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RETRATO DE UMA JOVEM EM VIDRO

PERSONAGENS:
LAURA
SILVA
AMANDA
FANTASMA DE LAURA

É DE MADRUGADA. LAURA ESTÁ SE ARRUMANDO PARA DEIXAR A CASA.


ELA ESTÁ SENTADA À MESA MEDITANDO SOBRE UM MANUSCRITO. LAURA
TRAZ NO ROSTO UMA EXPRESSÃO DESESPERADA. SILVA UM JOVEM
ITALIANO, BONITO, ÁGIL, BEM HUMORADO, ABRE A PORTA DE FORA E
ENTRA.

SILVA - Laura! Laura cheguei! Foi o mais rápido que pude vir assim que me ligou.
Ainda nisso?
LAURA - Desde hoje de manhã.
SILVA - Como assim?
LAURA - Estou com as idéias confusas. Não consegui dormir. Eu ainda não consegui
escrever esta maldita carta.
SILVA - Pensei que nós fôssemos embora agora, aproveitar à madrugada.
LAURA - O que é que você acha disso?
SILVA - Não me parece muito bom.
LAURA - Não está bom né!
SILVA - Bem, não é o que você faz de melhor.
LAURA - Eu devia estar louca!
SILVA - Você devia estar é perturbada!
LAURA - Silva, por favor, me ajude a levar primeiro as caixas, sim?... As peças mais
delicadas deixe que eu pego depois.
SILVA - Vamos sair logo daqui e deixar essas coisas pra aqui.
LAURA - Preciso cuidar das minhas coisas.
SILVA - Vamos tomar alguma coisa. Quer um copo de uísque do bar.
LAURA - Daqui a pouco, Silva.
SILVA - Ok.
LAURA - Silva, cuidado! Papai bebia muito e nos abandonou. Na verdade ele se
matou. De manhã achei o vidrinho vazio no lixo. Nunca contei a ninguém, não tive
coragem. Mamãe fugiu logo depois disso. Sabe Silva eu sinto muito a falta do meu irmão.
Com ele era tudo diferente, tínhamos muitas afinidades. Nós construímos um mundo
mágico, um mundo que só eu e ele podíamos entrar. Hoje quando estava escrevendo esta
carta, todo o meu passado passou como um filme na minha frente, as brincadeiras quando
menina. Ainda lembro do Tom dizendo que eu era uma princesa. Sabe Silva, Tom era como
um herói para mim, me protegia e sabia entender o meu mundo mágico. Mas um dia ele
também se foi, nos abandonando, eu e Mama. Não sei, mas, hoje estou sentindo muito falta
dele. Lembrei-me dele mexendo nessas coisas velhas. Por quê? Por quê? Por que ele me
abandonou, aqui sozinha com ela? Eu e Mamãe nunca nos demos bem, depois da morte
dele, ela sempre me obrigava a fazer coisas que eu odiava. Quando Mamãe começou a
trazer aqueles homens aqui para dentro, eu fugia, queria ficar sozinha. Eu saía sozinha

