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HELMER, advogado.
NORA, sua mulher.
O DOUTOR RANK.
CRISTINA LINDE.
KROGSTAD, advogado.
Os três filhinhos de Helmer.
MARIA ANA, aia dos filhos de Helmer.
HELENA, criada.
Um moço de recados.
(Um quarto mobilado com bom gosto e conforto, mas sem luxo. Ao fundo, à
direita, porta da saleta. Ao fundo, à esquerda, porta do gabinete de trabalho de
Helmer. Entre estas duas portas um piano. Do lado esquerdo da cena uma porta
e mais à frente uma janela. Em frente da janela uma mesa redonda, uma
poltrona e um sofá. Do lado direito da cena, um pouco para o fundo, uma porta,
e no primeiro plano um fogão, diante do qual estão algumas poltronas e uma
cadeira de balanço. Gravuras nas paredes. Uma «étagère» guarnecida de
porcelanas e de outros objetos de arte. Uma estante cheia de livros ricamente
encadernados. O sobrado coberto por uma alcatifa. Lume no fogão. Dia de
inverno.)
NORA. — Esconde bem a árvore de Natal, Helena. Não quero que as crianças
a vejam antes dela estar guarnecida. (Ao moço, puxando pelo porta-moedas).
Quanto é?
O MOÇO. — Um tostão.
NORA. — É.
NORA. — É.
HELMER. — Não me faças perder tempo. (Pouco depois ele abre a porta, e, de
pena na mão, lança um olhar por todo o quarto). O que compraste, diz? Tudo
isto? O meu estorninho achou maneira, aposto eu, de gastar rios de dinheiro?
NORA. — É verdade, Torvald, este ano podemos fazer mais alguma despesa.
É o primeiro Natal. depois do nosso casamento, em que não somos obrigados a
economizar.
NORA. — Sim. Torvald, um nadinha, só um nadinha, não faz mal, não? Agora,
que vais ter um ordenado tão bom, e que vais ganhar muito, muito dinheiro!
HELMER. — Pois sim; mas isso é só a partir do ano novo; e ainda assim tem
de correr depois um trimestre inteiro, primeiro que eu receba seja o que for.
NORA. — Essas pessoas? Mas quem pensa nelas? Isso é gente estranha.
NORA (contando). — Dez, vinte, trinta, quarenta. Obrigado, Torvald. Isto nas
minhas mãos vai render.
NORA. — Vou ter muito cuidado, podes estar certo disso. Agora, vem cá.
Quero mostrar-te tudo o que comprei, e tudo tão barato! Olha, fato novo para
Yvar, e uma espada. Um cavalo e uma trombeta para Rob, e uma boneca com
uma caminha, para a Mimi. Isto é o que pode haver mais ordinário. Nem ela
precisa melhor, que estraga tudo num instante. Isto agora são aventais e
vestidos para os criados. A pobre Maria Ana merecia bem mais do que isto.
NORA (dando um gritinho). — Não, Torvald, aquilo não se pode ver senão
logo à noite.
HELMER. — Está bem, está bem. Mas diz-me cá, minha gastadora, e tu o que
gostavas de ter?
NORA. — Ora! Nem sabes que comigo é com quem me importo menos.
NORA. — Com franqueza, não me lembra nada. Ou então, sim, ouve lá,
Torvald.
NORA (brincando com os botões do seu casaco sem olhar para Helmer). — Se
me quisesses dar alguma coisa podia ser... sim... podia ser...
HELMER. — Diz.
NORA (num repente). — Podias antes dar-me o dinheiro, Torvald. Oh! Uma
coisa qualquer, aquilo de que tu pudesses dispor; que eu depois comprarei para
mim aquilo que me agradar.
NORA. — Ora, chama-se um estorninho, bem sei. Mas faz o que eu te pedi,
sim, Torvald? Assim tenho tempo de refletir em alguma coisa útil. É muito mais
razoável, pois não é?
NORA. — Credo! Não sei como podes dizer isso! Eu que poupo em tudo, o
mais que posso.
HELMER. — Lá isso é verdade. O mais que podes; mas o pior é que a maior
parte das vezes não podes poupar nada.
NORA. — Era bem bom que eu tivesse herdado todas as qualidades do papá.
NORA. — Eu?
NORA (olhando-o).
HELMER. — Está-me parecendo que a minha gulosa fez hoje das suas!
HELMER. — Engano-me se lhe disser que ela foi visitar uma confeitaria?
HELMER. — Não, bem sei. Pois não me deste a tua palavra?... (Aproxima-se de
Nora). Está bem, guarda para ti os teus misteriozinhos do Natal, minha querida
Nora; logo se descobrirá tudo isso quando se iluminar a árvore.
HELMER. — Não convidei, porque era escusado; já sabe que contamos com
ele. Em todo o caso, sempre lho direi logo, quando ele vier. Encomendei bom
vinho. Nora, não imaginas como estou satisfeito com a festa desta noite!
HELMER. — Faz bem pensar que se chegou a uma situação estável, segura,
em que os apertos e as privações cessaram. Pois não é verdade? É uma grande
ventura pensar nisto.
NORA. — Bom! Aí vais tu agora, outra vez, mangar comigo, por causa disso!
Eu não tive culpa do galo entrar e fazer tudo em bocados.
HELMER. — Não, minha querida Nora, não tiveste culpa. Tinhas a melhor
vontade de nos dar prazer a todos; isso foi o essencial. No entretanto, é bem
bom que esses tempos difíceis tenham passado já.
NORA (batendo palmas). — Não, pois não é verdade, Torvald? Meu Deus!
Que felicidade! (Mete o braço no do marido). Agora, vou contar-te como hão de
ser os nossos arranjos, em passando o Natal... (Toca a campainha). Estão
tocando. (Arruma as poltronas da sala). É alguma visita. Que aborrecimento.
A CRIADA (à porta de entrada). — Minha senhora, está ali uma senhora que a
procura...
(Helmer entra para o seu quarto. A criada dá entrada a C. Linde, que vem
com fato de viagem. Depois fecha a porta).
CENA III
NORA. — Cristina! Ora, eu que te não conhecia! Mas quem havia de dizer?...
(Mais baixo). Como estás mudada, Cristina!
NORA. — O quê? Há tanto tempo que nos não vemos? Mas é isso, é
exatamente isso. Oh! Estes últimos oito anos, que época feliz, se soubesses! E tu
aqui? Fizeste esta longa viagem, mesmo no coração do inverno. É preciso ter
coragem.
NORA. — Não, Cristina, não quero que me desculpes, que foi uma grande
ingratidão da minha parte. Pobre amiga, por que provações hás de ler passado?
E ele não te deixou com que viver?
C. LINDE. — Nada.
NORA. — E filhos?
NORA. — Sozinha no mundo. Como isso te deve pesar! Eu, tenho três
pequerruchos lindíssimos. Agora, não tos posso mostrar. Saíram com a criada.
Mas vais-me contar a tua vida toda.
NORA. — Pois não é? É tão precário ser advogado, sobretudo quando se não
tem génio senão para tomar conta de causas justas. E era esse exatamente, o
caso que se dava com Torvald, e com que eu concordava completamente. Vê lá
se havemos de estar felizes, ou não. Ele há de entrar para o seu cargo no
princípio do ano que vem, e começa a vencer logo um belo ordenado, fora
emolumentos. Então, a nossa vida vai passar a ser muito diversa do que tem
sido até aqui... poderemos viver inteiramente à larga. Oh! Cristina, como eu me
sinto feliz e com o coração à vontade! É, na verdade, delicioso ter muito
dinheiro, e não estar sempre com cuidados. Pois não é verdade?
C. LINDE. — Com certeza! Em todo o caso, já não deve ser mau ter o
necessário.
C. LINDE (sorrindo-se). — Nora, Nora, pois ainda hoje não és mais razoável
do que dantes? No colégio, eras uma grande gastadora.
