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Personఋ:
Olga -
Macha -
Irina -
Irmã Avulsa –
Irina. Quase gritando. Já sei: partir para Moscou! Vender a merda da casa, acabar
com tudo isso aqui e partir!...
Olga. Faz hoje exactamente um ano que papai morreu-se. Dia cinco de maio... dia de
teu aniversário, Irina. Um dia tão frio... nevava. Eu temia que você não
sobrevivesse. Você estava estendida como uma defunta... no entanto, passa-se um
ano apenas, e nós nos lembramos dele com calma, e você aí, vestida de branco,
resplandecente. O relógio soa doze horas. Naquele dia, o relógio também soou
assim, como agora. Recordo-me de quando levaram seu caixão: houve música e
salvas no cemitério. Ele era general e comandava uma brigada. Mas não houve
muita gente em seu enterro. É verdade que chovia... chovia a cântaros e havia
muita neve... ah, papai, ah, papai!...
Olga. Hoje não está chovendo. Podemos deixar as janelas abertas. Mas as bétulas
ainda não floresceram. Papai havia recebido o comando da brigada daqui e deixara
Moscou conosco. Há onze anos... Eu me lembro muito bem que, nos começos de
maio, nesta época, Moscou já estava toda coberta de flores. E não chovia. Meu
Deus! Esta manhã despertei, vi todas essas luzes, senti a primavera e a alegria
penetrou-me o coração, e eu apaixonadamente tive vontade de voltar para casa,
para a nossa casa natal. Macha começa a assoviar docemente uma canção. Macha,
pára de assoviar. Acho que estou ficando velha. Sinto que, dia após dia, gota a gota,
vão-se minha força e minha mocidade... Vamos, bem depressa, voltar para Moscou!
Irina. Nosso irmão, provavelmente, obterá uma cátedra. Aliás, de qualquer modo,
ele não continuará aqui. Só resta mesmo a pobre Macha...
Olga. Macha irá todos os anos a Moscou para passar o verão. Macha assovia
docemente uma ária.
Irina. Esperemos. Tudo se arranjará! Que belo dia! Não sei por que, mas sinto-me
tão feliz! Hoje de manhã, quando lembrei que era meu aniversário, senti-me
bruscamente inundada de alegria e me recordei de minha infância, quando mamãe
ainda vivia. Fui agitada por ideias maravilhosas!
Olga. Você está toda iluminada hoje. E isso te deixa mais bela ainda. Macha também
é linda. E Andrei seria belo também, se não tivesse engordado tanto. A gordura não
lhe cai bem. Mas eu... ultradramática ...eu envelheci. Emagreci demais. Só tenho
vinte e oito anos... no entanto, se eu me casasse e pudesse permanecer em casa,
parece-me que as coisas correriam melhor. Pausa. Eu haveria de amar meu marido.
Irmã Avulsa. Você diz tolices demais. Já estou farta. Esqueci de avisá-las que hoje
receberão a visita de nosso novo comandante, Verchinin.
Irmã Avulsa. Não... não muito. No máximo, quarenta e cinco anos. Pareceu-me bom
sujeito. Nada tolo, apenas fala demais.
Irmã Avulsa. Sim... mais para interessante. Acontece, porém, que ele já tem esposa,
sogra e duas filhas. E essa já é sua segunda esposa. Costuma fazer visitas e contar,
por toda parte, que tem esposa e duas filhas. Contará isso aqui também. Sua
mulher é meio louca: usa uma trança longa, virginal; diz, com ênfase, coisas
profundas e frequentemente finge atentar contra a vida, manifestamente para
aborrecer o marido. Eu, em seu lugar, já teria, há muito tempo, fugido de uma
criatura assim. Ele não; suporta-a e contenta-se em se lamentar um pouco, por
todos os cantos. A ela também lhe faltam alguns dentes da frente.
Macha. Com uma só mão levanto trinta quilos. Mas, com duas, chego a oitenta e
mesmo a noventa e cinco quilos. Donde concluo que dois homens são mais fortes
do que um não apenas duas mas três vezes ou mais...
