles estarão esperando?
— Sim.
— De qualquer modo, precisamos agir.
— O mais indicado seria você ir dar um passeio em
Nápoles, enquanto eu fico trabalhando aqui. Mas não quer ir,
com medo de que as coisas se compliquem do meu lado,
hem? Vá descansado. Até a chegada do iate, posso resolver
tudo sozinha.
— Fazer o que? Passear de iate?
— Não. Você tem na lancha o material de que vou
precisar?
— Garante que conseguirá movimentar-se pela casa, sem
que a vejam ir colocando os microfones?
— Claro. Oh, vamos! Preciso apenas de uns microfones
ligados a um gravador. Na verdade talvez fosse melhor
limitar-me a ouvir o que dizem na sala. É lá que os quatro
velhotes se fecham, conversando. Se alguma conversa
naquela casa for interessante, só pode ser a deles.
— Deixarei o material aqui mesmo, dentro de duas horas.
Virá apanhar, quando julgar conveniente.
— Vai a Nápoles?
— Se estão aguardando instruções, irei. Além disso, estou
curioso para conhecer o tal sujeito localizado pelos seus
Johnnies. Espero que me tratem bem.
— Deixe de tolices — exclamou Alice. — Vão tratá-lo
como de costume. Isto é: com o máximo respeito.
— Não devíamos ter recorrido à CIA — resmungou Elvis
North.
— Ah, ah — cortou Alice Westmoreland, agitando o
dedinho. — Nada de CIA! Não se esqueça de um detalhe:
somos Alice Westmoreland e Elvis North, da Vigilância
Universal. Se eu tivesse começado o caso, nós seriamos da
OAU. Da nossa sempre crescente Organização do Amor
Unido. Mas foi um dos seus amigos quem avisou do que se
passava, em Nápoles e deixamos a OAU, usando a VU. E
daí? O nome não importa, desde que continuemos a ser os
mesmos. A ser Número Um e “Baby”.
Número Um abraçou “Baby” e murmurou:
— Sinto-me muito mais tranquilo quando você é
simplesmente Brigitte...
CAPÍTULO SEXTO
Os últimos convidados

A luz do quarto acendeu-se de repente. Dan Roebuck


acordou assustado. Viu a mulher deitada na cama, nua como
veio ao mundo. Nua como ele também estava. A mulher
estava virada para o outro lado. Era bonita. Uma prostituta,
mas bonita. E jovem. Nos últimos meses Dan fora obrigado a
se conformar com prostitutas maduras e gordas. Naquela
noite, porém, pudera escolher uma mais a seu gosto, pois
recebera uma antecipação sobre um trabalho a realizar.
A mulher dormia tranquilamente. Quem, então, acendera
a luz?
Com a agilidade de um gato, o mercenário, terrorista e
assassino profissional Dan Roebuck, sentou-se de um salto e
girou na cama. Viu o desconhecido numa cadeira perto da
janela. A dois metros de distância. Tinha olhos escuros e
havia neles uma expressão de ironia. Na mão direita estava a
pistola provida de silenciador. Mal o viu, Dan Roebuck
compreendeu que tipo de homem tinha à sua frente.
— Quem é você com mil demônios? — resmungou
Roebuck.
— Elvis North, da VU.
— De quê?
— Sou agente da Vigilância Universal. É uma
organização que se pode definir como uma depuradora da
sujeira mundial.
— Com que direito entrou aqui? — rosnou Dan Roebuck.
— Que deseja?
Na cama, a prostituta jovem e bonita se mexeu. Abriu os
olhos. Viu Roebuck de um lado e Elvis North na poltrona.
Com um movimento brusco a mulher sentou-se, assustada ao
ver um estranho de pistola em punho.
— Oh, meu Deus — balbuciou ela. — Que aconteceu?
— Pegue sua roupa e dê o fora — disse North.
— Dar o fora? Este apartamento é meu!
— Sei disso. Sei também que são quatro e meia da
manhã. Mas dê o fora. Não me obrigue a repetir a ordem.
A mulher encarou North, assustada. Voltou-se para o
cliente que, continuava imóvel e pálido. Olhou finalmente
para a pistola na mão do desconhecido. Pulou da cama e
aproximou-se da cadeira onde havia deixado as roupas.
Vestiu-se às pressas, ansiosa para sair dali.
Dan Roebuck avançou para Elvis North, decidido a
agarrar a mão armada do visitante. Mas encontrou o pé
direito de North que se ergueu, assestando-lhe um chute
violento. Roebuck caiu de joelhos, praguejando. Mesmo
assim, tentou agarrar os tornozelos de Elvis North. Elvis
afastou-se alguns passos. Roebuck ficou de pé, com os olhos
fixos na pistola. Mas não foi da arma que lhe chegou o
problema. Foi da mão esquerda de North que lhe aplicou
uma bofetada sonora. Dan Roebuck desabou com o ouvido
doendo e silvando uma estranha melodia.
Furioso, Roebuck tornou a atacar. Elvis North não o
deteve com um tiro. Limitou-se a presenteá-lo com um chute
nos testículos. Dan Roebuck deteve-se bruscamente. Pálido
como um cadáver. Encolheu-se, levando as mãos ao ponto
atingido. Cambaleou. Outro bofetão obrigou-o a endireitar o
corpo. Os ouvidos zumbiam, deixando-o alucinado.
Levantou as mãos para proteger os olhos e, então, recebeu
nova patada nos testículos.
Dan Roebuck revirou os olhos e caiu pesadamente.
— Abrigue-se bem — disse Elvis North, voltando-se para
a prostituta. — Está frio lá fora. Precisa de ajuda?
— Não...
— Ótimo. Tem uma corda, por acaso?
— Sim... na cozinha...
— Vá buscar, por favor.
Elvis North guardou a pistola. Segurou Roebuck pelos
braços e jogou-o na cama, como se fosse um trapo. Colocou-
o de barriga para cima e afastou os braços e as pernas.
Quando a prostituta reapareceu trazendo uns pedaços de
corda, Elvis amarrou Dan pelos pés e pelos pulsos,
deixando-o imobilizado e preso à cama. Formando um X. A
prostituta acabou de vestir-se rapidamente e arregalou os
olhos ao ver Elvis amarrar a ponta de um pedaço de corda
aos órgãos genitais de Dan Roebuck.
— Está pronta? — perguntou Elvis, sentando-se, com a
outra ponta da corda nos joelhos.
— Sim, senhor...
— Então adeus. Não apareça aqui, antes de uma semana.
É um bom conselho. Vá para a casa de uma amiga ou de um
amigo. Como quiser. Entendeu, não é mesmo?
— Sim, senhor.
Elvis acendeu um cigarro. A prostituta saiu do quarto.
Segundos depois, Elvis ouviu a porta do apartamento bater.
Dan Roebuck levou seis ou sete minutos para regressar do
mundo das sombras. Pestanejou e fez um gesto de dor.
Ergueu a cabeça como pôde e olhou para os órgãos genitais
que lhe doíam terrivelmente. Ficou pasmado ao ver a corda
presa a eles. Não conteve uma exclamação de desespero,
quando Elvis deu um puxãozinho na corda.
