Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
BERNARD-MARIE KOLTÈS
“Após a segunda prece, verás o disco solar se deslocar e verás pender dele o falo, a origem do
vento; e se virares teu rosto para o Oriente, ele se deslocará naquela direção, e se virares o teu
rosto para o Ocidente, ele te seguirá.”
(Liturgia da Mitra, parte do Grande Papiro Mágico, de Paris. Citado por Carl Jung na ocasião de
sua última entrevista à BBC)
Esta peça, concluída no outono de 1988, foi criada em Berlim em abril de 1990.
PERSONAGENS
Roberto Zucco
Sua mãe
A menina
Sua irmã
Seu irmão
Seu pai
Sua mãe
O velho senhor
A senhora elegante
O grandão
O cafetão impaciente
A puta histética
O inspetor (inspecteur)
Um delegado (commissaire)
Primeiro guarda
Segundo guarda
Primeiro policial
Segundo policial
Homens. Mulheres, Putas. Cafetões. Vozes de prisioneiros e de guardas.
I. A FUGA
Na hora em que os guardas, à custa do silêncio e cansados de mirar a escuridão, são às vezes
vítimas de alucinações.
PRIMEIRO GUARDA
SEGUNDO GUARDA
PRIMEIRO GUARDA
SEGUNDO GUARDA
PRIMEIRO GUARDA
SEGUNDO GUARDA
PRIMEIRO GUARDA
Eu não ouvi com as orelhas, mas eu tive a sensação de que ouvi alguma coisa.
SEGUNDO GUARDA
PRIMEIRO GUARDA
Você, você não tem sensação nenhuma, é porisso que você nunca ouve nada e nunca vê nada.
SEGUNDO GUARDA
Eu não ouço nada porque não tem nada para se ouvir e eu não vejo nada porque não tem
nada para ver. A nossa presença aqui é inútil, e é porisso que a gente acaba sempre brigando.
Inútil, totalmente; as metralhadoras, as sirenes mudas, nossos olhos abertos enquanto nessa
hora todo mundo está com os olhos fechados. Eu acho inútil ficar com os olhos abertos para
olhar para o nada, e os ouvidos atentos para não ouvir nada, sendo que a esta hora nossos
ouvidos deveriam escutar o barulho do nosso universo interior e os nossos olhos deveriam
contemplar nossas paisagens interiores. Você acredita no universo interior?
PRIMEIRO GUARDA
Eu acredito que não é inútil que a gente esteja aqui, para impedir as fugas.
SEGUNDO GUARDA
Mas não existe nenhuma fuga daqui. É impossível. A prisão é moderna demais. Mesmo um
prisioneiro pequenininho assim não ia conseguir fugir. Até mesmo um prisioneiro pequeno
como um rato. Se ele passasse pelas grades maiores, teria outras mais finas, como uma
peneira, e em seguida outras mais finas ainda, como um coador. Teria que ser líquido para
passar através delas. E uma mão que esfaqueou, um braço que estrangulou, não podem ser
feitos de líquido. Ao contrário, eles devem ficar grandes e pesados. Como você acha que
alguém pode ter a ideia de esfaquear ou estrangular, primeiro a ideia e depois passar para a
ação?
PRIMEIRO GUARDA
Pura maldade.
SEGUNDO GUARDA
Eu que sou um guarda já faz seis anos, eu sempre olhei os assassinos procurando onde poderia
estar o que faz com que eles sejam diferentes de mim, vigia de prisão, incapaz de esfaquear ou
estrangular, incapaz até de ter a ideia de fazer isso. Eu pensei, eu procurei, eu fiquei até
olhando quando eles tomavam banho, porque me disseram que era no sexo que o instinto
assassino se alojava. Eu vi mais de seiscentos, e nenhum ponto em comum entre eles: tem
gordo, pequeno, magro, bem pequeno, redondo, pontudo, tem ainda os enormes, e não dá
prá chegar a nenhuma conclusão a partir disso.
PRIMEIRO GUARDA
SEGUNDO GUARDA
PRIMEIRO GUARDA
Eu estou vendo um homem andando no telhado. Deve ser efeito da nossa falta de sono.
PRIMEIRO GUARDA
O que é que um homem faria em cima do telhado? Você tem razão. A gente deveria de vez em
quando fechar os olhos para ver nosso universo interior.
SEGUNDO GUARDA
Eu diria mesmo que era o Roberto Zucco, aquele que foi preso essa tarde pelo assassinato do
pai. Uma besta furiosa, uma besta selvagem.
PRIMEIRO GUARDA
SEGUNDO GUARDA
Mas você está vendo alguma coisa, ali, ou só eu é que estou vendo?
PRIMEIRO GUARDA
SEGUNDO GUARDA
É um prisioneiro fugindo.
Zucco desaparece.
PRIMEIRO GUARDA
A MÃE
ZUCCO
Abre prá mim.
A MÃE
Nunca.
ZUCCO
Se eu der um chute na porta, ela cai, você sabe muito bem, não se finja de tonta.
A MÃE
Tá bom, faz isso então, doente, louco, faz isso e acorda os vizinhos. Você estava mais seguro na
prisão, porque se te virem, você vai ser linchado: aqui ninguém admite alguém que mate o
próprio pai. Até os cachorros desse bairro vão te olhar atravessado.
A MÃE
ZUCCO
Ninguém nunca vai conseguir me deixar preso por mais de algumas horas. Nunca. Abre, então.
Você vai fazer uma lesma perder a paciência. Abre, ou eu derrubo esse barraco.
A MÃE
O que é que você veio fazer aqui? De onde vem essa necessidade de voltar? Eu não quero mais
te ver, eu não quero mais te ver. Você não é mais meu filho, acabou. Você, prá mim, não vale
mais do que uma mosca na merda.
A MÃE
ZUCCO
A MÃE
Teu o quê?
ZUCCO
A MÃE
Essa nojeira de roupa militar. Prá que é que você precisa dessa nojeira de roupa militar? Você
é louco, Roberto. A gente devia ter entendido isso quando você ainda estava no berço e
jogado você no lixo.
ZUCCO
A MÃE
Eu te dou dinheiro. É dinheiro o que você quer. Você vai poder comprar todas as roupas que
você quiser.
ZUCCO
A MÃE
ZUCCO
A MÃE
Pára de gritar, Roberto, pára de gritar, você me dá medo. Pára de gritar, você vai acordar os
vizinhos. Eu não posso te dar o teu uniforme, é impossível. Ele está sujo, está nojento, você
não pode vestir esse uniforme assim, desse jeito. Espera um pouco que eu lavo, seco e passo.
ZUCCO
A MÃE
Você não está batendo bem da cabeça, meu filho. Você está completamente louco.
ZUCCO
A MÃE
Não quero saber. Eu não quero te dar esse uniforme. Não chegue perto de mim, Roberto. Eu
ainda estou de luto pelo seu pai, será que agora chegou a minha vez? Você vai me matar?
ZUCCO
Não precisa ter medo de mim, mãe. Eu sempre fui doce e bonzinho com você. Por que você
teria medo de mim? Por que você não me daria o meu uniforme? Estou precisando dele, mãe,
estou precisando.
A MÃE
Não seja bonzinho comigo, Roberto. Como é que você quer que eu esqueça que você matou o
seu pai, que você o jogou pela janela, como se joga um cigarro? E agora, você é bonzinho
comigo. Eu não quero esquecer que você matou o seu pai, e a tua doçura ia me fazer esquecer
tudo, Roberto.
ZUCCO
Esquece, mãe, Me dá meu uniforme, minha camisa cáqui e minha calça de combate. Mesmo
sujo, mesmo amassado, me dá. E depois eu vou embora, eu te prometo.
A MÃE
Fui eu, Roberto, fui eu que te pari? Foi de mim que você saiu? Se eu não tivesse te parido aqui,
se eu não tivesse te visto sair, e acompanhado com os meus olhos até que te puseram no
berço; se eu não tivesse fixado, desde o berço, o meu olhar sobre você sem te deixar um
minuto sequer, e vigiado cada mudança do teu corpo até o ponto em que eu nem vi as
mudanças acontecerem e se eu não estivesse te vendo aqui, parecido com aquele que saiu de
mim nesta cama, eu ia achar que não é o meu filho que eu tenho aqui na minha frente. Mas eu
te reconheço, Roberto. Eu reconheço a forma do teu corpo,teu tamanho, a cor dos teus
cabelos, a cor dos teus olhos, o formato das tuas mãos, essas mãos grandes e fortes que só
serviam para acariciar o pescoço da tua mãe, e apertar o do teu pai, que você matou. Por que
essa criança, tão sensata durante vinte e quatro anos, ficou louca de repente? Como você saiu
assim dos trilhos, Roberto? Quem colocou um tronco de árvore sobre esse caminho tão reto
para fazer você cair no abismo? Roberto, Roberto, um carro que cai num barranco, não tem
conserto. Um trem que descarrilha, a gente não tenta fazer com que ele volte para os trilhos. A
gente abandona esse trem, esquece. Eu te esqueço, Roberto, eu já te esqueci.
ZUCCO
A MÃE
Ele está aí, dentro do cesto. Está sujo e todo amassado. (Zucco tira o uniforme do cesto) E
agora vai embora. Você me prometeu.
ZUCCO
Ele se aproxima da mãe, acaricia-a, dá um beijo, aperta-a contra si; ela geme.
Uma mesa, coberta com uma toalha que vai até o chão.
