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Monólogo TOM

Depois do fiasco na Escola Técnica Rubican, a ideia de achar um pretendente para Laura
começou a tomar proporções cada vez maiores nos cálculos de minha mãe. A imagem do
pretendente começou a assombrar nosso pequeno apartamento, sua presença ficava
estampada na expressão preocupada de minha mãe e no comportamento assustado, como o
de quem pede desculpas, de minha irmã.
Então na noite seguinte eu trouxe Jim para jantar em nossa casa. Eu tinha conhecido Jim
superficialmente no ginásio.

Seis anos depois de terminar o ginásio, ele estava num emprego que não era muito melhor
do que o meu. Trabalhávamos na Fábrica de Sapatos Continental. Ele me chamava de
Shakespeare. Enquanto os outros rapazes do almoxarifado me olhavam com desconfiada
hostilidade, Jim tinha uma atitude bem-humorada em relação a mim.

TOM: Laura, este é o Jim. Jim, esta é minha irmã, Laura.

JIM: (Entrando.) Eu não sabia que Shakespeare tinha uma ir


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LAURA: (Recuando da porta, tensa e trêmula.) Como – como vai?

JIM: (De forma calorosa, estendendo a mão.) Tudo bem!

(Hesitante, Laura toca sua mão na dele.)

JIM: Que mão fria, Laura!

LAURA: É que eu – estava ouvindo vitrola...

JIM: Aposto que era música clássica! Você devia ouvir um pouco de música gostosa e
dançante para se aquecer!

LAURA: Desculpe – eu ainda não terminei de ouvir...(Ela se vira, desajeitada, e sai


apressada em direção ao quarto da frente. Pára um segundo junto à vitrola. Depois
toma fôlego e sai correndo, atravessando as cortinas como uma corça assustada.)

JIM: (Sorrindo desconcertado.) O que aconteceu?

TOM: Ah – com Laura? Laura é –muito tímida.

JIM: Tímida, é? É muito difícil encontrar uma garota tímida hoje em dia. Acho que você
nunca mencionou que tinha uma irmã.

TOM: Bom, agora você sabe. Eu tenho. Aqui está o Post Dispatch45 Quer alguma parte?

JIM: Hum-hum.

TOM: Qual delas? Os quadrinhos?

JIM: Esportes! (Dá uma olhada na seção de esportes.) Ole Dizzy Dean46 está se
comportando mal.

TOM: (Desinteressado.) É mesmo? (Acende um cigarro e vai até a porta da escada de


incêndio.)

JIM: Onde você está indo?

TOM: Para o terraço.

JIM: (Indo atrás de Tom.) Sabe, Shakespeare – quero te sugerir uma coisa maravilhosa!
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TOM: Que coisa?

JIM: Um curso que eu estou fazendo.

TOM: Hein?

JIM: Um curso de oratória! Nem eu nem você fomos feitos para trabalhar num
almoxarifado.

TOM: Ainda bem – obrigado. Mas o que a oratória tem a ver com isso?

JIM: Ela prepara você para ocupar – posições executivas!

TOM: Ahhh.

JIM: Para mim foi maravilhoso.

(Imagem na tela: O Executivo em sua Mesa.)

TOM: Em que sentido?

JIM: Em todos! Já se perguntou qual é a diferença entre você e os homens do escritório em


frente? A inteligência? Não! A habilidade? Não! Então o que é? Uma única coisinha –

TOM: E que coisinha é essa?

JIM: Basicamente tem a ver com – a postura social! Ser capaz de estar com as pessoas
e não ficar diminuído diante de ninguém!
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Mr. Mendonça veio falar comigo sobre você.

TOM: Favoravelmente?

JIM: O que você acha?

TOM: Bom, eu –

JIM: Você vai ser mandado embora se não acordar.

TOM: Eu estou acordando

JIM: Mas não mostra nenhum sinal

disso.

TOM: Os sinais são internos.

TOM: Eu estou planejando uma mudança. (Ele se debruça sobre a grade da escada de
incêndio, e fala com sereno entusiasmo. As luzes das marquises e letreiros dos cinemas
que ficam defronte à rua estreita iluminam seu rosto. Ele parece um viajante.) E o futuro
que planejo para mim não inclui nem o almoxarifado, nem Mr. Mendonça, nem esse curso
noturno de oratória.

JIM: Que conversa é essa?

TOM: Estou cansado dos filmes

. JIM: Dos filmes!