— Não faça isso! — suplicou Dan.
— Está bem — concordou North. — Que sabe sobre o
juramento?
— Sobre o que? — balbuciou Dan Roebuck, espantado.
Elvis deu de ombros, desanimado. Compreendeu que o
mercenário não sabia de nada. Por isso, desviou o
interrogatório para outro rumo, dizendo:
— Há dias você foi contratado no Bar Tritone por uma
loura espetacular chamada Simonetta. Em que consistia o
contrato? Que devia fazer?
— Ei, que diabo é isso?
Dan Roebuck engoliu o resto dos protestos e empalideceu
mais um pouco, quando Elvis deu outro puxão na corda.
— Não estou brincando, Roebuck — disse Elvis, sem se
alterar. — Acabarei arrancando seus órgãos genitais se
insistir em não responder direitinho. Em que consistia o
contrato e o que você deveria fazer?
— Não sei. Ainda não sei.
— Quando iriam dizer?
— Preciso estar, dentro de quatro dias, em Ponza. Foi só
isso o que a loura do Tritone me informou.
— Dentro de quatro dias em Ponza. Muito bem.
Simonetta contratou mais gente. Um total de quarenta e seis
homens como você. Conhece algum deles?
— Sim.
— Receberam as mesmas instruções?
— Sim. Todos devem se concentrar em Ponza, dentro de
quatro dias.
— Chegando separados, como se não se conhecessem?
— Exatamente.
— Quem os esperaria lá?
— Simonetta. Aí ela nos diria o que tínhamos a fazer.
Disse que estaria no hotel Cielo, mas mandou-me ir para
outro. Só deveria aproximar-me dela quando, passeando pelo
embarcadouro, ela me fizesse um sinal.
— Disse a mesma coisa a seus amigos?
— Sim.
— A quantos desse grupo você conhece?
— Três. Você falou em quarenta e seis? Não sabia que
éramos tantos. Que está acontecendo? Que significa esse
negócio de Vigilância Universal? E que pinta você nessa
jogada?
— Quem faz perguntas sou eu. Vou prosseguir: segundo
deduzi, você só conhece Simonetta. É isso?
— Sim.
— E nada sabe sobre o que teria a fazer, hem?
— Exato.
— Mas deve saber que se trata de algo especial... algo
onde haverá necessidade de matar. Não é assim? Disso você
sabia, não é?
— Não trabalho precisamente como bom samaritano —
rosnou Dan Roebuck.
— Pois eu trabalho — disse North, levantando-se. — E
vou fazer minha primeira boa ação de hoje.
Atirou. Dan Roebuck só teve tempo de abrir a boca. No
momento exato em que a bala se enterrou em seu coração,
penetrando de cima para baixo. Roebuck deu um salto na
cama, com o corpo crispado, mas relaxou imediatamente. A
cabeça afrouxou e descaiu de lado.
Elvis North guardou a pistola e saiu do apartamento.
***
O telefone tocou quando Alice Westmoreland ia saindo
de seu quarto ensolarado no hotel Cielo. Tornou a fechar a
porta e foi atender.
— Pronto? Ah, sim, Paolo, obrigada. Pode dizer.
—...
— Senhor North? Que surpresa! Oh, céus, como soube
onde encontrar-me?
—...
— Esse Mário! Serei obrigada a recomendar a ele que, de
agora em diante, não diga a mais ninguém onde me encontro
de férias. Oh, não se aborreça, por favor. Não tem
importância o fato de me localizar. De modo algum. Além
disso, se ligou para cá, sabendo que estou de férias, é porque
se trata de algo importante, naturalmente. De que se trata?
—...
— Ah, não sabia. Tem certeza de que esses quarenta e
tantos clientes virão todos para Ponza, para essa conferência
definitiva?
—...
— Muito bem. Dentro de quatro dias... Obrigada pelo
aviso. Informo-o de que os senhores Werthe e Effel estão em
Nápoles. Logo eles poderão atendê-lo pessoalmente. Não
esteve com eles?
—...
— Compreendo. Os dois se juntaram a um tal senhor Dan
Roebuck, a quem o senhor visitou? Compreendo,
compreendo. Bem, considerando que antes de quatro dias a
conferência não se realizará e que não espero novidades
antes de vinte e quatro horas, talvez fosse mais aconselhável
o senhor prosseguir com certas negociações aí em Nápoles.
—...
— Alegro-me por ouvi-lo dizer que concorda. De
qualquer modo, se acabar depressa e quiser vir para cá,
amanhã, esperar os quarenta e tantos conferencistas, terei
imenso prazer em vê-lo, senhor North.
—...
— Combinado. Muitíssimo obrigada pela informação e
até amanhã.
—...
— Não se preocupe. Não iniciarei negociação alguma
antes da sua chegada. Adeus, senhor North.
Alice Westmoreland desligou e ficou imóvel, com um
sorrisinho seco nos lábios. A mensagem fora claríssima.
North matara um sujeito chamado Dan Roebuck, por
intermédio de quem obtivera a informação referente à
chegada dos outros aventureiros contratados, à ilha de Ponza,
dentro de quatro dias. Fora tudo quanto conseguira descobrir.
Elvis North continuaria tentando descobrir mais coisas.
Devia estar tão interessado quanto ela em saber o que
significava aquela história do juramento.
Alice refletiu um instante. Precisava instalar os
microfones na casa de Scheuner e encontrar um lugar
adequado para o aparelho receptor. Estava plenamente
convencida de que qualquer coisa interessante que
acontecesse naquela casa só poderia partir dos quatro
anciãos... e dos que chegariam no dia seguinte.
Com passos decididos, saiu do quarto do hotel Cielo,
levando na mão a maletinha com o material de que
necessitava. Fora convidada para almoçar na casa dos
Scheuner e não queria perder semelhante oportunidade.
***
— Em minha opinião, vai andar muito depressa —
exclamou Alice, rindo. — Tem as perninhas fortes.
— Viu só? — murmurou Wilfried, voltando-se para
Kitty. — Eu vivo dizendo a mesma coisa. Será jogador de
futebol!
— Oh, deixe de bobagens, Wilfried — protestou Kitty,
enrugando a testa.
— Bobagens, por quê? — protestou ele.
Estavam no jardim da casa, por trás do muro branco. O
pequeno Albert engatinhava de um lado para o outro, cheio
de vitalidade, sob os olhares de Alice, de Wilfried e de Kitty.
— Aí tem, Inge — murmurou Kitty, com um gesto de
resignação. — O herdeiro de uma grande indústria alemã...
um homenzinho destinado a dirigir uma grande empresa... e
Wilfried quer transformá-lo em jogador de futebol! Não acha
absurdo?
— Absurdo, por quê? — rosnou Wilfried.
— Inge acabou de dizer que o bebê tem as pernas fortes.