NORA. — Estivemos. Partir para lá é que não foi coisa tão fácil, como bem
podes pensar... Tinha acabado de nascer o meu Yvar. Mas, como sabes, era
preciso. Que maravilha de viagem, não fazes ideia! E o caso é que salvou a vida a
Torvald. Mas custou um dinheirão, Cristina!
C. LINDE. — Pois, sim, filha; mas num caso desses, é uma boa fortuna tê-lo.
C. LINDE. — Parece-me, também, que foi por essa ocasião que teu papá
morreu.
NORA. — Foi, Cristina, foi exatamente por essa época. E, vê tu lá, não me foi
possível tratá-lo, nem estar ao pé dele. Estava todos os dias à espera de que me
nascesse o meu Yvar, e Torvald, sempre em perigo de vida, a precisar de todos
os meus cuidados. Foi sempre tão bom para mim, o papá. E nunca mais o vi. Foi
a dor mais cruel por que passei, depois do meu casamento.
C. LINDE. — Tu gostavas muito dele, bem sei. E, com que então, partiram
para Itália?
C. LINDE. — Minha mãe ainda vivia, doente e sem meios. Eu tinha de prover
ao sustento dela e ao encargo de dois irmãozinhos meus. Entendi, que não tinha
direito de recusar o seu pedido.
NORA. — Num caso desses, também eu não recusava. E por essa época, ele
era rico?
C. LINDE. — Pareceu-me que vivia muito à sua vontade. Mas era uma
fortuna mal equilibrada. Por morte dele derreteu-se tudo, nada resistiu.
NORA. — E depois?
NORA. — És tal qual como os outros. Todos imaginam que eu não sou boa
para coisa nenhuma séria...
NORA. — Ora!... Essas bagatelas!... (Em voz baixa). Não te contei o principal.
C. LINDE. — Que queres dizer com isso?
NORA. — Tratas-me do alto da tua grandeza, Cristina, mas não devias fazê-
lo. És orgulhosa por teres trabalhado tanto e durante tanto tempo para tua mãe.
NORA. — E também tens orgulho em pensar no que fizeste por teus irmãos.
NORA. — Fala mais baixo. Deus me livre que Torvald nos ouvisse. Por coisa
nenhuma deste mundo eu quisera que ele... Ninguém o deve saber, ninguém
deste mundo, excetuando tu, Cristina.
NORA. — Chega-te cá. (Puxando-a para o seu lado, no sofá). Sim... ouve... eu
também tenho motivo para ser altiva e feliz. Fui eu que salvei a vida de Torvald.
C. LINDE. — Mas então? Teu pai deu-te o dinheiro preciso para ela.
C. LINDE. — Mas?...
NORA. — O papá não me deu nem cinco réis. Eu é que tive de arranjar o
dinheiro todo.
NORA (em tom de desdém). — Na loteria? Que mérito havia então nisso?
C. LINDE. — Porque uma mulher casada não pode fazer empréstimos sem
consentimento do marido.
NORA. — Nem tens necessidade de entender. Também te não disse que pedi
dinheiro emprestado. Podia tê-lo arranjado de outra maneira. (Estira-se sobre o
sofá). Então, não podia tê-lo recebido de um adorador? Que te parece? Com os
meus atrativos...
NORA. — Mas, justamente, ele não o devia saber! Meu Deus, pois tu não
compreendes ainda! Ele não devia conhecer a gravidade do seu estado. Foi a
mim que os médicos vieram dizer que a vida dele estava em perigo, que só uma
temporada, longe, no sul, o podia salvar. Pensas que não empreguei rodeios
para conseguir o meu fim? Fazia-lhe ver quanta felicidade ele me daria levando-
me a viajar ao estrangeiro como tantos outros maridos fazem às suas
mulherzinhas; chorava, suplicava e dizia-lhe que ele devia bem pensar no
estado em que eu estava e aceder ao meu desejo; enfim, dei-lhe a entender que
lhe seria fácil contrair um empréstimo. Mas, então, Cristina, vi-o em jeitos de se
zangar a sério comigo. Disse me que eu era uma estouvada e que o seu dever de
marido era não obedecer às minhas fantasias e aos meus caprichos. «Bom, bom,
pensei eu, hei de salvá-lo, custe o que custar.» Foi, então, que achei um
expediente.
C. LINDE. — E teu marido não soube por teu pai, que o dinheiro não
provinha deste?
NORA. — Não soube. O papá morreu alguns dias depois. Eu tinha pensado
contar-lhe tudo, pedindo-lhe para não dizer nada, mas ele estava tão mal, e foi
piorando tanto... Não tive o trabalho de lho dizer.
NORA. — Não! Meu Deus! Eu fazia lá isso! Que estás dizendo? Não imaginas
como ele é severo nestes pontos! E depois, com o seu amor próprio de homem,
que eu conheço bem, ficava vexadíssimo. Que humilhação para ele saber que me
devia alguma coisa! Era caso para terem sido transtornadas todas as nossas
relações; este nosso viver interior, tão feliz, tão doce, não seria já o que é.
C. LINDE. — Tem sido então sobre as tuas despesas pessoais, que tens feito
todos os cortes, pobre Nora!
NORA. — Ó meu Deus! Então não entendes? O velho não existe; era apenas
uma ideia que me acudia todas as vezes que não achava maneira de arranjar
dinheiro. Mas agora, neste momento, tudo isso me é bem indiferente. Pode o
velho existir onde quiser, que eu nem penso nele, nem no seu testamento, pois,
graças a Deus, estou bem tranquila, nesta hora. (Levanta-se com vivacidade). Oh!
Meu Deus! Que delícia pensar nisto, Cristina! Tranquila! Poder estar tranquila,
inteiramente tranquila, brincar com as crianças, arranjar a casa com elegância,
com gosto, como Torvald a quer ter. Depois, chegar a primavera, o belo céu azul!
Talvez, então, possamos fazer uma viagenzita. Tornar a ver o mar! Oh! Como é
adorável viver e ser feliz.
(Tocam a campainha).
C. LINDE (levantando-se). — Tocaram; talvez seja conveniente retirar-me.
A CRIADA. — Com licença, minha senhora... está ali fora um sujeito, que quer
falar ao advogado...
A CRIADA. — Ao diretor, é isso mesmo; mas como o doutor está lá... eu não
sabia se...
CENA IV
NORA (dá um passo para ele e, perturbada, diz a meia voz). — O senhor? Que
novidade há? O que tem que dizer a meu marido?
C. Linde; Nora
NORA. — Conhece-lo?
NORA. — Sim? É possível; mas disso não sei nada... Não falemos, porém, de
negócios; é tão aborrecido.
C. LINDE. — Não será da muita idade, mas será, talvez, da muita canseira de
trabalho.
RANK (no mesmo tom). — Provavelmente será disso. E veio então à cidade
para descansar um pouco, não perdendo uma das festas do Natal?
RANK. — O quê? Dar-se-á o caso que seja esse o remédio eficaz contra a
canseira do trabalho?
NORA. — Oh! Doutor, olhe que eu tenho a certeza que até o senhor faz
bastante empenho em viver.
RANK. — Seguramente, que faço. Apesar da vida miserável que levo, quero
absolutamente sofrer tanto tempo quanto me seja possível. Todos os meus
doentes têm a mesma vontade. E é igualmente a opinião dos que têm o moral
atacado. Justamente neste momento deixei um deles em companhia de Helmer;
é um doente moral, que está em tratamento: há hospitais para eles.
RANK. — Francamente, não sei. Quis-me parecer, apenas, que era questão
do banco.
NORA. — Eu não sabia que Krogs... que esse senhor Krogstad tinha relações
com o banco.
NORA (que se tem conservado absorta nos seus próprios pensamentos, põe-se
a rir batendo palmas).
RANK. — De que está a rir? Se nem ao menos faz ideia do que é a sociedade?