Irmã Avulsa. Contra a queda dos cabelos... duas gramas de naftalina para meia
garrafa de álcool... diluir... usar diariamente... fecha-se a garrafa com uma rolha,
munida de um tubo de vidro... em seguida, toma-se uma pitada de alume, desse
alume mais comum...
Irina. Onde estará Ivan Romanovitch? Meu querido Ivan Romanovitch!?! Hoje,
quando despertei, tive bruscamente a impressão de que tudo se tornava claro para
mim e que eu sabia enfim como se deve viver. Querido Ivan Romanovitch, agora sei
tudo. O homem deve trabalhar, trabalhar até a última gota de suor... Cada homem,
sem exceção...
Irina. ...está nisso o objetivo e o sentido de sua existência, sua felicidade, sua
alegria. Ser um operário que se levanta de madrugada e vai quebrar pedras na
rua... Ser um pastor ou professor que ensina o abc às crianças... Ou um maquinista,
com sua locomotiva, ou qualquer outra coisa, não importa o quê... contanto que
trabalhe. Vale muito mais, é muito mais importante ser um animal – um boi ou
simplesmente um cavalo – do que uma mulher que acorda ao meio dia, toma seu
café na cama e depois gasta mais de duas horas fazendo a toalete. Ah! Que horrível
é! Sinto uma vontade tão grande de trabalhar... Uma dessas vontades só
comparável à sede que sentimos em dia de calor...
Olga. Rindo. Papai nos habituou a nos levantarmos às sete horas. Agora Irina
acorda às sete, mas fica na cama pelo menos até às nove, pensando não sei o quê. E
exibe-nos uma expressão tão séria, tão séria...
Irmã Avulsa. Ah, a nostalgia do trabalho! Como a compreendo, meu Deus. E como
Marx a compreendeu! Nunca fiz nada em toda a minha vida. Nasci em São
Petersburgo, uma cidade fria e ociosa. Nasci de uma família que jamais conheceu
trabalho e preocupações. Lembro-me de que, quando eu voltava da escola militar
para casa, um criado me tirava as botas, me dava banho, me lavava o pênis,
suportando todos os meus caprichos, enquanto minha mãe me olhava em êxtase e
se surpreenderia, naturalmente, se todos não me olhassem da mesma maneira.
Protegeram-me sempre contra o trabalho, mas é bem duvidoso que o tenham
conseguido para sempre. Bem duvidoso. Porque qualquer coisa de enorme já se
pôs em movimento. Já se está preparando uma boa e formidável tempestade que
avança, que já está perto, que muito breve vai cair sobre nossa sociedade e vai
varrer a preguiça, a indiferença, a podridão do tédio, os preconceitos contra o
trabalho. Um dia, trabalharei. E dentro de vinte e cinco ou trinta anos, no máximo,
cada homem trabalhará. Cada homem!
Irina. Dentro de vinte e cinco anos você não será mais deste mundo, graças a Deus.
Em dois ou três anos, no máximo, já terá morrido de uma embolia, ou então eu já
me terei irritado e lhe pespegado uma bala no crânio, meu anjo.
Macha. E o que é a alegria? Antigamente, quando papai ainda vivia, não tínhamos
menos de trinta ou quarenta oficiais nos dias de festa e havia ruído, alegria. Hoje,
nada mais do que uma pessoa e meia. E tudo é tão vazio e calmo que nos
acreditamos em um deserto. Vou-me embora... Estou hoje em crise de melancolia e,
se não estou alegre, ninguém deve me escutar. Gargalhando. Vou andar por aí.
Finge que sai.
Macha. Retornando. Que quer dizer com isso? Que, por acaso, mulheres não sabem
pensar?
Irina. Por uns tempos, morei na Rua Alemã. Dessa rua, saía para a caserna. No
caminho há uma ponte lúgubre, nervosa, pastosa. Ouve-se o barulho da água sob a
ponte. Um homem solitário torna-se triste passando por lá. Aqui o rio é esplêndido,
tão largo, tão rico...