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durante a noite e ia para o cinema, ficava ali no meio de toda aquela escuridão, sozinha,
imóvel, só olhando, sem chamar atenção de ninguém ao meu redor. Sabe, eu podia por um
instante ser alguém de verdade, alguém com uma vida interessante, alguém que era amada e
que tinha alguma aventura na sua vida. Foi num dia como hoje, assim comum que lembrei
do Tom e decidi planejar fugir das garras da Mama, mas Mama encontrou um homem que
lhe prometeu uma vida diferente, então foi ela quem fugiu. Mas o que eu fiz. Tive medo,
medo de Tom nunca mais voltar, me esquecer aqui. O que fiz? O que fiz da minha vida?!?
Como quis fugir e viver como aquelas mulheres dos filmes, mas o que aconteceu comigo
depois. Minha vida não mudou em nada até hoje, mas eu juro, hoje eu irei mudar, mudar
minha vida para sempre. Você verá...
SILVA - Eu não sabia disso. Vou buscar as coisas lá dentro.
LAURA - Vamos! Cuidado Silva! Por que não olha pro que está fazendo? Você não se
importa com as coisas dos outros!
SILVA - Calma, eu não vou estragar essa droga.
LAURA - Claro que não! Já está estragado mesmo.
SILVA - Meu bem, vamos embora! Pra quê ficar aqui? Isso só está fazendo você ficar
mais triste.
LAURA - Se quiser vá!
SILVA - Está bem, é você quem sabe! Vou levar essas coisas lá pra fora.
LAURA - Agora, devagar... Está firme?
SILVA - Está.
AMANDA - E então Laura?!? As coisas têm uma tendência para acabar mal! Se fosse eu,
não ligaria a vitrola agora. Mas ora vejam... Quem diria, heim? Nosso cavaleiro de visita é
noivo, para casar!
LAURA - Noivo!
AMANDA - Sabe Laura, você nunca sabe de nada! Você vive num mundo de sonhos.
Fabricando ilusões! Aonde você vai?
LAURA - Eu não agüento mais morar aqui! Eu quero ir embora para sempre abandonar
a senhora sozinha aqui nesta maldita casa.
AMANDA - Faz muito bem, depois que já nos fez passar por idiotas! Os esforços, os
preparativos, a despesa toda! O abajur novo, o tapete, as suas roupas Laura! Tudo isso para
que? Para receber o noivo de outra moça! Vá fuja! Não pense em mim, sua mãe
abandonada, você ainda será uma solteirona aleijada. Vá logo, vá, vá, vá embora! Laura,
minha filha me desculpe, desculpe sua mãe. Estou nervosa hoje, meu bem! Esqueça tudo
isto. Dê uma olhada em sua mãe! Foi este o vestido que usei quando liderei o cotillon. Olhe
ele ainda me serve. Tenho o mesmo corpo quanto tinha a sua idade. Com ele venci o
concurso da Rainha da Primavera duas vezes no Baile do Governador! Eu o usava aos
domingos para receber a visita de meus admiradores! Estava com ele no dia em que
conheci seu pai...
LAURA - Meu pai está morto, e é por sua causa! Você matou meu pai! E por isso Tom
nos abandonou também!
AMANDA - Tive febre de malária a primavera inteira naquele ano. Os convites
choviam... Festas na região inteira do Delta! “Fique na cama”, mamãe dizia, “você está
com febre, menina!”, mas eu não podia! Tomava as doses de quinino e não parava um
segundo! De noite, bailes! De tarde, passeios que não acabavam mais! Piqueniques
maravilhosos! Tão deslumbrante aquela paisagem em maio! Uma enxurrada de junquilhos!
Foi naquela primavera que eu tomei loucura por junquilhos.

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LAURA - Do que está falando agora? Ficou louca também!?!


AMANDA - Junquilhos se tornaram uma verdadeira obsessão para mim. Mamãe dizia:
“Mas, meu bem, não há mais espaço para junquilhos”. Mas eu continuava a trazer mais e
mais. Em qualquer hora que eu os visse eu gritava: “Pare! Pare! Olha ali junquilhos!” Fazia
os rapazes me ajudarem a colher os junquilhos. Eu já virava até anedota com minha mania
por aquelas flores! Até que afinal não havia mais vasos na casa para todos, qualquer
cantinho livre estava empanturrado de junquilhos. Eu dizia: Se não há mais vasos para
colocá-los, eu mesma vou segurá-los então! E foi aí que eu... Conheci seu pai! Febre de
malária, junquilhos e depois... Aquele rapaz... Esta casa Laura, ela me traz muitas
lembranças de seu pai, por isso, entenda nossa única chance é você se casar. Minha filha
não importa o que aconteceu nestes últimos anos, não esqueça eu sei que daremos um jeito
em tudo isso.
LAURA - Eu jamais vou me casar, para nos tirar daqui, jamais!!!
AMANDA - Você é uma Wingfield mesmo. Egoísta como seu pai e seu irmão. Você vai
ficar muito só, quando eu morrer, então você compreenderá o que isso significa!
LAURA - Ficar só, Mamãe?
AMANDA - Laura, também amei alguém, e perdi a pessoa que amei.
LAURA - Ele está morto? Ele era o meu pai.
AMANDA - Não. Ele ainda era um menino. Apenas um menino, quando eu ainda era
muito jovem. Aos dezesseis anos fiz uma grande descoberta, o amor! Foi tudo tão simples,
tão completo. Foi assim que ele iluminou esse mundo para mim. Mas não tive sorte.
Desiludi-me logo. Havia nele qualquer coisa muita estranha... Um nervosismo, uma doçura,
uma delicadeza que não eram próprios de um homem, se bem que ele não tivesse nada de
efeminado. Ele me procurava em busca de ajuda. Não descobri nada, até depois do nosso
casamento... Foi então, que eu percebi que o havia enganado de uma maneira misteriosa e
que eu não lhe estava dando a ajuda de que ele necessitava, mas da qual não podia falar!
Ele estava num atoleiro e agarrava-se a mim. Mas eu não o estava puxando para fora. Eu
estava afundando com ele. E eu não sabia de nada. Exceto que eu o amava acima de todas
as coisas. Foi então que eu descobri. E da pior maneira possível. Entrando, de repente, no
nosso quarto, que julgava estar vazio, mas que não estava. Havia nele duas pessoas. O
jovem com quem eu me casara e um senhor de mais idade que tinha sido amigo dele
durante anos e anos seguidos... Mais tarde fizemos de conta que nada disso tinha
acontecido. Fomos os três juntos a um bar dançante, bêbados, rindo e cantando o tempo
todo. Dançamos a varsoviana... De repente, no meio da dança, o jovem com quem eu tinha
me casado afastou-se de mim e saiu correndo pelo salão. Daí para frente minha vida foi um
inferno. Seu pai se tornou um bêbado. Não trabalhava. Não fazia mais nada de sua vida.
Tudo porque, durante a dança, incapaz de conter-me eu lhe havia dito: “Eu vi, Allan, eu sei
de tudo. Você me repugna”. Desde então, a luz que vinha iluminando a minha vida apagou-
se de repente. E nunca mais houve outra luz em minha vida que fosse mais forte que esta
pobre luz de vela... O resto você conhece muito bem.
LAURA - Ah! Mamãe, você só consegue pensar em você, só você não vê o quanto eu
tenho lhe dedicado minha vida! Eu não vou ficar aqui para morrer a não vou não.
AMANDA - Vamos Laura, me diga. Quer ter o mesmo fim que o meu? Ou você prefere
terminar como uma Wingfield, sozinha.
LAURA - Você nunca teria dito uma coisa dessas para mim, se Tom estivesse aqui!
AMANDA - Não, fale assim comigo.