C. LINDE. — Eu?...
NORA. — Bom, bom, não te assustes. Não podias adivinhar que Torvald mas
tinha proibido. Eu te digo: é que ele tem medo que me estraguem os dentes.
Mas, deixa. Foi... uma vez não faz mal. Pois não é assim, doutor?... Tome lá uma!
(Mete-lhe uma amêndoa na boca). E tu, também uma, Cristina. Eu, como só uma
muito pequerruchinha... duas quando muito. (Torna a girar pelo quarto). Sinto-
me cheia de felicidade cá por dentro. Só de uma coisa é que eu tinha muita
vontade ainda.
NORA. — É uma coisa, que eu tinha uma vontade imensa de dizer diante de
Torvald.
Os mesmos; Helmer
HELMER. — Ah sim?
NORA. — E assim, logo que ela soube que estavas feito diretor do Banco, —
soube-o lá por um despacho, — pôs-se imediatamente a caminho... diz lá,
Torvald?... para me dares prazer, hás de fazer o que puderes a favor de Cristina,
sim?
HELMER. — Não é inteiramente impossível. A tua amiga é provavelmente
viúva?
HELMER. — Oh! Não falemos nisso. (Veste o sobretudo). Mas hoje hão de me
desculpar...
HELMER. — Daqui a uma hora estou cá; não preciso mais para o que tenho a
fazer.
NORA. — Até à vista. Esta noite voltas, bem entendido. E o doutor, também.
O que diz? Ora, está passando agora otimamente. Que tem isso? Agasalhe-se
bem.
(Saem, conversando, pela porta de entrada. Ouvem-se vozes de crianças na
escada).
NORA. — Que belas caras vocês trazem! Que corados! Olhem para estas
bochechas? Parecem folhas de rosa. (As crianças falam todas a um tempo até ao
fim da cena). Então divertiram-se muito? Está muito bem. Sim? Puxaste o trenó
com Emmy e Rob em cima, isso é lá possível? Ambos! Ah! Estás um rapaz muito
valente, Yvar. Oh! Deixa-a cá um instante, Maria Ana. És a minha bonequinha!
(Pega na criancinha mais pequena e dança com ela). Sim, sim, a mamã já vai
dançar com o Rob também. O quê? Fizeram bolas de neve? Gostava de ter visto.
Não, deixa-os cá, Maria Ana. Eu mesma os dispo. Deixa, que eu gosto de fazer
isso. Vai tomar alguma coisa, que vens gelada. Tens café quente para ti na
cozinha.
(A criada das crianças sai pela porta da esquerda. Nora tira as capas e os
chapéus das crianças, e espalha-os pelo quarto ao acaso. As crianças continuam
a falar).
NORA. — Ah! Que medo! Um cão muito grande correu atrás de ti? Mas não
mordia. Não, os cães não mordem assim bonequinhos bonitos como tu. Yvar,
não queira ver o que está nos embrulhos. Nada, nada; está lá dentro uma coisa
muito feia, que te salta. Sim, minha filha; queres brincar? A quê? Ao jogo das
escondidas? Pois, então, vamos lá às escondidas. Quem se esconde primeiro é o
Rob. Eu? Queres que seja eu? Pois está dito, escondo-me eu.
Os mesmos; Krogstad
NORA (dá um grito e levanta meio corpo). — O que quer o senhor aqui?
NORA. — A mim?... (Baixo às crianças). Vão ter com a Maria Ana. Que
dizem?... Não, aquele senhor não quer fazer mal à mamã. Quando ele se for
embora, vamos brincar outra vez.
(Ela conduz as crianças para o quarto da esquerda e fecha-lhes a porta).
NORA. — Sim?
NORA. — E então?
KROGSTAD. — Dá-me licença que lhe faça uma pergunta? Aquela senhora era
madame Linde, pois não era?
NORA. — Justamente.
NORA. — Mas não era evidentemente neste sentido. Como pode supor que
eu tenha semelhante poder em meu marido?
NORA. — Não o receio. Tão depressa passe o ano novo, as nossas contas
estão liquidadas.
KROGSTAD. — Não é somente por causa dos honorários; não é isso o mais
importante. Mas é que no fundo há outra coisa... enfim, direi tudo. Madame
Helmer sabe naturalmente, como toda a gente, que eu cometi uma imprudência,
há já bom número de anos.
NORA. — Mas, em nome de Deus, sr. Krogstad, não está na minha mão
prestar-lhe nenhum auxílio.
KROGSTAD. — É a vontade que lhe falta; mas eu tenho meios para obrigá-la a
trabalhar em meu favor.
NORA. — Creio que o sr. Krogstad não ousará ir contar a meu marido que eu
lhe devo dinheiro?
NORA. — Seria uma vergonha para si. (Com lágrimas na voz). Esse segredo,
que é a minha alegria e a minha altivez: sabê-lo-ia ele de um modo tão vil... pelo
senhor! Expunha-me às maiores sensaborias... então que espécie de homem o
senhor é, e nesse caso é que podia bem ter a certeza de perder o seu lugar.
NORA. — E arranjou-a.
KROGSTAD. — Tal e qual. Mas, em baixo, acrescentei umas linhas, nas quais o
pai de v. ex.ª se responsabilizava como fiador. Essas linhas, era ele quem devia
assigná-las.
KROGSTAD. — Eu tinha deixado a data em branco; isto significava que era ele
quem devia indicar a data da assinatura. V. ex.ª lembra-se disto!
NORA. — Foi.
NORA. — Mas onde quer chegar? Não lhe tenho feito todos os pagamentos
com exatidão?
NORA. — Morreu.
NORA (cala-se).
KROGSTAD. — Não sei se v. ex.ª sabe, minha senhora, que essa confissão é
extremamente perigosa?
KROGSTAD. — Mas v. ex.ª não atentou em que era uma burla o que praticava
comigo?
KROGSTAD. — Minha senhora, evidentemente v. ex.ª não tem uma ideia bem
clara da ação criminosa que praticou. O que eu posso é afirmar-lhe que o ato
que deu causa à perda de toda a minha situação social, não foi mais criminoso
do que este.
NORA. — Não acredito isso. Então uma filha não tem direito de poupar a seu
pai moribundo inquietações e angústias? Uma mulher não tem direito de salvar
a vida a seu marido? Eu, talvez, não conheça a fundo as leis; mas tenho a certeza
de que há de estar escrito em alguma parte que essas coisas são permitidas. O
senhor não sabe isto? O senhor, que é advogado? Parece-me que não é muito
hábil como homem de lei, sr. Krogstad.
(Cumprimenta e sai).
CENA X
NORA. — Sim, sim, bem sei. Mas não falem a ninguém naquele senhor.
Ouviram? Nem mesmo ao papá!
NORA. — Não posso. Vão-se embora; tenho muito que fazer. Andem, vão-se
lá embora, meus filhos.
NORA (senta-se no sofá, pega num bordado, faz alguns pontos, mas
interrompe-se logo). — Não! (Atira com o bordado, levanta-se, vai à porta de
entrada e chama). Helena, traz-me a árvore. (Aproxima-se da mesa da esquerda e
abre a gaveta). Não, é completamente impossível!
Nora; Helmer
NORA. — É verdade.
HELMER. — E tu havias de pedir-me isso como coisa tua? E por essa causa
ocultavas-me a sua visita. Não é verdade isto? Não foi ele que to pediu?
HELMER. — Pois não me disseste que não tinha vindo ninguém? (Ameaça-a
com o dedo). Ora o meu estorninho nunca mais deve fazer isso. Um pintassilgo,
que sabe cantar tão bem, deve ter o bico muito puro, para chilrear afinado... e
não dar notas falsas. (Abraça-a pela cintura). Não é verdade?... É, eu bem o sabia.
(Deixa-a soltar-se). E agora, nem mais uma palavra nesta matéria. (Senta-se
diante do fogão). Como se está bem aqui!
(Helmer folheia os seus papéis. Nora ocupa-se em adornar a árvore. Um
silêncio).
NORA. — Torvald!