TOM: É, dos filmes! Olha para eles! (Faz um gesto em direção às maravilhas da Grande
Avenida.) Toda essa gente glamourosa, vivendo aventuras, desfrutando de tudo que é
bom, devorando tudo! Sabe o que acaba acontecendo? As pessoas se contentam com as
aventuras do cinema, e não se aventuram na vida! Os personagens de Hollywood se
encarregam de viver aventuras no lugar dos americanos, que se contentam em ficar
sentados numa sala escura, assistindo as aventuras deles! É assim até começar uma
guerra. Aí a aventura se torna acessível às massas! Ela entra no cardápio de todo mundo, e
não só no do Clark Gable47! Só a guerra faz as pessoas da sala escura sairem de lá para
viver suas próprias aventuras! Que maravilha! Agora é a nossa vez de ir para os mares do
sul, fazer um safári, experimentar o que é exótico bem longe daqui! Mas eu não tenho
essa paciência. Não quero esperar. Estou cansado de ficar parado, só vendo a vida nos
filmes, eu vou embora daqui!

JIM: (Incrédulo.) Embora?


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TOM: É.

JIM: Quando?

TOM: Logo!

JIM: Para onde? Para onde?

(A música parece responder a pergunta, enquanto Tom pensa. Ele procura algo nos
bolsos.)

TOM: Estou começando a ferver por dentro. Sei que pareço sonhador, mas por dentro –
por dentro estou fervendo! Sempre que vou pegar um sapato, eu estremeço um pouco,
pensando em como a vida é curta e o que eu estou fazendo! Sei lá o que isso significa,
mas não tem a ver com os sapatos – a não ser como uma coisa que os viajantes usam!
(Ele encontra o que estava procurando nos bolsos e mostra o papel a Jim.) Olha –

JIM: O quê?

TOM: Sou membro disso aqui.

JIM: (Lendo.) Sindicato dos Marinheiros Mercantes.

TOM: Esse mês eu paguei não só a taxa, como as minhas dívidas.

JIM: Você vai se arrepender quando perder o emprego.

TOM: Eu não vou estar aqui.

JIM: E a sua mãe?

TOM: Eu sou igual ao meu pai. Aquele filho-da-puta! Notou o sorriso dele naquela
fotografia lá dentro? E faz dezesseis anos que ele sumiu!

JIM: Você está falando por falar, seu bobo. O que a sua mãe acha

disso?

TOM: Shh! Ninguém sabe nada dos meus planos!

JIM: Oi, Laura.

LAURA: (Quase inaudível.) Oi.

(Ela limpa a garganta.)

JIM: Como está se sentindo? Melhor?


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LAURA: Sim. Sim, obrigada.

JIM: Isso é para você. Um pouco de vinho de dente-de-leão. (Ele dá o copo a ela com
extrema galanteria.)

LAURA: Obrigada.

JIM: Beba – mas não fique bêbada! (Ele ri de coração aberto. Laura pega o copo,
insegura. Ela ri timidamente.) Onde eu ponho o castiçal?

LAURA: Ah... Onde você quiser...

JIM: Que tal aqui no chão? Alguma coisa contra?

LAURA: Não.

JIM: Vou colocar um jornal em baixo para não pingar cera no chão. Eu gosto de sentar
no chão. Você se importa se eu sentar?

LAURA: Ah, não.

JIM: Me dá uma almofada?


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LAURA: O quê?

JIM: Uma almofada!

LAURA: Ah... (Ela lhe dá uma rapidamente.)

JIM: E você? Não quer sentar no chão

também?

LAURA: Ah – quero.

JIM: Então porque não

senta?

LAURA: Eu – vou sentar.

JIM: Pega uma almofada! (Ela pega e senta no chão do outro lado do candelabro. Jim
cruza as pernas e sorri para ela de forma simpática.) Eu mal consigo ver você aí, tão
longe.

LAURA: Eu – eu estou vendo você.

JIM: Eu sei, mas não está certo, eu ficar sozinho na ribalta. (Laura chega sua almofada
mais para perto.) Ótimo! Agora eu estou vendo você! Está confortável?

LAURA: Está.

JIM: Eu também. Muito confortável! Quer um

chiclete?

LAURA: Não, obrigada.

JIM: Com sua permissão, eu vou querer um. (Ele calmamente desembrulha um chiclete e o
levanta.) Imagina a fortuna que ganhou o cara que inventou o chiclete. Incrível, não? O
Wringley Building52 é um dos lugares interessantes de Chicago – eu o visitei quando fui
até lá para o Century of Progress53. Você foi a essa feira?

LAURA: Não, não fui.