Qual é o absurdo de ser jogador de futebol? Acho mais
absurdo querer que ele passe a vida lutando com os lobos
dos negócios. É muito melhor ser desportista. Ganhará mais
dinheiro que na empresa do vovô. Bastará ir para o campo e
dar chutes numa bola. E ainda divertirá as pessoas, o que é
uma ação muito meritória. Sem falar que ganhará fortunas,
hem?
— Se for um jogador extraordinário — acrescentou Kitty.
— E por que não há de ser? Será um dos melhores
jogadores de futebol do mundo! Um verdadeiro Pelé!
— Não entendo de futebol, Wilfried — balbuciou Alice,
rindo. — Mas acho que você está indo longe demais. Pelé só
há um...
— Pode aparecer outro! Um Pelé de raça branca. Negar
essa possibilidade é negar a possibilidade de aparecer outro
cientista famoso, outro Beethoven, outro Leonard da Vinci...
Enfim, outros gênios iguais a tantos que a humanidade já
teve.
— Falando assim, serei obrigado a aceitar a ideia de que
o pequeno Albert chegue a ser outro Pelé.
— Ou de ser melhor ainda. Por que não?
— Chega de tolices — cortou Kitty. — Está ficando
tarde. Vou dar banho em Albert. Daqui a pouco é hora do
jantarzinho dele. Depois que estiver dormindo, ficaremos
mais sossegados. Vem comigo, Inge? Quer ajudar-me a dar
banho no bebê, como fez ontem?
— Com imenso prazer — exclamou Alice, levantando-se.
— Posso levá-lo no colo?
— Claro — concordou Kitty.
No momento em que Alice Westmoreland tomou o bebê
nos braços, a campainha do portão tocou.
— Vou abrir — disse Wilfried. — Subo logo para ver
como vocês duas tratam do futuro imperador do futebol.
Wilfried Scheuner dirigiu-se ao portão do jardim,
enquanto Alice e Kitty se dirigiram à casa, levando o bebê.
Alice caminhou devagar, disfarçando pelo fato de estar
carregando Albert, pois queria saber quem tocara a
campainha. Brincando com o bebê, mostrando-lhe as flores
do jardim, olhou disfarçadamente para o portão.
Quatro homens entraram. Dois eram altos e fortes e
vestiam-se como marinheiros. Os outros dois eram muito
diferentes. Em primeiro lugar, pela idade. Deviam ter o
dobro da idade dos marinheiros. Um par de anciãos que
combinava perfeitamente com os outros quatro velhotes. Um
deles não tinha o braço direito. O outro devia ser cego, pois
Wilfried tomou-o pelo braço, orientando-o.
— Ah — exclamou Kitty, voltando-se para o portão. —
Chegaram os amigos do vovô que faltavam! Depois os
veremos. Sim, porque você ficará para o jantar, também, não
é, Inge?
— Oh, não quero abusar da hospitalidade de vocês.
— Que tolice! — disse a simpática Kitty, rindo. — Você
está sendo muito útil, ajudando-me a cuidar do bebê. É uma
babá perfeita!

CAPÍTULO SÉTIMO
Juramento de vingança

Alice notou que Thomas Scheuner não se entusiasmou


muito com a ideia dela ficar para jantar. Kitty e Wilfried,
porém, haviam insistido tanto que nada pôde ser feito.
Os dois anciãos chegados à tarde, no iate de um deles,
chamavam-se Anthony Hauser e Sigmund Kessler. O
primeiro era cego. O segundo, dono do iate, era o mutilado
do braço direito. O mais simpático dos dois e até mesmo de
todo o grupo, foi o cego. Anthony Hauser era um homem
encantador, transbordante de simpatia, conhecedor de mil
anedotas curiosas e divertidas. A perda da vista aguçara-lhe
os outros sentidos e tinha uma percepção finíssima de tudo
quanto acontecia à sua volta.
— Sou capaz de garantir que a senhorita Katzenberger é
loura, alta, magra e veste-se muito bem — disse ele em
determinado momento.
— Como pode saber? — exclamou Wilfried.
— Quanto a ser loura, ouvi comentários — explicou
Hauser, rindo. — Quanto a ser magra e alta, é fácil. Sendo
bonita, deve ser uma criatura proporcional. Veste-se bem,
porque usa saltos altos em lugar de sandálias. Mas sei que é
alta por causa do ponto de onde soa a voz dela. Sei que não é
gorda, porque pisa de leve. E posso acrescentar mais uma
coisa, para a qual não é necessário enxergar: é muito
inteligente. Gosto do seu modo de falar. Não há dúvida.
Thomas sabe escolher suas amizades.
— É uma amizade casual — retrucou Thomas Scheuner.
Apressando-se a acrescentar: — o que não lhe tira o encanto,
naturalmente.
— Oh, estão me deixando sem jeito — disse Alice, rindo.
— Bem, já é tarde. Está na hora de me retirar.
— Oh, ainda é cedo — protestou Wilfried.
— A senhorita Katzenberger passou o dia aqui, meu filho
— objetou Thomas. — É natural que queira fazer algum
programa sozinha. Logo, não devemos retê-la por mais
tempo.
— Acho adorável ficar com vocês — murmurou Alice,
sorrindo. — Mas o senhor Scheuner tem razão. Oh, espero
tornar a vê-los, amanhã. Passei um dia agradabilíssimo.
Levantou-se. Todos os homens a imitaram ao mesmo
tempo, inclusive Anthony Hauser ao ouvir os ruídos.
— Acompanho-a até o portão do jardim — disse Thomas.
Depois de uma despedida geral, Alice Westmoreland saiu
da casa. No jardim, banhado pelo luar, Thomas Scheuner
tomou-a pelo braço e balbuciou:
— Não sei se é conveniente manter relações tão estreitas
conosco. Além do mais, talvez prefira ficar no hotel ou
dando voltas pelo embarcadouro para ver se Werthe e Effel
chegam... com os outros.
— Talvez voltem amanhã. Devo preveni-lo, depois de
falar com eles?
— Não. Werthe e Effel sabem como comunicar-se
comigo. Fique à disposição deles, com o amigo de Nápoles.
— Entendido. Boa-noite, senhor Scheuner.
O portão do jardim fechou-se à retaguarda de Alice
Westmoreland. Dois gatos miaram na ruazinha retorcida,
desaparecendo em seguida. O som de uma guitarra ecoava na
noite enluarada e uma voz masculina entoava uma bela
canção que falava de amore, naturalmente. Era tudo tão
estranho, tão bonito, que durante dois minutos Alice foi
andando, sem pensar em coisa alguma. Distraída. Dois sem
braço, dois coxos, um cego e um caolho. Todos com mais de
setenta anos, reunidos em Ponza. E Thomas Scheuner
esperando a chegada de cinquenta homens dispostos a tudo.
E o mais esquisito: Wilfried e Kitty com um bebê
engraçadinho. Não fazia sentido.
Alice Westmoreland encaminhou-se para o lugar onde, na
noite anterior, conversara escondida com Elvis North. Lá
deixara o equipamento de escuta, pela manhã, antes de ir
para a casa dos Scheuner. Chegara o momento de utilizá-lo.