HELMER. — O que é?
HELMER. — Isso é para a surpresa ser maior. Então eu não percebo o jogo da
minha querida Nora?
HELMER. — Porquê?...
NORA. — Já?
HELMER. — Recebi dos diretores que saem, plenos poderes para desde já
efetuar as mudanças necessárias, no pessoal e na organização das repartições. A
semana do Natal há de ser empregada nesse trabalho. Quero ter tudo em
ordem, no ano novo.
HELMER. — Hum...
NORA (passando-lhe as mãos nos cabelos). — Se não estivesses com muita
pressa, pedia-te um grande favor.
NORA. — Não há ninguém que tenha tão bom gosto como tu. Eu gostava
imenso de parecer muito bem no tal baile mascarado. Torvald, ocupa-te um
bocadinho de mim, e decide como há de ser o meu costume?
HELMER. — Sim, em muitos casos, atua-se por ligeireza. Eu não sou tão
cruel, que vá condenar impiedosamente um homem só por um facto desse
género.
HELMER. — Mas Krogstad não seguiu esse caminho. Procurou tirar-se das
dificuldades com expedientes e destreza; foi isso o que o perdeu moralmente.
NORA. — Porquê?
HELMER. — Nos casos mais frequentes aquilo provém das mães; mas o pai
atua naturalmente no mesmo sentido. Todos os advogados sabem isto. Pois,
apesar de tudo, Krogstad, durante uns poucos de anos, envenenou seus
próprios filhos, na sua atmosfera de mentira e de dissimulação. É por isso que
eu o chamo um homem moralmente perdido. (Estende-lhe as mãos). E é por isso,
também, que a minha querida Nora me vai prometer nunca mais falar-me em
seu favor. Dá-me a tua palavra. Então, que é isso? Estende-me a mão! Assim.
Está combinado. Asseguro-te que me seria impossível trabalhar com ele. Sinto,
literalmente, um mal estar físico ao pé de semelhante gente.
NORA (retira a sua mão e vai colocar-se do outro lado da árvore). — Que
atmosfera pesada está aqui! E eu que tenho tanto que fazer!
MARIA ANA (à porta da esquerda). — Os meninos querem por força vir para
ao pé da mamã.
NORA. — Não, não, não, não os deixes vir agora para aqui. Deixa-te lá estar
com eles, Maria Ana.
MARIA ANA. — Sim, minha senhora.
(Nora sozinha, caminha dum para outro lado com agitação; por fim para
junto ao sofá e pega na capa).
(Maria Ana, trazendo uma grande caixa de cartão, entra pela porta da
esquerda).
MARIA ANA. — Até que finalmente achei a caixa onde estava guardado o
costume.
NORA. — Sim, eu vou pedir à minha amiga Cristina que venha ajudar-me.
MARIA ANA. — O quê? Sair outra vez? Com este mau tempo? A senhora vai
apanhar algum resfriamento... ficar doente.
NORA. — Não era o pior que me podia acontecer... Como estão os meninos?
NORA. — É verdade, Maria Ana; mas, bem vês, para o futuro não poderei
estar tantas vezes com eles.
NORA. — Crês isso? Crês que eles esqueceriam a sua mamã se ela se fosse
embora... para sempre?
MARIA ANA. — Para sempre!... Deus Nosso Senhor nos livre disso!
NORA. — Ouve cá, Maria Ana... uma coisa em que eu tenho pensado tanta
vez. Como foi que tiveste a coragem de confiar tua filha a estranhos?
MARIA ANA. — Era um lugar tão bom que se oferecia! E depois, era uma
felicidade para uma pobre rapariga a quem tinha sucedido uma desgraça.
Porque ele não se importava comigo para coisa nenhuma, o indigno.
MARIA ANA. — Isso é que não, com toda a certeza. Ela escreveu-me, primeiro
quando fez a sua primeira comunhão, e depois quando casou.
MARIA ANA. — A pobre Norinha não tinha outra mãe senão a mim.
(Quer dirigir-se para a porta, mas fica indecisa. C. Linde entra, depois de ter
deixado a capa e o chapéu na antecâmara).
NORA. — Ah! És tu, Cristina. Não vem mais ninguém, não? Como chegas a
propósito!
NORA. — Sim, tive de passar mesmo por defronte de tua casa. Então
lembrei-me de te ir pedir, para vires ajudar-me. Vamos sentar-nos no sofá. Ora,
eis do que se trata. Amanhã à noite há um baile mascarado, cá por cima de nós,
em casa do cônsul Stenborg. Torvald faz muito empenho em que eu vá de filha
de pescador napolitano e em que dance a tarantella que aprendi em Capri.
NORA. — É. Torvald quer isso por força. Aqui está o meu fato; foi ele quem o
mandou fazer quando estivemos na Itália. Mas agora está tão estragado, que em
verdade não sei...
NORA. — Não, ontem era um pouco mais evidente que o costume. Coitado, é
muito infeliz, tem uma doença terrível. Sofre da espinha. O pai dele era um
homem pervertido. Tinha amantes e... ainda mais coisas; por isso é que o filho é
doente desde criança, compreendes.
C. LINDE (pega outra vez na costura). — O doutor Rank vem todos os dias a
tua casa?
NORA. — Tens razão, Cristina. Torvald tem uma grande adoração por mim;
quer que eu seja dele, só dele, como ele diz. Nos primeiros tempos tinha uns
ciúmes impossíveis, só de me ouvir nomear um dos entes queridos com quem
eu vivia dantes. Naturalmente, fui-me abstendo de o fazer depois; mas com o
doutor Rank falo neles muitas vezes, vês tu; ele gosta muito de me ouvir.
C. LINDE. — Ouve bem o que eu te digo, Nora; tu, a mais de um respeito, és
muito criança ainda; eu, sou mais velha que tu, e tenho mais um bocado de
experiência. Vou dar-te um conselho a respeito do doutor Rank: é preciso que
procures pôr termo a tudo isso.
C. LINDE. — Mas, como é que um homem, que tem obrigação de ser fino,
pode ser tão indelicado?
NORA. — Não, eu nunca podia ter a ideia de pedir ao doutor Rank... Estou,
porém, bem certa que se lhe pedisse...
NORA. — Não, bem entendido. Não prevejo essa necessidade. Mas estou
bem certa que se falasse ao doutor Rank...
C. LINDE. — Naturalmente.
C. LINDE. — Passou-se aqui alguma coisa desde ontem de manhã. Nora, diz-
me o que foi?...
Nora; Helmer
NORA (indo ao encontro dele). — Com que impaciência te esperei, meu caro
Torvald!
NORA. — Não, era Cristina; veio ajudar-me a arranjar o fato para o baile de
amanhã. Verás que efeito vou produzir.
NORA. — Uma ideia soberba. Mas eu também mereço louvores por te fazer a
vontade.
NORA. — Torvald.
HELMER. — Nora... espero que se não trate daquilo em que falámos esta
manhã?
HELMER. — Minha querida Nora, eu destinei esse lugar à tua amiga Cristina
Linde.
NORA. — Não é por isso, Torvald. É por ti. Tu mesmo me disseste que esse
homem escreve nos piores jornais... pode fazer-te tanto mal! Inspira-me um
receio tão grande...
HELMER. — Minha Norinha, há uma grande diferença entre teu pai e eu. Teu
pai não era um funcionário inatacável. E eu sou-o, e espero conservar-me assim
enquanto tiver a minha situação.
NORA. — Oh! Quem sabe o que as más línguas podem inventar! Podíamos
estar tão bem, tão quietos, tão felizes, no nosso ninho pacífico, tu, eu, e os
nossos filhos! É por isso que te peço com tanta instância.
HELMER. — Não tinha nada, era uma coisa insignificante, contanto que tu
fizesses triunfar a tua vontadinha. Pois passa-te pela ideia, que eu iria tornar-
me ridículo aos olhos de todo o pessoal?... Fazer crer que dependo de toda a
espécie de influências estranhas! Podes ter a certeza que as consequências logo
se fariam sentir. E depois... há ainda uma razão que torna Krogstad impossível
no Banco, enquanto eu for diretor.