JIM: Sabe, foi uma feira maravilhosa. O que mais me impressionou foi a Galeria de
Ciências. Dá uma idéia de como vai ser o futuro na América, e ele vai ser ainda mais
maravilhoso do que o presente! (Há uma pausa. Jim sorri para ela.) Seu irmão me
disse que você é tímida. É verdade, Laura?
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LAURA: Eu – eu não sei.

JIM: Na minha opinião você é aquele tipo de garota à moda antiga. Acho que é muito
bom ser assim. Espero não estar levando a conversa para um lado muito pessoal –
estou?

LAURA: (Precipitadamente, por causa do embaraço.) Acho que vou aceitar um pedaço de
chiclete – se não se importar. (Limpando a garganta.) Mr. O’Connor, o senhor continua
cantando?

JIM: Cantando? Eu?

LAURA: É. Eu me lembro da voz linda que o senhor tinha.

JIM: Está dizendo que me ouviu cantar?

LAURA: Ouvi sim. Muitas vezes... Eu – eu acho – que você não se lembra de mim, não é?

JIM: (Sorrindo, em dúvida.) Sabe, tenho a sensação de que já vi você antes. Tive essa
sensação assim que você abriu a porta. Achei até que ia me lembrar do seu nome. Mas o
nome que eu ia dizer – não era um nome! Aí eu parei antes de falar.

LAURA: Não seria – Botão de Rosa?

JIM: (Dando um pulo e sorrindo.) Botão de Rosa! Meu Deus, isso mesmo – Botão de Rosa!
Era o que estava na ponta da minha língua quando você abriu a porta! Não é engraçado
como a memória prega peças na gente? Por algum motivo eu não liguei você ao ginásio.
Mas foi lá sim, no ginásio. Eu nem sabia que você era irmã do Shakespeare! Nossa,
desculpe.

LAURA: Eu não esperava que você soubesse. Você – mal me conhecia!


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JIM: Mas nós já conversamos, não é?

LAURA: É, nós – falamos um com o outro.

JIM: Quando você me reconheceu?

LAURA: Ah, na mesma hora!

JIM: Assim que abriu a porta?

LAURA: Quando eu ouvi seu nome achei que provavelmente era você. Eu sabia que o Tom
conhecia você um pouco, no ginásio. Então quando eu vi você na porta – bom, aí tive –
certeza.

JIM: Por que não disse nada?

LAURA: (Sem fôlego.) Eu não sabia o que dizer, fiquei – tão surpresa!

JIM: Mas pelo amor de Deus! Sabe, isso é muito estranho!

LAURA: É sim! É, mas...

JIM: Não tínhamos aula juntos de alguma

coisa?

LAURA: Tínhamos sim.

JIM: Do que era?

LAURA: De canto – cantávamos no coro!

JIM: Ah!

LAURA: Eu me sentava do outro lado da sua fila, no auditório.

JIM: Ah.

LAURA: Às segundas, quartas e sextas.

JIM: Agora estou me lembrando – você sempre chegava atrasada.

LAURA: É, é que subir as escadas era muito difícil para mim. Eu tinha aquele aparelho na
perna – fazia tanto barulho!

JIM: Eu nunca ouvi nenhum barulho.


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LAURA: (Estremecendo com a lembrança.) Para mim parecia um trovão!


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JIM: Puxa, eu nunca nem notei.

LAURA: E todo mundo já tinha sentado antes de eu entrar. Eu tinha que andar na frente de
todas aquelas pessoas. Meu lugar era na última fila. Eu tinha que atravessar todo aquele
corredor, fazendo barulho, diante de todo mundo!

JIM: Você não devia ter se preocupado com o que as pessoas iam pensar.

LAURA: Eu sei, mas eu me preocupava. Era sempre um alívio tão grande quando
começavam a cantar.

JIM: Ah, claro, agora eu já sei quem você era! Eu chamava você de Botão de Rosa. Por que
eu a chamava assim?

LAURA: É que eu andei faltando à escola, porque tinha desmaiado de nervoso. Quando
voltei, você me perguntou o que tinha acontecido. Eu disse que tinha desmaiado de tão
nervosa – aí você pensou que eu tinha dito botão de rosa. Depois disso, você passou a
me chamar assim!

JIM: Espero que não tenha se importado.

LAURA: Ah, não – eu gostei. Sabe, eu não me relacionava com muitas – pessoas...

JIM: Eu me lembro que você parecia meio fechada.

LAURA: Eu – eu – nunca tive muita sorte para – fazer amigos.

JIM: Eu não vejo motivo para isso.