A IRMÃ
Entra, não faça barulho, tira o sapato; senta aí e cala a boca. (A menina entra pela janela.)
Então é assim, a uma hora dessas da noite eu te encontro agachada, encostada num muro
qualquer. Teu irmão está correndo a cidade inteira de carro e eu posso te dizer que quando ele
te encontrar de novo, você vai ficar acabada porque ele vai infernizar a tua vida. Tua mãe ficou
espiando pela janela um tempão inventando todas as hipóteses do mundo, desde o estupro
coletivo por um bando de arruaceiros até o corpo decepado que seria encontrado em um
bosque, sem falar do sádico que teria te prendido no porão, tudo passou pela cabeça dela. E o
teu pai já tem tanta certeza de que não vai mais te ver que tomou um porre e está roncando
no sofá, um ronco de desespero. E eu, eu rodo por esse bairro feito uma louca e te encontro
aí, agachada e encostada nesse muro. Mas você só precisava atravessar a rua para deixar a
gente mais tranqüilo. Tudo o que você vai ganhar então é uma bela surra do teu irmão, e eu
queria ver você apanhar até sangrar. (Tempo.) Mas eu estou vendo que você decidiu que não
vai falar comigo. Você decidiu ficar em silêncio profundo. Silêncio. Silêncio. Todos se agitam
em volta de mim, mas eu fico quieta. Boca fechada. Vamos ver se a tua boca vai ficar fechada
quando teu irmão estiver te dando uma surra. Quando é que você vai abrir a boca então, prá
me explicar por que, já que você tinha permissão até meia-noite, por que é que você voltou
prá casa tão tarde? Porque, se você não abrir o bico, eu vou começar a ficar nervosa, eu
também vou levantar todas as hipóteses. Meu pardalzinho, fala com a tua irmã, eu sou capaz
de entender tudo, eu prometo, eu vou te proteger da raiva do teu irmão. (Tempo.) O que
aconteceu com você foi uma historinha de menina, você encontrou um rapaz, ele foi idiota
como todos os rapazes, agiu mal com você, abusou de você? Eu sei, meu pintassilgo, eu fui
uma menina, eu fui a festas onde os garotos são uns imbecis. Mesmo se você deixou alguém te
beijar, qual o problema? Você ainda vai ser beijada mil vezes por imbecis, você querendo ou
não; e você vai deixar que eles passem a mão na tua bunda, coitadinha, quer você queira ou
não. Porque os garotos são uns imbecis e tudo o que eles sabem fazer é passar a mão na
bunda das meninas. Eles adoram isso. Eu não sei que prazer eles têm; para falar a verdade,
aliás, eu acho que eles não tem prazer nenhum nisso. Faz parte da tradição deles. Eles não
podem fazer nada. Eles são fabricados com imbecilidade. Mas não precisa fazer um drama
disso. O essencial é que você não deixe ninguém roubar o que não deve ser roubado antes da
hora. Mas eu sei que você vai esperar a tua hora; e que a gente vai escolher, todo mundo junto
– teu pai, tua mãe, teu irmão, eu mesma, e você também aliás – prá quem você vai dar isso.
Ou então alguém vai ter que conseguir isso com violência, e isso, quem vai ter coragem de
fazer, a uma menina como você, tão pura, tão virgem? Diz prá mim que ninguém foi violento
com você. Diz prá mim, diz que ninguém te roubou isso, não é, isso que não deve ser roubado
de você. Responde. Responde ou vou ficar zangada. (Barulho.) Esconde rápido embaixo da
mesa. Eu acho que é o teu irmão chegando.
Entra o pai, de pijama, meio dormindo. Ele atravessa a cozinha, desaparece alguns
segundos, atravessa de novo a cozinha e volta para o seu quarto.
A IRMÃ
Você é uma menina, você é uma virgenzinha, você é a virgenzinha da tua irmã, do teu irmão,
do teu pai e da tua mãe. Não me diga essa coisa horrível. Cala a boca. Eu fico louca. Você está
perdida, e nós todos, perdidos com você.
A IRMÃ
Não grita, não vai ficar nervoso. Ela não está aqui mas ela foi encontrada. Ela foi encontrada
mas ela não está aqui. Fica calmo, senão eu acabo ficando louca. Eu não quero todas as
desgraças juntas e, se você gritar, eu me mato.
O IRMÃO
A IRMÃ
Ela está na casa de uma amiga. Ela está dormindo na casa de uma amiga dela, na cama da
amiga dela, no quentinho, com segurança, nada de mal pode acontecer com ela, nada. Uma
terrível desgraça está nos acontecendo. Não grita, eu te imploro, porque depois você poderá
se arrepender e até chorar.
O IRMÃO
Nada poderia me fazer chorar, a não ser que uma desgraça acontecesse com a minha
irmãzinha. Mas eu tomei conta dela, tanto, e só essa noite ela escapou de mim. Essa é a
primeira vez que ela escapou de mim, só algumas horas, nesses anos e anos em que eu tomei
conta dela. A desgraça precisaria de mais tempo para se abater sobre alguém.
A IRMÃ
A desgraça não precisa de tempo. Ela vem quando quer, ela transforma tudo em um instante.
Ela destrói em um instante um objeto precioso que a gente guarda durante anos. (Ele pega um
objeto e joga-o no chão.) E a gente não pode recolher os cacos. Mesmo gritando, a gente não
ia conseguir recolher os cacos.
O IRMÃO
Me ajuda, minha irmã, me ajuda. Você é mais forte do que eu. Eu não suporto desgraça.
A IRMÃ
O IRMÃO
A IRMÃ
Eu já estou transbordando.
O IRMÃO
O pai volta.
O PAI
Você está chorando, minha filha? Eu acho que ouvi alguém chorando. (A irmã se levanta.)
A IRMÃ
O PAI
A MENINA
ZUCCO
A MENINA
Eu? Eu não tenho mais nome. Me chamam o tempo todo por nomes de bichinhos bobos,
pintassilgo, pardalzinho, cotovia, pombinha, rouxinol. Eu preferia que me chamassem de rato,
cascavel ou porca. O que é que você faz na vida?
ZUCCO
Na vida?
A MENINA
É, na vida. O teu trabalho, tua profissão, como você ganha dinheiro, e todas essas coisas que
todo mundo faz?
ZUCCO
A MENINA
ZUCCO
A MENINA
ZUCCO
Um agente, além de ser secreto, ele viaja, percorre o mundo, ele tem armas.
A MENINA
ZUCCO
A MENINA
Me mostra.
ZUCCO
Não.
A MENINA
ZUCCO
A MENINA
ZUCCO
Com isso aqui, você pode matar tão bem quanto com qualquer outra arma.
A MENINA
ZUCCO
A MENINA
Muito bem.
ZUCCO
Eu conheço uns cantos na África, umas montanhas tão altas, onde neva o tempo todo.
Ninguém sabe que neva na África. E é isso o que eu mais gosto no mundo: a neve na África que
cai nos lagos gelados.
A MENINA
Eu queria ir ver a neve na África. Eu queria andar de patins nos lagos gelados.
ZUCCO
Tem também rinocerontes brancos que atravessam o lago, por baixo da neve.
A MENINA
ZUCCO
A MENINA
ZUCCO
É um segredo.
A MENINA
ZUCCO
Eu esqueci.
A MENINA
Mentiroso.
ZUCCO
André.
A MENINA
Não.
ZUCCO
Ângelo.
A MENINA
Não goza da minha cara que eu grito. Não é nenhum desses nomes.
ZUCCO
A MENINA
ZUCCO
A MENINA
ZUCCO
A MENINA
ZUCCO
A MENINA
Mesmo se você tiver que morrer, me conta o teu nome mesmo assim.
ZUCCO
Roberto.
A MENINA
Roberto do que?
ZUCCO
A MENINA
Roberto do que? Se você não me contar, eu grito, e o meu irmão, que está furioso, vai te
matar.
ZUCCO
Você tinha me dito que sabia o que era secreto. Será que você sabe mesmo?
A MENINA
É a única coisa que eu sei perfeitamente. Me conta o teu nome, me conta o teu nome.
ZUCCO
Zucco.
A MENINA
Roberto Zucco. Eu nunca vou esquecer esse nome. Esconde embaixo da mesa; vem vindo
gente.
Entra a mãe.
A MÃE
A MENINA
A MENINA
Você tem razão. (Vendo o objeto quebrado.) Melhor assim. Faz tempo que eu queria me livrar
dessa sujeira.
Ela sai.
VOZ DA MENINA
Você, cara, você tirou a minha virgindade, e você vai ficar com ela. Agora mais ninguém vai
poder tirar isso de mim. Ela é tua até o fim da tua vida, ela vai ser tua mesmo quando você já
tiver me esquecido, ou morrido. Você está marcado por mim como uma cicatriz depois de uma
briga. Eu não corro o risco de esquecer, porque eu não tenho outra prá dar prá ninguém;
pronto, é isso, até o fim da minha vida. Está entregue, e ela é tua.