NORA. — Não, pelo contrário, meu caro Torvald, e é por isso mesmo que...
(Entra Helena).
NORA. — Bons dias, doutor. Reconheci-o pelo seu modo de tocar. Não
procure Torvald; creio que ele está agora muito ocupado.
RANK. — E aqui?
NORA (enquanto ele entra, e ela torna a fechar a porta). — Oh! Bem sabe...
para si, eu tenho sempre um momento.
NORA. — A expressão com que o diz é que eu acho estranha. Está para
acontecer alguma coisa?
NORA (agarrando-lhe o braço). — O que há? Que lhe disseram? Doutor, vai-
me dizer tudo.
RANK. — Então de quem havia de ser? Para que servia eu estar a mentir a
mim mesmo? Sou o mais infeliz de todos os meus doentes, minha senhora...
Nestes últimos dias, tenho empreendido o exame geral do meu estado. É uma
bancarrota. É bem provável que antes de um mês, eu esteja a apodrecer no
cemitério.
RANK. — Com a morte diante dos olhos?... E pagar por causa de outrem? É
justiça, isto? E dizer que em todas as famílias existe, por uma ou por outra
forma, uma liquidação deste género...
NORA (pondo as duas mãos nos ombros do doutor). — Meu caro, meu caro
doutor. É preciso não morrer, não nos deixar, a Torvald e a mim.
NORA. — Chiu! Não fale tão alto, que ela está aqui ao lado.
NORA. — Cor de carne. Não são bonitas? Agora está muito escuro; mas
amanhã... Nada, nada, nada; não pode ver senão os pés. Também... o senhor não
faz mal... pode ver mais para cima.
RANK. — Hum...
NORA. — Porque faz esses ares de dúvida? Imagina que me não servem?
RANK. — Será possível que finalmente me queira dar essa grande alegria?
NORA. — Queria; mas o senhor mesmo não pode fazer ideia do que se trata.
NORA. — Não, não posso, doutor; é uma coisa tão enorme; é ao mesmo
tempo um conselho, um socorro e um serviço.
RANK. — Tanto melhor. Não imagino o que possa ser. Mas fale. Não mereço,
não tenho a sua confiança?
NORA. — Ninguém mais a tem assim. Eu bem sei que é o meu melhor, o meu
mais dedicado amigo. É por isso que lhe vou dizer tudo. Pois bem! Doutor, é
preciso que me ajude a evitar uma coisa. Sabe quanto Torvald gosta de mim;
não hesitaria um momento em dar a sua vida por minha causa.
RANK (inclinando-se para ela). — Nora... crê que ele seja o único que o
fizesse?
RANK. — Eu tinha jurado que lho havia de fazer saber, antes... de partir. Não
podia encontrar melhor ocasião. Sim, Nora, agora sabe-o. Isto é dizer-lhe que
pode confiar em mim, como em mais ninguém.
RANK. — Foi mal feito, amá-la tão profundamente quanto é possível neste
mundo?
(A criada Helena entra com o candeeiro, que põe sobre a mesa, depois sai).
NORA. — Eu sei lá... Não posso em verdade dizer-lho... Como foi possível ser
tão desastrado, doutor? Ia tudo tão bem!
RANK. — Enfim, agora tem a certeza de que estou à sua disposição, corpo e
alma. Fale.
RANK. — Isso é impossível! Diga, diga! Não me castigue desse modo. Deixe-
me auxiliá-la em tudo quanto eu humanamente puder.
NORA. — Agora, já não pode nada por mim... Demais, eu não preciso de
ninguém. Verá, que tudo isto eram puras fantasias, e nada mais. É evidente!
(Senta-se na cadeira de balanço e encara-o sorrindo). Doutor Rank, olhe que o
senhor acaba de fazer uma bonita figura. Não tem vergonha, agora que está o
candeeiro aceso, diga?
RANK. — Para lhe dizer a verdade, não tenho. Mas provavelmente tenho de
me retirar... para sempre?
NORA. — Eu? Parece-me tudo tão divertido quando o doutor está cá!
RANK. — Pois foi justamente isso que me fez cair no meu erro. Nora é um
enigma! Muita vez me pareceu que era tão grande o prazer que tinha em estar
comigo, como o que sentia em estar com Helmer.
NORA (levantando-se com vivacidade e correndo para ele). — Não, meu caro
doutor, não é isso que eu queria dizer. Mas é-lhe fácil compreender que se dá
com Torvald a mesma coisa que com o papá.
(Mete-a na algibeira).
NORA. — Sim, aquele; mas é que há outro. Encomendei-o... Torvald não deve
saber nada...
A CRIADA. — Não quis, e diz que não sai senão depois de ter falado com a
minha senhora.
NORA. — Pois bem, manda-o entrar; mas sem bulha. Helena, não digas nada
disto a ninguém; é uma surpresa para meu marido.
(Sai).
CENA VI
NORA. — Prepara-se o horror! Ei-lo que chega. Não, não, não, isto não pode
ser; isto não deve suceder!
(A criada faz entrar Krogstad e torna a fechar a porta. Ele traz peliça de
viagem, botas grossas e boné de pelo).
NORA (avançando para ele). — Fale baixo, meu marido está ali.
KROGSTAD. — Falarei.
KROGSTAD. — Um esclarecimento.
NORA. — Não pude evitá-la, senhor Krogstad. Pelejei pela sua causa até ao
último extremo; mas nada valeu.
KROGSTAD. — Seu marido tem-lhe tão pouco amor? Sabe o que pode suceder
e apesar disso, ousa...
KROGSTAD. — De facto, nunca o pensei. Era preciso que o meu bom Torvald
Helmer estivesse bastante mudado para mostrar tanta coragem.
KROGSTAD. — Como quer v. ex.ª evitar semelhante coisa? Pode, por acaso,
pagar o restante?
NORA. — Não achei. Isto é, não achei maneira que eu quisesse empregar.
KROGSTAD. — E antes que assim fosse, não lhe tinha servido de nada. V. ex.ª
podia oferecer-me agora fosse que soma fosse, que eu não lhe restituiria a sua
declaração de dívida.
NORA. — Também.
NORA (com vivacidade). — Ele não deve ver essa carta. Rasgue-a. Eu lhe
arranjarei dinheiro.
NORA. — Oh! Eu não falo do dinheiro que lhe devo. Diga-me a soma que
pede a meu marido, e eu lha darei!
KROGSTAD. — Eu não peço dinheiro a seu marido.
KROGSTAD. — Eu lho vou dizer, minha senhora. Quero avançar, quero subir;
e nisso quem me há de ajudar, será seu marido. Durante ano e meio não cometi
nenhuma irregularidade; durante todo esse tempo debati-me nas mais agitadas
e miseráveis dificuldades. Estava contente com a esperança de subir passo a
passo. Agora fui expulso, e não me basta já simplesmente o ser readmitido por
favor. Quero subir, repito. Quero voltar para o Banco... em melhores condições
que as anteriores; seu marido há de criar expressamente um lugar para mim...
KROGSTAD. — V. ex.ª esquece que, nesse caso, até a sua memória estaria nas
minhas mãos.
(Ouve-se cair uma carta na caixa, depois os passos de Krogstad, cuja bulha
se vai extinguindo a medida que ele desce a escada).
CENA VII
C. LINDE (atirando com o vestido para cima do sofá). — O que tens tu? Estás
com uns modos transtornados.
NORA. — Chega aqui. Vês aquela carta? Ali, pela fenda da caixa?
NORA. — Isso mesmo! Escuta, pois, uma coisa, Cristina! Escuta o que te vou
dizer: é preciso que me sirvas de testemunha.