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LAURA - Fique aqui, fique nesta casa velha, com estes móveis velhos, quem sabe um
dia você faça parte deles também. Tudo nesta casa está se estragando como você, Mamãe.
AMANDA - Quando penso no futuro, a primeira imagem que vem de você, Laura, é a de
uma mulher sentada numa cadeira olhando o vazio, à espera de qualquer coisa. Talvez o
amor...
SILVA - O quê? Você estava falando com quem?
LAURA - Com ninguém.
SILVA - Laura, eu acho melhor você vir comigo.
LAURA - Por que não vai na frente, me espera lá fora? Desço logo.
SILVA - Por que não estou gostando do seu jeito... E de certa maneira me sinto
responsável por você.
LAURA - Gostaria de apenas dizer adeus...
SILVA - Adeus! Não existe essa palavra no meu vocabulário.
LAURA - Você se engana! A gente diz adeus a todo instante, a cada minuto que se
vive... Porque isso é que é a vida... Apenas um longo... Longo e demorado adeus... Há uma
coisa... Há outra... Até chegar ao fim, e então... É adeus para você mesmo. Oh, Tom, Tom!
Tentei tanto tirá-lo do meu pensamento e abandonar tudo, fugir, mas eu lhe tenho sido mais
fiel do que pretendia! Siga a sua vida, Tom e agora... Adeus! Um longo e demorado adeus!
FANTASMA – Laura! Laura, o que você está fazendo aí?
LAURA – Estou indo embora. Agora acabou tudo para sempre.
FANTASMA – Você não pode ir. Tom já esta voltando ele apenas foi ao cinema.
LAURA – Desta vez não. Eu não irá mais voltar para a gente, você não vê?
FANTASMA – É um programa muito longo. Você sabe. Passam um filme da Greta Garbo,
um desenho do Mickey Mouse e depois um documentário sobre viagens.
LAURA – Sei, e ele sempre fica até o fim não é?!?
FANTASMA – Mas é claro! E, ah, eu ia me esquecendo! Ele nos deu isto. É uma echarpe
mágica. Pode ficar pra você, Laura. Lembra-se você a agita diante de uma gaiola de
canários e eles viram peixinhos dourados. Se agitá-la diante dos peixinhos dourados eles
voam, transformados em canários.
LAURA – Pare, pare já com isso. Você não vê, que isso só lhe faz sofrer e sofrer cada
vez mais, desta vez ele não vem. Ele nos abandonou para sempre. Fugiu como papai. Agora
somos só nós e Mama.
FANTASMA – Laura! Psiu!
LAURA – Psiu por que?
FANTASMA – Você assim acorda a Mama.
LAURA – Ótimo! Assim ela me paga por todos aqueles “Levante com a luz divina!” Já
chega ela também se foi. Ela está morta, morta. Adeus...
FANTASMA – Oh, Laura, Laura! Sei que tentará me deixar para trás, no passado, mas eu
lhe tenho sido mais fiel do que pretendia! Sopre suas velas, Laura e agora... Adeus!

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