INSPETOR
Eu estou triste, madame. Eu sinto o coração bem pesado e eu não sei o por quê. Eu estou
constantemente triste, mas dessa vez tem alguma coisa me incomodando. Normalmente,
quando eu me sinto assim, com vontade de chorar ou morrer, eu procuro o porquê disso. Eu
penso em tudo o que aconteceu durante o dia, durante a noite, e na véspera. E eu acabo
sempre encontrando algum acontecimento sem importância que, na hora, não me chamou
muito a atenção, mas que, como uma merdinha de um micróbio se instalou no meu coração e
fica atormentando em todos os sentidos. Agora, quando eu descubro qual foi o acontecimento
sem importância que me fez sofrer tanto, eu acho graça, o micróbio é destruído como uma
pulga com a unha, e fica tudo bem. Mas hoje eu já procurei; eu já voltei até três dias atrás,
uma vez num sentido e depois no outro, e aqui estou eu de novo, sem saber de onde vem o
mal, eu tão triste e o coração tão pesado.
A MADAME
INSPETOR
Não tem tanto cadáver assim. Mas cafetão, isso sim, tem demais. Aliás era bem melhor se
tivesse mais cadáver e menos cafetão.
A MADAME
Já eu prefiro os cafetões, eles me fazem viver e eles mesmos são bem vivos.
INSPETOR
A MADAME
A PUTA
Madame, madame, forças diabólicas acabam de atravessar o Pequeno Chicago. O bairro está
uma confusão só, as putas não trabalham mais, os cafetões ficam de boca aberta, os clientes
sumiram, está tudo parado, tudo petrificado. Madame, a senhora abrigou o demônio na sua
casa. Esse rapaz que chegou recentemente, que não abre a boca, que não responde às
perguntas das mulheres, esse que parece que não tem voz nem sexo; esse menino, no
entanto, com um olhar tão doce; esse menino bonito, com certeza, de quem a gente falou
tanto entre nós, as mulheres – saiu atrás do inspetor. A gente ficou olhando,nós, as meninas, a
gente ria, imaginava coisas. Ele anda atrás do inspetor que parece mergulhado numa reflexão
profunda; ele anda atrás do inspetor como se fosse a sombra dele; e a sombra chega perto,
como ao meio-dia, cada vez mais perto das costas curvadas do inspetor, e de repente, ele tira
uma faca bem grande de dentro do bolso, e enfia nas costas do pobre homem. O inspetor fica
parado. Não se vira. Balança de leve a cabeça como se a reflexão profunda onde estava
mergulhado acabasse numa solução. Depois todo o seu corpo balança, e ele afunda no chão.
Nem o assassino nem a sua vítima se olharam em momento algum. O menino tinha os olhos
fixos sobre o revólver do inspetor: ele vai, pega o revólver, põe dentro do bolso, e vai embora,
tranquilamente, com a tranqüilidade do demônio, madame. Porque ninguém se mexeu, todo
mundo que estava ali ficou imóvel, olhando ele ir embora. Ele desapareceu na multidão. Era o
diabo que a senhora tinha debaixo do seu teto, madame.
A MADAME
V. O IRMÃO
A cozinha.
O IRMÃO
Não precisa ter medo de mim, pintinho. Eu não vou te fazer mal. Tua irmã é uma idiota. Por
que ela acha que eu ia te dar uma surra? Agora você é uma fêmea; eu nunca bati numa fêmea.
Eu gosto de fêmea; é o que eu prefiro. É muito melhor do que uma irmã mais nova. Enche o
saco, uma irmã mais nova. Tem que ficar o tempo todo vigiando, com o olho em cima dela. Prá
proteger o que? A virgindade dela? Por quanto tempo a gente precisa vigiar a virgindade de
uma irmã? Todo o tempo que eu passei te vigiando é tempo perdido. Eu lamento todo esse
tempo. Lamento cada dia, cada hora perdida com o olho em cima de você. A gente devia
deflorar as meninas no momento em que elas viram mocinhas, assim deixavam os irmãos mais
velhos em paz, eles não iam ter nada prá vigiar, e poderiam aproveitar melhor o tempo
fazendo outras coisas. Eu estou bem feliz que você acabou dando logo prá um cara; porque
agora eu tenho paz. Você faz o seu caminho, eu faço o meu, eu não tenho mais que te carregar
nas costas. Agora vem beber alguma coisa comigo. Você precisa aprender agora a não baixar
mais os olhos, a não ficar vermelha, a ter coragem de olhar pros garotos. Tudo isso acabou.
Não tenha mais vergonha de nada. Levanta a cabeça, olha os homens, encara mesmo, eles
adoram. Não serve prá nada ser tímida, nem um segundo mais. Libera tudo, menina, e de uma
vez. Vai passear no Pequeno Chicago com as putas, vira uma puta: você vai ganhar dinheiro e
não vai mais depender de ninguém. E quem sabe eu vou te encontrar num desses puteiros, aí
eu te faço um pequeno sinal, e a gente pode beber juntos; enche bem menos o saco e a gente
se diverte muito mais. Não perca mais o teu tempo baixando os olhos e fechando as pernas,
pintinho, isso não serve mais prá nada. De qualquer forma, agora, casamento não dá mais.
Valia a pena tomar conta de você para o casamento, valia a pena que você abaixasse os olhos
timidamente até o dia do casamento, mas agora que o casamento já era, tanto faz. Tudo de
uma vez, tudo já era: o casamento, a família, teu pai, tua mãe, tua irmã; e eu estou pouco me
fudendo. Seu pai ronca de miséria, e a sua mãe chora; é melhor deixar os dois chorando e
roncando e ir embora de casa. Você pode fazer filhos, a gente não está nem aí. Você pode não
fazer; a gente não está nem aí do mesmo jeito. Você pode fazer o que quiser. Eu parei de
tomar conta de você; e você deixou de ser uma menina. Você não tem mais idade; você
poderia ter quinze ou cinqüenta anos, é a mesma coisa. Você é uma fêmea e todo mundo está
pouco se fodendo.
VI. O METRÔ
Embaixo de um cartaz intitulado “PROCURA-SE”, com a foto de Zucco no centro, sem nome;
sentados lado a lado em um banco de uma estação de metrô, depois da hora de fechar, um
senhor mais velho e Zucco.
O SENHOR
Eu sou um homem velho e me atrasei mais do que seria razoável. Eu estava todo feliz por ter
conseguido pegar o último metrô quando de repente, num cruzamento deste labirinto de
corredores e escadas, eu não reconheci mais a minha estação, que eu freqüento no entanto
tão regularmente que eu pensei que a conhecia tão bem quanto conheço a minha cozinha.
Mas eu ignorava que ela escondia, por trás do percurso simples que eu faço todos os dias, um
mundo obscuro de túneis, de direções desconhecidas que eu teria preferido ignorar mas que a
minha distração confusa me obrigou a conhecer. Então, de repente as luzes se apagam e só
deixam a claridade dessas luzinhas brancas cuja existência eu ignorava. Então eu ando, em
linha reta, em um mundo desconhecido, o mais rápido possível, o que não quer dizer muita
coisa considerando que eu sou um homem velho. E quando no fim dessas intermináveis
escadas rolantes paradas eu tenho a impressão de ter achado uma saída, taran!....Uma grade
enorme impede a passagem. Agora aqui estou eu, numa situação bem fantástica para um
homem da minha idade, punido pela minha distração e pela lentidão do meu passo, esperando
não sei muito bem o quê e eu nem quero muito saber, porque essas novidades de hoje em dia
sinceramente, na minha idade, são difíceis de engolir. Sem dúvida, o amanhecer, é, sem dúvida
é isso que eu estou esperando nesta estação que era tão familiar para mim quanto a minha
cozinha, e que agora me dá medo. Sem dúvida eu estou esperando que as luzes normais se
acendam de novo e que o primeiro metrô passe. Mas eu estou muito ansioso porque eu não
sei como eu vou ver a luz do dia de novo, depois de uma aventura tão exótica, esta estação
não vai parecer nunca mais a mesma, eu não vou poder mais ignorar a presença dessas
luzinhas brancas que não existiam antes; e também, uma noite em claro, eu não sei como ela
muda a vida, eu nunca fiz isso antes, tudo deve mudar de escala, os dias não devem se alternar
mais com as noites como antigamente. Eu estou muito ansioso em relação a tudo isso. Mas
você, meu jovem, cujas pernas me parecem bem ágeis, e o espírito bem claro, sim, eu vejo
bem o seu olhar claro, e não embaçado e confuso como o de um homem velho como eu, é
impossível acreditar que você pudesse se confundir com estes corredores e estas grades
fechadas; não, mesmo diante de uma grade fechada, um jovem com espírito claro como o teu
passaria por ela como uma gota d´água passa por um filtro. Você trabalha aqui durante a
noite? Me fale pouco de você, isso vai me fazer sentir um pouco mais seguro.