C. LINDE. — Nora!
NORA. — Nesse caso, deves testemunhar que é falso, Cristina. Não estou
fora de mim; tenho todo o meu bom senso e digo-te: Ninguém mais o soube, eu
procedi sozinha, inteiramente só. Lembra-te disto.
C. LINDE. — Um prodígio?
NORA. — Sim, um prodígio. Mas, é tão horrível; Cristina, isto não deve
acontecer; não o quero por preço nenhum.
NORA. — Ele?
NORA. — Não sei!... Ah! Sim. (Procura na algibeira). Aqui está o seu bilhete
de visita. Mas a carta, a carta!...
HELMER. — Bem, bem! Não tenhas medo. Não podemos entrar; fechaste
bem a porta. Estás provando, não é assim?
NORA. — Sim, sim, estou provando. Vou ficar tão bonita, Torvald.
NORA. — Sim; mas para que serve isso? Estamos perdidos... A carta está na
caixa.
C. LINDE. — Krogstad pode reaver a carta antes dela ser lida. Pode
encontrar para isso um pretexto qualquer.
C. LINDE. — Entretém-no, vai ter com ele. Eu volto o mais depressa que
puder.
HELMER (do seu quarto). — Bom! Ora até que enfim se pode entrar! Anda
daí, Rank, vamos ver... (Aparecendo). Mas, então, que vem a ser isto?
HELMER. — Mas, minha querida Nora, que parecer tão fatigado tens agora!
Ensaiaste a dança?
HELMER. — Porquê?
HELMER. — Ah!
HELMER. — Com todo o gosto, com todo o gosto, visto que o desejas.
(Senta-se ao piano).
NORA (abre uma caixa, tira de dentro dela com vivacidade um pandeiro e um
xaile de riscas vistosas, embrulha-se nele rapidamente, e depois, num salto,
coloca-se no meio do quarto e exclama): — Vamos! Toca! Eu quero dançar.
(Helmer toca; Nora dança; Rank coloca-se atrás de Helmer, e segue-a com
os olhos).
NORA. — É impossível.
(Rank senta-se ao piano e toca. Nora executa uma dança cada vez mais
louca. Helmer, junto ao fogão, dirige-lhe uma observação de quando em quando,
que ela parece não ouvir. Os cabelos desprendem-se-lhe e caem-lhe sobre os
ombros. Ela não repara e continua a dançar. C. Linde entra).
CENA IX
Os mesmos; C. Linde
NORA. — Conheces que é muito preciso. Hás da guiar-me até ao fim: está
prometido, Torvald?
NORA. — Hoje e amanhã não quero que tenhas nenhum pensamento senão
para mim; não hás de abrir nenhuma carta... nem a caixa das cartas.
(Sai).
HELMER (pegando-lhe nas mãos). — Bem, minha filha, bem. É preciso não ter
esses sustos. É uma loucura. Quero que sejas sempre a minha cotovia chilreira.
NORA. — Sim, Torvald, sim. Mas vão entrando, que eu já vou; ande, doutor,
também. Tu, Cristina, ajuda-me a pôr o meu penteado em ordem.
RANK (baixo, a Helmer, passando com ele para a casa de jantar). — Estranho
tudo isto!... Parece-me ver em tudo... um presságio... especial!
HELMER. — Não é nada disso, meu caro. É apenas aquela angústia pueril de
que te falei.
NORA. — E então?
NORA. — Não devias tê-lo feito. O melhor é não evitar nada. No fundo, já
percebi que era um gozo esperar o que nos espanta.
NORA. — São cinco horas. Daqui à meia-noite vão sete. Depois vinte e
quatro horas até à outra meia-noite. Então, já deve estar dançada a tarantella.
Vinte e quatro e sete? Tenho trinta e uma horas a viver.
C. Linde; Krogstad
KROGSTAD (entrando). — Gosto de saber isso. Com que então os Helmer esta
noite dançam? É verdade o que me diz?
KROGSTAD. — De nada.
KROGSTAD (esfregando as mãos). — Ah! Assim é!... E tudo isso, não foi mais
do que uma questão de dinheiro.
C. LINDE. — Não deve esquecer, que eu tinha de sustentar minha mãe, e dois
irmãos pequenos. Não podíamos esperar por si; o senhor, então, não tinha mais
do que esperanças muito remotas.
C. LINDE. — Não sei. Essa pergunta tenho eu feito muita vez a mim mesma.
KROGSTAD. — Acredito-a porque o diz. Mas agora que o sabe, não renuncia?
C. LINDE. — Nisso, deu-lhe ela uma prudente lição. Mas as ações, confia
nelas?
KROGSTAD. — Cristina!
C. LINDE. — Conheço.
KROGSTAD. — Porquê?
KROGSTAD. — Bem, retiro-me. E tanto mais que isto não serve para nada:
bem entendido, ignora o meu proceder atual para com os Helmer.
KROGSTAD. — Já se vê, que vou: não há que discutir. Esperarei que Helmer
volte, e dir-lhe-ei que ma entregue.. que ela trata apenas da minha demissão...
que não vale a pena lê-la...
KROGSTAD. — Não entendo: em verdade, diga-me, não foi para isso que me
chamou aqui?
C. Linde, só
NORA (à entrada, resistindo), — Não, não, não, não quero vir já para casa;
quero tornar a subir; não quero retirar-me tão cedo.
NORA. — Cristina!
C. LINDE. — Desculpe-me: tinha uma vontade tão grande de ver Nora com o
seu fato de napolitana.
HELMER (tirando o xaile a Nora). — Nesse caso, veja-a bem. Parece-me que
vale a pena. Está bonita, não acha?
HELMER. — Não ouve isto, minha senhora? Ela dança a sua tarantella, tem
um êxito louco e bem merecido, — ainda que talvez lhe tenha dado uma
naturalidade excessiva, quero dizer um pouco mais do que o comportado pelas
exigências estritas da arte. — Mas, enfim, o principal é que teve êxito, um êxito
colossal. Havia de deixá-la ficar depois disso? Era ir de propósito diminuir o
efeito. Muito obrigado! Dei o braço à minha formosa rapariga de Capri, — à
minha caprichosa napolitana, devia eu dizer; em seguida, uma volta rápida pela
sala; cumprimentos para a direita e para a esquerda — e, como se diz nos
romances... a bela sombra desvaneceu-se. Nos desenlaces é preciso sempre um
certo efeito, minha senhora; mas isto é que eu não consigo que Nora chegue a
compreender. Mas que calor faz aqui! (Atira com o dominó para cima de uma
cadeira e abre a porta do quarto). O que é isto? Não há luz? Ah! É verdade. Peço
desculpa.
Nora; C. Linde
NORA. — Então?...
C. LINDE. — Não tens nada a temer de Krogstad, mas é preciso que fales.
C. LINDE (pegando num bocado de obra de meia que Helmer lhe estende). —
Muito obrigada: já me esquecia.
HELMER. — É mais bonito. Veja lá: pega-se no bordado com a mão esquerda,
assim; e faz-se mover a agulha com a mão direita, assim... não repara na curva
longa e ligeira que se forma? Não é verdade?
HELMER. — Ao passo que fazer meia... não tem beleza nenhuma. Os braços
pregados ao corpo... as agulhas de cima para baixo e de baixo para cima... faz
lembrar um trabalho chinês... Era bom o champanhe que serviram lá em cima!
Nora; Helmer
NORA. — É verdade, estou muito cansada. Agora, sinto que não levava muito
tempo a adormecer.
HELMER. — Então, já vês. Eu tinha razão em não querer ficar mais tempo.
HELMER. — Também eu, quase que lhe não falei; mas há muito tempo que o
não via tão bem disposto. (Fita-a um momento, depois aproxima-se-lhe). —
Hum... como é bom, no fim de tudo, voltar para casa, estar sozinho contigo... Oh!
Que bonita, que deliciosa mulherzinha tu és!
HELMER. — Então eu não hei de olhar para o meu mais querido tesouro?
Para este esplendor de mulher, que é minha, só minha, inteiramente minha!