Olga. Sim, seremos todos esquecidos. É a vida e nada podemos fazer. O que nos
parece importante, grave, pesado de consequências, um dia será esquecido e
deixará de ter importância. As descobertas de Copérnico, as de Colombo, não terão
parecido, de início, inúteis, ridículas, enquanto se tomavam as elucubrações de um
fenômeno qualquer pela própria verdade? É bem possível, portanto, que esta nossa
vida de hoje, à qual emprestamos tanto valor, talvez seja um dia considerada
estranha, desconfortável, pegajosa, sem inteligência, insuficientemente pura e —
quem sabe? — até mesmo culpada...
Irina. Para vencer a apatia necessária à tua conservação, fodendo por dinheiro, ou
por prazer, a primeira coisa que terás de observar será manter sempre teu coração
inacessível ao amor; pois se fodes por prazer, gozarás mal se estiveres amando; a
ocupação em dar prazeres a teu amante te impedirá de desfrutá-los tu mesma; e se
fodes por dinheiro, jamais ousarás pressionar a quem amas: pressiona somente ao
homem que te paga.
Olga. Olha, que belezinha, mas é uma pirralha mal saída dos cueiros dando-me
lições! És a sábia da família? Por acaso terás um dia uma cátedra na universidade?
Macha. Como?
Irina. Perguntei como sabem se sou mulher?!? Não é porque me viram nascer de
xoxota que sou mulherzinha!
Macha. Bem... eu não havia visto de imediato por sob esse ângulo... Talvez Irina
tenha razão. E, depois, o que é uma... uma... uma... mulher?
Olga. Ora, alguns de nós temos isso bem claro. Há diferenças, algumas mais sutis e
outras nem tanto, mas sem dúvida que há diferenças...
Irina. E uma mulher jamais deve ter caráter próprio: é preciso que, com arte, finja
seus sentimentos, seja com sua luxúria, seja com sua avareza, sem que, no entanto,
essa flexibilidade lhe tire a energia essencial para mergulhar-se em todos os
gêneros de crimes que devem encantar suas paixões ou servi-las, como os do
adultério, do incesto, do infanticídio, dos envenenamentos, do roubo, do
assassinato, e, enfim, de todos aqueles que lhe possam ser agradáveis e aos quais,
sob o véu da falsidade e da fraude por nós aconselhadas, ela possa se entregar sem
nenhuma espécie de temor ou remorsos; isto porque estes crimes foram colocados
pela natureza no coração das mulheres, e que somente falsos princípios recebidos
da educação as impedem de brindá-los a cada dia como deveriam.
Irina. Não. Pelo contrário: nunca estive tão lúcida, minha irmã. Olhe para você. Não
percebe a réstia miserável de ser humano que lhe sobrou?
Macha. Não sei. Não sei. Sinto-me confusa. Evidentemente, o hábito representa um
grande papel. Por exemplo, depois da morte de papai, não podíamos nos habituar a
não termos um ordenança e...
Irina. Macha, entre os civis em geral, há tantos homens grosseiros, pouco amáveis,
mal cheirosos, ranhentos, mal educados... A grosseria me transtorna, me choca, e
eu sofro quando sinto, em um homem, falta de finura, falta de gentileza, de doçura.
Quando me acontece estar entre professores, sofro literalmente.
Macha. Todo homem é uma cobra: é um lírio. Toda pérola é um lince: é uma
mulher.
Irina. Sou pragmática! Sou pragmática!! Desprezo a preguiça, assim como desprezo
a fraqueza e a apatia dos movimentos da alma. Para viver bem, como um homem
digno desse nome, é preciso trabalhar, trabalhar com amor, com fé.
Macha. ...É, sim, uma marxistinha desbocada, dessas que hoje pululam aos
borbotões por aqui e por ali. E, no entanto, no meu mais profundo íntimo, fico
orgulhosa.
Irina. Por isso a falsidade é um gênero de caráter essencial numa mulher. Em todos
os tempos foi a arma do fraco: colocada sempre diante de seu senhor. Como a
mulher teria resistido à opressão sem mentiras e imposturas? Que uses, portanto
estas armas sem temor; elas te são dadas pela natureza para defendê-la contra
todas as empresas de seus opressores. Não é melhor disfarçar tuas culpas que
confessá-las? Querida, os homens QUEREM ser enganados!