ZUCCO
Eu sou um cara normal e sensato, meu senhor. Eu sempre passei desapercebido. O senhor ia
reparar em mim se eu não tivesse sentado ao seu lado? Eu sempre achei que a melhor forma
de viver tranqüilo era ser tão transparente quanto um vidro, como um camaleão em cima da
pedra, passar através das paredes, não ter cor nem cheiro; que os olhares das pessoas te
atravessassem e vissem as pessoas atrás de você, como se você não estivesse lá. É uma tarefa
difícil ser transparente, é um trabalho especializado, é um sonho antigo, muito antigo de ser
invisível. Eu não sou um herói. Os heróis são criminosos. Não existem heróis cujas roupas não
sejam manchadas de sangue, e o sangue é a única coisa no mundo que não pode passar
desapercebida. É a coisa mais visível do mundo. Quando tudo estiver destruído, e uma bruma
de fim de mundo recobrir a terra, vão sempre sobrar as roupas manchadas de sangue dos
heróis. Eu estudei, eu fui um bom aluno. A gente não volta atrás depois de ter pegado o hábito
de ser um bom aluno. Eu estou matriculado na universidade. Nos bancos da Sorbonne, o meu
lugar está reservado, entre outros bons alunos no meio dos quais eu não quero e nem sou
notado. Eu juro para o senhor que é preciso ser um bom aluno, discreto e invisível, para estar
na Sorbonne. Lá não é uma dessas universidades de periferia, onde ficam os malandros e
aqueles que se acham heróis. Os corredores da minha universidade são silenciosos e
atravessados por sombras das quais não se escutam nem os passos. A partir de amanhã, eu
volto para continuar o meu curso de lingüística. Amanhã é o dia da aula de lingüística. E lá vou
estar eu, invisível entre os invisíveis, silencioso e atento na bruma densa da vida comum. Nada
vai poder mudar o curso das coisas, meu senhor. Eu sou como um trem que atravessa
tranquilamente uma pradaria e que nada poderia tirar dos trilhos. Eu sou como um
hipopótamo afundado na lama e que se movimenta muito lentamente e que nada poderia
desviar do caminho nem do ritmo que ele decidiu tomar.
O SENHOR
Todo mundo pode descarrilhar, meu jovem, é isso mesmo, agora eu sei que qualquer um, a
qualquer momento, pode sair dos trilhos. Eu que sou um homem velho, eu que pensava que
conhecia o mundo e a vida tão bem quanto a minha cozinha, taran, aqui estou eu fora do
mundo, a esta hora que não é hora nenhuma, debaixo de uma luz estranha, e acima de tudo
com a inquietude do que vai acontecer quando as luzes comuns se acenderem de novo, e que
o primeiro metrô vai passar, e que as pessoas comuns como eu era vão invadir esta estação; e
eu, depois desta primeira noite em claro, vou precisar sair, atravessar a grade enfim aberta, e
ver o dia sendo que eu não vi a noite. E agora eu não sei nada do que vai acontecer, a forma
que eu vou ver o mundo e que o mundo vai me ver ou não. Porque eu não vou mais saber o
que é o dia e o que é a noite, eu não vou mais saber o que fazer, eu vou rodar pela minha
cozinha procurando a hora e tudo isso me dá muito medo, meu jovem.
ZUCCO
VELHO
Você fala de um jeito um pouco estranho; eu gosto muito disso. Me dá segurança. Me ajude
na hora em que o barullho invadir este lugar. Me ajude, acompanhe este velho perdido que eu
sou até a saída, e além dela talvez.
As luzes da estação se acendem novamente. Zucco ajuda o senhor mais velho a se levantar e
o acompanha. Passa o primeiro metrô.
Na cozinha.
Entra a irmã.
A IRMÃ
Eu te proíbo de ir embora.
A MENINA
Você não pode me proibir de nada. De agora em diante eu sou mais velha que voce.
A IRMÃ
O que é que você está dizendo? Você é um pardalzinho empoleirado num galho de árvore. E
eu, eu sou a sua irmã mais velha.
A MENINA
Voce é uma virgem com prazo de validade vencido, você não sabe nada da vida, você tomou
muito bem conta de você, você se protegeu muito bem. Eu, eu já sou mais velha, eu fui
violada, eu sou uma perdida, eu tomo as minhas decisões sozinha.
A IRMÃ
A MENINA
Você não é uma solteirona, que não conhece nada de nada, e que deveria calar a boca diante
da minha experiência?
A IRMÃ
De que experiência você está falando? A experiência da desgraça não serve prá nada. Ela só é
boa prá ser esquecida o mais rápido possível. Só a experiência da felicidade serve prá alguma
coisa. Você vai se lembrar sempre das noites tranquilas com os seus pais, seu irmão e sua irmã;
até quando você estiver bem velhinha, você vai se lembrar disso. Enquanto a desgraça que se
abateu sobre nós, essa você vai se esquecer bem depressa, meu passarinho atordoado,
debaixo das asas de sua irmã, do seu irmão e dos seus pais.
A MENINA
São os meus pais, meu irmão e minha irmã que eu vou esquecer, já estou esquecendo; mas
não a minha desgraça.
A IRMÃ
Seu irmão vai te proteger, minha gaivota; ele vai te amar mais do que qualquer outra pessoa te
amou, porque ele sempre te amou como ele nunca amou ninguém. Ele sozinho vai ser todos
os homens de quem você vai precisar.
A MENINA
A IRMÃ
Não diga isso. Nada vale mais do que isso nesta vida.
A MENINA
Como você tem coragem de dizer uma coisa dessas? Você nunca teve homem nenhum. Você
nunca foi amada. Você ficou sozinha a vida inteira, e você foi muito infeliz.
A IRMÃ
Pois eu sei que você foi muito infeliz. Eu te peguei várias vezes chorando atrás da cortina.
A IRMÃ
Eu choro sem razão, em horas regulares, como investimento, e agora você nunca mais vai me
ver chorar; eu já chorei bastante adiantado, resgatei minhas aplicações. Por que você quer ir
embora?
A MENINA
A IRMÃ
A MENINA
Eu vou encontrá-lo.
A IRMÃ
Impossível. Você sabe muito bem que o seu irmão tentou durante dias e noites, para vingar a
sua honra.
A MENINA
A IRMÃ
A MENINA
A IRMÃ
O quê?
A MENINA
Alguma coisa.
A IRMÃ
A MENINA
No pequeno Chicago.
A IRMÃ
Por que você quer se perder, pombinha inocente? Não, não me abandone, não me deixe
sozinha. Eu não quero ficar sozinha com o seu irmão e seus pais. Eu não quero ficar sozinha
nessa casa. Sem você, minha vida não vai valer mais nada, nada mais terá sentido. Não me
abandone, eu te imploro, não me abandone. Eu detesto o seu irmão, e os seus pais, e esta
casa; eu só amo você, pombinha, pombinha; só existe você em toda a minha vida.
O PAI
Sua mãe escondeu a cerveja. Eu vou dar uma surra nela como eu fazia antigamente. Por que
eu parei um dia? Eu estava com o braço cansado, mas eu deveria ter me forçado, feito
exercício, feito alguém bater nela por mim. Eu deveria ter continuado como antigamente:
surrando ela todos os dias, em horas regulares. Mas tudo bem, eu fui negligente, e agora, ela
me esconde a cerveja, e eu tenho certeza que vocês são cùmplices. (Ele olha embaixo da
mesa) Tinha ainda cinco garrafas. Eu vou bater cinco vezes em cada uma se eu não encontrar.
ELE SAI
A IRMÃ
Minha rolinha no Pequeno Chicago! Como você deve estar feliz, e quanto você vai ser ainda.
ENTRA A MÃE
A MÃE
Seu pai ainda está de fogo. Ele se entupiu de cerveja, uma atrás da outra. O que é que vocês
estão fazendo, vocês assim tão complacentes com esse velho louco? Vocês me deixam
lutando sozinha contra esse bêbado. Vocês não estão nem aí, estão deixando ele nos arruinar
no alcool. Vocês são duas bobonas que falam, falam, vocês só cuidam das suas historinhas
idiotas e me deixam sozinha com esse bêbado. O que é essa bolsa aí?
A IRMÃ
A MÃE
Uma amiga, uma amiga…que negócio é esse de amiga? Que história é essa entre meninas?
Que necessidade ela tem de passar a noite na casa dessa amiga? As camas são melhores do
que aqui? O preto da noite é mais preto lá do que aqui? Se vocês tivessem a idade e eu a força,
eu daria uma surra em vocês duas.
ELA SAI
A IRMÃ
Eu sou infeliz e eu sou feliz. Eu sofri muito, mas eu tive muito prazer nesse sofrimento todo.
A IRMÃ
ZUCCO
UMA PUTA
UM CARA
Não se preocupe com ele. Ele está transpirando, ele deve estar bem quente por dentro.
ZUCCO
UM CARA
OUTRO CARA
UMA PUTA
O GRANDÃO
Deixar ele tranquilo? Faz horas que ele tá enchendo o nosso saco e a gente deve deixar ele
tranquilo? Ele que venha mexer comigo mais uma vez e eu arrebento a cara dele.
UMA PUTA
Pára de procurar briga, moleque, pára de procurar briga. Sua carinha bonita já está bem
estragada. Voce não quer mais que as meninas se virem pra olhar pra você? Uma carinha é
frágil, bebê. A gente acha que tem ela pra vida toda e de repente ela é destruída por um idiota,
que não tem nada a perder com a dele.Já você tem muito a perder, bebê. Uma cara quebrada
e toda a tua vida está perdida como se tivessem cortado o teu rabo. Você pode não pensar
sobre isso agora, mas eu te juro que depois você vai pensar. Não me olhe assim se não me dá
vontade de chorar; você é da raça dos que dão vontade de chorar só de olhar.
UMA PUTA
O GRANDÃO
UMA PUTA
UM CARA
UMA PUTA
Não reage, deixa ele na dele, ele já nem consegue ficar em pé.
ZUCCO
O GRANDÃO
UMA PUTA
(Ao grandão)
Não encosta mais nele, não toca mais nele, não acaba com ele.
UM CARA
UMA PUTA
Foi fácil. Ele tem razão de dizer que vocês são uns covardes.
O GRANDÃO
Um homem não deve deixar morder um cachorro morder ele duas vezes.