LAURA: É que – no início foi difícil.

JIM: Você quer dizer por causa da –

LAURA: É, isso sempre – sempre era uma barreira entre mim e –

JIM: Você não devia ter deixado isso acontecer!

LAURA: Eu sei, mas acontecia, e –

JIM: Você era tímida com as pessoas!

LAURA: Eu tentava não ser, mas não conseguia –

JIM: Superar isso?

LAURA: É, eu – nunca consegui


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JIM: Acho que timidez é uma coisa que tem que ser resolvida aos poucos.

LAURA: (Cheia de tristeza.) É – acho que sim –

JIM: Leva tempo!

LAURA: É –

JIM: As pessoas não são tão terríveis quando você passa a conhecê-las. Você tem que se
lembrar disso! E todo mundo tem problemas, não é só você; praticamente todo mundo
tem problemas. Você imagina que só você tem problemas, que é a única que se sente
frustrada. Mas é só olhar em volta que vai ver muitas pessoas tão frustradas quanto
você. Por exemplo, quando eu estava no ginásio, eu achava que nessa altura da minha
vida eu estaria muito mais realizado do que estou agora. Lembra daquele elogio
maravilhoso que me fizeram em A Tocha, aquele almanaque da escola?

LAURA: Claro! (Ela se levanta e vai até a mesa.)

JIM: Diziam lá que eu seria bem sucedido em tudo que fizesse! (Laura volta trazendo o
almanaque do ginásio.) Meu Deus! A Tocha!

(Ele pega o almanaque com muito respeito. Ambos olham para o almanaque
maravilhados. Laura se agacha junto a ele, e eles começam a virar as páginas. A timidez
de Laura está se dissolvendo junto à personalidade calorosa de Jim.)

LAURA: Olha aqui você em Os Piratas de Pezance!

JIM: (Saudosamente.) Eu fiz o papel do barítono naquela

opereta.

LAURA: (Arrebatada.) Lindamente!

JIM: (Protestando.) Imagina –

LAURA: Foi sim – lindamente – lindamente!

JIM: Você assistiu?

LAURA: As três apresentações!

JIM: Não!

LAURA: Foi sim!


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JIM: As três apresentações?

LAURA: (Abaixando o olhar.) É.


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JIM: Por quê?

LAURA: Eu – queria pedir para você – autografar o meu programa. (Ela pega o programa
que estava guardado na última página do almanaque e mostra para ele.)

JIM: E por que não me pediu?

LAURA: Você estava sempre tão rodeado pelos seus amigos que eu nunca consegui.

JIM: Era só você ter –

LAURA: É que – eu – achei que você poderia pensar que eu estava –

JIM: Que eu poderia pensar que você estava – o quê?

LAURA: Ah –

JIM: (Numa reflexão agradável.) Naquele tempo eu vivia cercado de mulheres.

LAURA: Você era muito popular!

JIM: É –

LAURA: Você tinha – um jeito tão simpático –

JIM: Eu fui mimado no ginásio.

LAURA: Todo mundo – gostava de você!

JIM: Inclusive você?

LAURA: Eu – é, inclusive eu – também – (Ela fecha delicadamente o almanaque no colo.)

JIM: Nossa, puxa! Me dá esse programa, Laura. (Ela lhe passa o programa. Ele assina com
um floreado.) Pronto – antes tarde do que nunca!

LAURA: Ah, eu – mas que – surpresa!

JIM: Minha assinatura agora não vale muito. Mas algum dia – talvez – passe a valer! Estar
frustrado é uma coisa, perder o entusiasmo é outra. Eu estou frustrado, mas não perdi o
entusiasmo. Tenho vinte e três anos. E você?

LAURA: Vou fazer vinte e quatro em junho.

JIM: Então não é nenhuma velha.

LAURA: Não, mas –


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JIM: Você terminou o ginásio?

LAURA: (Com dificuldade.) Eu não voltei pra lá.

JIM: Quer dizer que você abandonou?

LAURA: Eu tirei notas ruins no meu exame final. (Ela se levanta e recoloca o almanaque e
o programa sobre a mesa. Sua voz fica tensa.) Como vai Emily Meisenbach?

JIM: Ah, aquela chucrute!

LAURA: Por que você está chamando ela disso?

JIM: Porque é isso que ela era.

LAURA: Você não continua – saindo com ela?

JIM: Eu nunca a vejo.

LAURA: Na seção “Assuntos Pessoais” diziam que vocês – estavam noivos!

JIM: Eu sei, mas eu não me deixei impressionar com essa – propaganda!