HELMER. — Pois não é assim, minha bem amada Nora? Oh! Quando nós
estamos na sociedade, como esta noite... sabes porque te falo tão pouco, porque
me conservo afastado de ti, contentando-me em dirigir-te algumas vezes um
olhar disfarçado, sabes porquê? É porque gosto de estar imaginando que és o
meu amor secreto, a minha jovem, a minha misteriosa noiva, e que todos
ignoram os nossos laços.
NORA. — Sim, sim, sim, bem sei que todos os teus pensamentos são para
mim.
NORA. — E à saída, quando ponho o xaile nos teus ombros finos e juvenis,
quando cubro essa maravilhosa nuca, imagino que és a minha jovem desposada,
que voltamos da igreja, que, pela primeira vez te conduzo a minha casa e que
enfim vamos estar sós... vou estar só contigo, minha adorada beleza palpitante!
Ainda hoje, todo o tempo que durou a soirée, não fiz outra coisa senão suspirar
por ti. Quando te vi, na tarantella, tão fascinadora, tão provocante... fervia-me o
sangue, não podia conter-me, e foi por isso que te trouxe para casa tão
depressa...
HELMER. — Que estás dizendo? Estás brincando comigo, Nora? Não queres
isso, disseste? Não te lembras que sou teu marido?
(Batem à porta de entrada).
HELMER (em tom enfastiado). — Bom, faltava agora este. (Alto). Espera, que
já vou abrir. (Vai abrir a porta). Sim, senhor; é muito amável da tua parte, não
passares pela nossa porta sem bater.
CENA VII
Os mesmos; Rank.
RANK. — Pareceu-me ouvir a tua voz; foi por isso que me lembrei de entrar
um instante. (Lançando um olhar em torno de si). É este, pois, o lar para mim tão
querido, tão familiar. São felizes, meus amigos; têm aqui, em sua casa, o bem
estar, a tranquilidade.
RANK. — Pareceu-lhe?
RANK. — Ora, porque não há de a gente passar uma boa noite, depois de um
dia bem empregado?
NORA. — Dr. Rank, o senhor estudou hoje, por força, algum caso científico.
RANK. — Uma certeza completa. Depois disso, não tinha direito a passar
uma noite alegre?
NORA. — Diga-me lá: que fatos havemos nós ambos de escolher para a outra
vez?
RANK. — Como há de ser? Basta que tua mulher se apresente como nós a
vemos todos os dias.
(Apresenta-lhe a charuteiro).
RANK. — A si? Ora! Mas se faz muito empenho... Durma bem. E outra vez,
obrigado pelo lume.
Nora; Helmer
HELMER. — Vou despejar a caixa das cartas: está completamente cheia; não
há lugar para os jornais amanhã de manhã...
HELMER. — Bem sabes que não... O que vem a ser isto? Mexeram na
fechadura!
NORA. — Na fechadura?...
NORA. — Do doutor?
HELMER. — Têm uma grande cruz preta por cima do nome. Olha. Para
brincadeira é de péssimo gosto! É como se ele nos desse parte da sua própria
morte.
HELMER. — Pobre amigo! Eu bem sabia que não tinha de vê-lo por muito
tempo. Mas não esperava que fosse tão depressa. E vai esconder-se, como um
animal ferido.
NORA. — Se isso tem de fazer-se, antes se faça sem se dizer uma palavra.
Pois não o entendes assim, Torvald?
Nora, só
Nora; Helmer
HELMER. — Nora!
HELMER (recuando). Com que então é verdade? Esta carta não mente?
Horror! Não, não, é impossível, isto não pode ser.
NORA (encara-o com uma rigidez crescente na expressão e diz em voz lenta e
profunda). — Sim, agora começo a compreender o fundo das coisas.
HELMER (andando, agitado, na cena). — Oh! Que terrível despertar! Há oito
anos que ela, a minha alegria e o meu orgulho... é uma hipócrita, uma
mentirosa... pior do que isso, uma criminosa! Que abismo de perversão é isto
tudo! Que horror!
HELMER. — Basta de grandes palavrões. Teu pai também tinha uma grande
provisão deles. De que me servia, se deixasses este mundo, como dizes? De
nada. Apesar disso, ele podia divulgar as coisas, e, nesse caso, suspeitar-me-iam
talvez de ter sido cúmplice da tua criminosa ação. Poderiam crer que fui eu o
instigador dela, que fui eu que te impeli. E é a ti que devo isto, a ti com quem
andei nos braços através de toda a nossa vida comum. Compreendes agora o
que fizeste?
HELMER. — Tudo isto é tão incrível, que eu não sei deliberar-me. Mas e
necessário resolver alguma coisa. Tira esse xaile. Tira-o, já te disse! É preciso
que eu o contente por qualquer forma. Do que se trata é de atabafar este
negócio a todo o preço. E, no que respeita ao nosso viver interno, não deve
conhecer-se mudança. Bem entendido, que se não trata senão das aparências.
Continuarás, portanto, a habitar aqui: assim deve ser. Mas não te será permitida
mais a educação das crianças... não tas confio. Ah! Ter de falar assim àquela que
eu tanto amei e que ainda...! Vamos, tudo isto passou, tem de ser. De hoje em
diante não se trata já de felicidade. Mas unicamente de salvar restos,
aparências...
(Tocam à campainha da porta de entrada).
HELMER (estremecendo), — O que é isto? Tão tarde! Horror. Será já?... Será
ele?... Esconde-te, Nora! Diz-te doente.
(Nora não se mexe, Helmer vai abrir a porta).
A CRIADA (meia despida, na saleta). — Uma carta para a senhora.
NORA. — Lê.
HELMER. — Nora!... Não, deixa-me ler outra vez!... É isto, é, não me iludo!
Estou salvo! Nora, estou salvo!
NORA. — E eu?
NORA. — É verdade.
HELMER. — Amaste-me como uma mulher deve amar o seu marido. O que te
sucedeu foi não acertar na escolha de meios. Mas imaginas que te quero menos,
por não poderes guiar-te a ti mesma? Não, não, apoia-te em mim: encontrarás
auxílio e direção. Eu não seria um homem se a tua incapacidade de mulher te
não tornasse duplamente sedutora aos meus olhos. Esquece as palavras duras
que te disse nos primeiros momentos de pavor, quando cheguei a crer que tudo
ia desabar sobre mim. Perdoei-te. Nora, juro que te perdoei.
HELMER. — Não te vás; deixa-te ficar... (Segue-a com os olhos). Para que vais
para o quarto?
NORA (que vem vestida com o seu fato ordinário). — Sim, Torvald, tornei a
vestir-me.
HELMER. — Nora... o que quer dizer isso? Que modos são esses?...
NORA. — Há oito anos que somos casados. Reflexiona um pouco: pois não é
esta a primeira vez que nós ambos, tais como somos, marido e mulher,
conversamos seriamente juntos?
HELMER. — Seriamente, sim... Mas, porque há de ser seriamente?
NORA. — Eu não falo de inquietações. O que quero dizer é que nunca, fosse
no que fosse, procurámos ver em comum, no fundo das coisas.
HELMER. — Mas, repara, minha querida Nora: seria isso uma ocupação para
ti?
HELMER. — O quê? Nós ambos!... Mas quem foi que te amou tanto como nós?
NORA (abanando a cabeça). — Eu nunca fui amada, nem por um, nem por
outro. Gostavam de estar em adoração diante de mim, e mais nada.
NORA (sem mudar de tom). — O que eu quero dizer é que, das mãos do papá,
passei para as tuas. Arranjaste tudo a teu gosto, e eu tive o mesmo, ou afetei que
o tinha, pois ao justo não sei bem como era; talvez fossem ambas as coisas, ora
uma, ora outra. Lançando agora um olhar para o passado, parece-me que tenho
vivido aqui como vivem os pobres de entendimento... sem pensarem no dia
seguinte. Vivi das piruetas que fazia para te dar gosto, Torvald. Era isso o que te
convinha. Tanto tu como o papá foram muito culpados comigo. É de ambos a
falta, se eu não sirvo para nada.