ZUCCO
Eu quero ir embora. Eu preciso ir embora logo. Faz muito calor nesta cidade de merda. Eu
quero ir para a África, debaixo da neve. Eu preciso ir embora porque eu vou morrer. De
qualquer jeito, ninguém se interessa por ninguém. Ninguém. Os homens precisam de mulheres
e as mulheres precisam de homens. Mas amor, não existe. Com as mulheres, é por pena que
eu fico de pau duro. Eu gostaria de nascer de novo como um cachorro para ser menos infeliz.
Cachorro vira-lata, remexendo no lixo; ninguém ia me notar. Eu gostaria de ser um cachorro
amarelo, cheio de sarna, um cachorro abandonado sem importância. Eu gostaria de ser um
vira-lata remexendo no lixo por toda a eternidade. Eu acho que não há palavras, não tem nada
prá ser dito. Precisam parar de ensinar as palavras. Precisam fechar as escolas e aumentar os
cemitérios. De qualquer forma, um ano, cem anos, é tudo igual; mais cedo ou mais tarde todos
vão morrer, todos. E isso, isso faz os pássaros cantarem, faz os pássaros rirem.
UMA PUTA
Eu falei prá vocês que ele era louco. Ele fala com um telefone que não funciona.
O GRANDÃO
ZUCCO
O GRANDÃO
Então, eu não gosto de brigar. Mas você me provocou tanto, moleque, que não deu prá ficar
quieto. Porque você estava querendo tanto arranjar briga? Parece que você quer morrer.
ZUCCO
O GRANDÃO
ZUCCO
O GRANDÃO
Será?
ZUCCO
O problema, com a cerveja, é que a gente não compra ela, a gente só aluga! Eu preciso mijar.
O GRANDÃO
ZUCCO
O GRANDÃO
Os cachorros nunca olham atravessado pra ninguém. Os cachorros são os únicos seres em que
você pode confiar. Eles podem gostar ou não gostar de você, mas eles nunca te julgam. E
quando todo mundo te abandonar e você desabar, moleque, vai ter sempre um cachorro por
aí pra lamber a sola do teu pé.
ZUCCO
O GRANDÃO
ZUCCO
Tarde demais.
Aurora.
Zucco adormece.
IX. DALILA
A menina avança em direção ao retrato de Zucco e desenha com o dedo por cima do papel.
A MENINA
Eu conheço ele.
COMISSÁRIO
DELEGADO
Quem é?
A MENINA
DELEGADO
A MENINA
Meu irmão. Ele veio comigo. Foi ele que me disse para vir aqui porque eu reconheci essa foto
na rua.
DELEGADO
A MENINA
DELEGADO
A MENINA
Um amigo, é, um amigo.
DELEGADO
Um matador de policiais. Você vai ser detida e acusada de ser cúmplice, de ocultar armas e
não denunciar um malfeitor.
A MENINA
Foi meu irmão que me disse pra eu vir aqui avisar que eu conhecia ele. Eu não estou ocultando
nada, eu não estou denunciando ninguém. Eu conheço ele. Só isso.
DELEGADO
COMISSÁRIO
DELEGADO
A MENINA
Tudo
DELEGADO
Francês? Estrangeiro?
A MENINA
COMISSÁRIO
Germânico?
A MENINA
DELEGADO
Então, ele te disse que era agente secreto. É estranho. Em princípio, um agente secreto deve
permanecer secreto.
A MENINA
COMISSÁRIO
Bravo. Se todos os segredos fossem guardados como esse o nosso trabalho seria fácil.
A MENINA
Ele me disse que ia fazer umas missões na África, nas montanhas, lá onde tem neve o tempo
todo.
DELEGADO
COMISSÁRIO
DELEGADO
Elas estavam exatas, comissário.(Para a menina:) E o nome dele, agora. Você sabe? Você deve
saber já que ele era seu amigo.
A MENINA
Sim, eu sei.
COMISSÁRIO
Fala
A MENINA
COMISSÁRIO
A MENINA
Eu não quero apanhar. Eu sei o nome dele, mas eu não consigo dizer.
DELEGADO
A MENINA
COMISSÁRIO
Na ponta da língua, na ponta da língua. Você está querendo apanhar? Quer levar uns socos, e
que a gente arranque o seu cabelo? Nós temos aqui salas equipadas especialmente pra isso,
você sabe.
A MENINA
DELEGADO
O primeiro nome pelo menos. Você deve se lembrar muito bem, você deve ter lambido isso na
orelha dele.
COMISSÁRIO
A MENINA
André.
DELEGADO
A MENINA
Não.
COMISSÁRIO
DELEGADO
Lembra essa porcaria de nome ou eu te meto uma bala pela goela abaixo. Anda logo ou você
vai se lembrar disto.
A MENINA
Ângelo.
DELEGADO
Um espanhol
COMISSÁRIO
DELEGADO
Você sabe das coisas, comissário. (Para a menina)Eu estou ficando nervoso.
A MENINA
COMISSÁRIO
Quer uma porrada na sua boca para ajudar a vir mais rápido?
A MENINA
DELEGADO
Dolce? De doce?
A MENINA
Doce, é. Ele me disse que seu nome parecia um nome estrangeiro que queria dizer doce, ou
açucarado. (Ela chora) Ele era tão doce, tão delicado.
DELEGADO
COMISSÁRIO
DELEGADO
A MENINA
DELEGADO
A MENINA
COMISSÁRIO
Zucco com Z?
A MENINA
DELEGADO
A MENINA
E o meu irmão?
COMISSÁRIO
Seu irmão? Que irmão? Pra que você precisa de irmão? Nós estamos aqui.
Eles saem
X. O REFÉM
Entra Zucco.
A SENHORA
Sente-se aqui ao meu lado. Fale comigo. Eu estou entediada; vamos conversar. Eu detesto os
parques públicos. Você parece tímido. Eu te intimido?
ZUCCO
A SENHORA
No entanto, você tem as mãos trêmulas como um menino diante de sua primeira garota. Você
tem uma cara boa. Você é um rapaz bonito. Você gosta de mulheres? Você é quase um rapaz
bonito demais pra gostar de mulheres.
ZUCCO
A SENHORA
ZUCCO
A SENHORA
Ah, isso é muito bom. Você já foi duro com uma mulher?
ZUCCO
Nunca.
A SENHORA
Mas e vontade? Você já deve ter tido vontade de ser violento com uma mulher, não é? Essa
vontade, todos os homens já tiveram um dia; todos.
ZUCCO
A SENHORA.
ZUCCO
Você veio de taxi?
A SENHORA
ZUCCO
A SENHORA
ZUCCO
A SENHORA
Você talvez esteja imaginando que eu tenho um Porsche? Não, eu só tenho um carrinho
vagabundo. Meu marido é um pão-duro.
ZUCCO
Que marca?
A SENHORA
Mercedes.
ZUCCO
Qual?
A SENHORA
280 SE.
ZUCCO
A SENHORA
ZUCCO
Quem é esse aí? Esse cara que fica te olhando o tempo todo?
A SENHORA
É meu filho.
ZUCCO
A SENHORA
ZUCCO
A SENHORA
É a única coisa que ele faz. Eu pago pra ele todos os clubes da cidade, todas as quadras de
tênis, de hóquei, de golfe, e assim, ele dá um jeito de exigir que eu o acompanhe aos treinos. É
um moleque metido.
ZUCCO
A SENHORA
ZUCCO
A SENHORA
Então pega.
ZUCCO
Me dê as chaves.
A SENHORA
ZUCCO
A SENHORA
ZUCCO
ZUCCO
A SENHORA
(Gritando para o filho) Você está louco. Vai embora daqui. Volta pra casa. Dá um jeito e vai
pra casa.
A SENHORA
Atira então, imbecil. Eu não vou te dar as chaves, já que você pensa que eu sou uma idiota.
Meu marido acha que eu sou uma idiota, meu filho acha que eu sou uma idiota, a empregada
acha que sou uma idiota – pode atirar, vai ser uma idiota a menos no mundo. Mas eu não vou
te dar as chaves. Azar seu, porque é um carro maravilhoso, com bancos de couro e painel de
ébano. Azar seu. Pare de fazer escândalo. Presta atenção: esses imbecis vão se aproximar, vão
fazer comentários, eles vão chamar a polícia. Presta atenção: eles já estão lambendo os beiços.
Eles adoram isso. Eu não suporto os comentários dessa gente. Atira então. Eu não quero ouvir
a voz deles, eu não quero ouvir.
UM HOMEM
ZUCCO
UMA MULHER
ZUCCO
UMA MULHER
Mas como é que ele quer que o menino se arraste com as mãos ao longo do corpo
UM HOMEM
Devagar. As mãos para trás. Não levanta a cabeça. Pára. (O menino se mexe) Não se mexa ou
eu mato a sua mãe.
UM HOMEM
UMA MULHER
ZUCCO
O MENINO
Prometo.
ZUCCO
Põe direito a cabeça no chão. Vai virando devagar a cabeça pro outro lado. Vira de lado, eu
não quero que você olhe prá gente.
O MENINO
Mas porque você tem medo de mim? Eu não posso fazer nada. Eu sou uma criança . Eu não
quero que matem a minha mãe. Não tem porque ter medo de mim: você é muito mais forte
que eu.
ZUCCO
O MENINO
Aí, então, por que você está com medo de mim? O que eu poderia fazer contra você? Eu sou
pequenininho.