LAURA: Então não era – verdade?

JIM: Só na opinião otimista da Emily!

LAURA: Ah –

JIM: (Depois de várias tragadas reflexivas em seu cigarro.) O que você andou fazendo
depois do ginásio? (Ela parece não ter escutado o que ele disse.) Hein? (Laura levanta o
olhar.) Eu perguntei o que você andou fazendo depois do ginásio, Laura?

LAURA: Não muita coisa.

JIM: Você deve ter feito alguma coisa ao longo desses seis longos anos.

LAURA: É.
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JIM: Bom, então, que tipo de coisa?

LAURA: Fiz um curso de administração na escola técnica –

JIM: E como foi?

LAURA: Ah, eu não fui muito – bem – tive que sair, porque o curso me dava – indigestão –

(Jim ri, gentil.)

JIM: E o que você está fazendo agora?

LAURA: Eu não faço – muita coisa. Ah, mas por favor, não pense que eu fico por aí à toa!
Dedico muito tempo à minha coleção de vidro. O vidro é uma coisa que requer muito
cuidado.

JIM: O que você disse – sobre vidro?

LAURA: Coleção, eu disse – eu tenho uma coleção – (Ela limpa a garganta e se afasta de
novo, tímida ao extremo.)

JIM: (Abruptamente.) Na minha opinião, sabe qual é o seu problema?

Complexo de inferioridade! Sabe o que é isso? É o nome que dão quando alguém tem
baixa auto-estima! Eu entendo o que é, porque eu também já me senti assim. Mesmo que
meu caso não fosse tão grave quanto o seu parece ser. Eu tinha esse complexo até
começar a treinar a falar em público, desenvolver minha voz e perceber que eu tinha
aptidão para a ciência. Antes disso eu nunca tinha me achado excepcional em nada! Agora
estou estudando ciência seriamente, mas tenho um amigo que diz que eu consigo analisar
as pessoas melhor do que médicos profissionais disso. Não vou afirmar que isso seja
necessariamente verdade, mas sei que consigo intuir a psicologia de uma pessoa, Laura!
(Ele tira o chiclete da boca.) Desculpe, Laura, mas eu sempre jogo fora quando o sabor
acaba. Vou usar esse pedaço de papel para embrulhar. Eu sei como é quando isso gruda
na sola do sapato. (Ele embrulha o chiclete no papel e põe no bolso.) Pois é, na minha
opinião, esse é seu principal problema. Sua falta de confiança em si mesma como pessoa.
Você não tem a confiança necessária em si mesma.
Estou me baseando em certas coisas que você falou e em certas observações que eu fiz.
Por exemplo, aquele barulho que você considerava tão terrível no ginásio. Você disse que
ficava aterrada de andar para dentro da sala de aula. Aí o que você fez? Abandonou a
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escola, desistiu da sua educação por causa de um barulho, que, pelo menos na minha
opinião, era praticamente inexistente! O que você tem é um pequeno defeito físico. Que
mal se nota! Aumentado milhões de vezes pela sua imaginação! Sabe qual é o meu
conselho para você? Pense em si mesma como uma pessoa superior de alguma forma!

LAURA: De que forma?

JIM: Mas Laura, pelo amor de Deus! É só olhar em volta. O que você vê? Um mundo cheio
de gente comum! Todos nasceram e todos vão morrer! Quantos deles têm um décimo das
suas qualidades? Ou das minhas? Ou de quem quer que seja, pelo amor de Deus! Todo
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Mundo é muito bom em alguma coisa. Alguns em muitas coisas! (Inconscientemente ele
dá uma olhada em si mesmo no espelho.) O que você tem que fazer é descobrir no quê
você é boa! Eu, por exemplo. (Ele ajeita a própria gravata no espelho.) Meu interesse é
por eletrodinâmica. Estou fazendo um curso noturno de eletrônica direcionado para
rádio, Laura, além de ter um emprego de razoável responsabilidade no almoxarifado.
Estou fazendo esse curso e estudando oratória.

LAURA: Ahhh.

JIM: Porque eu acredito no futuro da televisão! (Virando as costas para ela.) Quero estar
pronto para crescer junto com ela. Então estou planejando estar dentro disso desde o
início. Na verdade, já fiz os contatos certos e agora só falta a indústria mesmo deslanchar!
Com força total! (Seus olhos brilham.) Conhecimento – Zzzzzp! Dinheiro – Zzzzp! Poder!
Este é o ciclo em que se constrói a democracia! (A atitude dele é dinâmica e convincente.
Laura fica olhando fixamente para ele, até sua timidez ser eclipsada por seu absoluto
estado de encantamento. Ele sorri de repente.) Você deve estar pensando que me tenho
em alta conta, não é?