Macha. Ora, se o termo “mulher” é usado para indicar tanto distinções sexuais
biológicas quanto distinções nos papéis sócio-culturais, o homem pode amar o seu
semelhante até ao ponto de morrer por ele, mas não o ama tanto que trabalhe em
seu favor...
Irina. Nunca será demais recomendar-te que evites a gravidez, seja fazendo um
largo uso de todas as maneiras de gozar que desviem a semente do vaso prolífico,
seja destruindo-se o germe assim que desconfies de sua existência. Uma gravidez
trai, estraga a cintura, e não é boa sob nenhuma circunstância! Por isso, foder-se
pelo cu é duplamente melhor! Decidida. Eu irei à universidade!! Cansei desse
negócio de ser mulher e estar presa numa dramaturgia fraca e insalubre.
Olga. Irás virar uma masculina histérica, ouça bem o que digo!
Irmã Avulsa. Bons tempos eram aqueles em que tínhamos o Inspetor de Busto!
Macha. O que?
Irmã Avulsa. Macha, uma mulher não se deve expor demais. Olhe a vulgaridade em
redor de nós! Uma contemporaneidade frívola, sem consistência, de baixa extração.
Uma arte espúria, mal acabada, feita às pressas, nas coxas, o teatro
contemporâneo, por exemplo, é uma erupção! Uma doença feia das cidades. A
tolice dos pós-dramáticos que só querem fazer sua pose sagrada e idiota, com suas
caras párvoas, de quem leu tudo pela metade ou buscou apenas pelos meios...
digitais!
Olga. A Digitalina!
Macha. Mas e do homem? Por que não fala também da exposição do homem?
Irmã Avulsa. Claro: aí é que está! Não falo do homem porque o homem é uma
eterna criança, minha cara. Uma criança sempre em busca de um mamilo pra
mamar! Um ser insuficiente — menos evoluído — sempre tomado de uma tensão
física inesgotável, os sapatos, o sangue, os touros, os aviões, o poder! São inferiores,
minha cara. Tão inferiores que necessitam de trabalhar para não pensar.
Macha. Mas, eu também gosto muito disso, e, se for por falta de mamas onde
chupar....
Irmã Avulsa. Não, não, não, muito pelo contrário: é pela fantástica sobra de mamas.
Há mamas sobrando por tudo quanto é lado, mamas inatas, mamas genéricas,
mamas para todos os gostos, é só olhar em volta!
Olga. Repetindo, como um mantra icônico. Mama... mama... mama...
Irmã Avulsa. Quando eu era homem, à medida em que aumentava a tensão física, eu
comia mais. Sanduíches, refrigerantes. Quando se está na estrada antes do
amanhecer, agarramos o que é mais prático e geralmente acabamos com alguma
coisa gordurosa enfiada dentro de um pãozinho.
Olga. Oh, decerto que agora entraremos nos malditos assuntos veganos...
Irmã Avulsa. Irina e eu estávamos num jantar informal em Big Stone Gap,
misturando-nos com os convidados. Então fomos à cozinha para cumprimentar o
cozinheiro. Agarrei um pedaço de galinha frita que estava numa travessa e dei-lhe
uma mordida bem grande. Quando engoli, um osso se prendeu na minha garganta
e fiquei engasgada, quase sem respirar. Tentei deslocar o osso comendo miolo de
pão. Quando ficou claro que o problema era grave, fui levada ao hospital onde o
médico removeu o osso e... outras coisas mais, que considerei desnecessárias...
Macha. Não sabemos onde está nosso pai. Talvez já esteja queimado.
Olga. Que confusão, meu Deus! Parece que a rua Kirsanos incendiou-se toda. Onde
está Oliúchka? Isto está tudo muito pesado para mim sozinha...
Irmã Avulsa. No dia seguinte as manchetes foram tão desagradáveis quanto seria
de se esperar.