ZUCCO
O MENINO
Está sim, você está tremendo, você está tremendo. Eu estou ouvindo perfeitamente que você
está tremendo.
UM HOMEM
Chegou a polícia.
UMA MULHER
UM HOMEM
ZUCCO
O MENINO
Eles estão fechados. Eles estão fechados. Eles estão fechados. Meu Deus, mas você é um
medroso.
ZUCCO
O MENINO
Tá bom, eu fecho tudo. Mas você é um medroso. Só uma mulher está com medo de você. É
uma mulher que você está ameaçando com a tua arma.
ZUCCO
O MENINO
Um Porsche, provavelmente.
ZUCCO
O MENINO
ZUCCO
Você já vai saber. Eu vou matar a sua mãe e você vai ver o que é se fingir de morto.
UMA MULHER
Coitado do menino.
O MENINO
UMA MULHER
UM HOMEM
Claro que não. Isso é estratégia. Ele sabem o que estão fazendo. Eles tem meios que a gente
não conhece. Mas eles sabem o que fazem, pode crer. O moleque está perdido.
UM HOMEM
UM HOMEM
UMA MULHER
Mas que ele não toque no menino, pelo menos não no menino, meu Deus.
Zucco se aproxima do menino empurrando a mulher, sempre com a arma apontada para a
garganta dela. Põe então o pé em cima da cabeça do menino.
UMA MULHER
UM HOMEM
UMA MULHER
UM HOMEM
UMA MULHER
Ah, verdade? Porque os alemães punham o pé em cima da sua cabeça e ameaçavam a sua
mãe?
UM HOMEM
UMA MULHER
Em todo caso, aqui está o senhor, bem vivo, bem velho e bem gordo.
UM HOMEM
UMA MULHER
UM HOMEM
Mas então, vamos parar de falar dessa criança de vocês. O revólver está no pescoço da
mulher.
UMA MULHER
UMA MULHER
Me diga então, meu senhor, é isso o que o senhor chama de técnica especial da polícia? Você
fala de uma técnica. Eles ficam do outro lado do parque. Eles estão com medo.
UM HOMEM
UM HOMEM
POLICIAIS
UMA MULHER
Bravo.
UMA MULHER
Estamos salvos.
UM HOMEM
Bendita estratégia.
UM HOMEM
UMA MULHER
Eu só estou vendo aquele ali começando a preparar um golpe.
UM HOMEM
UMA MULHER
Coitado do menino.
UM HOMEM
Minha senhora, eu vou lhe dar um tapão se a senhora continuar falando do menino.
UM HOMEM
Vocês acham de verdade que é hora de ficar brigando? Um pouco de dignidade. Nós somos
testemunhas de um drama. Nós estamos diante das morte.
POLICIAIS
(De longe) Nós estamos mandando você largar essa arma. Você está cercado
ZUCCO
A SENHORA
Imbecil.
UMA MULHER
A SENHORA
UM HOMEM
A SENHORA
Melhor assim. Eu não vou ver mais a cara de vocês. Melhor assim.
UMA MULHER
UM HOMEM
Ela é horrível. Tem tanta gente horrível e cruel.
UMA MULHER
Peguem as chaves à força. Será que não tem um homem aqui pra remexer nos bolsos dela e
pegar essas chaves?
UMA MULHER
O senhor, aí, que sofreu tanto quando era criança, o senhor que os alemães metiam o pé em
cima de sua cabeça ameaçando a sua mãe, mostra então que o senhor tem culhões, mostre
então que o senhor tem pelo menos um culhão ainda, mesmo que seja pequeno, mesmo
ressecado.
UM HOMEM
Minha senhora, a senhora merece levar um tabefe. A senhora tem sorte que eu sou um
homem do mundo.
UMA MULHER
O homem se aproxima tremendo, estica o braço, procura no bolso da senhora elegante, pega
as chaves.
A SENHORA
Imbecil.
UM HOMEM
(Triunfante) Vocês viram? Vocês viram? Tragam esse Porsche até aqui.(A senhora elegante ri)
UMA MULHER
Ela está rindo. Ela dá um jeito de rir bem na hora que o filho dela vai morrer.
UMA MULHER
Que horror
UM HOMEM
É uma louca.
UM HOMEM
Dê as chaves pros guardas. Eles que cuidem disso, pelo menos. Eu espero que pelo menos eles
saibam dirigir um carro.
UM HOMEM
Qual modelo?
UM HOMEM
UM HOMEM
UMA MULHER
Mas tragam o carro logo, qualquer que seja a marca. Ele vai matar todo mundo.
ZUCCO
UMA MULHER
Peçam para os guardas acharem um Porsche. Não discutam. Já que ele é um louco, ele é um
louco. Alguém precisa achar um Porsche para ele.
UM HOMEM
UM HOMEM
UM HOMEM
Olhem prá nós, nós, homens do povo. Nós somos mais corajosos do que eles.
UMA MULHER
ZUCCO
Cala a boca. Eu não quero que falem com ele. Eu não quero que ele abra a boca. Fecha os
olhos, você. Não se mexa.
UM HOMEM
E a senhora? Como a senhora está se sentindo?
A SENHORA
Tudo bem, obrigada, tudo bem. Mas eu me sentiria tão melhor se vocês calassem essas bocas
e voltassem para as suas cozinhas e fossem bater nos seus filhos.
UMA MULHER
UM POLICIAL
(Do outro lado da confusão) Aqui estão as chaves do carro. É um Porsche. Ele está ali. Você
pode vê-lo daqui. (Para as pessoas) Passem as chaves pra ele.
UM HOMEM
Entregue pra ele você mesmo. É o seu trabalho, sua especialidade, os matadores.
UM POLICIAL
UMA MULHER
UM HOMEM
Eu não toco nessas chaves. Não é meu trabalho. Eu sou pai de família.
ZUCCO
Eu vou matar essa mulher, e eu dou um tiro na minha cabeça. Eu estou pouco me fodendo
pela minha vida. Eu juro prá vocês que eu estou pouco me fodendo. Tem seis balas nesse
revólver. Eu apago cinco pessoas e me mato depois.
UMA MULHER
UM POLICIAL
UM HOMEM
São vocês que estão nos irritando aí, sem fazer nada.
UM HOMEM
Não enche o saco deles. Deixe eles trabalharem. Eles tem um plano, com certeza.
UM POLICIAL
Não se mexa. (Ele põe a chave no chão e, com o cassetete, empurra-a por baixo das pernas
das pessoas os pés de Zucco. Zucco se abaixa devagar, pega a chave, coloca-a no bolso.)
ZUCCO
UMA MULHER
UM HOMEM
ZUCCO
Todo mundo vai embora. Com o revolver na mão, Zucco se abaixa, pega a cabeça do menino
pelos cabelos, e lhe dá um tiro na nuca. Gritos, confusão, fuga. Com o revolver no pescoço da
mulher, Zucco, no parque quase deserto, vai em direção ao carro.
XI. O NEGÓCIO
A MENINA
Eu sou feia.
A MADAME
A MENINA
Eu sou gorda, tenho um queixo duplo, duas barrigas, seios como duas bolas de futebol, e a
bunda, ainda bem que fica na parte de trás, assim a gente não vê. Mas eu tenho certeza de
que ela é igual a dois presuntos que balançam em cada passo que eu dou.
A MADAME
Você quer calar essa boca, tolinha.
A MENINA
Eu tenho certeza, eu tenho certeza; eu vejo muito bem, na rua, os cachorros me seguindo com
a língua de fora e com aquela baba escorrendo da boca. Se eu deixasse eles meteriam os
dentes, como se estivessem num açougue.
A MADAME
Mas de onde você tirou isso, sua peruazinha? Você é bonita, você é redonda, roliça, você tem
boas formas. Você acha que os homens gostam de galhos secos de árvore que a gente tem
medo de quebrar só de encostar a mão? Eles gostam das formas, minha pequena, eles gostam
das formas que enchem bem uma mão.
A MENINA
Eu queria ser magra. Eu queria ser um galho seco de árvore que a gente tem medo de quebrar.
A MADAME
Ah sei, mas eu não. E além do mais, você é redonda hoje, você pode ser magra amanhã. Uma
mulher muda, durante a vida. Ela não precisa se preocupar com isso. Quando eu era mocinha
como você, eu era magra, magra, quase dava pra ver através de mim, só um pouco de pele e
alguns ossos. Nem sombra de peito. Reta como um menino. Isso me dava uma raiva, poque
nessa época eu não gostava dos meninos. Eu sonhava em me arredondar, eu sonhava em ter
seios bonitos. Então eu colocava uns peitos falsos de papelão que eu mesmA fabricava. Mas os
meninos perceberam logo e, toda vez que eles passavam por mim, eles me davam uma
cotovelada no peito que acabava com tudo. Depois de algumas vezes, eu coloquei uma agulha
dentro do seio e os gritos se ouviram em toda a cidade, você pode acreditar. E daí, você está
entendendo, tudo começou a se arredondar, a se encher, e eu fiquei bem contente. Pode ficar
tranquila, meu passarinho atordoado; você é roliça hoje, você pode ser magra amanhã.
A MENINA
Entra o irmão, conversando com um cafetão. Eles nem olham para a menina.