Pensava assim porque tinha certeza do seguinte: quando
os seis anciãos estivessem sozinhos, começariam a falar.
Quis ligar para Nápoles e avisar Johnny, pedindo-lhe que
informasse Número Um da chegada dos últimos velhotes.
Mas isso podia esperar. Talvez naquela noite nada de
importante acontecesse. Exceto a conversa daquelas figuras
surpreendentes, na sala da casa dos Scheuner...
***
Hermann Scheuner fechou a porta da sala, depois de ter
acompanhado Wilfried e Kitty, que se retiraram. Voltou-se
para seus silenciosos amigos, como indicando que estava
tudo em ordem.
— Onde está Thomas? — perguntou Helmutt Kleist.
— Eu o vi há pouco, conversando com os homens do iate
de Sigmund — respondeu Hermann. — Deve estar
verificando se tudo funciona bem. Deixemos meu filho
cuidar da parte dele e ocupemo-nos da nossa.
— Até agora seu filho tem agido muito bem, Hermann —
disse Schallenberg, o caolho.
— Naturalmente. E continuará agindo.
— Quem é exatamente essa senhorita Katzenberger? —
perguntou o cego Anthony Hauser.
— Você já devia ter compreendido que ela trabalha para
nós — resmungou Hermann, sentando-se. — Thomas não
quer que o filho e a nora saibam de coisa alguma. É lógico.
Por isso apresentou a senhorita Katzenberger como uma
conhecida de Dusseldorf.
— Acha prudente essa moça nos conhecer a todos?
— Deixe isso por conta de Thomas. Ela é de absoluta
confiança. De outro modo, Thomas se teria encarregado de
eliminá-la. Bem, passemos ao que interessa. Como sabem,
Thomas encarregou-se de recrutar os homens apropriados.
Está aguardando a última informação sobre eles. Depois dará
as instruções e cada grupo agirá num ponto diferente. Desta
vez, conforme combinamos, nós dirigiremos os diversos
ataques. Antes de aprovarmos o plano preparado por cada
um de nós, devemos fazer, como sempre, o juramento anual.
Coloquemo-nos em círculo.
As poltronas foram movimentadas, de modo a que os seis
anciãos formassem um círculo. Depois de formado, os seis
ficaram de pé, adotando posições firmes, e estenderam o
braço e a mão, numa saudação hitleriana. Os seis fizeram o
juramento ao mesmo tempo, pronunciando as palavras
lentamente, bem destacadas:
— Nós, os sobreviventes do grupo Rache, em nosso
nome e no dos que caíram conosco, juramos vingar a
humilhante derrota alemã e o massacre realizado pelos
Aliados, arrasando nosso povo e nossos exércitos. Nós, o
grupo Rache, juramos repetir e manter este juramento, ano
após ano, enquanto em nossos corpos restar um sopro de
vida. Vida que dedicaremos ao extermínio implacável e
incessante dos judeus em especial e dos Aliados em geral.
Nós, os sobreviventes do grupo Rache, juramos dedicar
nosso tempo, nossas vidas e nossas fortunas à vingança da
derrota alemã, à humilhação, à brutal separação do nosso
povo. Nós, o grupo Rache, juramos solenemente, agora e
sempre, dedicar todo o nosso esforço e toda a nossa
inteligência e poder a assestar golpes de morte no mundo que
tornou possível a derrota da Alemanha. Juramos criar o
pânico, a morte, a desolação e o ódio entre os povos, até
conseguirmos fazer com que sobrevenha uma Guerra Total,
capaz de causar a exterminação de todos. Este é o juramento
do ano de mil novecentos e oitenta do grupo Rache. Pela
Alemanha! Morra o mundo3!
***
Morra o mundo!
As últimas palavras, às quais se seguiu um silêncio
profundo, ecoaram interminavelmente nos ouvidos de Alice
Westmoreland. Ficou tão atordoada que não conseguiu
prestar atenção ao que os anciãos disseram depois. Ouvia as
palavras, mas não concatenava as ideias.
— Santo Deus — balbuciou Alice. — Que loucura será
essa?
Sacudiu a cabeça, voltando à realidade, decidida a
continuar ouvindo. Mas dois homens apareceram diante dela.
Armados com pistolas brilhantes. Alice estremeceu e os
encarou com os olhos muito abertos. Tarde demais
reconheceu o erro de ter posto o fone colado aos ouvidos, em
lugar de tê-lo mantido alguns centímetros afastado. Com
isso, não captara a aproximação dos dois desconhecidos.
Arrancaram-lhe o fone dos ouvidos. Alice voltou-se
rapidamente e deparou com Thomas Scheuner à sua
retaguarda.
3
Rache, palavra do idioma alemão que significa ‘vingança’.
— Desligue esse aparelho — ordenou ele, arquejante. —
Desligue-o!
Alice Westmoreland obedeceu. Refletindo rapidamente,
chegou à conclusão de que fora muito ingênua. Wilfried e
Kitty de nada sabiam sobre tudo aquilo, é certo. Devia ter
imaginado, porém, que Thomas Scheuner fazia parte daquele
grupo de vingança. Estariam todos loucos?
Desligou o aparelho receptor. Ao fazê-lo captou o
movimento de Thomas Scheuner atrás dela. Pela respiração
alterada do alemão, compreendeu que fora um movimento
brusco. Isso significava um perigo imediato para ela, sem a
menor dúvida. Nada mais pôde deduzir, pois o golpe que
recebeu na cabeça, dado com a culatra de uma pistola,
deixou-a inteiramente sem sentidos.
***
Quando voltou a si, teve uma vaga sensação de
movimento oscilante. Em seguida, observou a pressão do
ventre dolorido, efeitos ainda dos golpes dados por Effel na
lancha. Sim, alguém a levara numa embarcação ou numa
lancha e a transportara de barriga para baixo.
A luz difusa tornou-se mais nítida. Fechou os olhos.
Quando tornou a abri-los, localizou a dor na cabeça. E os
olhos também doeram quando a luz incidiu neles. Tornou a
cerrá-los. O ouvido apurado voltou a funcionar. Ouviu o
ruído do mar, suavemente. Estava numa embarcação... num
dos iates dos alemães!
Reabriu as pálpebras, depois de mudar a posição da
cabeça para evitar que a luz batesse em suas pupilas. Estava
num camarote não muito grande. A porta ficara aberta. Fora,
tudo era escuridão. Embora divisassem resplendor, vindo de
um ponto indefinido. As luzes de Ponza, talvez? O teto esta-
.a a menos de um metro de distância. Não... não era o leito.
Era o beliche de cima. Estava deitada num beliche. No de
baixo. Tornou a olhar para o centro do camarote. A luz não a
incomodou mais. Sentiu que estava amarrada pelos pés e
pelas mãos. Amarrada às extremidades do beliche. Olhou as
cordas das mãos. Nós de marinheiro. Fáceis e difíceis.
Podiam ser desfeitos com um dedo... se o dedo alcançasse os
nós. Coisa que não parecia provável.