LAURA: Não, não, eu –

JIM: Mas e você? Não existe nada que lhe interesse mais do que qualquer outra

coisa?

LAURA: Bom, existe, eu – como eu disse – eu tenho a minha – coleção de vidro – (Da

cozinha ouve-se uma gargalhada de menina.)

JIM: Eu não sei se entendi bem. De que tipo de vidro você está falando?

LAURA: São pequenos objetos de vidro, enfeites, na maioria. Na sua maior parte, são
pequenos animais feitos de vidro, os menores animaizinhos do mundo. Minha mãe os
chama de zoológico de vidro! Se quiser ver, aqui está um deles! Este é um dos mais
velhos. Tem quase treze anos. (Música: “O Zoológico de Vidro”.) (Ele estende a mão para
ela.) Mas cuidado – se você respirar, ele quebra!

JIM: É melhor eu não pegar. Sou meio desajeitado com as coisas.

LAURA: Pode pegar, eu confio em você! (Ela coloca o objeto na mão dele.) Viu só? Você está
segurando ele com delicadeza! Leve-o para perto da luz, ele adora a luz! Está vendo como a
luz brilha através dele?

JIM: É, brilha mesmo!

LAURA: Eu não devia ter preferências, mas ele é meu favorito.

JIM: E o que ele é?


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LAURA: Não notou que na testa dele há um único chifre?


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JIM: Ah, um unicórnio?

LAURA: Hum-hum!

JIM: Um unicórnio! Mas eles não existem mais no mundo

moderno. LAURA: Eu sei!

JIM: Coitadinho, deve se sentir meio solitário.

LAURA: (Sorrindo.) Bom, se isso for verdade, ele não se queixa. Ele fica na prateleira com
outros cavalos que não têm chifres, e todos parecem se dar muito bem uns com os
outros.

JIM: Como você sabe?

LAURA: (Com leveza.) Eu nunca ouvi brigas entre eles!

JIM: (Sorrindo.) Nenhuma briga, é? Isso é um bom sinal! Onde eu posso colocá-lo?

LAURA: Em cima da mesa. Todos eles gostam de variar de cenário de vez em quando.

JIM: Muito bem – (Ele coloca o unicórnio de vidro sobre a mesa, e depois levanta e estica
os próprios braços.) Olha como minha sombra fica grande quando eu me estico!

LAURA: Ah, é mesmo – ela vai até o meio do teto!

JIM: (Indo em direção á porta.) Acho que parou de chover. (Ele abre a porta da escada de
incêndio e a música de fundo se transforma numa música para dançar.) De onde vem
essa música?

LAURA: Do Paradise Dance Hall, do outro lado da rua. JIM:

Que tal sacudir um pouco o esqueleto, Miss Wingfield?

LAURA: O quê? Eu –

JIM: Será que o seu carnê de danças já está lotado? Deixa eu dar uma olhada. (Ele pega
um caderninho imaginário.) Que coisa! Todas as suas danças estão tomadas! Com licença,
vou ter que riscar alguma. (Música de valsa: “La Golondrina55.”) Ah, uma valsa! (Ele dá
alguns passos sozinho, depois estica os braços em direção a Laura.)

LAURA: (Ofegante.) Eu – não posso dançar.


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JIM: Lá vem você com essa mania de inferioridade!

LAURA: Eu nunca dancei na minha vida!

JIM: Tente, vamos!

LAURA: Mas eu poderia pisar em você!

JIM: Eu não sou feito de vidro.

LAURA: Como – como – como a gente começa?

JIM: É só deixar comigo. Levante seus braços um pouco.

LAURA: Assim?

JIM: (Tomando-a em seus braços.) Levante um pouco mais. Isso. Agora não fique tensa, o
principal é relaxar.

LAURA: (Rindo, ofegante.) É difícil relaxar.

JIM: Tudo bem.

LAURA: Acho que você não vai conseguir me levar. JIM:

Quer apostar? (Ele a coloca em movimento.) LAURA:

Meu Deus, é, você conseguiu!

JIM: Agora, deixe-se levar, Laura, é só se deixar levar.

LAURA: Eu –

JIM: Vamos!

LAURA: – estou tentando!

JIM: Não fique tensa – é só relaxar!

LAURA: Eu sei, mas eu –

JIM: Solta a coluna! Isso, muito melhor.