O CAFETÃO
O IRMÃO
O CAFETÃO
Quando a gente pode por um preço em alguma coisa, isso quer dizer que não vale grande
coisa. Quer dizer que a gente pode conversar, baixar, aumentar o preço. Eu fixei o preço
porque abstratamente porque isso não tem preço. É como um quadro de Picasso: você já
ouviu alguém dizer que está caro demais? Você já viu um vendedor baixar o preço de um
Picasso? O preço que se fixa, nesse caso, é uma abstração.
O CAFETÃO
Resumindo, é uma abstração que vai passar do meu bolso pro seu, e o vazio que vai ficar no
meu bolso, eu não penso que seja tão abstrato assim.
O IRMÃO
Um vazio desse tipo, se enche. Você vai enchê-lo bem depressa, pode acreditar, e você vai
esquecer o preço que pagou em um tempo menor do que este que você está gastando pra
discutir o preço. Mas eu não discuto. É pegar ou largar. Ou você faz o melhor negócio do ano
ou você fica na miséria.
O CAFETÃO
O IRMÃO
Pense, pense, mas não demore demais. Eu preciso acompanhar a minha irmã até a casa da
mãe dela.
O CAFETÃO
Tá bom, eu pego.
O IRMÃO
(Para a menina) O seu nariz está brilhando, pintinho. Você precisa pensar em passar um pó. (A
menina sai. Eles olham para ela.) E então, meu Picasso?
O CAFETÃO
O IRMÃO
Ela vai te fazer ganhar dinheiro suficiente pra que você esqueça o preço.
Troca de dinheiro.
O CAFETÃO
Não fique nervoso, não fique nervoso; a gente tem todo o tempo.
O CAFETÃO
Não, a gente não tem todo o tempo. Você tem o dinheiro, eu quero a menina.
O IRMÃO
O CAFETÃO
O IRMÃO
O CAFETÃO
O IRMÃO
O CAFETÃO
O IRMÃO
CAFETÃO
O IRMÃO
Você está ficando nervoso, está ficando nervoso. (Escuta-se o barulho dos passos da menina.)
Agora, tudo bem. ( O irmão sai depressa e vai se esconder em um quarto)
Entra a menina.
A MENINA
O CAFETÃO
CAFETÃO
A MENINA
MADAME
O IRMÃO
Não fui que quis, madame, eu te juro. Foi ela que insistiu, foi ela quem quis vir pra cá e fazer
esse trabalho. Ela está procurando não sei quem, e ela quer encontrá-lo de novo. Ela tem
certeza que vai encontrá-lo aqui. Eu não queria. Eu tomei conta dela como nenhum irmão mais
velho jamais fez com uma irmã. Meu pintinho, minha bonequinha, eu nunca amei ninguém
como eu a amei. Eu não posso fazer nada. A desgraça se abateu sobre nós. Foi ela quem quis, e
eu não podia fazer nada além de ceder. Eu nunca pude deixar de ceder a uma vontade da
minha irmazinha. É a desgraça que nos escolheu e que nos persegue. (Ele chora)
A MADAME
XII. A ESTAÇÃO
ZUCCO
Roberto Zucco.
A SENHORA
ZUCCO
Ninguém esquece o próprio nome. Deve ser a última coisa que a gente esquece.
ZUCCO
Não, não; eu acabo esquecendo. Eu o vejo escrito no meu cérebro, e cada vez menos bem
escrito, cada vez menos claramente, como se ele fosse se apagando; eu preciso olhar cada vez
mais de perto pra conseguir ler. Eu tenho medo de me perceber sozinho sem saber o meu
nome.
A SENHORA
ZUCCO
A SENHORA
ZUCCO
Eu gosto delas, eu gosto delas, de todas. Sempre tem lugar para mais uma.
A SENHORA
ZUCCO
A SENHORA
ZUCCO
A SENHORA
ZUCCO
A SENHORA
Não.
A SENHORA
Porque não? Eu não tenho motivo nenhum pra não pegar esse trem com você. Você não me
desagradou desde que eu te vi. Eu vou pegar esse trem com você. Aliás, é isso que você quer,
senão, você teria me matado ou me deixado naquele parque.
ZUCCO
Eu preciso que você me dê dinheiro pra pegar o trem. Eu não tenho dinheiro. Minha mãe devia
me dar mas ela esqueceu.
A SENHORA
ZUCCO
Pra Veneza.
A SENHORA
ZUCCO
A SENHORA
ZUCCO
A SENHORA
Bravo. Eu sempre pensei que ninguém nascia em Veneza, e que todo mundo morria lá. Os
bebês devem nascer todos empoeirados e cobertos de teias de aranha. Em todo o caso, a
França te lavou muito bem. Eu não vejo nem sinal de poeira. A França é um excelente
detergente. Bravo.
ZUCCO
Eu preciso sair daqui, imediatamente; eu preciso sair daqui. Eu não quero ser pego. Eu não
quero que me prendam. Eu tenho medo de ficar no meio de todas essas pessoas.
A SENHORA
Medo? Seja um homem então. Você tem uma arma: você punha todo mundo prá correr só de
tirar o revólver do bolso.
ZUCCO
A SENHORA
Mas eu não tenho. Com tudo o que você me fez ver, eu não tenho medo e nunca tive.
ZUCCO
A SENHORA
ZUCCO
Se eles me pegam, me prendem. Se me prendem, eu fico louco. Aliás eu estou ficando louco,
agora. Tem polícia em todo lugar, tem gente em todo lugar. Eu já estou preso no meio dessa
gente. Não olhe pra eles, não olhe pra ninguém.
A SENHORA
Por acaso eu tenho cara de que vou te denunciar? Imbecil. Eu já teria feito isso há muito
tempo. Mas esses babacas me dão nojo. Você sim, você me agrada muito mais.
ZUCCO
Olha todos esses loucos. Olha como eles tem uma cara malvada. São assassinos. Eu nunca vi
tantos assassinos ao mesmo tempo. Ao menor sinal dentro da cabeça, eles começariam a se
matar entre eles. Eu me pergunto porque o sinal não soa, aqui, agora, na cabeça deles. Porque
eles estão todos prontos pra matar. Eles são como ratos nas gaiolas dos laboratórios. Eles tem
vontade de matar, isso dá prá ver na cara deles, no jeito que eles andam; eu vejo os punhos
deles fechados dentro dos bolsos. Eu reconheço um assassino à primeira vista; eles têm as
roupas cheias de sangue. Aqui, tem assassino em tudo quanto é lugar; a gente precisa ficar
calmo, sem se mexer; a gente não pode olhar nos olhos deles. Eles não devem ver a gente; a
gente precisa ser transparente. Porque senão, se a gente olha nos olhos deles, se eles
percebem que a gente está olhando, se eles resolvem olhar e ver a gente, o sinal soa na cabeça
deles e eles matam, eles matam. E se tem um que começa, todo mundo aqui vai matar todo
mundo. Todo mundo está só esperando o sinal na cabeça.
A SENHORA
Pára. Não comece com uma crise de nervos. Eu vou comprar os dois bilhetes. Mas fique calmo,
eles vão perceber a gente. (Depois de um tempo) Por que você matou?
ZUCCO
Quem?
A SENHORA
ZUCCO
A SENHORA
ZUCCO
Você. Você disse que ele era um moleque metido à besta. Você disse que ele achava que você
era uma idiota.
A SENHORA
ZUCCO
A SENHORA
ZUCCO
Não precisava ter se recusado a me dar as chaves. Não precisava ter me humilhado. Eu não
queria matar o moleque, mas tudo conspirou prá acabar assim por causa dessa história do
Porsche.
A SENHORA
Mentiroso. Nada conspirou; foi uma coisa atravessada. Era eu que você tinha sob a sua arma.
Por que é que você explodiu a cabeça dele, com sangue pra todo lado?
ZUCCO
Se tivesse sido a sua cabeça, ela teria espalhado sangue pra todo lado também.
A SENHORA
Mas eu não teria visto, imbecil, eu não teria visto. Eu não estou nem aí para o meu sangue, ele
não me pertence. Mas o do meu filho, fui eu que enfiei nas veias dele, é negócio meu, era
meu, ninguém tem o direito de jogar as minhas coisas por aí de qualquer jeito, num parque
público, na frente de uma cambada de imbecis. Agora eu não tenho mais nada meu. Agora
qualquer um pode andar por cima da única coisa que me pertencia. E amanhã cedo os garis
vão limpar tudo isso. O que me resta, agora, o que é que me resta?
Zucco se levanta.
ZUCCO
Eu vou embora.
A SENHORA
ZUCCO
Não se mexa.
A SENHORA
Você nem tem como pegar o trem. Você nem me deu tempo de te dar o bilhete. Você não dá
tempo prá ninguém te ajudar. Você é como uma faca automática que você desliga de vez em
quando e guarda no bolso.
ZUCCO
A SENHORA
ZUCCO
Não comece a chorar. Você está com cara de mulher que vai começar a chorar. Eu detesto
isso.
A SENHORA
ZUCCO
Exceto quando elas estão com cara de mulher que vai começar a chorar.
A SENHORA
A SENHORA
E o seu nome, imbecil? Será que você é capaz de me dizer seu nome agora? Quem vai se
lembrar dele prá você? Você já esqueceu, eu tenho certeza. Agora eu sou a única a se lembrar
dele. Você vai embora sem a sua memória.
XIII. OFÉLIA
Entra a irmã
A IRMÃ
Onde
está a minha pombinha? Em que sujeira ela se meteu? Em que gaiola infâme a aprisionaram?