Fechou os olhos mais uma vez. Respirou fundo, diversas
vezes. A dor de cabeça foi cedendo lentamente. Suavizou-se
um pouco.
Muito bem. Thomas Scheuner demonstrara ser um
adversário perigoso. Na certa a tinha seguido, acompanhado
pelos dois homens que chegaram à casa dos Scheuner com
Anthony Hauser e Sigmund Kessler. Naquele momento já
deviam estar procurando os microfones que ela colocara na
sala. Um na poltrona onde se sentara e outro atrás de um
quadro que fingira examinar.
Não tinha a menor noção das horas. Sabia, apenas, que
maus momentos a aguardavam.
O juramento.
Estremeceu ao lembrar-se dele. Que significavam
exatamente as palavras que ouvira pronunciadas com tanto
ódio? Referiam-se à segunda Guerra Mundial que terminara
à trinta e cinco anos? Trinta e cinco anos!
— Deve ser outra coisa — pensou Alice Westmoreland.
— Deve ser outra coisa.
Exceto o ruído suave do mar, tudo à volta era silêncio.
Finalmente, Alice Westmoreland adormeceu.
***
Acordou com o zumbido dos motores, um pouco abafado,
é claro. Mas real. Tinham zarpado. Estavam navegando. Pela
porta aberta viu a claridade do sol. Devia ser muito cedo.
Oito da manhã? Talvez. Não muito mais que isso.
Navegaram durante mais de uma hora. No fim desse
tempo Thomas Scheuner apareceu no camarote, em
companhia de dois homens desconhecidos para Alice. Ela
calculou que fossem tripulantes da embarcação onde se
encontravam. Dois sujeitos a quem a experiência de Alice
catalogou imediatamente como perigosos e sem escrúpulos
de espécie alguma.
Thomas Scheuner aproximou um tamborete e sentou-se
ao lado do beliche. Seu rosto estava impassível. Alice,
porém, captou em suas feições uma enorme tensão. Tensão
que ele se esforçava para dissimular. Expressão
forçadamente inexpressiva de quem evita revelar suas
emoções ou seus pensamentos. Ao mesmo tempo havia na
fisionomia do alemão uma determinação absoluta e firme.
— Saiam — disse Thomas, voltando-se para os homens.
A porta do camarote fechou-se após a passagem dos dois.
Scheuner encarou Alice e murmurou:
— Muito bem. Quem é você?
— Já sabe quem sou — respondeu ela, passando a língua
pelos lábios. — Ingeborg Katzenberger.
— Perguntarei de outro modo: que é você?
— Também sabe isso, senhor Scheuner. Sua atitude em
relação a mim...
— Está bem — cortou Thomas, dando de ombros. — Se
não quiser dizer a verdade, tanto faz.
— O senhor sabe a verdade. Sou amiga de Kobler que,
por sua vez é amigo de Werthe e de Effel. Estou trabalhando
para vocês!
— Espionando as conversas de minha casa?
— Foi ideia de... Kobler. Ele me disse que desejava saber
com exatidão onde se metia e que não seria demais se eu...
— Está insultando minha inteligência, senhorita
Katzenberger — tornou a interromper Thomas. — Esta
conversa é idiota. Logo, não adianta prosseguirmos.
Fez menção de levantar-se. Alice Westmoreland não
podia deixar que ele se retirasse sem tentar descobrir algo a
respeito do juramento. Por isso murmurou:
— Espere. Na realidade, sou agente da VU.
— De que?
— Da Vigilância Universal. É uma organização que...
vigia determinadas pessoas ou grupos capazes de alterar a
relativa tranquilidade do mundo.
— E fixaram a atenção em mim?
— Não. Em alguns homens que o senhor contratou por
intermédio de Werthe e de Effel e eles, por intermédio de
Kobler e de Delnier. Os quatro estão mortos. Eu não sou
Simonetta Vanini nem Ingeborg Katzenberger. Sou Alice
Westmoreland, agente da VU. Descobrimos que Simonetta
Vanini estava contratando homens perigosos no Bar Tritone,
em Nápoles. Fomos atrás dela e eu ocupei o lugar de
Simonetta.
— Então em Ponza há companheiros seus?
— Sim. Muitos.
Thomas Scheuner enrugou a testa. Em seguida sorriu
secamente e murmurou:
— Não há nenhum. Se houvesse, teriam feito alguma
coisa por você, ontem à noite ou esta manhã, pelo menos nos
teriam seguido. Nada disso aconteceu. Verifiquei bem, antes
de zarparmos e durante o tempo em que estamos navegando.
Ninguém nos seguiu. Enfim, isso não importa mais.
— Não importa? — perguntou Alice, espantada. — Não
importaria ao senhor se um grupo de companheiros meus
tomasse este iate de assalto?
— Em primeiro lugar, não seria fácil para eles um assalto
desses. Em segundo, como disse, já verifiquei bem e não
estamos sendo seguidos. Esqueça, senhorita...
Westmoreland.
— Como quiser — balbuciou Alice, tentando sorrir. — Já
está avisado.
— Não tenho motivos para ficar preocupado, garanto.
— Melhor para o senhor. Posso saber para onde vamos?
— Mar afora. Bem afora. Navegamos diretamente para o
sul.
— Para a Sicília?
— Sim — respondeu Thomas Scheuner, sorrindo. —
Sim, para a Sicília. Ouviu o juramento, não é mesmo?
— Claro. Vocês estão todos loucos!
— Todos, não. Eu não estou.
— Está tão louco como eles. Pelo que ouvi, antes do
juramento o senhor fez coisas que...
— Não fiz nada — cortou Thomas Scheuner, balançando
a cabeça negativamente. — Não fiz absolutamente nada...
em momento algum.
— Mas eles disseram...
— Oh, bem, eles podem dizer o que quiser, mas não fiz
nada. Desde o primeiro instante eu os tenho enganado.
CAPÍTULO OITAVO
Um passeio de iate

Thomas Scheuner deu uma risadinha. Tirou do bolso o


maço de cigarros e o estendeu em direção à Alice,
perguntando:
— Quer fumar?
— Não poderia segurar o cigarro, senhor Scheuner.
— Eu o farei. Não se preocupe.
— Nesse caso, fico-lhe muito grata.
Scheuner acendeu dois cigarros. Colocou um nos lábios
de Alice, a quem contemplou com ar irônico através da
fumaça do seu.
— É o último cigarro — murmurou, rindo.
— Pretende então matar-me?
— Todos devem morrer — disse o alemão, dando de
ombros. — Não concorda? Sim, um dia ou outro, todos nós
acabamos morrendo. Algumas pessoas, como a senhorita,
por exemplo, morrem jovens. Outras, como meu pai e os
amigos dele, vivem demais. Tempo demais. Ouvi dizer que
morrer jovem é um privilégio de... escolhidos. A senhorita
decididamente é uma eleita.
— Não espera que eu me alegre com isso, hem? Em que
o senhor tem enganado seu pai e os amigos dele?
— Quando soube do que estavam fazendo, fiquei
apavorado... e atordoado, é claro. Fiquei sem saber como
agir, acredite. Afinal tratava-se de meu pai.