LAURA: É mesmo?

JIM: Muito, muito melhor! (Ele a conduz pela sala, numa valsa desajeitada.)
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LAURA: Eu não acredito!

JIM: Ha-ha!

LAURA: Meu Deus!

JIM: Ha-ha-ha! (De repente eles batem na mesa e o unicórnio cai no chão. Jim pára de
dançar.) No que batemos?

LAURA: Na mesa.

JIM: Caiu alguma coisa? Acho que –

LAURA: Foi.

JIM: Tomara que não tenha sido o cavalinho de vidro com o chifre!

LAURA: Foi. (Ela se curva para apanhá-lo.)

JIM: Ah, não. Quebrou?

LAURA: Agora ele ficou igual a todos os outros cavalos.

JIM: Perdeu o –

LAURA: Chifre! Não tem importância. Talvez seja uma bênção disfarçada.

JIM: Você nunca vai me perdoar. Aposto que era seu favorito.

LAURA: Eu não tenho favoritos. Não é nenhuma tragédia, Sardento. É tão fácil o vidro se
quebrar. Mesmo tomando muito cuidado. O tráfego sacode as prateleiras e as coisas caem.

JIM: Mesmo assim eu me sinto muito mal por ter causado isso.

LAURA: (Sorrindo.) Vou imaginar que ele foi operado. O chifre foi removido para que ele
se sentisse menos – esquisito! (Os dois riem.) Agora ele vai ficar mais à vontade com os
outros cavalos, que não têm chifres...

JIM: Ha-ha, isso é muito engraçado! (Ele fica sério de repente.) Você tem senso de humor, isso é bom!
Sabe – você é – muito diferente! Surpreendentemente diferente de todas as pessoas que eu conheço!
(Sua voz torna-se suave e hesitante, cheia de verdadeiro sentimento.) Importa-se de eu dizer isso para
você? (Laura fica desconcertada, sem palavras.) Estou falando no bom sentido – (Laura concorda
balançando a cabeça e desviando o olhar.) Você me faz sentir – não sei como falar! Normalmente sou
muito bom para me expressar, mas – não sei como dizer isso! (Laura toca na própria garganta, limpa
um pigarro de puro nervoso e aperta o unicórnio quebrado em suas mãos. A voz dele se
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Torna mais suave.) Alguma vez alguém já lhe disse que você é bonita? (Há uma pausa e o
volume da música aumenta um pouco. Laura levanta o olhar, maravilhada, e balança a
cabeça.) Pois você é! De uma maneira muito diferente de qualquer outra pessoa. E mais
bonita ainda por causa da diferença, também. (A voz dele fica mais baixa e rouca. Laura
se vira, quase desmaiando por sentir emoções tão novas.) Eu queria que você fosse minha
irmã. Eu a ensinaria a ter mais segurança em si mesma. Pessoas diferentes não são como
as outras, mas ser diferente não é motivo para se envergonhar. Porque as outras pessoas
não são tão maravilhosas. E existem milhões delas. Mas você é única! Elas andam pelo
mundo inteiro. Você fica só aqui. Elas são comuns como ervas daninhas, mas – você –
você é um Botão de Rosa!

(Imagem na tela: Botão de Rosa.)

(A música muda.)

LAURA: Mas um botão de rosa – não é uma rosa de verdade...

JIM: Mas você é assim! E é – bonita!

LAURA: Bonita como?