Macha. E há de chegar o tempo em que tudo estará mudado, no sentido que vocês
tem das coisas... Um tempo em que se viverá como vocês vivem... Até que, mais
tarde, vocês também serão ultrapassadas, porque nascerão seres muito melhores...
Ri. Estou hoje em um estranho estado de espírito... Sinto uma diabólica vontade de
rir... e de... de chupar bocetas mil! Cantarola.
Irmã Avulsa. Batendo palminhas de alegria desmedida. Sim! Mil cus tombarão em
tua esquerda, outros mil cus tombarão em tua direita e tu não resistirás! Se acaso
puderes, fodê-los a todos irás!!
Irmã Avulsa. Hoje, para mim, no entanto, ser a esposa de um senador é algo
debilitante. Admiro profundamente as mulheres que aguentaram e aguentam essa
situação — e compreendo perfeitamente as que não conseguiram. Eu não agüentei,
e olhe que não me considero uma mulherzinha fraca.
Irmã Avulsa. Ele era muito bem dotado e estourou-me a boceta nova! Gargalha.
Macha. Aposto que você a reconstruiu inúmeras vezes com seu próprio dinheiro.
Gargalha.
Irmã Avulsa. Mas é claro: pelo menos que pague pela boceta que estourou!
Gargalha.
Olga. Houve um tempo em que algumas de nós estudavam para obter uma cátedra
na universidade.... talvez para membros da administração rural...
Irmã Avulsa. Como és tola, Olga! Cátedra na universidade é o meu cu! Gargalha.
Irmã Avulsa. Pois eu sempre rezo assim: “Senhor, se eu não consigo emagrecer, que
pelo menos todas as minhas amigas engordem”. Todas gargalham.
Irina. Fala a Prosorov, morto. Até à vista! Em um dia qualquer, havemos de nos
reencontrar......... bem, não é “até a vista” coisa nenhuma, é adeus mesmo. Nunca
mais nos veremos, velho porco. E, se algum dia isso acontecer, mal nos
reconheceremos. Seremos dois belíssimos sacos de ossos ressequidos e inúteis, tal
e qual sempre fomos e o somos agora.
Irmã Avulsa. Nem se Deus nos der uma morte longa, havemos de nos rever. Mas
vocês sempre poderão me escrever. Ou enviar-me SMSs.
Irina. E lá vamos nós novamente, ou, como bem dizem na língua mãe imperialista:
“here we go”!
Irmã Avulsa. Blasé. Toda esta conversa não custa mais que um real.
Macha. Ninguém quer saber da sua visão geral sobre nada, Irina. Mantenha-se
calada.
Irmã Avulsa. Quem escavou esta terra oca debaixo do gelo previsto por Poe, por
certos ocultistas alemães paranóicos, e por ufólogos malucos?
Irina. Por trás da maquiagem e do sorriso bonito, eu sou apenas uma garota que
quer anal giratório!
Macha. Eu era jovem, inteligente, sonhava, pensava belas coisas, presente e futuro
iluminavam-se de esperanças... Por que, mal começamos a viver, eis-nos mortos,
fracos, chatos, preguiçosos, indiferentes, inúteis, desgraçados?... Nossa cidade
existe há trezentos anos, tem três milhões de habitantes e não há nenhum entre
nós que não seja semelhante a todos... Nem mesmo um herói, no passado ou no
presente. Nem mesmo um sábio... Nem mesmo ao menos um pintor... Nem sequer
um só homem notável em qualquer coisa que excite a inveja ou o desejo
apaixonado de imitá-lo, nem mesmo um Dalton Trevisan ou um Paulo Leminski.
Nada se faz, além de comer e beber, dormir, peidar e depois morrer... Outros
nascem e, também esses, comem, bebem e, para que o tédio não os embruteça
definitivamente, põem variedades em suas vidas, como mexericos infames, Tolstoi,
Guerra e Paz, Tchaikovsky, Gorki...
Olga. Em Moscou não será diferente. Em que se pese o fato de lá nevar bem mais e
ressecar a pele antes.
Irmã Avulsa. Vamos nos trancar todas aqui, juntinhas, e abrir o gás. Será honroso
para nós.