— Que estavam fazendo?
— Quando terminou a guerra, ficaram alguns anos
inativos, recuperando-se física, emocional e
economicamente. Não foi fácil, pois eram os vencidos. Além
disso, como deve ter verificado, todos eles possuem defeitos
físicos. Não, não foi fácil para eles... No entanto, poucos
anos depois da guerra, organizaram o grupo Rache. Todos os
que o integram haviam ficado mutilados. Pior que isso,
porém, foi o fato de terem perdido parentes e bens durante os
bombardeios aliados que massacraram a Alemanha. Em
seguida, é verdade, a Alemanha recebeu ajuda econômica de
todos os tipos. Os alemães decidiram, assim, não digo
esquecer, mas correr um véu sobre o passado, como se
costuma dizer. Mas tal não se passou com os membros do
grupo Rache.
— O ódio que sentiam pelos Aliados persistiu?
— Sim. Não só contra os Aliados. Contra o mundo
inteiro, que havia comemorado a derrota da Alemanha, Por
isso organizaram o grupo Rache... para vingar-se... do
mundo todo.
— Isso é absurdo. Alguns homens apenas não podiam...
— Oh, no início foram muitos — cortou Thomas
Scheuner. — Mais de trinta. Mas foram morrendo. Agora
restam somente os seis que a senhorita conhece. Eles e os
que, na época, ainda estava vivos, assestaram golpe sobre
golpe contra o mundo. Devolveram a dor que do mundo
receberam. Provocaram situações inacreditáveis, criando
tensões internacionais, cometendo assassinatos, atos de
terrorismo, catástrofes civis em forma de sabotagens a
transatlânticos, a aviões, a trens... assassinando, enfim,
milhares e milhares de pessoas.
— Santo Deus!
— Darei um exemplo bastante expressivo — disse
Thomas Scheuner, sorrindo. — Sabe quem assassinou o
presidente dos Estados Unidos John Fitzgerald Kennedy?
Alice ficou apatetada durante um segundo, antes de
exclamar:
— O grupo Rache!
— Exato. Bem, isso é o que os velhotes acreditam. Mas
não foi assim.
— Não compreendo... Quem foi então?
— Ah, não faço a menor ideia. Mas os velhos estão
convencidos de que foram os promotores e os diretores do
assassinato do presidente norte-americano Kennedy. É
natural que acreditem, porque... por que um pai iria
desconfiar de um filho?
— O senhor... fez seu pai acreditar que havia organizado
o assassinato de Kennedy?
— Entre outras coisas igualmente terríveis e... até mais
terríveis. O assassinato de Kennedy foi apenas um exemplo.
Cada vez que acontecia algo verdadeiramente grandioso, eu
ia visitar meu pai e punha-lhe nas mãos os jornais, dizendo,
sorridente, que o grupo Rache assestara outro golpe mortal
no mundo. Ele ficava contentíssimo, chamava os amigos e
comemoravam. Oh, meu Deus! Pobres doentes mentais.
Coitadinhos...
— O senhor os enganava? Por quê? Que ganhava com
isso?
— Como lhe disse antes, no início foram eles mesmos
que se encarregaram da vingança. Cometeram, realmente,
muitas atrocidades. Quando eu soube, tive a impressão de
que ia morrer de susto. Pensei em denunciar o grupo, mas...
meu pai estava no meio. Havia meu filho. Minha mãe ainda
vivia. Minha mulher também. Era uma situação terrível,
garanto. Depois de muito pensar encontrei uma solução.
Ofereci-me, como bom filho, para secundar os projetos do
grupo Rache. Em pouco tempo transformei-me em diretor do
grupo. Bem, diretor externo, naturalmente. Encarreguei-me
de tudo. De preparar os golpes, das sabotagens, dos
assassinatos... de mil canalhadas. Dizia aos velhos que
contratava homens adequados: mercenários, assassinos,
aventureiros de todo o tipo. Fui aperfeiçoando minha técnica.
Dizia a eles que tudo custava cada vez mais caro. Pedia-lhes
mais dinheiro. E eles pagavam sem reclamar porque dias ou
semanas depois eu lhes ofereceria de bandeja outro triunfo
contra o inimigo. Mas era tudo mentira. A única coisa que eu
queria durante esses anos todos era evitar que eles
cometessem realmente atrocidades. E consegui.
— E o dinheiro? — perguntou Alice, incredulamente.
— Depositei-o numa conta na Suíça. Conta da qual vão
saindo somas importantes, destinadas a obras de
benemerência de âmbito mundial. Não acredita em mim?
— Santo Deus! Não sei... Não sei...
— Bem, é problema seu. Para mim, tanto faz que acredite
ou não.
— Mas se tudo isso é verdade... que significam esses
cinquenta homens contratados em Nápoles? Não me diga
que isso também é fictício!
— Não, isso não, por que os velhotes resolveram assumir
a direção de um grande golpe simultâneo. Quase morri de
susto quando meu pai me comunicou que o grupo Rache
queria assestar um golpe dirigido pessoalmente por eles,
antes de morrerem. Sentem-se velhos, cansados, desiludidos
de tudo... menos de sua vingança. Assim, sabendo que estão
na meta final, decidiram dar o último grande golpe múltiplo
e querem dirigi-lo pessoalmente. Pediram-me, portanto, para
contratar cinquenta homens. Os mais perigosos que pudesse
encontrar. Deram ordens de mantê-los de prontidão,
dispostos a tudo. Não encontrei um meio de evitar isso. Para
acalmá-los e mantê-los enganados, iniciei, desta vez de
verdade, a contratação do pessoal que eles pediram.
Enquanto agia, é claro, tratei de raciocinar, tentando
encontrar um modo de evitar que se realizem os planos do
grupo Rache.
— Que planos?
— A culpa é minha — murmurou Thomas Scheuner,
tornando a sorrir. — Contei a eles tantas mentiras que acabei
convencendo-os de que tudo é muito fácil de conseguir.
Como as ficções que inventei. E como tudo é fácil, dispondo
de homens e de dinheiro, prepararam algumas... coisinhas
contra o mundo.
— Que coisinhas?
— Bem, há vários planos. Não sabem ainda por qual
começar. Serão vários, é claro, e simultâneos, mas ainda
precisam aprovar quais os que serão realizados. Têm muito
onde escolher. Podem, por exemplo, arrumar as coisas de
modo que, aparentemente, uma patrulha iraniana entre no
mar do Kuwait assassinando mulheres, velhos e crianças. Ou
promovendo o assassinato do novo presidente dos Estados
Unidos, o senhor Reagan. Ou explodindo o canal de Suez...
ou fazendo com que um avião iraniano bombardeie alguns
pesqueiros russos no mar Cáspio. Ou demolindo algumas
embaixadas norte-americanas ou russas em pontos cruciais.