JIM: De todas as maneiras, acredite! Seus olhos – seus cabelos – são bonitos! Suas mãos
são bonitas! (Ele pega a mão dela.) Acha que eu estou inventando isso porque fui
convidado para jantar e tenho que ser gentil. Ah, eu podia fazer isso! Eu poderia fazer
uma cena para você, Laura, e dizer muitas coisas sem sinceridade. Mas agora eu estou
sendo sincero. Estou falando a verdade. Eu percebi que você tinha esse complexo de
inferioridade que a impedia de se sentir à vontade com as pessoas. Alguém precisa
fortalecer sua auto- confiança, fazer você ter orgulho de si mesma, acabar com essa
timidez, essa mania de fugir das pessoas – de corar de vergonha. Alguém – tinha que –
beijar você Laura! (A mão dele vai deslizando devagar pelo braço dela até o ombro,
enquanto a música aumenta tumultuosamente. De repente ele a vira e beija seus lábios.
Quando ele a solta, Laura desaba no sofá, iluminada e perplexa. Jim se afasta e procura
um cigarro no bolso.) (Legenda na tela: “Uma lembrança.”) Que idiota! (Ele acende o
cigarro, evitando olhar para ela. Ouve-se a risada pueril de Amanda na cozinha. Laura se
levanta devagar e abre a mão, dentro da qual ainda está o pequeno animal de vidro
quebrado. Ela olha para a pequena peça de vidro com uma expressão terna e perturbada.)
Que idiota! Eu não devia ter feito isso – foi totalmente fora de propósito. Você fuma? (Ela
levanta o olhar, sorrindo, sem ouvir a pergunta. Ele se senta ao lado dela, cuidadoso. Ela
olha para ele sem falar, esperando. Ele tosse recompondo-se e se afasta um pouco,
avaliando a situação e percebendo os sentimentos dela, acalmando-se, perturbado. Ele
fala gentilmente.) Quer uma – bala de menta? (Ela parece não ouvir o que ele está
dizendo, e seu rosto parece ficar cada vez mais iluminado.) Hortelã? Um Life-Saver56? Meu
bolso parece uma drogaria57 – sempre que eu – (Ele põe na boca uma bala de hortelã.
Depois engole em seco e decide
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Abrir a alma. Fala devagar e com cuidado.) Sabe, Laura, se eu tivesse uma irmã como você,
eu teria feito a mesma coisa que o Tom. Eu traria amigos e os apresentaria para ela.
Rapazes do tipo certo – do tipo que – pudessem gostar dela. Só que – sabe – ele errou em
relação a mim. Talvez eu não tenha motivo para dizer isso. Talvez ele não tenha pensado
nisso quando me convidou. Mas e se tivesse pensado? Não tem nada de errado nisso. O
único problema é que – é que eu não estou em condições de – de fazer a coisa certa. Eu
não posso pegar o seu número e dizer que vou telefonar. Eu não posso ligar na semana que
vem e – convidar você para sair. Acho melhor explicar logo a situação para – você não
entender errado e – eu não quero magoar você...

(Há uma pausa. Devagar, muito devagar a fisionomia de Laura muda; seus olhos vão
deixando de olhar para Jim e vão se fixando no objeto de vidro na palma de sua mão.
Amanda solta outra risada alegre na cozinha.)

LAURA: (Fracamente.) Você – não vai – me procurar de novo?

JIM: Não Laura, eu não posso. (Ele se levanta do sofá.) Como eu estava explicando, eu –
tenho impedimentos. Laura, eu – estou tendo um relacionamento sério! Venho saindo há
algum tempo com uma garota chamada Betty. Ela é caseira, como você, católica,
irlandesa, e de várias maneiras nós – estamos nos dando bem. Eu a conheci no verão
passado, numa viagem de barco sob a luz da lua, subindo o rio até Alton58 no Majestic.
Bom – foi amor desde o início! (Legenda: “Amor!”.) (Laura chega um pouco para frente e
segura o braço do sofá. Ele não percebe, agora enlevado em seu próprio prazer.) Estar
apaixonado me tornou um novo homem! (Inclinando-se rigidamente para frente,
agarrando o braço do sofá, Laura luta visivelmente com sua tempestade interior. Mas Jim
nem percebe; ela está muito distante de seus pensamentos.) O poder do amor é
tremendo! O amor é uma coisa que – muda o mundo inteiro, Laura! (A tempestade
interna diminui um pouco e Laura volta a encostar-se no sofá. Ele volta a notar a presença
dela.) Mas a tia de Betty ficou doente, ela recebeu um telegrama e teve que ir para
Centrália59 Então quando Tom – quando Tom me convidou para jantar – eu aceitei o
convite, sem saber que você – que ele – que eu – (Sem jeito, ele pára de falar.) Ah – eu
sou um idiota! (Ele se deixa cair pesadamente no sofá. As velas sagradas no altar do rosto
de Laura se apagaram. A aparência dela é de quase infinita desolação. Sentindo-se
desconfortável, Jim olha para ela.) Eu gostaria que você – dissesse alguma coisa. (Ela
morde o lábio trêmulo e sorri bravamente. Ela abre a mão de novo, mostrando a figura
quebrada de vidro. Então, delicadamente ela pega a mão dele, a levanta e a coloca na
mesma altura que a dela. Cuidadosamente ela coloca o unicórnio na palma da mão dele e
fecha os dedos dele sobre a figura quebrada de vidro.) Por que você está – fazendo isso?
Quer que eu fique com ele, Laura? (Ela assente com a cabeça.) Para quê?

LAURA: É – uma lembrança...

(Ela se levanta sem firmeza e se agacha ao lado da vitrola para dar corda.)
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