HELMER. — Estás sendo absurda, Nora, absurda e ingrata. Não tens sido feliz
aqui?
NORA. — Não: fui alegre e mais nada. Foste muito amável para mim: mas a
nossa casa nunca foi outra coisa senão uma casa de recreio. Eu fui mulher-
boneca em tua casa, como tinha sido criança-boneca em casa do papá. E os
nossos filhos, esses, por sua vez, têm sido bonecas para mim. Eu achava graça
quando brincavas comigo, como eles achavam graça quando eu brincava com
eles. Aí está o que tem sido a nossa união, Torvald.
HELMER. — Nora!
NORA. — Ainda há pouco o disseste... que era esse um encargo que não
ousavas confiar-me.
NORA. — Meu Deus! Disseste-o muito bem. É um encargo acima das minhas
posses. Tenho outra tarefa a cumprir primeiro. Antes de tudo preciso pensar na
educação de mim mesma. Tu não és homem que me facilites esse dever. Tenho
de empreendê-lo sozinha. É por isso que te vou deixar.
HELMER. — Estás perdendo a razão! Não tens direito de sair daqui. Proíbo-
to.
NORA. — Desta hora em diante não podes proibir-me nada. Levo comigo
tudo quanto é meu. De ti não quero coisa nenhuma, nem agora, nem nunca mais.
NORA. — Amanhã parto para minha casa; isto é, para a terra onde nasci...
Terei lá mais facilidade em viver.
HELMER. — Abandonar a tua casa, o teu marido, os teus filhos! Não pensas
no que se há de dizer?
NORA. — Não posso preocupar-me com isso. Unicamente o que eu sei, é que
para mim é indispensável.
HELMER. — Precisas que to diga? Pois não são os teus deveres para com teu
marido e para com teus filhos?
NORA. — Eu já não creio nisso. O que eu creio é que, antes de tudo, sou um
ser humano, com o mesmo direito que tu... ou que pelo menos devo tentar sê-lo.
Bem sei que a maior parte dos homens te hão de dar razão, Torvald, e que estas
ideias estão impressas nos livros. O que eu preciso é formar por mim própria
ideias sobre isso tudo, e procurar perceber todas as coisas.
HELMER. — O que dizes? Pois não percebes qual é o teu lugar aqui? Não tens
nessas questões um guia infalível? Não tens a religião?
NORA. — Não; a esse respeito não sei senão o que me ensinou o cura
Hausen, quando me preparou para a confirmação. A religião é isto, é aquilo.
Quando eu estiver só e livre, tratarei de examinar essa questão como as outras.
Verei, então, se o cura dizia a verdade, ou pelo menos se aquilo que ele me dizia
era verdade com respeito a mim.
HELMER. — Tudo isso é inaudito da parte de uma mulher tão nova! Mas se a
religião não pode guiar-te, deixa-me ao menos sondar a tua consciência. Porque
suponho que, pelo menos, possuis o senso moral? Ou talvez sejas desprovida
dele: responde-me.
NORA. — Vê, Torvald, é-me difícil responder. Não sei nada disso. Não posso
reconhecer-me no meio dessas coisas. O que sei, é apenas isto: que as minhas
ideias diferem completamente das tuas. Sei, também, que as leis não são o que
eu imaginava; agora que essas leis sejam justas, isso é que me não pode entrar
na cabeça. Uma mulher não ter o direito de poupar um desgosto a seu velho pai
moribundo, ou de salvar a vida a seu marido! Isso não pode ser!
NORA. — Não, não compreendo nada. Mas quero chegar a isso, e assegurar-
me bem qual de nós tem razão: se a sociedade, se eu.
HELMER. — Estás doente, Nora, tens febre; chego a crer que não estás em
teu juízo.
NORA. — Pois crê que nunca me senti mais lúcida e mais segura de mim do
que esta noite.
HELMER. — E é com essa esperança e com toda a lucidez, que abandonas teu
marido e teus filhos?
NORA. — É.
NORA. — Qual?
NORA. — Custa-me muito dizê-lo, Torvald: porque foste sempre muito bom
para mim. Mas não posso negá-lo: já te não amo.
HELMER. — Podes, então, explicar-me como foi que eu perdi o teu amor?
NORA. — Certamente, que posso. Foi esta noite, quando não vi cumprir-se o
prodígio por mim esperado. Vi, então, que não eras o homem que eu julgava.
NORA. — Esperei, com paciência, durante oito anos. Eu bem sabia, meu
Deus, que os prodígios não acontecem todos os dias. Chegou, finalmente, esta
hora de angústia. Pensei, então, convencida: eis o prodígio que chega. Enquanto
a carta de Krogstad estava ali, na caixa, não pensei um instante que pudesses
dobrar-te às condições desse homem. Acreditava firmemente que lhe dirias: Vá,
e publique tudo. E quando isso tivesse sucedido...
HELMER. — Nora!
NORA. — Vais dizer que eu não teria aceite semelhante sacrifício. Sem
dúvida, que não. Mas que importância teria a minha afirmação ao lado da tua?...
Pois bem! Era esse o prodígio que eu esperava, aterrada. E era para obstar a
isso, que eu queria morrer.
NORA. — Pois admitamos que seja. Tu, porém, não falas como o homem de
quem me fosse possível ser a companheira. Tão depressa tranquilizado, não
sobre o perigo que me ameaçava, mas sobre aquele que tu próprio corrias...
esqueceste tudo. Tornei logo a ser a tua avezinha constante, a tua boneca, que já
estavas inteiramente disposto a tomar nos braços como dantes, apenas com
mais precauções depois que a tinhas reconhecido mais frágil. (Levantando-se).
Ouve, Torvald; naquele momento, pareceu-me que tinha vivido oito anos nesta
casa com um estranho, e que tinha tido três filhos... Ah! Nem posso sequer
pensar nisso. Tenho vontade de me dilacerar a mim mesma em mil pedaços.
HELMER (surdamente). — Bem vejo, Nora, bem vejo. Cavou-se entre nós um
abismo. Diz-me, porém, se não há maneira de o encher outra vez?
NORA. — Tal como eu sou agora, não posso ser tua mulher.
(Sai, e volta com a capa, o chapéu, e um saquinho de viagem, que põe sobre
uma cadeira perto da mesa).
NORA (pondo a capa). — Eu não posso passar a noite em casa dum estranho.
HELMER. — Mas não podemos continuar a viver juntos como irmão e irmã?
NORA (pondo o chapéu). — Bem sabes, que isso não duraria muito tempo.
(Pondo o xaile por cima dos ombros). Adeus, Torvald. Eu não quero ver as
crianças. Sei que estão em melhores mãos do que as minhas. Tal como sou
agora... não posso ser mãe para elas.
NORA. — Como te hei de responder? Sei eu, por acaso, o que ainda serei?
HELMER. — Mas tu és minha mulher, seja o que fores ou o que vieres a ser.
NORA. — Também.
NORA. — Obrigada. Agora, acabou-se tudo. Ali ficam as chaves. Pelo que
respeita à casa, Helena está ao facto... está até melhor do que eu. Amanhã,
depois da minha partida, Cristina virá arranjar em uma mala tudo o que eu
trouxe comigo quando vim para aqui. Quero que mo remetam.
HELMER. — Acabou-se tudo! Não queres nunca mais pensar em mim, Nora?
NORA. — Com certeza, que hei de pensar muitas vezes em ti, e nas crianças,
e em casa.
HELMER. — Nora... e eu nunca mais hei de ser senão um estranho para ti?
NORA (pegando no saco de viagem). — Ah! Torvald, para isso era preciso o
maior dos prodígios.
NORA. — Era necessário para nós ambos, que nos transformássemos a tal
ponto... Ah! Torvald, eu não acredito nos prodígios.
FIM