De que animais perversos e maus ela está rodeada? Eu quero te encontrar, minha rolinha, eu
vou te procurar até morrer. (Tempo) O macho é o animal mais repugnante entre os animais
repugnantes que existem na face da terra. Tem um cheiro no macho que me dá nojo. Cheiro
de rato no esgoto, de porco na lama, um cheiro de água parada onde aprodecem os cadáveres.
(Tempo) O macho é sujo, os homens não tomam banho, eles deixam a sujeira e os líquidos
repugnantes das suas secreções se acumularem neles, e eles nem tocam nisso, como se fosse
um bem precioso. Os homens não sentem o cheiro uns dos outros porque todos eles tem o
mesmo cheiro. É por isso que eles estão sempre juntos, e que ficam com as putas, porque as
putas, por dinheiro, aguentam esse cheiro. Eu lavei tanto essa menina. Dei tanto banho antes
do jantar, e dei banho de manhã, esfreguei as costas e as mãos com escova, e escovei embaixo
das unhas, lavei todos os dias os cabelos dela, cortei as unhas, dei banho nela toda, todos os
dias com água quente e sabão. Eu a conservei branca como uma pomba, eu alisei suas plumas
como uma rola. Eu a protegi e a guardei dentro de uma gaiola sempre limpa para que ela não
sujasse sua brancura imaculada ao contato com a sujeira desse mundo, com a sujeira dos
machos, para que ela não se deixasse empestear pela peste do cheiro do macho. E foi o seu
próprio irmão, esse rato entre os ratos, esse porco fedorento, esse macho depravado que a
sujou e a arrastou na lama, puxando-a pelos cabelos até a sua fossa, Eu devia tê-lo matado,
devia tê-lo envenenado, devia tê-lo impedido de ficar rodeando a gaiola da minha rolinha.
Devia ter colocado arame farpado em volta da gaiola do meu amor. Eu devia ter esmagado
esse rato com o pé e queimado na frigideira. (Tempo). Tudo é sujo, aqui Essa cidade toda é
suja e cheia de machos. Que chova, que chova muito, que a chuva lave um pouco a minha
rolinha na fossa imunda onde ela está.
XIV. PRISÃO
No Pequeno Chicago.
PRIMEIRO POLICIAL
SEGUNDO POLICIAL.
Não, ninguém.
PRIMEIRO POLICIAL
É idiota. Nosso trabalho é idiota. Ficar plantado aqui como placas de estacionamentos. Melhor
voltar a cuidar do trânsito.
SEGUNDO POLICIAL
PRIMEIRO POLICIAL
SEGUNDO POLICIAL
PRIMEIRO POLICIAL
Ele vai voltar aqui? Por que você ia querer que ele voltasse? Ele não deixou nada, nem uma
bagagem, nada. Ele não é louco. Nós somos duas placa de estacionamento completamente
inúteis.
SEGUNDO POLICIAL
PRIMEIRO POLICIAL
Enquanto ele não volta, a gente podia beber alguma coisa com a madame dona do bordel e
discutir o assunto com as senhoritas e passear por aí, entre essas pessoas calmas e tranquilas;
o Pequeno Chicago é o bairro mais tranquilo da cidade.
SEGUNDO POLICIAL
Fogo? Que fogo? Onde você está vendo fogo? Mesmo as senhoritas são calmas e tranquilas
como caixas de supermercado; os clientes passeiam como num parque, e os cafetões fazem a
ronda, como um vendedor que verifica se todos os livros estão nas prateleiras e se alguém não
roubou algum. Onde você está vendo fogo? Esse cara não vai voltar aqui, eu aposto com você,
eu aposto uma cerveja no bordel da madame.
SEGUNDO POLICIAL
PRIMEIRO POLICIAL
SEGUNDO POLICIAL
PRIMEIRO POLICIAL
Matar a mãe dele. Uma vez feito isso, ele não voltou mais. E como aqui não tem mais inspetor
pra matar, ele não vai voltar. Eu me sinto como um idiota; eu sinto que estão nascendo raízes
e folhas em cima dos braços e das pernas.Eu sinto que estou afundando no cimento. Vamos
dar uma chegada no bordel e beber alguma coisa. Tudo está calmo; todo mundo passeia
tranquilamente. Você está vendo alguém com cara de assassino?
SEGUNDO POLICIAL
PRIMEIRO POLICIAL
SEGUNDO POLICIAL
PRIMEIRO POLICIAL
Nem sempre, nem sempre. Tem vezes que eu quase tenho vontade de matar; eu também.
SEGUNDO POLICIAL
PRIMEIRO POLICIAL
Eu tenho certeza.
Entra Zucco
PRIMEIRO POLICIAL
Mas nunca – mesmo se eu fosse louco, mesmo se eu fosse um assassino- eu nunca caminharia
tranquilamente nos locais do meu crime.
SEGUNDO POLICIAL
PRIMEIRO POLICIAL
Qual?
SEGUNDO POLICIAL
PRIMEIRO POLIICIAL
SEGUNDO POLICIAL
PRIMEIRO POLICIAL
SEGUNDO POLICIAL
PRIMEIRO POLICIAL
SEGUNDO POLICIAL
PRIMEIRO POLICIAL
Impossível.
A MENINA
(Percebendo Zucco) Roberto. (Ela chega perto dele e lhe dá um beijo.)
SEGUNDO POLICIAL
É ele.
PRIMEIRO POLICIAL
A MENINA
PRIMEIRO POLICIAL
ZUCCO
Eu sou o assassino do meu pai, da minha mãe, de um inspetor de polícia e de uma criança. Eu
sou um matador.
Os policiai levam-no.
XV.ZUCCO AO SOL
Não se vê ninguém, durante toda a cena, exceto Zucco quando ele sobe no alto do telhado.
UMA VOZ
UMA VOZ
UMA VOZ
UMA VOZ
UMA VOZ
Silêncio.
UMA VOZ
UMA VOZ
Não; é porque ele não tem cúmplice que ele sempre consegue escapar.
UMA VOZ
Sozinho.
UMA VOZ
UMA VOZ
UMA VOZ
UMA VOZ
Ele deve estar encolhido em algum buraco, e está tremendo.
UMA VOZ
UMA VOZ
UMA VOZ
UMA VOZ
UMA VOZ
UMA VOZ
É impossível.
UMA VOZ
Completamente impossível.
UMA VOZ
UMA VOZ
Talvez ele esteja, mas, por enquanto, ele está subindo no telhado e tá pouco se fudendo prá
vocês.
UMA VOZ
UMA VOZ
UMA VOZ
UMA VOZ
Zucco, Zucco, conta prá nós como você faz pra não ficar nem uma hora na prisão?
UMA VOZ
UMA VOZ
ZUCCO
Por cima. Não se pode escapar através dos muros, porque depois desses muros tem outros,
tem sempre a prisão. É preciso escapar por cima, em direção ao sol. Nunca vão por um muro
entre o sol e a terra.
UMA VOZ
E os guardas?
ZUCCO
Os guardas não existem. Basta não vê-los. De qualquer forma, eu poderia pegar cinco com um
mão só e acabar com eles de uma vez só.
UMA VOZ
ZUCCO
Quando eu avanço, eu vou até o fim, eu não vejo os obstáculos,e, como eu não olhei, eles
desabam sozinhos na minha frente. Eu sou solitário e forte, eu sou um rinoceronte.
UMA VOZ
Mas seu pai e sua mãe, Zucco. Você não precisava tocar nos próprios pais.
ZUCCO
UMA VOZ
Mas uma criança, Zucco; a gente não deve matar uma criança. A gente pode matar os inimigos,
e as pessoas capazes de se defender. Mas não uma criança.
ZUCCO.
Eu não tenho inimigos e eu não ataco. Eu acabo com os outros animais não por maldade mas
porque eu não os vi e pisei em cima deles.
UMA VOZ
Você tem dinheiro? Dinheiro escondido em algum lugar?
ZUCCO
UMA VOZ
UMA VOZ
É o Golias.
UMA VOZ
É o Sansão
UMA VOZ
Quem é o Sansão?
UMA VOZ
UMA VOZ
Eu conheci ele na prisão. Um verdadeiro monstro. Ele podia quebrar a cara de dez pessoas de
uma vez só.
UMA VOZ
Mentiroso.
UMA VOZ
Só na porrada.
UMA VOZ
UMA VOZ
UMA VOZ
UMA VOZ
ZUCCO
Olhem pro sol. (Um silêncio absoluto se estabelece no local.) Vocês não estão vendo nada? Não
estão vendo como ele se mexe de um lado pro outro.
UMA VOZ
UMA VOZ
ZUCCO
Olhem o que está saindo do sol É o sexo do sol; é de lá que vem o vento.
UMA VOZ
UMA VOZ
Cala a boca.
ZUCCO
UMA VOZ
UMA VOZ
Como é que você queria que alguma coisa se mexesse, lá em cima? Tudo está fixado lá desde a
eternidade, e bem imobilizado, bem soldado.
ZUCCO
UMA VOZ
ZUCCO
Virem o rosto em direção ao oriente e ele mudará de lugar; e, se vocês virarem o rosto em
direção ao ocidente, ele seguirá vocês.
UMA VOZ
UMA VOZ
UMA VOZ
Ele é louco.
UMA VOZ
O sol sobe, ofusca como a explosão de uma bomba atômica. Não se vê mais nada.
UMA VOZ