Ou enviando uma suposta patrulha do Iraque ao Irã, para
incendiar uma escola cheia de crianças. Ou sabotar
determinados oleodutos. Ou assassinar centenas de árabes
por meio de bombas napalm justamente no dia dez deste
mês, que é o primeiro dia do século XV árabe, ou seja, o
primeiro dia do ano mil e quatrocentos e um da era
maometana. Bem, eles estão pensando qual desses atos será
o mais doloroso para o mundo, em geral.
Alice Westmoreland ficou sem fala. Palidíssima.
Finalmente, emitiu um suspiro fundo e balbuciou:
— Precisa soltar-me, senhor Scheuner... Não pode
consentir nisso, embora se trate de seu pai...
— Oh, não se preocupe — respondeu Thomas, sorrindo
mais uma vez. Consultou o relógio de pulso e disse com uma
calma absoluta: — já tomei minhas providências. Está tudo
bem.
— Tudo bem? Escute aqui, dentro de três dias chegarão à
ilha de Ponza os quarenta e cinco homens contratados em
Nápoles. Seu pai e os amigos dele entrarão em contato com
esses homens e...
— Não se preocupe — cortou Thomas Scheuner,
tranquilo. — Esses homens já receberam um pequeno
adiantamento. Só poderão fazer uma coisa: gastá-lo vivendo
agradavelmente em Ponza durante alguns dias ou semanas.
Depois serão obrigados a ir embora, em busca de outro
trabalho.
— Que quer dizer com isso?
Bateram à porta. A porta abriu-se e apareceu um dos
tripulantes do iate, dizendo:
— É melhor subir ao convés, senhor Scheuner.
Encontramos um náufrago.
— Um náufrago? — rosnou Thomas. — Não diga
tolices!
— Bem, é um homem que ia de lancha da Sicília a Capri
e o encontramos no meio do mar. O motor enguiçou e ele
não pode navegar nem chamar pelo rádio, pedindo socorro.
Por enquanto nós demos uma corda e o estamos rebocando.
Mas ele diz que vai para Capri e não para o sul e que se não
pudermos rebocá-lo para o norte, quer, ao menos, que o
deixemos usar nosso rádio para pedir ajuda. Depois nós o
deixaremos neste ponto e ele ficará esperando até virem
buscá-lo. Eu queria saber há algum inconveniente no tal
sujeito subir a bordo.
— Vou vê-lo — disse Scheuner, levantando-se e
tornando a consultar o relógio. — Adeus, senhorita
Westmoreland.
Sorriu mais uma vez e acrescentou:
— Adeus para sempre.
— Espere — murmurou ela. — Espere um momento, por
favor! Gostaria de fumar outro cigarro, se o senhor não faz
questão.
— De modo algum.
Thomas Scheuner colocou outro cigarro aceso entre os
lábios de Alice e saiu do camarote acompanhando o
tripulante. A porta estava quase fechada, quando Alice
flexionou o braço direito, fazendo as cordas correrem pela
trave do beliche onde a tinham amarrado. Fez o mesmo com
o braço esquerdo. As duas mãos ficaram acima da cabeça
dela. Não ia ser fácil, mas precisava tentar. Mantendo os
braços fortemente flexionados, esticou o pescoço. A brasa do
cigarro que tinha na boca aproximou-se da corda que lhe
prendia a mão direita...
***
O suposto náufrago apressou-se a estender a mão para
Thomas Scheuner, mal subiu a bordo, após receber a
autorização requerida.
— Fico-lhe muito grato, senhor — disse o náufrago. —
Minha situação...
Automaticamente Thomas Scheuner estendeu a mão para
apertar a do desconhecido. Um instante depois se arrependeu
de seu gesto. O náufrago segurou-o pela mão e puxou-o,
obrigando-o a girar até ficar de costas. Passou o braço
esquerdo pela garganta do alemão, dando-lhe uma fortíssima
gravata. Ao mesmo tempo, liberando a mão direita, sacou de
sob a camisa de malha, uma pistola automática.
Thomas Scheuner sentiu na fronte o contato frio do cano
da automática. Diante dele, os três homens da tripulação
ficaram paralisados, olhando atônitos para a mudança
repentina dos acontecimentos. Não havia mais ninguém no
convés.
— Muito bem, senhor Scheuner — disse secamente Elvis
North. — Dê ordem imediata para trazerem Fraulein
Katzenberger ao convés... Espero, para o bem de todos, que
ela esteja viva e em perfeito estado de saúde. Ouviu bem?
A surpresa foi geral quando, de repente, Thomas
Scheuner começou a rir, dando gargalhadas sonoras. Até o
sempre imperturbável Elvis North ficou meio intrigado.
Vendo a situação embaraçosa, o homem da cabine de
comandos sacou uma pistola e, sem se preocupar com o
vidro, fez menção de atirar na cabeça de Elvis North.
Mas o recém-chegado não estava tão atordoado a ponto
de deixar de captar o movimento do tripulante e de ver a
arma surgir na mão dele. Afastou a pistola da cabeça de
Scheuner e atirou. O vidro da cabine de comandos
estilhaçou-se em mil pedaços, brilhando ao sol. A bala
encravou-se no meio da testa do tripulante, empurrando-o de
costas e fazendo-o desaparecer de vista, para quem se
encontrava no convés.
Elvis North atirou pela segunda vez. A bala enterrou-se
no peito de outro homem, que também sacara a pistola com
uma rapidez espantosa. O homem deu um grito e pulou para
o alto, caindo de cabeça nas tábuas do convés.
O tiro seguinte brotou da arma de um dos dois tripulantes
que restavam. Mas o projétil não acertou Elvis North.
Acertou Thomas Scheuner. O alemão estremeceu
fortemente, gritando... e rindo ao mesmo tempo. North atirou
novamente e atingiu o tripulante na nuca, quando o sujeito
corria para se proteger no interior do iate. Conseguiu entrar,
mas já morto, rolando os degraus que conduziam à sala. Na
queda, carregou consigo o companheiro.
O último tripulante vivo, porém, arregalou os olhos ao
deparar com a prisioneira à sua frente. Quando quis reagir,
foi tarde demais. Alice deu um passo para ele, afastou a mão
armada, e descarregou um murro brutal na garganta do
homem. O tripulante caiu com morte instantânea, de olhos
muito abertos e com a fisionomia desfigurada.
— Que diabo está acontecendo aqui? — perguntou
Hermann Scheuner, capengando, e avançando pelo corredor
dos camarotes.
Atrás dele Alice viu os outros. Inclusive o cego. Este se
orientava, tateando a parede, suavemente. Olhá-los, foi tudo
que Alice pôde fazer. Sem se preocupar com o grupo ali
reunido, subiu os degraus com toda a velocidade e foi para o
convés.
Saiu da cabine, gritando:
— Sou eu!
Arregalou os olhos ao ver Thomas Scheuner, que parara
de rir e a contemplava com ar de quem não acredita no que
está vendo. Atrás de Thomas Scheuner encontrava-se Elvis
North, que não conseguiu evitar um suspiro de alívio ao vê-
la aparecer inteira. Abriu a boca para dizer qualquer coisa,
mas Alice não lhe deu tempo, exclamando:
— Precisamos abandonar o iate o mais depressa possível!