Olga. Nosso pai, Prosorov, que jaz ali, também era travesti.
Macha. Minha nossa! Mas nós e nossas loucuras já não são tantas e tão desvairadas
e você ainda me sai com essa, Olga?!! Não basta que sejamos todas loucas,
solteironas, aleijadas, deficientes, estéreis, ciborgues inacabados da obra de um
Deus obtuso?!!
Olga. Aos berros. Deusa! Deusaaaaaaaaa! A grande Deusa mãe! Oxum, Iansã,
Logunedé, Oiyá, O Negro Djim, Búrúkú, Funfun, Funinikà!
Olga. Não, era travesti mesmo, que às escondidas implorava para ser chamada de....
Clarissa.
Olga. Sou a mais velha. E, além disso, alguns senhores de nosso círculo social
teciam pequenos gracejos à boca pequena, aos quais sempre fiz e fizemos todos
ouvidos moucos. Dizia-se, à socapa, que Prosorov pai executava dancinhas exóticas
inteiramente nu diante da webcam.
Olga. Não seja hipócrita, Macha. Ainda há pouco defendia que nos misturássemos
todos, humanos e não humanos, pretos e brancos, ocidentais e orientais, homens e
mulheres e transgêneros, até que virássemos uma massa informe
multidimensional e explosiva, como um jogo de erros.
Irmã Avulsa. Mas se os erros são naturais! Não há como se desnaturalizar os erros!!
Estão colados a nós, como bunda de pobre em banco de ônibus metropolitano!!!
Olga. Mantinha um caso secreto com Hierocles, o escravo louro. Rumores dão conta
de que chegou a oferecer grandes somas de dinheiro a quem lhe pudesse equipar
com genitais femininos.
Irmã Avulsa. Triunfal. Bem, então fica tudo em família. Filho de peixa, peixinha é.
Gargalha desbragadamente.
Olga. O presente é repugnante. Mas, quando penso no futuro, como tudo se torna
maravilhoso! Sinto-me leve, sinto-me libertada e vejo ao longe surgir uma luz. Vejo
a liberdade e nos vejo, meus filhos e eu, livres da ociosidade, da limonada, do ganso
com repolho, do sono depois do almoço, da baixa preguiça.
Irina. Observando o ataúde. Mas, então, por que não nos disse isso antes, se
poderíamos vesti-lo como ele sempre quis, em suas últimas vestimentas, de...
Clarissa?!?!
Olga. Depressiva. E nossa mãe: uma fachada. Coitada. Sabem que me morro de
medo de terminar como ela, casada com uma bicha louca travesti?
Irina. Não é arriscado demais querermos mexer no bicho depois de morto? Vai que
a cara dele começa a se despedaçar em nossas mãos, e, depois, ninguém trouxe
lâmina de barbear e ele está barbudíssimo!
Irmã Avulsa. Eu tenho uma lâmina de barbear aqui comigo, na bolsa. Uma mulher
de verdade jamais se separa de sua lâmina de barbear, querida Irina. Retira a
lâmina da bolsa.
Irmã Avulsa. Agitada. Meu Deus, eu, eu, eu... eu estou sentindo uma coisa.
Começando a pegar um santo . Estou vendo que... que... que se passa... que.... Os
olhos reviram nas órbitas, como se estivesse possuída. Fala, gravemente, com voz
imponente de homem. Atenção Prosorovs! Todas as demais ficam mortificadas e
escandalizadas. Aqui quem fala é o Oficial do Exército Prosorov, Clarissa Prosorov.
Exijo que maquiem a cara do meu presunto. Não quero que minha matéria se vá
assim, tão horrorosamente cuidada e descorada.
Macha. Assustadíssima. Minha Nossa Senhora! Se é ele mesmo, nós temos que
obedecer. É nosso pai!
Olga. Brava, para o espírito encarnado. Mas pai, você já morreu, faleceu, pereceu,
finou-se, cessou, acabou, desaguou, veio a óbito, estiolou, se extinguiu, perdeu todo
o movimento vital, perdeu o brilho, aniquilou-se, deixou de ser!!! Você não acha um
pouco demais querer voltar do além-tumba para nos infernizar mais um pouco
com seus caprichos doentios não sarados em vida?!! Ouve-se uma trovoada
infernal, em estilo de filme de terror.