Vai explodir a qualquer momento. Não é assim, senhor
Scheuner?
Thomas enrugou a testa. Ergueu o braço e consultou o
relógio de pulso. Em seguida, recomeçou a rir, dizendo:
— Trouxe os pobres velhinhos para um passeio...
De sua boca jorrou uma golfada de sangue. Elvis North
deixou-o rolar pelo convés e correu para o ponto onde havia
sido amarrada sua lancha. Sem perder tempo, dedicou-se a
soltar o nó de marinheiro, rosnando:
— Eu sabia que você ia se meter numa complicação
qualquer... Eu sabia! Por isso chamei-a, ontem à noite. Não
obtendo resposta, tratei de agir.
— Não brigue comigo agora — balbuciou Alice. —
Precisamos cair fora daqui!
Solta a lancha, Elvis fez um gesto e Alice pulou sem
refletir duas vezes. Naquele momento, exatamente, surgiram
no convés os velhotes que compunham o grupo Rache. Elvis
North observou-os às pressas. Pestanejou intrigado, mas
lembrou-se das palavras de Alice: precisamos cair fora
daqui!
Sem hesitar, preparou o pulo e mergulhou.
Quando voltou à superfície, o iate continuava navegando
sem rumo. Alice reapareceu um pouco à retaguarda. Nadava
com braçadas largas em direção à lancha que ficara para trás,
agitando-se suavemente nas ondas azuis.
— Nade para cá — gritou Alice. — Nade, depressa!
O iate transformou-se numa bola de fogo, a cinquenta
metros de distância. Uma baforada de calor chegou ao rosto
de Elvis North. Isso foi tudo... enquanto os pedaços da
luxuosa embarcação subiam pelos ares, caindo em seguida
num raio de mais de duzentos metros.
A bola de fogo transformou-se num penacho de fumaça
escura. Outra explosão seguiu-se à primeira e os restos do
iate se esfacelaram de vez.
Uma onda mais forte empurrou Elvis North. O homem de
ombros largos rodopiou dentro d’água e começou a nadar em
direção à lancha para a qual Alice Westmoreland acabara de
subir.
— Se não soubesse que você nos tinha seguido, eu teria
pulado pela escotilha — disse ela, quando viu North a seu
lado, escorrendo água por todo o corpo.
Elvis North balançou a cabeça num sinal afirmativo.
Respirou fundo e foi tomar conta da direção da lancha.
Ligou os motores e colocou a embarcação no rumo certo.
Seguiram para Nápoles, deixando à retaguarda os destroços
do luxuoso iate alemão.
Quando verificou que estavam navegando no rumo certo,
estendeu o braço. Alice aninhou-se junto ao peito musculoso
do homem a quem amava. Não tinham tempo para expansões
de carinho. O importante era fugir o mais depressa possível
daquelas águas, evitando um encontro com qualquer
embarcação que pudesse acudir, atraída pelo grande penacho
de fumaça negra.
— Como se sente? — perguntou Elvis, com naturalidade.
— Muito mal — respondeu ela, num sussurro. — Oh,
meu Deus, muito mal! Era um juramento horrível, meu
amor...
Espiã e psicóloga
— Então é verdade? — resmungou Ângelo Tomasini, ou
melhor, Número Um. — Vai embora mesmo?
— Vou — respondeu Brigitte “Baby” Montfort, a espiã
mais linda do mundo. — Estou com vontade de voltar a ser,
embora por alguns dias apenas, a senhorita Montfort. Logo,
vou para casa, em Nova York.
Não tinha muita bagagem, como de costume. Há muito
tempo aprendera a viajar. Levava apenas uma mala e sua
maletinha vermelha que, às vezes, disfarçava com um forro
de veludo negro. Nada mais. Perdera a pistolinha de cabo
madrepérola, mas isso não tinha importância. A CIA lhe
daria outra, como acontecera em diversas ocasiões.
— Então ficou aqui em Vila Tartaruga apenas o tempo
suficiente para se assegurar de que seus amigos Wilfried e
Kitty voltaram a Dusseldorf com o pequeno Albert... e agora
vai embora... Assim, sem mais nem menos...
— Só lamento o fato de Kitty e Wilfried pensarem que
também morri. Ou melhor, que Ingeborg Katzenberger
também morreu no acidente do iate. Enfim, não demorarão
muito para me esquecer. Será que estou deixando alguma
coisa aqui?
Brigitte olhou ao redor, observando o amplo quarto de
dormir que compartilhara com Número Um, durante sua
permanência na vila de Angelo Tomasini, na ilha de Malta,
perto de La Valetta.
— Só deixa a mim — resmungou Número Um.
— Claro que não — exclamou a espiã, com um olhar
malicioso.
— Isso significa que desistiu de partir?
— Oh, vou embora, sim... mas você irá comigo para
Nova York. Você gosta do meu apartamento, que eu sei!
Adora passear pela Quinta Avenida. Gosta de tomar
refrigerantes, de comer a comidinha de Peggy, de jogar
xadrez com Frankie! Por isso, em vez de pedir uma
passagem Paris-Nova York, tratou de pedir duas passagens,
não foi?
— Como soube? — balbuciou Número Um, espantado.
— Oh, meu amor — exclamou a belíssima senhorita
Montfort. — Já se esqueceu que eu sou uma grande espiã?
— Quero uma explicação — rosnou Número Um. —
Como adivinhou que quando fui buscar sua passagem resolvi
comprar uma para mim, decidido a acompanhá-la?
— Meus Johnnies vigiam seus passos, querido —
explicou a divina espiã, rindo. — Por ordem minha, é claro!
— Não pode falar a sério, de vez em quando? —
perguntou Angelo Tomasini, enrugando a testa. —
Ultimamente você anda ficando muito parecida com
Minello!
— Se pensa que me insulta, falando assim, engana-se.
Frankie é um rapagão simpático e muito mais inteligente do
que imaginam por aí. Como se não bastasse, é uma criatura
boníssima. Parecer-me com ele não me aborrece nem um
pouquinho, acredite!
— Bem, bem — murmurou Número Um, enlaçando
Brigitte pela cintura e apertando-a em seus braços. — Vamos
falar a sério, sim? Como soube que resolvi acompanhá-la?
— Falar a sério, hem? — repetiu ela, sorrindo. — Está
certo. Vou falar a sério, como você quer. Cada vez que nos
despedimos, vejo nos seus olhos, geralmente muito negros,
uma nuvem sombria como... como se algo estivesse
apagando o brilho de suas pupilas. Desta vez não vi essa
sombra. Fiquei intrigada, imaginando o que poderia ter
acontecido. Perguntei a mim mesma: não está triste desta vez
porque já não me ama? Mas respondi logo que isso seria
impossível. Então devia existir outra explicação. E só
encontrei uma, meu amor: não vi a nuvem sombria em seus
olhos, a que via sempre na despedida, porque simplesmente
não pensava despedir-se de mim e sim acompanhar-me.
Então? Que lhe pareço como psicóloga?
— Como em tudo — murmurou Número Um: — a
melhor do mundo.

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