Olga. Rebelando-se. Cuidado com as coisas que diz é o meu caralho! Estou cansada
de apenas obedecer, e obedecer, e obedecer passivamente a tudo e a todos! Um dia
virá em que todos saberão o por quê de tudo isso... por que esses sofrimentos... Não
haverá mais mistérios... Enquanto esperamos, é preciso viver... É preciso trabalhar.
Somente trabalhar. Amanhã partirei sozinha. Ensinarei na escola e darei toda a
minha vida àqueles que talvez precisem de mim. É outono... O inverno virá logo, a
neve cobrirá tudo, e eu trabalharei, trabalharei! Irmã Avulsa, tomada do espírito do
pai, chacoalha fortemente Olga e a esbofeteia com violência real.
Irmã Avulsa. Revirando os olhos, como um diabrete. Você...... foi a pior filha que
tive. Escarra-lhe no rosto.
Macha. Olga, você não aprendeu a maior lição de todas que nosso pai nos deixou.
Encontra maquiagens e afins e vai pintar o rosto do pai. As demais a acompanham
no ato, menos Olga.
Olga. Gritando. Desnaturada..... eu?!! Meu pai era um traveco e eu que sou a
desnaturada?!!
Irmã Avulsa. Voz grave de autoridade. Já chega. O tempo passará e nós partiremos
para sempre... Seremos esquecidos... E serão esquecidos nossos rostos, nossa voz...
Não se saberá mais se éramos muitos, mas, para aqueles que viverão depois de nós,
nossos sofrimentos se transformarão em alegria... A felicidade e a paz reinarão
sobre a terra e, para esses que estão vivendo agora, haverá uma palavra boa.
Minhas queridas, sua vida ainda não terminou. Vocês viverão. A música é alegre,
tão viva... Poderíamos acreditar que estamos quase a saber por que vivemos, por
que sofremos... Se pudéssemos saber! Ah! Se pudéssemos saber!... e maquiem
direito a minha cara! Adeus, meu povo, que eu vou pro céu! Desfalece, cai. O
espírito do pai se vai, Irmã Avulsa fica em estado de catalepsia por instantes, os
olhos vidrados.
Irmã Avulsa. Profética e debochada. Quanto aos cristãos reais, esses tediosos
fanáticos autolobotomizados, esses mórmons assassinos de crianças, esses
guerreiros estelares da escravidão pela moralidade, televangelistas
autoflageladores, esquadrões de zumbis da abençoada Virgem Maria, que paira
numa nuvem cor de rosa sobre o Bronx, vomitando ódio, excomunhões e bile sobre
a sexualidade das crianças, das adolescentes grávidas, das bichas, a esses, meu
beijo no ombro e adeus! Sai.
Macha. Ao público. Respeitável público, não pedimos palmas, mas sim bombeiros.
Macha. Os anos que uma mulher subtrai à sua idade não são perdidos. Ela
acrescenta-os à idade de outras mulheres. Ri.
Irina. Desde Adão que não existe erro em que a mulher não tenha participado de
alguma forma.
Olga. Reflexiva. Nunca confie na mulher que diz a verdadeira idade, pois se ela diz
isso, ela é capaz de dizer qualquer coisa. Pausa dramática. Ah! Se pudéssemos
saber, se pudéssemos saber!... Vai embora.
Irina. Faz menção de sair. Bem, nós ainda estamos em um velório. Com licença, eu
vou servir os rabigalos.
Macha. Rabigalos?
Macha. Ficando extremamente terna e afetuosa para com Irina. A sorte da mulher
depende do amor que aceita.
Macha. Polaca, não, querida, po-lo-ne-sa! Muito distinta! E já que o único mundo da
mulher é o coração do homem, eu serei o homem que matará a tua fome. Toma-a
nos braços e beija-a na boca. Cai o pano (aqui pode ser o pano de prato mesmo, o
de secar a louça).
FIM